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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VALE DAS BONECAS / Jacqueline Susann
O VALE DAS BONECAS / Jacqueline Susann

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VALE DAS BONECAS

Primeira Parte

 

Você terá que escalar o Monte Everest para alcançar o Vale das Bonecas.

A escalada é brutal e poucas pessoas viram esse pico.

Você jamais soube o que exatamente encontraria lá, mas a última coisa que esperaria era o Vale das Bonecas.

Você fica ali parado, esperando pela felicidade que esperava sentir — mas ela não vem.

Você está muito longe para ouvir os aplausos e para agradecê-los.

E não há mais para onde subir.

Você está sozinho e esse sentimento é mais forte que tudo.

O ar é tão rarefeito que fica quase impossível respirar.

Você conseguiu e o mundo o chama de herói.

Foi mais divertido, porém, no começo da escalada, quando havia apenas a esperança e o sonho de realizá-la.

Tudo o que você podia ver então era o cume da montanha, ninguém que o informasse sobre o Vale das Bonecas.

Quando você alcança o píncaro tudo é diferente.

A jornada o deixou arrasado, surdo, cego e cansado demais para que possa apreciar a vitória.

Anne Welles nunca pretendeu fazer a escalada.

Ainda assim, deu o primeiro passo no dia em que olhou à sua volta e disse:

— Não, isso não me basta. Quero alguma coisa mais. — Quando encontrou Lyon Burke era muito tarde para voltar atrás.

 

 

                                   ANNE

Setembro, 1945

Fazia um calor de 40 graus no dia em que Anne chegou. Nova York ardia — era um animal de concreto apanhado por uma onda de calor fora de estação. Ela, porém, não se incomodava com o calor nem com a confusão de uma praça chamada Times Square. Achava Nova York a cidade mais excitante do mundo.

A moça da agência de empregos sorriu e disse:

— Ah, vai ser fácil. Mesmo que você não tenha experiência. Atualmente, todas as boas secretárias estão nos bem remunerados empregos oferecidos pelo Departamento de Defesa. Mas, francamente, querida, se eu tivesse a sua aparência iria direto a John Powers ou a Conover.

— Quem são eles?

— Dirigem as maiores agências de modelos da cidade. Isso é o que eu gostaria de fazer. Só que sou muito baixa e não suficientemente magra. Mas você é exatamente o tipo que eles procuram.

— Acho que prefiro mesmo trabalhar num escritório — disse Anne.

— Está bem, mas acho que é uma tolice. Passou-lhe um maço de papéis.

— Aqui está, todos são bons. Mas vá primeiro ao Henry Bellamy, um grande agente teatral. A secretária dele acaba de se casar com John Welles.

Porque Anne não reagiu ao nome, ela disse:

— Não me diga que nunca ouviu falar em John Welles. Já ganhou três Oscars e acabo de ler que vai dirigir Greta Garbo no seu filme de retorno.

O sorriso de Anne garantiu que ela nunca mais esqueceria John Welsh.

— Agora, faça uma ideia do ambiente e do tipo das pessoas que você vai encontrar. Bellamy & Bellows — um grande escritório. Com toda espécie de grandes clientes. Myrna, a moça que se casou com John Welsh, não chegava a seus pés em aparência. Acho que você, também, vai logo agarrar algum.

— Algum?

— Um sujeito... quem sabe até um marido.

A moça olhou o pedido de emprego.

— De onde você disse que era? Fica na América, não fica?

Anne sorriu.

— Lawrenceville. É no começo do Cabo, quase uma hora de trem de Boston. E se quisesse um marido teria ficado lá mesmo. Em Lawrenceville toda gente se casa assim que sai da escola. Eu gostaria de trabalhar um pouco primeiro.

— E você deixou um lugar desses? Aqui, toda a gente procura um marido. Inclusive eu mesma. Talvez você me pudesse dar uma carta de apresentação para Lawrenceville.

— Você quer dizer que se casaria com qualquer um? — Anne estava curiosa.

— Bem, não com qualquer um. Mas com alguém que me desse um belíssimo casaco de castor, uma empregada para meio período, e que me deixasse dormir até o meio-dia. Os caras que eu conheço não só esperam que eu continue no meu emprego, mas que me pareça, ao mesmo tempo, com Carole Landis de négligé, enquanto preparo alguns pratos dignos de um gourmet.

Anne riu, e ela continuou:

— Está bem, você vai ver. Espere até se ver envolvida com alguns dos Romeus desta cidade. Aposto que volta para Lawrenceville pelo primeiro trem. E não se esqueça de me apanhar no caminho e de me levar junto.

Ela jamais voltaria a Lawrenceville. Não tinha apenas deixado Lawrenceville. Tinha fugido de lá. Fugido de um possível casamento com algum sólido rapaz de Lawrenceville e da sólida e monótona vida de Lawrenceville. Da mesma monotonia em que sua mãe vivia. E a mãe de sua mãe. Da mesmíssima casa em que viveram gerações e gerações de uma boa família da Nova Inglaterra, todas elas sufocadas por emoções disfarçadas sob uma armadura de aço chamada boas maneiras. ("Anne, uma senhora nunca ri alto. Anne, uma senhora nunca chora em público." "Mas não estou em público, mamãe. Estou chorando aqui, com você, na cozinha." "Uma senhora só chora quando está sozinha. Você já não é uma criança, Anne, e sua tia Amy está presente. Agora, vá para o seu quarto.")

De alguma forma, Lawrenceville a perseguira até Radcliffe. Lá havia garotas que riam, que choravam, que faziam mexericos, que viviam, enfim, os "altos" e "baixos" da vida Ela nunca fora, porém, convidada a fazer parte daquele mundo. Era como se estivesse usando um emblema que dizia Conserve-se a distância. Tipo frio e reservado da Nova Inglaterra.

Refugiara-se, então, cada vez mais, nos livros e mesmo ali encontrava uma norma que se repetia: parecia que, virtualmente, todos os escritores que admirava haviam deixado suas cidades natais. Hemingway alternava a Europa com Cuba e Bimini. O pobre e confuso, mas talentoso, Fitzgerald também vivera no estrangeiro. Até o ruivo, com cara de estúpido, Sinclair Lewis, encontrara romance e excitamento na Europa. Fugiria de Lawrenceville. Simplesmente. Anne decidiu-se a isso em seu último ano no colégio e informou à mãe e à tia Amy durante as férias de Páscoa.

— Mamãe, tia Amy... quando eu sair da escola vou para Nova York.

— Péssimo lugar para as férias.

— Pretendo viver lá.

— Já discutiu isso com Willie Henderson?

— Não. Por que é que deveria discutir?

— Bem, vocês têm andado juntos desde que tinha dezesseis anos. Naturalmente, toda gente imagina...

— Exatamente. Em Lawrenceville tudo é imaginação suposto.

— Anne, você está levantando a voz — disse-lhe a mais calmamente. — Willie Henderson é um ótimo rapaz. E fui colega de escola de seus pais.

— Mas eu não o amo, mamãe.

— Nenhum homem pode ser amado — replicou tia Amy.

— Você não amou papai, mamãe? — Não era uma pergunta, era quase uma acusação.

— É claro que o amei. — Sua voz tornou-se áspera. — O que sua tia quer dizer é que... bem, os homens são diferentes. Eles não pensam e não reagem como as mulheres. Veja o exemplo do seu pai. Um homem extremamente difícil de compreender. Era impulsivo e apreciava uma bebida. Se ele tivesse se casado com qualquer outra pessoa, que não eu, teria certamente tido um mau fim.

— Nunca vi papai beber — disse Anne, defendendo-se.

— É claro que não. Havia a Lei Seca, e eu nunca tive uma gota de álcool em casa. Tirei-lhe o hábito antes que ficasse arraigado. Ah, tivemos muitas cenas no começo. A mãe dele era francesa, você sabe.

— Todos os latinos são meio malucos — concordou tia Amy.

— Papai não era nenhum maluco. — De repente, Anne desejou tê-lo conhecido melhor. Tudo parecia tão distante... o dia em que ele cambaleou para a frente, ali mesmo na cozinha. Anne tinha doze anos. Ele não disse uma palavra, simplesmente escorregou para o chão e morreu antes mesmo que o médico chegasse.

— Você tem razão, Anne, seu pai não era realmente nenhum maluco. Era um bom homem, um bom homem. Não esqueça, Amy, que a mãe dele era uma Banister e fez todo o curso com nossa mãe.

— Mas, mamãe, você realmente nunca amou papai? Quer dizer, quando o homem que a gente ama nos toma nos braços, nos beija, bem, deve ser maravilhoso, não é? Não era maravilhoso com papai?

— Anne, como ousa perguntar uma coisa dessas à sua mãe? — disse tia Amy.

— Infelizmente, minha filha, beijos não são tudo o que um homem espera do casamento — disse-lhe a mãe asperamente. — Você já beijou Willie Henderson?

Anne fez uma careta.

— Sim, algumas vezes.

— E gostou? — perguntou a mãe.

— Odiei... os lábios dele eram úmidos... e o hálito cheirava a azedo.

— Você já beijou algum outro rapaz? Anne sacudiu os ombros.

— Alguns anos atrás, quando o Willie e eu começamos a sair juntos, nas festas, quando brincávamos de prenda. Acho que cheguei a beijar a maioria dos rapazes da cidade, e cada beijo me parecia mais repulsivo do que o outro. — Riu. — Mamãe, acho que não há beijoqueiro decente em toda Lawrenceville.

O bom humor da mãe voltou.

— Você é uma senhora, Anne. Por isso é que não gosta de beijos. Nenhuma verdadeira senhora gosta.

— Oh, mamãe, eu realmente não sei do que é que eu gosto ou o que sou. Por isso é que quero ir para Nova York.

A mãe encolheu os ombros.

— Anne, você tem cinco mil dólares. Seu pai deixou esse dinheiro para você gastar como bem entender. Quando eu morrer, haverá mais uma boa soma. Não somos ricos, como os Henderson, mas estamos em boa situação e, afinal de contas, a nossa família representa alguma coisa em Lawrenceville. Gosto de pensar que você voltará para ficar nesta casa. Minha mãe nasceu aqui. É claro que Willie Henderson talvez queira acrescentar mais uma ala — há bastante terreno para isso — mas, pelo menos, será a nossa casa.

— Eu não amo Willie Henderson, mamãe.

— Não existe o amor no sentido em que você está falando. Você descobrirá que esse tipo de amor só existe nos filmes baratos e nas novelas. Amor é companheirismo, é ter amigos comuns, é ter os mesmos interesses. Isto do que você fala é sexo, e deixe que lhe diga, menina, que, se esse tipo de amor existe, morre bem depressa, depois do casamento — assim que a gente vê do que se trata. Mas vá a Nova York. Não impedirei o seu caminho. Tenho certeza de que Willie vai esperar. Mas ouça bem o que lhe digo, Anne: dentro de algumas semanas você estará de volta, muito satisfeita por deixar aquela cidade imunda.

A cidade estava suja, quente, e cheia de gente no dia em que ela chegou. Marinheiros e soldados passeavam pela Broadway o seu espírito descuidado e os olhos ávidos, com um convulsivo excitamento de fim de guerra. Contudo, misturado à sujeira, à umidade e à estranheza da cidade, Anne experimentava certa sensação que a fazia sentir-se viva. A pavimentação fendida fazia com que as árvores e o ar puro de Nova York parecessem frios e sem vida. O homem que retirou da janela o cartaz que dizia: "Aluga-se um quarto", depois que ela pagou o aluguel de uma semana, parecia-se com o Sr. Kingstom — o homem que trabalhava no correio de Lawrenceville —, só que o seu sorriso era mais simpático.

— O quarto não é grande coisa, mas o teto alto permite uma boa circulação do ar e eu estou sempre por aqui para fazer qualquer conserto necessário.

Anne sentiu que ele simpatizou com ela e ela com ele. Em Nova York havia uma aceitação ou rejeição à primeira vista, o que fazia com que as pessoas parecessem ter acabado de nascer, isentas de qualquer passado.

Agora, enquanto estava parada diante da imponente porta de vidro do escritório de Bellamy & Bellows, esperava ter a mesma aceitação por parte de Henry Bellamy.

Henry Bellamy não pôde acreditar no que via. Não podia ser verdade. Era uma das moças mais bonitas que já vira, e note-se que estava acostumado a ver moças bonitas. Em vez de usar o atrevido penteado à Pompadour e sapatos de salto alto que acabavam de entrar na moda, usava os cabelos soltos, naturais, e podia-se ver que a sua cor era também natural. Os olhos, porém, é que o deixaram aturdido. Eram decididamente azuis, mas glaciais.

— Por que quer este emprego, Srta. Welles? — Por alguma razão, sentiu-se nervoso. Diabo, estava curioso. A moça vestia um costume escuro muito simples, nenhuma jóia, a não ser o pequeno relógio de pulso; mas tinha qualquer coisa nela que deixava claro não estar precisando de um emprego.

— Quero viver em Nova York, Sr. Bellamy.

Apenas isso. Uma resposta direta. Por que será que estava se sentindo como um abelhudo? Afinal, tinha todo o direito de fazer perguntas. E, se fizesse as coisas muito fáceis, era bem possível que ela não aceitasse o emprego. Isto também era outra tolice. Ela estava sentada ali, não estava? E não tinha vindo apenas para tornar chá. Então, por que estava tentando dar uma impressão favorável, como se ele é que estivesse pedindo emprego?

Lançou um olhar na folha que a agência tinha enviado.

— Vinte anos de idade, bacharelada em inglês, estudos em Radcliffe. Sem experiência de escritório. Diga-me, agora, que utilidade poderá ter para nós esse cabedal de conhecimentos extravagantes? Será que poderá ajudar-me a manejar uma vadia como Helen Lawson, ou conseguir que um bêbado, como Bob Wolfe, entregue a tempo o seu artigo semanal para o rádio? Ou convencer algum cantor calouro a deixar o escritório de Johnson Harris e passar para o nosso?

— É isso o que terei de fazer?

— Não, eu é que tenho. Você só tem que ajudar.

— Bem, eu pensei que o senhor fosse advogado.

Notou que ela recolheu as luvas. Então exibiu um de seus sorrisos mais descuidados.

— Sou agente teatral. Existe uma certa diferença — eu preparo os contratos dos meus clientes. Contratos que não tenham furo algum, a não ser a favor deles. Ajudo-os, também, com os impostos, cuido dos seus investimentos, livro-os de toda e qualquer dificuldade, sirvo de árbitro em seus problemas conjugais, mantenho suas amantes e suas mulheres a distância umas das outras, sirvo de padrinho e de ama-seca para seus filhos, principalmente quando eles estão trabalhando em um novo espetáculo.

— Sempre pensei que atores e escritores tivessem seus próprios agentes.

— Sim, eles têm. — Notou as luvas no colo novamente. — Só os "grandes", com os quais eu lido, é que precisam da minha assistência. Por exemplo: um agente comum empurra-os naturalmente para qualquer trabalho que pague melhor. Ele está interessado apenas nos seus dez por cento. Eu, porém, devo aconselhá-los no sentido de fazerem o que será melhor para suas carreiras. Em suma: um advogado teatral deve ser uma combinação de agente, de mãe e de Deus. E você, se obtiver o emprego, deverá ser uma santa padroeira.

Anne sorriu.

— Por que é então que os advogados teatrais não substituem todos os agentes?

— Provavelmente é o que fariam se existissem suficientes schmucks 1 dedicados como eu — corrigiu-se rapidamente. — Perdoe-me a linguagem. É que quando começo a falar nem reparo no que digo.

— Que linguagem? Schmuck? — repetiu ela com curiosidade.

A palavra pareceu tão atrevida, pronunciada por ela, que ele riu alto.

— É uma palavra judaica, e sua tradução literal iria deixá-la corada. Atualmente, porém, é usada como gíria, para designar qualquer narcótico. Não deixe que o nome Bellamy a engane, nem esta minha face episcopal, pois nasci com o nome de Birnbaum. Quando era jovem, trabalhava no verão como diretor social de excursões e fazia o jornalzinho de bordo. As pessoas não apreciavam muito os artigos sob um cabeçalho que dizia "Viajando com Birnbaum" — e então alguém sugeriu Bellamy. Conheci muitas pessoas importantes nessas excursões e uma cantora foi a minha primeira cliente. Tanta gente ficou me conhecendo pelo nome de Bellamy que acabei por adotá-lo, mas nunca permito que esqueçam que, por baixo de Bellamy, haverá sempre um Birnbaum. — Sorriu. — Bem, agora que você tem uma ideia da coisa, acha que poderá manejá-la?

Desta vez o sorriso dela foi franco.

— Gostaria de tentar. Sou boa datilógrafa e uma taquigrafa apenas regular.

Sacudiu as mãos:

— Tenho aí fora duas garotas que poderiam ganhar qualquer concurso de taquigrafia. Você terá que ser algo mais que secretária.

— Acho que não estou entendendo.

Céus! Não era nada disso que ele queria dizer. Amassou o cigarro no cinzeiro e acendeu outro. Viu que ela se retesava na cadeira e, inconscientemente, endireitou-se também.

— Srta. Welles, ser mais do que uma simples secretária significa não apegar-se à rotina costumeira das nove às cinco. Em certos dias não haverá necessidade de chegar antes do meio-dia, se eu a tiver feito trabalhar até tarde na noite anterior. Por outro lado, em caso de crise, mesmo que tenha trabalhado até às quatro da manhã no dia anterior, esperarei que chegue antes do escritório abrir, inclusive porque a senhorita quererá estar aqui. Em outras palavras, fará seu próprio horário, não esquecendo de que, eventualmente, deverá estar disponível à noite.

Fez uma pequena pausa e como ela não reagisse continuou:

— Digamos que eu estivesse jantando no 21, com um provável cliente. Se tudo estiver correndo direito, é bem provável que ele assine o contrato comigo. Pode ser que tenha que tomar uns seis ou sete uísques com ele e ouvir todas as suas queixas a respeito do seu agente atual. É claro que jurarei, pela minha vida, que jamais acontecerão essas coisas. Prometer-lhe-ei até a Lua, com o seu nome gravado nela. É claro que não poderei cumprir todas as minhas promessas — ninguém poderia. Mas não há dúvidas de que farei um esforço honesto para evitar todos os erros cometidos pelo seu agente e, ao mesmo tempo, cumprir todas as promessas. Só que na manhã seguinte não serei capaz de me lembrar de quase nada. Aí é que você entra, pois não poderá estar de ressaca depois de ter tomado apenas um sherry durante a noite toda; poderá lembrar-se de tudo o que foi discutido. Na manhã seguinte, você me apresentará uma lista das minhas promessas e eu poderei estudá-las quando minha cabeça estiver desanuviada.

Anne sorriu.

— Serei então uma espécie de ditafone humano?

— Exatamente. Acha que seria capaz?

— Bem, tenho uma memória excelente e detesto sherry.

Desta vez os dois riram juntos.

— Está bem, Anne. Quer começar amanhã? Concordou.

— Deverei trabalhar também para o Sr. Bellows? Ele olhou o espaço e disse:

— Não há nenhum Sr. Bellows... Bem, existe George, o sobrinho dele. Mas não é o Bellows do Bellamy & Bellows. Esse era o tio de George, Jim Bellows. Comprei a parte de Jim, na sociedade, antes de ele partir para a guerra. Tentei dissuadi-lo, mas em vão. Foi para Washington e conseguiu um uniforme da Marinha e uma patente. Guerra é para os jovens, e Jim Bellows tinha cinquenta e três anos. Velho demais para a guerra... jovem demais para morrer.

— Morreu na Europa ou no Pacífico?

— De um ataque de coração em um submarino, o idiota.

A aspereza de sua voz conseguia apenas salientar ainda mais a afeição que sentia pelo amigo morto. Aí, com brusca mudança de humor, abriu um de seus sorrisos mais cativantes:

— Bem, Anne, creio que já contamos a história de nossas vidas. Posso pagar-lhe setenta e cinco dólares por semana. O que acha?

Era mais do que esperava. O aluguel do quarto custava dezoito, e ela poderia comer por quinze. Disse-lhe que estava muito bem.

 

                                   Outubro, 1945

Setembro foi um bom mês. Anne encontrou o emprego que lhe agradava, uma amiga chamada Neely e conheceu um rapaz gentil e atencioso chamado Allen Cooper.

Outubro trouxe também Lyon Burke.

Foi imediatamente aceita pela recepcionista e pelas duas secretárias. Almoçava todos os dias com elas no restaurante da esquina. Lyon Burke era o tópico perfeito delas e a Srta. Steinberg, a secretária mais categorizada, era perita no assunto. Estava com Henry Bellamy há dez anos e conhecia Lyon Burke.

Lyon estava no escritório há dois anos quando à guerra foi declarada e alistou-se no dia seguinte a Pearl Harbor. Jim Bellows já tinha sugerido que seu sobrinho se juntasse a firma. Henry nada tinha contra George Bellows, mas recusara: "Negócios e parentes não se misturam" — insistia. Quando Lyon partiu, Henry não teve outra escolha.

Não havia nada errado com George. Era um advogado eficiente, mas lhe faltavam certas coisas que sobravam em Lyon Burke, pelo menos aos olhos da Srta. Steinberg. As atividades de Lyon na guerra tinham sido seguidas avidamente pelo pessoal do escritório, e, quando ele recebeu as divisas de capitão, Henry tirou meio dia para festejar. A última carta chegou em agosto, de Londres. Lyon estava vivo, mandava lembranças, mas não sabia se ia voltar.

No começo, Henry estava sempre atento à correspondência. Quando setembro passou sem uma palavra, começou a conformar-se com um possível desligamento de Lyon da firma. Só a Srta. Steinberg não desistia. E com razão. O telegrama chegou em outubro.

 

Caro Henry: Bem, esta acabado e eu estou inteiro. Visitei parentes em Londres e fiquei uns dias em Brighton descansando. Estou em Washington esperando pela exoneração oficial. Voltarei assim que me deixarem trocar o uniforme pelo velho terno azul. Lyon.

 

O rosto de Henry Bellamy se iluminou quando leu o telegrama. Pulou da cadeira.

— Lyon vai voltar. Céus, sabia que ele voltaria.

Nos dez dias seguintes, o escritório era uma confusão de decoradores e de mexericos.

— Nem posso esperar — suspirava a recepcionista. — Acho que ele é exatamente o meu tipo.

O sorriso da Srta. Steinberg irradiava conhecimento.

— Ele é o tipo de todas, querida. Se a aparência dele não for suficiente, o sotaque inglês faz o resto.

— Ele é inglês? — Anne estava surpresa.

— Nasceu aqui — explicou a Srta. Steinberg. — A mãe dele era Neil Lyon. Isso foi muito antes de seu tempo. Do meu também. Ela, uma grande comediante inglesa, veio para cá dar uns espetáculos e se casou com um advogado, Tom Burke. Deixou o palco e Lyon nasceu aqui, o que o faz cidadão americano. A mãe conservou a cidadania inglesa, e, quando Lyon estava com cinco anos, o pai morreu. Ela o levou para Londres, voltou para o palco e ele estudou lá. Quando a mãe morreu, Lyon voltou e fez o curso de advocacia aqui.

— Tenho certeza de que me apaixonarei perdidamente por ele — suspirou a secretária mais nova.

A Srta. Steinberg deu de ombros.

— Todas as moças do escritório tinham uma queda por ele. Mal posso esperar sua reação quando ele a conhecer, Anne.

— Eu? — Anne parecia espantada.

— Sim, você. Ambos têm uma qualidade em comum: a reserva. Só que Lyon, no começo, engana com aquele sorriso. A gente chega a achá-lo amistoso. Mas nunca ninguém consegue aproximar-se dele. Ninguém, nem mesmo o Sr. Bellamy. Bem no fundo, o Sr. Bellamy tem um pouco de inveja de Lyon, e não somente devido à sua aparência ou às suas maneiras. Lyon se entrega. Ele ainda será o dono desta cidade. Tenho visto o Sr. Bellamy firmar grandes contratos, mas para isso tem que lutar por centímetro de terreno, porque todos conhecem a sua sagacidade e estão preparados contra ela. Lyon não — simplesmente entra com todo aquele encanto britânico e aquela cara de artista de cinema e.... pronto. Consegue tudo o que quer. Só depois de algum tempo é que se percebe que não o conhecemos absolutamente, que não sabemos o que ele realmente pensa a nosso respeito ou a respeito de qualquer outra pessoa. O que eu quero dizer é que ele parece gostar igualmente de todas as pessoas. Aí então a gente começa a achar que, bem no fundo, ele não se incomoda com ninguém e com coisa alguma. Mas, seja lá o que for que se pense de Lyon, a gente acaba sempre por adorá-lo.

O segundo telegrama chegou dez dias depois, numa manhã de sexta-feira:

 

Caro Henry: Consegui o terno azul. Chego Nova York amanhã à noite vou direto ao seu apartamento. Veja se pode reservar hotel. Espero começar segunda-feira. Lyon.

 

Henry Bellamy saiu ao meio-dia para comemorar. Arme estava justamente acabando de fechar a correspondência quando George Bellows parou em sua mesa:

— Por que não vamos a algum lugar comemorar também? — perguntou.

Arme não pôde esconder o seu espanto. Suas relações com George se limitavam a um "bom-dia" e a um aceno ocasional.

— Eu a estou convidando para almoçar — disse ele.

— Sinto muito, mas prometi às colegas que iria reunir-me a elas na hora do almoço.

— Muito mal — disse, ajudando-a com o casaco. — Este poderá ser o nosso "último dia na Terra". — Sorriu penalizado e se dirigiu ao escritório.

No almoço, ouviu distraidamente a infindável conversa a respeito de Lyon Burke, imaginando por que teria recusado o convite de George. Medo de complicações? Lealdade a Allen Cooper? Bem... Allen era o único homem que ela conhecia em Nova York, e era ótima pessoa. Talvez isso o fizesse merecedor de certa lealdade.

Anne lembrou-se do dia em que ele invadiu o escritório determinado a concluir um negócio que, mais tarde, soube ser a venda de um seguro. Henry foi de uma frieza fora do comum com o rapaz e livrou-se dele em poucos minutos. Depois, sentiu-se tão penalizada, que transferiu toda a sua simpatia para o rapaz. Enquanto o levava para fora, murmurou:

— Melhor sorte na próxima parada.

O rapaz ficou surpreendido com o calor de sua voz. Duas horas depois o telefone tocou.

— Aqui é Allen Cooper, lembra-se? Aquele-vendedor dinâmico. Bem, quero que saiba que, em comparação com minhas outras paradas, a conversa com o seu patrão foi um enorme sucesso. Pelo menos, encontrei você.

— Quer dizer que você não fez uma única venda? — Anne estava realmente preocupada.

— Não. Bem, creio que hoje não é o meu dia... a menos que você lhe queira dar um bom final, tomando um drinque comigo.

— Mas eu não...

— Não bebe? Nem eu tampouco. Vamos jantar então.

Foi assim que começou e continuou. Ele era agradável e tinha um belo senso de humor. Anne o considerava mais um amigo do que um namorado. Nem se preocupava em trocar de roupa depois do trabalho. Ele parecia nunca notar o que ela vestia, mas ficava sempre feliz e agradecido em sua companhia. Iam a pequenos restaurantes desconhecidos e Anne sempre escolhia o prato menos dispendioso do cardápio. Gostaria de pagar a sua parte, mas receava que uma proposta dessas o fizesse sentir-se um fracasso ainda maior.

Allen, decididamente, não tinha nascido para vendedor. Suas maneiras eram gentis demais para a profissão. Gostava de perguntar coisas sobre Lawrenceville, sobre a escola, até sobre os acontecimentos do escritório. Fazia-a sentir-se a moça mais fascinante e interessante do mundo.

Anne continuava a sair com ele porque não lhe pedia nada. Nem tentava beijá-la ao despedir-se. Sentia-se aliviada, mas ao mesmo tempo achava que alguma coisa não ia bem. Era quase embaraçoso não despertar qualquer desejo no pobre Allen, mas estava disposta a deixar as coisas correrem naturalmente. A ideia de beijá-lo trazia a mesma repugnância que tinha experimentado quando beijara Willie Henderson em Lawrenceville, e isso a fazia conjeturar a respeito de sua própria capacidade para o amor. Talvez fosse anormal — ou talvez sua mãe tivesse razão — e as paixões e os romances fossem pura ficção.

Durante a tarde desse mesmo dia, George Bellows parou novamente diante de sua mesa:

— Venho fazer uma nova tentativa. Que tal no dia 16 de janeiro? Não é possível que você esteja comprometida com tanta antecedência.

— Mas são quase três meses...

— Bem, aceitarei qualquer vaga antes disso. Helen Lawson acaba de telefonar, gritando por Henry, e isso me fez lembrar que o espetáculo dela começa no dia 16.

— Isso mesmo, Tocando as Nuvens entra em ensaios na semana que vem.

— Bem, você vai comigo?

— Vou, sim, George. Acho Helen Lawson maravilhosa. Ela costumava começar todos os espetáculos em Boston.

Quando eu era pequena, papai me levou a vê-la em Madame Pompadour.

— Ótimo, está combinado. Mas, Anne, quando começarem os ensaios, Helen é capaz de estar por aqui algumas vezes, e, se por acaso vocês chegarem a conversar, não vá entrar nesses detalhes de "quando eu era menina já gostava da senhora". Ela pode esganá-la.

— Mas eu era menina. E, por mais ridículo que pareça, isto foi há apenas dez anos. Mesmo Helen Lawson era uma mulher madura — tinha pelo menos trinta e cinco anos.

— Por aqui agimos como se ela tivesse vinte e oito.

— George, você não pode estar falando sério. Helen Lawson é uma grande atriz. Não tem idade. É o seu talento e a sua personalidade que a fazem tão atraente. Tenho certeza de que ela é bastante inteligente para pensar que parece uma garota.

George sacudiu os ombros.

— Dentro de vinte anos eu lhe telefono para perguntar como se sente. A vontade de aparentar vinte e oito anos é uma doença que todas as mulheres contraem quando atingem os quarenta. O melhor é não tocar no assunto idade na presença de Helen. E, por favor, marque em sua agenda: 16 de janeiro. Enquanto isso, tenha um bom fim de semana e descanse. As coisas por aqui vão ficar bastante atrapalhadas na segunda-feira, quando o nosso herói chegar.

A recepcionista vestia um costume novo muito justo.

O penteado da datilógrafa estava alguns centímetros mais alto e até a Srta. Steinberg apareceu com um novo casaco azul-marinho. Anne estava sentada em seu cubículo, fora do escritório de Henry Bellamy, e tentava concentrar-se na correspondência. Como as outras, tinha a atenção voltada para a porta.

Lyon chegou às 11 horas. Apesar de todas as descrições e especulações que ouvira, Anne não estava preparada para alguém tão atraente como Lyon Burke. Henry Bellamy era um homem alto, Lyon Burke excedia-o vários centímetros. Seu cabelo era negro, como o de um índio, e sua pele parecia ter um bronzeado permanente. Henry não escondia o seu orgulho ao fazer as apresentações. A recepcionista corou visivelmente ao apertar-lhe a mão, a datilógrafa sorriu tolamente e a Srta. Steinberg ficou tonta de excitação. Pela primeira vez, Anne agradeceu a sua típica reserva da Nova Inglaterra. Sabia, porém, que demonstrava uma calma que não sentia ao apertar a mão de Lyon Burke.

— Henry não pára de falar de você. Agora que a conheço, é fácil saber por quê. — Não havia dúvida de que o sotaque inglês lhe era vantajoso.

Anne conseguiu dar uma resposta adequada e agradeceu aos céus quando Henry Bellamy o tomou pelo braço e o empurrou para o escritório recém-decorado.

— Anne, venha conosco — ordenou Henry.

— É irresistível — disse Lyon. — Faz-me apreensivo quanto ao trabalho que me espera em troca de tudo isto. — Afundou-se numa cadeira e sorriu despreocupadamente.

Anne, subitamente, compreendeu o significado do que dissera a Srta. Steinberg. Lyon Burke sorria para toda a gente e esse sorriso tão fácil era também impenetrável.

Henry sorriu paternalmente:

— Seja o mesmo preguiçoso e boa-vida que era antes de nos deixar e mando redecorar o escritório todos os anos. Agora, vamos ao que importa. Anne, Lyon precisa de um apartamento. Ficará comigo até instalar-se. Foi impossível conseguir-lhe um hotel, acredita?

Acreditava. Por que, entretanto, isso lhe dizia respeito?

— Quero que você lhe consiga um apartamento — disse Henry.

— Que eu lhe consiga um apartamento?

— Aposto que você é capaz. Isto é que é ser mais do que uma secretária.

Desta vez foi Lyon quem riu:

— Ela é uma beleza, Henry. Tal como você disse. Mas não é nenhuma mágica. — Piscou para Anne.

— Henry, você está levando uma vida muito retraída. Não tem procurado por apartamentos em Nova York ultimamente?

Henry sacudiu a cabeça.

— Ouça, esta moça chegou aqui há dois meses e não distinguia a Sétima Avenida da Broadway. Ela não apenas encontrou um apartamento logo no primeiro dia como também este belíssimo emprego, onde me tem comendo por sua mão.

— Bem: o meu caso não é exatamente um apartamento. É bem pequeno...

O olhar dele estava distante.

— Minha querida Anne: depois daqueles lugares arrasados em que dormi durante a guerra, qualquer coisa com um teto em cima para mim parece o Ritz.

— Anne vai descobrir alguma coisa. Tente East Side. Sala de estar, quarto, banheiro e cozinha, mobiliado, por uns cento e cinquenta dólares por mês. Talvez, cento e setenta e cinco, se necessário. Comece já, hoje à tarde. Ocupe o dia todo amanhã, ou tantos dias quantos forem necessários, mas não volte enquanto não tiver o apartamento.

— Henry, talvez nunca mais a vejamos novamente — avisou Lyon.

— Aposto nela. Vai achar alguma coisa.

O quarto de Anne ficava no segundo andar. Naquele dia, os dois lances de escada pareciam não ter fim. Ficou parada no meio da escada, com o New York Times na mão. Passara a tarde visitando os apartamentos anunciados e todos já estavam tomados. Os pés doíam. Vestira-se para estar no escritório e não para procurar apartamento. Na manhã seguinte, começaria bem cedo — e de saltos baixos.

Antes de continuar a subir, bateu à porta de Neely. Ninguém respondeu. Arrastou-se pelas escadas acima e entrou no quarto. Alegrou-se ao ouvir o barulho do vapor no velho aquecedor. Apesar da atitude de Lyon Burke de "aceitar qualquer coisa", não podia imaginá-lo num quarto como aquele. Não que fosse de todo mau. Era limpo e bem localizado. Claro que, comparado com o seu quarto em Lawrenceville, era péssimo. A velha cama informe parecia não aguentar mais um ano. Às vezes, ficava a imaginar quantas pessoas já não teriam nela dormido. Talvez centenas. Ela, porém, não as conhecera e era esse anonimato que fazia com que esta fosse a sua cama. Enquanto pagasse o aluguel, tudo o que estava naquele quarto lhe pertencia. A pequena mesa-de-cabeceira, toda cheia de riscos e de queimaduras de cigarro; a cómoda com três gavetas, que não deviam ser fechadas completamente, pois ficavam emperradas, e, se, a gente forçasse muito, os puxadores saíam; a gorda cadeira cheia de molas, ansiosas por saírem do estofamento.

Podia tornar-se um quarto atraente, mas no fim da semana nunca sobrava dinheiro (decidira não tocar nos cinco mil dólares depositados no banco) e ainda não tinha pago as prestações do vestido e do casaco pretos que comprara.

Ouviu a costumeira batida na porta e gritou "pode entrar" sem ao menos levantar os olhos. Neely entrou e atirou-se na cadeira, que rangeu, quase ao ponto de se desmantelar.

— Para que esses anúncios do Times? Pensando em se mudar?

Quando Anne explicou sua nova missão, Neely riu-se gostosamente.

— Você me diz que ele não faz questão de um terraço interno nem de, no mínimo, uns quatro armários em que até possa entrar? — Deu o caso por encerrado e entrou logo no "assunto importante".

— Anne, você teve oportunidade de falar a respeito daquilo hoje?

"Aquilo" era um favor, sobre o qual, há duas semanas, Neely vinha martelando.

— Neely, como é que eu poderia? E justamente hoje... com Lyon Burke chegando?

— Mas nós simplesmente temos que entrar em Tocando as Nuvens. Por alguma razão que não entendo, parece que Helen Lawson gostou do nosso ato. Fomos chamados já três vezes para apresentá-lo e Helen Lawson estava sempre presente. Agora, bastaria uma palavra de Henry Bellamy para entrarmos.

"Nós" significa Neely e seus dois parceiros. O verdadeiro nome de Neely era Ethel Agnes O'Neil ("Não é uma bomba?" — dizia ela), mas o apelido Neely vinha desde o tempo de menina; e, uma vez que fazia parte de um trio chamado Os Gaúchos, nunca houve necessidade de se pensar em nome mais eufônico.

A amizade de Anne e Neely começou com um aceno diário no hall e consolidou-se rapidamente. Neely era uma adolescente exuberante. Nariz arrebitado, grandes olhos castanhos, sardas, e cabelo castanho ondulado. Desde os sete anos dançava em espetáculos ambulantes.

Era difícil imaginar Neely atuando em um palco. Uma noite, arrastou Anne até um hotel em que Os Gaúchos se apresentavam. Lá, uma estranha transformação teve lugar. A sardas desapareceram sob uma grossa camada de pintura e a silhueta adolescente como que amadureceu, com a ajuda de um vestido dourado e colante. O ato era passável. Dois dançarinos de sombrero e calças justas, girando, com a indefectível batida de pés e o estalar de dedos com pretensões a dança espanhola. Anne tinha visto inúmeros atos semelhantes em sua cidade. Mas, positivamente, nunca vira alguém como Neely. Nem estava certa se ela era excepcionalmente boa ou péssima. Não chegava propriamente a fazer parte de Os Gaúchos. Dançava ao mesmo tempo que eles, girava com eles, curvava-se com eles, mas não fazia parte do trio. A gente só via Neely.

Sem a pintura e sem a fantasia, sentada na velha cadeira, parecia exatamente o que era: uma adolescente de olhar vivo e dezessete anos de idade. A primeira amiga de Anne.

— Gostaria de poder ajudá-la, Neely, mas não posso falar ao Sr. Bellamy de um assunto pessoal. Nossas relações são estritamente de trabalho.

— E daí? Toda gente sabe que ele foi amante de Helen Lawson, há muitos anos, e que ela leva em consideração tudo o que ele lhe diz.

— Ele era o quê?

— Amante dela. Não me diga que não sabia.

— Neely, onde é que você ouviu uma tolice dessas?

— Tolice! Céus, quer dizer que ninguém lhe contou isso ainda? Foi há muito tempo, e ela teve três maridos depois disso, mas os dois foram o assunto predileto da cidade durante anos. Por que então acha que estou atrás de você todos esses dias? Será que pode tocar no assunto amanhã?

— Amanhã estarei procurando um apartamento. Mas, Neely, já lhe disse antes: simplesmente não acho correto levar assuntos pessoais para o escritório.

Neely suspirou.

— Essas suas maneiras esquisitas vão atrapalhar o seu caminho. A gente deve andar em linha reta para aquilo que deseja conseguir. E pedir na hora certa.

— E o que acontece se negam?

Neely sacudiu os ombros.

— E daí? Não será pior do que antes. Pelo menos, jogaremos com uma probabilidade de cinquenta por cento.

Anne sorriu com a lógica de Neely. Ela não tinha quase instrução, mas a inteligência inata de um cãozinho mestiço. Muito viva e franca, sua inocência mostrava, às vezes, surpreendentes rasgos de sabedoria. Passara os primeiros sete anos da vida em lares adotivos. A irmã, dez anos mais velha, casou-se com Charlie, um dos componentes de Os Gaúchos. Foi ela que retirou Neely da vida monótona dos lares adotivos e dos currículos escolares e a introduziu na vida agitada de um conjunto ambulante de artistas de terceira classe, onde ela dançava com o trio. Não frequentara a escola, mas alguém sempre a ajudou na companhia, no aprendizado da leitura e da aritmética. Aprendeu geografia através das janelas dos trens e história através de vários atos representados pela companhia. E sempre contou com o porteiro, que dava o alarma quando algum fiscal do Departamento de Educação vinha fazer investigações. Quando fez quatorze anos, a irmã se retirou a fim de ter um filho, e ela, que sabia o ato de trás para diante, substituiu-a. Agora, depois de tantos anos de pequenos espetáculos, tinham uma boa probabilidade de estrear na Broadway.

— Talvez eu possa tocar no assunto com George Bellows — ponderou Anne, pensativamente, enquanto renovava a pintura do rosto. — Ele me convidou para a estreia de Tocando as Nuvens.

— Bem, é o caminho mais longo, mas, enfim, melhor do que nada — comentou Neely, enquanto observava Anne vestir o costume de lã grossa.

— Vai sair com Allen esta noite?

Anne concordou.

— Logo vi. Se fosse com o Sr. Bellamy, você estaria usando o vestido preto. Céus! Será que ele não se cansa de ver sempre aquele mesmíssimo vestido preto?

— O Sr. Bellamy nem ao menos toma conhecimento de mim quando saio com ele. Só tratamos de trabalho.

— Menina, positivamente esse seu escritório é bem movimentado. Em comparação com ele, o teatro é de uma monotonia... Você tem George para levá-la a uma estreia, o Sr. Bellamy para jantares no 21 e, ainda por cima, encontrou Allen nesse escritório. E agora, Lyon Burke. Puxa, Anne, você com quatro, eu com nenhum.

Anne riu:

— O Sr. Bellamy não é meu namorado, a estreia só será em janeiro e eu não sou nada mais que um corretor de imóveis para Lyon Burke. Agora, Allen, bem... Allen e eu apenas saímos juntos.

— Ainda assim tem cinco vezes mais ação do que eu. Nunca tive realmente um encontro. Os únicos homens que conheço são o meu cunhado e o outro parceiro, Dickie, e este é afeminado. O acontecimento social mais emocionante de que participo é uma conversa com outros atores desempregados, lá no bar, onde a gente almoça.

— Você nunca encontrou atores que a levassem a passear?

— Ah! Você não conhece os atores se pergunta uma coisa dessas. Passear com a gente? Eles não lhe pagariam sequer um refresco de cinco centavos. Não que os atores sejam uns pães-duros natos. É que permanecem tanto tempo sem trabalho que, no fim, não têm outro jeito. A maioria deles ainda trabalha à noite — são ascensoristas, trocadores de ônibus, recepcionistas de hotel, qualquer coisa que lhes deixe o dia livre para procurar trabalho e falar com os agentes.

— Você espera viajar breve? — Anne percebeu, de repente, como lhe seria penoso não ver mais Neely.

— Espero que não. Minha irmã diz que o bebé está justamente começando a conhecer o pai. Por isso é que Char-lie está aceitando todo trabalho que aparece em boates. Dickie é que está descontente, pois ganhamos muito mais quando estamos viajando. Fomos procurados para apresentações em Buffalo, Toronto e Montreal. Por isso é que temos que conseguir essa ponta em Tocando as Nuvens. Os espetáculos de Helen Lawson são sempre sucessos. Poderíamos ficar em Nova York durante toda a estação, ou mais. Aí talvez eu pudesse encontrar um rapaz decente e me casar.

— Por isso é que você quer ficar no espetáculo? Para encontrar alguém com quem se casar?

— Claro, pois então serei alguém. Serei a Sra. Alguém. Viverei num lugar fixo. Terei amigos. As pessoas de meu quarteirão saberão quem sou.

— E o amor? Não é tão fácil encontrar alguém a quem realmente a gente possa amar.

Neely franziu o nariz:

— Ouça: se alguém me amar, eu amarei esse alguém... Puxa, Anne, se você se resolvesse a falar com o Sr. Bellamy.

Anne sorriu:

— Está bem, Neely. Farei isso na primeira oportunidade. Quem sabe você não será uma nova Pavlova?

— Que é isso?

— Foi uma grande bailarina.

Neely riu.

— Isso é para os pássaros. Eu quero ser uma estrela. Tenho certeza de que poderia ser estrela. Não com o nosso ato, é claro. Mas, quando estou diante de uma audiência, me acontece uma coisa engraçada. Sei que danço razoavelmente bem, mas, quando me aplaudem com entusiasmo fora do comum, sinto que poderia sair voando. Não tenho realmente uma grande voz, mas, quando ouço os aplausos e sinto que gostaram de mim, sei que poderia cantar até ópera. É esquisito o que sinto quando estou no palco... é como se estivesse sendo carregada em triunfo, ou coisa semelhante. Falei a respeito com Charlie e com Dickie, e eles me acharam maluca. Para eles tudo é indiferente.

— Neely, talvez você devesse estudar, frequentar cursos de representação. Quem sabe poderá chegar ao topo?

Neely sacudiu a cabeça.

— As possibilidades seriam mínimas. Se você soubesse quantos saudosistas conheço que estão sempre falando em como foi que quase conseguiram...

— Decerto são pessoas que não têm talento suficiente — retrucou Anne.

— Ouça: ninguém se agarra ao teatro porque ele proporciona diversão ou dinheiro, certo? Qualquer garota principiante acha que virá a ser uma grande estrela. Mas para cada Mary Martin, Ethel Merman ou Helen Lawson há uma legião de pequenas atrizes que quase chegaram lá, e que hoje passam fome em companhias de quinta categoria.

Anne permaneceu em silêncio. Não podia retrucar a lógica de Neely. Deu um último retoque na pintura do rosto.

— Está bem, Neely. Farei o que puder com o Sr. Bella-my. Mas quem sabe você não conseguirá o trabalho de qualquer maneira? Se vocês foram chamados três vezes para a apresentação, é porque gostaram do ato.

Neely deu uma gargalhada.

— Isso é o que eu não consigo entender. Por que nos chamaram de volta? Como é que Helen Lawson pode ter gostado do nosso ato, a menos que todos os outros dançarinos da cidade estejam de cama, com sarampo ou coisa parecida? Veja, se eu achasse que o nosso ato estava bom, não estaria amolando você. Não posso entender por que Helen Lawson estaria interessada — a menos que estivesse caída por Charlie. Dizem que ela se interessa por qualquer coisa que use calças, e, ainda que Charlie não seja exata-mente uma inteligência, é o que se chama um bonitão.

— Mas o que faria Charlie se isso fosse verdade? Afinal, há sua irmã...

— Deitaria com Helen Lawson, se esse fosse o seu preço — retrucou Neely sem emoção. — No fundo, acharia que estava fazendo isso por minha irmã e pelo bebé, pois não haveria realmente grande satisfação — você sabe que Helen Lawson não é exatamente uma beleza.

— Neely, você quer dizer que ficaria quieta e deixaria as coisas simplesmente acontecerem? Sua irmã jamais a perdoaria.

— Anne, você não só fala como uma virgem mas raciocina como um vigário. Ouça, eu sou virgem, mas compreendo que sexo e amor são coisas completamente distintas para um homem. Charlie fica sempre no quarto mais barato do hotel e manda três quartos do seu ordenado à minha irmã, a fim de que ela e o bebé possam viver decentemente. Isso, porém, não significa que uma vez ou outra ele não tenha suas pequenas aventuras com alguma garota da companhia. Isso nada tem a ver com o seu amor por Kitty e o bebé. E eu estou virgem até hoje porque sei que os homens dão importância a isso e porque espero encontrar alguém que me ame, como Charlie ama Kitty. Com um homem, porém, a coisa é diferente. Você não espera que eles se conservem virgens.

A campainha do quarto tocou. Isso queria dizer que Allen estava na porta de entrada do prédio. Anne apertou o botão, para dizer que estava descendo, agarrou o casaco, a bolsa, e gritou para Neely:

— Vamos, é possível que ele esteja de táxi.

— Espere... você ainda tem algum daqueles formidáveis biscoitos de chocolate? — perguntou Neely enquanto revirava o pequeno armário.

— Leve toda a caixa — respondeu Anne, segurando a porta aberta.

— Que maravilha! — disse Neely, seguindo-a, com a caixa nos braços. — Pedi emprestado ...E o Vento Levou, na biblioteca; tenho uma garrafa de leite e todos estes biscoitos. Meu Deus, que orgia!

Foram a um pequeno restaurante francês. Allen ouviu-a atentamente sobre sua nova missão. Quando terminou, ele engoliu o restante do café e pediu a conta.

— Anne, acho que o momento chegou.

— Que momento?

— O momento da verdade. O momento de você deixar Henry Bellamy num esplendor de glória.

— Mas eu não quero deixar o Sr. Bellamy.

— Mas vai querer, — Seu sorriso era estranho. Confiante. Seus modos mudaram completamente. — Acho que conseguir um apartamento para Lyon Burke será uma grande vitória.

— Você quer dizer que sabe de alguém?

Concordou, rindo misteriosamente. Na rua, acenou para um táxi e deu um endereço em Sutton Place.

— Allen, para onde vamos?

— Ver o novo apartamento de Lyon Burke.

— A esta hora da noite? De quem é esse apartamento, afinal?

— Você verá — respondeu ele. — Tenha paciência. — E permaneceu silencioso o resto da viagem.

O táxi parou diante de um prédio elegante no East Ri-ver. O porteiro disse um muito atencioso "Boa noite, Sr. Cooper". O ascensorista cumprimentou e automaticamente parou no sétimo andar. Allen enfiou despreocupadamente uma chave na fechadura da porta do apartamento. Acendeu as luzes, revelando uma sala de estar muito bem decorada; apertou um botão, uma música suave encheu o ambiente. Era um apartamento perfeito. Feito sob medida para Lyon Burke.

— Allen, de quem é esse apartamento?

— Meu. Venha ver o resto. O quarto é enorme... ótimos armários. — Abriu uma porta corrediça. — Aqui é o banheiro, lá é a cozinha. Pequena, mas tem uma janela.

Anne seguiu-o sem comentários. Era inconcebível: o tímido e apagado Allen vivendo ali.

— Vou mostrar-lhe agora a nota dissonante.

Entrou na sala e puxou as enormes cortinas, expondo à vista o apartamento vizinho e uma janela tão próxima que parecia ser possível tocá-la estendendo um braço.

— É o ponto triste da história — disse. — Este apartamento tem tudo o que se possa desejar, menos uma vista bonita. Ainda que eu tenha que admitir que mora aí em frente um camarada tão gordo que me deixa fascinado. Ele vive sozinho e, em dois anos, jamais o vi comer qualquer coisa — o homem se alimenta unicamente de cerveja — no desjejum, no almoço e no jantar. Veja.

Como que aproveitando a deixa, um homem muito gordo, vestindo camiseta, entrou na cozinha e abriu uma garrafa de cerveja. Allen fechou a cortina.

— Eu costumava me preocupar com ele no começo. Tinha certeza de que acabaria com uma avitaminose, ou coisa semelhante, mas parece que a tal dieta está lhe fazendo muito bem.

Levou-a ao sofá:

— Que tal? Acha que serve para o Sr. Burke?

— Acho maravilhoso, com o homem gordo e tudo. Mas, Allen, por que desfazer-se de um apartamento como este?

— Achei um muito melhor. Posso me mudar amanhã mesmo, mas quero que você o veja primeiro. É importante que você goste dele também.

Bom Deus! Ele ia pedi-la em casamento. O delicado, o gentil pequeno Allen? Não queria magoá-lo. Talvez pudesse fingir que não estava entendendo. Anne forçou um tom indiferente na voz ao responder:

— Allen, o fato de ter sido designada para encontrar um apartamento para Lyon Burke não faz de mim uma perita. Pediram isso unicamente para apressar as coisas no escritório, pois Lyon Burke não pode se ausentar. Se você conseguiu encontrar um apartamento como este sozinho, então não tem necessidade nenhuma dos meus conselhos... — Sabia que estava falando depressa demais.

— Você disse que ele pode pagar até cento e cinquenta — continuou Allen. — E que, eventualmente, poderia subir a cento e setenta e cinco. Sabe de uma coisa? Vou ceder o apartamento por cento e cinquenta, que é o que eu pago, sem os móveis. Estes podem ficar de lambuja. Que tal?

Anne começou a se preocupar.

— Mas você precisará dos móveis no outro apartamento. Além disso, devem ter custado muito dinheiro.

— Não importa — retrucou Allen alegremente — Será que Lyon Burke pode se mudar imediatamente?

— Bem...

— Deve poder, não? Venha, quero mostrar-lhe o meu novo apartamento.

Conduziu-a para o elevador, ignorando seus protestos sobre a hora tardia.

Na rua, o atencioso porteiro se aproximou.

— Táxi, Sr. Cooper?

— Não, Joe. Vamos aqui perto.

Guiou-a até o próximo quarteirão, onde entraram num prédio que parecia estar dependurado sobre o rio. O apartamento parecia um cenário cinematográfico. A sala de estar estava inteiramente forrada por um tapete branco. O bar era revestido de mármore italiano. Havia uma escada que levava ao andar de cima. O mais espetacular, entretanto, era o panorama.

Portas de vidro se abriam para um terraço sobre o rio. Saíram. Soprava um vento úmido e gelado, mas a beleza do panorama dominava tudo. As luzes da ponte faziam um rendado sobre o rio e entre os suportes brilhavam as luzes menores. Anne olhava deslumbrada, sem tomar conhecimento da presença de Allen.

— Vamos fazer um brinde ao novo apartamento? — perguntou.

Anne saiu do sonho para tomar o refresco que ele oferecia.

— Allen, de quem é esse apartamento?

— Meu, se eu quiser.

— A quem pertence agora?

— A um homem chamado Gino. Ele, porém, o acha grande demais e está vivendo no Waldorf.

— Allen, você não pode se dar a um luxo destes!

— Você ficaria surpreendida se soubesse de tudo o que eu posso me permitir. — Lá estava ele novamente, com aquele sorriso enigmático. Anne saiu em direção à sala.

— Allen, acho que está na hora de ir embora. Estou cansadíssima, e tão confusa...

— Anne... eu sou rico, muito rico.

Anne olhou-o pensativamente. Sabia que estava dizendo a verdade.

— Anne, eu a amo. No começo, mal podia acreditar que você não soubesse.

— Soubesse o quê?

— Quem sou eu.

— Quem é você?

— Bem, eu ainda sou Allen Cooper. Isto é a única coisa que você sabe a meu respeito. Meu nome. Só que, para você, ele não significa absolutamente nada. Você me aceitou pensando que eu fosse um fracassado agente de seguros — sorriu — e não pode nem imaginar o que significaram para mim estas últimas semanas, escondendo-a em pequenos restaurantes desconhecidos, vendo-a pedir os pratos mais baratos do cardápio, sabendo que você se preocupava com as minhas vendas. Anne, jamais alguém se importou comigo antes. A princípio, pensei que fosse brincadeira, que você sabia de tudo e estava se divertindo. Sabe, já tentaram isso antes. Por isso é que lhe fiz tantas perguntas — de onde você era, tudo a respeito de Lawrenceville. Contratei até um detetive para verificar.

Allen viu os olhos dela se contraírem e tomou-lhe as mãos.

— Anne, não se aborreça. Você era perfeita demais para ser verdadeira. Gino também não acreditou. Mas, quando os relatórios foram entregues, quando tudo o que você contou era verdade — a casa de família, sua mãe viúva, sua tia, e todo aquele sólido passado na Nova Inglaterra... Anne, você tem classe, verdadeira classe. Deus, quando descobri, fiquei maluco. Sempre tive certeza de que jamais alguém de quem eu gostasse se importaria comigo. Não percebe o que isso significa para mim? Você se importa comigo! Realmente. Não pelo meu dinheiro — mas pela minha pessoa.

Anne soltou-se e tomou fôlego.

— Como é que eu poderia saber, a menos que você me contasse?

— Não compreendo como você pôde ignorar. Estou sempre nos mexericos dos jornais, ou então alguma amiga poderia ter-lhe contado ou mesmo Henry Bellamy.

— Não leio os mexericos e não tenho nenhuma amiga a não ser Neely, e ela só lê a revista teatral. Além disso, nunca discuto meus assuntos pessoais com Henry Bellamy ou quem quer que seja.

— Bem, agora você pode dar uma porção de novidades a nosso respeito. — Allen tomou-a nos braços e a beijou.

Anne ficou parada — então, subitamente, libertou-se. Meu Deus, aconteceu novamente. Uma onda de repulsa a atravessou.

— Minha pequena e doce Anne. Sei que você deve estar confusa.

Anne caminhou para o espelho e retocou a# pintura dos lábios. Sua mão tremia. Havia algo de errado com ela. Por que haveria de sentir tal asco pelo beijo de um homem? Muitas garotas gostavam de beijar homens que não amavam. Era considerado normal. E ela gostava de Allen; ele não era um estranho. Portanto, o problema não era com Willie Henderson ou com os rapazes de Lawrenceville, mas com ela.

— Eu amo você, Anne. Sei que isto aconteceu muito de repente e confundiria qualquer pessoa. Mas realmente quero me casar com você. Quero apresentá-la a Gino — meu pai.

Allen entregou-lhe uma chave.

— Dê isto amanhã a Lyon Burke. Diga-lhe para me procurar em meu escritório, amanhã. O contrato estará pronto. Anne, se você acha este apartamento muito exagerado para o seu gosto, pode jogar tudo fora e mobiliá-lo à vontade. Gino gastou uma fortuna com ele; acho, entretanto, que, de alguma forma, não combina com você. Se preferir, podemos comprar uma casa fora da cidade — o que você quiser.

— Allen... Eu...

— Bem, falamos o suficiente por esta noite. Eu a amo. E você se casará comigo. Esteja certa disso.

Anne ficou pensativa no caminho de casa. A verdade é que devia ser fria. Tal como as meninas na escola diziam que eram certas mulheres, que nunca chegavam a sentir o clímax da verdadeira paixão. Era uma delas. Deus, não podia suportar nem ao menos um beijo. Talvez fosse uma felicidade ter alguém como Allen. Era bom, poderia ajudá-la. Talvez se casasse com ele. A mãe tinha razão. A grande paixão não acontecia para as "damas" que tinham repulsa por um simples beijo. Pelo menos fugira de Willie Henderson e de Lawrenceville. Havia pessoas que não realizavam nem a metade de seus sonhos.

Mandou o táxi esperar quando chegaram à casa dela.

— Tente sonhar comigo, Anne.

Allen inclinou-se e a beijou suavemente na face.

— Boa noite.

Ela olhou o táxi desaparecer, correu para dentro e bateu à porta de Neely, que apareceu agarrada a um volume de... E o Vento Levou. Sem largar o volume, fez Anne entrar.

— Neely, largue esse livro um minuto, eu preciso lhe dizer algo muito importante.

— Eu não largaria o Rhett Butler neste momento por nada deste mundo.

— Neely, você já ouviu falar de Allen Cooper?

— Ei, que é isso, alguma brincadeira?

— Nunca falei mais sério do que agora.

— Quem é Allen Cooper? Este nome significa algo para você?

Neely bocejou e fechou o livro, dobrando cuidadosamente o canto da página para manter o Rhett no lugar.

— Muito bem, então continuemos a brincadeira. Allen Cooper é um ótimo rapaz com quem você sai de três a quatro vezes por semana. Pelo que pude observar da minha janela, diria que ele não é exatamente Cary Grant, mas é aproveitável. Posso voltar para Rhett agora? Ele é bem mais interessante, e parece que Scarlett não o aprecia de jeito nenhum.

— Então, você nunca ouviu falar de Allen Cooper!

— Não. E por que deveria? Ele trabalha no cinema ou coisa parecida? Conheço um Gary Cooper e um Jackie Cooper, de Allen Cooper nunca ouvi falar.

— Muito bem, pode voltar para Rhett Butler. — Anne se dirigiu à porta.

— Você está agindo de modo engraçado esta noite. Andou bebendo?

— Não. Eu a vejo amanhã.

Neely concordou com a cabeça e voltou para Rhett e Scarlett.

Deitada no escuro, Anne pensava. Allen não era um pobre agente de seguros — era rico. Por que deveria ela ter ouvido falar dele? Haveria mais alguma coisa que deveria saber? Como descobrir? George Bellows, é claro! Se havia alguma coisa que valesse a pena saber a respeito de Allen Cooper, ou de qualquer outra pessoa, George Bellows saberia.

George Bellows olhou-a surpreso, quando ela entrou em seu escritório.

— Você não devia estar procurando apartamento?

— Posso falar com você, George? É assunto pessoal.

Ele se levantou e fechou a porta.

— É claro. Sente-se. Pode falar à vontade. Tome um pouco de café.

Serviu-o de uma garrafa térmica.

— Muito bem, vamos ver do que se trata.

Anne olhou para o café na xícara.

— George, você conhece Allen Cooper?

— Quem não conhece? — Ele a olhou atentamente. — Ora, não me diga que está envolvida com ele.

— Eu o conheço. Pelo que sei é bastante rico.

— Rico? — George riu gostosamente. — Moça, deveriam inventar um novo nome para ele. Gino, seu pai, começou o império. São donos da metade da cidade. Dizem que são sócios até daquele armador grego milionário. A revista Time trouxe uma reportagem sobre Gino há alguns anos. Posso conseguir uma cópia, se você quiser. Dizem que a fortuna deles não pode nem ser avaliada. Havia uma fotografia de Allen também. Único herdeiro de todo o império. Você pode imaginar que publicidade isso não representou para os dois. Desde então precisa usar todas as armas para manter as garotas a distância. Por isso, se você encontrou Allen, não o tome a sério. Ele é um patife.

— Acho que é um bom rapaz — insistiu Anne.

George riu novamente.

— Oh, ele é muito bom superficialmente; no fundo, acredito que seja tão duro quanto o pai. Já efetuou alguns negócios bastante astuciosos por conta própria; por exemplo, livrou-se de servir o Exército comprando uma fábrica de pára-quedas.

Anne se levantou.

— Obrigada, George.

— Não há de quê. Posso lhe dar um relatório sobre qualquer lobo mau da cidade. Com a sua aparência, é capaz de você os encontrar a todos.

O rosto de Henry Bellamy mostrava desapontamento quando viu Anne.

— Não me diga que você já desistiu. Anne, sei que é duro. Eu mesmo já telefonei para alguns corretores hoje. Mas continue tentando.

— Já tenho o apartamento para o sr. Burke.

— Não! Meu Deus, você é sensacional! — Tocou o sinal para chamar Lyon.

— Eu tenho a chave. O sr. Burke pode olhar o apartamento esta tarde.

— Por que não esta manhã mesmo? — disse Lyon, entrando no escritório. — Assim não terão tempo para mudar de ideia. Anne, você é uma maravilha. Qual é o endereço?

Tomou nota.

— Grande localização. Estará dentro de minhas posses?

— Custa cento e cinquenta dólares por mês.

— Você é uma feiticeira. Como é que lhe deram a chave? O proprietário não está?

— Deve estar no escritório.

— Como se chama ele?

— Allen Cooper — disse ela calmamente.

Lyon limitou-se a escrever o nome; Henry, porém, olhou-a curiosamente.

— Como foi que você encontrou este apartamento, Anne? Através de anúncio?

— Não. Allen Cooper é meu amigo.

A expressão do rosto de Henry desanuviou.

— Se é amigo seu, então não é o Allen Cooper que conheço.

— Conheci-o neste escritório, sr. Bellamy.

— Aqui? — Henry estava intrigado. — Por Deus! É mesmo! — Levantou-se tão bruscamente da cadeira que bateu com ela na parede. — Você e Allen Cooper, essa não! — Balançou a cabeça em desacordo.

— Imaginava que ele fosse apenas um agente de seguros quando o encontrei — comentou Anne.

— O filho da mãe esteve aqui tentando se livrar de uma corista, uma de nossas clientes menores. Queria que eu a indenizasse e lhe fizesse algumas ameaças. Toquei-o daqui para fora. — Lançou a Anne um olhar zangado. — Pelo que vejo, não fui suficientemente rápido.

— Henry — a voz de Lyon era cortante. — Certamente Anne é capaz de escolher seus próprios amigos. — Então, com um rápido sorriso: — Você não está sendo muito justo, Henry. Dá a Anne uma missão impossível, e, quando ela a cumpre, em vez de felicitá-la, você lhe lança acusações e se intromete em sua vida particular.

— Allen Cooper... — repetia o nome com incredulidade. — Lyon, se você conhecesse esse Allen Cooper!

Lyon sorriu.

— Não quero conhecê-lo, quero apenas o seu apartamento.

— Já ouviu falar dele? — perguntou Henry. Lyon parecia pensativo.

— Parece-me que sim. É terrivelmente rico, segundo ouvi. Ninguém pode acusá-lo por isso.

— Anne não é páreo para um camarada daqueles. Não joga naquele time. Vai ser liquidada, na certa — insistiu Henry.

Anne permaneceu quieta, ligeiramente embaraçada por falarem dela como se não estivesse presente.

— Está bem. — Henry voltou-se e endireitou a cadeira. — Não é da minha conta. De agora em diante, você é que está com a bola.

— Tenho certeza de que ela conhece as regras — retrucou Lyon, voltando-se para Anne e sorrindo. — Gostaria muito de ver o apartamento. Incomoda-se se ela for comigo, Henry?

Henry acenou concordando e voltou ao trabalho. Anne ouviu-o suspirar profundamente quando saíram do escritório.

Ela concentrou sua atenção na janela do táxi enquanto atravessavam a cidade. Era um daqueles maravilhosos dias de fim de outubro, em que o ar perfumado e o sol pálido davam uma impressão de primavera.

— Não fique zangada — murmurou Lyon. — Henry explodiu daquela forma porque gosta de você como de uma filha, e não quer vê-la magoada.

— Não estou zangada... apenas confusa.

— Uma vez que toda a gente está lhe oferecendo conselhos que não foram solicitados, deixe-me dar-lhe alguns também. Nunca julgue ninguém através da opinião dos outros. Todos nós temos diferentes facetas, que mostramos a diferentes pessoas.

Anne sorriu.

— Você quer dizer que mesmo Hitler poderia ter sido amável e delicado com Eva Braun?

— Mais ou menos isso. E Henrique VIII não matou todas as suas mulheres. Se bem me recordo, a última dominou-o completamente.

— Mas Allen é realmente um ótimo rapaz — insistiu ela.

— Tenho certeza disso. E, se este é o prédio, estou bem impressionado.

O táxi parou. O porteiro de serviço era outro.

— Queremos ver o apartamento do sr. Cooper — explicou Anne.

— O sr. Cooper falou-me a respeito. Queiram subir ao décimo andar.

Anne entregou-lhe a chave.

— Esperarei no saguão.

— Quê? Excursão sem guia? Vamos, menina, quero que me aponte todas as vantagens do apartamento. Onde está a roupa, como funciona o fogão, a localização da caixa dos fusíveis...

Anne sentiu que corava.

— Estive lá apenas uma vez, para ver o apartamento.

— Ainda assim você o conhece melhor que eu.

Lyon gostou muito do apartamento. Gostou até da vizinhança do homem gordo.

— Chamarei Allen Cooper esta tarde. Antes de tudo, devo expressar minha gratidão a você. Sugiro que almocemos por conta de Henry.

Foram ao Barberry Room. Anne gostou da suave escuridão azulada, das estrelas artificiais que brilhavam no teto, e das confortáveis poltronas. Aceitou um sherry. Muitas coisas tinham acontecido nas últimas vinte e quatro horas. Sen-tia-se ligeiramente confusa. E Lyon falava descuidadamente sobre a maravilha que era o apartamento, do luxo que era a comida civil, do renovado prazer que sentia de voltar à vida civil. Aos poucos, Anne foi saindo de seu mutismo. Gostava da sua pronúncia, e da suave atmosfera do salão. Gostou de observar seu rosto... a mudança de suas expressões faciais... do seu sorriso fácil.

— Você terá que se acostumar a ver Henry se intrometer em sua vida particular — disse Lyon, enquanto acendia o cigarro de Anne —, mas é só porque ele lhe deseja o melhor. Colocou-a num pedestal.

— Foi a você que ele colocou num pedestal — retrucou Anne. — Vê em você o próprio futuro de Bellamy & Bel-lows.

— Isso ele via há quatro anos. As pessoas mudam bastante em quatro anos.

—- O sr. Bellamy não mudou de opinião a seu respeito.

Lyon pegou sua mão.

— Anne, vamos deixar desta história de senhor? Eu sou Lyon e o sr. Bellamy é simplesmente Henry.

Anne sorriu.

— Está bem... Lyon. Você deve saber que Henry esperou ansiosamente a sua volta. — Então, parou de repente. Não era da sua conta. Nunca se intrometera na vida dos outros. Apesar disso, no momento, sentia que devia proteger Henry. Subitamente, compreendeu por que Henry era contra Allen — fazia o papel de amigo. Vislumbrou também a lógica de Neely — não se podia ser um verdadeiro amigo e permanecer no plano impessoal. Falaria com Henry a respeito do interesse de Neely em Tocando as Nuvens. Sentiu uma onda de liberdade, como se estivesse cortando mais uma das amarras que a prendiam a Lawrenceville.

— Estou ciente das esperanças e dos planos de Henry — respondeu Lyon — e talvez não vá desapontá-lo. Mas, por Deus, esse é um trabalho bastardo! Nem bem advogado, nem bem agente.

— Todos, porém, são unânimes em dizer que você é um dínamo. Você deve gostar do trabalho, para lhe dedicar tamanha energia.

— Eu amava a luta... o desafio... até mesmo a diplomacia das conversações.

Anne estava confusa. Tudo o que dizia vinha em contradição ao que diziam dele.

Lyon tomou o silêncio dela por preocupação com Henry.

— Não tenha receio. Vai ver, só tive uma fadiga temporária.

— Mas você está contente em voltar, não está?

— Bem, estou de volta, não é?

Anne sentia-se curiosa.

— Parece que há alguma coisa que você preferiria fazer.

— Será que há muitas pessoas que se podem dar ao luxo de fazer exatamente aquilo de que gostam?

— Eu, por exemplo, gosto do que faço.

Lyon ofereceu-lhe o seu famoso sorriso.

— Sinto-me lisonjeado.

— Quero dizer, trabalhar para Henry, morar em Nova York. E você? Que é que gostaria realmente de fazer?

Lyon esticou as longas pernas sob a mesa.

— Ser horrivelmente rico, por exemplo. Sentar-me em algum belíssimo lugar na Jamaica. Ter uma porção de garotas lindas, iguais a você, para tomar conta de mim, e escrever um livro sensacional sobre a guerra.

— Você gostaria de escrever?

— Claro. Todos os que saem do Exército têm a certeza absoluta de que são os únicos capazes de escrever o único romance verdadeiro sobre a guerra.

— Então por que não escreve?

— Um dos motivos: trabalhar para Henry é ter todo o tempo ocupado. E o apartamento que vimos também não é de graça. Temo que o que a literatura perder será lucrado por Henry Bellamy.

Anne chegou à conclusão de que Lyon Burke não poderia ser catalogado e definido de modo exato. Certamente possuía sentimentos; fazia, entretanto, questão de escondê-los debaixo de um sorriso ou de uma afirmação contraditória.

— É estranho, mas tenho certeza de que você não é dos que desistem — disse Anne categoricamente.

Os olhos de Lyon estreitaram-se.

— Perdão, acho que não entendi.

— Desistir, sem ao menos tentar. Isto é, se você acha, honestamente, que tem algo a dizer, então escreva. Todos devem, no mínimo, tentar fazer aquilo que desejam. Mais tarde, a própria vida força as pessoas a ter várias espécies de compromissos. Mas, agora... seria o mesmo que desistir antes de começar.

Lyon pegou-a pelo queixo. Seus olhos se encontraram.

— Tenho certeza de que Henry não a conhece direito. Até aqui, ele só sabe que você é incrivelmente bonita. Mas, por Deus, é também uma lutadora de primeira.

Anne recostou-se na cadeira.

— Para dizer a verdade, sinto-me diferente hoje. As coisas estão me acontecendo muito rapidamente. Durante vinte anos, nada de especial me aconteceu... Acho que é por isso que estou agindo um tanto estranhamente. Tudo isso a respeito de Allen Cooper. Eu nem sabia quem ele era, até a noite passada.

— Não deixe que a opinião de Henry a influencie. Acontece que ele não está lá muito disposto a abrir mão de você. O certo é que lutará com todas as armas para conservá-la.

— Allen é apenas um amigo...

— Isto é uma ótima novidade. — Desta vez, Lyon a olhava sem sorrir.

Anne ficou embaraçada. Para disfarçar, disse:

— O que eu disse antes, a respeito de pessoas que tentam fazer aquilo de que realmente gostam, quero dizer que consegui, quando vim a Nova York. Ninguém deve desistir de um sonho sem ao menos dar-lhe uma oportunidade de realização.

— Eu não tenho sonhos, Anne. Nunca tive. Essa ideia de escrever só me veio depois da guerra. Antes dela, eu me dedicava ao êxito e a fazer uma montanha de dinheiro. Agora, contudo, nem tenho certeza de desejar isso. De fato, não tenho certeza de querer alguma coisa realmente. — Então, com uma daquelas mudanças de humor que lhe eram peculiares, Lyon sorriu. — Bem, existe uma coisa que realmente desejo: aproveitar e estar bem consciente de cada minuto de minha vida.

— Posso compreender bem isso — retrucou Anne. — Deve ser o sentimento natural das pessoas que passaram por uma guerra.

— Sim? Sabe, eu já estava duvidando que alguma das mulheres que conheço ainda se lembrasse de que houve guerra.

— Oh, tenho certeza de que toda a gente sentiu a guerra.

— Não concordo. Quando se está na guerra, nada mais existe. É impossível imaginar que em algum lugar existam pessoas que estejam dormindo em camas confortáveis, ou que estejam sentadas em restaurantes como este. Na Europa é diferente. Por onde quer que se ande, a gente pode ver os prédios destruídos — as lembranças estão vivas. Quando voltei, porém, todas aquelas mortes e aquele derramamento de sangue me pareceram tão remotos... como se jamais tivessem acontecido. Lá estava Nova York, o Edifício Para-mount ainda lá estava, com o seu velho relógio funcionando como sempre. O calçamento tinha as mesmas rachaduras, os mesmos pombos ou seus descendentes estavam esvoaçando no Plaza, a mesma fila podia ser vista do lado de fora do Copa, esperando para ver os mesmos atores. A noite passada saí com uma criatura maravilhosa, que passou o tempo todo contando os sacrifícios que teve de fazer durante a guerra. Sem meias de nylon, sem tubos plásticos para os batons, sem rolos plásticos para os cabelos... era horrível. Penso que a falta de meias a afetava mais que tudo. É modelo, e as pernas são importantes para ela. Disse-me estar tremendamente contente por termos finalmente descoberto a bomba atómica — ela tinha justamente aberto o seu último pacote de meia dúzia de pares.

— Acho que, quando a gente está na guerra, o mais importante é sair dela com vida — disse Anne, calmamente.

— Não se ousa pensar tão para diante — respondeu Lyon. — Pensa-se apenas no dia-a-dia. Se nos atrevemos a pensar no futuro — qualquer futuro pessoal —, perde-se a calma. De repente, a gente se lembra de todas as coisas com que perdemos tempo... de todos os minutos que nunca recobraremos. Chegamos à conclusão de que a coisa-mais importante de todas é o tempo. Porque o tempo é vida. É a única coisa que não podemos ter de volta. Pode-se perder uma garota e talvez tê-la de volta — ou ainda achar outra. Mas um segundo — este segundo —, quando passa, faz irremediavelmente parte do passado.

A voz dele era suave, uma voz que se recordava de algo, e ela notou as finas rugas nos cantos de seus olhos.

— Havia um cabo... estávamos passando a noite no que restava de um celeiro. Nenhum de nós tinha sono. O cabo deixava escorregar a terra do chão entre os dedos e dizia: "Boa terra, esta". Ele tinha uma fazenda na Pennsylvania. Contava-me os problemas que tinha com os pessegueiros e os seus planos de aumentar a fazenda quando voltasse. Queria que fosse uma ótima fazenda quando seus filhos crescessem. O solo, porém, preocupava-o, pois não era muito rico. Esse era o assunto de que ele mais gostava. Em pouco tempo, até eu estava me preocupando com tal solo miserável; a ponto de oferecer-lhe sugestões. Dormi sonhando com uma imensidão de terra coberta de pessegueiros. O dia seguinte foi terrível. Andamos através de campos minados... e o tempo não ajudava. A noite, fiz os relatórios sobre os homens desaparecidos. Verifiquei as chapas de identificação. Uma delas pertencia ao cabo. Sentei-me contemplando a chapa — na noite anterior, existia um homem... um homem que passou a sua última noite preocupando-se com solo e fertilizantes; agora, o seu sangue devia estar adubando um pedaço de solo estrangeiro.

Olhou para ela.

— E aqui estou eu, jogando fora o seu tempo, falando nisso.

— Por favor, continue.

Lyon olhou-a com estranheza.

— Falei um bocado, hoje... a respeito de coisas que estavam provavelmente enterradas em algum canto da minha mente. Mas já tomei muito do seu tempo. Tire o resto da tarde para você. Compre um vestido, vá ao cabeleireiro — ou faça qualquer uma daquelas coisas que as garotas bonitas devem fazer.

— Esta garota vai voltar para o escritório.

— Nem pense nisso. É uma ordem. Na verdade, Henry estava preparado para ficar sem você vários dias. O menos que você merece é meio dia de folga. E um prémio de duas semanas de salário, que também providenciarei.

— Mas não posso imaginar...

— Tolice. Eu esperava mesmo ter de gratificar qualquer corretor com pelo menos o equivalente a um mês de aluguel. Isso será o meu primeiro ato oficial em Bellamy & Bellows. Você terá duas semanas de salário e o resto da tarde livre.

Anne tomou a tarde de folga, mas não fez nenhuma das coisas que Lyon lhe sugerira. Subiu a Quinta Avenida. Observou a nova moda de inverno. Sentou-se na praça do Plaza. E pensou em Lyon Burke. Ele superava qualquer pessoa que ela já conhecera. Fora conquistada pelo Lyon sorridente e inescrutável, pelo Lyon que falou a respeito da guerra — esse parecia acessível, capaz de se preocupar com as coisas. Preocupou-se com o cabo. Afinal, quem era realmente Lyon Burke?

Saiu da praça e caminhou pela Quinta Avenida. Era tarde. Tinha de ir para casa e mudar de roupa. Allen. Não poderia se casar com Allen. Isso seria negar todas as coisas que dissera. Isso seria desistir. Era muito cedo para se comprometer apenas com um pedaço de sonho. Diria isso a ele no jantar, suavemente, com tato. Não poderia simplesmente dizer: "Allen, não vou me casar com você". Durante o jantar, entraria delicadamente no assunto e seria firme e positiva. Simplesmente isso.

Não foi simples, porém. Eles não foram a um sossegado restaurante francês. Allen não precisava mais esconder sua identidade. Foram ao 21. Os garçons curvavam-se à sua passagem e toda gente o chamava pelo nome. Allen parecia conhecer a maioria das pessoas que estavam no restaurante.

— Anne, você gostaria de viver fora da cidade? — perguntou ele de repente. — Temos uma casa em Greenwich...

Esse foi o começo.

— Não, já morei o suficiente em Lawrenceville. De fato, Allen, há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer... algo que você deve compreender.

Allen olhou para o relógio e acenou para que o garçom lhe trouxesse a conta.

— Allen...

— Continue, estou ouvindo — disse, enquanto assinava a conta.

— É a respeito do que você falou na noite passada. E agora, a respeito de viver fora da cidade. Allen, gosto muito de você, mas...

— Ainda bem que me lembrou. Mandei o contrato a Lyon Burke hoje, e falei com ele. Parece boa pessoa. Inglês, não é?

— Educado na Inglaterra. Allen, ouça-me.

Allen levantou-se.

— Você pode me dizer no táxi.

— Por favor, sente-se. Prefiro falar aqui.

— No táxi é escuro, mais romântico. Além disso, estamos atrasados.

Anne levantou-se desesperançada.

— Aonde vamos?

— Ao El Morocco.

Distribuiu várias gorjetas, discretamente, enquanto saíam. No táxi, recostou-se e sorriu.

— Meu pai está no El Morocco. Disse-lhe que passaríamos lá. Agora, que é que você queria dizer?

— Allen, estou lisonjeada com a sua atenção. Agradeço-lhe muito, também, o apartamento para Lyon Burke. Poupou-me uma porção de trabalho. Acho você uma das melhores pessoas que já encontrei, mas... — nesse momento, ela já podia ver, em letras de néon, o nome do El Morocco; então se precipitou — a respeito de casamento... do que você disse a noite passada... sinto muito. Allen... eu...

— Boa noite, sr. Cooper. — O porteiro do El Morocco quase cantou a saudação, enquanto segurava a porta do táxi. — Seu pai está lá dentro.

— Obrigado, Peter. — Mais uma nota mudava de mão. Allen conduziu-a para dentro. Anne tinha falhado em se fazer entendida — ou será que Allen fazia questão de não entender?

Gino Cooper estava, com um grupo de homens, em uma grande mesa perto do bar. Acenou para Allen, dando a entender que se juntaria a eles. O garçom conduziu o casal para uma mesa perto da parede. Eram dez e meia, cedo para o El Morocco. Apesar de ser a primeira vez que Anne ia lá, já tinha visto filmes e fotografias de várias celebridades sentadas nos seus sofás, que imitavam pele de zebra. Olhou à sua volta: muitas listras por toda parte; no resto, era como qualquer outro salão, com uma boa orquestra, tocando músicas conhecidas.

Gino juntou-se a eles imediatamente. Sem esperar por uma apresentação, segurou a mão de Anne e a sacudiu com força.

— Então, esta é a moça, hein? — Assobiou baixinho. — Menino, você tinha razão. Esta tem classe. Verdadeira classe. Valeu a pena esperar. Posso dizer isso antes de ela abrir a boca.

Estalou os dedos. Um garçom pareceu materializar-se na atmosfera.

— Traga-me champanha — ordenou, sem tirar os olhos de Anne.

— Anne não bebe — começou Allen.

— Hoje ela há de beber — disse Gino animadamente. — Esta é uma ocasião especial.

Anne sorria. O entusiasmo de Gino era contagiante. Moreno, corpulento, um belo homem. O cabelo preto já tinha começado a pratear, mas sua imensa vitalidade e o seu entusiasmo eram quase infantis.

Quando o champanha foi servido, ele brindou:

— À nova dama da família.

Esvaziou metade da taça de um gole só. Limpou os lábios nas costas da mão e perguntou:

— Você é católica?

— Não, eu... — começou Anne a dizer.

— Bem, você se converterá quando casar com Allen. Marcarei uma entrevista com o padre Kelly. Ele poderá apressar tudo.

— Sr. Cooper... — Anne fez quase um esforço físico para encontrar a voz.

Felizmente, Allen interrompeu apressadamente.

— Ainda não discutimos religião, papai. E não há motivo para que ela se converta.

Gino ponderou por alguns momentos.

— Bem... não há, se ela está absolutamente convencida do contrário. Contanto que ela case na Igreja e prometa educar as crianças pela religião católica.

— Sr. Cooper, não vou me casar com Allen — pronto, ela o dissera bem alto e bem claro.

Os olhos de Gino se estreitaram.

— Quer dizer que você é anticatólica a esse ponto?

— Não sou anti coisa nenhuma.

— Então o que é que há?

— Eu não amo Allen.

A princípio, Gino a olhou com espanto. Depois, virando-se para Allen, indagou estupefato:

— Que diabo foi que ela disse?

— Disse que não me ama — respondeu Allen.

— Isso é uma piada, ou coisa assim? Você não disse que ia se casar com ela?

— E vou. Só que primeiro terei de fazer com que ela me ame.

— Estão os dois loucos, ou coisa parecida? Allen riu.

— Já lhe disse, papai, que até a noite passada Anne pensava que eu era um simples agente de seguros. Agora, precisa adaptar-se à nova situação.

— Adaptar-se? Desde quando o dinheiro é obstáculo para alguma coisa?

— Nós nunca discutimos sobre o amor, papai. Anne nunca me levou a sério. A maior preocupação dela era que eu poderia perder o emprego.

Gino olhava para Anne com curiosidade.

— Você, realmente, saiu com Allen durante todas essas semanas comendo em restaurantes baratos como ele me contou?

Anne sorriu levemente. Estava começando a se sentir notada. A voz forte de Gino fazia com que a conversa fosse ouvida em quase metade da sala.

Gino deu uma gostosa gargalhada.

— Esta é muito boa. — Serviu-se de mais champanha. Um garçom apressou-se a ajudá-lo, mas foi despedido com um aceno.

— Eu costumava abrir estas garrafas com os dentes. Agora acham que preciso de meia dúzia de lacaios para me ajudar. — Virou-se para Anne: — Gosto de você. Seja bem-vinda à família.

— Mas não vou me casar com Allen.

— Ouça, se você suportou seis semanas de péssimas refeições com ele, há de amá-lo agora. Tome o seu champanha. Comece a cultivar gostos caros. Poderá permitir-se isso. Alô, Ronnie. — Um homem magro apareceu não, se sabe de onde e estava em pé ao lado da mesa deles.

— Este é Ronnie Wolfe — disse Gino: — Sente-se, Ronnie.

Estalando os dedos, dirigiu-se ao espaço.

— Traga o usual para .o sr. Wolfe.

— Agora, não me diga que nunca ouviu falar de Ronnie; toda a gente lê a-coluna dele — disse Gino orgulhosamente.

— A srta. Welles é nova em Nova York — apressou-se Allen a dizer —, só conhece o Times.

— Bom jornal — disse Ronnie secamente. — Puxou um caderninho preto e seus olhos escuros iam de Allen para Gino.

— Muito bem, vejamos o nome dela. Quem a acompanha? O pai ou o filho?

— Ambos, desta vez — declarou Gino. — Esta moça será da família, em breve. Vai se casar com Allen.

Ronnie assobiou. Olhou para Anne com respeito.

— Grande história, realmente. Novo modelo ganha o grande prémio. Ou será atriz? Agora, não diga nada... deixe-me adivinhar. É do Texas?

— Sou de Massachusetts e trabalho em um escritório — declarou Anne friamente.

Os olhos de Ronnie piscaram.

— Só me falta ouvir que você é capaz de datilografar.

— Não creio que seja notícia para sua coluna. Acho também que deve saber que Allen e eu...

— Ora, Anne — interrompeu Gino rapidamente. — Ronnie é um amigo.

— Não, deixe-a continuar. — Ronnie olhava para Anne cheio de respeito.

— Tome mais champanha — disse Gino, enchendo a taça de Anne.

Ela tomou o champanha fazendo esforço para conter a sua ira. Queria insistir, dizendo que não ia se casar com Allen, mas Gino a interrompeu deliberadamente e, com certeza, a interromperia de novo. Seria embaraçoso para ele ser desmentido em público. Quando Ronnie Wolfe se retirasse, pediria a Gino que não fizesse mais nenhuma declaração. Tinha dito aos dois — ao .pai e ao filho — que não ia se casar com Allen. Será que o dinheiro deixava as pessoas surdas e cegas?

— Para quem a senhorita trabalha? -— perguntou Ronnie.

— Henry Bellamy — interrompeu Allen —, mas só temporariamente...

— Allen! — Anne voltou-se para ele, furiosa, enquanto Ronnie dizia:

— Bem, srta. Welles. O meu trabalho é fazer perguntas. — Sorriu, de modo franco. — Gosto da senhorita. É consolador encontrar uma moça que não veio a Nova York para ser atriz ou modelo.

Depois, olhando-a fixamente.

— Maçãs do rosto salientes. Poderia fazer fortuna como modelo, se quisesse. Se Powers ou Langworth a vissem, ficaria talvez mais rica que o seu noivo. — Piscou para Gino.

— Se ela quisesse trabalhar, comprar-lhe-íamos uma agência de modelos — declarou Gino. — Mas ela vai sossegar e criar bebés.

— Sr. Cooper! — As faces de Anne estavam em fogo.

— Ora, comecemos do princípio — socorreu-a Allen.

— Lá vem sua amiga, Gino — disse Ronnie. — Ela já sabe da novidade?

Todos olharam para a moça alta e bonita que se aproximou da mesa. Sem se levantar, Gino indicou uma cadeira.

— Sente-se, boneca. E diga alô a Anne Welles, noiva de meu filho.

Os olhos maquilados de Adele se abriram ainda mais. Sem tomar conhecimento de Anne, olhava para Allen e para Ronnie em busca de confirmação.

Ronnie fez que sim com a cabeça e seus olhos se divertiam com a consternação de Adele. A moça, porém, se recuperou depressa. Sentou-se ao lado de Gino e ofereceu um leve sorriso a Anne..

— Como é que conseguiu, querida? Estou há meses tentando levar este gorila ao altar. Ensine-me a palavra mágica e poderemos ter uma cerimónia dupla. — Olhou para Gino como que o adorando.

— Você tem uma carreira, Adele — declarou Ronnie, piscando para Gino.

Adele olhou-o com fúria assassina.

— Escute, Ronnie. É necessário ter certo talento para chegar a ser corista.

— Acho que você é a melhor corista da cidade, Adele — disse Ronnie, enquanto guardava o caderninho preto.

— Pode repetir isso — replicou Adele, já mais cordata. — Recusei duas ofertas para fazer cinema só para estar aqui com meu querido.

Debruçou-se e beijou Gino na face.

Ronnie levantou-se e sacudiu a cabeça em despedida. Anne observou-o sentar-se à outra mesa, enquanto o garçom se apressava em colocar nova xícara de café à sua frente. Então tomou vagarosamente o café enquanto seus olhos estavam atentos à porta.

Allen seguiu o olhar de Anne.

— Ronnie é um bom rapaz. Só publica as notícias que ele mesmo constata.

— É um intrometido — replicou Adele.

— Ora, você só diz isso porque ele publicou a notícia , de que precisamos ficar noivos — disse Gino.

— Bem, é o tipo da declaração que me faz parecer uma idiota. Que é que você me diz, querido? Vai deixar que seu filho o vença na caminhada para o altar?

— Já estive no altar. Depois que Rosana morreu, morreu minha vida de casado. Um homem só pode ter uma esposa. Romances? Inúmeros. Mas só uma esposa.

— Quem escreveu essa regra? — perguntou Adele.

Gino serviu-a de champanha. Anne sentiu que o assunto já tinha sido discutido entre os dois muitas vezes.

— Adele, esqueça, sim? Ainda que eu me casasse de novo, não seria com você. Lembre-se de que é divorciada.

Vendo Adele amuada, apressou-se a dizer:

— Antes que me esqueça, mandei Irving levar dois casacos à sua casa amanhã. Escolha o que lhe agradar.

A expressão do rosto dela mudou instantaneamente.

— De vison?

— De que poderia ser? De rato-almiscarado?

— Oh, Gino! — Aproximou-se dele. — Às vezes, você me deixa tão furiosa, mas tenho de perdoá-lo. Amo-o tanto...

Gino olhou para o casaco de seda de Anne, que estava sobre a cadeira, e disse ao filho:

— Ei, Allen, que acha se eu mandasse um para Anne como presente de noivado? — Depois, sem esperar resposta, voltou para Anne.

— Qual é sua cor preferida?

— Cor? — Anne sempre imaginou que o vison fosse marrom.

— Ele quer dizer doméstico ou selvagem, querida. Creio que o selvagem ficaria ótimo com o seu cabelo.

— Acho que não posso aceitar — declarou Anne, tranquilamente.

— Por que não? — explodiu Gino.

— Talvez Anne prefira ganhar o casaco de mim, depois de estarmos casados — arriscou Allen.

— Quer dizer que o seu visou terá que ser legal? — Riu-se Gino.

— Que é que existe de ilegal em aceitar um vison? — perguntou Adele.

— Creio que ilegal é recusar um.

Anne sentiu-se desconfortável. O champanha lhe dava calor. A boate estava cheia; a pista de danças diminuía enquanto garçons colocavam apressadamente novas mesas minúsculas para gente importante que chegava. As pessoas espremiam-se de encontro às cordas de veludo e não havia uma polegada de espaço no lado em que eles estavam sentados. Por incrível que parecesse, porém, ainda havia mesas vazias do outro lado. Allen explicou-lhe que aquilo era a Sibéria. Ninguém respeitava quem estivesse sentado daquele lado do salão. Apenas os quadrados e os forasteiros sentavam-se lá. Não conheciam a diferença. Um frequentador habitual, contudo, morreria de embaraço se tivesse de sentar lá. Havia um constante rodízio de pessoas, uma onda contínua de apresentações. Outro colunista juntou-se a eles, e alguém tirou uma foto. Gino pediu mais champanha. Garotas que pareciam réplicas exatas de Adele paravam à mesa, cumprimentavam Allen com familiaridade e lançavam a Anne olhares que pareciam perguntar se ela se dava conta da sorte que tinha, olhares que denotavam também inveja e curiosidade.

Anne estava ereta na cadeira, tensa, tentando disfarçar o pânico que crescia dentro de si. Tinha de esclarecer tudo com Allen a caminho de casa. Então, chamaria Ronnie Wolfe e os outros colunistas. Precisava fazê-los compreender.

Tocou o braço de Allen:

— É uma hora já, Allen. Tenho de ir para casa.

Gino escandalizou-se.

— Para casa? Mas a festa apenas começou.

— Tenho de trabalhar amanhã, sr. Cooper.

— Minha querida, você não tem que fazer coisa alguma de hoje em diante, a não ser agradar o meu garoto — disse Gino sorrindo.

— Mas eu tenho um emprego...

— Largue-o — encorajou-a Gino, enquanto servia champanha.

— Largar meu emprego?

— Por que não? — desta vez era Adele Marin que fazia a pergunta. — Se Gino me pedisse em casamento eu deixaria minha carreira imediatamente.

— Que carreira? — Riu Gino. — Ficar de pé num palco durante duas horas todas as noites? — Voltou-se para Anne.

— Miss América, aqui, tem que trabalhar amanhã. Pertence a um tal sindicato de atores. Mas você não tem contrato.

— Gosto do meu trabalho e não deixaria o meu patrão em dificuldades — replicou Anne.

Gino sacudiu os ombros.

— Está bem, concordo. Você tem classe. Um patrão deve ser prevenido. Diga-lhe amanhã, dê-lhe oportunidade de procurar outra pessoa. — Acenou para o garçom. — Bem, acho que todos nós poderemos dormir cedo uma noite, para variar.

Anne vestiu o casaco. Sim, acertaria tudo com Allen quando estivesse no táxi, a caminho de casa. Mas não havia táxi. Um enorme carro preto, com motorista, esperava. Gino fez sinal para que entrasse, enquanto dizia:

— Entrem, deixaremos primeiro a Cinderela.

Quando atingiram o prédio em que Anne morava, Gino e Adele ficaram no carro, enquanto Allen a acompanhou até a porta.

— Allen — murmurou Anne —, preciso falar com você.

Ele se debruçou e a beijou levemente.

— Anne, sei que esta noite foi terrível, mas não se repetirá. Você tinha que encontrar Gino. Agora já se conhecem. Amanhã sairemos sozinhos.

— Gostei de Gino. Mas, Allen, você tem de dizer a ele...

— Dizer o quê?

— Allen, não vou me casar com você. Nunca disse que iria.

Allen acariciou-lhe os cabelos.

— Não a culpo por estar em pânico. Esta noite teria amedrontado qualquer pessoa. Amanhã será diferente. — Tomou-lhe o rosto entre as mãos e disse: — Creia ou não, você vai se casar comigo.

— Não, Allen.

— Anne... você está apaixonada por alguém?

— Não, mas...

— Isso me basta. Dê-me apenas uma oportunidade.

— Ei! — berrou Gino pela janela do carro. — Pare com a conversa e dê-lhe o beijo de boa-noite.

Allen beijou-a novamente.

— Virei buscá-la amanhã, às sete e meia da noite. — Voltou-se e desceu as escadas correndo.

Anne ficou parada, tremendo, enquanto o carro se afastava. Bem, tinha tentado. Se Ronnie Wolfe publicasse a notícia, teria que desmenti-la. Subiu as escadas correndo até seu quarto. Um envelope branco estava colado à porta. Uma letra infantil dizia: "Acorde-me qualquer que seja a hora. Urgente. Neely".

Olhou para o relógio. Duas horas. A palavra "urgente" estava sublinhada. Desceu novamente e bateu de leve à porta de Neely, intimamente torcendo para que ela não ouvisse. Notou, porém, em seguida, o ruído da cama, e uma fresta de luz apareceu por baixo da porta. Neely a abriu esfregando os olhos.

— Meu Deus, que horas são?

— É tarde, mas seu recado dizia "urgente".

— Certo. Entre.

— Não pode deixar para amanhã? Estou tremendamente cansada também, Neely.

— Estou completamente acordada agora. E congelada — disse Neely, enquanto pulava, de um pé para outro, no chão gelado.

Anne seguiu-a até o quarto, enquanto Neely voltava para a cama, sob as cobertas.

— Bem, adivinhe o que é!

— Neely, diga logo ou me deixe dormir.

— Estamos no show!

— Ótimo. Agora, Neely, se você não se incomoda, eu...

— Então é assim? E boa noite? A melhor coisa que já me aconteceu? Conseguimos entrar em Tocando as Nuvens e você nem liga.

— Estou contente por você, é claro — declarou Anne, tentando pôr um pouco de entusiasmo na voz.—, mas é que esta foi uma noite terrível.

Neely preocupou-se.

— Que aconteceu? Allen tentou tomar liberdades com você, ou o quê?

— Não. Pediu-me para casar com ele.

— Que é que há de terrível nisso?

— Eu não quero me casar com ele.

— Então, diga.

— Eu disse, mas ele nem quer me ouvir.

— Diga novamente, amanhã.

— Mas amanhã vai ser publicado nos jornais. Neely olhou-a com estranheza.

— Anne, você está engraçada hoje. Por que motivo iria algum colunista publicar que você vai se casar com um simples corretor de seguros?

— Porque esse simples corretor de seguros é um milionário.

Quando Neely finalmente compreendeu, estava estática.

— Anne! — Neely pulou da cama e começou a valsar à volta do quarto. — Anne, você conseguiu.

— Mas, Neely, eu não amo Allen.

— Com todo esse dinheiro, será fácil aprender — insistiu Neely.

— Mas eu não quero me casar ou desistir do meu emprego. Pela primeira vez na minha vida, estou vivendo à minha custa e não estou disposta a desistir disso. Tive apenas dois meses de liberdade e...

— Liberdade! É a isso que você chama de liberdade? Viver numa sala-dormitório, levantar-se às sete e correr ao escritório, almoçar de pé, talvez jantar uma vez ou outra no 21, com Bellamy e algum cliente, enquanto fica congelada nesse casaco de seda? É para essa espécie de glória qué você deseja permanecer livre? Amanhã é 1.° de novembro. Espere até janeiro e fevereiro. Não haverá então nada mais que lama em Nova York. E o pequeno e malcheiroso aquecedor do seu quarto parecerá um fósforo. Do que é que você está desistindo? Diga-me!

— Da minha identidade, do meu futuro, da minha vida inteira. Desistindo de tudo antes de realmente começar. Neely, jamais aconteceu alguma coisa fora do comum a uma pessoa de minha família. Casaram-se, tiveram filhos, e isso é tudo. Eu quero que as coisas me aconteçam, quero senti-las, quero...

— Mas já aconteceu! — gritou Neely. — Com a única diferença de que você não teve de esperar. Está por acaso decepcionada por não ter que se escravizar durante anos, usar sapatos de seis dólares, e vestir-se em liquidações? Anne, se você deixar passar essa oportunidade, ela não voltará nunca mais. Ou acha que quando estiver entediada do papel de secretária aparecerá um outro milionário que lhe dirá: "Está bem, Anne, já é tempo de casar". Fique esperando...

— Não estou procurando um milionário. Para mim isso não tem importância.

— Você nunca foi pobre — disse Neely, com certo ar de zombaria.

— Neely, deixe-me explicar. Você está exultante por ter conseguido um papel em Tocando as Nuvens. Suponhamos que, depois de algumas semanas de ensaio, surgisse alguém como Allen e lhe pedisse para casar com ele e deixar o espetáculo antes mesmo da abertura. Você faria isso?

— Se faria isso? Faria tão rapidamente que eu a deixaria tonta. Vejamos, pode ser que eu tenha realmente talento e que algum dia apareça uma oportunidade de prová-lo. Que é que ganharei com isso? Dinheiro, posição, respeito. Isso é tudo. E talvez tenha de trabalhar durante longos anos para obter o que Allen está lhe oferecendo em uma bandeja de prata.

Anne não podia acreditar no que ouvia. Neely, com aquela cara lavada, que a fazia parecer mais jovem que os seus dezessete anos, era capaz de reduzir tudo, cinicamente, à expressão mais simples. Dirigiu-se para a porta.

— Boa noite, Neely. Estou cansada demais para discutir. Falaremos amanhã.

— Falaremos coisa alguma. Case com ele e pronto. Talvez eu vá morar com você se Tocando as Nuvens for uma bomba.

 

                                   Novembro, 1945

Quando o despertador tocou, Anne acordou com o seu costumeiro bem-estar. Mas, na medida em que se espreguiçava e ficava mais desperta, sentiu uma súbita apreensão. Havia algo de errado...

Allen! A noite passada! Ronnie Wolfe! Então, sua apreensão se transformou em raiva. Fizera o possível. Quantas maneiras existiam para se dizer não?

Vestiu-se apressadamente. Telefonaria para Allen no momento em que chegasse ao escritório. Resolveria tudo de uma vez por todas. Viu uma porção de homens parados à porta do escritório quando chegou. Abriram caminho para ela passar, e então alguém gritou:

— Ei, pessoal, é ela!

Flashes estouraram, perguntas foram gritadas, e entre a confusão toda pôde ouvir o nome de Allen. Conseguiu livrar-se do tumulto, mas alguns seguiram-na até o escritório, chamando-a pelo nome. Era como nos seus pesadelos de criança, quando era perseguida e ninguém aparecia para salvá-la. A recepcionista lá estava, sorrindo. A secretária e a Srta. Steinberg, sorrindo também. Finalmente, sentou-se à sua mesa, cercada de gente e sozinha.

— Quando foi que conheceu Allen Cooper, Srta. Welles?

Os flashes estouravam, cegando-a.

— Anne, olhe para cá, sim? Isso, sorria, sim?

Flash, flash...

— O casamento será na Igreja, Srta. Welles?

— Anne, como é que se sente no papel de Cinderela? Anne queria gritar. Abriu caminho entre eles e entrou no escritório de Henry Bellamy. Lyon Burke amparou-a quando ela entrou correndo. Começou a falar, mas a porta se abriu. Os jornalistas a tinham seguido até ali. Henry sorria... cumprimentava-os. Lyon também sorria.

Henry enlaçou-a pelos ombros, paternalmente.

— Agora, Anne, você terá de se acostumar a isto. Não é todos os dias que uma moça fica noiva de um milionário.

Henry sentiu que ela tremia e apertou-a mais contra si.

— Ora, acalme-se e declare alguma coisa. Afinal, esses rapazes precisam ganhar a vida.

Ela olhou para os repórteres.

— Que é que desejam?

— O que eles desejam é a história completa. — Henry Bellamy curvou-se sobre a mesa e apontou uma fotografia enorme, estampada num matutino, na primeira página. Lá estava ela, com Allen, e o cabeçalho dizia: A mais recente Cinderela da Broadway — Allen Cooper casa-se com secretária.

Henry enlaçou-a novamente.

— Está bem, rapazes. Batam mais uma chapa. E podem publicar: "Henry Bellamy congratula-se com sua secretária milionária".

Mais flashes. Alguém pedia-lhe para sorrir... alguém queria outra pose... alguém subiu numa cadeira e a fotografou de cima... vozes pediam-lhe para olhar para cá... para lá... vozes que pareciam vir de longe. Era como se o barulho do mar a estivesse atordoando e, no meio de tudo, ela só conseguia ver o rosto de Lyon, observando e sorrindo enigmaticamente.

Em seguida Henry apertava as mãos dos repórteres, enquanto os conduzia alegremente à saída. Enquanto fechava a porta, ouviu-o dizer:

— Sim, eles se encontraram aqui no escritório.

Anne ficou olhando para a porta fechada. O súbito silêncio parecia mais irreal do que a confusão anterior. Lyon atravessou a sala e entregou-lhe um cigarro aceso. Ela aspirou profundamente e tossiu.

— Vamos com calma — disse Lyon sorrindo.

Anne jogou-se numa cadeira e perguntou:

— Que farei, meu Deus?

— Você está agindo muito bem. Vai se acostumar a tudo isso. Com o tempo, vai até gostar.

— Não vou me casar com Allen Cooper.

— Ora, ora, não deixe que isso a aborreça. Qualquer um fica meio em pânico com publicidade de primeira página.

Henry voltou ao escritório. Olhou-a com verdadeiro orgulho e disse:

— Muito bem. Por que é que me fez de bobo ontem? Se eu soubesse que o rapaz tinha intenções sérias com você, nunca lhe teria dito o que disse.

— Ela tem uma qualidade rara — interrompeu Lyon —, isto é, faz com que só os outros falem.

Anne sentiu um nó na garganta. ("Uma dama nunca chora em público.") Devia ser um pesadelo. Lyon, com aquele sorriso frio... Henry bancando o pai orgulhoso.

— Chamarei a agência imediatamente — disse Henry. — Você deve ter a agenda toda tomada, Anne. Não se incomode com o escritório. Arranjarei alguém.

Anne sentiu-se flutuar. Uma fraqueza engraçada que vinha do estômago parecia separar sua cabeça do corpo. Todos estavam se afastando dela. Henry já estava folheando a lista telefónica para falar com a agência de empregos.

— Você pensa que vou largar meu emprego? — A voz de Anne era tensa.

Henry tomou-a pelos ombros, sorrindo.

— Querida, acho que você ainda não se compenetrou completamente de tudo isso. Espere até começar com a lista dos convidados, as provas do enxoval, as entrevistas. Você é que vai precisar de uma secretária.

— Henry, preciso falar com você.

— Já vou saindo — disse Lyon, levantando-se. — Henry merece um adeus em particular. E, para você, boa sorte. Você merece o melhor.

Anne observou a porta que se fechava e voltou-se para Henry.

— É inacreditável! Nenhum de vocês se importa!

— Mas é claro que nos importamos! Estamos contentes por você — afirmou Henry um tanto surpreso.

— Mas vocês simplesmente esperam que eu saia, e não se importam. Talvez nunca mais me vejam. Simplesmente me substituem por outra moça, e pronto.

— Ora, é claro que me importo, Anne. Muito mais do que pensa. Acha que encontraremos uma substituta à altura? Acha que gosto da ideia? Afinal, que espécie de amigo seria eu se deixasse que isso a aborrecesse? E que espécie de amiga é você? Então acha que vai sair por aquela porta e que nunca mais nos veremos? Isso não! Não será fácil assim. Claro que espero ser convidado para o casamento... e para padrinho do primeiro filho, ou de todos os seus filhos. Aprenderei até a gostar de Allen. Na verdade, não tenho nada contra ele. É que o diabo do rapaz é tão rico que eu tive medo de vê-la ferida de alguma forma. Agora, porém, tudo é diferente Adoro os milhões dele.

Anne sentiu novamente o nó na garganta.

— Lyon não se importou nem um pouco também.

— Lyon. — Henry parecia intrigado. — Por que acha que Lyon se importaria? A Srta. Steinberg vai cuidar da correspondência dele e...

De repente, Henry parou. A expressão do seu rosto mudou completamente.

— Oh, não. Não você, Anne. Um simples almoço, e você está fisgada?

A moça virou o rosto para o outro lado.

— Não é isso, Henry... nós conversamos... pensei que fôssemos amigos.

Henry mergulhou na poltrona de couro. Tomou as duas mãos de Anne e disse:

— Ouça, Anne, se eu tivesse um filho, gostaria que ele fosse exatamente como Lyon. Mas, se eu tivesse uma filha, dir-lhe-ia para fugir dele como do diabo.

— Isto não faz muito sentido.

— Querida, mesmo sem querer, certos homens são um azar para as mulheres. Allen costumava ser, mas você acaba de tirá-lo de circulação.

— Azar em que sentido? — perguntou ela.

Henry sacudiu os ombros.

— É que conseguem tudo com muita facilidade. Allen consegue-o por causa do dinheiro, Lyon, porque é diabolicamente bonito. De certo modo, compreendo-os perfeitamente. Por que iriam eles fixar-se em uma única mulher, se podem tê-las todas? Basta escolher. E você, Anne, conseguiu apanhar Allen, coisa que a cidade inteira achava impossível. E, em vez de estar eufórica, senta-se aí a fazer manha.

— Henry, compreenda, eu não amo Allen. Comecei a sair com ele há seis semanas, do modo mais casual. Nem sabia quem ele era, sempre pensei que fosse agente de seguros. E agora, de repente, há duas noites, toda essa confusão...

Os olhos de Henry quase se fecharam.

— Quer dizer que ele é para você um estranho?

— Isso mesmo.

— E bastou um almoço com Lyon para que vocês se tornassem almas gémeas?

— Não é verdade. Estou falando a respeito de Allen. Não o amo e Lyon não tem nada a ver com isto.

— Mentirosa.

— Henry, eu juro. Allen nunca significou nada para mim.

— Então como é que saiu com ele durante essas seis semanas? Não há dúvida de que ele lhe parecia ótimo, até Lyon entrar em cena.

— Não é verdade. Saí com ele porque não conhecia mais ninguém e porque tinha pena dele. Parecia tão inócuo. Nunca houve qualquer espécie de romance entre nós. Acredite, ele nunca me beijou, nem para dizer boa noite. E agora, há duas noites... Henry, eu disse a Allen que não o amava, e disse a mesma coisa ao pai dele.

— Você lhe disse isso? — A voz de Henry denotava incredulidade.

— Sim. Aos dois.

— E eles, o que disseram?

— Aí é que está o inacreditável. Nunca conheci alguém como eles. Parecem ter a capacidade de ignorar tudo o que não desejam ouvir. Allen continua dizendo que me ama... e que fará com que eu o ame também.

— Pode acontecer — sentenciou Henry. — Esta é, às vezes, a melhor forma do amor: ser amado.

— Não! Eu quero mais do que isso.

— Claro! Ficar aqui, por exemplo. Quer mesmo que eu descreva com detalhes o que estou prevendo? É isto: você dá o fora em Allen. Claro, por que não? Milionários com propostas de casamento encontram-se por aí às dúzias. Então, você ficará esperando que Lyon a convide para sair. É o que você espera, não é? Claro, será formidável... no começo. Talvez dure um mês. Um belo dia, porém, vou notar que seus olhos estão vermelhos. Você inventará uma história de enxaqueca, só que os olhos vermelhos vão continuar vermelhos. Então, terei que falar com Lyon. Ele sacudirá os ombros e dirá: "Henry, é claro que tenho saído com a garota, até gosto dela um bocado. Mas isso não significa que lhe pertenço. Tenha uma conversa com ela, sim? Veja se consegue tirá-la do meu caminho, está bem?"

— Você fala como se tivesse experiência do assunto — disse Anne amargamente. — Será que sempre faz este discurso às suas secretárias?

— Não às minhas secretárias. É que nunca tivemos uma tão bonita como você. Posso dizer-lhe, entretanto, que já fiz este discurso outras vezes, e a garotas com muito mais experiência do que você. Infelizmente, os discursos foram sempre feitos depois do desastre. E, depois, essas garotas não tinham dado o fora em milionários por causa de Lyon.

— Você faz com que ele pareça um patife.

— Não, ele é um belo rapaz, livre e solteiro. Qualquer mulher que o atraia é a mulher perfeita... para o momento. E existe uma enorme quantidade de momentos e uma enorme quantidade de garotas no inferno desta cidade.

— Não posso acreditar que todos os homens pensem dessa forma.

— Lyon Burke não é "todos os homens", da mesma forma que Nova York não é "todas as cidades". Claro, há de chegar o dia em que Lyon estará tão saturado de tudo isso que poderá se concentrar numa única mulher. Mas isso só acontecerá depois de muito tempo — e mesmo assim não creio que realmente haverá apenas uma mulher.

O telefone tocou. Anne levantou-se para atender, mas Henry a_ impediu.

— Sente-se, herdeira. Lembre-se de que não trabalha mais aqui. Alô? Claro, ponha-a na linha. Como vai, Jennifer? Sim, está tudo combinado. Quê? Bem, na verdade, ela está sentada aqui, perto de mim. Claro que está emocionada. Você devia vê-la. Só falta enrolar o tapete para que ela se ponha a rolar de alegria. — E para Anne: — Jennifer North manda-lhe parabéns. — Falando ao telefone novamente: — Sim, os contratos estão prontos, e assim que der o meu visto eu os mando a você para assinar. Certo querida. Às cinco horas.

Desligado o telefone, voltou-se para Anne.

— Aí está uma garota esperta.

— Quem é ela?

— Ora, não me diga que não sabe. Não costuma ler os jornais? Acaba de livrar-se de um príncipe. Está nas primeiras páginas dos jornais quase todos os dias. Apareceu na cidade como um furacão, vinda não se sabe de onde. Parece-me que ela é da Califórnia, mais ou menos da sua idade. De repente, aparece esse príncipe de verdade, com dinheiro e tudo. Corteja-a com casaco de vison, brilhantes, as coisas de costume. Todas as agências noticiosas dão cobertura ao romance. Um prefeito, em Jersey, oficia o casamento, ao que comparecem todas as celebridades da cidade. Quatro dias depois, ela pede uma anulação — primeira página dos jornais novamente.

— Mas você não trata de divórcio, trata?

— Não, ela tem um ótimo advogado, que me recomendou para tratar dos negócios dela. Para uma garota esperta, ela fez uma grande tolice. Parece que assinou um documento, antes do casamento, pelo qual não receberá um centavo se houver divórcio. E ela quer o divórcio. Não diz por quê, mas quer se livrar do príncipe o mais breve possível. Por isso, terá de trabalhar.

— Ela tem algum talento? Henry sorriu.

— Jennifer não precisa de talento. Se ela quiser, pode entrar já para o cinema. Você nunca viu um rosto mais bonito... e que corpo! Eu diria que é a moça mais bonita do mundo. Pensando bem, Anne, acho que não é Verdade. De certa forma, você é mais bonita. Quanto mais se olha para você, mais bonita parece. Com Jennifer é diferente. A beleza dela causa um impacto instantâneo, como uma descarga de mil watts. Assim que conseguir a anulação e estrear em Tocando as Nuvens, será fácil arranjar-lhe um grande contrato para o cinema.

— Ela canta?

— Vou lhe dizer uma coisa: ela não faz nada.

— Mas ela não está em Tocando as Nuvens.

— Coloquei-a numa pequena ponta — uma espécie de corista glorificada. Helen concordou. Isto é uma das coisas que eu ensinei a Helen muito tempo atrás. O talento é importantíssimo para o espetáculo, contanto que esteja rodeado de um belo cenário. Mas por que esta conversa a respeito de Helen e de Jennifer, se o importante agora é você?

— Henry, quero conservar o meu emprego com você...

— Tradução: Henry, quero dar uma oportunidade a Lyon Burke — interrompeu-a Henry.

— Nem olharei para ele, se é isso que o preocupa.

Henry balançou a cabeça.

— Você está suplicando para que lhe partam o coração, e eu não quero tomar parte nisso. Saia daqui já, case-se com Allen Cooper e seja feliz.

Anne levantou-se.

— Está bem. Vou-me embora. Mas não me casarei com Allen Cooper. Vou procurar outro emprego.

— Vá em frente. Se você quer destruir sua vida, não sou eu quem vai contribuir para isso, e nem quero assistir.

— Você não é meu amigo de verdade, Henry.

— Sou o melhor amigo que você terá em toda sua vida.

— Então me deixe ficar. Henry, você não compreende. Não quero me casar com Allen. Se eu sair daqui e arranjar outro emprego, poderá ser um emprego do qual eu não goste. Allen irá me pressionar e haverá publicidade em torno do assunto... as perguntas ao pai de Allen... você não pode imaginar quando Gino e Allen começam. É como se carregassem a gente sem que a gente quisesse. Henry, ajude-me, por favor. Não quero me casar com Allen Cooper.

— Anne, ele tem milhões, talvez bilhões.

— Já fugi de Willie Henderson em Lawrenceville. Talvez ele não tenha os milhões de Allen, mas tem dinheiro. E eu conheço Willie e sua família desde que nasci. Você não percebe que o dinheiro não significa nada para mim?

Henry ficou silencioso pôr alguns minutos, e depois falou:

— Está bem, você pode ficar, mas sob uma condição: continua noiva de Allen.

— Henry, será que você enlouqueceu? Ou não ouviu o que eu disse? Não quero me casar com Allen.

— Eu não disse casar. Disse noiva. É a única maneira de salvá-la.

— Salvar?

— Sim. Assim não a verei envolvida com Lyon. Há uma coisa a respeito dele: nunca persegue a garota dos outros.

Anne sorriu.

— Pelo menos, você reconhece que ele tem um certo código de honra.

— Que honra? Ele simplesmente não quer se complicar. E para quê, se há uma quantidade enorme de garotas livres se atirando sobre ele?

— E eu? Se continuo noiva de Allen, que é que faço?

— Contemporize. Se você foi capaz de fisgá-lo, tenho certeza de que será capaz de fazer isso.

— Acho isso desonesto. Ainda que não queira me casar com ele, é certo que gosto dele como pessoa. Isso não seria justo.

—- De certo modo seria mais justo sob vários pontos de vista. Em primeiro lugar, mais justo comigo. Já tenho suficientes preocupações com a estreia do espetáculo para ter que pensar em você. Seria também mais justo para com Allen... pois isso lhe daria oportunidade de fazer uma tentativa decente. E, mais do que tudo, seria justo para você, porque lhe daria uma perspectiva melhor para ver as coisas que estão agora completamente obscurecidas por Lyon Burke. — Henry levantou a mão para silenciar as objeções de Anne, e continuou: — Não importa o que você diga; você está apaixonada por ele. Comece, porém, a observar, a ler as colunas dos mexericos sobre o pessoal da Broadway e você verá com que frequência e facilidade Lyon muda de garota. Então, desaparecerá todo aquele encanto que o formidável almoço deixou e você terá salvo a sua virgindade e não terá o coração partido.

Anne enrubesceu, Henry continuou:

— Temos de cuidar bem de você, minha querida. Há poucas jovens assim hoje em dia.

Ela o olhou por alguns momentos e, depois, disse:

— Henry, não creio que possa fazer isso. Seria viver uma mentira.

— Anne... — A" voz dele era suave — com o tempo você há de aprender que nem todas as coisas devem ser necessariamente pretas ou brancas. Você pode ser honesta com Allen. Pode dizer-lhe que Nova York é ainda uma novidade para você, que quer viver por sua própria conta ainda por algum tempo, e não correr afoitamente para o casamento. Quando é que vai completar vinte e um anos?

— Em maio.

— Ótimo. Diga-lhe que quer esperar até maio. Até maio pode haver, por exemplo, uma guerra atómica. Ou então ele poderá encontrar uma outra garota. Lyon Burke pode ficar afeminado de repente. Quem sabe? Tudo pode acontecer. Você pode se apaixonar por Allen. Pode até mudar de ideia em maio. Lembre-se de que nada é definitivo, até que esteja diante do altar. Mesmo então, você pode fugir antes de pronunciar as palavras fatais.

— Você fala como se tudo fosse tão fácil.

— Quando se está escalando o Monte Everest nada é fácil. Sobe-se apenas um passo de cada vez, não se olha para trás e mantêm-se os olhos fixos no alto do pico.

De longe, Anne pôde perceber que havia um aglomerado de jornalistas e fotógrafos esperando por ela, na frente do prédio em que morava. Baixou a cabeça e correu escadas acima. Neely já a esperava no patamar.

— Meu Deus, Anne! Quase desmaiei quando minha irmã me telefonou hoje de manhã. Tome o meu presente de noivado — disse Neely, enquanto estendia a Anne um enorme pacote.

Era um grande caderno, tomado por fotografias de Anne e notícias a respeito do noivado publicadas pelos jornais.

— Trabalhei o dia todo nele — disse Neely orgulhosamente. — Preenchi seis páginas e isso é só o começo. Espere até que se realize o casamento. Puxa, você será famosa!

Nessa noite, Allen chegou em um sedan, com motorista.

— Jantaremos a sós — disse. — Gino se juntará a nós para o café. Sei que prometi que estaríamos a sós, mas ele insistiu em nos levar à estreia de Tony Polar, no La Ronde.

— Tony Polar?

Allen sorriu.

— Anne, não me diga que você não é uma de suas admiradoras?

— Nunca ouvi falar nele.

Allen riu.

— Ele é a maior sensação depois de Sinatra. — Debruçou-se para o motorista e disse: — Leon, vamos passear pelo parque até que eu lhe diga que pare. — Para Anne: — Sei que você deve estar faminta, mas tenho uma razão muito especial para este passeio.

Quando Allen tomou-lhe as mãos, ela as retirou.

— Allen, preciso falar-lhe.

— Ainda não. Feche os olhos. — Abriu uma caixinha de veludo e disse: — Pode olhar agora. Espero que sirva.

Mesmo na penumbra do carro, iluminado intermitentemente pelas luzes da rua, o brilhante era magnífico. Anne virou o rosto para o outro lado.

— Allen, não posso aceitá-lo.

— Não gostou dele?

— Se gostei? É a coisa mais fantástica que já vi na minha vida.

— Dez quilates — disse, com simplicidade —, mas nessa lapidação, de formato quadrado, não fica nada ostensivo.

— Claro que não. — Riu Anne, nervosamente. — Todas as secretárias têm um igual.

— Por falar nisso... já entregou o pedido de demissão a Henry Bellamy?

— Não, e nem pretendo, Allen. Você simplesmente tem de me ouvir. Nós não estamos noivos.

Allen enfiou-lhe o anel no dedo.

— Serve perfeitamente.

Anne olhou-o com atenção.

— Allen, será que você não quer mesmo entender o que estou tentando lhe dizer?

— Sim, você não me ama.

— Então, por que é que faz isso?

— Porque acredito que não há nada no mundo que não se possa conseguir, se realmente quisermos. E eu nunca desejei realmente nada até o momento em que a conheci. Dê-me apenas uma oportunidade. É tudo o que peço. Durante todo esse tempo, você me conheceu como um., pobre rapaz tímido. Em um mês de convivência com o meu verdadeiro eu, você haverá de me amar ou de me odiar. Resolvi correr o risco. — Dirigiu-se ao motorista: — Está bem, Leon. Leve-nos ao Stork Club.

Anne ficou em silêncio. Será que Allen acreditava mesmo que as coisas poderiam mudar? Rico ou pobre, Allen era Allen. Tanto num barato restaurante francês como no El Morocco.

Sentiu que o mundo parecia se fechar ao seu redor. Era fácil para Henry Bellamy, sentado confortavelmente à sua mesa, oferecer soluções e ultimatos. Não podia ver a expressão dos olhos de Allen. Tratava com fatos, não com pessoas. Deprimida durante todo o percurso, encontrou pouca coisa a dizer enquanto atravessavam a multidão de porteiros uniformizados, que os encaminharam para o pequeno salão do Stork Club (é o "único" salão), enquanto alguém lhe entregava um embrulho de presente ("é o perfume com que Shermann presenteia suas favoritas") e o champanha era servido ("é melhor tomarmos, senão poderemos ofender Shermann"). Gino chegou às dez, cumprimentando amigos em várias mesas, com voz muito alta; isto fez com que Allen mostrasse uma careta. Por fim, Gino juntou-se a ele e se atirou ao champanha.

-— Papai, você não devia parar em todas as mesas — disse Allen tranquilamente. — Sabe que não gostam disso por aqui.

— Quem é que se importa? — respondeu Gino em voz alta. — Ouça, filho: não suporto esse tratamento esnobe que todos apreciam por aqui. Se estão dispostos a aceitar o meu dinheiro, saibam, então, que eu gosto de agir da forma que mais me agrada e não de acordo com certas regras malucas. O que eu faço é só da minha conta.

Allen parecia aliviado quando saíram do Stork e foram para o La Ronde.

A julgar pelas boas-vindas que todos os garçons e porteiros davam a Gino, era de se afirmar que ali ele estava em casa. Abraçou vários deles e os chamava de "patrício", enquanto o levavam para uma mesa de pista. Eram onze horas e o salão estava lotado. Gino pediu champanha e uísque.

— Adele prefere uísque, diz que o champanha engorda. Disse que viria depois do espetáculo.

Anne olhava as pessoas que faziam fila para as mesas, discutindo para arranjar um lugar melhor, entregando discretamente fartas gorjetas aos garçons. Fotógrafos, contratados pela boate para fornecer fotografias aos jornais, bateram algumas chapas de Anne e Allen, e voltaram à porta, à espera de mais celebridades. Adele chegou às onze e meia, com a maquilagem que usara para o espetáculo.

— Por que está usando essa droga? — perguntou Gino com desagrado. — Você sabe que odeio isso.

— Mas, querido, retirei os cílios postiços e a maior parte da maquilagem. Não quis fazer uma nova, para não perder nada do espetáculo. — Depois, olhando à volta da sala: — Oh, esta é a maior estreia da estação! Todo mundo está aqui. — Acenou alegremente para um colunista.

— Alguns anos atrás era Sinatra — comentou Allen. — Agora, as mulheres estão se matando por Tony Polar. Não compreendo.

— Não critique — aconselhou Gino, sorrindo. — Lembre-se de que os dois são nossos "patrícios".

— Olhem para a porta! — exclamou Adele. — Lá está Helen Lawson. Vejam o seu vison. Está praticamente vermelho. Aposto que tem, no mínimo, dez anos. E com todo o dinheiro que tem. Aliás, ouvi dizer que ela é muito pão-dura... Ei, aquela deve ser Jennifer North!

— Madonna! — Isto é que eu chamo de corpo! — comentou Gino. — Adele, você comparada com ela parece mais um rapaz.

A atenção de Anne se concentrou também em Jennifer North, rodeada de fotógrafos. A moça era inegavelmente belíssima. Alta, um corpo espetacular. Seu vestido branco, bordado de vidrilhos, era suficientemente decotado para não deixar dúvidas quanto à autenticidade dos seus encantos. O cabelo comprido era quase branco de tão louro. Foi, contudo, o rosto que prendeu a atenção de Anne. Era um rosto tão belo que, de certo modo, contrastava com o cabelo e o corpo absolutamente teatrais. Um rosto perfeito: queixo quadrado, maçãs do rosto salientes, testa inteligente. O olhar, simpático; o nariz, perfeito, parecia de criança, bem como os dentes e as covinhas da face. Era um rosto inocente, que olhava tudo com entusiasmo e ingenuidade, e que parecia não perceber a sensação que causava o corpo em que estava plantado. Era também um rosto que denotava interesse autêntico pelas pessoas que pediam sua atenção, presenteando cada uma com um cálido sorriso. O corpo e o seu equipamento continuaram a ondular e a posar para os fotógrafos e para o aglomerado de basbaques que ali estavam; o rosto parecia ignorar todo esse furor e continuava a cumprimentar as pessoas como se cada uma fosse um amigo muito querido.

Finalmente, os garçons conseguiram levá-la até uma mesa de pista, exatamente oposta a Gino. Anne não viu Henry Bellamy até o momento em que todos se sentaram.

— Veja, seu patrão sabe escolher companhias — comentou Allen. — Jennifer North e Helen Lawson. Isto é o que se chama de acumulada.

— Não, há mais alguém — exclamou Adele. — Deve ser o acompanhante de Jennifer North. Veja, está sentado. Ei, mas ele é um espetáculo!

— Aquele é Lyon Burke — disse Anne tranquilamente.

— Ah, então esse é o tal de Burke — exclamou Allen.

Anne concordou com a cabeça, enquanto observava Lyon ajudar Jennifer a colocar o casaco de pele no espaldar da cadeira. Jennifer agradeceu com um sorriso que cegaria qualquer um.

Allen assobiou:

— Será que essa Vénus loura dançará à volta de minha cama esta noite?

— Ela é cliente do sr. Bellamy — interrompeu Anne friamente. — Lyon Burke deve estar apenas escoltando-a.

— Claro, e vai exigir pagamento extra por tão árduo trabalho.

— Bem, Henry acertou no pote com Helen Lawson — interrompeu-o Gino. — Aquele traste velho paga melhores dividendos do que A. T. & T. Ela tem um bocado de quilometragem; mesmo assim eu pagaria cinquenta pacotes por uma entrada só para vê-la.

Allen apontava para cada uma das celebridades que iam chegando, fornecendo, inclusive, a história completa de suas vidas particulares. Anne procurou mostrar interesse, mas a sua atenção se voltava sempre para a mesa de Henry. Que poderia estar dizendo uma moça como Jennifer e que pudesse ser tão engraçado? E Lyon, o que estaria dizendo a ela? Estava claro que não era a história do celeiro bombardeado e do cabo fazendeiro. Viu-o atirar a cabeça para trás e rir. Não tinha rido daquela maneira quando almoçaram juntos. Claro, ela tinha sido a insípida moça do escritório, que o havia incentivado a escrever, e que o fizera recordar todas as coisas desagradáveis do seu passado. Anne virou a cabeça para o outro lado quando Lyon acendeu um cigarro e o ofereceu a Jennifer.

De repente, as luzes diminuíram. Garçons corriam a fim de anotar os últimos pedidos. Aos poucos, todo o ruído foi cessando, a audiência ficou atenta, as luzes se apagaram completamente, e a orquestra começou a tocar o conhecido tema musical das apresentações de Tony Polar. O foco dos holofotes foi centralizado no palco, apareceu Tony Polar, sob uma verdadeira ovação. Inclinou-se e recebeu os aplausos com modéstia. Era alto, boa aparência, tinha um ar de criança desamparada. Uma jovem confiaria nele. Uma mulher de mais idade teria vontade de protegê-lo. Embora parecesse tímido, cantava bem e manejava a audiência com muita segurança. Depois de algumas canções, afrouxou o laço da gravata para mostrar que estava dando duro; pegou um microfone manual e pôs-se a andar pelo salão, cantando para cada celebridade, brincando com os jornalistas, cantando trechos românticos para matronas que olhavam romanticamente, esquecidas de seus embaraçados maridos. Quando passou por Jennifer, seus olhos se encontraram, ele esqueceu um pedaço da letra, mas se recuperou depressa. Depois, como que não acreditando no que vira, voltou sobre os próprios passos e terminou a canção com os olhos fixos nela. A audiência, subitamente transformada num aglomerado de curiosos, olhava a cena com prazer. Quando terminou a canção, voltou ao palco e foi até o fim do espetáculo sem olhar novamente para Jennifer.

O público se recusava a deixá-lo ir. As luzes se apagaram e os aplausos continuavam, misturados aos gritos de "Mais! Mais!". A orquestra, sem saber o que fazer, começou a tocar o tema musical, como que esperando por uma ordem. Os aplausos eram cada vez mais insistentes. Tony permanecia no palco, sorrindo, uma gratidão infantil. Apontou para a garganta, querendo dizer que estava cansado. Os aplausos se tornaram mais altos ainda. Então, sacudindo os ombros, de bom humor, conferenciou rapidamente com o acompanhante e voltou ao centro do palco. Quando a música recomeçou, voltou-se para Jennifer e cantou diretamente para ela. Era uma canção de amor muito conhecida e, como acontece com muitas músicas populares, o significado podia tomar um sentido altamente pessoal. Parecia ter .sido escrita para que Tony Polar pudesse confessar a Jennifer, e às oitocentas pessoas que se apinhavam na sala, que, de repente, ele encontrara o amor.

Terminada a canção, curvou-se diante da audiência e, por longos e embaraçosos-momentos, ficou olhando para Jennifer. Então, saiu do palco. Houve mais aplausos, mas as luzes se acenderam e a orquestra começou a tocar música de dança.

Allen tirou Anne para dançar. Quando ela se levantou, notou que Lyon levava Jennifer para a pista de danças. Assim que ele a viu, acenou-lhe com um sorriso.

— Anne! E este deve ser Allen, meu senhorio. — O sorriso dele era fácil e simpático. As apresentações foram feitas enquanto vários pares começavam a dançar e algumas pessoas tentavam se aproximar para ver Jennifer mais de perto.

Jennifer sorriu para Anne:

— É o fim! Cada vez que faço um movimento, caem centenas de contas do meu vestido.

Anne procurou uma resposta; só conseguiu mostrar um sorriso muito sem graça. Separaram-se e Allen guiou-a para o outro lado da pequena pista.

Lentamente, a sala foi esvaziando, ficando apenas os poucos noctívagos que faziam questão de tomar a consumação mínima. Anne notou que a mesa de Jennifer foi das primeiras a ficar desertas. Imaginou para onde teriam ido. Talvez para um lugar com uma pista de danças maior. A cabeça lhe doía, queria desesperadamente ir para casa. Gino, porém, não dava sinal de querer terminar a noitada.

— Vamos ao Morocco para um último drinque — sugeriu, quando o garçom trouxe a conta.

Anne abençoou Adele quando esta anunciou que era muito tarde e que tinha uma matinê no dia seguinte.

Alguns dias depois, Anne era novamente mencionada pelos colunistas. Ronnie Wolfe publicou algo sobre o anel de noivado. Quando chegou ao escritório, encontrou a Srta. Steinberg e as outras moças em grande excitação esperando por ela.

— Deixe a gente ver — pediu a recepcionista. — Quando foi que o ganhou?

— É verdade que tem mais de dez quilates? — perguntou a Srta. Steinberg.

Anne estendeu a mão com relutância, enquanto elas suspiravam sobre o anel. Até então, usara-o com a pedra voltada para dentro. Não o deixara no apartamento por ser muito valioso, e, de qualquer maneira, pretendia devolvê-lo a Allen na primeira oportunidade.

Anne estava separando a correspondência quando Lyon Burke chegou. Parou na mesa dela, tomou-lhe a mão em que usava o anel e assobiou com admiração:

— Pesado, hein? — E depois: — Parece-me um ótimo rapaz, Anne.

— Ele é muito bom — disse Anne, sem entusiasmo. — Jennifer parece uma ótima moça, também.

Uma expressão estranha tomou conta do seu rosto.

— Sim, Jennifer é uma das melhores moças que conheci — respondeu ele, calmamente. — Boa moça, mesmo.

Virou-se e entrou em seu escritório.

Anne recostou-se na cadeira. Teria o seu elogio parecido sincero? Claro que Jennifer parecia uma ótima moça. Talvez o tom em que dissera pudesse parecer um tanto convencional, por estar ela tão confusa e nervosa.

Almoçou com as colegas e gastou o resto do tempo perambulando pela Quinta Avenida. Olhando para a vitrina de uma loja, lembrou-se de Neely. Tinha comprado um pé de coelho, no dia anterior, para lhe dar sorte, pois os ensaios de Tocando as Nuvens tinham começado nessa manhã. Invejara Neely, tão vibrante e tão sem complicações. Jamais algo de mau aconteceria a uma pessoa como Neely.

Quando voltou ao escritório, achou um jornal em sua mesa. Uma das moças devia tê-lo posto ali, para que visse, provavelmente, alguma nova notícia sobre o anel. Quando ia jogá-lo no cesto de papéis, percebeu que trazia um bilhete preso ao canto. Dizia: Memo de Lyon Burke para a Srta. Welles. Talvez a interesse a história da página dois.

Na segunda página, uma belíssima fotografia de Jennifer e Tony Polar. O cabeçalho dizia: O mais recente romance da Broadway. A história dizia que Tony declarara que tinha sentido "uma descarga elétrica ao encontrar Jennifer". As declarações de Jennifer eram menos explosivas, mas admitia que a atração fora mútua. Tinham sido apresentados depois do espetáculo de Tony por um amigo comum, Lyon Burke.

"Lyon, simplesmente, aproximou-se e a entregou a mim, dizendo: 'Tony, eu lhe disse que tinha um presente para você na noite de sua estreia' — declarara Tony aos jornalistas."

Anne fechou o jornal e se recostou na cadeira, sentindo-se súbita e inexplicavelmente muito feliz. "Lyon a entregou a mim..." — A frase não lhe saía da cabeça.

— Anne

Neely estava diante de sua mesa.

— Anne, sei que não deveria vir aqui. Mas é que eu, simplesmente, não suportava ir para casa. Precisava falar com você.

O rosto de Neely estava coberto de lágrimas.

— Por que você não está no ensaio? — perguntou Anne.

Neely começou a soluçar incontrolavelmente.

Anne lançou um olhar preocupado para a porta fechada do escritório de Henry e fez com que Neely sentasse em sua cadeira.

— Neely, tente controlar-se. Vou buscar meu casaco e vamos para casa.

— Não quero ir para casa — disse Neely teimosamente. — Não poderia suportar meu quarto agora. Eu estava tão feliz esta manhã quando saí. Escrevi no espelho, com batom: Os Gaúchos Triunfam na Broadway. Não poderia olhar para isso agora.

— Mas, Neely, você não pode ficar sentada aí e ter uma crise.

— Quem disse que não posso? Não fui educada em Radcliffe. Se tenho vontade de ter uma crise, tenho e pronto.

As lágrimas caíam em seu vestido.

— Oh! — Começou a soluçar ainda mais alto. — Veja, meu vestido novo: está todo manchado de lágrimas. Está arruinado, não está?

— Abotoe o casaco. Mandaremos limpar o vestido.

Anne ficou olhando Neely abotoar o casaco, obedientemente. No íntimo, não sentia pena alguma do vestido, que era horrendo. ("Neely, as pessoas não usam tafetá púrpura para trabalhar" — dissera-lhe Anne, quando ela comprou o vestido. — "Você não veste" — argumentou Neely —, "mas eu quero ser notada nos ensaios.")

Anne sentou-se.

— Está bem, Neely. Você insiste em ficar aqui, então tente me contar tudo com calma. Por que você não está no ensaio?

— Anne, não estou no espetáculo.

— Você quer dizer que não vão aproveitar Os Gaúchos?

— Oh! Anne, é terrível! Vão e não vão.

— Bem, comece do princípio. Que foi que aconteceu?

— Compareci ao ensaio esta manhã e ainda cheguei cinco minutos adiantada. Maquilei-me toda, e tinha o seu pé de coelho na bolsa. Aí, apareceu um afeminado magricela, de cabelinho aparado, carregando o livro com o texto. Dick e Charlie chegaram em seguida.

— Neely, vá direto ao assunto.

— Estou contando como aconteceu. Aí apareceram as coristas. Nessa altura, já me sentia meio deslocada, mesmo usando meu vestido novo. Você precisava ver o aparato de 'algumas das coristas. Seis delas tinham casacos de vison autênticos, sendo que o resto vestia calças de castor ou de raposa prateada. Não havia um casaco de lã. E todos se conheciam entre si, com exceção de nós. Quando Jennifer North chegou você juraria que era Rita Hayworth que estava entrando. O assistente do diretor correu para ela todo afoito, não parava de dizer como estava contente com ela no elenco. Estava atrasada dez minutos e ele parecia achar formidável que ela se dignasse a aparecer. Me senti horrível, completamente deslocada. A gente parecia apenas um pobre conjunto de variedades. Charlie estava com a barba por fazer e Dick parecia mais afeminado do que nunca; o meu vestido de tafetá subitamente mostrava quanto tinha custado, isto é, dez dólares e noventa e cinco centavos. Durante uns quinze minutos, toda a gente se cumprimentava e falava do último espetáculo em que tinham trabalhado juntos. Até mesmo os rapazes do coro já se conheciam. Aí, apareceu o diretor, que na minha opinião é um afeminado também.

— Neely... — Anne tentava disfarçar a sua exasperação. — Por favor, conte apenas o que houve.

— É o que estou fazendo: não estou omitindo absolutamente nada. Aí entrou Helen Lawson, como se fosse a rainha da Inglaterra. O diretor a apresentou, dizendo: "Elenco, essa é sua estrela. Srta. Lawson". Me senti com a obrigação de levantar e cantar Deus Salve a Rainha, ou coisa parecida. O diretor deu uma volta com ela, apresentando-a às pessoas que não conhecia. Foi quando chegou à nossa frente... — Neely parou, seus olhos encheram-se novamente de lágrimas.

— E então? — Anne insistiu.

— Ela cumprimentou Dick e Charlie e olhou sobre a minha cabeça, como se eu não estivesse ali. Anne, ela é um pedaço de gelo. Então disse a Dick e Charlie, com dureza: "Ah, sim. Vocês sãos Os Gaúchos. Faremos uma dança juntos. Melhor que comam montanhas de espinafre, pois terão de me atirar de um lado para outro".

— Ela?

— Certo. Ela. Aí me levantei e disse: "Alô, Srta. Lawson. Acho que deve saber que Os Gaúchos são três. E eu sou um deles. Eu sou Neely". Mesmo sem olhar para mim, ela se voltou para o diretor e disse: "Pensei que isso já tivesse sido acertado". E foi embora. Alguns minutos depois, vi que o diretor chamou Charlie para um canto, onde tiveram uma pequena conversa. Parecia que o diretor estava discutindo com ele e que Charlie tentava explicar alguma coisa. Aí Charlie voltou e disse: "Ouça, Neely, eles não nos contrataram exatamente para fazer o nosso número. Contrataram para um número cómico, parodiando a nossa dança. É uma sequência, representando um sonho. Teremos de atirar Helen Lawson de um lado para outro".

— Mas, Neely... afinal de contas, você tem um contrato — lembrou Anne.

Neely sacudiu a cabeça.

— Quem assina os nossos contratos é Charlie. Esse contrato diz apenas: Os Gaúchos. Quinhentos dólares por semana. Charlie e Dick ganharão duzentos cada um, eu fico com cem. Ganharei os cem de qualquer maneira, mesmo sem trabalhar, o Charlie disse. Acontece que não confio nele. Se ele se livrou tão facilmente de mim, como é que vou acreditar que vai me pagar? E depois, que esperam que eu faça? Que me sente em meu quarto e fique lamentando? Não conheço ninguém. Toda a minha vida se resume no nosso número.

— Compreendo, é realmente horrível — concordou Anne. — E posso também compreender o dilema de Charlie. Ele não está em condições de recusar todo esse dinheiro. Talvez você possa encontrar outro emprego, apenas para se manter ocupada.

— Fazendo o quê?

— Bem, vamos para casa conversar sobre o assunto. Acharemos alguma solução. Poderemos ir, talvez, à agência de empregos onde eu f ui e...

— Anne, não sei datilografar, nunca fui à escola, não sei fazer coisa alguma... e, além de tudo, quero estar no espetáculo.

Neely começou a soluçar violentamente, outra vez.

— Por favor, Neely — suplicou Anne. Sabia que a Srta. Steinberg e as outras moças estavam olhando. O pior, porém, aconteceu quando Lyon Burke abriu a porta de seu escritório. Anne sorriu levemente quando ele chegou até onde estavam e olhou para a soluçante Neely.

— Esta é Neely. Está um pouco transtornada.

— Creio que "transtornada" é um adjetivo um tanto fraco para o estado da moça.

Neely olhou para cima.

— Meu Deus! Sinto muito. Quando choro, choro de verdade — soluçou Neely, e, arregalando os olhos, acrescentou: — Mas você não é Henry Bellamy, é?

— Não, sou Lyon Burke. Neely sorriu entre as lágrimas.

— Oh, agora vejo o que Anne queria dizer.

— Neely teve uma grande decepção hoje — interrompeu Anne abruptamente.

— Decepção? Estou quase morrendo. — E, para prová-lo, Neely deixou escapar uma nova série de soluços.

— Bem, acho que é bastante incómodo morrer aqui, numa cadeira de encosto duro — comentou Lyon. — Por que não transferimos o velório para o meu escritório?

Sentada confortavelmente na poltrona de couro do escritório de Lyon, Neely repetiu a história toda, enfeitando-a com novos gemidos. Quando terminou, Anne olhou para Lyon e comentou:

— É realmente chocante o que aconteceu. Você não imagina o que significa para Neely este espetáculo.

Lyon concordou, compreensivamente:

— Só não posso acreditar é que a própria Helen fizesse isso.

— Ela é uma assassina — gritou Neely. Lyon balançou a cabeça.

— Não que eu a esteja defendendo. Ela é dura, mas esse não é seu modo habitual de agir. Em geral, manda que os outros se encarreguem da poda — a menos que tenha sido tomada de surpresa.

— Tudo aconteceu como eu contei. Não inventei nada — insistiu Neely.

Lyon acendeu um cigarro e pareceu pensativo por um momento. Depois, olhando para Neely:

— Você aceitaria um papel no espetáculo, mesmo que não fosse com Os Gaúchos?

— Aqueles ordinários! Depois do que me fizeram, faria qualquer coisa para não ter que novamente trabalhar com eles. Mas o que é que eu poderia fazer no espetáculo?

— Um musical é muito clássico. Vamos ver se conseguimos esticá-lo um pouco mais — disse Lyon, levantando o telefone.

Elas o ouviram discar um certo número e perguntar por Gilbert Case, produtor da peça. Primeiro, cumprimentaram-se afavelmente e discutiram sobre futebol. Então, como se de repente se lembrasse de algo, Lyon acrescentou:

— Antes que me esqueça, Gil, você assinou contrato com um conjunto chamado Os Gaúchos... sim?... claro que o assunto não é com você... — Lyon pôs a mão sobre o telefone e sussurrou para Neely: — Seu cunhado é mesmo um patife. Combinou tudo antes de assinar o contrato.

Neely saltou da poltrona e berrou:

— Você quer dizer que aquele insignificante me fez ir ao ensaio para bancar a idiota? Oh, eu...

Lyon fez-lhe sinal para ficar quieta, mas os olhos de Neely chispavam:

— Vou lá e o mato — murmurou.

— Olhe, Gil — disse Lyon com voz despreocupada —, sei que o caso não é exatamente com você. Tecnicamente você está fora disso. Se os rapazes prometeram que iam falar com a moça, é claro que teve de acreditar.

Anne viu-o olhar fixamente para Neely. Sabia que Lyon queria ganhar tempo. Pôs novamente a mão sobre o bocal do telefone e sussurrou:

— Neely, qual é a sua idade? Diga a verdade.

— Dezenove...

— Ela tem dezessete anos — interrompeu Anne.

— Eu tenho que dizer dezenove, para poder trabalhar em certos Estados — argumentou Neely.

O rosto de Lyon se iluminou com um sorriso vitorioso.

— Ouça, Gil. Nós certamente não queremos que surjam dificuldades. Temos Helen Lawson na peça, mais o coreógrafo e, também, Jennifer North. É do nosso interesse que tudo corra bem. A última coisa que desejaríamos era um processo. Sim, eu disse um processo, Gil. A companheira de Os Gaúchos tem apenas dezessete anos, e esses dois estiveram viajando com ela por todo o país, mentindo sobre sua idade. Você compreende, se ela resolver abrir um processo, haverá uma tremenda confusão. Gil, sei que eles lhe disseram que tudo estaria muito bem. Mas o caso é que não está bem. Como é que sei que ela pretende processá-los? Porque a moça está sentada aqui, no meu escritório.

Piscou para Neely e acendeu um cigarro.

— Gil, eu sei que a esta altura é duro procurar outro conjunto de dançarinos. Mas acho que podemos resolver tudo já, pelo telefone. Os Gaúchos têm um contrato para quinhentos dólares, não é? Por outro lado, você pode despedi-los com cinco dias de ensaios, sem ter de pagar um centavo, certo? Então, simplesmente, faça-os assinar um outro contrato, de quatrocentos dólares, e prepare um contrato de cem dólares para a moça. Ponha-a no coro, ou como eventual substituta de alguma cantora, dê-lhe uma ponta, qualquer coisa... contanto que fique na peça. Isto não lhe custará um centavo a mais e todos ficarão felizes. Certo, eu lhe direi para se apresentar no ensaio amanhã. Ótimo... No Copa? Quando? Esta noite? Com prazer, eu o vejo lá.

Pôs o fone no gancho e sorriu para Neely:

— Senhorita, você está na peça.

Neely atravessou a sala e abraçou Lyon numa explosão de gratidão.

— Oh, Sr. Burke! O senhor é fantástico! — Então, correu para Anne e abraçou-a. — Anne, eu a adoro! Nunca esquecerei disto. Você é a única amiga que eu tenho. Até o meu cunhado está contra mim. E minha irmã — aposto que ela sabia. Charlie nunca se atreveria a fazer isso sem que ela soubesse. Oh, Anne, se algum dia conseguir alguma coisa, ser alguém, ou se você precisar de qualquer coisa... eu me lembrarei. Juro, eu...

Anne libertou-se delicadamente do abraço da amiga.

— Neely, estou tão contente por você! De verdade.

O telefone tocou. Lyon atendeu e falou baixinho, com a mão no bocal:

— É Gil Case, novamente. — Anne sentiu uma onda de apreensão enquanto Lyon sorria.

— Não sei, Gil. — E, virando-se para Neely: — Qual é o seu nome? — Seus olhos infantis se abriram muito.

— É Neely.

— Neely — repetiu Lyon ao telefone. Sim. N-E-E-L-Y. Neely de quê?

Ela o olhava nervosa.

— Meu Deus! Eu não sei. Quer dizer, nunca me incomodei com um nome artístico, porque sempre fiz parte de Os Gaúchos. Não posso usar Ethel Agnes O'Neil?

— Quer que eu lhe diga para esperar até amanhã, até você se decidir?

— E dar-lhe uma oportunidade para que mude de ideia? Jamais! Anne, que nome devo escolher?

Anne sorriu.

— Acho que pode encontrar coisa mais excitante.

Neely olhou para Lyon, selvagemente.

— Sr. Burke?

Lyon balançou a cabeça.

— Neely Burke não tem encanto.

Neely parou e ficou imóvel um momento. De repente, seus olhos brilharam.

— Neely O'Hara!

— Quê? — Lyon e Anne engasgaram juntos com a palavra.

— Neely O'Hara é perfeito. Sou irlandesa e Scarlett é o meu tipo inesquecível.

— Ela acaba de ler ...E o Vento Levou — apressou-se Anne a explicar.

— Neely, tenho certeza de que poderíamos achar algo mais eufônico — sugeriu Lyon.

— Mais o quê?

— Sim. Gil, ainda estou na linha — falou Lyon ao telefone. — É que estamos tendo uma pequena discussão a respeito de um nome.

— Quero ser Neely O'Hara — insistiu Neely teimosamente.

— É Neely O'Hara — disse Lyon ao telefone novamente. — Sim, O'Hara. É melhor estar com contrato pronto amanhã na hora do ensaio. Ela é do tipo nervoso. Gil, faça um contrato individual e não para o coro. Melhor que a moça comece direito.

Desligou o telefone.

— E agora, Srta. Neely O'Hara, o melhor que tem a fazer é inscrever-se no Sindicato dos Atores. A taxa de inscrição é um pouco alta, talvez cem dólares. Por isso, se precisar de um adiantamento...

— Tenho setecentos dólares de economia — disse Neely orgulhosamente.

— Ótimo. E, se você está mesmo decidida a ficar com esse nome, terei prazer em fazer o necessário para que o mesmo se torne legal.

— Você quer dizer que daí ninguém poderá roubá-lo?

Lyon sorriu.

— Bem, digamos que isso fará as coisas mais fáceis, por exemplo, para assinatura de cheques de aposentadoria.

— Assinatura de cheques? Puxa, será que algum dia precisarei disso?

O telefone tocou outra vez.

— Aposto que o homem mudou de ideia — murmurou Neely.

— Sim, é Lyon. Ah! (O tom da voz mudou.) Claro, li tudo nos jornais. Não lhe disse que estava apenas bancando o Cupido? Ora, Diane, meu anjo, há pessoas aqui no escritório. Podemos falar a este respeito esta noite. Gostaria de ver o show do Copa? Gil Case nos convidou. Ótimo, irei buscá-la por volta das oito. Até logo. — E virou-se para Neely e Anne, com leve sorriso, pedindo desculpas pela interrupção.

Anne se levantou.

— Já tomamos demais o seu tempo. Muito obrigada por tudo, Lyon.

— Não há de quê. Não se esqueça de que eu lhe devo também um grande favor. Na verdade, devo-lhe a própria cama em que durmo. Assim, estaremos quase quites.

Quando estavam fora do escritório, Neely fez uma pirueta e abraçou Anne:

— Oh, estou tão feliz que seria capaz de cantar a plenos pulmões.

— Também estou muito feliz por você, Neely.

Neely olhou para Anne, surpreendida.

— Que foi que houve, Anne? Você parece tão aborrecida. Será que fiz mal em estourar por aqui como fiz? Sinto muito. Lyon não pareceu aborrecido e o Sr. Bellamy nem ao menos nos viu. Tudo deu certo. Por favor, Anne, diga que não está aborrecida comigo, pois isto estragará tudo.

— Não estou aborrecida com você, sinceramente. Estou apenas um pouco cansada — disse Anne, sentando-se à sua mesa.

Neely parecia ainda um pouco desconfiada.

— Tem razão, nós duas passamos por um bocado de coisas nestes dois dias. Oh, Anne, juro que algum dia eu lhe retribuirei de alguma forma. Eu juro.

Olhou Neely sair pela sala e colocou uma folha de papel na máquina de escrever. O papel carbono sujou o anel e ela se pôs a limpá-lo cuidadosamente.

De repente, Anne sentiu que tomava parte em tudo o que dizia respeito a Tocando as Nuvens. No começo, limitava-se a ouvir a descrição detalhada de cada ensaio. Neely fazia parte do conjunto de danças e, por três dias, mostrou a Anne cada passo das danças. Um dia veio a novidade arrasadora: Neely teria uma fala, em uma cena de multidão. Eram apenas três linhas, mas o mais importante mesmo era que conseguira ser a eventual substituta da artista que tinha o segundo papel mais importante da peça.

— Você pode imaginar uma coisa dessas, Anne? Eu, substituta de Terry King! Helen Lawson sempre escolhe para o papel de ingénua alguém completamente apagada. Mas Terry King é linda e atraente. Imagine só, eu devo tentar ser atraente e bonita.

— Então, por que escolheram você?

— Acho que é porque sou a única das dançarinas que sabe cantar. E, também, porque não costumam contratar substitutas efetivas antes da estreia da peça. Acho que só fico enquanto durar a excursão.

— Você canta bem, Neely?

— Eu? Bem, acho que canto e danço com igual facilidade. — Fez uma pirueta e continuou: — Bem, agora só preciso de um namorado.

— Há algum rapaz simpático na peça?

— Você está brincando? Uma peça musical é como um deserto nessas coisas, a não ser que você fale de bichas. Dickie está todo feliz com aqueles rapazes do coro — um verdadeiro banquete! O astro da peça é bonitão, tem uma mulher que parece mãe dele e que não tira os olhos de cima dele nem um segundo. O galã de Terry King é completamente calvo sob a peruca. O único homem normal é o velho devasso que faz o papel de pai de Helen Lawson e deve ter uns sessenta e cinco anos. Uma das dançarinas tem um namorado, que tem um amigo jornalista, chamado Mel Harris; vamos sair os quatro um dia desses. Tomara que dê certo, pois acho muito triste não ter com quem comemorar na noite da estreia. E você? Ainda está disposta a ir com George Bellows?

— Claro que não... já que estou noiva de Allen.

— Então, deixe que eu lhe dê duas entradas para a estreia. Será meu presente de noivado, aceita?

— Você pode consegui-las de graça?

— Você está brincando? Ninguém ganha entrada grátis, nem mesmo Helen Lawson. Mas ouvi dizer que ela costuma comprar quatro entradas todos os dias e, quando a peça é sucesso, faz uma fortuna vendendo-as no câmbio negro.

— Então, Neely, não posso deixá-la comprar as nossas entradas. Allen vai comprá-las e fica combinado que, se não der certo com este rapaz, Mel Harris, nós a levaremos a cear na noite da estreia.

Neely saiu com Mel Harris na noite seguinte. Era um rapaz absolutamente divino, insistia ela. Levara-a para jantar no Toots Shor e lhe contou toda a sua vida: vinte e seis anos, diplomado na Universidade de Nova York, jornalista, esperava ser produtor teatral um dia. Morava em um hotel central e ia ao Brooklyn, todas as sextas-feiras, jantar com os pais.

— Você sabe, os judeus têm muito arraigado o sentimento de família — explicou Neely.

— Você gosta mesmo dele? — perguntou Anne.

— Eu o amo!

— Neely, você só saiu com ele uma vez. Como pode dizer que o ama?

— Veja só quem diz isso! Lembre-se de que você também só almoçou uma vez com Lyon Burke.

— Neely! Não há nada entre mim e Lyon! Eu nem sequer penso nele. Na verdade, estou começando a gostar de Allen.

-— Bem, eu tenho certeza de que amo Mel. Ele é tão bonito! Não tão bonito como Lyon Burke, é claro, mas, mesmo assim, é sensacional.

— Como é ele?

Neely sacudiu os ombros.

— Talvez se pareça um pouco com Georgie Jessel, mas eu o acho maravilhoso. E não se tornou atrevido nem quando eu lhe disse que tinha vinte anos. Achei que se dissesse que tinha dezessete ficaria assustado.

Neely mantinha a atenção voltada para a porta aberta. As duas estavam no quarto de Anne e o telefone ficava embaixo, no andar térreo, defronte à porta de Neely. Isto era, ao mesmo tempo, uma sorte e um inconveniente, pois era forçada a tomar recados para toda a gente.

— Desta vez é para mim — disse Neely, quando ouviu o toque.

Cinco minutos mais tarde, voltava triunfante.

— Era ele! Vai me levar ao Martinique esta noite. Ele é agente de publicidade de uma cantora lá.

— Deve ganhar muito bem — disse Anne.

— Não, ganha apenas cem dólares por semana. Trabalha para Irving Steiner, que tem uma dúzia de bons clientes. Logo, porém, pretende trabalhar por conta própria, e já está tentando trabalhar junto às estações de rádio. Todos sabem que os judeus dão maridos maravilhosos.

— Já ouvi dizer. Mas e eles, que acham das irlandesas?

— Bem, sempre posso dizer a ele que sou meio judia. Que o nome O'Hara é só para o palco.

— Neely, você não poderia sustentar essa mentira.

— Se eu quiser, posso. Eu vou me casar com ele. Pode escrever isso. — Abraçou-se a si mesma e atravessou o quarto dançando e cantando a meia voz.

— Que bela canção! Como se chama?

— É música da peça. Anne, porque você não aceita o casaco de vison que o pai de Allen lhe ofereceu e me vende o seu casaco preto? Preciso de um.

— Neely, cante novamente essa música.

— Por quê?

— Cante, por favor.

— É uma das músicas de Terry King, mas acho que Helen Lawson vai roubá-la. Aliás, ela já fez isso com uma outra canção, e deixou só duas para Terry. Uma delas é realmente espetacular, mas Helen não pode cantá-la — seu papel na peça não deixa.

— Então cante essa canção, Neely.

— Se eu cantar, você me vende o casaco preto quando ganhar um de viso»?

— Eu o darei a você, se algum dia tiver um de vison. Agora, cante.

Neely suspirou e, como uma criança que é forçada a declamar, postou-se no meio do quarto e cantou. Anne não podia acreditar. A voz de Neely era incrivelmente bonita e clara como cristal. As notas graves eram melodiosas e fortes, e as agudas tinham força e beleza.

— Neely! Você sabe cantar, realmente!

— Ora, toda a gente sabe cantar — disse Neely rindo.

— Não desse jeito. Eu não poderia cantar uma linha, nem que disso dependesse minha vida.

— Se você tivesse crescido num teatro de variedades como eu, poderia. Eu posso dançar, fazer truques de prestidigitação, cantar. De tanto ficar olhando por trás dos bastidores, a gente aprende tudo.

— Mas, Neely, o que quero dizer é que você canta bem, muitíssimo bem.

— Isso e mais uns centavos compram uma xícara de café.

Na segunda semana de ensaios de Tocando as Nuvens, Anne viu-se pessoalmente envolvida com a peça: Henry a chamou, justamente quando ia para casa.

— Anne, que bom que ainda está aqui. Minha querida, você pode me salvar esta noite. Acontece que tenho um compromisso na NBC. O show de Ed Holson vai esta noite para o ar às nove horas, e os últimos vinte minutos têm que ser reescritos. Os redatores estão quase se demitindo e ele próprio já despediu o produtor. Não posso deixar de ir e Helen Lawson espera que eu lhe leve algumas ações, que eu prometi e que estão nesta pasta.

— Devo mandá-la por um mensageiro?

— Não, leve-as você mesma. Não lhe diga que estou na NBC. Diga que convoquei uma reunião para tratar da compra de umas propriedades em que ela está interessada. Se pensar que estou tratando dos interesses dela, não se importará. Entregue-lhe a pasta pessoalmente e, pelo amor de Deus, seja convincente ao dar o recado.

— Farei o melhor que puder — prometeu Anne.

— Está no Teatro Both. Deve terminar o ensaio a qualquer momento. Diga-lhe que amanhã discutirei tudo com ela.

Anne se aborreceu com essa incumbência. Nunca foi muito boa para coisas assim. Enfrentar Helen Lawson atemorizava-a um pouco. Por isso, estava nervosa quando chegou ao teatro e, timidamente, abriu a porta que dava para os bastidores. Até o velho porteiro, que lia o jornal perto do aquecedor, lhe pareceu temível.

O homem a olhou.

— Que deseja?

Lembrou-se dos filmes que vira: as coristas chamavam os porteiros dos teatros de "papai". Este a olhava como se fosse um policial interrogando alguém suspeito.

Anne explicou-lhe o que queria, indicando a pasta como prova. O homem mexeu levemente a cabeça, murmurou um "ali" e voltou a ler o jornal.

"Ali" ela encontrou um homem aflito, que manuseava um texto e que lhe perguntou:

— Que diabo está fazendo aqui?

Anne repetiu a explicação, xingando Henry por dentro.

— Ainda estamos em ensaio — murmurou —, mas você não pode ficar aqui nos bastidores. Passe por aquela porta e sente-se na plateia até terminarmos.

Foi tateando no escuro até entrar no teatro vazio. Na terceira fila, estava sentado Gil Case, o chapéu sobre os olhos, para protegê-los do intenso brilho das luzes que vinham do palco. As coristas estavam sentadas em grupo perto da parede de fundo do palco nu. Algumas conversavam entre si, outras massageavam as pernas e uma delas fazia tricô. Neely, ereta, grudava os olhos em Helen Lawson, que cantava uma canção romântica, com um cantor alto e bonito. Cantava em seu famoso estilo. O sorriso era claro e feliz, e mesmo na canção de amor que cantava percebia-se aquele ar saudável e simpático que lhe era familiar. Os olhos brilhavam de alegria quando a letra da canção se tornava cómica, e se entristeciam quando começava o inevitável lamento amoroso. Notava-se que estava chegando à meia-idade pela cintura, que já não era tão fina, e pelo volume das cadeiras. Lembrando-se da beleza de Helen no passado, Anne não pôde deixar de sentir pena, como se visse a deterioração de um monumento. A idade não ficava tão mal nas pessoas comuns, mas nas celebridades dava a impressão de ser um machado destruindo uma obra de arte. O corpo tinha sido sempre a parte mais importante na representação de Helen, especializada em comédias com guarda-roupas luxuosos. Seu rosto, que nunca fora de uma beleza clássica, era, porém, vivo e atraente, emoldurado por uma belíssima cabeleira negra.

Há cinco anos, Helen Lawson não se apresentava na Broadway. Sua última peça ficara dois anos em cartaz e um ano em excursão pelo país, onde encontrou o último marido, depois de uma corte furiosa em Omaha e Nebraska, seguida de um casamento espetacular; então, ela declarara à imprensa que pretendia abandonar a carreira artística para se fixar na fazenda do marido. Lá iria desempenhar o supremo papel de sua vida — o de esposa. O marido, Red Ingram, grandalhão e risonho, também afirmou à imprensa que o lugar de Helen era em sua fazenda, pois "nunca vi nenhuma peça desta menina e agora ela atuará só para mim".

Helen sossegou por dois anos. Então, sua foto apareceu novamente em todos os jornais, ilustrando a declaração de que a fazenda era "um verdadeiro inferno" e que o seu verdadeiro lar era a Broadway. Henry providenciou, imediatamente, um rápido divórcio no Reno, enquanto compositores e produtores acenavam a Helen com novos espetáculos. Agora estava em seu elemento, ensaiando para a estreia de Tocando as Nuvens.

Ela não devia representar esse papel de apaixonada, pensou Anne. Não com aquele duplo queixo. Mas, enquanto cantava aquela canção de amor, via-se que seus olhos ainda faiscavam alegremente e a sua famosa vivacidade estava intacta. Os longos cabelos pretos caíam pelos ombros. A canção falava de uma viúva à procura de um novo amor. Por que Helen não tentou perder alguns quilos antes de aceitar esse papel, ou será que ela não se dava conta da mudança que os anos operam? Talvez essa mudança tenha acontecido tão lentamente que ela não a percebeu. "Há oito anos que não a vejo", pensou Anne, "foi um choque para mim. Provavelmente, continua a mesma diante dos próprios olhos."

Eram esses os pensamentos que ocupavam a mente de Anne enquanto assistia a Helen desempenhar o seu papel. Ao mesmo tempo, era obrigada a reconhecer que o magnetismo da atriz não residia em seu rosto nem em seu corpo.. Alguma coisa obrigava a olhá-la e, em poucos minutos, a gente esquecia a cintura grossa e o duplo queixo, para sentir apenas o tremendo calor humano que irradiava.

Quando terminou, Gilbert Case gritou-lhe:

— Maravilhoso, Helen! Espetacular!

Ela caminhou para a beira do palco, olhou-o e disse:

— É uma droga.

A expressão dele não mudou.

— Você acabará gostando, menina. No começo você sempre detesta essas músicas românticas.

— Você está brincando? Adorei aquela que cantei com Hugh Miler, em Bela Dama, desde o momento em que a ouvi. E note-se que Hugh é desafinado e eu tinha de conduzi-lo. Pelo menos o Bob sabe cantar. — Dizendo isso, lançou um lânguido olhar para o belo homem a seu lado. — Por isso, não venha me dizer que acabarei gostando dessa canção. Cheira mal. Não diz coisa alguma, e detesto combinar comicidade com romantismo. A melodia não é má, mas acho melhor dizer a Lou para tentar fazer uma letra melhor.

Virou-se bruscamente e saiu do palco. O assistente do diretor convocou um ensaio para as onze horas do dia seguinte e avisou que os que teriam prova de guarda-roupa encontrariam o nome afixado no quadro. "E, pelo amor de Deus, que ninguém se atrase." Houve uma confusão geral e parecia que ninguém ligava à nova canção de Helen, nem mesmo Gilbert Case, que acendeu um cigarro, levantou-se e caminhou vagarosamente para o fundo do teatro.

Quando o palco ficou vazio, Anne dirigiu-se aos bastidores. O homem do texto apontou para a porta do camarim de Helen.

Anne bateu e a famosa voz rouca gritou:

— Entre!

Helen pareceu surpresa.

— Quem diabo é você?

— Sou Anne Welles e...

— Olhe, estou cansada e ocupadíssima. Que deseja?

— O Sr. Bellamy me pediu para trazer-lhe isto — disse Anne, enquanto colocava a pasta na mesa do toalete.

— Muito bem. E onde diabo está Henry?

— Está retido em uma reunião para a compra de umas propriedades. Pediu para lhe dizer que vem amanhã, e explicará qualquer coisa que não compreender.

— Está bem, está bem. — Helen deu as costas ao espelho e despediu Anne com um sinal de mão. De repente, voltou-se e gritou: —- Ei, você não é a moça que agarrou Allen Cooper com anel e tudo?

— Sou Anne Welles.

Helen sorriu.

— Bem, prazer em conhecê-la. Sente-se. Eu não quis ser desagradável, mas você não imagina os tipos que conseguem passar pelo porteiro para falar comigo. Todos têm algo para vender. Ei, deixe-me ver o anel. — Agarrou a mão de Anne e assobiou com admiração. — Formidável! Tenho um com o dobro do tamanho, mas tive de pagar por ele eu mesma. — Levantou-se e vestiu o casaco de vison. — E paguei por este casaco também. Jamais um homem me deu realmente alguma coisa — disse, lamentando-se. Depois, sacudiu os ombros. — Bem, quem sabe algum dia encontrarei o homem certo, que me cobrirá de presentes e me tirará desta corrida de ratos.

Sorriu quando Anne demonstrou surpresa.

— Sim, isso mesmo. Ou então você acha que são divertidas estas quatro semanas de ensaio e depois o inferno que tenho de suportar durante a excursão, antes da estreia na Broadway? E se a peça é um sucesso? Ganha-se umas notícias no News e no Mirror. Só.

Anne se dirigiu à porta.

— Aonde é que você vai? Tenho um carro. Posso deixá-la em casa.

— Eu moro perto. Posso ir a pé — disse Anne, rápida.

— Eu também, mas esta é uma das coisas que fazem parte do meu contrato. O produtor paga pelo carro e pelo motorista durante o tempo em que a peça estiver em Nova York, mesmo em ensaios. A menos que eu tenha sorte e arranje um namorado — acrescentou, com um sorriso.

Estava frio quando saíram à rua, por isso Anne aceitou o oferecimento de Helen.

— Deixe-me em casa primeiro — gritou Helen para o motorista. — Depois, leve a Srta. Welles para onde ela quiser ir.

Quando pararam diante do prédio onde morava, Helen tomou a mão de Anne num gesto impulsivo e pediu:

— Suba e tome algo comigo, Anne. Detesto beber sozinha. São apenas seis horas e você pode ligar para o seu gajo vir buscá-la aqui.

Preferia ir para casa; havia, entretanto, um quê de solidão na voz de Helen que fez com que Anne aceitasse o convite. Ao entrarem no apartamento, o humor de Helen mudou, enquanto olhava orgulhosamente à sua volta:

— Gosta, Anne? Sabe, paguei uma verdadeira fortuna ao bicha que o decorou. Veja, aquele é um Vlaminck... e este é um Renoir autêntico.

Um apartamento acolhedor. Anne olhou com admiração para o melancólico Vlaminck, mostrando a neve. Era uma faceta da personalidade de Helen que ela nunca teria imaginado...

— Não entendo patavina de arte —; falou Helen —, mas faço questão de ter o melhor. A esta altura da minha vida, posso me permitir esse luxo. Por isso, pedi a Henry que procurasse alguns quadros para mim que fossem um bom investimento e combinassem com a decoração do apartamento. O Renoir não está mal, mas esta cena de neve... Henry disse que, em pouco tempo, um Vlaminck triplicará de valor. Vamos entrando. Esta é a minha sala predileta... O bar está ali.

As paredes contavam toda a história da vida teatral de Helen. Uma série de fotografias alinhadas com precisão mostrava Helen de shorts e cabelos crespos segundo a moda dos anos vinte, autografando um bastão de beisebol para Babe Ruth; Helen sorrindo, ao lado de um prefeito de Nova York; Helen com um famoso senador; Helen com um conhecido compositor; Helen recebendo o premio de melhor estrela da Broadway; Helen embarcando para a Europa com o segundo marido; Helen em várias poses, com outras celebridades do teatro. Havia, também, uma estante de livros, cheia de volumes encadernados em couro: Dickens, Shakespeare, Balzac, Maupassant, Thackeray, Proust, Nietzsche. Anne imaginou que Henry também tinha sido encarregado de comprar os livros. Notando o interesse de Anne, apressou-se a explicar:

— Todo o lixo clássico está aí, não é? Digo-lhe uma coisa, esse Henry sabe de tudo, embora ninguém me convença de que existem pessoas que realmente lêem essa droga. Já tentei ler algumas páginas... meu Deus!

— Alguns são realmente difíceis — concordou Anne —, especialmente Nietzsche.

Os olhos de Helen denotaram surpresa.

— Você quer dizer que, realmente, lê esses livros? Nunca li um livro em toda a minha vida.

— Agora você é que está brincando comigo -— insistiu Anne.

— Não, mesmo. Quando estou trabalhando, trabalho no duro. Depois do espetáculo, às vezes, tenho a sorte de ter um encontro. Senão, volto para casa sozinha. Depois de tomar banho e ler a página económica e os colunistas dos jornais, já estou pronta para embarcar. Durmo até o meio-dia, leio os jornais da tarde, cuido da correspondência, telefono para os amigos... a essa altura, já é hora do jantar. Nunca janto fora quando estou representando e nunca bebo coisa alguma antes do espetáculo. Depois, sim, gosto de me divertir. Apesar disso, quase cheguei a ler um livro durante o meu último casamento. Foi quando tive a certeza de que o mesmo estava no fim. Como é que você gosta de champanha? Com gelo?

— Tomarei um refresco, se você não se incomoda — disse Anne.

— Ora, tome um pouco desta minha água borbulhante. É a única coisa que eu bebo e, se você não me ajudar, serei obrigada a acabar com a garrafa sozinha. E sabe de uma coisa? Essa delícia deixa a gente inchada — disse, dando tapinhas no estômago —, e eu ainda estou tentando me livrar do peso que trouxe daquela fazenda. — Entregou o copo a Anne.

— Por Deus, você já morou numa fazenda?

— Não, sou da Nova Inglaterra — respondeu Anne.

— Sabe, pensei que ia passar toda a vida na tal fazenda... venha cá. — Helen agarrou Anne pelo braço e a levou para o quarto. — Está vendo aquela cama? Tem oito pés de largura. Mandei fazê-la de encomenda quando casei com Frank. Foi o único homem que amei na minha vida. Mandei levar essa cama para Omaha quando casei com Red e mandei-a de volta para cá. Gastei mais em frete do que' o valor dela... Este é Frank — disse, apontando para uma fotografia sobre a mesa-de-cabeceira.

— Muito atraente :— murmurou Anne.

— Está morto. — As lágrimas vieram aos olhos de Helen. — A culpada de tudo foi aquela cadela com que ele se casou. Morreu num desastre de automóvel, dois anos depois do nosso divórcio. — Um suspiro percorreu seu corpo todo.

Anne olhou para o relógio que estava sobre a mesinha.

— Posso usar o telefone?

— Vamos para a sala. Você pode falar de lá. É mais confortável.

Helen serviu-se de mais champanha, enquanto Anne chamava Allen.

— Onde está você? — perguntou Allen. — Chamei-a três vezes e só consegui falar com Neely. Ela deve estar chateada; está se vestindo para um encontro com-o seu grande amor. Anne, estou aqui com Gino. Mandou perguntar se você não se incomoda de ele jantar conosco.

— Gostaria muito, Allen. Você sabe disso.

— Ótimo, irei buscá-la dentro de meia hora.

— Certo. Mas não estou em casa. Estou com Helen Lawson.

Depois de pequena pausa, Allen disse:

— Quer que vá buscá-la aí?

Tomou nota do endereço e falou com Gino:

— Quê? Você está brincando? — Depois, novamente para Anne: — Anne, acredite ou não, Gino pede para você trazer Helen também.

— Eles se conhecem? — perguntou Anne.

— Não, mas que tem isso?

— Allen, eu não poderia...

— Convide.

Anne hesitava. Como podia pedir a uma mulher da importância de Helen para ir jantar com alguém que ela nem sequer conhecia? E justamente com Gino. Allen notou a sua hesitação e perguntou:

— Anne, você ainda está na linha?

Então, disse a Helen:

— Allen gostaria de saber se você aceita jantar conos-co. O pai dele também irá.

— Quem mais irá?

— Só nós quatro.

— Claro. Eu o vi no El Morocco. Achei-o atraente.

— Ela aceita, com prazer.

Pendurou o fone no gancho e disse a Helen:

— Virão nos buscar dentro de meia hora.

— Meia hora? Então não vai dar tempo para você ir até sua casa e mudar de roupa.

— Vou do jeito que estou.

— Mas você está vestindo um casaco próprio para jogar pólo. E um vestido de lã grossa.

— Allen já saiu comigo desse jeito. Não se importará.

O rosto de Helen fechou-se num amuo de criança mimada.

— Ora, Anne. Eu pretendia me enfeitar toda, mas, com você desse jeito ao meu lado, ia parecer uma árvore de natal. Eu queria causar boa impressão em Gino. Ele é um par-tidão.

Não podia ser verdade. Helen Lawson agindo como uma adolescente diante de um encontro. E esse súbito ataque de puerilidade não combinava com a sua personalidade; ela que tinha fama de ser dona de uma dignidade meio áspera. Fez votos para que esta faceta de Helen se mostrasse raramente.

— Chame-os novamente e peça-lhes para demorar um pouco mais. Assim você terá tempo de ir para casa se arrumar — insistiu Helen.

— Estou muito cansada, trabalhei o dia todo — respondeu Anne.

— Que diabo acha você que eu estive fazendo? — O tom de Helen parecia o de uma criança que tivesse sido deixada de lado num brinquedo. — Levantei às nove horas da manhã. Dancei durante três horas com aqueles idiotas de Os Gaúchos. Caí sobre o meu traseiro pelo menos meia dúzia de vezes. Depois, cantei aquela canção horrorosa pelo menos cem vezes. E aqui estou eu, ansiosa para sair. E olhe que sou um pouco mais velha do que você. Eu tenho... trinta e quatro anos.

— Certamente não tenho a sua energia — disse Anne, tentando disfarçar sua surpresa. George Bellows tinha razão: trinta e quatro anos!

— Que idade tem você, Anne?

— Vinte anos.

— Pare com isso! Você pode dizer essa m... aos jornais. Mas que idade tem na verdade? — A expressão dos olhos de Anne fez com que ela mudasse de tom, e exibisse um sorriso de menininha. — Ei, não me diga que você é dessas que desmaiam quando ouvem um palavrão? Minha mãe fica furiosa quando os uso. Olhe, vou tentar policiar minha linguagem esta noite. Quando eu disser algo inconveniente, basta você me lançar um desses olhares gelados que me lembrarei, está bem?

Anne sorriu. Havia qualquer coisa simpática nas rápidas mudanças de humor de Helen. Sua franqueza parecia tão ingénua e ela mesma tão vulnerável, a despeito de sua posição.

— Você tem realmente apenas vinte anos, Anne? É que me parece tão fantástico que já tenha conseguido agarrar alguém como Allen Cooper. Vou pôr um vestido negro e umas poucas jóias.

Dirigiu-se ao quarto e gritou para Anne:

— Entre aqui. Mesmo com essa voz, que dizem ser a mais possante da Broadway, não posso conversar de tão longe.

Helen continuou falando torrencialmente enquanto mudava de roupa. A maior parte da conversa girava em torno de seus ex-maridos e de como. eles a haviam maltratado.

— E a única coisa que sempre lhes pedi foi amor — continuou repetindo lamentosamente. — Frank me amou, era um artista. Deus, se ele pudesse me ver com um Renoir, agora. Não que ele pintasse tão bem. Trabalhava como ilustrador, mas nas horas vagas se dedicava à pintura, que ele chamava de "séria". O sonho da vida dele era poder um dia deixar de fazer ilustrações para se dedicar unicamente à pintura.

— Foi quando você estava começando a carreira, então?

— Não! Eu estava estrelando Sadie's Place quando nos casamos. Era a terceira peça que eu estrelava, ganhando três mil dólares por semana, enquanto Frank ganhava apenas cem dólares. Por aí você pode ver que me casei com ele por amor.

— Então, por que ele não podia se dedicar à pintura?

— Você está brincando? Acha que eu iria sustentá-lo? Se o fizesse, como é que poderia saber se ele se casava comigo por amor ou por interesse? Eu pus as cartas na mesa. Tinha um grande apartamento, naquela ocasião, e gostava de viver bem. Por isso, disse a ele que poderia se mudar para lá, que eu continuaria pagando o aluguel, a empregada, as minhas roupas, as bebidas e a comida. Quando saíssemos, porém, ele é que pagaria as contas. Frank se queixava de que duas noitadas levavam o seu salário de uma semana inteira. Deus sabe que o amava; até tentei ter um filho com ele, e olhe que isso seria desistir, no mínimo, de uma peça. Ajude-me aqui com o fecho; que tal estou?

Estava muito bem. Anne achou que tinha algumas jóias a mais do que permitia o bom gosto, mas, afinal, ela era Helen Lawson e podia se permitir tais coisas.

A campainha tocou. Helen escolheu um casaco de seda vermelha, todo bordado de lantejoulas. Olhou para Anne, dizendo:

— Acha vistoso demais?

— Por que não veste o vison que você usou esta tarde?

— Acha que deveria ser tão discreta? Imagine um vestido preto com um casaco marrom. Acho que, se a gente tem uma coisa, deve usá-la e pronto. Afinal, não sou nenhuma dessas damas enjoadas da alta sociedade.

A campainha tocou novamente.

— Está bem, está bem — Helen gritou. E apanhando o casaco de vison, depois de uma breve hesitação, sorriu para Anne: — Ganhou, meu anjo. Tenho certeza de que você tem bom gosto.

O encontro entre Helen e Gino não poderia ter sido melhor. Ambos decidiram que todos deviam ir ao El Morocco, lugar que adoravam. Pediram a mesma comida, riam das piadas que contavam e consumiam rios de champanha. Colunistas apareciam a toda hora para cumprimentá-los; a orquestra não parava de tocar as músicas das peças que Helen havia estrelado. Anne sentiu-se, de repente, tão contagiada pela alegria de todos que chegou a rir até de velhas anedotas contadas por Helen. Era impossível não gostar dela.

Gino berrava enquanto dava tapinhas nas costas de Helen:

— Gosto desta garota; ela diz tudo o que pensa. Nada de hipocrisias com ela. Sabe de uma coisa, Helen? Vamos dar uma grande festa para comemorar a sua estreia, que tal?

Helen mudou completamente e assumiu aquele ar pueril para dizer, com voz de menininha acanhada:

— Oh, Gino, isso é maravilhoso. Adorarei tê-lo como acompanhante na minha noite de estreia.

Anne percebeu que Gino foi tomado de surpresa, pois obviamente pretendia incluir Adele na festa, imaginando que Helen tivesse um acompanhante.

— Em que dia será? — perguntou Gino.

— No dia 16 de janeiro. Vamos partir para New Haven dentro de duas semanas e passaremos três semanas em Filadélfia.

— Então iremos a New Haven — disse Gino rapidamente. — Anne, Allen e eu.

— Não! — interrompeu Helen. — Aquilo é uma confusão. Só daremos três espetáculos lá, apenas para dar os últimos retoques antes de Filadélfia.

— Descontaremos isso — respondeu Gino alegremente.

— Não é isso — disse Helen, fazendo beicinho de menininha amuada, o que em nada a favorecia. — É que-estrearemos numa sexta-feira e, no dia seguinte, teremos uma matinê, sem contar o ensaio da manhã anterior. Se vocês forem, vou querer comemorar até tarde e não posso fazer isso no dia em que tenho matinê.

— Janeiro está longe demais para que eu possa fazer planos — disse Gino, com firmeza. — Meus negócios podem me obrigar até a viajar para fora do país de uma hora para outra. New Haven será possível, a menos que não queira mesmo.

Helen chegou mais perto de Gino, enfiou o braço no dele e falou languidamente:

— Não, não vou deixá-lo escapar assim. Combinemos, então, para New Haven e também Nova York, se na noite da minha estreia você estiver na cidade.

— Você quer dizer vê-la duas vezes?

— Escute, seu filho da mãe. Há pessoas que vão me ver cinco vezes — disse Helen com bom humor. — Anne, vamos nos arrumar um pouco.

A senhora que cuidava da sala de toalete abraçou Helen quando entraram.

— Foi a minha primeira camareira — explicou Helen.

— Você devia vê-la — dizia a mulher —, parecia uma boneca e tinha pernas lindas.

— Ainda tenho belas pernas — respondeu Helen —, só que preciso perder uns quilos, o que espero acontecerá durante a excursão.

Quando ficaram sozinhas, Helen confidenciou:

— Anne, eu gosto de Gino — disse quietamente, e a falta de expressão do seu rosto parecia dar mais intensidade às suas palavras. Brincava com uma mecha de cabelo, olhos fixos no espelho. — Gosto realmente dele, Anne. Você acha que ele gosta de mim?

— Tenho certeza disso — respondeu Anne, de maneira casual.

— Anne, preciso de um gajo. Sinceramente, tudo o que quero é alguém para amar.

Anne sentiu um aperto no coração à vista daquele rosto patético. Lembrou-se das histórias maldosas que ouvira contar a respeito de Helen Lawson, histórias que, provavelmente, tinham sido inventadas por pessoas invejosas do seu sucesso, ou chocadas pela sua rudeza. Era difícil acreditar que alguém pudesse deixar de gostar dessa mulher, cuja personalidade na ribalta não era mais que uma máscara para uma natureza sensível, que procurava desesperadamente afeto.

— Meu Deus! Gosto de você, Anne. Seremos muito amigas e sairemos sempre juntas, quero dizer, nós quatro. Não tenho a oportunidade de ter muitas amigas. Ei, Amélia — a voz forte de Helen chamou pela atendente —, me dê um lápis e um pedaço de papel.

A atendente trouxe um bloco.

— Srta. Lawson, podia dar um autógrafo para minha sobrinha?

— Que faz com eles? Vende-os? — perguntou Helen, enquanto assinava o nome num papel, que entregou à mulher. E para Anne: — Esse é o número do meu telefone. Não o perca, pois não está na lista. E, por Jesus Cristo, não o dê a ninguém a não ser Gino. Escreva o seu telefone aqui.

— Você pode me telefonar sempre para o escritório.

— Sim, eu sei. Mas é para o caso de eu querer falar com você em casa.

Anne escreveu o número do telefone do hall do edifício em que morava.

— Olhe, eu estou no escritório de nove e meia às cinco — repetiu — e à noite, em geral, estou com Allen.

— Está bem — disse Helen, enquanto punha o pedaço de papel na bolsa. — Agora é melhor voltarmos à mesa, senão vão pensar que caímos lá dentro.

Eram quase três horas da manhã quando o carro negro chegou à casa de Anne. Tinham levado Helen primeiro. Gino estava cochilando e Allen parecia cansado; Anne, porém, estava completamente desperta pela alegre noitada. Havia luz no apartamento de Neely; por isso, resolveu bater levemente.

— Como esperei por você! — disse Neely. — Que noite tivemos! Contei tudo a Mel, isto é, que eu tinha só dezessete anos e ele nem se importou. Disse que eu conhecia mais o mundo do que muitas moças de vinte anos. Contei-lhe, também, que era virgem. E você, onde esteve?

Anne contou a noitada ao lado de Helen Lawson, a partir do momento em que foi procurá-la no teatro. Quando terminou, Neely sacudiu a cabeça, descrente.

— Você age como quem se divertiu muitíssimo. Só espero que não me diga que gostou de Helen Lawson:

— Claro que gostei, e muito. Todas essas histórias a respeito dela são contadas por pessoas que nem ao menos a conhecem. Quem a conhece, pessoalmente, mas conhece mesmo, acaba gostando dela. Confesse, Neely, que agora, depois de ter visto que não foi Helen -quem quis tirá-la da peça, não gosta dela?

— Claro. Ela é adorável.

— Estou falando sério, Neely.

— Você está doente? — perguntou Neely, pondo a mão na testa de Anne. — Ela é uma mulher horrível. Ninguém gosta dela.

— Não é verdade. Acho que qualquer pessoa que fale mal dela é porque não a conhece de verdade.

— Ouça, Anne, as únicas pessoas que a adoram são as que ficam na plateia. E isto porque estão separadas dela por uma orquestra e pelo palco. E não é bem dela que gostam, é do papel que está representando. A maioria das pessoas não sabe de uma coisa: Helen não é só uma grande comediante e cantora, ela é uma tremenda atriz. Tão boa que, quando representa aqueles papéis simpáticos, a gente acaba mesmo acreditando que tem um coração de ouro. Mas, Anne, quando não está representando, é fria. Uma verdadeira máquina.

— Neely, você não pode saber o que ela é no íntimo.

— Querida, você me mata. Sai durante um mês com Allen e fica sem saber nada a respeito dele. Agora, basta uma noite com Helen para você se tornar autoridade no assunto. Está pronta a contradizer todas as pessoas que trabalham com ela e que a odeiam e desprezam porque a conhecem. Quer saber? Ela é áspera, dura, sem sentimentos, grossa e podre. Talvez tenha usado a máscara de boa companheira com você só para variar, ou porque quer alguma coisa. Deixe eu lhe dizer uma verdade: se você algum dia se puser no seu caminho, ela não hesitará em pisá-la, como se você fosse um verme.

— Esse é o juízo que você faz dela. Ouviu falar isso tantas vezes, que nem se dá ao trabalho de conhecê-la tal como ela é realmente. Não duvido que possa ser dura quando necessário. É parte do seu trabalho. Tem que lutar pelo que deseja. Mas, afaste-a disso e verá que é uma mulher sensível, que sente o peso da solidão e que só deseja ter amigos sinceros e alguém que possa amar.

— Amar! — gritou Neely. — Anne, a verdadeira Helen é aquele monstro que eu conheço dos ensaios. E não tem nada a ver com o fato de que é uma estrela. Nasceu assim, porque é impossível que alguém fique assim. Se algum dia eu chegar a estrela, serei tão grata pelo fato de gostarem de mim, de pagarem para me ver... oh, acho que beijaria toda gente. Olhe, até Mel, que a viu apenas uma vez, em uma festa beneficente, chama-a de Jack, o Estripador.

— Não discutirei mais — respondeu Anne — mas, por favor, não fale mal dela na minha frente. Eu gosto dela.

— Meu Deus!

O telefone tocou no hall.

— Que doido chamaria alguém a esta hora? — perguntou Neely. — Deve ser número errado.

— Deixe que eu atendo — disse Anne, dirigindo-se ao telefone. Reconheceu a voz de Helen.

— Alô, garota.

— Helen! Aconteceu alguma coisa?

— Helen! — gritou Neely, pela fresta da porta. — Agora acredito que são mesmo do peito.

— Eu só queria lhe dizer boa-noite. Já me despi, lavei as calcinhas e as meias, passei creme no rosto, enrolei o cabelo e agora estou na cama.

Anne pensou na enorme cama de Helen e estremeceu de frio no patamar gelado. Então, mesmo com Neely escutando a conversa sobre o seu ombro, quis satisfazer sua curiosidade:

— Helen, você disse que lavou as meias e a calcinha?

— Claro, é um hábito que a minha velha me ensinou, e, apesar de eu ter uma camareira, continuo fazendo isso todas as noites, antes de ir para a cama. Acho que é a minha parte irlandesa, O'Leary, a culpada disso.

— É esse o seu verdadeiro nome?

Neely não podia aguentar. Sussurrou:

— Se vão conversar mesmo, vou vestir o meu roupão. — E correu para o quarto.

— Não, o meu verdadeiro nome é Laughlin — respondeu Helen —, e é escocês. Eu sou escocesa, francesa e irlandesa. Mas mudei o nome para Lawson; achei que ficaria melhor nos cartazes.

— Você fala como se soubesse que o seu nome iria estar nos cartazes.

— Exatamente. Comecei a cantar aos dez anos, em festas beneficentes. Aos dezesseis, comecei a estudar canto. Aos dezoito, dava audições. Consegui um papel, numa peça da Broadway, onde cantei uma única canção, mas todos só falaram de mim. Pareciam muito surpresos, menos eu. Se não tivesse certeza de que era uma cantora formidável, não teria me candidatado ao papel.

— Quer dizer que nunca teve dificuldades, nunca ficou sem trabalho?

— Teve sucesso de um dia para o outro — interrompeu Neely —, por isso é que é tão mesquinha com gente como eu; nunca teve que lutar.

— Não, comigo foi fácil — continuou Helen. — Admito, porém, que não é assim com todo mundo. Acredito que se alguém tem talento, chega ao topo. Fim. Pode demorar um pouco mais, às vezes, mas ninguém que tenha realmente talento deixa de chegar até o topo. Por isso é que não suporto ouvir essas histórias de m... sobre grandes talentos com falta de sorte. Agora, é preciso ter algo mais do que voz, pois eu conheço um mundo de cantoras de orquestra com voz muito melhor que a minha e, no entanto, estão ganhando setenta e cinco dólares por semana. Por quê? Porque têm voz e mais nada.

Anne começou a se apoiar ora num pé ora noutro. Tinha deixado o casaco no quarto de Neely e estava ficando congelada.

— Helen, tenho de ir para a cama. O aquecedor está desligado e eu estou gelada.

— Está bem, eu espero.

— Mas... quer dizer... o telefone...

— O fio é muito curto?

— O telefone está no patamar.

— O quê?

— No patamar. Eu moro numa casa de cómodos. Não tenho um telefone só para mim.

— Você está brincando! Usa um anel de cinquenta mil no dedo e não tem telefone. Onde diabo é que você mora, afinal de contas?

— Na Rua Vinte e Dois, Oeste, perto do Edie's.

— É uma rua horrorosa essa! E,.depois, você vai se casar em breve. Como é que pode viver sem telefone no quarto?

— Na verdade, não acho que preciso de um.

— Por Deus, é incrível! — Anne ouviu-a bocejar e um barulho de jornal sendo amassado. — Oh, escreveram duas colunas a meu respeito — comunicou Helen sonolentamente. — Está bem, anjo. Vá dormir e passe no ensaio amanhã, depois do escritório.

— Bem, eu saio muito tarde e depois corro para casa e me arrumo para sair com Allen.

— Isso mesmo, Anne. Vista-se melhor. Você é muito bonita, mas isto de sair com aquele casaco de pólo e vestido de lã grossa tem de acabar. Lembre-se: a coisa mais importante do mundo é ter um homem que a ame. Vista-se para ele. Eu a chamarei no escritório, amanhã.

Anne voltou ao quarto de Neely. Apanhou o casaco e a bolsa. Neely seguiu-a até a porta e, sacudindo a cabeça, murmurou:

— Não compreendo, não compreendo. Se não tivesse ouvido com meus próprios ouvidos, não acreditaria. Mas ainda insisto em dizer que ela deve ter algum interesse...

— Não, não tem. É que ela se divertiu muito esta noite... ela é, de verdade, tão solitária... E gostou de Gino.

— Então é isso! — gritou Neely. — Ela usa você para agarrar Gino.

— Não é verdade. Ela me tratou bem e foi muito simpática mesmo antes de eu a convidar para o jantar. Fez questão que eu conhecesse o seu apartamento.

— Talvez o velho cavalo de batalhas tenha uma queda por mocinhas...

— Neely!

— Acontece, minha cara. Ouça, algumas dessas grandes estrelas e, especialmente, as que, como Helen, apreciam o sexo, às vezes, ficam tão saturadas do pouco caso dos homens, que se viram para as mulheres. Uma velha estrela de cinema, que trabalhou conosco numa boate...

— Neely, Helen é absolutamente normal.

— Está bem, não vou discutir isso, mesmo porque ela tem a reputação de ser louca por homens. Deita-se com qualquer coisa que vista calças. Todo mundo sabe como foi que ela perdeu o primeiro marido. Ele chegou um dia em casa e a pegou em flagrante com um gangster, que tinha sido seu amante tempos atrás.

— Neely, não é verdade. Ela me disse que amava o primeiro marido.

— Anne, se você falasse com as garotas da peça, .um dia, veria que todas sabem que Helen se gabava de pertencer a Tony Laggeta. Era louca por ele. Acontece que ele era italiano, católico, e pai de sete garotos. Andava com ela, é claro, só isso. Quando ela se tornou famosa da noite para o dia, Henry Bellamy entrou na história e fez com que largasse Tony. Ela estava ficando lima celebridade, e se a mulher de Tony abrisse um processo estragaria sua imagem diante do público. Teve, então, um longo romance com Henry, mas continuou dormindo com Tony, quando tinha oportunidade. Todos sabiam, menos Henry, que continuou fazendo dela uma estrela e uma milionária. Aí Tony arranjou outra amante e Helen ficou tão furiosa que se casou com o primeiro que lhe apareceu pela frente — o pintor. Nesse tempo, já não havia os grandes bares com reservados e Tony abrira um lugar meio suspeito, um restaurante ítalo-francês, onde Helen costumava ir com o marido, para deixar Tony enciumado. Acho que isso deu certo; um dia, o pintor chegou em casa e pegou Helen e Tony numa pequena cena íntima... aí, abandonou Helen e nunca mais foi o mesmo homem. Casou novamente, mas virou bêbado.

— E onde foi que você ouviu toda essa história?

— No que se refere a Tony, já sabia há séculos. Quando alguém queria se referir a Helen dizia "a garota de Tony". Agora, a parte sobre Henry Bellamy e o marido, soube com o pessoal da peça. Toda a gente sabe...

— Toda a gente sabe... — interrompeu Anne impaciente — da mesma forma que você sabe, isto é, por ouvir dizer. E, como toda a gente, você espalhará a história, como os outros fizeram, e a coisa vai crescendo... Você estava lá? Viu Helen e Tony juntos? Eu ouvi dos lábios dela que amava o marido. Escute, Neely: Helen pode ser um tanto áspera, às vezes, é certo. Acho que o sucesso dela foi tão rápido que, sob certos ângulos, ela não conseguiu se adaptar a ele. No fundo ela é ainda a menina que veio de Nova Rochele e que precisa se fazer de dura para evitar que certas coisas possam feri-la.

— Está bem, desisto — disse Neely. — Ela é adorável, doce, e uma vez que tudo indica que vocês duas vão se tornar inseparáveis, e você é a única pessoa que a compreende, por que não lhe fala sobre a segunda melhor amiga sua e do grande talento que ela tem? Quem sabe me dará uma pequena ponta na peça?

— Ninguém pode com você, Neely. — Sorriu Anne.

— Sabe, posso até ver nós três juntas trocando confidências.

— E por que não? Amanhã, durante o ensaio, vá a Helen e diga que você é minha amiga.

— Sim, claro.

— .Por que não?

— Porque simplesmente ninguém vai a Helen sem mais nem menos e fala com ela.

— Tente. Quem sabe terá uma surpresa?

— Claro. Poderemos discutir o melhor meio de lavar meias. Que marca de meia você usa? Acha isso divertido? Então, posso lhe mandar algumas das minhas para você lavar.

— Boa noite, Neely.

— Boa noite. Mas, Anne... falei sério. Se essa gloriosa amizade continuar e você tiver uma oportunidade, fale a meu respeito. Por favor, tente... sim?

— Isso é o que eu chamaria de um quarteto fora do comum — disse George Bellows, enquanto colocava os jornais matutinos na mesa de Anne. Ela olhava a fotografia, tirada na noite anterior, no El Morocco. Helen estava grotesca. Gino sorria. Allen fora parcialmente cortado. Sua fotografia, porém, era mais do que lisonjeira. Enquanto lia um recado deixado em sua mesa, perguntou a George:

— Quem é Nick Longworth?

— Uma das maiores agências de modelos da cidade. Por quê? Fizeram-lhe alguma proposta?

— Não sei. Encontrei este recado, pedindo para chamá-los.

— Isso é o que você deveria estar fazendo. Você nasceu para modelo. Mas, provavelmente, acabaria do mesmo jeito — disse George, olhando significativamente para o anel.

O telefone tocou. George despediu-se e saiu.

— Como é, recuperou-se da noite passada? — disse Allen.

— Foi divertido, não foi? — perguntou Anne alegremente.

Allen permaneceu em silêncio.

— Não posso acreditar no que estou ouvindo.

— Gosto de Helen Lawson — disse Anne defensivamente.

— Que é que a faz gostar dela? Suas encantadoras piadas? Suas maneiras de dama? Olhe, Gino é, às vezes, difícil de ser suportado, mas em todo caso ele é meu pai. Mas Helen...

— Gosto do seu pai.

— Você não precisa ser tão gentil, Anne. Afinal, a gente não pode escolher os próprios pais, mas pode escolher os amigos.

— Allen, acho terrível isso que acaba de dizer.

— Por quê? Estou apenas sendo sincero. Se eu tivesse encontrado Gino e ele não fosse meu pai, certamente o acharia barulhento e detestável. Posso admirar suas qualidades como homem de negócios, assim como admiro o talento de Helen no palco. Mas, socialmente falando, posso passar sem eles. Quando nos casarmos, teremos amigos completamente diferentes, entre as pessoas certas. Explicarei tudo a você esta noite.

A cabeça de Anne começou a latejar de dor.

— Allen, tenho dormido muito pouco ultimamente. Desculpe-me, hoje pretendo sair do escritório e ir diretamente para a cama.

— Essa é uma outra coisa que pretendo discutir com você, querida. Por quanto tempo ainda pretende ficar nesse emprego? Até o dia em que casarmos?

— Eu quero trabalhar, Allen. E não quero me casar. Já lhe disse isso.

Allen forçou um sorriso despreocupado.

— Bem, vejo que você está cansada. Olhe, Anne, sei que prometi não apressá-la, mas gostaria que começasse a pensar em casamento. Pensar... é tudo o que lhe peço.

O dia foi se arrastando. A agência Longworth chamou novamente. Anne disse que não estava interessada em ser modelo, mas que os chamaria se um dia mudasse de ideia.

Henry chegou depois do almoço. Anne levou-lhe a correspondência, que ele pôs de lado. Mandou que sentasse.

— Bem, o show de Ed Holson está ótimo, mas o filho da mãe é de morte. Que é que a gente faz quando tem um bêbado por cliente? Imagine que se embebedou logo após o espetáculo, diante do patrocinador. Claro, tive que fingir que isso nunca aconteceu antes. Vinte mil dólares por semana e se embebeda diante do patrocinador. Por sorte, foi uma de suas bebedeiras mais leves; quando se embebeda de verdade, começa a chamar toda a gente de judeu bastardo.

— Então, por que o aceitou?

— Calcule vinte e cinco por cento sobre vinte mil e terá a resposta. Acontece, também, que ele tem um enorme talento. Escolho os meus amigos entre pessoas de quem gosto, e os meus clientes entre os que têm talento.

A dor de cabeça pesava agora sobre os olhos de Anne.

— Acho que é bastante difícil tratar com integridade todas as coisas.

— Isso nada tem a ver com a integridade pessoal. Trata-se de integridade comercial. Toma-se o melhor e não se deixa que os sentimentos interfiram. No instante em que a gente começa a pensar com o coração, e não com a cabeça, estamos perdidos.

O telefone tocou.

— Alô, sim, querida, como está indo tudo? Sim, claro que vi. Você está ótima. Ela está justamente aqui. Claro. — Passou o telefone para Anne: — É Helen.

— Alô? Como está minha amiga trabalhadora? — A voz de Helen se mostrava alegre.

— Um pouco cansada.

— Eu também. Meu ensaio começou às dez. Estou aproveitando um intervalo de cinco minutos. Ouça, há um novo show no Copa esta noite. Chamei Gino e sugeri que fôssemos nós quatro novamente, e ele logo ficou entusiasmado. Pegaremos o segundo show. Isso nos dará tempo de deitar um pouco.

— Allen já sabe?

— Como posso saber? — Helen se calou, e então a voz de menininha se fez ouvir: — Oh, você não quer ir ao Copa, Anne?

— Bem, claro que quero. Principalmente se der para dormir um pouco primeiro.

— Ótimo. E enfeite-se toda, pois todo mundo vai estar lá.

— Devo usar vestido longo?

— Não, vestido curto, mas bem especial. E, por favor, ponha um casaco de pele.

— Bem, tenho um casaco preto... — Anne olhou subitamente para cima. Lyon Burke entrara no escritório.

— Ótimo, Anne. E quando você chegar em casa, vai encontrar um pequeno presente que lhe mandei.

— Um presente? Mas por quê?

— Será um novo talismã. Bem, tenho de voltar -ao ensaio — o telefone ficou mudo.

— Anne é a nova amiga de Helen — disse Henry a Lyon.

Lyon sentou-se e esticou as pernas, enquanto dizia:

— Anne é feita daquele estofa duro da Nova Inglaterra, por isso acredito que sobreviverá.

— Estou quase cansada de ter de dizer isto a toda hora: acontece que gosto, realmente, de Helen Lawson.

— Que bom — comentou Henry. — Helen precisa de uma amiga sincera. Acho que bem no fundo ela é uma pessoa muito solitária.

— Ela tem novas amigas em cada estação. — Riu Lyon.

— Não sei se teve jamais uma amiga sincera — insistiu Henry —; a maioria das mulheres tenta usar Helen para alguma coisa, fazendo troça dela. Ela se consagrou como atriz muito rapidamente para poder aprender as pequenas sutilezas. A metade das atrizes que conheço começaram sem nenhum conhecimento de bom gosto ou de boas maneiras. Mas, na medida em que vão ficando famosas, aprendem quais os livros que devem ler, ou dizer que leram, e como devem se vestir. Quando chegam a ser estrelas, todas as arestas grosseiras estão devidamente suavizadas. Helen passou alguns anos cantando num bar, sem aprender nada. Aí, com a primeira peça, subiu tal qual um foguete. Então já era tarde para aprender, pois as pessoas aceitam tudo de quem é celebridade. Todos riam de sua linguagem pornográfica, fazendo-a crer que era colorida. Prenda-se a ela, Anne, ela precisa de alguém como você.

O telefone de Henry tocou. Ele o atendeu e entregou a Anne.

— Allen.

— Posso atender lá fora — disse Anne, prontamente.

— Calma, você está entre amigos — disse Henry.

Pegou o telefone consciente de que Lyon a estava observando.

— Então, você estava muito cansada para jantar comigo! — A voz de Allen estava furiosa. — No entanto, acabo de saber que vamos todos ao Copa.

— Helen e Gino é que combinaram tudo — disse Anne vagamente.

— Claro. É tão fácil se livrar de mim, mas você não pode negar nada a Helen. Será que a celebridade a fascina tanto?

— Allen, estou no escritório do Sr. Bellamy. Se você quiser, podemos cancelar esta noite.

— Não... espere um momento. Eu não queria isso. É claro que vamos.

— Falo com você mais tarde, Allen.

— Anne, sinto muito. Compreendo que você trabalha para Henry Bellamy e que Helen é cliente dele. Depois desta noite vamos esquecê-la, está bem? Se você tem mesmo que sair com ela, então façam compras, almocem juntas, mas mantenha-a longe de nós dois.

Henry segurava o outro telefone, também para Anne.

— Allen, vejo-o esta noite.

Desligou, enquanto Henry lhe passava o telefone e piscava o olho para Lyon:

— Parece que vamos ter de arranjar uma secretária para Anne.

— Ei, qual é o seu endereço? — Era a voz de Helen. — Preciso dele para que o meu presente seja enviado.

Anne lhe disse:

— Oh, m... não tenho lápis. Espere...

— Helen — disse Anne rapidamente —, pergunte a Neely O'Hara.

— A quem?

— Neely O'Hara. Ela está na peça. Nós moramos no mesmo edifício. Ela o escreverá para você.

— O que é que ela faz aqui? É corista?

— Sim, fazia parte de Os Gaúchos.

Uma pequena pausa.

— Ah, aquela.

— Ela é muito minha amiga. Tem dezessete anos e está apenas dançando na peça; e sabe cantar muito bem. Na verdade, ela tem muito talento.

— Está bem — disse Helen alegremente —, vou pedir o endereço a ela. Você diz que ela canta? Verei se posso lhe dar uma canção na peça. Afinal, a coisa saiu um tanto dura para ela; sinceramente, não tive nada a ver com a história. Verei se posso fazer algo agora... tenho uma ideia.

Anne voltou à sua mesa e se perdeu no trabalho. Sua cabeça ainda latejava no fim do dia. Quando chegou em casa, subiu as escadas pensando unicamente num bom cochilo. A porta de Neely estava escancarada. Ela saiu correndo e alcançou Anne na escada.

— Neely, estou realmente cansada. Conversaremos mais tarde, sim?

— Não vou ficar. Só quero ver a sua cara quando vir o presente que Helen lhe mandou. Está no seu quarto. Chamei o servente e fiz com que abrisse a porta do seu quarto.

Anne olhou para o quarto. Não viu nenhum pacote, nada de novo em lugar algum.

— Lá. — Neely apontou para a mesinha-de-cabeceira e Anne ficou olhando estupidamente para um brilhante telefone negro.

-— Ela pagou pela instalação e pelos dois primeiros meses. Disse que, depois disso, você já estará provavelmente casada com Allen.

— Não posso permitir que ela faça isso.

— Ouça bem, ela já fez. Não sei, Anne, acho que você lhe pôs algum feitiço. Não há dúvida de que ela foi muito gentil comigo depois que você lhe disse que eu era sua amiga. Agora, isso não mudou as coisas; tenho certeza de que, no fundo, ela é um monstro.

O Copa foi uma repetição da noite anterior. A atenção de todos girava em torno de Helen. As suas grandes gargalhadas, a voz rouca chamando todas as pessoas conhecidas; Gino incentivando-a, enchendo-a de champanha. Aquecida pela atenção pessoal que Helen lhe dedicava, entusiasmada por dois copos de champanha, Anne se tornou um membro participante da camaradagem geral. Só Allen permanecia taciturno.

— Deixaremos Anne primeiro — sugeriu Helen, quando entraram no carro.

— Sim, eu moro mais perto — disse Anne prontamente, evitando os olhos suplicantes de Allen. Quando o carro chegou à frente do edifício, saiu rapidamente, evitando que o motorista a ajudasse a abrir a porta.

— Não saia, Allen. Está frio aqui fora — disse, e subiu as escadas correndo, consciente da fúria de Allen, que ela pôde vislumbrar na semi-obscuridade do carro.

Vinte minutos depois, o telefone tocou, dando o primeiro sinal de vida.

— Eu tinha de inaugurá-lo. — Era a voz de Helen. — Será que a acordei?

— Não, apesar de já estar na cama. — Anne sentia-se verdadeiramente confortável. Em Lawrenceville ninguém tinha telefone ao lado -da cama.

— Foi divertido, hein?

— Foi uma noite maravilhosa — respondeu Anne —; uma das melhores noites de minha vida.

— É... — Helen fez uma pausa. — Anne, não estou conseguindo nada com Gino.

— Ele se divertiu muito — disse Anne sinceramente.

— Mas nem sequer tentou me beijar ao dar boa noite — queixou-se; nova pausa. — Sabe, nós deixamos primeiro o garoto. Aí, eu tinha certeza de que Gino ia pedir para subir, para tomar um último drinque. Recostei-me nele e disse que tinha uma garrafa de Don Perignon no gelo. Quando chegamos, ele simplesmente me deu um tapinha nas costas e disse "boa noite, companheira".

— Bem... — Anne procurava as palavras apropriadas —, isso demonstra que ele a respeita.

— Quem quer respeito? O que eu quero é bem o contrário.

A surpresa de Anne devia ter sido audível; Helen continuou:

— Sabe, anjo, quando você tiver andado por aí tanto quanto eu, vai saber que essa é a única maneira de um camarada demonstrar que está caído por você.

— Não, Helen, eu acredito que é bem o contrário.

— Contrário uma m... De que outro modo um cara pode demonstrar... ?

— Levando-a para sair, dedicando-lhe tempo, divertindo-se com você.

— Você está brincando? No meu livro, se um cara está caído por você, tenta dormir com você. Mesmo aquele bastardo do meu último marido deitou comigo na noite em que me conheceu. Depois do casamento foi mais devagar, digamos, umas quatro vezes por semana. Daí, caiu a uma vez por mês, e depois nada. Foi quando pus uns detetives atrás dele e descobri que estava me enganando.

— Mas eu já saí tantas vezes com Allen e ele não ficou atrevido.

— Ora, pare com isso.

Por um momento, o silêncio ficou pesado. Helen quebrou-o com a voz de menininha amuada:

— Anne, não fique zangadinha. Acredito no que Anne disse. Más, por Deus, você não quer isso? Como é que você sabe se vai gostar de estar casada com ele? Ele pode ser horrível nesse ponto. Pelo menos você pretende experimentar antes, não pretende?

— Certamente que não.

Desta vez, Helen ficou mais tempo em silêncio e, depois, com um tom de voz duro", mas estranhamente mesclado de admiração, disse:

— Então, é unicamente o dinheiro dele que a interessa.

— Eu saí com Allen durante seis semanas, pensando que era apenas um simples agente de seguros.

— Quer dizer que você é uma dessas mulheres frias?

— Não creio.

— Como, não crê? Não venha agora me dizer também que você é virgem. Você ainda está na linha? Por Deus, aposto que você é virgem!

— Da maneira como você fala, até parece doença.

— Não é; agora, mesmo aos vinte anos, a maioria das moças... O que quero dizer, Anne, é que, se você gosta de um homem, quer ser possuída por ele. Não vai querer esperar...

— É assim que você se sente a respeito de Gino?

— Claro. E note que nem estou apaixonada por ele, ainda. Mas poderei ficar.

— Bem, dê-lhe um pouco de tempo — respondeu Anne francamente.

— Tentarei amanhã à noite. Há uma estreia no Marti-nique.

— Você tem compromisso com ele?

— Ainda não. Vou chamá-lo amanhã, no escritório, para marcar.

— Helen... por que não espera?

— Esperar o quê?

— Dê uma oportunidade para que ele a chame.

— Suponhamos que eu espere e ele não chame?

— Você não gostaria de sair com ele se tiver de forçá-lo a isso, não é verdade?

Anne ouviu Helen bocejar.

— Por que não? Às vezes é bom que um homem se habitue a nós primeiro.

Tinha certeza de que Gino não poderia deixar de sair com Adele durante três noites seguidas, e, mais que tudo, não gostaria de ver Helen humilhada. Por isso, disse:

— Helen, me faça um favor. Não chame Gino amanhã. Dê uma oportunidade para que ele a procure.

— Suponha que ele não procure.

— Está bem, concordo que talvez ele não a chame durante alguns dias, talvez até durante uma semana.

— Uma semana? Essa não! Não vou esperar tanto tempo.

— Talvez você não tenha que esperar tanto. Mas não o chame amanhã... não creio que Gino goste de sair três noites seguidas.

— Está bem. Vou lhe dar um dia para que me chame. Acho, porém, que o meu método é o melhor. E eu que queria tanto ir à estreia do Martinique.

— Não há outra pessoa que possa levá-la?

— Bem, sempre posso arranjar alguém. Meu desenhista pode me levar, ou Bobby Eaves, meu acompanhante. Acontece que ambos são bichas. Essa é a grande dificuldade de hoje. Milhares de bichas e poucos homens de verdade. E eu detesto ir a uma estreia com bichas. É como carregar um cartaz: "Isto é tudo o que eu pude conseguir".

— Diria que você pode escolher com quem sair.

— Isso é o que todas pensam quando conquistam Nova York. Era assim nos bons tempos da lei seca. Aquilo sim é que era vida. Os grandes bares com reservados, lugares como o Park Avenue Club, o Ha Ha. Hoje em dia já não há vida noturna. Lembro de que Eddie Duchin tocava no Cassino do Parque e que a gente ia tomar o desjejum no Harlem... Naqueles dias, Tony costumava distribuir gorjetas de cinquenta dólares. Hoje em dia aquele que dá um quarto de dólar acha que é um perdulário. Deus, como eu amava aquele Tony! Aquilo sim é que era homem.

— Você não me disse ontem que Frank foi o único homem que você amou?

— E foi. Tony era excitante, mas não tinha coração. Frank, não. Frank era bom, amável e... — De repente, começou a soluçar. — Oh, Anne, eu amava Frank... sinceramente... e agora ele está morto.

— Helen, pense que você, pelo menos, teve o verdadeiro amor uma vez na vida.

— Acredito que sim... tive sorte, ter o homem que realmente amei... Algumas mulheres nunca conseguem isso. .

— Você não amou Henry?

— Que quer dizer com isso?

— Bem, você amou Henry Bellamy, não? — De alguma forma, Anne sentiu que tinha dito algo errado.

— Ele lhe disse isso? —- A voz de Helen era gelada.

Anne ficou chocada com a incrível mudança de tom. Em um segundo, todo o calor e a amizade de Helen pareciam ter evaporado.

— Não, desconfiei disso pelo modo como ele fala de você — respondeu Anne, confusa.

— Ei, espere um momento. Você se ofende tão facilmente. Claro que conheço Henry há muito tempo, mas por que será que as pessoas não conseguem esquecer isso? Dormimos juntos, o que não quer dizer nada, nem significou nada, pelo menos para mim. Era muito moça, Henry era importante para a minha carreira, e não havia mais ninguém com quem eu pudesse ser vista em público, e... diabos, é a mesma velha história de sempre. Às vezes chego até a esquecer que houve alguma coisa entre nós. E, depois, ele é ainda o meu agente, por isso não lhe diga nada.

— Não tenha medo. Gosto muito de Henry e não iria magoá-lo.

Helen bocejou e disse:

— Engraçado, há um ano, mais ou menos, saímos juntos, Henry e eu. Estava deprimida, e ele subiu comigo. Decidimos experimentar novamente, em memória dos velhos tempos. Nada! Não consegui fingir e Henry... bem, ele está com cinquenta e muitos. Não deve ser fácil.

— Gino deve ter a mesma idade...

— Lembre-se de que ele é italiano, e esses latinos têm fogo. Não há outros como eles. Oh, esse Gino! Não posso esperar. Ouça, vou chamá-lo agora mesmo e dizer-lhe boa noite. Fazê-lo sonhar comigo...

— Helen, não faça isso! São quatro da manhã. Você vai acordá-lo.

— Não acredito; me lembrei dele de repente, e dizem que quando a gente se lembra de alguém sem motivo é porque a outra pessoa está também pensando em nós. E se Gino está pensando em mim, não está dormindo.

— Isso não foi de repente, Helen. — O tom amigável de Helen fez com que Anne restaurasse sua confiança na amizade da atriz. — Nós estamos aqui há quase uma hora falando de Gino.

— Está bem, farei como você diz. Esperarei que ele me chame.

— Certo.

— Está bem, anjo, falo com você amanhã. Durma bem.

Três dias se passaram sem que Gino chamasse. Helen falava disso a Anne várias vezes por dia, Ela a chamava no escritório, chamava-a em casa, quando Anne se vestia para se encontrar com Allen, chamava-a às duas da madrugada.

Neely pedia-lhe conselhos. Fora convidada para jantar com a família de Mel e não sabia o que vestir. Tirou todos os vestidos do guarda-roupa e queria que Anne a ajudasse a escolher. Naturalmente, sabia que o tafetá cor de púrpura era o mais indicado, só queria ter certeza; então, tiveram uma enorme discussão quando Anne a aconselhou a usar o vestido de lã marrom. Neely achava que era muito velho, tinha dois anos. Argumentaram horas a respeito, até que, finalmente, concordou em vesti-lo, ainda que contra a vontade.

O escritório vibrava com o espetáculo radiofónico de Ed Holson. Anne sentia-se contagiada pela atividade à sua volta, feliz com o seu trabalho. Henry precisava dela; Helen e Neely precisavam dela; escalava o Everest e o ar era revigorante e maravilhoso. Mesmo quando chegava à beira de uma crise, isso fazia parte da vida e ela não tinha de ficar à margem, simplesmente observando.

No quarto dia de silêncio de Gino, Helen decidiu que devia entrar em ação.

— Ouça, não quero saber o quanto ele está ocupado — gritava ao telefone. — Acho que, se um camarada está caído pela gente, pode ao menos tocar o telefone para dizer alô.

— Bem... talvez eu esteja errada. Quer dizer... talvez ele não esteja interessado — disse Anne cuidadosamente.

Allen comprara entradas para o teatro e ela queria chegar cedo em casa para mudar de roupa.

— Ele está caído por mim, posso sentir isso — insistiu Helen teimosamente —, e vou chamá-lo agora mesmo.

— Por favor, Helen...

— Ouça, segui o seu conselho e até agora não ganhei nada com isso.

— Nós concordamos em que ele chamaria, se estivesse interessado.

— Deixei a coisa ir muito longe. A esta altura, já estaria habituado a sair comigo. Oh, esta é a história da minha vida. Acabo sempre levando um pontapé no traseiro... — Começou a soluçar. — Sinceramente, Anne, no momento em que eu quero agradar um homem, ele me passa para trás. Já fui magoada mais vezes que qualquer outra mulher. Não tenho nada... só trabalho, trabalho, trabalho, fazer dinheiro para toda a gente e no fim ficar tão só. Pensei que Gino gostasse de mim. Você disse isso naquela noite, no El Morocco. Por que ele não me procura, Anne?

O coração de Anne voou para a pobre mulher. Sentiu uma certa responsabilidade; ela os tinha apresentado. Não ficava bem para Gino não tê-la chamado nem uma vez. Bem que poderia sair com Helen uma vez ou outra; devia até se sentir lisonjeado com isso.

— Helen, um dia mais, está bem?

Nessa noite, depois do teatro, Anne sugeriu a Allen que fossem ao El Morocco. Gino estava sentado à sua mesa habitual. Acenou-lhes e insistiu para que se sentassem com ele. Adele faiscava com o novo casaco de vison e dava o braço possessivamente a Gino. Anne ficou, de repente, imaginando o que poderia acontecer entre Gino e Helen. Quase esquecera de como Adele era bonita. Ronnie Wolfe juntou-se a eles. Adele mencionou uma nova boate, que abria na noite seguinte, e Gino, entusiasticamente, convidou Anne e Allen. Foi um erro ter vindo ao El Morocco. Por que teria vindo? Será que, inconscientemente, esperava que Gino se lembrasse de Helen ao vê-la? Olhou a mão dele acariciar o ombro de Adele e pensou no rosto acabado de Helen. Sentiu uma compaixão sem limite pela "velha" atriz.

— Anne, vamos dançar — disse Gino rindo e se levantando. — Sabem que nunca dancei com a prometida do meu filho? Não posso perder esta oportunidade.

Depois de uma volta na pista, Gino, que cumprimentara todas as pessoas que conhecia, disse baixinho, no ouvido de Anne:

— Ouça, Anne. Você tem de me fazer um favor. Procure tirar aquela sra. Lawson de minhas costas.

— Não entendo... — disse Anne, forçando um ar de inocência.

— Ela me telefonou esta noite. Queria saber quando íamos fazer mais uma noitada. Teve o atrevimento de perguntar se eu estava doente e por que não a chamei.

— E por que não a chamou? Pensei que tivesse gostado dela.

— Claro que gostei. Ela é um companheirão. Gostei muito de ter saído com ela. Nunca ri tanto. E sairia de novo com ela se fosse só isso o que ela quer.

A voz de Anne estava fria quando disse:

— Talvez você esteja vendo coisas que não existem.

— Anne... — Gino baixou a voz. — Eu não ia lhe contar isso, mas é preciso, para que compreenda. Depois que deixamos você e Allen em casa, naquela noite, imagine que aquele morcego velho teve a ousadia de... bem, praticamente, me tocar em certas partes e implorar para que eu subisse para um último drinque. Fingi não compreender e fugi dela como do diabo.

— Eu a acho... atraente.

— Claro, porque ela tem idade para ser sua avó e você tem respeito pelas pessoas mais velhas e pelo talento dela. Agora ouça. Anne, do ponto de vista masculino, ela não é atraente. Claro que, quando está no palco, cantando uma de suas famosas canções, ninguém lhe chega aos pés. Quando se trata de ter... um romance...

Gino olhou para Adele, que estava na mesa.

— A única coisa que me interessa é o que tenho nos braços.

Anne aspirou profundamente. Não podia suportar a ideia de ver Helen humilhada por uma total rejeição de Gino. Com um pouco de tempo e a peça saindo em excursão, Helen provavelmente esqueceria Gino. No momento, o orgulho de Helen devia ficar a salvo.

— Estou surpreendida com você, Gino — disse Anne calmamente. — Um homem como você, que criou um império, quer me dizer que é capaz de se apaixonar por uma garota só porque ela tem um lindo rosto? Helen é uma legenda. Você devia se orgulhar de ser visto com ela. Ela é alguém.

— Olhe, querida, você entendeu tudo errado. Quem falou de amor? Você acha que estou apaixonado por aquela sirigaita com miolo de passarinho que está ali? Estive apaixonado, uma vez... pela mãe de Allen; ela era uma verdadeira dama. Se um homem de minha idade começa a pensar em amor, então estará sempre metido em dificuldades. Acha que preciso disso agora? Tudo o que quero é uma garota que seja bonita, tenha um belo corpo, e seu nome não precisa ser uma legenda, nem ela precisa ser uma inteligência. Tudo o que ela tem a fazer é ser bonita e me agradar. Estou sempre pronto a pagar a minha parte com algumas peles e outras bugigangas, para que ela se sinta feliz. Sendo assim, que pensa que eu possa querer com Helen Lawson? Agora, Anne, você precisa me fazer esse favor ou eu me verei obrigado a insultá-la.

— Mas você vai a New Haven para a estreia?

— New Haven?

— Gino, foi você quem sugeriu; aliás, prometeu.

— New Haven... não! Isso significa horas dentro de um trem. Eu devia estar bêbado. De qualquer maneira, ela não estava muito entusiasmada. Diga-lhe que irei a Filadélfia.

— Você irá?

— Não, mas até lá arranjarei uma desculpa.

— Gino, ela é minha amiga e não tomarei parte no que, tenho certeza, será uma decepção para ela.

-— Está bem, então vou lhe dizer. E direi também que ela é uma vaca velha e que me deixe em paz.

— Nunca o perdoarei se você fizer isso. — Os olhos de Anne fuzilavam de fúria.

Gino a olhou sério e depois sorriu.

— Anne, veja o meu dilema: não quero magoar Helen, mas não vou bancar o apaixonado.

— Você pode ir a Filadélfia para a estreia.

— E daí? Isso só vai encorajá-la.

— Eu não acreditaria nisso — disse Anne com frieza. — Você é um homem atraente; não acho, porém, que Helen vá perder peso se você desprezá-la. E é só porque eu apresentei um ao outro e acho que quando alguém faz uma promessa deve cumpri-la.

— Está bem, está bem. Deus que me ajude a não brigar com um futuro membro da minha família. Vou fazer um trato com você: irei à estreia em Filadélfia se você prometer mantê-la longe de mim até lá. Combinado?

— Muito bem, Gino, combinado.

Cada dia que passava era mais difícil conter Helen. Anne inventou uma história sobre Gino estar envolvido em um grande negócio, muito ocupado para poder sair.

— Está ocupado? E que diabo pensa que eu estou fazendo. Descascando batatas?

— Mas foi você mesma quem sugeriu que ele fosse a Filadélfia, não a New Haven.

— É verdade. Só que não aceito essa história de ele estar muito ocupado. Por mais ocupada que eu esteja, sempre encontro tempo para ver alguém quando quero.

— Então se esqueça de Gino; não acho que ele mereça toda essa atenção.

— Eu quero alguém, Anne. — A voz de Helen ficou ainda mais juvenil. — E não tenho ninguém em vista a não ser ele.

— Helen, talvez Gino não queira ter uma garota fixa...

— Claro que quer. Conheço toda a sujeira dele. Anda com uma corista chamada Adele-qualquer-coisa.

— Você sabe disso?

— Claro, leio os colunistas. Olhe aqui: ele saiu comigo e ao mesmo tempo com ela, não é? Quer dizer que ela não é tão importante. Ouvi dizer que ele a sustenta há uns seis meses, e ainda não lhe pediu para deixar de trabalhar e viver exclusivamente para ele, não é? Por isso cheguei à conclusão de que ele está prontinho para fazer uma mudança. E vai ser para mim. Nós nos divertimos tanto nas duas noites em que saímos... tenho certeza de que ele vai por mim. Acho que, por causa do meu nome, da celebridade, de toda essa m..., ele deve estar um pouco receoso. Olhe, vou chamá-lo agora mesmo.

— Helen!

— Por Deus, Anne! Ficar sentada aqui esperando é que não dá em nada. O negócio é chamar, e, se ele disser que não, não nos veremos esta noite e pronto.

— Helen, ele irá a Filadélfia.

— Como posso ter certeza?

— Porque Allen e eu também vamos. Eu lhe prometo que os três estaremos lá.

— Está certo. — Helen estava alegre novamente. — Talvez seja para melhor. Os próximos dias serão terríveis com os ensaios. Depois da estreia haverá uma grande festa em Filadélfia. Gino e eu ficaremos lá alguns minutos e depois iremos para a minha suite e... Anne, nem queira saber ...

A semana antes da estreia em New Haven foi uma verdadeira sucessão de crises. O escritório estava sempre tendo reuniões a respeito do espetáculo de Ed Holson, os roteiristas e escritores iam e vinham. Helen chamava, várias vezes por dia, às vezes só para conversar, quase sempre para se queixar de Gino. Ele fora ao El Morocco três noites seguidas com Adele Marin, seu desenhista os vira. E o tal de negócio?

— Helen, ele só se encontra com ela depois das onze, talvez para um drinque rápido.

— Bem, eu também me encontraria com ele para um drinque rápido.

Então, no meio de toda a confusão, Allen resolveu tomar uma atitude. Com Helen temporariamente fora do cenário, tinham voltado a sair sozinhos, como no começo. Certa noite, quando estavam no Stork Club, voltou ao assunto casamento abruptamente:

— Anne, por quanto tempo ainda vai continuar com isto?

— Que quer dizer?

— Quando é que nos casamos?

— Casamos?

— Bem, acho que a ideia era essa...

— Allen, pensei que você tivesse compreendido; quero dizer...

— Eu disse que esperaria. E esperei. Já faz um mês.

— Allen, não quero me casar. Ele a olhou de um jeito esquisito.

— O que eu gostaria de saber é o seguinte: você não gosta do casamento, ou de mim?

— Sabe que gosto de você, mas não posso dizer que o amo se não é verdade.

— Então, me diga uma coisa: já amou alguém em sua vida?

— Não, mas...

— Acha que é capaz de amar alguém?

— Claro que sim.

— Alguém que não seja eu.

Anne brincou com a taça de champanha e olhou as borbulhas. Não podia suportar a expressão dos olhos de Allen.

— Anne, o que eu acho é que você tem medo do sexo.

Desta vez foi ela quem olhou esquisito para ele.

— Suponho que vai dizer que eu ainda não fui despertada devidamente... e você irá mudar tudo isso.

— Exatamente. Suponho que já lhe disseram isso antes.

— Não, mas já ouvi a mesma coisa em certos filmes de mau gosto.

— Certas coisas parecem vulgares porque são verdadeiras. E é tão mais fácil zombar da verdade.

— Da verdade?

— Você tem medo da vida, medo de viver.

— É isso que você pensa? Só porque não me caso com você agora, apressadamente? — Tinha um leve sorriso nos olhos.

— Você acha que é natural chegar virgem aos vinte anos de idade?

— A virgindade não é um defeito.

— Não em Lawrenceville, é claro. Mas foi você quem disse que não queria ser como as pessoas de Lawrenceville. Deixe que lhe conte alguns-fatos. A maioria das moças de vinte anos não é virgem. Na verdade, muitas dormem até com homens que nem amam, levadas pela curiosidade e pelo impulso natural do sexo. Não acredito que você tenha tido a mais leve intimidade física com um rapaz. Como pode saber que não gosta de uma coisa se nem ao menos experimentou? Alguma vez na sua vida já experimentou se abrir com alguém, seja uma criança, uma mulher, ou um homem? Anne, sinto que tenho que quebrar esse gelo, porque a amo e porque não quero vê-la transformada em mais uma solteirona murcha da Nova Inglaterra. Ouça, Anne, esqueça a minha pessoa por um momento. Haverá alguma outra pessoa com quem você se importa? Algumas vezes tenho vontade de sacudi-la, só para ver se é possível brilhar algum sentimento nesse seu rosto perfeito. Terça-feira passada não significou nada para você?

— Terça-feira? — Anne não se lembrava.

— O Dia de Ação de Graças, Anne. Comemoramos no 21. Meu Deus, será que Você não se importa nem com isso? Eu tinha esperança de que me convidasse para conhecer sua mãe e sua tia, em Lawrenceville, naquele dia.

— Alguém devia estar no escritório na quarta-feira; a Srta. Steinburg fora a Pittsburg, para ver a família.

— E você, Anne? Você é filha única. Será tão pouco ligada à sua mãe? Você já notou que nunca a menciona? Que eu nem sei o que é que ela pensa de nós?

Anne brincava com o palito do coquetel e pensava. No começo, escrevera à mãe todas as semanas; depois, notou que as respostas eram forçadas; finalmente, deixou de escrever. Claro que a mãe não podia se interessar por-Nova York, Neely ou Henry Bellamy.

— Telefonei a ela quando os jornais publicaram a notícia do nosso noivado.

— E que foi que ela disse?

— Mamãe? Bem.... "Anne, você provavelmente sabe o que está fazendo. Toda a gente de Lawrenceville leu a notícia nos jornais de Boston. Imagino que os homens de Nova York sejam iguais a qualquer outro homem. Só que ninguém sabe coisa alguma sobre suas famílias. Esse rapaz será, por acaso, parente dos Cooper de Plymouth?" — Arme sorriu vagamente. — Ela disse que eu devia saber o que estava fazendo. Como de costume, estava errada.

— Quando me apresentará a ela?

— Não sei, Allen.

— Pretende trabalhar para Henry Bellamy o resto de sua vida? É essa sua suprema ambição?

— Não...

— Então, que é que realmente quer, Anne?

— Não sei o que quero fazer realmente, mas sei o que não quero fazer. Não quero voltar a Lawrenceville. Prefiro morrer. Não quero me casar, pelo menos, enquanto não me apaixonar realmente por alguém. E quero me apaixonar, Allen, quero-o desesperadamente. Quero ter filhos, ou melhor, uma filha, quero amá-la, ser amiga dela.

Allen inclinou-se para lhe dizer: .

— Querida, você nunca se abriu como hoje, desde que a conheço. Talvez você não me ame, mas deseja tudo aquilo que eu também desejo. Não, não diga nada. — Allen pôs os dedos nos lábios de Anne, quando ela tentou falar. — A nossa garota há de frequentar os melhores colégios e debutar no devido tempo. Vamos ter amizades com as pessoas certas, teremos um agente para notícias à imprensa, tudo o que quisermos. Frequentaremos Newport e Palm Beach. Chega de Miami e do Copa.

— Allen, mas eu não o amo.

— Você não ama ninguém. Mas vi seus olhos brilharem quando disse que gostaria de amar alguém, e que gostaria de ter uma filha. Está tudo em você, basta que alguém a desperte. Você é o tipo de mulher que se transforma em amante selvagem e total.

— Allen!

Ele sorriu.

— Não, não me dê palpites sobre o que não sabe. Não quero parecer convencido, mas tenho andado muito por aí. Eu a despertarei... até um ponto que você não julga possível.

— Não ficarei aqui ouvindo isso.

— Está bem. Não direi mais nada. Não direi mais nada sobre casamento até... o Natal. Então marcaremos a data.

— Não, Allen.

— Eu sempre consigo o que quero, Anne. E desta vez eu quero que você me ame. E agora, nem mais uma palavra. Até o Natal.

Isso tinha acontecido na terça-feira.

Na quarta, o elenco de Tocando as Nuvens partiu para New Haven, a fim de se preparar para a estreia, na sexta-feira.

Na quinta, Henry Bellamy disse:

— Anne, amanhã partimos para New Haven pelo trem de uma hora, e já reservei quarto para você no Taft.

— Para mim?

— Você quer ir? Lyon e eu teremos de estar lá, pensei que você gostaria de ir também. Afinal, você é amiga de Helen e daquela garota que está na peça, a Neely O'Hara.

— Adoraria ir. Nunca estive numa estreia.

— Então, prepare-se, não há nada que se compare a uma estreia em New Haven.

 

                                 Dezembro, 1945

Encontraram-se na Estação Central. O dia estava frio e ventava. Henry parecia cansado. Lyon cumprimentou-a com um sorriso cálido. No trem sentaram-se no carro de estar. Os dois homens abriram suas pastas e se curvaram para discutir diversos contratos. A viagem de trem era uma extensão do seu dia de trabalho. Anne tentou se concentrar na revista que estava em seu colo. Os raios de sol que passavam pela vidraça conseguiram penetrar as nuvens que caíam sobre a paisagem de inverno. Pensou em Lawrence-ville. Em Nova York já tinha esquecido como o inverno podia ser frio e desolado — as luzes de néon, as multidões que se movimentavam, as ruas cheias de táxis transformavam a neve em uma lama cinzenta que rapidamente desaparecia; esquecera as grandes planícies geladas, a solidão do inverno, as longas tardes que entravam pela noite adentro, passadas na grande cozinha, em companhia da mãe e da tia Amy. De vez em quando, o cinema, o boliche, uma reunião de bridge. Deus, agradeço-lhe por ter me dado forças para fugir. Jamais permita que eu tenha de voltar. Jamais!

Quando o trem entrou na escura estação de New Haven, as duas pastas se fecharam e os dois homens se levantaram, a fim de esticar as pernas. O rosto de Henry denotava cansaço e apreensão.

— Bem, lá vamos nós para a linha de fogo — disse.

Lyon tomou o braço de Anne.

— Vamos, menina. Você vai se divertir com sua primeira estreia em New Haven e eu não vou deixar que Henry a estrague.

— Já estive umas cinquenta vezes em New Haven — disse Henry — e só quando chego aqui é que me lembro como odeio isto. New Haven é a cidade das dificuldades. Com um espetáculo de Helen Lawson, então, é desastre total.

O hotel tinha uma aparência triste.

— Encontre-nos no bar — disse-lhe Henry — e se eu fosse você não chamaria Helen agora. Ela é um monstro em New Haven. Provavelmente, ainda está no teatro. Vou até lá falar com ela, é aqui pegado ao hotel.

Anne abriu as malas rapidamente. O quarto era pequeno e deprimente. Nada, entretanto, podia obscurecer o seu entusiasmo e alegria. Sentia-se como uma mocinha em sua primeira viagem só e estava cheia de expectativa, como se a qualquer momento algo de maravilhoso pudesse acontecer. Foi até a janela e olhou para a rua. A escuridão cinzenta do inverno estava começando a cair sobre a cidade e as luzes iam lentamente aparecendo. Do outro lado da rua o anúncio de um restaurante piscava incertamente. Anne se voltou bruscamente quando o telefone tocou.

Era Neely.

— Acabo de voltar do ensaio. O sr. Bellamy estava no teatro e me disse que você tinha vindo! Oh, Anne, estou tão emocionada!

— Eu também. Como está o espetáculo?

— Horrível — Neely falava naquele seu modo, sem tomar fôlego. — Na noite passada tivemos um ensaio geral que foi até as quatro da manhã. Helen está tentando tirar mais um número de Terry King. Terry abandonou o ensaio e o seu agente veio se entender hoje com Gil Case. Terry diz que Helen não pode lhe tirar mais uma canção. E a dança com Os Gaúchos está horrorosa. Aposto que será cortada; então, Charlie e Dick cairão fora. — A voz de Neely demonstrava pura alegria.

— Neely, que horror! Helen já voltou?

— Não, ainda está no teatro, fechada no camarim com Henry Bellamy. Não sei se conseguirão resolver tudo a tempo.

— Acha que não haverá estreia esta noite?

— Ora, a cortina terá que subir de qualquer maneira. Mas vai ser terrível. Ei, Anne, você sabe que Mel está aqui?

— Então deve ter vindo no nosso trem.

— Não, chegou ontem. — E depois de uma pausa: — Ei... Anne, aconteceu!

— Aconteceu o quê?

— Você sabe.

— Neely, você quer dizer...

— Isso mesmo. Claro, foi dolorido, e eu não consegui... mas Mel me compensou de outra forma.

— De que você está falando?

— Ora, você sabe.

— Neely!

— Anne, pare de ser afetada. Só porque você não faz o mesmo com Allen, isso não significa que eu seja uma vagabunda. Acontece que amo Mel.

— E isso desculpa tudo.

— Certíssimo. Nós dois nos queremos, nos amamos. Hoje em dia as pessoas não se casam só por isso. Sei que Mel me respeita e me ama hoje, tanto quanto ontem, ou até mais. E eu o amo. Além disso, não podemos nos casar ainda, pois ele precisa ajudar a sustentar os pais. Mas, se a peça fizer sucesso e eu puder contar com os meus cem dólares por semana, casaremos imediatamente.

— Neely, o que você fez... — Anne se engasgou, embaraçada.

— Ouça, Anne. Mel diz que tudo o que duas pessoas que se amam fazem juntas é normal. E, além de tudo, é sensacional! Mal posso esperar por esta noite.

— Neely, por Deus!

— Espere até que aconteça com você. Eu a vejo depois do espetáculo. Preste atenção em mim, tenho três linhas na segunda cena.

Lyon estava sentado a uma mesa no bar.

— Henry ainda está no teatro. Pedi um refresco para você, está bem? — disse-lhe, sorrindo.

Anne olhou para o copo com um sorriso.

— Talvez eu deva_aprender a tomar uísque. Sinto que até os garçons me olham com desaprovação.

— Então, olhe-os também da mesma forma. Nunca deixe que alguém a obrigue a fazer algo que realmente não quer. Mantenha sua personalidade.

— Não acho que já tenha uma.

— Todos têm uma. Ou duas. Uma para si e outra para exibir. Acho que você gosta de se mostrar enigmática enquanto não encontra o seu verdadeiro eu.

— Lembro de que você disse que sou uma lutadora...

— Sim, pelos outros.

Anne sorveu um gole de refresco. Lyon ofereceu-lhe um cigarro.

— Terei dito algo de errado? — perguntou.

— Não. Acho que acertou em cheio. Lembre-se de que já lutei por uma coisa que desejava.

— Sim, você veio para Nova York... mas, diga-me, Anne, você terá conseguido tudo o que queria na vida?

— E você? — Os olhos dela se encheram de raiva. — A guerra acabou. A vida continua. Pretende lutar por mais alguma coisa?

— Estou lutando agora — disse ele, calmamente.

— Parece que não consigo dizer nada inconsequente ou divertido quando estou com você — lamentou-se Anne. — Mas não fui eu quem começou. E acho que vou mesmo tomar um uísque.

Quando as bebidas chegaram, Anne fez um brinde:

— Espero que depois de engolir isso eu consiga dizer algo que o faça rir.

Ela tomou a metade do uísque de um gole só e então disse, mansamente:

— Tem um gosto horrível e não consigo ainda dizer nada de espirituoso.

Lyon tomou-lhe o copo:

— Por que é tão importante me fazer rir?

— Eu o vi no La Ronde, com Jennifer North. Você ria de tudo o que ela lhe dizia. Do que era? — Tomou outro gole.

— Vamos, termine o uísque. Afinal, foi uma boa ideia tomá-lo. Agora está lutando por você.

— E você, Lyon, por quem está lutando?

— Por você.

Seus olhos se encontraram.

— Então não precisa lutar — disse Anne quietamente. Rapidamente, Lyon tomou-lhe a mão. O brilhante de Allen machucou-a, mas ela não deu sinal de ter sentido nada. Os olhos de Lyon estavam tão perto dos seus...

— Bem, percebe-se que vocês, os dois, já tomaram alguns — disse Henry Bellamy, alegremente, ao se aproximar, fazendo um sinal ao garçom para que trouxesse uma bebida.

Anne retirou a mão. Henry sentou e suspirou:

— Continuem de mãos dadas. Não se incomodem comigo. Diabos, afinal são ambos jovens, divirtam-se. Quando se é jovem, a gente acredita que a juventude é eterna. De repente, um dia, acordamos, e estamos com mais de cinquenta anos. Os nomes que aparecem no obituário não são mais de gente desconhecida, mas de contemporâneos e de amigos.

O uísque de Henry chegou e ele o tomou de um gole só.

— Ânimo, Henry — disse Lyon alegremente. — Nada pode ser tão terrível. — Apertou a mão de Anne sob a mesa, com uma intimidade excitante.

— É ainda pior — insistiu Henry. — Esta estreia, por exemplo, promete ser a mais terrível de todas. Ou Helen está ficando mais dura ou eu estou ficando velho.

— Helen é sempre um monstro até a estreia em Nova York — disse Lyon, calmamente.

Henry tirou do bolso um caderninho de notas e perguntou:

— Querem ouvir uma boa? E isto é apenas o começo: "péssima luz no número de bateria; na segunda cena, o vestido de gala é horrendo; a orquestra está tocando alto demais durante a canção; a canção de Terry King atrasa a peça e ela a canta como se fosse uma marcha fúnebre; a sequência do sonho com as coristas é muito longa; todas as minhas canções terminam ao se apagarem as luzes; quero agradecer aos aplausos, pelo menos, em uma; a canção que canto com o galã terá de ser transformada em solo para mim, pois o rapaz é desafinado; Terry King desempenha o papel séria demais, tirando o equilíbrio do elenco". — Sacudiu a cabeça e pediu outro uísque.

— Por Deus, odeio este bar — disse, olhando à volta e acenando para alguns agentes e produtores que tinham vindo para a estreia. — E odeio cada filho da mãe que vem até aqui esperando ver um fracasso. Principalmente quando o produtor é um diplomado em Harvard, como Gil Case. — Suspirou profundamente e terminou: — Este é o bar mais miserável do mundo e eu passei nele as mais miseráveis noites da minha vida.

Anne e Lyon trocaram um sorriso. Ela olhou à volta e achou que estava no mais belo bar do mundo. Se pudesse reter para sempre este momento... pensou. Não importa o que me possa acontecer daqui por diante, este será o momento mais maravilhoso da minha vida.

Jantaram no antigo salão de refeições do hotel. Henry e Lyon conheciam quase toda a gente que lá estava. Ninguém do elenco da peça estava presente. Todos os atores deviam estar em seus camarins, engolindo rapidamente um sanduíche. Anne olhava constantemente para Lyon e, quando seus olhos se encontravam por um momento, não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Acontecendo exatamente como ela havia sonhado.

Henry pediu a conta.

— Anne, pelo que vejo a excitação da estreia a contagiou — você nem tocou no prato. Bem, poderá comer mais tarde. Gil Case oferece uma festa depois do espetáculo.

O teatro estava repleto. Com toda aquela gente de teatro presente, a estreia dava a impressão de ser em Nova York. Anne estava entre Lyon e Henry, na terceira fila. As luzes se apagaram e a orquestra começou a tocar a abertura. Lyon tomou-lhe a mão. Ela apertou a dele, tonta de felicidade. O espetáculo começou por um número musical. O guarda-roupa era alegre e bonito. As coristas, que pareciam cansadas e sem atrativos há algumas horas, estavam lindas, roupas e maquilagem cor de pêssego. Em alguns minutos a plateia estava eletrizada — uma intangível corrente parecia ligá-la aos atores no palco e nascer um novo sucesso.

Quando Jennifer North surgiu, caminhando indolentemente dentro da luz de um holofote, um suspiro correu por toda a assistência. Usava um vestido dourado, que parecia ter sido costurado ao seu incrível corpo.

— Jesus! — murmurou Henry. — Desta vez ela conseguirá um contrato de cinco anos. Weis, da Twentieth, está aqui, e também Meyers, da Paramount.

— Terá de ser um ótimo contrato — interveio Lyon.-— Ela está caída por Tony Polar e só o deixará se o contrato for desses que não se pode recusar.

— Tony nunca se casará com ela. Deixe isso comigo.

— Lá está sua amiga — disse Lyon rápido.

Anne só percebeu Neely quando esta já saía do palco, acompanhada por dois dançarinos do conjunto. Em seguida, Helen fez sua entrada e a peça parou — o teatro inteiro a aplaudia com um entusiasmo que beirava a histeria. Parada, com um leve sorriso nos lábios, agradecia a aclamação. Todos os que estavam no palco, lá estavam por causa dela; o teatro estava cheio por causa dela; todos os músicos ali estavam por causa dela; a peça fora escrita para ela; se Gino estivesse ali, estaria gritando e aplaudindo, como todo mundo. Depois do espetáculo, pediria a Anne que "o livrasse dela", mas naquele momento ela era a namorada de todos.

E, afinal, a peça era de Helen, do começo ao fim. Cada canção que ela cantava enchia o teatro com uma nova onda de aplausos. Não era mais uma plateia que ali estava, mas verdadeiros devotos, que se uniam para a adoração de Helen Lawson. A risada rouca, que fazia Anne estremecer em público, parecia saudável e vibrante quando dada no palco. Neely brilhou em sua pequena ponta. Jennifer North apareceu com um vestido bastante revelador, imediatamente aprovado pela assistência, a julgar pelos aplausos que recebeu. Terry King mereceu muitos aplausos pelas duas canções, cantadas em uma voz muito mais suave e bonita que a de Helen; entretanto, a personalidade de Helen se impunha acima de todas; a autoridade que dela emanava era uma arte por si só.

— Acho Terry uma ótima atriz — murmurou Anne ao ouvido de Lyon— mas não é competidora para Helen. É uma atração apenas regular.

— A beleza dela, porém, está acima de regular — respondeu Lyon.

Durante o intervalo, saíram para o corredor. Gil Case fez um sinal e eles o seguiram até o bar.

— Gil, é o melhor espetáculo que Helen já estrelou — disse Henry, enquanto tomavam uma bebida.

— Também acho, meu caro — concordou Gil, com um sorriso feliz. — Talvez precisemos cortar umas poucas coisas; no geral, vai ficar exatamente assim. Nem precisaremos ir até Boston; quatro semanas em Filadélfia resolvem.

— Certo. Se os cortes forem nos lugares precisos.

Olharam-se em silêncio até que Gil Case forçou um projeto de sorriso.

— Ora, Henry, você sabe muito bem que estou numa enrascada. O contrato de Terry King é válido pelo tempo em que a peça estiver em cartaz, quer ela trabalhe ou não. Por isso não posso despedi-la.

— Como foi que ela conseguiu um contrato desses?

— Boa pergunta essa. Acha que uma atriz que conheça Helen Lawson aceitaria um papel numa peça dela sem um contrato desses? Olhe para o passado: Betty Mobile, despedida em Boston; era boa demais. Sherry Haides teve o papel cortado da peça em Filadélfia; era boa demais. Será que terei de continuar? Não se consegue uma boa atriz para uma peça de Helen, a não ser que concordemos em assinar um contrato igual ao de Terry King.

— Helen não vai permitir que ela estreie em Nova York, disso eu tenho plena certeza — disse Henry mansamente.

— Henry, peço-lhe, fale com Helen. Se eu despedir Terry King, como poderei me justificar perante os meus financiadores? Tenho mais duas peças programadas para esta estação, por isso preciso deles. Se despedir Terry King, serei obrigado a lhe pagar quatrocentos dólares por semana, até 1.° de junho, e o mesmo salário para a atriz que a substituir. Somando as percentagens de Helen, mais o seu salário, bem... aí está uma coisa que eu não posso fazer.

— Gil, se você mantiver Terry, isto vai lhe custar muito mais dinheiro e preocupações. Vamos ver: se Terry ficar, Helen reclamará todo o tempo a respeito dos números e das orquestrações. Você terá que ficar três semanas em Boston. Pense nas despesas de transporte — vai achar oitocentos dólares por semana uma pechincha. Então, de repente, Helen ficará detestando todo o seu guarda-roupa. Exigirá, também, que você contrate compositores de fora. Agora, livre-se de Terry, Helen vai adorar tudo na peça, incluindo você, e poderão estrear em Nova York logo depois de Filadélfia.

— Bem, há sempre o outro meio. — Gil sacudiu os ombros.

Henry concordou em silêncio e Gil soltou um suspiro, dizendo:

— Tentarei; na verdade, estou ficando velho demais para estas excursões.

Henry deixou dinheiro na mesa e os três voltaram ao teatro. O segundo ato era ainda melhor que o primeiro. Helen cantou duas canções que fizeram parar o espetáculo, e ela foi obrigada a voltar ao palco três vezes. A peça era um sucesso eletrizante; a audiência se recusava a deixar Helen sair do palco e ainda aplaudiam quando o pano baixou no final. O programa que Henry tinha na mão estava todo cheio de anotações, para modificações e cortes. Sua testa estava franzida quando saíram para o corredor.

— Por sua cara, a gente fica pensando que a peça é uma droga — disse Anne, com alegria.

— Não, querida, estou pensando nas batalhas que virão. Mas não há dúvida de que é o melhor espetáculo que Helen já fez. — Depois, acendendo um cigarro, acrescentou: — Bem, vamos abrir caminho até os bastidores.

Havia uma multidão em frente ao camarim de Helen. Todos queriam abraçá-la e lhe desejar boa sorte. Ela estava na porta, grotesca, com a pesada maquilagem que usara no palco. Sorria e aceitava os cumprimentos com falsa simpatia. Quando viu Henry, Lyon e Anne, gritou:

— Ei, vocês, entrem. — Quando Anne passou, disse-lhe ao ouvido: — Assim que me livrar destes chatos iremos à festa de Gil.

Então, com um largo sorriso, dirigido ao primeiro da fila, continuou a cumprimentar a todos efusivamente.

A festa estava animada quando chegaram; à entrada de Helen, todos ficaram em silêncio por um momento, antes de explodir em uma tremenda ovação. A atriz agradeceu com bom humor e fez sinal para que todos continuassem se divertindo. O assessor de imprensa apresentou-a a alguns jornalistas locais e aos financiadores da peça. Lyon levou Anne para um canto e trouxe-lhe um refresco e um prato de sanduíches.

— Tem comida quente do outro lado — disse. — Irei buscar alguma coisa quando a multidão se dispersar.

— Não estou com fome — respondeu Anne, enquanto seus olhos corriam à volta. Não vejo Neely por aqui.

— Só os principais atores são convidados para esta festa — explicou Lyon. — As coristas e o resto do elenco têm sua própria festa.

— Mas isso é desagradável.

— Na verdade, não é. Fazem coleta entre si, conseguem comida bem melhor que esta, reúnem-se no -quarto de um deles e se divertem esplendidamente, gozando e criticando todos os atores que estão nesta festa.

Um murmúrio passou pela sala quando Jennifer North entrou, escoltada por Jim Taylor, principal colunista de New Haven. Cada vez que Anne olhava Jennifer North, a incrível beleza da moça a espantava, como se ainda não a tivesse visto. Observou os financiadores da peça lutarem por uma apresentação e, mais uma vez, ficou encantada com a atenção que Jennifer conseguira dispensar a cada um. Helen juntou-se a eles e se sentou a uma cadeira.

— Vocês é que são espertos, escondidos neste canto. Só Deus sabe como detesto estas festas. É o jeito de Gil compensar os financiadores; eles adoram se misturar à gente de teatro.

Gil Case juntou-se a eles.

— Há um ótimo frango lá do outro lado — disse. — E também comida chinesa.

— Gil, por que você sempre serve essa m... em suas festas? — perguntou Helen.

— É ótima comida. Recomendação do hotel.

— Claro. E também recomendou rosbife; só que é caro demais.

— Ora, Helen, essa noite é sua. Divirta-se.

Dizendo isso, desapareceu entre a multidão.

— Ei, Gil — gritou Helen, indo atrás dele. — Temos um assunto a tratar.

— O coitado não escapa desta — comentou Lyon.

— Você acha mesmo que ela vai insistir na saída de Terry King? — perguntou Anne.

— Não cederá nem um fio de cabelo.

— Talvez eu devesse falar com ela — disse Anne pensativamente. — Terry King não pode competir com Helen, mas merece uma oportunidade. Tenho certeza de que a convenceria.

— Anne, não tente, ela arrancaria sua cabeça.

— Não, Lyon, somos amigas. A verdade é que ninguém trata Helen como ser humano. Sei que ela me ouvirá.

Lyon tomou-lhe as mãos e olhou-a nos olhos.

— Anne, maravilhosa Anne. Como foi que você veio parar no meio dessa corrida de ratos? Você acha que conhece Helen; olhe, sob o verniz, só existe puro aço.

— Você está errado, Lyon. Sei que conheço Helen. Falo com ela todas as noites, até tarde. Então ela tira a máscara e fala com o coração. É uma mulher maravilhosa. Toda essa dureza é fingida. Ninguém se dá ao trabalho de ir até o fundo para conhecê-la.

Lyon sacudiu a cabeça.

— Posso acreditar nisso, mas essa não é Helen: essa faceta só aparece raramente, e se eclipsa em um segundo. Agora, a dureza, esta está sempre presente.

— Lyon...

De repente houve uma movimentação intensa, no momento em que alguém apareceu com um monte de jornais, que sairiam pela manhã. Helen agarrou alguns e leu avidamente as críticas da peça. Gil Case lia em voz alta. A peça era considerada um sucesso sem precedentes. Os críticos elogiavam a música, o texto e, sem exceção, aplaudiam o desempenho de Helen. Era a legenda viva, a maior atriz musical de todos os tempos etc. Terry King também recebeu alguns elogios e a beleza de Jennifer North foi comentada por todos. Todos se congratulavam. Os financiadores apresentavam sorrisos idiotas e cercavam Helen de atenções.

— Este é o melhor momento para fugir — murmurou Lyon.

Já estavam à porta quando Henry lhes bloqueou a saída, dizendo, como quem não quer nada:

— Vão a algum lugar?

— Pensamos em ir jantar decentemente no outro lado da rua — respondeu Lyon.

— Oh, não, meu rapaz. Você não vai me deixar aqui sozinho com isto.

— Com quê? O espetáculo está perfeito. — Lyon fazia um ar inocente.

— Claro. Só que Helen insiste numa reunião imediata com Gil Case.

— Quando?

— Dentro de dez minutos, no apartamento de Gil. E eu preciso de você, pelo menos para conforto moral.

Anne disfarçou o desapontamento com um sorriso.

— Vá, Lyon. É tarde, já, e eu não tenho fome.

— Não, já que conhece a verdadeira Helen, talvez possa desenterrá-la para nós. Precisamos de toda a ajuda que for possível obter.

A atmosfera no apartamento de Gil Case oferecia um violento contraste à alegria da festa. Helen, num sofá, sorvia champanha com aquele ridículo beicinho de menina amuada. A maquilagem do rosto se desfazia, deixando aparecerem sulcos e rugas.

— Isto é uma loucura completa! — exclamava Gil, levantando os braços em desespero. — Aqui estamos nós, com cara de velório, quando temos garantido o maior sucesso da temporada nas mãos.

— Pode apostar nisto — rosnou Helen. — Todas as minhas peças são sucesso. E esta fará de você um homem rico. Com certeza, vai vendê-la a Hollywood, enquanto eu fico sentada, vendo Betty Grable ou Rita Hayworth fazendo o meu papel. Sobre isso, está bem, sei que o jogo é esse. Agora, não sou obrigada a assistir a uma reles vagabunda, como Terry King, conseguir um contrato cinematográfico através dos meus esforços.

— Helen, ela não teve mais que uma simples referência nos jornais.

— Sim? Um deles disse que ela era um sucesso no cinema. E ela tem também a melhor canção da peça.

Henry resolveu entrar na conversa:

— Helen, já falamos sobre isso. Não há possibilidade da canção ser reescrita para o seu papel. Os rapazes passaram duas noites seguidas tentando; você sabe que é uma canção para a ingénua da peça.

— Disseram também que Jennifer North será um sucesso no cinema — acrescentou Gil.

— Sim, mas Jennifer não canta — lembrou Helen.

— Helen, Terry King não pode fazer sombra a você — insistiu Henry.

— Aposte o seu traseiro nisso — ela não terá essa oportunidade. Essa peça é minha, e eu não sou Papai Noel. A única estrela que há de brilhar numa peça de Helen Lawson é a própria Helen Lawson — gritava.

— A garota é boa — insistiu Gil, mais uma vez —, as duas canções que ela canta ajudam a peça. O que é bom para a peça é bom para você. E, como eu já disse, o espetáculo é seu.

— Se ela é tão boa assim, faça-a estrela do seu próximo espetáculo. Quanto dinheiro acha que os seus financiadores estão dispostos a arriscar no nome dela?

Henry se levantou.

— Helen, você é grande demais para isso. A garota não pode ofuscá-la e merece uma oportunidade. Lembre-se de que você também teve de começar, de sua primeira peça. Suponhamos que Nancy Shaw a tivesse despedido em New Haven. Onde estaria você hoje?

— Onde, com todos os diabos, está Nancy Shaw hoje? Ouça, Henry, ela estava saindo dos quarenta quando eu estava começando, e, se ela tivesse sido esperta, teria se livrado de mim. Tão presunçosa, porque era considerada uma beldade, achava que eu não podia concorrer com ela em beleza; acho que não podia mesmo. O caso é que consegui me sobressair, o que não quer dizer que o mesmo deva acontecer com Terry King, é claro. Ela não é Helen Lawson. E, já que falamos nisso, Nancy Shaw não era Helen Lawson também. Eu aprendi com o erro que ela cometeu; ninguém vai me usar para construir o seu próprio ninho.

Gil sacudiu os ombros.

— Ela tem um contrato que vale pelo tempo em que a peça estiver em cartaz.

O sorriso de Helen era sórdido, quando disse:

— Conheço tudo a respeito dessa espécie de contratos.

— Mas, Helen, ela teve boa crítica. Não posso, simplesmente, chegar aos financiadores e dizer que preciso despedi-la porque não está bem no papel.

— Concordo — respondeu Helen amavelmente.

— Além disso, não será boa publicidade para você se houver qualquer comentário sobre uma despedida assim — continuou Gil.

— Certo — concordou Helen —, isto é a última coisa que iríamos querer. Pelo menos aí estamos de acordo. — Os olhos de Helen se estreitaram e ela continuou: — Por isso, livre-se dela de maneira inteligente. Você pode fazê-lo. Já fez isso antes.

Parecia que Gil Case tinha diminuído dez centímetros no tamanho quando encolheu os ombros e suspirou.

— Está bem. Acho porém melhor esperar até Filadélfia.

— Essa não! — berrou Helen. — Deixá-la ganhar mais alguns bons comentários da crítica? Livre-se dela neste fim de semana.

Gil perdeu um pouco da paciência: .

— Minha querida, quem a substituirá na estreia de segunda-feira na Filadélfia?

— Mande chamar Penny Maxwell. Ela se candidatou ao papel e aprende muito depressa. Além disso, foi ela que eu quis desde o começo.

— Está ensaiando para o espetáculo de Max Seller.

— Você está brincando? Cristo! A voz dela é esganiçada e ela é uma porca.

— Então fica assim. Terry estreia em Filadélfia. Não há outro jeito. Ainda que eu consiga falar com todos os agentes teatrais de Nova York, amanhã de manhã, não há ninguém que possa aprender o papel a tempo.

— Conheço alguém que pode — disse Anne subitamente, enquanto todos olhavam para ela. — Sei que não é da minha conta... — acrescentou nervosamente.

— Quem é que você conhece, meu anjo? — perguntou Helen candidamente.

— Neely O'Hara. É a substituta eventual de Terry. Sabe todas as canções e canta bem.

— Fora de cogitação — berrou Gil. — Ela está como substituta apenas durante a excursão. Em Nova York, pretendo arranjar uma melhor. Neely é muito insignificante. Parece uma orfãzinha desamparada.

Os olhos de Helen ficaram ainda menores.

— E com quem deve parecer a ingénua da peça? Com uma ruiva voluptuosa, que acabou de sair de uma cama?

— Helen, o papel é importante. Não posso me arriscar a estrear em Filadélfia com uma menina desconhecida.

— Ela trabalhou em teatro de variedades durante toda a vida — afirmou Anne. — Está habituada com o público. E depois, sr. Case, Neely poderá fazer o papel.

Gil Case ainda hesitava:

— Bem, podemos tentar... acho. Afinal de contas, terei três semanas em Filadélfia para achar outra, se ela não servir.

— Então está tudo combinado. Podemos ir todos dormir — disse Helen, levantando-se.

— Como cordeirinhos — murmurou Gil. — Só que eu é que terei de me arranjar com Terry King.

— Aposto que já se arranjou muito bem com ela antes de assinar o contrato — ironizou Helen, dirigindo-se à porta. — Marque um ensaio para amanhã, às onze horas, para todos, menos eu. Preciso dormir, amanhã tem matinê. — E, voltando-se para Anne: — Que bom você ter vindo, queridinha. Telefono-lhe quando estiver na cama.

Gil fechou a porta e olhou acusadoramente:

— Gente, vocês não foram de nenhuma ajuda.

— Eu tentei — disse Henry, curvando os ombros —, mesmo sabendo que era inútil. — Olhou para Lyon e Anne. — Vocês podem tratar de comer agora, enquanto Gil e eu fazemos os planos da matança.

A caminho do elevador, Lyon disse:

— Como é, vamos tentar o restaurante do outro lado da rua?

— Não tenho fome.

— Cansada?

— Nem um pouco. — Os olhos de Anne brilhavam.

— Acho que eu gostaria de dar um passeio a pé, e você?

Caminharam pela rua deserta. A certa altura, Anne perguntou:

— Que farão a Terry King?

— Vão forçá-la a se demitir.

— Como?

— Vá ao ensaio amanhã, se tem estômago forte.

Anne estremeceu.

— Bem, pelo menos Neely terá uma chance. Você esteve maravilhosa. Gostaria de ter uma amiga como você.

Ela o olhou muito séria.

— Lyon, que é que você pensa que eu sou? Acha que estou andando com você nesta noite fria só porque gosto de ficar congelada?

— Eu também estou andando porque sou seu amigo, e porque sou realista. Você tem uma enorme pedra no dedo e um ótimo rapaz que a espera em Nova York. E é uma moça boa demais para um simples romance de fim de semana.

— Vai ser só isso?

— Acha que poderia ser mais do que isso? — Lyon parou e ficou a olhá-la.

— Pode ser tudo o que você quiser, Lyon.

Sem uma palavra, ele a tomou pelo braço e a levou de volta ao hotel. Não falaram até entrar no quarto dele, exatamente igual ao quarto antiquado e sem vida em que estava hospedada. Por um momento, ele a olhou com ternura, depois abriu os braços. Correu para ele, para os seus lábios, que estavam frios do ar da noite, mas firmes e sequiosos como os dela. Estava surpresa pela maneira como retribuía os beijos dele, como se toda a vida esperasse ser beijada assim; agarrou-se firmemente ao seu corpo, enquanto mergulhava inteira na magia daqueles beijos. Quando se separaram, olhou-o com lágrimas nos olhos:

— Oh, Lyon, muito obrigada por me fazer acreditar...

— Fazê-la acreditar?

— Não posso explicar... me abrace forte. — Ela o abraçou de novo e ele a beijou, enquanto rezava para que aquilo nunca tivesse fim. Seu corpo tremia todo nos braços dele.

Repentinamente, ele a largou e disse com voz rouca, porém terna, enquanto lhe segurava as mãos:

— Anne, eu a amo muito, mas é você quem deve decidir. Você pode fazer com que isso se transforme no que quiser. Se decidir que acaba em New Haven, compreenderei.

— Lyon, não quero que seja apenas um romance de fim de semana.

— Sente-se, Anne. — Lyon ajudou-a sentar-se na beira da cama. — Se eu achasse que você quer isso, não teria tocado no assunto. E se eu quisesse uma aventura de fim de semana não iria escolher você. Acontece que há sempre algo de tão estranho em uma estreia em New Haven. Mas. esta noite passará, e virá a segunda-feira... Estaremos em Nova York na segunda-feira. Será um outro mundo, e este fim de semana parecerá irreal. Quero que saiba, se isso acontecer, que eu compreenderei.

— E você? — perguntou ela.

— Oh, por Deus! Você sabe a quantas estreias em New Haven, Boston e Filadélfia eu já assisti? Isso é apenas mais uma noite, com uma maravilhosa exceção... você está aqui.

Anne passou-lhe as mãos pelo rosto.

— Eu o amo, Lyon.

— Não pedirei contas disso também.

— Você não acredita?

— Sim, acho que é sincera, neste momento. Não acho que você iria para a cama com um homem, a menos que acreditasse que o ama.

— Eu nunca disse isso a ninguém. Lyon, eu o amo.

Lyon levantou-se e acendeu um cigarro. Quando a olhou, tinha um ar determinado.

— Anne, vou mandá-la de volta ao seu quarto.

— Lyon... não compreendo.

— Isso pode esperar. Vejamos como se sentirá a respeito na segunda-feira, em Nova York.

— Sentirei o mesmo.

— Não posso me arriscar.

Anne levantou-se lentamente.

— Você quer realmente que eu vá embora? — Os olhos dela começaram a tremer.

— Anne, é a última coisa que eu quero; para o seu próprio bem... eu...

— Lyon, quero ficar.

Ele a olhou curiosamente, como que tentando alcançar o sentido exato de suas palavras. Então, dirigiu-lhe um daqueles sorrisos instantâneos e atirou longe o paletó. Aproximou-se dela e, abrindo os braços:

— Venha cá, sua feiticeira loura. Tentei ser nobre, mas você acabou com a minha resistência.

Abraçou-a levemente, largou-a e começou a tirar a gravata. E agora? Que é que ela deveria fazer? Na verdade, queria ir para a cama com ele, entretanto, isto devia exigir uma certa etiqueta. Não podia começar a tirar a roupa como uma rainha de espetáculo burlesco. Oh, Deus, por que não vestira a anágua nova? E por que nunca perguntara qual era o procedimento usual numa situação dessas? Agora, Lyon tirava a camisa. Tinha que fazer algo. Não podia simplesmente ficar ali parada. Lyon tirou o cinto e apontou a porta do banheiro.

— Quer um quarto de vestir?

Acenou desajeitadamente com a cabeça e caminhou até o banheiro. A salvo, atrás da porta fechada, tirou a roupa. E agora? Não podia entrar no quarto assim, nua. Sonhara com este momento, quando se entregaria ao homem que amasse. Mas não assim, não em um pequeno quarto de hotel em New Haven. Em seus sonhos, via uma luxuosa cama de casal, e ela, flutuando dentro de uma linda camisola de gaze, em direção aos braços do marido. Pouca luz, tudo tão maravilhoso. Nunca passara do sonho, nunca chegara ao ato do amor. Só pensara no lado romântico; um amado sem rosto. O de agora tinha. Estava ali,, do outro lado da porta, e ela sem uma camisola de gaze. Tremia de frio, sob uma lâmpada que lançava uma luz "crua sobre o seu corpo, e não sabia o que fazer.

— Ei, olhe que estou tremendamente solitário aqui! — gritou Lyon.

Anne olhou aflitamente à sua volta, agarrou uma enorme toalha de banho, enrolou-se nela e saiu timidamente do quarto. Lyon estava na cama, coberto até a cintura. Amassou o cigarro que estava fumando e estendeu-lhe os braços. Ela se voltou para apagar a luz do banheiro.

— Deixe acesa — disse ele —, quero vê-la... para acreditar que é mesmo você que está aqui.

Anne se aproximou da cama e Lyon pegou suas mãos. A toalha caiu no chão.

— Minha linda Anne — pronunciou Lyon suavemente. A admiração e o modo natural como ele a olhava fizera com que Anne perdesse toda a timidez. Ele jogou as cobertas para o lado e estendeu-lhe os braços. Subitamente, parecia que a coisa mais natural do mundo era sentir a força do corpo dele de encontro ao seu, assim como a impossível e delirante sensação de sentir-lhe a boca procurar a sua. Anne correspondia aos seus abraços com um ardor que nunca julgou possuir. As mãos dele a acariciavam, a excitação emocional superava toda a sensação física... tê-lo em seus braços... estar junto dele e saber que ele a queria.

De repente, estava acontecendo. Oh, Deus, este era o momento! Queria entregar-se, mas a dor a pegou desprevenida. Soltou um grito, Lyon largou-a de súbito.

— Anne... — Ela podia ver a enorme surpresa nos olhos dele.

— Pode continuar, Lyon — pediu —, está tudo bem.

— Meu Deus, não pode ser! — continuava surpreso.

— Lyon, está tudo bem. Já lhe disse que o amo.

Lyon debruçou-se sobre ela e a beijou ternamente. Então, deitou-se de costas com as duas mãos sob a nuca. Anne ficou muito quieta. Ele apanhou um cigarro e ofereceu-lhe outro. Recusou e ficou olhando-o em silêncio. Ele aspirou profundamente a fumaça e disse:

— Anne, acredite, eu nunca teria tocado em você se soubesse...

Ela pulou da cama, correu para o banheiro, e afundou a cabeça numa toalha de rosto, para abafar os soluços. Ele a seguiu e escancarou a porta.

— Não chore, querida, você está inteira.

— Não estou chorando por causa disso.

— Então, por quê?

— Porque você não me quer.

— Ah, minha querida. — Abraçou-a. — Claro que a quero. Claro que a quero. Muitíssimo, mas não posso... você vê, nunca imaginei.

— O que é que você esperava? Não sou nenhuma vadia.

— Claro que não é. Mas julguei que, certamente, você e Allen...

— Allen nunca me tocou.

— Assim parece.

— Isso faz tanta diferença para você? Eu ser virgem?

— Toda a diferença do mundo.

— Sinto muito. — Anne ouviu as próprias palavras sem poder acreditar que as estava pronunciando. Tudo aquilo era ridículo. Ali estavam eles, nus sob a lâmpada do banheiro, discutindo uma coisa que devia ser sagrada. Anne apanhou a toalha e se cobriu. — Por favor, saia para que eu me vista. Jamais pensei que tivesse de me desculpar por ser... inexperiente. Sempre pensei que isso agradaria ao homem que eu amasse... — Sua voz se transformou em soluços de humilhação.

Com um gesto rápido, ele a tomou nos braços e a carregou para o quarto.

— Você está contente... — murmurou Lyon — e também confusa, comportando-se de um modo inteiramente idiota. — Colocou-a na cama, dizendo: — Tentarei ser gentil, e se você não quiser chegar até o fim é só me dizer.

— Mas eu quero, Lyon. Eu o amo e quero fazê-lo feliz.

— Isso deve ser recíproco; dessa vez não será para você. Raramente é da primeira vez, eu acho...

— Você não sabe? Quero dizer... você nunca teve uma virgem?

— Nunca — admitiu ele com um sorriso. — Por isso estou tão nervoso quanto você.

— Ame-me, Lyon. É tudo o que lhe peço.

Agarrou-se a ele e não pensou em mais nada que não fosse a grande felicidade de pertencer àquele homem maravilhoso e em fazê-lo feliz. Quando sentiu que o corpo dele ficava tenso, surpreendeu-se ao ver qué se libertava dela, de súbito. Então, compreendeu; mesmo no auge do prazer, Lyon pensou em protegê-la; e sua felicidade redobrou com isso. Anne o abraçou, compreendendo que a maior felicidade do mundo consistia em fazer feliz o homem amado. Sentiu que erá a mulher mais importante e poderosa do mundo.

Mais tarde, Lyon lhe disse, com uma nova ternura na voz:

— Não foi muito divertido para você hoje; será, eu lhe prometo.

— Prometa apenas me amar... Lyon, eu o amo tanto!

— E eu a adoro. Poderei passar o resto da noite dizendo-lhe como você é maravilhosa. — Acariciou-lhe os cabelos. — Agora, acho que precisamos dormir um pouco. Haverá aquele ensaio amanhã às onze horas.

— Ensaio?

— Bem, é assim que o chamam. Depois você me dirá que nome devia ter realmente.

— Lyon... não posso dormir aqui.

— Por que não? — A voz dele estava sonolenta.

— Não sei, talvez Helen ou Neely chamem de manhã.

— Esqueça-se. Quero achá-la aqui quando acordar.

Ela beijou-lhe o rosto, os olhos, a testa.

— Você terá isso muitas vezes, Lyon. Não esta noite. — Anne entrou no banheiro e vestiu-se rapidamente. Não, não era por causa de Helen ou de Neely que ela queria ir para o seu quarto. A verdade é que tudo o que acontecera tinha sido demais para ela. Não teria conseguido dormir um minuto ao lado dele. E de manha... bem, coisas como esta deviam ser absorvidas lentamente. Os homens davam muito menos importância a isso que as mulheres. O principal é que acontecera para ela a coisa mais importante do mundo. Sabia agora o que era amar, a coisa mais importante da vida.

Saiu do banheiro e se aproximou da cama. Começou a falar, viu, porém, que Lyon dormia profundamente. Foi até a mesinha, apanhou um pedaço de papel e um lápis e escreveu: "Boa noite, belo adormecido. Vejo-o amanhã. Eu o amo". Pôs o papel sob o telefone e saiu quietamente do quarto.

Ficou sozinha, durante muito tempo, em sua própria cama, excitada demais para poder dormir. Sua mente teimava em recordar cada palavra que ele pronunciara, e cada expressão que o seu rosto assumira naquela noite. "Tudo vai melhorar, eu lhe prometo"... Seria possível? Sentiria ela também, algum dia, todo o êxtase que ele sentira? Não tinha importância, tudo o que importava era Lyon;. tê-lo nos braços, satisfazê-lo, saber que era capaz de amá-lo, e que esse homem maravilhoso a queria. Adormeceu. Acordou às nove horas da manhã. O dia estava claro, havia muito vento. Olhou pela janela, viu um homem caminhando contra o vento, segurando o chapéu; uma moça, no ponto de ônibus — e sentiu pena deles. Sentiu pena de todas as pessoas que existiam e que não estavam sentindo o que ela sentia. "Pobres pessoas. Para vocês, este é apenas mais um dia. Olhem para mim. Tenho vontade de gritar para que todos saibam como sou feliz, pois há um homem, o homem mais maravilhoso do mundo... que me pertence." Que dia lindo! Que cidade linda!

Um banho quente, o penteado cuidadoso. Mudou a cor do batom duas vezes e ficou atenta alternadamente ao telefone e ao relógio. Às dez e quinze começou a se preocupar. Ele teria dito que a encontraria no teatro? Ou que iriam juntos? Quando o telefone tocou, precipitou-se para ele. Era Neely.

— Você poderia, pelo menos, ter me procurado depois do espetáculo — disse-lhe a amiga, queixosa.

— Pensei que estaria na festa.

— Eu? Lembre-se de que sou do coro. E agora tenho um ensaio. Não é o fim? Marcar um ensaio antes de uma matinê? Pobre Mel... ele está exausto.

— Onde está ele?

— Embaixo, tomando café. Vou encontrá-lo lá.

— Então eu a verei no ensaio.

— Que é que vai fazer lá? Será chatíssimo.

— Neely... não diga uma palavra a ninguém... mas há uma possibilidade de você substituir Terry King na peça. Você sabe todas as canções dela, não sabe?

— Se sei? De trás para diante! E também sei todas as canções de Helen. Anne, você está brincando comigo?

— Não, temos um plano. Assisti à reunião deles ontem à noite. Não diga uma palavra a ninguém. .

— Deus do céu! Não posso acreditar. Espere até que eu conte tudo a Mel. Até logo. Vejo-a no teatro.

Dez e quarenta e cinco: Lyon não tinha telefonado ainda. Por três vezes, aproximou-se do telefone para chamá-lo e decidiu o contrário. Acendeu um cigarro e ficou olhando pela janela. Os minutos passavam... Que devia fazer? Ficar no quarto o dia todo? Ir ao teatro sozinha? Não, não ficava bem. Se ele estivesse lá, pareceria que ela estava indo atrás dele. Ridículo! Isso não era Lawrence-ville, e Lyon não era um rapazinho com quem tinha tido um simples encontro. Não havia lugar para essas regras tolas. Marchou resolutamente para o telefone e pediu que ligassem para o quarto dele.

Sua voz estava sonolenta a princípio, logo ficou imediatamente desperta.

— Meu Deus! Querida, são mesmo cinco para as onze? Pensei que tinha deixado uma nota para me chamarem às dez.

— Não vejo como poderia, a menos que tivesse acordado no meio da noite.

A risada dele era contagiante.

— Estou lendo sua nota. Menina, sou mesmo o Sir Galahad! Desça até aqui, para me fazer companhia enquanto me barbeio. Pedirei café para dois.

A porta estava entreaberta. Quando- bateu levemente, Lyon gritou-lhe um alegre "entre". Estava no banheiro, de cuecas, fazia a barba. Puxou-a para si e lhe deu um beijo de leve, para não sujá-la com o sabão, e continuou a se barbear. A simplicidade dele contribuiu para aumentar a intimidade que nascia, parecendo a Anne que vê-lo fazer a barba em trajes menores era a coisa mais natural do mundo. Sentou na beira da cama, feliz como nunca em sua vida. Lyon se aproximou, curvou-se sobre ela, beijou-a ternamente e se pôs a assobiar enquanto vestia a camisa. A felicidade que Anne estava sentindo era diferente de tudo o que sentira até então; quase desmaiava. Ficou imaginando se Lyon se sentia assim. Não acreditava, uma quantidade enorme de mulheres já devia tê-lo visto fazer a barba na mesma intimidade... Expulsou rapidamente esse pensamento. Tinha certeza de que nenhuma delas sentira exatamente o que ela estava sentindo — aí a diferença. Não devia permitir que esses pensamentos estragassem o dia mais feliz de sua vida.

O garçom bateu à porta e empurrou a mesinha com o café para dentro do quarto. Lyon assinou a nota e fez um sinal a Anne para que se sentasse, enquanto bebia um copo de suco de laranja, em pé. Tomou, em seguida, uma xícara de café, foi ao telefone e pediu uma ligação para o quarto de Henry Bellamy. Com certeza, Henry estava atrasado, também, porque Lyon disse, sorrindo:

— Está bem, seu covarde. Vamos acertar nossos relógios. São onze e trinta no meu. Que tal nós dois entrarmos no teatro exatamente às onze e quarenta? — Voltou-se para Anne e perguntou: — Acha mesmo que quer assistir à execução?

— Não perderia isso. Que irá acontecer?

— Nada demais. Apenas uns poucos homens fortes vão obrigar uma moça indefesa a se demitir.

— Você age como se já tivesse visto isso muitas vezes.

— E vi. Não é raro surgir uma Terry King com possibilidade de chegar a Helen Lawson.

Encontraram Henry no elevador. Se ele ficou surpreso de ver Anne e Lyon juntos, não deu nenhum sinal.

Todo o elenco, com exceção de Helen, estava no teatro. As coristas sentaram-se no palco, algumas de calças compridas, outras enroladas em casacos de peles, todas de óculos, para esconder os olhos sem maquilagem. Tomavam café em copos de papel e pareciam aborrecidas. Neely, tensa, sentada à beira de uma cadeira, pronta para explodir.

Anne estava na quarta fila, com Henry e Lyon. Jenni-fer North entrou correndo e pedindo desculpas a cada um por ter dormido demais. O diretor, que conferenciava com o maestro, voltou-se para ela e disse:

— Não há mudança alguma no seu papel, princesa, por isso pode voltar para a cama por algumas horas ainda, se quiser.

Jennifer sorriu e desceu para a plateia. Henry fez-lhe um sinal para que sentasse ao lado deles. Reconheceu Anne e sorriu:

— Não é maravilhoso? A peça é um sucesso; se bem que eu não faça quase nada, estou contente por estar nela.

— Você está ótima no seu papel — disse Anne amavelmente.

— Obrigada. Não creio, porém, que meu nome vá levar alguém à bilheteria.

— Não se venda barato, menina — interrompeu-a Henry. — Quando a peça chegar a Nova York você estará em todos os jornais. Garanto que. terá um-contrato para o cinema dentro de seis semanas.

— Oh, Henry, eu adoraria isso. — Vibrava. — Juro. Mas só se for um contrato muito grande. Nada desses contratozinhos insignificantes.

— Às vezes se transformam em grandes contratos — disse Henry cuidadosamente.

— Sim, quando há talento, Henry. O que eu não tenho. Por isso, preciso de um ótimo contrato. Quando nos pagam bastante, têm que usar a gente. E têm de nos ensinar, treinar...

— Deixe que eu decida sobre isso. Se for pouco dinheiro, com um bom estúdio, e eu lhe disser para assinar, você assina. Com o fantasma da televisão por perto, já não é tão fácil conseguir um grande contrato.

— Então, talvez seja melhor ficar em Nova York. Tive uma oferta de Powers & Longworth para posar. Daria para ganhar muito bem se continuar na peça.

— Diga-me, Jennifer. — Persuasivo: — O que é que você quer? Um contrato no cinema? Ou uma carreira de modelo? Não pretendo me esforçar tanto se você realmente não se importa... E, por falar, nisso, o seu caso com Tony Polar é sério?

— Os jornais exageram. — Jennifer sorriu. — Adoro Tony, mas não acho que qualquer um de nós queira se casar já. E, depois, estou ainda legalmente casada com o Príncipe Mirallo.

— Os papéis estão praticamente assinados para a anulação. Não se esqueça do que deve fazer diante do juiz. Você é uma boa católica e desejava ter filhos. E o bastardo do seu marido não quer.

— Você é católica? — perguntou Lyon.

— Minha mãe era, meu pai não. Eles se divorciaram e eu nem fui batizada. Ninguém vai investigar, não é, Henry? "

— Faça o que eu digo. Você é católica. Quis casar na Igreja, o príncipe preferiu uma cerimónia civil. Daí por diante será fácil. Fale então sobre os filhos, que desejava ter. Anne será sua testemunha.

— Serei o quê? — estranhou Anne.

— Precisamos de uma testemunha. Pretendia lhe falar sobre isso, não se impressione. Será um tribunal fechado. Tudo o que você tem a dizer é que é amiga de Jennifer e que, antes de se casar, ela lhe confidenciou que pretendia ter muitos filhos, nem que tivesse que morar na Índia. Não se esqueça de insistir no assunto filhos.

— Mas será mentir sob juramento — argumentou Anne.

— Cruze os dedos — disse Henry.

Voltando a atenção para o palco, murmurou:

— Apertem os cintos... lá vamos nós.

Terry King estava no meio do palco, olhando para o diretor com uma expressão de incredulidade.

— Cortar a canção? — gritava ela. — Você está louco? Não leu, por acaso, as críticas?

— A peça está comprida demais, querida, e temos canções demais. — A voz dele se esforçava por parecer despreocupada.

— E daí? Corte outra canção. Você sabe muitíssimo bem que a minha é a melhor canção da peça.

— Já decidi — disse o diretor com ar cansado.

— Onde está Gil Case?

— Não está aqui, está ocupado com os letristas... Bill, ei, Bill Towley! — Um rapaz magro, ar juvenil, aproximou-se. — Bill, a cena de amor que você tinha com Terry está cortada. Estamos coreografando um novo solo de dança para você que vai estrear em Filadélfia. Em vez de dizer a Terry que a ama, dançará. Acho que isso vai dar mais movimento à peça.

Bill aceitou maravilhado e se retirou.

— E eu, que é que faço enquanto ele dança? Fico sentada no meu camarim? — A voz de Terry era aguda. — Já notou que, se for cortada a cena de amor e a canção, só obterei duas linhas no primeiro ato e um pequeno número no segundo?

— Esse número fica — respondeu o diretor. — E o coro dançará atrás de você, para, na segunda estrofe, ficar na frente do palco.

— E eu?

— Em vez de cantar a segunda estrofe, você se retira pela esquerda do palco, o holofote a acompanha e se apaga para dar tempo ao coro de tomar a dianteira.

— Isso é o que você pensa.

A moça apanhou o casaco e saiu do palco. Em seguida, abandonou o teatro. O diretor continuou a dar ordens e a fazer pequenos cortes, como se nada tivesse acontecido. Dez minutos depois, Terry voltou, acompanhada de um homem pequeno, com cara de urso, que se dirigiu à coxia e berrou:

— Que é que significa isso?

— Isso o quê? — perguntou o diretor inocentemente.

— Ouça, Leroy. Não pense que essa sua cara de inocente vai me enganar. Conheço esse método. Helen está com medo, só que desta vez Terry tem a sorte de ter cantado a melhor balada da peça. Não me diga que os letristas vão permitir que Helen corte a melhor canção que fizeram.

— Fale com eles — sugeriu Leroy.

— Tentei, estavam em reunião com Gil Case. Sabe que isso significa que ele terá que pagar a Terry quatrocentos dólares por semana para que ela diga duas linhas e cante uma estrofe?

— Terá de pagar, se ela resolver ficar.

— Então é isso. Vocês adorariam que ela renunciasse. Sim, porque se a despedirem terão de pagar da mesma forma, e pagar a sua substituta também.

— Ninguém está despedindo Terry King.

— Claro. Não têm razão para isso. Então, estão tentando forçá-la a se demitir.

O diretor sentou-se à beira do palco e falou, com uma paciência exageradamente forçada:

— Ninguém está tentando fazer com que Terry desista. Não estamos pensando em personalidades agora. Só olhamos para o espetáculo como um todo. Você como agente pensa apenas em sua cliente, e não o estou culpando por isso. Afinal, é o seu negócio. O meu negócio, entretanto, é pensar no espetáculo. Achamos que está longo demais. Estou fazendo os cortes que Gil Case, os escritores e todos nós achamos aconselháveis, sem pensar em quem será afetado.

O homenzinho atirou furiosamente a ponta de um cigarro sobre o grosso tapete do teatro e berrou:

— Não me venha com essa m... Você está seguindo as ordens que Case recebeu de Helen Lawson. Ele não tem outra escolha senão proteger aquele velho couraçado. Com a voz que ela tem, precisa realmente se proteger contra uma boa cantora.

— Não entremos para o campo pessoal — interrompeu-o Leroy.

— Por quê? Nós dois sabemos que ela está velha e antiquada. Se pretendesse começar a carreira hoje, jamais passaria da primeira audição.

— Acho que podemos parar por aqui. — A voz de Henry veio da escuridão da plateia.

O agente de Terry voltou-se.

— Não o tinha visto, Sr. Bellamy. Como vai? Ouça, não desejo levar nada para o terreno pessoal, mas o meu dever é lutar por minha cliente, da mesma forma que o senhor teve provavelmente que lutar por Helen Lawson vinte e tantos anos atrás.

— Nunca ataquei uma grande estrela pelas costas para defender Helen — gritou Henry. — Com todos os diabos, quem é você senão um mexeriqueiro, que tem uma mesa alugada em algum lugar da Rua Sessenta e Quatro e a petulância de vir aqui insultar uma das maiores estrelas da atualidade?

O homenzinho assumiu um tom bajulador:

— Sr. Bellamy... que é que o senhor faria se estivesse em meu lugar?

— Dependeria do cliente. Se fosse Helen Lawson, nós nos retiraríamos imediatamente, com dignidade. Porque para Helen Lawson, mesmo uma Helen Lawson que estava começando, haveria sempre um espetáculo melhor e um papel mais interessante. No caso de sua cliente, claro, apanharia todas as migalhas que me fossem oferecidas. Ficaria com duas linhas e uma estrofe e exigiria o pagamento, mesmo à custa dos gracejos de todos os produtores da Broadway. O funeral seria dela, não meu. Talvez encontre outra cantora para agenciar quando tiver enterrado esta. Você preferirá deixá-la na peça, para não perder os miseráveis dez por cento, e disso é óbvio que tem medo. Talvez essa seja a última peça que ela pode conseguir e você não parece disposto a perder algum dinheirinho fácil.

Terry King interrompeu-os gritando:

— Ouça, posso cantar melhor que Helen Lawson, na hora que quiserem! Eu e Al não estamos com medo. Esta droga de espetáculo não é o único. E podem tomar nota de que serei uma estrela muito maior que Helen Lawson. Saio já. E com dignidade.

— Querida, espere — suplicou-lhe o agente. — É isso exatamente o que eles querem que você faça.

— E você, que quer que eu faça? Que estreie em Filadélfia e em Nova York fazendo uma simples ponta? Apenas para que você possa fazer os seus dez por cento?

— Você sabe muito bem que isso não vem ao caso. Poderíamos ganhar o dobro disso cantando em boates. Concordamos que uma peça na Broadway era o caminho certo para um contrato no cinema.

— Contrato no cinema! — voltou Henry. — Ora, essa maneira de pensar está superada desde os filmes de Ruby Keeler. Qualquer agente que pense que tudo o que é preciso para arranjar um contrato no cinema é aparecer na Broadway está perdendo seu tempo. Claro que a Broadway ajuda: por exemplo, quando se faz realmente alguma coisa na Broadway. A menos que sua cliente aceite um contrato comum, que, aliás, posso conseguir mesmo sem essa peça. Não um verdadeiro contrato, porque só uma verdadeira estrela consegue isso.4 E um agente faz uma estrela nunca permitindo que apareça em qualquer lugar, a menos que dê a impressão de que ela é uma estrela, seja na Broadway ou num simples bar. Como eu disse, acho que você não tem fé na sua cliente, pois vai permitir que ela apareça numa simples ponta.

Terry agarrou o agente pelo braço.

— Vamos, Al. Vamos sumir daqui.

— Espere. Você ainda tem um contrato e uma matinê para fazer — lembrou Al.

— Não pisarei no palco com todos esses cortes.

— Acho que vai ser obrigada — respondeu-lhe Henry. — Você tem ainda que nos dar duas semanas de aviso prévio e estrear na Filadélfia.

— Não serei humilhada desta maneira. Não aparecerei em Filadélfia, representando uma ponta — insistiu Terry.

— Que barulho é esse? — Ouviu-se a voz de Gil Case, que chegava. — Quem é que não vai aparecer?

— Sr. Case! — Terry correu para ele quase chorando. — O senhor cortou o meu papel. E eu não posso aparecer no palco fazendo uma ponta.

— Eu lhe disse que ela tem de fazer isso — disse Henry devagar. — Ainda que peça demissão imediatamente.

— Espere um momento — disse Gil com bondade. — Ninguém quer ferir ninguém mais do que é necessário.

Olhou para Terry com simpatia e continuou:

— Minha pobre criança. Não notei como o seu papel ficou pequeno senão depois que terminamos os cortes. É, na verdade, pouco mais que uma ponta, agora. — Parecia penalizado.

— Não posso mais fazê-lo — insistia Terry.

— Você não vai ter de fazê-lo — sorriu Gil.

— E a respeito da matinê? — perguntou Henry.

— Esqueça isso. O papel é tão pequeno que poderá ser feito pela substituta. — E, pondo o braço à volta dos ombros de Terry, continuou: — Vamos até o meu quarto, e você também, Al. Terry poderá assinar a rescisão do contrato e eu lhe pagarei dois meses de salário como prémio. E sabe que mais? Chamarei o meu assessor de imprensa e ele notificará os jornais de Nova York de tal forma que você ainda ganhará publicidade com isso. Minha querida... não lhe dou uma semana para que todos os produtores da Broadway estejam atrás de você. Não é qualquer uma que sai assim de uma peça de Helen Lawson.

Conduziu-a para fora do teatro, sempre acompanhado do agente.

Assim que os três saíram, Henry foi até o palco e teve um breve entendimento com o diretor, que sacudia a cabeça concordando, e depois gritou:

— Neely O'Hara! — Ela correu até onde ele estava. — Você acha que pode aprender a canção até as duas e meia?

— Já sei as duas de cor.

—- Está bem, então vamos à primeira canção e ao número de dança. Vamos, minha gente, temos muito que fazer. Neely, vá ao guarda-roupa e veja se a roupa de Terry lhe serve.

— Vamos sair um pouco. Acho que todos nós precisamos de ar puro — disse Henry.

Fora, passaram por um silêncio embaraçoso.

— Acho que vou dormir — disse Jennifer, e caminhou em direção ao hotel.

Henry ficou olhando silenciosamente para o espaço. Lyon apertou a mão de Anne.

— Acho tudo isso revoltante — disse Anne, tentando ainda sorrir. — Mas acredito que assim é o teatro.

— Isto não é teatro — resmungou Henry — e cheira mal. Não importa de que modo o chamemos, cheira mal. Tenho vontade de vomitar. Eu parecia Joe Louis, num ringue, lutando contra dois anões. Bem, agora vou chamar Helen e contar as boas-novas. — Caminhou, lentamente para o hotel.

Lyon conduziu Anne para o restaurante,- do outro lado da rua. Pediu ovos para dois.

— Henry está errado — voltou ao assunto. — Nós arranhamos a gatinha e ela não reagiu. E o agente é um agente comum e não um Henry Bellamy. Ele é um campeão e há vinte anos já era um campeão. E vinte anos atrás, se alguém arranhasse Helen Lawson, teria quebrado as unhas. Henry não foi torpe. Aquela gente é que não é páreo para ele.

— Mas cortaram quase todo o papel de Terry. Como é que ela poderia lutar? O que ela disse tem sentido.

Lyon atacou os ovos.

— Você acredita que as canções de Terry serão cortadas? Uma vez que Terry tenha assinado a demissão e esteja no trem, em direção a Nova York, tudo voltará ao que era. Se Terry tivesse teimado em ficar, as canções ficariam fora da peça até o fim da excursão. Helen teria feito todos infelizes, mas na estreia de Nova York as canções estariam de volta e Terry teria ganho. É como um jogo de pôquer. Terry tinha todas as cartas, Henry blefou e ganhou.

Quinze minutos depois, Henry se juntou a eles. Comeu um sanduíche de galinha, reclamando que as úlceras o estavam maltratando novamente. À uma e meia, alguns componentes do coro entraram para lanchar. Sentaram-se em pequenos grupos, comentando os últimos acontecimentos. O assunto do dia era Neely.

Anne, porém, resolveu não visitar Neely nos bastidores antes da matinê. Conhecendo-a bem, sabia que o caos devia ser completo. Ficou ao lado de Lyon atrás da plateia, o teatro lotado. Neely desempenhou seu papel com competência profissional, e, na opinião de Anne, sua atuação não acrescentava nada de novo à peça; por outro lado, não lhe causava nenhum prejuízo. O papel era tão pequeno que significava muito pouco.

— Anne, sei que você tem alguma coisa a ver com isso — sussurrou Neely, quando Anne foi aos bastidores para felicitá-la. — Helen me contou tudo hoje. Anne, adoro você. Para mim, você é como uma irmã... Oh, este é Mel.

Anne olhou para o jovem, que estivera a um canto, tentando passar despercebido. Ele se adiantou, apertou a mão de Anne e voltou para onde estivera. Alto, magro, seus olhos escuros se fixavam em Neely com visível adoração, Anne simpatizou imediatamente com ele e se sentiu muito feliz por Neely.

— Não acha que ela esteve sensacional? — perguntou Mel, orgulhoso.

— Maravilhosa — respondeu Anne.

— Na segunda-feira, em Filadélfia, vão pôr novamente a canção e a cena de amor no texto; Helen Lawson me disse que vai providenciar um novo guarda-roupa para mim em Nova York. Acha que os vestidos de Terry são muito sofisticados para o meu tipo.

— Sua amiga esteve simplesmente ótima — gritou Helen, quando Anne entrou no seu quarto, naquele dia.

Anne estava surpresa. O desempenho de Neely fora bom, o entusiasmo de Helen era exagerado.

— Fez com que aquela vadia parecesse doente — continuou. — Neely é justamente o tipo que o papel exige, isto é, uma garota inocente. Preste atenção quando ela cantar a canção de amor na segunda-feira. Uma garota inocente cantando aquela canção vai entusiasmar o público.

Anne dirigiu-se à porta.

— Onde é que você vai? — inquiriu Helen.

— Lyon Burke está esperando por mim.

Helen olhou-a de modo esquisito.

— Ouça, eu vi você de mãos dadas com ele na festa de ontem. Se quer brincar com ele em New Haven, está tudo bem. Mas, lembre-se, minha querida, de que o que realmente interessa é esse pedaço de vidro que está no seu dedo.

— Pretendo devolvê-lo.

— O quê? — gritou Helen. — Anne, pelo amor de Deus, não vá levar a sério o companheiro de uma noite.

Anne virou-se bruscamente e isto fez Helen amaciar no mesmo instante.

— Olhe aqui, meu anjo... você é jovem. Sei como são essas coisas e, na verdade, Lyon é um pedaço de homem. Divirta-se, a gente vive só uma vez. Agora, não desista de Allen por uma tolice.

Anne sorriu.

— Vai voltar a Nova York hoje? — perguntou Helen.

— Acho que sim.

— Amanhã de manhã estaremos em Filadélfia para ensaiar. Vamos repor aquela canção e cuidar de outras coisas; sua amiga terá um bom papel; já disse a Gil Case que não procurasse outra para Nova York. Estou muito satisfeita com Neely.

— Boa sorte na segunda-feira — desejou Anne, sem muito entusiasmo.

— Vejo-a depois, com Gino e Allen. Lembre-se de que temos grandes planos para esta noite.

Allen! A estreia! Gino!

— Então até lá — gritou Helen alegremente.

Lyon estava esperando do lado de fora.

— Já está livre dos seus compromissos sociais? — perguntou bem-humorado.

Concordou com a cabeça e ele a tomou pelo braço.

— Tenho as nossas passagens — disse ele. — Temia que tivéssemos de ficar aqui. Henry fará isso e nos encontrará em Filadélfia, na segunda-feira.

Anne sentiu uma onda de contentamento ao notar que Lyon achava natural que, de agora em diante, ela estivesse "com ele". Levou, um choque, porém, quando se lembrou de que teria de enfrentar Allen. Como tudo seria simples se ela pudesse sentar-se e escrever-lhe uma carta dizendo: Meu caro Allen. Junto a esta estou lhe enviando um anel de brilhantes de dez quilates. Acho você ótimo, acontece que me apaixonei por outro rapaz, depois de uma longa separação de quarenta e oito horas.

Jantaram no trem e se dirigiram ao apartamento de Lyon sem comentários. Anne sentiu um arrepio ao entrar. O apartamento parecia quase familiar. Como se lesse seus pensamentos, Lyon disse:

— Este apartamento na verdade é seu. Sempre o imaginei assim.

— Você quer dizer que alguma vez pensou em mim... mesmo antes?

Ele a tomou nos braços.

— Anne, então você acha que eu a vi pela primeira vez em New Haven?

— Não sei... nunca me ocorreu que você pudesse reparar em mim..

— Bem, não me lembro de tê-la visto olhar para mim alguma vez.

— Acho que sempre o amei. Só não queria admiti-lo... nem a mim mesma.

— Pense no tempo perdido...

— A culpa é sua. O que é que uma moça pode fazer? Simplesmente chegar à sua frente e declarar: "Sabe, apesar de nos termos conhecido há pouco, você é exatamente o homem por quem eu esperava".

— É uma ideia maravilhosa. Acredite, a primeira garota que fizer isso vai me impressionar. Especialmente se for bonita como você. Agora, sente-se, vou preparar uma bebida para nós. Isso poderá relaxá-la.

— Acha que estou nervosa?

Lyon entregou-lhe o copo.

— Absolutamente. Mas é que tudo é tão novo para você, isto é... eu, o sexo, tudo.

Sentou-se ao lado dela e acariciou seus cabelos. Anne aconchegou-se a ele.

— Sinto-me mais ligada a você do que a qualquer outra pessoa neste mundo. Quero saber de tudo a seu respeito. Não quero que haja segredo algum entre nós. Devemos ser uma só pessoa, Lyon. E eu lhe pertenço.

Lyon levantou-se e sorveu sua bebida, pensativo.

— Fico imaginando se seria capaz de corresponder a essa espécie de amor, Anne. Porque não quero magoá-la.

— Você nunca me magoará, Lyon. Você já me deu muito. Mesmo que nada mais houvesse entre nós eu lhe seria grata pelos dois dias mais maravilhosos da minha vida.

Ele sorriu e disse, apontando para o anel no dedo de Anne:

— Não estaremos esquecendo de alguma coisa?

— Isso acabou. Vou devolver o anel.

— Anne... o que eu sinto por você... é verdadeiro. Quero que você saiba disso. Mas já lhe dei tudo que me é possível dar. Eu...

— É o bastante, é tudo o que quero. O seu amor. Não amo nem nunca amei Allen. Jamais pensei realmente em casar com ele. Tudo aconteceu tão rapidamente que fui arrastada pelos acontecimentos; mesmo que não tivesse conhecido você, tenho a certeza de que jamais chegaria a me casar com ele.

— Gostaria de acreditar nisso, Anne. Daria paz à minha consciência.

— À sua consciência? Então você não me ama?

Ele olhou para o espaço, como que procurando uma resposta. Viu os olhos dela se encherem de lágrimas, tomou-a pelos ombros e disse:

— Anne! Sim, é claro que a amo e a quero. Mas o seu amor tem algo que me assusta e eu me pergunto se o amor que eu posso lhe dar será suficiente.

Anne fechou os olhos.

— Oh, Lyon, você me assustou. É claro que você não pode me amar da mesma maneira que eu o amo. Não espero isso, pois ninguém é capaz de amar alguém tanto quanto eu o amo. Eu só quero que me ame, é tudo o que peço, e deixe que eu o ame.

Acordou nos braços dele na manhã seguinte. Ficou assim parada, olhando para o seu belo perfil. Lyon era tão bonito quando dormia! O ato do amor tinha sido doloroso novamente. Anne, porém, sentiu-se recompensada pelo intenso prazer que proporcionara ao amado. Pela primeira vez na vida, sentiu que pertencia a alguém. Todas as coisas que jamais sonhara discutir, até mesmo com uma amiga, por achar que eram íntimas demais, tinha discutido livremente com Lyon. O método do ritmo, as precauções...

Levantou-se e entrou na cozinha. Pôs água a ferver para o café e os ovos, antes mesmo de olhar para o relógio. Quando olhou, era meio-dia. Lyon estava acordado quando ela pôs o café e os ovos na mesinha. Elogiou os ovos, perfeitos. O café, uma obra de arte. Depois, leu o Times enquanto ela tomou um banho de chuveiro. Quando ela apareceu vestida para sair, com o casaco no braço, ficou surpreso.

— Me abandonando? — Puxou-a para o sofá. — Você é a namorada mais apressada que já tive. — Beijou-lhe a nuca.

Fez força para se libertar e disse:

— Lyon, não posso ir ao escritório amanhã com estas mesmas roupas. Preciso de meias, de roupas de baixo... Tenho de ir para casa.

Ele olhou para o relógio.

— Concordo. Então irei buscá-la às sete, para jantar. Prepare-se para passar a noite aqui.

Anne o beijou quase com gratidão. Sentira um desejo súbito de que ele não a convidasse para voltar. Deu-se até ao luxo de pegar um táxi, pois eram já três horas e tinha muito a fazer antes das sete. O mundo, entretanto, caiu sobre sua cabeça no momento em que ela fechou a porta do quarto e viu um enorme vaso de flores, com um cartão de Allen: Espero que tenha sentido tanta, falta de mim como eu senti de você. Chame-me no instante em que chegar. Eu a amo. Allen.

Até sexta-feira passada, aquele quarto conhecera uma outra pessoa; agora, ela parecia uma estranha dentro dele. Tinha se desprendido dele, como se desprendera de Lawrenceville. Olhou para as rosas. O assunto não podia ser adiado. No dia seguinte, embarcaria para Filadélfia com Lyon, e Allen pretendia ir também... e Gino.

Começou a discar o número de Allen; parou no meio, desligou. Talvez pudesse mandar um telegrama. Não, precisava devolver o anel, pendurado no seu dedo, como se subitamente tivesse ficado muito pesado.

Discou novamente e Allen atendeu no segundo toque.

— Alô! Como estava New Haven e o velho couraçado?

— A peça é um sucesso absoluto.

— Já sei. Gino encontrou ontem no El Morocco algumas pessoas que estiveram em New Haven.

— Que tal estava o Morocco?

— Não fui lá. Você se lembra? Sou um homem comprometido. Sentei-me em casa, as duas noites, com um bom livro, à espera da minha garota.

— Allen... Allen, preciso lhe dizer uma coisa — interrompeu-o o mais depressa que pôde, pois sabia que se parasse não teria coragem de ir até o fim. — Allen, não sou mais sua garota, não me casarei com você e quero lhe devolver o anel.

Houve um longo silêncio; e, então, Allen disse:

— Anne, espere que já vou até aí.

— Não, Allen... posso encontrá-lo em algum lugar e devolver o anel.

— Não quero o anel. Só quero falar com você.

— Não há nada para ser dito.

— Não há? Por Deus, Anne! Durante três meses estivemos saindo juntos e eu me apaixonei por você; agora quer acabar tudo com um telefonema. Que foi que aconteceu? Disseram-lhe alguma coisa a meu respeito em New Haven? Ouça, não nego que fiz uma série de loucuras no passado; isso foi muito antes de encontrar você. Nada tinha importância até o dia em que a conheci. Acho que alguém fez com que você ficasse assustada comigo e ea quero vê-la para saber de tudo. Não vou aceitar sua decisão sem que você ouça a minha defesa primeiro.

— Allen, ninguém me falou de você em New Haven e será inútil falar comigo.

— Vou já para aí.

— Allen, não venha. Eu me apaixonei por outro.

Desta vez, o silêncio foi tão prolongado que Anne disse:

— Allen! Você compreende?

— Quem é ele?

— Lyon Burke.

A risada de Allen foi extremamente desagradável.

— Você está falando do inglês, que está morando no meu apartamento? Bem... tenho o prazer de, pelo menos, ter proporcionado a vocês um lugar decente para a lua-de-mel.

— Allen, aconteceu, simplesmente.

— Claro, de repente. E de repente você se desapaixonou por mim.

— Nunca disse que estava apaixonada por você. Lembre-se disso. Você é que insistiu nesse noivado.

— Está bem, Anne. Boa sorte.

— Como posso devolver a você o anel?

— Não o pedi de volta.

— Mas eu quero devolvê-lo.

— O que você quer dizer é que, provavelmente, Lyon Burke ficará ofendido de vê-lo em seu dedo. Ou será que ele já o substituiu? Pelo que ouvi falar, o único anel que ele pode dar é uma argola no nariz.

— Allen, não vamos terminar assim.

— Que é que você espera? Que eu lhe mande um telegrama de felicitações? Menina, isto é o que eu recebo por ter, pela primeira vez na vida, tratado uma garota de maneira decente. Nós nos veremos por aí. Com Lyon Burke, o caminho para o altar será bastante longo e demorado, pode acreditar.

— Por favor, Allen. Posso encontrá-lo amanhã, na hora do almoço, para lhe devolver o anel?

— Não, meu caro iceberg. Pode ficar com ele.

— O quê?

— Fique com ele, sua... Posso comprá-lo às dúzias, se quiser. Você, certamente, vai precisar dele, é ideal para pôr no prego. Melhor ainda, use-o. Deixe que ele lhe corte a carne quando alguém lhe fizer o que você me fez. Tenho a vaga impressão de que Lyon Burke será o primeiro.

O telefone foi desligado com violência.

Anne discou imediatamente e disse:

— Allen, sei que você está furioso comigo e que tudo o que falou foi uma explosão de raiva. Por favor, continuemos amigos.

— Para amigos prefiro os homens.

— Está bem. Mas não posso ficar com o anel.

— Se é por isso que chamou, esqueça.

—- Allen, espere! Quero lembrá-lo de Gino. Ele prometeu ir a Filadélfia, amanhã.

— Você quer dizer que vai manter esse nosso compromisso? — Havia um pouco de esperança em sua voz:

— Bem, o nosso não. Já não poderia ir com você. Agora, não há motivo para que Gino não vá. Helen espera por ele.

— Essa não; você deve estar brincando.

— Por quê? Helen reservou acomodações para ele. Não vejo motivo para que Helen fique decepcionada por nossa causa.

— Não vê? Bem, acho que já ouvi tudo. Você, por acaso, imagina que Gino queira ir? Imagina que é um prazer para ele entrar em combate com o velho couraçado?

— Pare de chamar Helen assim! Ela é uma mulher atraente e seu pai devia ficar orgulhoso na companhia dela. É uma grande estrela e...

— Uma mulher grosseira e sem compostura. Fique sabendo que meu pai pode ter as mais lindas garotas da cidade. E não esqueça nunca que este mundo é dos homens, e que as mulheres apenas reinam nele enquanto são jovens e muito bonitas. Você vai constatar isso um dia. Helen Lawson pode ser a maior estrela da Broadway; no momento em que desce do palco, não passa de uma velha desbocada. Claro que Gino iria amanhã... e não pense que ele não tentou, por todos os modos, se livrar disso. Eu o forcei. Não é de morrer de rir? Tudo para agradá-la. E, além disso, passei o fim de semana tentando achar um meio de fazê-lo passar a noite em Filadélfia, porque ele havia concordado em ir, mas jurava voltar a Nova York no momento em que terminasse o espetáculo. Finalmente, eu o convenci de que, se ele passasse a~ noite com Helen, seria como um presente de casamento para mim. Você pede imaginar uma coisa dessas? Eu comprometendo meu próprio pai, apenas para agradá-la? E dizer que enquanto eu estava tentando convencer Gino, você... — Sua voz sofreu um colapso. — Bem, em todo caso algo de bom resultou de tudo isso: Gino foi poupado. E agora posso passar a bola para Lyon Burke. Vamos deixar que o pai dele durma com sua amiga.

E desligou.

A estreia em Filadélfia foi ainda mais brilhante que a de New Haven. Anne estava surpresa por ver a quantidade de modificações introduzidas na peça em tão curto espaço de tempo. Sentou-"se ao lado de Lyon e se identificou mais com o elenco do que propriamente com a audiência. Ficaram de mãos dadas e ela se perguntava se ele havia notado a ausência do anel, depositado num envelope, na caixa-forte que resolvera alugar. O brilho do solitário parecia um protesto contra a solidão em que foi deixado. Lyon chamou sua atenção para o palco. Era o grande momento de Neely. A canção fora incluída novamente na peça. Anne chegou-se à beirada da poltrona quando a amiga começou a cantar. Sua interpretação era completamente diferente da de Terry King, que, no seu insinuante vestido de cetim vermelho, parecera desencantada e deprimida. Com um vestido azul e uma gola à Peter Pan, Neely parecia desamparada e sozinha, na voz um lamento emocionante. A canção ficou ardente e muito sentimental, os aplausos foram estrondosos. Durante a representação, Anne olhou várias vezes para as quatro poltronas vazias da quarta fila, que Helen tinha reservado. Sua poltrona teria sido a do meio, entre Gino e Allen. Não comunicara ainda a ausência de Gino a Helen, por temer que isso afetasse o seu desempenho.

Quando a cortina se fechou, às onze e quinze, não havia dúvidas sobre o sucesso absoluto da peça. Até a habitual expressão preocupada de Henry Bellamy desaparecera. Passou por Lyon e por Anne, nos bastidores, dizendo-lhes:

— A festa vai ser no Warwick.

— Você faz mesmo questão de ir a essa festa? — perguntou Lyon, olhando para o relógio.

Anne não pensara nessa possibilidade, achava que Henry tinha reservado acomodações para todos no hotel. Foram ao teatro diretamente da estação. Inútil, tinha enfiado uma camisola e uma escova de dentes na bolsa; notara, porém, que Lyon estava sem a sua maleta.

— Se dermos um pulo até os bastidores, e cumprimentarmos Helen e Neely rapidamente, poderemos tomar o trem de meia-noite e vinte e cinco para Nova York.

— Como você quiser, Lyon.

— Acho que será melhor tomar nossa bebida no carro-restaurante. Precisamos de uma boa noite de sono e esta festa é daquelas que vão durar até a madrugada.

Com muito custo, conseguiram passar entre a multidão que enchia o patamar dos camarins. Anne foi diretamente ao camarim de Neely. Ela estava na porta, falando a alguns jornalistas, Mel ao seu lado, cheio de orgulho.

— Neely, você esteve maravilhosa. — Anne abraçou-a.

— De verdade? Vou melhorar muito quando me acostumar ao papel e quando tiver o novo guarda-roupa, feito sob medida para mim.

Lyon felicitou-a. Neely pareceu um pouco perplexa, quando perguntou:

— Onde está Allen?

— Eu lhe conto em outra ocasião — disse Anne, baixinho.

— Aconteceu alguma coisa? Meu Deus, Helen parecia uma adolescente porque Gino estava na plateia esta noite. E você, não está com Allen?

Anne encabulou. A voz clara de Neely podia ser ouvida no fim do corredor.

— Allen não está aqui — falou por entre os dentes.

— Isso se nota — respondeu Neely. — Ei, o anel? Onde está o anel?

— Neely, falo com você em outra ocasião. Preciso cumprimentar Helen.

— Se Gino não vem mesmo é melhor que você saia já da cidade.

Quando conseguiram chegar ao camarim de Helen, ela se livrou de uma porção de pessoas que estavam à sua volta e gritou, alegremente, estendendo os dois braços para Anne:

— Alô! Onde está o pessoal?

— Eles não vieram.

— O quê?

— É uma história muito comprida, Helen.

— Aquele filho da mãe... que foi que aconteceu?

— Conto mais tarde.

— É melhor que a desculpa seja boa. Entre, enquanto mudo de roupa. Conte tudo.

— Helen... nós... Lyon e eu vamos tomar o trem de meia-noite e vinte e cinco para Nova York.

— Você está brincando?

Anne sacudiu a cabeça em negativa.

— Quer dizer que não vai à festa?

— Tenho que estar no escritório amanhã cedo, Helen.

— Bolas! Se. eu quero que você fique aqui é o menos que Henry pode fazer por mim. Ele já foi embora, portanto, fica você. — E, para todos os que estavam no camarim, gritou: — Pessoal, a festa é no Warwick. Agora, desapareçam que eu vou mudar de roupa.

Houve um murmúrio e despedidas misturados aos últimos elogios. Quando ficaram a sós, Helen disse a Anne e Lyon:

— Lyon, espere no patamar. Anne pode sentar aqui enquanto eu troco de roupa.

Lyon olhou para o relógio.

— É melhor sairmos já, Anne, se quisermos apanhar o último trem.

— Que m...! Henry não deixou nem você para substituí-lo? Da próxima vez, só falta me mandar aquele cara de coruja do George Bellows! Henry vai ouvir umas boas! Quem é o cara que vai me acompanhar à festa?

— Por que Henry não ficou? — perguntou Anne.

— Porque eu lhe disse que Gino estaria aqui. E é isso que eu quero saber. Que diabo aconteceu?

Lyon olhou novamente para o relógio.

— Vou chamar um táxi, Anne. — Sorriu para Helen e saiu do camarim.

— Gente, todo mundo está me dando o bolo esta noite — disse Helen, enquanto começava a tirar a pintura do rosto.

— Helen, o espetáculo foi um sucesso — começou Anne — e sinto muito ter que ir embora, mas Lyon quer tomar o último trem.

— Deixe-o tomar, meu Deus do céu. Que é que isso tem a ver com você?

— Não tenho reserva no hotel. — Anne procurou uma desculpa.

— E daí? Tenho uma suite com duas camas. Pode ficar comigo.

— É que eu vim com Lyon...

Os olhos de Helen se abriram demais.

— Ah, compreendo. Ainda brincando com Lyon. Jesus, você é igual ao resto. Você, a garota de classe, com quem eu me preocupei, a amiga do peito... me deixando assim. Pode ir. Inferno, esta é a história da minha vida. Eu dou tudo de mim... sempre confio nas pessoas... — Lágrimas começaram a correr pelo seu rosto. — Eu acreditei em você, Anne... minha única amiga. Mas você é igual a todo mundo; me dá um pontapé quando eu mais preciso de você. E aqui estou eu, na minha noite de estreia, sozinha, sem um cara que me faça companhia; e a minha melhor amiga só pensa em...

— Helen, sou sua amiga. Talvez haja um trem mais tarde. Vou falar com Lyon.

— Não, depois desse trem só há um de carga — disse Helen, tentando secar a pintura do rosto, que escorria. — Mas vá, estava maluca quando pensei que você era diferente.

— Espere, vou falar com Lyon. — E saiu correndo. Lyon estava ao lado de um táxi. Anne correu para ele.

— Lyon, não podemos deixá-la sozinha. Está sofrendo tanto!

Lyon, pasmado:

— E não há nada que possa fazer Helen sofrer.

— Você não a compreende. Está chorando, abandonada, na noite de estreia.

— As lágrimas vêm muito facilmente para Helen. E desaparecem assim, também. Ouça, Anne, a solidão das Helen Lawson deste mundo é criada por elas mesmas.

— Não podemos fazer isso com ela.

— Tudo o que devemos a Helen é lealdade em nossas relações comerciais. Coisas simples, como a crucificação de Terry King, por exemplo. Isso ela entende, e exige. Mas não há nenhuma cláusula em meu contrato que me obrigue a acompanhá-la a festas.

— Mas Lyon, ela é minha amiga.

— E você prefere ficar?

— Sinto que devemos.

Lyon sorriu:

— Está bem, então. Adeus, amiga — disse e rapidamente entrou no táxi.

No primeiro momento, não podia acreditar no que acontecera. O táxi, entretanto, fora embora. Não sabia se estava furiosa ou assustada. Teria dado o bolo em Lyon? Ou o bolo era dele? Se tivesse ido com ele, isso seria abandonar Helen. Abandonara Allen também. Sentiu que começava a chorar. Tudo parecia reduzido a pedaços:-Tinha ferido a todos e, mais ainda, a ela mesma.

A festa no Warwick foi uma repetição de New Haven, só que desta vez Neely estava lá como uma das principais atrizes. Reuniu gente de Nova York, mais jornalistas, e Helen, bebendo muito, parecia a bem-humorada e risonha estrela de sempre. No camarim, Anne não pudera explicar a ausência de Gino. Por isso, ficou a um canto, durante a festa, olhando, sentindo-se por fora de tudo, preocupada com Lyon, entorpecida. Às duas horas da manhã, sentiu uma pontinha de inveja quando viu Neely e Mel saírem silenciosamente. Lyon, então, devia estar chegando a Nova York. Estaria furioso? Infeliz?

Às três da manhã foram à suite de Helen e a atriz abriu uma garrafa de champanha. Serviu-se generosamente e exigiu:

— Muito bem. Agora me conte: o que foi que aconteceu com Gino?

Anne procurou as palavras exatas.

— É tudo minha culpa, acho — disse cuidadosamente —, pois rompi o noivado com Allen.

— Por quê?

— Bem... Lyon e eu...

— E daí? — perguntou Helen. — Notei que vocês estavam juntos e tudo o mais, mas que é que isto tem a ver com o seu noivado?

— Não podia continuar noiva de Allen, se estou apaixonada por Lyon.

— Você está brincando? Não está pensando que ele vai se casar com você só porque a levou para a cama, está?

— Claro que vai.

— Por acaso mencionou casamento?

— Helen, isso aconteceu apenas há três dias.

— E onde está o seu grande Romeu neste momento?

Anne não respondeu. Helen apressou-se a manifestar o seu ponto de vista:

— Ouça, se um cara está apaixonado pela gente, fica com a gente. Allen, por exemplo, ficaria. Por isso é que Gino não veio. Provavelmente pensa que sou tão vulgar quanto você.

— Helen!

— Sim, você acha que tem classe agindo dessa maneira? Usa o anel de noivado de um cara e cai na cama com outro. E ainda me suja aos olhos de Gino. Claro, ele pensa que somos da mesma espécie. Teme agora que eu possa fazê-lo sofrer da mesma maneira que você fez seu filho sofrer.

— O meu caso com Allen não tem nada a ver com você e Gino.

— Então, por que é que ele não está aqui? Sei que gostou muito de mim. Divertimo-nos tanto juntos. Se não fosse você se atirar nos braços de Lyon Burke, ele estaria comigo aqui neste momento. Perdi o meu homem só porque você é uma vadiazinha. — Anne cruzou a sala e apanhou o casaco.

— Aonde acha que vai? — perguntou Helen, enquanto enchia novamente o copo.

— A qualquer lugar, bem longe de você.

— Ah! O único lugar para onde você vai, daqui para a frente, é para baixo. Acha que alguém se preocupa com você? Você e o seu narizinho arrebitado? Eu, pelo menos, chamo as coisas pelos nomes certos. Você bancou a grande dama. Claro, enquanto estava usando aquele enorme brilhante, você era alguém. Até pensei que você devia ter algo de diferente se Allen Cooper queria se casar com você. Agora você não é ninguém, é só mais uma dessas que costumam dormir com Lyon Burke.

— E eu que pensei que você fosse minha amiga — conseguiu dizer Anne.

— Amiga? Quem é você para que eu seja sua amiga? Uma droga de secretária e uma grandissíssima chata. E ainda por cima perco um sujeito que me adora. — Levantou-se, mal se sustentando sobre as pernas. — Vou para a cama. Pode dormir no sofá, se quiser.

A fúria de Anne era tão grande que a voz saiu calma:

— Helen, você acaba de perder a única verdadeira amiga que já teve.

— Pobre de mim, se tivesse de depender de amigas como você — disse Helen, o rosto se contorcendo.

Anne se dirigiu à porta do quarto.

— Adeus, Helen. E boa sorte.

— Não, minha cara. Quem vai precisar de boa sorte é você. Tudo que lhe resta agora são mais alguns momentos de intimidade com Lyon Burke, antes que ele se enjoe de você. E olhe que ele se enjoa muito facilmente. Eu sei, porque já tive a minha vez com ele há seis anos. — Sorriu ao ver incredulidade nos olhos de Anne. — Sim, minha cara. Eu e Lyon. Eu estreava uma peça nova e ele tinha justamente começado a trabalhar com Henry Bellamy. Ele soube fazer a coisa"... Fez a encenação completa do grande romance. Gostava de ser visto comigo. Pelo menos, não era a ingénua que você é. Tomei a coisa tal qual era. Eu me diverti enquanto pude, e quando acabou saí para outra. E, acredite, eu tinha muito mais a oferecer do que uma pobre secretária.

Anne abriu a porta e saiu correndo, enojada e furiosa. Quando chegou ao elevador, parou de repente. O seu pânico crescia à medida que revirava o conteúdo de sua bolsa. Não trouxera dinheiro. Apressou-se tanto a encontrar Lyon que não se tinha dado ao trabalho de descontar um cheque. Fez uma última busca e encontrou oitenta e cinco centavos. Eram mais de quatro horas da manhã. Não podia chamar Neely a essa hora, também não poderia ir a pé a Nova York.

Sentou em uma cadeira perto do elevador. Na entrada do hotel, poderia esperar e chamar Neely... talvez às nove horas. Meu Deus, fizera a maior confusão. Experimentou uma enorme sensação de perda. Helen não era sua amiga, pensando bem, nunca fora... Todos tinham avisado, e avisado a respeito de Lyon Burke, também. Lyon e Helen. Não, não podia ser; mas Helen não diria uma coisa dessas se não fosse verdade. Oh, Deus! Por que Helen contara aquilo?! Começou a soluçar, escondendo o rosto nas mãos. Ouviu quando o elevador parou. Passou o lenço nos olhos e baixou a cabeça. Uma moça saiu dele e passou por ela, para, logo depois, parar e voltar-se.

— Você não é Anne?

Anne passou novamente o lenço nos olhos. Jennifer North.

— Que é que há de errado? — perguntou Jennifer.

— Acho que tudo — respondeu Anne.

Jennifer sorriu com simpatia.

— Já tive dias como este. Venha para o meu quarto, talvez possamos discutir sobre o que a aflige. — Pegou o braço de Anne e a conduziu pelo corredor.

Sentada na cama de Jennifer e fumando sem parar, Anne contou toda a história. Nd fim, Jennifer sorriu.

— Vejo que teve um péssimo fim de semana.

— Desculpe tê-la aborrecido com essa história, e ainda mais a uma hora destas.

— Não se incomode com isso. De qualquer forma, nunca durmo — respondeu Jennifer. — E o meu maior problema é esse. Um de seus problemas já está resolvido: você dorme aqui esta noite.

— Não, preciso voltar a Nova York hoje. Se você me emprestar o dinheiro, amanhã eu lhe enviarei um cheque.

Jennifer apanhou a bolsa e jogou a carteira a Anne.

— Sirva-se. Mas acho que é loucura. Há aqui duas camas. Você pode dormir e voltar amanhã em um trem decente.

— Prefiro voltar agora — resolveu-se Anne, enquanto tirava uma nota de dez dólares da carteira. — Amanhã envio um cheque.

Jennifer sacudiu a cabeça.

— Não, espere que eu vá até Nova York e me convide para almoçar. Gostaria de saber como vai terminar esta história.

— A história já terminou.

— Sim, com Helen e possivelmente com Allen. Não com Lyon. A gente pode ver isto na expressão do seu rosto quando você fala nele.

— Como posso voltar para ele depois do que me contou Helen?

Jennifer olhava-a com incredulidade.

— Não me diga que isso a aborrece. Por acaso você pensou que ele fosse virgem?

— Não, mas... Helen. Ele tem pouca consideração por ela como mulher.

— Talvez tivesse sido diferente seis anos atrás. Devia estar provavelmente impressionado por ela, e estava tentando ter sucesso no novo emprego com Henry Bellamy. Não o culpo pela aventura com Helen. Talvez até tenha sido obrigado a isso. A culpa é dela, tão vulgar a ponto de lhe contar, sabendo que você se importaria.

— Ela disse que Lyon golpeia e foge...

— Anne, tenho certeza de que todos os homens golpeiam e fogem... de Helen. E ela salva o seu orgulho dizendo que todos os homens agem assim com todas as mulheres. Ela é até capaz de se convencer de que Gino a adora. Anne, tenho certeza de que Lyon gosta de você. Não digo que a ame, quase. :

— Agora estraguei tudo... ele me abandonou.

— Provavelmente ele acha que você o abandonou também. De certo modo tem razão, pois você o preteriu por Helen.

— Eu não o preteri. É que senti pena dela, e ela era minha amiga.

— Que amiga! — disse Jennifer com uma careta. — Amanhã, quando encontrar Lyon Burke, seja muito boazinha com ele. Deixe que seus olhos se encham de lágrimas. Diga que sabe agora como foi estúpida em imaginar que Helen podia ser sua amiga. Mostre que está magoada. E seja doce. E, por Deus, jamais lhe diga que sabe o que houve entre ele e Helen. — Acompanhou Anne até a porta. — Lembre-se de que só existe um meio de possuir um homem. É fazer com que ele a queira. Na verdade, acho que deveria obrigá-la a ficar uns dias aqui, a fim de não complicar ainda mais as coisas.

— Não, preciso ir.

— Anne... — disse Jennifer, enquanto a acompanhava à porta. — Gosto de você. Sinto que seremos amigas. Confie em mim e faça o que lhe disse, se quiser ter Lyon de volta.

Anne sorriu fracamente.

— Tentarei, Jennifer, tentarei...

A viagem de volta a Nova York parecia não ter fim. O sol brilhava quando o trem entrou finalmente na estação. Era de manhã. Uma multidão desembarcava do trem de Long Island. Só teria tempo de tomar banho, comer alguma coisa rápida e ir para o escritório. Os olhos ardiam e as pernas pareciam de chumbo quando subiu as escadas que levavam ao seu quarto.

Viu o telegrama enfiado por baixo da porta. Lyon! Tinha de ser ele! Rasgou o envelope.

Tia Amy morreu durante o sono na noite passada. O funeral será na quarta-feira. Gostaria que você viesse. Beijos. Mamãe.

Anne ficou olhando para o telegrama. Era bem do feitio de sua mãe: "gostaria que viesse" em vez de "por favor, venha", ou então "preciso de você". Muito bem, não iria. Na verdade, sua mãe não se importava, o que a preocupava é que sua presença "ficaria bem" para Lawrenceville. Agora pertencia a Nova York, pertencia a Lyon. Pegou no telefone e, num impulso momentâneo, ligou para ele. No quarto toque ele respondeu, voz sonolenta. Anne sentiu-se decepcionada, ficara acordada toda a noite no banco de um trem gelado, enquanto ele estava dormindo.

Via que ele acordara e estava irritado; ficou segurando o telefone, sem poder falar.

— Alô? Quem está aí? — A voz de Lyon assustou-a. — É você, Elizabeth?

Elizabeth! Anne olhava estupidamente para o telefone.

— Vamos, que criancice é essa? — continuou Lyon friamente. — Se tem alguma coisa a dizer, diga logo ou eu desligo, Elizabeth.

Esperou ainda um momento e desligou.

Elizabeth? Quem era Elizabeth? Ficou amargamente surpresa ao verificar que Lyon tinha uma vida particular da qual não sabia absolutamente nada. Conhecia-o, na verdade, há quatro dias. Há apenas quatro dias! Claro que deveria haver uma Elizabeth. Muitas Elizabeths, provavelmente. Ligou para o telégrafo e avisou a mãe que iria imediatamente. Consultou o horário dos trens. O próximo trem para Boston partiria às nove e meia. Jogou algumas peças de roupa numa maleta. Eram oito e meia. Tinha o tempo justo para passar pelo banco e .descontar um cheque. Não podia deixar de telegrafar avisando Henry. Discou novamente para a companhia telegráfica.

 

Caro Henry. Assuntos particulares pedem presença em Lawrenceville. Explicarei tudo ao voltar na sexta-feira. Anne.

 

Quando partiu para Boston, não imaginou que o seu telegrama seria interpretado erroneamente.

Henry amassou o telegrama com raiva.

— Merda! Ela provavelmente fugiu com Allen Cooper.

Não falou sobre a sua suspeita com ninguém, mas a preocupação fez com que tratasse rispidamente o pessoal do escritório. Na sexta-feira, quando entrou no escritório e viu Anne à sua mesa, não coube em si de surpresa.

— Você voltou!

— Eu não disse que estaria de volta na sexta-feira?

— Estava certo de que você tinha se casado.

— Casado? — Espantou-se Anne. — Com quem?

George Bellows entrou nesse momento e também pareceu surpreso ao vê-la.

— Pensei... — Henry parecia acanhado — pensei que, fugira Com o Allen.

— Fugir? O que houve foi que minha tia morreu e tive de ir a Boston. Como o escritório estava fechado, tive de mandar um telegrama. Quem disse que fugi?

Henry abraçou-a.

— Não pense mais nisso. Você voltou e eu estou contente.

Lyon entrou. Parou bruscamente quando a viu. Henry soltou-a e disse, com uma alegria infantil:

— Ela voltou, Lyon...

— Estou vendo. — A voz de Lyon era despida de qualquer emoção.

— Sinto muito se fiz com que se desiludissem. — Anne baixou a cabeça.

— A tia dela morreu — explicou Henry, alegremente. Depois, com uma expressão mais séria, acrescentou: — Sinto muito, Anne. — Virando-se para Lyon, disse: — Ela foi a Boston para o funeral.

Lyon sorriu e entrou em seu escritório.

— Entre no meu escritório — disse Henry. — Quer tomar um café? Um licor? Ou quer um aumento? Peça o que quiser... como estou feliz!

O interfone tocou e transmitiu a voz cortante de Lyon:

— Henry, quer fazer o favor de mandar Anne me trazer a pasta com o contrato de Neely O'Hara?

Henry piscou para ela e desligou o interfone. Abriu o arquivo e procurou a pasta.

— Vamos tomar conta de sua pequena amiga. Ela não tem nenhum agente e achamos que tem um pequeno futuro, estritamente no teatro. Vamos agenciá-la por sua causa. — Entregou-lhe a pasta e fez um sinal para que fosse ao escritório de Lyon.

— Suponho que Henry já lhe contou que vamos agenciar Neely. Ele insiste, dizendo que isso a fará sentir-se uma grande estrela. — Lyon levantou-se enquanto ela entrava.

Anne, com os olhos no contrato, disse:

— Sim, Henry me contou.

Lyon deu a volta à mesa e pegou a pasta das mãos dela.

— Contou-lhe, também, que passei esses quatro dias como uma alma penada?

Ela o olhou e ele a tomou nos braços.

— Oh, Lyon, Lyon... — Agarrou-se a ele.

— Sinto muito por sua tia. Nenhum de nós sabia o que tinha acontecido. Henry agia como se tivesse certeza de que você nunca mais voltaria. E eu não podia acreditar nisso. Recusei acreditar que você tivesse saído de minha vida. Sei que agi mal, Anne. Devia ter esperado por você naquela noite, Helen é sua amiga e...

— Não, eu me enganei. Nunca mais darei importância a alguém que não seja você. Helen não valia a pena. Oh, Lyon, eu o amo tanto!

— Eu a amo, Anne.

— Oh, Lyon, é verdade? — Agarrou-se mais fortemente a ele.

Ele beijou seus cabelos.

— De verdade.

Quando Anne o olhou nos olhos, sabia que não estava mentindo. E, mais uma vez, disse a si mesma que jamais poderia ser tão feliz como naquele momento.

Anne passou o fim de semana no apartamento de Lyon, entregando-se totalmente ao seu amor. Na segunda noite, sentiu-se, de súbito, desfalecer num estremecimento. Abraçou-o e acariciou seus cabelos.

— Oh, Lyon, aconteceu. — Anne tremia.

— Pela primeira vez — acrescentou ele.

— Estava começando a me preocupar.

— Sem razão. É muito raro uma mulher alcançar o clímax nas primeiras vezes.

— Lyon, agora sei que sou mulher. — E o beijou. Seu amor se tornou agressivo naquela noite. Jamais sonhara que sua paixão física pudesse ser tão grande quanto o seu amor. Estava contente e assustada ao mesmo tempo. Não amava Lyon unicamente porque ele era Lyon, desejava-o fisicamente também. O seu amor era insaciável. Um pequeno fato, porém, impedia que o fim de semana fosse perfeito. Na segunda-feira, iria ao tribunal testemunhar a favor de Jennifer para a anulação do seu casamento.

— Sei que odeia fazer isso — dissera-lhe Henry. — Mas você é a única pessoa em quem posso-.confiar. Ela não tem outras amigas. Será uma coisa muito rápida. Não se preocupe, esteja no escritório às nove e meia. O julgamento será às dez e meia e Jennifer virá de Filadélfia para ficar o dia todo aqui. Antes faremos um pequeno ensaio.

Pensou no caso. várias vezes durante o fim de semana. Até mesmo quando estava nos braços de Lyon, surpreendeu-se pensando na segunda-feira.

— Bem, se isso a preocupa tanto, acho que não precisa fazê-lo — disse Lyon.

— Sei que é bobagem, mas estou apavorada. Isso é perjúrio, não é?

— Tecnicamente, é. Embora se faça isso todos os dias. E ninguém se importa realmente. Nem mesmo o juiz. Se é contra os seus princípios, diga ao Henry. Ele pode pedir a colaboração da Srta. Steinberg.

— Por que não pediu a ela desde o princípio?

— Ele pensou nela. Aliás, tínhamos pensado nela primeiro. Será que o juiz acreditaria Jennifer North capaz de ser amiga e fazer confidências a um tipo como a Srta. Steinberg?

Levantou o fone do gancho.

— Vou falar com Henry agora mesmo. Afinal, você não deve coisa alguma nem a ele nem a Jennifer North. Portanto, por que haveria você de...

— Ah! — Anne sentou-se na cama. — Lyon, não chame Henry.

— Por que não?

— Porque devo muito a Jennifer... Dez dólares, e uma outra coisa. Tinha me esquecido completamente. Ela me emprestou o dinheiro da passagem em Filadélfia.

Anne contara a Lyon o incidente entre ela e Helen, omitindo, cuidadosamente, as referências desairosas que a atriz fizera a ele. Não tinha contado, também, que Jennifer a amparara moralmente.

— Quando cheguei a Nova York, encontrei o telegrama e viajei para Lawrenceville, sem me lembrar de devolver o dinheiro.

— Bem, tenho certeza de que Jennifer não está preocupada pelos dez dólares. Vou devolvê-los a ela amanhã.

— Lyon, ela foi incrivelmente bondosa comigo naquela noite. Acho que o menos que devo fazer por ela é testemunhar em seu favor.

— Muito bem, se você acha que com isso fica quite com ela...

Anne olhou-o com estranheza.

— Essa é uma expressão tão fria! Como se se tratasse de uma conta a pagar. Lembro quando você a usou comigo. Foi como se tivesse me batido com a porta na cara.

— Com você? Quando?

— Quando eu lhe agradeci por ter incluído Neely na peça. Você disse que me devia algo, por eu lhe ter arranjado este apartamento.

— Que é nosso agora.

— Nosso?

— Por que não? A menos que você adore aquele quarto da Rua Cinquenta e Dois. Há bastante espaço aqui e armários suficientes para os dois. Sou um sujeito que não faz muita desarrumação. Portanto, não será tão difícil morar comigo.

Lançou os braços à volta do pescoço dele.

— Oh, Lyon! Nós nos conhecemos há tão pouco tempo, mas acho que sempre soube. Desde o momento em que o conheci, senti que você era o único homem com quem eu me casaria.

Lentamente, ele se livrou do abraço.

— Anne, estou lhe pedindo apenas para vir morar comigo. Isso é tudo o que eu posso lhe pedir... por enquanto.

Ela virou-lhe as costas, mais embaraçada do que magoada. Lyon pegou-a pelos ombros e, gentilmente, fez com que ela o olhasse.

— Anne, eu a amo.

Anne tentou disfarçar as lágrimas, mas elas a sufocaram enquanto dizia:

— Quando duas pessoas se amam, casam.

— Em Lawrenceville, talvez. Onde as coisas são assentadas desde o nascimento e o futuro de toda a gente está traçado.

— O seu futuro já está resolvido; Henry confia tanto em você...

— Não tenho certeza de que quero continuar com Henry. De repente, descobri que estou certo só de uma coisa: não quero ter uma vida como a de Henry. — Parecia perdido em pensamentos. — Você vê, tinha decidido que quando a guerra terminasse não voltaria, ao Henry e ao antigo modo de vida. Voltei, e o entusiasmo de Henry me contagiou. E eu estava quase voltando ao meu padrão antigo, quando almoçamos juntos no Barbeerry Room. Tudo o que você me disse, naquele dia, fez com que começasse a pensar em muitas coisas. Depois, aquele fim de semana em New Haven e o quê fizeram a Terry King. Depois, o choque do seu desaparecimento. Pesei bem as coisas, com todo o cuidado, e decidi fazer uma tentativa para escrever aquele livro.

— Isso é maravilhoso, Lyon. Por que acha que o casamento mudaria as coisas?

— Digamos que ainda tenha algumas ideias antiquadas. Ainda penso que um marido deve sustentar a mulher. Se me casasse com você, daria o máximo do meu esforço no trabalho com Henry. Ganharia muito dinheiro com isso, e nosso casamento ficaria prejudicado.

— Tenciona deixar Henry?

— Infelizmente, não é possível. Tenho dinheiro para passar alguns meses sem trabalhar, mas o risco é grande. Ficarei com Henry e escreverei o livro nas horas vagas... à noite... durante os fins de semana. Sei que não é a maneira ideal, mas no momento é a única. Não tenho uma casa de campo que possa me servir de retiro, e estou bem consciente das dificuldades que me esperam. Mesmo que o livro seja aceito, o adiantamento em dinheiro que um escritor desconhecido pode conseguir é muito pequeno. São precisos de seis a oito meses para a conclusão de um livro, e, às vezes, mesmo com um bom livro, o escritor ganha pouco dinheiro. Os grandes sucessos de venda são muito raros. Portanto, só restam duas alternativas: ficar com Henry e escrever o livro nas horas vagas ou então achar uma velha rica que queira me financiar.

— Não sou rica nem velha, mas tenho dinheiro e poderia continuar trabalhando.

Lyon afundou os dedos na seda que era o cabelo dela e murmurou:

— Somando o seu maravilhoso estipêndio às minhas economias nós não poderíamos nem manter este apartamento.

— Tenho algum dinheiro. Meu pai deixou cinco mil dólares e acabo de herdar sete mil de minha tia. Doze mil é mais do que suficiente.

— Bom Deus, achei uma herdeira! — Assobiou de admiração e a beijou ardentemente. — Anne, estou desvanecido, mas não daria certo. Nem sei se sou realmente capaz de escrever e nem posso ter certeza de que o livro será bom. Agora mesmo deve haver, pelo menos, meio milhão de ex-combatentes martelando suas máquinas de escrever numa tentativa de dar a sua própria versão de Okinawa, da Normandia, ou da batalha de Londres. E cada um de nós tem uma coisa a dizer, realmente. O que importa é quem irá dizê-lo primeiro. E quem irá dizê-lo melhor.

— Eu tenho certeza de que você é capaz de escrever — insistiu ela. — Não sei explicar por quê, mas tenho.

— Então você sabe mais do que eu... e eu a amo por isso.

— Lyon... depois que terminar o livro, vai se casar comigo?

— Ficarei encantado com isso... se o livro for um sucesso.

Por um momento, Anne ficou em silêncio, e depois disse:

— Mas, você disse que, às vezes, mesmo um bom livro não é financeiramente compensador...

— Eu não disse que o sucesso financeiro é o barómetro. Se o livro for bom e eu não ganhar um centavo com ele, mesmo assim continuarei a escrever. Trabalharei mais arduamente até, por saber que estarei perseguindo algo mais do que um sonho. Se não for aceito por nenhum editor, voltarei ao meu emprego com Henry e me dedicarei a ele de corpo e alma. Enterrarei para sempre o velho Lyon Burke e tentarei compensar os anos perdidos.

— Como era o velho Lyon Burke?

— Não perdia um momento sequer. Sim, acho que essa é a definição apropriada: jamais fiz um gesto sem uma razão premeditada.

A lembrança da voz aguda de Helen estava viva em Anne. Então era verdade. O velho Lyon Burke não tinha escrúpulos por manter uma aventura com Helen; praticamente admitira isso. Lyon abraçou-a.

— Mas esse Lyon Burke está morto para sempre. Talvez tenha morrido na guerra ou naquela noite em que ouvia a história das pereiras, contada pelo soldado fazendeiro. Se isto é verdade, o cara não viveu a sua última noite em vão.

— Você nunca mais será aquele. Não enquanto falar assim. Se o primeiro livro não for o que espera, então você escreverá outro, e outro. Você é isso que é agora, e nada poderá transformá-lo novamente. Se você: quer ficar com Henry e escrever, muito bem, esperarei. Esperarei sempre, nem que tenha de escrever uma dúzia de livros. Só lhe peço para continuar sendo o que é.

-— Não sei se algum dia serei realmente alguém. Mas, qualquer coisa é preferível $ ser um outro Henry Bellamy. E é o que eu seria em breve. Na verdade, acho que seria muito maior que Henry porque não sou tão bom como ele. Henry se dá ao luxo de vacilar, de se preocupar. Sou capaz de enxergar apenas o fim, sem pensar nos meios. Seria um Henry Bellamy exagerado ao máximo, isto é, um homem de sucesso profissional e um fracassado no plano pessoal.

— É isso o que pensa de Henry?

— Durante trinta anos Henry lutou para chegar aonde está. O topo, é como dizem. A palavra é banal. Henry cha-ma-o de Monte Everest. E é lá que ele está, tanto profissionalmente quanto financeiramente. Mas... e a sua vida particular? Se alguém escrever sobre Henry no Quem É Quem, poderá dizer muita coisa de sua atividade junto ao teatro e do seu êxito comercial. Quanto à sua vida particular, apenas uma linha, dizendo: "Solteiro, sem parentes vivos". Em resumo, nada que não seja sua vida profissional. Sozinho, no topo do Monte Everest.

— Olhe, você acaba de provar o que eu disse, Lyon. Henry adiou tanto o casamento que acabou não se casando nunca. Você está fazendo a mesma coisa.

— Não. O casamento não significa muita coisa para quem está no topo do Monte Everest. Existem homens como Henry que se casam e têm filhos, e a vida particular é igual à dele. Suponhamos que Henry tivesse casado. Com uma boa moça, que não tivesse ligação com o seu trabalho. Á esta altura, os filhos dele estariam casados, cuidando de seus próprios filhos. A mulher, passando o inverno na Flórida. Teria desistido de se queixar do horário desregrado, e acostumado a viver sem a sua companhia, coisa que, de fato, nunca tivera. Aproveitaria, porém, as boas coisas que a dedicação de Henry ao trabalho proporcionaria, isto é, o luxuoso apartamento, as peles, o alto padrão de vida. Existem muitos Henrys que são casados e que chegam ao topo sozinhos. Têm de ficar sozinhos porque se descartaram de todos durante a escalada. Nesta corrida de ratos, usam a mentira, a corrupção e todos os truques que forem necessários para chegar ao cimo onde Henry está agora. Este tipo de atividade exige isso. Não é contra a pessoa de Henry que eu me revolto, mas contra aquilo que ele representa.

Ficaram em silêncio por alguns momentos. Lyon foi o primeiro a falar.

— Desculpe a explosão.

— Estou contente; posso entendê-lo melhor agora. Só me preocupo com uma coisa.

— Com o quê? — Olhou-a docemente.

— Quando é que vai se casar comigo?

Lyon soltou uma gargalhada e Anne ficou imaginando se ele se dava conta de como ficava irresistível quando fazia isso. Jamais conhecera alguém que risse como ele, atirando a cabeça para trás, rindo com vontade.

— Sabe de uma coisa? Você será a primeira pessoa a ler o manuscrito depois de concluído; então, terá de decidir.

— É melhor que eu vá dormir; tenho milhares de coisas a fazer amanhã.

— É verdade, a anulação.

— Lyon... você tem outra chave do apartamento?

— Mandarei fazer uma. Então, você vai se mudar para cá?

— Não. Vou trazer uma máquina de escrever e uma montanha de papel logo de manhã. Será um presente de pré-casamento.

— Aceito. Com a condição de você vir junto.

— Não. Virei sempre que você quiser. Ficarei aqui nos fins de semana e passarei a limpo o que você escrever. Não viverei com você, viverei para você e esperarei.

Ele beijou suas sobrancelhas:

— Como advogado, devo dizer que você ficou com a parte menor do negócio. Como seu amante, direi que farei tudo para não decepcioná-la.

O julgamento foi rápido. Qualquer temor que Anne ainda tivesse desvaneceu-se quando ela viu que tudo se processava de acordo com uma norma já estabelecida. Henry entregou alguns papéis ao juiz, que fingiu ler, fez algumas perguntas, Jennifer recitou o pequeno discurso que ensaiara e Anne pronunciou as palavras que devia. Em menos de dez minutos, Jennifer tinha conseguido a anulação.

Henry levou as duas para almoçar.

— Tenho muito trabalho à minha espera; vocês podem ficar à vontade, comentando os acontecimentos. Anne, você não precisa voltar ao escritório hoje.

Assim que Henry saiu, Jennifer pediu a Anne:

— Agora, me conte como foi resolvido o seu caso com Lyon.

Enquanto contava, surpreendeu-se pela facilidade com que confiou em Jennifer; havia na moça qualquer coisa que convidava à confidência.

— Parece que ele é duro. Acho que você jamais conseguirá controlá-lo — disse Jennifer.

— Não desejo controlá-lo...

— Não quero dizer desse modo. Um homem deve sentir sempre que está dirigindo as coisas; mas, enquanto a gente conseguir se controlar, estará controlando o homem. Deixe que ele lhe ponha uma aliança no dedo e você será uma escrava.

Anne olhou para a sua mão, nua de anéis.

— O importante não é isso. Tenho o maior anel que você já viu depositado numa caixa-forte.

Jennifer olhou para Anne com uma admiração nova.

— Você quer dizer que conseguiu se livrar de Allen sem lhe devolver o anel?

— Ele não quis, de jeito nenhum, aceitá-lo de volta. Jennifer sacudiu a cabeça.

— Você deve mesmo fazer algo de muito especial na cama. Sempre pensei que eu soubesse todas as respostas.

— Nunca estive na cama com Allen.

Por um momento, Jennifer perdeu a palavra. Depois riu.

— Então, isso é o que havia de especial. Você era para Allen um desafio.

— Bem, para Lyon é diferente.

— Continuo torcendo por você. Pelo menos, fez uma coisa acertada, recusou-se a ir morar com ele. Estou fazendo o mesmo com Tony Polar. Quer que eu abandone a peça e viaje com ele. Também não fala em casamento. Mas não farei isso. A propósito, de que tamanho é o seu apartamento?

— Tenho um quarto apenas. No mesmo prédio de Neely.

— Ainda não tenho onde morar quando a peça vier para Nova York. Não acha que poderíamos achar um apartamento e morar juntas?

— Seria ótimo, só não sei se poderia pagar até mesmo a metade de um apartamento.

— Tive uma ideia! — Os olhos de Jennifer brilharam. — Você disse que Neely mora também em um quarto. Que tal se nós três alugássemos um apartamento? Sairia mais barato.

— Acho ótimo.

— Dentro de três semanas a peça estreará na Broad-way. Talvez você possa achar alguma coisa nesse período.

— Vou procurar; não será fácil. Encontrei logo um apartamento para Lyon, mas Allen me ajudou.

Os olhos azuis de Jennifer estreitaram-se quando ela perguntou:

— Anne, o que é que você planeja fazer com o anel? Anne sacudiu os ombros.

— Deixá-lo no cofre, acho. Claro que não tenho vontade de usá-lo.

— Vai deixá-lo no cofre, quando poderia estar trabalhando para você?

— Como?

— Venda-o e aplique o dinheiro.

— Não o considero meu.

— Você quis devolvê-lo e ele recusou. Logo, é seu. E você bem que o mereceu. Toda vez que você fizer companhia a um homem que não pode suportar merece uma recompensa. Venda-o.

Anne pensou em Lyon. Talvez Jennifer tivesse razão. No fim do ano, se o livro dele não fizesse sucesso, e ela tivesse algum dinheiro...

— Acho que você tem razão. Poderia vender o anel e colocar o dinheiro a juros no banco.

— Nada disso. Venda o anel e peça a Henry Bellamy que empregue o dinheiro em ações. Você poderá dobrar o seu dinheiro em poucos anos. Depois de uma guerra, a época é sempre boa para negócios.

— Não é arriscado?

— Não acho, principalmente se Henry Bellamy tratar disso para você. Ele me disse que o mercado vai crescer agora; pena que eu não tenho um vintém, além deste casaco e do que ganho na peça. Na hora em que eu puser as mãos em algum dinheiro, vou pedir a Henry que o empregue para mim.

 

                                                                               JENNIFER

                              

                                       Dezembro, 1945

Tocando as Nuvens seria apresentada ainda três vezes em Filadélfia. A previsão de Henry fora correta. Boston pôde ser eliminada do roteiro e a estreia em Nova York aconteceria mais cedo do que esperavam. O elenco estava ansioso por estrear em Nova York, confiante de que a peça seria um sucesso; a tensão, porém, era grande. Os críticos de Nova York, sempre imprevisíveis, não garantiam certeza a ninguém.

Jennifer não tomava conhecimento da história geral. Filadélfia tinha sido muito lucrativa para ela. Na entrada do hotel, exibia o seu mais radiante sorriso ao persistente advogado que lhe implorava para que fossem tomar qualquer coisa.

— Já são três horas — dizia — e eu realmente preciso dormir um pouco.

— Você poderá dormir o dia inteiro amanhã. Vamos, conheço um lugar aqui mesmo, nesta rua, que fica aberto a noite toda.

— Está fazendo frio e eu preciso dormir um pouco, Robby. Além disso, não bebo; se tomar mais uma Coca vou explodir.

— Como é que pode sentir frio com esse casaco? — disse ele, olhando significativamente para o novo casaco de pele de castor que ela estava usando.

Jennifer passou a mão na pele, carinhosamente.

— Você foi um anjo, obrigada, ele é muito mais quente que o meu vison. Mas é que eu preciso mesmo dormir.

— Me deixe subir com você — implorou o rapaz.

— Você já esteve comigo ontem, Robby.

— Existe alguma lei contra duas noites?

— Sim, quando estou trabalhando. Chame amanhã. — O sorriso de Jennifer encerrava muitas promessas.

— A que horas?

— Por volta das seis. Jantaremos antes do espetáculo.

— E depois... ?

— Sim, depois.

Jennifer jogou um beijo ao rapaz e entrou no elevador.

Encontrou alguns recados no chão, enfiados por baixo da porta. Um deles era de um colunista, dois outros para que chamasse a telefonista 24, de Cleveland. Bem, era tarde para chamar a mãe. Leu o horário do último recado de Cleveland: uma e meia. Nem mesmo a mãe seria tão persistente a ponto de esperar tanto tempo por um chamado dela. Havia, também, um recado de Anne: assinara o contrato do apartamento, conforme o combinado, e estava tudo arranjado. Anne era uma moça maravilhosa. Jennifer chegou a invejar o amor que ela sentia por Burke. Devia ser ótimo ter um amor assim, só que, então, seria impossível fazer certas coisas... — acariciou o casaco enquanto pensava — uma noite com Robby. Para isso é que servia um corpo bonito, para conseguir as coisas que quisesse. Ficou imaginando como seria amar alguém como Lyon Burke. Seria fácil apaixonar-se por Lyon... tinha pensado nisso quando o viu pela primeira vez.

— Vamos assistir à estreia de Tony Polar esta noite — dissera Henry. — Você deve ser vista em público, para manter sua publicidade. Lyon Burke vai acompanhá-la e eu acompanharei Helen.

Não estivera preparada para encontrar alguém como Lyon Burke. Sentiu uma onda de excitação quando percebeu que ele era um homem com quem desejaria estar, sem outro interesse que não fosse o seu próprio prazer. Planejara ter esse prazer naquela noite, mas apareceu Tony Polar. Em um momento de tensão, foi obrigada a decidir. O holofote fixado em Tony; Tony cantando para ela; todo o público olhando, sentindo, ao mesmo tempo, o magnetismo de Lyon e a homenagem pública que lhe fazia Tony Polar. Como homem, não se poderia comparar Tony com Lyon. Os dois deviam estar pelos trinta anos. Tony, entretanto, seria sempre um garoto, enquanto Lyon, há muito, era um homem. Lyon Burke era apenas um agente; Tony, um astro. Isso fez com que se decidisse. Simplesmente isso.

Despiu-se, jogando a roupa descuidadamente na cadeira. Talvez desse a Robby a noite seguinte... estava precisando de um novo vestido de noite. Franziu o nariz quando lembrou quão pouco atraente era e como respirava com dificuldade. Ela, porém, precisava de algumas roupas e os homens como Robby eram sempre muito generosos. Tinham de ser. Lyon Burke... esse era um luxo que ela não podia se permitir. Parecia ter em sua mente um mecanismo que automaticamente eliminava qualquer coisa ou qualquer pessoa que pudesse intervir em suas emoções ou em suas decisões.

Não foi sempre assim. No começo, tinha de lutar muito contra as emoções; há muito tempo. Pensou em Lyon Burke outra vez. Naquela noite tinha de ser Tony ou Lyon.

Lyon pareceu compreender. De repente, um pensamento assaltou-a: "somos iguais" — esta era a resposta — "e eu também sou um luxo que ele não se pode permitir". Ou será que ele não a achou atraente? Bobagem. Todos os homens a achavam atraente. Jogou o sutiã e as calcinhas no chão e ficou diante do enorme espelho. Observou o seu corpo com um interesse clínico. Perfeito. De perfil, examinou o busto. Dobrou os braços e fez metodicamente vinte e cinco exercícios para manter a firmeza do busto. Abriu o armário do banheiro e tirou um grande pote de manteiga de coco. Com uma precisão quase cirúrgica, fez uma massagem suave mas firme nos seios. Com igual cuidado, retirou a pintura do rosto. Quando terminou essa operação, abriu outro pote e passou o seu conteúdo ao redor dos olhos. Tirou de uma caixa um esparadrapo, em forma de V, e o colocou entre os olhos. Fez mais vinte e cinco exercícios e vestiu uma camisola.

Olhou o relógio. Meu Deus! Quase quatro horas, e não tinha nenhum sono. Quando ligariam o aquecedor naquele hotel? Estava gelada. Foi para a cama, leu os jornais matutinos. Viu duas fotografias suas: uma radiofoto, ao lado de Tony. Tony já a teria pedido em casamento se não fosse a irmã dele. Franziu a testa quando pensou em Míriam. O esparadrapo protestou. Distendeu imediatamente os músculos do rosto. Que é que podia fazer em relação a Míriam? Nunca se livraria dela. Se não fosse a pressa que Tony tinha de ir para a cama com ela, nunca estariam a sós. Pensando bem, era a única ocasião em que estavam a sós.

O telefone tocou timidamente, como se hesitasse em acordar alguém àquela hora tardia. Atendeu, esperando que fosse Tony, pois ele também, às vezes, ficava acordado até tarde. Era a telefonista de Cleveland.

— Jen... — a voz queixosa da mãe —, tentei falar com você durante toda a noite.

— Acabo de chegar, mamãe. Achei que era muito tarde para chamá-la.

— Como é que eu posso dormir? Estava tão preocupada. Publicaram uma grande história a seu respeito nos jornais daqui. Dizem que você não ganhou um centavo do príncipe no processo de anulação.

— É verdade.

— Jen, você está louca? Você sabe que John vai se aposentar no ano que vem. E nós nunca conseguiremos viver dessa aposentadoria. Agora já é difícil equilibrar o orçamento.

— Eu lhe mandei cinquenta dólares na semana passada, mamãe. E vou mandar-lhe mais cinquenta assim que receber o pagamento desta semana.

— Eu sei, mas sua avó tem estado doente. Tive de levá-la ao médico, tivemos também um problema com o aquecedor e. , .

— Verei se posso conseguir mais alguma coisa, mamãe. Mas eu só ganho cento e vinte e cinco dólares, menos os impostos e a aposentadoria.

— Jen, não passei privações para mandá-la à escola, na Suíça, para, no fim, você ganhar essa miséria como corista.

— A senhora nunca passou privações por isso, mamãe. Estudei com o dinheiro que papai me deixou. E você me mandou para a Suíça só para me separar de Harry.

— Porque eu tinha decidido que você não acabaria como Jeannete Johnson, que casou com um mecânico.

— Harry não era um simples mecânico. Estava estudando para engenheiro, e eu o amava.

— Bem, ele ainda é mecânico, com as mãos sujas de graxa, e com três crianças encardidas também. Harriet Irons era uma das moças mais bonitas que havia por aqui; tem sua idade, agora parece ter quarenta, depois que se casou com ele.

— Mamãe, como pode uma moça .de vinte e cinco anos parecer que tem quarenta?

— Quando uma moça não tem dinheiro e se casa por amor, envelhece muito depressa. Os homens só querem uma coisa. Lembre-se do seu pai.

— Mamãe, este chamado é interurbano — lembrou-a Jennifer, pacientemente. — E você não me chamou apenas para se queixar de papai. Além disso, John tem sido um ótimo marido para você. E não me lembro de papai, só sei que não podia ter sido tão bom quanto John.

— Seu pai era um patife. Rico, bonito, e um patife. Mas eu o amava. Minha família nunca teve dinheiro, tínhamos nome. Não esqueça que sua avó era uma Virgínia Tremont. E eu ainda acho que você deveria ter adotado o nome artístico de Tremont, em vez desse ridículo North.

— Não concordamos que eu deveria adotar um nome diferente, a fim de que ninguém se lembrasse de mim? Se pretendo passar por uma garota de dezenove anos, então tenho de ser Jennifer North. Se eu tivesse adotado o Tremont, então alguém de Virgínia se lembraria do nome. Se eu tivesse adotado Johnson, todos em Cleveland se lembrariam de mim.

— Com a publicidade que você teve, a cidade toda se lembrou de você. E todos falam de você desde o dia em que fugiu para se casar. Apenas um jornal duvidou que você tivesse dezenove anos, e toda a gente estava tão impressionada com o príncipe que ninguém se importou. Eu também não me importei, porque você, pelo menos, já estava casada. E agora você vai e joga tudo fora, sem reclamar um tostão.

— Mamãe, por que acha que fugi? Porque, um pouco antes de partirmos para a Itália, descobri que ele não tinha nada.

— Como? Se eu vi suas fotografias nos jornais, com os brilhantes e o casaco de vison...

— O colar é jóia de família. Ele comprou o vison, mas acho que o tenha conseguido de graça, só pela publicidade que fez do peleteiro. Ocupava um andar inteiro no Waldorf, pago por um produtor de vinhos; era uma espécie de relações-públicas da firma. O título é legítimo, só que ele não tem um vintém. A família perdeu tudo com Mussolini, ficou um castelo horroroso, perto de Nápoles. Eu poderia viver lá, frequentando a sociedade internacional, usando as jóias da família... numa pobreza nobre. Foi sorte ter descoberto a tempo. Começou a me falar de um rico comerciante de vinhos italiano, que eu deveria entreter... e chegar a dormir com ele, se o homem quisesse. Mamãe, ele não passava de um rufião de alta classe e ainda tive a sorte de ficar com o casaco de vison.

— Bem... e a respeito de Tony Polar?

— É um amor.

— Jen!

— Mamãe, ele é mesmo um amor e eu gosto dele. E acontece, também, que tem muito dinheiro. Além disso, o meu agente acha que poderei conseguir um contrato no cinema.

— Nem pense nisso.

— Por quê? Talvez tenha sorte.

— É tarde para isso. Você não tem dezenove anos. Você tem vinte e cinco e tem a sorte de ter um corpo e um rosto que agradam aos homens, se bem que o seu tipo envelhece logo. Que é que você contou a esse Tony Polar sobre o seu passado e a sua família?

— Inventei uma história baseada na verdade. Que o meu pai era rico e que morreu num bombardeio em Londres, deixando tudo para a segunda mulher.

— Isso é verdade. Que mais?

— Que ele me deixou dinheiro . suficiente para que cursasse uma escola na Suíça. Uma vez que estou passando por dezenove anos, não mencionei o fato de que passei cinco anos na Europa.

— O que lhe contou a meu respeito?

— O quê? Mamãe, acha que deveria lhe dizer que tenho mãe, um padrasto e uma avó que só vêem a hora em que eu me case para morar comigo?

— E se você se casa com ele, como vai me apresentar?

— Você será minha tia. A querida irmã de minha mãe que eu tenho de sustentar.

— Está bem. Você está vigiando o seu peso?

— Estou bem magra, mamãe.

— Sei disso. Mas não comece a engordar e a emagrecer. É o que há de pior para o busto. Seios grandes como os seus tendem a cair muito cedo, e então... aproveite-os enquanto os tem. Os homens são como animais: adoram-nos. Talvez eu não tivesse perdido o seu pai se tivesse um busto como o seu. Poderia então ter tido uma vida decente... — Começou a soluçar. — Oh, Jen, não suporto mais. Quero ir viver com você, queridinha.

— Mas, mamãe, você não pode deixar John e a vovó.

— Não posso por quê? John que fique com a vovó. Ele e aquele insignificante emprego dele. Ele nunca poderá nem mesmo comprar uma casa.

— Mamãe! — Jennifer apertou os dentes e procurou ter um pouco mais de paciência. — Deixe que eu case primeiro com Tony, então poderei cuidar de você.

— Ele já falou em casamento?

— Ainda não.

— Que é que você está esperando? Jennifer, dentro de cinco anos você terá trinta. Eu tinha vinte e nove quando seu pai se cansou de mim. Jen, você não tem muito tempo.

— Não é tão simples como parece, mamãe. Ele tem uma irmã que controla tudo. Assina os cheques, trata de tudo. A mãe deles morreu quando Tony nasceu. Ela o criou e o adora. E me odeia.

— Jen, você tem de ser dura. Livre-se dela. Tome o lugar dela. Não pode deixá-la morar com vocês quando casarem. Isso arruinaria minha vida, pois ela nunca permitiria que eu viesse morar com você. Queridinha, use a cabeça e seja esperta. Se uma mulher tem muito dinheiro, nada conseguirá magoá-la. Lembre-se de que eu só desejo o seu bem...

A claridade do sol começou a entrar pela veneziana e Jennifer ainda estava acordada. O telefonema da mãe não a perturbou porque já estava acostumada a eles. O que a preocupava era a falta de sono. O único meio de se manter jovem era descansar bastante. Ficar na cama, deitada, mesmo sem dormir, já ajudava. Tinha lido isso em algum lugar. Acendeu outro cigarro. Que espécie de repouso era esse, se ela passava a noite toda andando pelo quarto e fumando um maço de cigarros inteiro? Foi ao banheiro e passou um pouco mais de creme sob os olhos. Não tinha ainda rugas — por quanto tempo se manteria assim? Não conseguia dormir mais que três horas por noite desde... aquelas últimas semanas na Espanha. Suspirou. Antes disso, dormia normalmente. Na verdade, o sono era para ela um refúgio. Quando os problemas pareciam insolúveis, ansiava pela noite... Até aquelas últimas semanas que passara na Espanha, com Maria...

Maria... Maria era a moça mais bonita da escola, e Jennifer, como todas as outras alunas do primeiro ano, considerava aquela beleza espanhola um verdadeiro ídolo. Maria cursava o último ano, e não falava com ninguém. Se alguma vez percebeu a idolatria que despertava nas colegas, jamais demonstrara. Não tinha nenhuma amiga. Sua altivez aguçava ainda mais a admiração das estudantes mais novas, ao mesmo tempo em que causava inveja às suas contemporâneas. Parecia que Maria jamais iria permitir que alguém penetrasse naquela barreira imperial. Até aquele dia, na biblioteca...

Jennifer estava chorando, ao ler a carta que recebera da mãe. O dinheiro tinha acabado: Jennifer deveria voltar para casa no final do período escolar. Fizera algumas amizades valiosas? Cleveland ainda mostrava sinais de depressão, se bem que a guerra na Europa houvesse proporcionado a abertura de novas fábricas. Harry tinha se casado com Harriet Irons e trabalhava numa bomba de gasolina. Era essa parte da carta que a fizera chorar.

— Vamos, nada pode ser tão triste.

Jennifer olhou para cima. Maria. A majestosa Maria, falando com ela! Sentou, ouviu com simpatia toda a história das lágrimas de Jennifer.

— Não sei o que minha mãe esperava — terminou Jennifer, queixosamente. — Talvez pensasse que o professor de inglês é um lorde, com uma enorme mansão.

Maria sorriu.

— Ah, os pais... veja o meu caso: tenho vinte e um anos e esperam que eu me case com um homem escolhido por meu pai. Essa escolha será baseada em terras, que devem ser juntas às nossas, ou em outros interesses que beneficiarão as duas famílias. Desde a guerra civil, minha terra está devastada e o dever das poucas famílias poderosas que ainda restam é reunir suas forças. Teoricamente, concordo com essas decisões; como mulher, serei, infelizmente, obrigada a dormir com aquele porco...

— Eu amava Harry — disse Jennifer, tristemente — mas ele não serviu para as ambições de minha mãe.

— Que idade tem você, Jeannete? — O verdadeiro nome de Jennifer era Jeannete.

— Dezenove.

— Você já dormiu com um homem?

Jennifer corou e olhou para o chão. .,

— Não, mas Harry e eu fomos bastante longe... isso é, deixei que ele me tocasse e...

— Eu já dormi com um homem — disse Maria.

— Você?

— Claro. No. verão passado. Passei as férias com uma tia, na Suécia, e conheci um homem muito bonito. Tinha participado das Olimpíadas e trabalhava como instrutor de natação. Os homens que meu pai estava considerando para se casarem comigo eram: o primeiro, um alemão gordo, que fugira com vários tesouros de arte; o segundo, um dos rapazes da família Carrillo, e nenhum deles tem queixo. Por isso, decidi que, pelo menos na primeira vez, eu teria relações com um homem que fosse bem bonito.

— Eu me arrependo de não ter feito o mesmo com Harry... agora ele está casado com outra.

— Fique contente por não ter feito isso. É horrível! O homem morde-a. E entra dentro da gente. Dói. Respira e sua como um animal... Eu sangrei... e fiquei grávida.

Jennifer não acreditava: Maria, a inacessível deusa da escola, confiando seus segredos.

— Oren... — cuspiu quando pronunciou o nome do rapaz — ele tomou conta das coisas... um médico... mais dores... e adeus gravidez. Aí, fiquei doente, com febre... Tive de ser operada, nunca mais poderei ter filhos.

— Sinto muito.

Maria sorriu astutamente.

— Mas isso é ótimo! Deixarei que o meu pai faça os arranjos que quiser para o meu casamento e então contarei tudo ao candidato. Nenhum homem quer se casar com uma mulher que não pode ter filhos. E eu jamais serei obrigada a me casar.

A expressão de Maria era triunfante.

— O que dirá seu pai?

— Minha tia se encarregará de falar com ele, pois sabe de toda a verdade. Eu estava sob sua responsabilidade, e ela terá de me apoiar. Direi que tive um tumor no útero e que foi preciso removê-lo.

— E foi realmente removido?

— Sim, porque tive peritonite. Acho isso maravilhoso, assim não tenho mais o aborrecimento de regras mensais.

Jennifer queria dizer que sentia muito, entretanto não era possível mostrar compaixão por um fato que Maria considerava um maravilhoso golpe de boa sorte.

— Bem, pelo menos você tem a sua vida resolvida; eu tenho que voltar para Cleveland.

— Você não tem que voltar. Você é bonita demais para passar a vida esperando ser maltratada pelo primeiro homem que estiver disponível.

— Como posso?

— Dentro de duas semanas entraremos em férias. Você irá comigo à Espanha, passar o verão. Então poderemos pensar numa solução.

— Maria! — Jennifer achou maravilhoso demais para ser verdade. — Mas eu não tenho dinheiro, tudo o que tenho é uma passagem de volta para casa.

— Você será minha hóspede. Eu tenho muito mais dinheiro do que preciso.

As duas últimas semanas de aula foram um triunfo pessoal para Jennifer. A novidade correu pela escola: a pequena Jeannete Johnson se tornara amiga de Maria. As colegas olhavam Jennifer com inveja. Maria mantinha ainda sua atitude altiva, até mesmo com Jennifer, pois só trocava algumas palavras com ela quando se encontravam por acaso.

No momento em que deixaram a escola, a atitude de Maria mudou. Tornou-se afável, simpática, comunicativa. Quando tomaram um táxi, rumo a Lausanne, Maria entregou um telegrama a Jennifer, dizendo:

— É do meu pai. Aconselha-me a passar as férias na Suíça, pois a Espanha ainda sofre a devastação causada pela guerra. Com um milhão de mortos e milhares de feridos, é impossível conseguir empregados suficientes; por isso, a casa está fechada, a família morando num hotel. Há esperança de que as coisas logo voltem ao normal. Até lá, devo me divertir no estrangeiro e, para isso, telegrafou, também, o número de uma conta bancária na Suíça. Temos muito dinheiro, o suficiente para dar a volta ao mundo. Como a Europa está em guerra, temos de excluir a França, a Alemanha e a Inglaterra.

— Podemos ir aos Estados Unidos — sugeriu Jennifer. — Nunca estive em Nova York.

— Como? Eu não sou americana. Você poderia obter prioridade em algum navio da Cruz Vermelha; ainda assim, correria o perigo das minas e dos submarinos. De qualquer maneira, não tenho nenhuma vontade de ir a Nova York. Passaremos o verão aqui mesmo. Hitler vai ganhar a guerra e logo tudo vai terminar.

Ficaram na Suíça durante três anos.'

Tornaram-se amantes na primeira noite. Apesar de Jennifer ter ficado chocada com a proposta, não sentiu propriamente repulsa; na verdade, ficou até um pouco curiosa. Maria ainda era a heroína da escola, e a explicação lógica que deu apagou qualquer vestígio de anormalidade que pudesse haver em suas relações.

— Nós gostamos uma da outra. Eu quero que você aprenda tudo sobre o sexo comigo e não com algum homem abrutalhado. Não estaremos fazendo nada demais. Não somos como aquelas horríveis lésbicas, que se vestem de homem e andam de cabelo raspado. Somos duas mulheres que se adoram e que serão gentis e afetuosas uma com a outra.

Nessa noite, Maria se despiu e ficou orgulhosamente de pé, diante de Jennifer. Tinha um belo corpo. Jennifer, porém, sentiu uma secreta satisfação por saber que o seu era muito mais bonito. Tirou a roupa timidamente, e ouviu o suspiro de Maria quando descobriu os seios.

— Você é muito mais bonita do que sonhei — disse Maria suavemente, acariciando-a e se curvando para tocar-lhe com a face. — Você vê, eu amo a sua beleza e a respeito. Um homem estaria agora tentando fazê-la em pedaços.

Para sua própria surpresa, Jennifer sentiu-se vibrar...

— Venha, vamos fumar um cigarro — disse Maria, pegando-a pela mão.

— Não, Maria, toque em mim.

— Mais tarde, primeiro quero que se sinta à vontade comigo.

Ela foi gentil e paciente, lentamente ensinando a Jennifer a corresponder ao seu ardor. Ao fim de algum tempo, Jennifer podia alcançar uma exaltação que jamais sonhara existir. Gostava da dupla relação que mantinha com Maria. À noite, ansiava por ela; durante o dia, considerava-a como amiga. Não sentia por ela nenhuma outra ligação pessoal. Quando faziam compras juntas, ou exploravam alguma cidadezinha desconhecida, Maria era apenas uma amiga. Quando se encontravam com algum homem atraente, instrutores de esqui ou estudantes, a conversa se tornava difícil. Maria fazia questão de permanecer alheia a ela. Jennifer, contudo, chegou a achar alguns rapazes bem simpáticos. Muitas vezes, enquanto dançava com um deles, sentia-se atraída pela masculinidade. Quando um rapaz tentava cortejá-la, sentia ímpetos de corresponder.

Uma noite foi dar um breve passeio com um estudante panamenho, que achara particularmente atraente; ele estudava Medicina e pretendia ir a Nova York, depois da guerra, para completar os estudos. Beijaram-se e ela se surpreendeu a corresponder com igual ardor. Era bom abraçar os ombros fortes de um homem, sentir sua presença viril, depois da suavidade de Maria. Sentir a firmeza de uns lábios masculinos... Desejou ardentemente o rapaz, mas se livrou do seu abraço e retornou ao restaurante. Maria tinha notado sua ausência e fez uma cena à noite. Jennifer teve de jurar que fora tomar um pouco de ar por estar com dor de cabeça.

Na maior parte do tempo, porém, Jennifer achava tudo maravilhoso. Maria era muito extravagante e lhe comprava roupas lindíssimas. Jennifer aprendeu a esquiar e a falar francês fluentemente. Quando ficaram entediadas em Lausanne, mudaram-se para Genebra. Três anos depois, o pai de Maria exigiu que ela voltasse, mas ela se recusou. Então, em 1944, ele parou de lhe enviar dinheiro. Não teve outra escolha senão voltar para a Espanha.

— Você irá comigo — disse a Jennifer. — Teremos que vender a sua passagem, pois o dinheiro que tenho não será suficiente para a viagem.

Jennifer sabia que estava vendendo a própria liberdade. No último ano, ficara cada vez mais cansada do domínio de Maria sobre o seu corpo. Cleveland e sua mãe também não a atraíam. Quem sabe, na Espanha, não encontraria um rapaz de boa família... Tinha apenas vinte e três anos, era, tecnicamente, virgem e... por que não? :

Jennifer ficou na Espanha mais um ano. Conheceu muitos homens interessantes. Maria, porém, mantinha sobre ela tamanha vigilância que era impossível começar o mais inocente namoro. Quando saíam eram sempre escoltadas por uma das tias de Maria. À beira do desespero, sentia que os atos possessivos de Maria a estavam sufocando. Pela primeira vez na vida, compreendeu o pavor que sua mãe tinha da pobreza. O dinheiro podia comprar a liberdade; sem ele, ninguém podia ser livre. Na Espanha, vivia no luxo, usando roupas maravilhosas, mas pertencia a Maria. Se voltasse a Cleveland, teria de enfrentar outra espécie de prisão: casamento com um homem de terceira classe, que, da mesma forma, faria uso do seu corpo. De qualquer ângulo que se olhasse, uma pessoa sem dinheiro seria prisioneira de alguém ou de algo. Devia, porém, haver uma saída.

Começou a ficar acordada durante a noite. Sofria com o amor de Maria e por ser obrigada a fingir um ardor que já não sentia. Fingia que estava dormindo e, quando percebia que Maria estava adormecida, atrevia-se a levantar e ficar à janela, fumando... e pensando.

Dinheiro. Para ganhá-lo, a resposta estava no seu corpo: deveria trabalhar para ela. Por causa dele, chegou aonde estava agora. Iria a Nova York, adotaria outro nome, mentiria a respeito de sua idade. Poderia, talvez, empregar-se como modelo. De alguma forma ganharia dinheiro. E nunca mais seria apanhada numa armadilha.

Quando a bomba atómica caiu sobre Hiroxima, toda Madri fervia para saber das novidades. Até Maria deixou de vigiá-la o tempo todo, para sentar diante do rádio, ansiosa por notícias. Jennifer aproveitou essa oportunidade para enviar secretamente uma carta à mãe, instruindo-a para exigir sua presença imediatamente em casa, por motivo de doença. A mãe de Jennifer obedeceu e Maria não teve outra alternativa. Separaram-se jurando devoção eterna. Jennifer prometeu voltar assim que sua mãe melhorasse. Teve um sentimento de culpa quando Maria lhe deu um talão de cheques.

— Aqui tem três mil dólares. Economize o suficiente para a passagem de volta; se não puder, telegrafe que eu lhe mandarei mais, Viverei somente para o dia em que você voltar.

Para evitar qualquer suspeita de Maria, Jennifer deixou a maior parte de suas roupas na Espanha, como para garantir que voltaria. Foi diretamente a Nova York e se hospedou num hotel. Mandou quinhentos dólares para a mãe e pediu que lhe mandasse toda a correspondência vinda da Espanha; que, em circunstância alguma, desse o seu endereço ou seu novo nome a qualquer pessoa.

No começo, Maria escrevia todos os dias. Jennifer nunca respondeu. Por estranha coincidência, no seu primeiro dia em Nova York encontrou o estudante panamenho. Ele aceitou o novo nome dela sem fazer qualquer pergunta, e, durante três semanas, viveram uma aventura, que culminou com o rapaz apresentando-a ao Príncipe Mirallo...

Eram sete horas da manhã. Jennifer "amassou o último cigarro. Precisava dormir. Queria ser muito boazinha para Robby. Então, talvez conseguisse ganhar o vestido de noite. E o dinheiro que a mãe exigia.

 

                                                                               NEELY

 

                                             Janeiro, 1946

Os críticos de Nova York foram unânimes em exaltar a nova peça de Helen Lawson. A adoração do público por ela alcançara novas e mais altas dimensões; Neely recebeu muitos elogios, nenhum tão grande a ponto de levantar a animosidade de Helen; de qualquer maneira, eram muito mais do que Neely ousara esperar. Houve um crítico que chegou a dizer que ela era o melhor talento que aparecera durante as últimas temporadas. Esse louvor e o apartamento novo fizeram com que ela se sentisse alguém.

Estava pasmada com o luxo do novo apartamento. Anne tinha sido simplesmente fabulosa. A sorte parecia acompanhá-la sempre e sempre com uma certa conexão com Allen. Só que desta vez foi com o pai de Allen. Gino acabara de romper com Adele, e ela, de tão furiosa, aceitou um contrato para ser corista do Hotel Dorchester, de Londres. Anne encontrou-a, por acaso, às vésperas da partida, e ficou com o seu suntuoso apartamento. Neely não se cansava de tocar em tudo: nas colchas, nos abajures... jamais sonhara morar em um apartamento que tivesse uma sala com tapete branco.

Claro que se tratava apenas de uma sublocação. Adele voltaria a ocupá-lo a partir de 1.° de junho. Por essa época, Jennifer já estaria certamente casada com Tony. Anne talvez estivesse casada com Lyon e ela com Mel, principalmente se o novo emprego dele desse certo. Tinha sido um verdadeiro presente dos céus Johnny Mallon ter-lhe oferecido um teste de duas semanas para a redação de um novo programa de rádio. Se ele conseguisse agradar, poderiam ficar ricos. Os redatores de rádio ganhavam, mais ou menos, quinhentos dólares por semana, dissera-lhe"Mel, e, às vezes, até mais; começaria com duzentos. Além disso, a peça chegara a Nova York com três semanas de antecedência e não foi preciso fazer a temporada em Boston. Ah, tudo estava simplesmente perfeito.

Pretendia comprar algumas roupas extravagantes, pois toda gente já vira o seu vestido de tafetá cor de púrpura uma centena de vezes. Que roupas maravilhosas Jennifer trouxera de Filadélfia! Enchera o guarda-roupa. Não era de estranhar que estivesse sempre sem um centavo. E ainda dizia que Tony Polar era pão-duro. Como podia dizer uma coisa dessas, se ele lhe dera, no Natal, aquele anel, com um enorme pedra azul? Jennifer disse que era apenas uma água-marinha, mas ela ficaria feliz em ganhar um anel assim. Bem, para começar, compraria um novo casaco para o inverno na primeira liquidação que encontrasse.

Ela e Mel foram convidados para a grande festa de Ano-novo em casa de Johnny Mallon. A passagem de ano, porém, seria comemorada no camarim de Helen.

— Vocês nunca conseguirão sair do teatro a tempo de estar na festa à meia-noite — insistira Helen, servindo-os de champanha.

A festa de Johnny fora espetacular. Neely nunca tinha ido a uma festa repleta de celebridades como aquela. E a maior surpresa foi que todos a conheciam, todos sabiam quem era ela. Então, Johnny Mallon segredara a Mel que ele podia se considerar membro permanente do grupo. Céus, isso era fantástico! E ela devia parar de dizer céus a toda hora. Uma porção de pessoas na festa rira quando ela empregara a palavra. Não foram risadas de caçoada, é que pensaram que ela estivesse fazendo graça... Talvez, com o tempo, e a convivência com os amigos intelectuais de Mel, melhoraria a linguagem. Jamais ouvira nos bastidores dos teatros outra coisa que não expressões que sabia pouco distinto repetir. E, depois, Mel tinha um vocabulário muito bom, frequentara a universidade. Céus, um homem de classe, como Mel, apaixonado por ela! Jamais esqueceria essa véspera de Ano-novo. Mel dissera o mesmo. Ela o abraçou fortemente, naquela noite, quando chegaram ao hotel onde ele morava.

— Mel, estou tão feliz que tenho medo.

— Isso é o que eu chamo começar bem o ano — dizia Mel, enquanto se preparava para deitar. — Sabe que senti um pouco de pena de Helen, esta noite, quando a deixamos sozinha no camarim?

Neely fez uma careta.

— Ora, Helen nunca está com ninguém. Esta noite, ainda teve a sorte de conseguir que aquele desenhista bicha a acompanhasse a uma festa. Mel, este hotel é mesmo uma droga. Já é quase de manhã e ainda não ligaram o aquecedor. No nosso apartamento temos aquecimento durante a noite inteira. — Pulou para a cama e para os braços de Mel, onde ficou a tremer.

— Está bem, diga quando quer casar e arranjarei um bom apartamento.

Neely enroscara-se nele para se aquecer.

— Não responde? Você ouviu o que Johnny disse esta noite. Estou definitivamente empregado. E ganhando duzentos dólares por semana.

— E eu também.

— Então vamos nos casar.

— Sim, só no dia 1.° de junho.

— Por que esperar até lá?

— Porque alugamos o apartamento até aquela data. Nós combinamos que, se alguma de nós saísse antes daquele dia, teria de continuar pagando o aluguel até lá. Você sabe, estamos todas à beira do casamento.

— Então pagaremos.

— Está brincando? Pagar dois aluguéis?

— Mas, Neely, eu a quero tanto.

Ela riu.

— Você me tem.

— Neely...

— Vamos nos casar no dia 1.° de junho. E agora, Mel, me ame... Não, assim não; não estou usando o diafragma. Por favor, Mel...

 

                                         Fevereiro, 1946

Anne e Jennifer quase não acreditaram nos seus olhos quando viram Neely dar ordens aos carregadores para que pusessem um enorme piano a um canto do apartamento.

— Acabo de assinar um contrato com a agência de Johnson Harris — anunciou Neely.

— E o seu contrato com Henry Bellarny? — perguntou Anne.

— Bem, tive uma longa conversa com ele ontem. Contei-lhe que a agência de Johnson Harris tinha me procurado e ele imediatamente concordou em rescindir o contrato. Na verdade, ainda não sou suficientemente grande para ter um agente. Eu preciso é ter uma grande agência atrás de mim. Henry concordou e vejam o que aconteceu...

— Deram-lhe o piano? — perguntou Jennifer.

— Não, mas vão pagar pelo aluguel dele. E me conseguiram um contrato no La Rouge. Vou estrear dentro de três semanas.

— E Tocando as Nuvens? — perguntou Anne.

— Farei as duas coisas. No La Rouge, faço apenas o show da meia-noite, ganhando trezentos dólares por semana. Não é fantástico? E sabem o que mais? A agência conseguiu Zeke Whyte para mim, e eles é que vão pagá-lo para encenar o meu ato. Ele só trabalha com as grandes estrelas; quando me ouviu cantar, falou que, com um pouco de trabalho, poderei ser grande. Chegou a dizer que eu era assim algo entre Judy Garland e Mary Martin.

— Bem, só não convide Helen Lawson para vir aqui, ou jogaremos as duas e o piano na rua — brincou Jennifer, piscando o olho para Anne.

— Não acham o piano espetacular? — perguntou Neely, passando amorosamente a mão pelo já bastante gasto Steinway. — Zeke insistiu na marca. Não acham que melhora o ambiente?

Jennifer balançou a cabeça.

— Tem razão. Parece que estamos num autêntico salão de ensaio.

O rosto infantil de Neely parecia desapontado.

— O piano atrapalha vocês?

— Não — sorriu Jennifer —, só estou pensando onde você porá a barra de exercícios. Não é isso que vem em seguida?

— Deixe de ser ambiciosa, Jen. Será ótimo termos uma estrela na família — interrompeu Anne, bem-humo-rada.

Neely fez uma careta.

— Faço tudo isso apenas para ganhar dinheiro. Em junho, quando eu e Mel nos casarmos, quero ter dinheiro suficiente para poder decorar um apartamento tão bonito como este.

— Quando é que Mel encontra tempo para escrever para Johnny Mallon? — perguntou Jennifer. — Parece que ele está trabalhando todo o tempo como seu agente de imprensa. Nunca- vi ninguém conseguir tanta publicidade.

— E por que não? Afinal, tudo o que ganho é para o nosso futuro.

— Você, realmente, não ambiciona ser estrela? — perguntou Jennifer.

— Para quê? Para acabar passando a véspera de Ano-novo sozinha num camarim, e depois sair, tendo como única companhia uma pobre bicha? Claro que quero continuar trabalhando depois de me casar, mas, para mim, o casamento sempre será mais importante. Você não fez o mesmo quando recusou um contrato para o cinema por causa de Tony Polar?

Jennifer encolheu os ombros.

— O contrato não era bom. O salário era apenas de cento e cinquenta por semana.

— Henry aconselhou-a a aceitá-lo — insistiu Neely. — Ou será que você aceitaria se pagassem mais?

— Talvez aceitasse. O que acontece é que eu não tenho talento, Neely. E você tem.

— Sim, mas é necessário algo mais que talento. Bem, vamos limpar um pouco este lugar. Zeke deve chegar a qualquer momento.

— O apartamento está limpo — protestou Anne.

Neely corria de um lado para outro, esvaziando cinzeiros.

— Jen, você usa todos os cinzeiros ao mesmo tempo. Zeke está contente por eu não fumar; diz que mesmo a fumaça que há numa sala, quando alguém fuma, afeta a voz de uma cantora.

Jennifer ergueu as sobrancelhas.

— Será que vão proibir o fumo na noite de sua estreia?

— Não, mas não preciso contaminar minha casa.

Nas três semanas seguintes, Zeke Whyte tornou-se dono do apartamento. Ensaiava Neely interminavelmente e Anne e Jennifer nunca chegaram sem o encontrar lá. O seu ar afeminado chegava a ser simpático, parecia muito cônscio de sua importância e era um excelente musicista. Não tinha piedade da pobre Neely.

— Que é que ele quer de mim? — perguntava, entrando no quarto, numa explosão de lágrimas. — Nunca tive uma aula de música na minha vida e sei que estou cantando direito. De repente, ele quer me transformar numa nova Lily Pons, em apertas três semanas. Anne, vá falar com ele e mande-o embora.

Aí, Zeke aparecia na porta do quarto:

— Está bem, Neely. A hora da histeria passou. Vamos voltar ao trabalho.

— Não posso. Você exige demais. — Soluçava.

— Claro que exijo. Por que ser ótima quando se pode ser grande?

Neely sempre voltava... e recomeçava tudo. As escalas... mais explosões de nervos... mais exercícios vocais... parecia não ter fim. O pior, porém, aconteceu no fim da segunda semana. Neely irrompeu pelo escritório de' Henry Bellamy adentro perguntando onde ele estava.

— Onde está quem? — perguntou Anne.

— Henry. Quero-o de novo para meu agente. Preciso dele. Preciso me livrar de Zeke.

— Henry está na NBC. Que foi que Zeke fez desta vez?

— Quer que eu queime todas as minhas roupas.

— O quê?

— Isso mesmo que você ouviu. Que eu as queime. Disse que são tão horríveis que não vai nem permitir que eu as dê a alguém, incluindo este casaco novo. Paguei por ele setenta dólares.

— Bem, eu também acho que é um tanto sofisticado para o seu tipo. — Anne conseguiu disfarçar um sorriso.

— Anne, durante toda a minha vida vesti as roupas que minha irmã não queria mais. Tenho todo o direito de escolher as minhas roupas agora.

— Que é que Zeke quer que você vista?

— Quem é que sabe? Devo me encontrar com ele mais tarde, na loja de um costureiro. Por isso é que eu quero falar com Henry, perguntar se não tenho alguns direitos.

— Ora, Neely, para isso você não precisa de Henry. Diga você mesma.

— Não, não quero brigar com Zeke, tenho medo que ele largue tudo. Céus! Anne, você não imagina as coisas que ele conseguiu fazer com a minha voz. Às vezes, nem eu mesma acredito que seja eu. E em duas semanas apenas. Sabe que pela primeira vez na minha vida começo a acreditar que posso chegar a ser estrela? Consigo alcançar notas tão altas que nem sonhava que existissem, e consigo mante-las claras e fortes... Anne, ele é génio.

— Então, talvez ele tenha razão também quanto às roupas.

Neely suspirou.

— Bem, então deixarei que ele escolha o vestido que usarei na estreia. Está sendo desenhado especialmente para as danças e os movimentos de alguns números. Tem uma coisa: jamais desistirei deste casaco.

Na semana seguinte, Neely mandou para a irmã o casaco, o vestido de tafetá cor de púrpura e seis vestidos que tinha comprado desde que a peça estreara em Nova York. Zeke fez com que comprasse apenas um vestido de gala para a estreia, dois vestidos de lã para serem usados durante o dia, e um sóbrio casaco azul-marinho. Neely olhava para esse parco guarda-roupa com enorme desgosto. Alternava os dois vestidos e tinha até medo de comer com eles, pois qualquer mancha em um deles a privaria da metade do seu guarda-roupa.

— Imagine, pagar cento e vinte e cinco dólares por isso — dizia ela.

Mel estendia cuidadosamente um guardanapo no colo. Estavam sentados no Sardi, onde Neely era sempre conduzida a uma mesa de frente, fato que nunca deixara de encantá-la.

— É muito elegante — comentou Mel. — Na verdade, não parece ter custado tanto dinheiro.

— Zeke diz que devo criar um tipo e ficar fiel a ele durante todo o tempo.

— Que espécie de tipo ele espera criar com esse vestido?

— Não sei. Que é que você acha? Você, que frequentou a universidade.

Mel começou a comer o seu sanduíche e ficou olhando-a pensativamente.

— Bem, está claro que não parece uma estrela da Broadway em ascensão, isso eu posso garantir. Faz com que você se pareça com uma estudante. É isso: uma moça recém-saída de um colégio grã-fino.

— E isso é bom?

— Não sei, querida. Eu a amo de qualquer maneira, mesmo quando está usando aquele horrível tafetá cor de púrpura.

— Mel! Você nunca me disse que não gostava daquele vestido.

— Você o usava quando a vi pela primeira vez, e eu não quis magoá-la.

— E o que acha do meu casaco preto, com gola de raposa vermelha?

— Bem, tinha um aspecto bastante vulgar... e um ar envelhecedor.

— E esse simples casaco azul-marinho tem. alguma coisa de invulgar?

— Não sei ao certo, minha querida, mas acho-o totalmente adequado a você. Todos sabem que, de modo geral, as bichas têm muito bom gosto.

— Oh, está bem.

Neely suspirou e atacou o seu sanduíche.

 

                               Março, 1946

Ninguém estava preparado para receber o impacto da estreia de Neely. Anne lá estava, com Lyon e Henry. Jenni-fer estava com Tony Polar, a irmã deste e mais uma porção de compositores e letristas, em uma enorme mesa. Helen Lawson chegou, acompanhada por um assistente de direção, acenou para Henry e ignorou Anne ostensivamente.

Tudo começou como qualquer outra estreia de boate. Os jornalistas estavam presentes por dever de ofício. As celebridades tinham vindo para serem vistas pelos jornalistas. Ninguém esperava grande coisa do espetáculo. Já tinha acontecido outras vezes: uma nova garota, aproveitando-se da publicidade obtida em uma peça de sucesso, para aumentar o seu parco salário, estreava em uma boate. O público ao chegar, mostrara o devido respeito por uma cantora que demonstrava energia e decisão. Quando se retirou, trans-formaram-na em objeto de verdadeira idolatria. Anne não podia acreditar. Trocou olhares com Jennifer durante a representação e ambas não esconderam estar, ao mesmo tempo, surpresas e maravilhadas. Henry Bellamy sentava-se à beira da cadeira.

Neely esteve fantástica. As luzes faziam seu rosto de menina parecer mais bonito, e o vestido, uma saia de cetim branco e blusa de cetim azul-marinho, extremamente simples, deixava descobertas as suas maravilhosas pernas. Anne surpreendeu-se por nunca tê-las notado antes, nem a perfeita silhueta juvenil, cintara fina, o busto de menina.

— Acabamos de perder uma estrela — murmurou Henry. — Por Deus, Lyon, como foi que deixamos que ela «capasse por entre os dedos, dessa maneira?

Lyon sacudiu a cabeça.

— Quando cometemos um erro é para valer.

— Ela é realmente ótima, não é? — sussurrou Anne.

— Ótima não é a palavra adequada — respondeu Lyon. — Ela é simplesmente inacreditável. Não há, no momento, outra igual a ela.

A partir daí, a excitação que cercava a vida de Neely tornou tudo caótico no apartamento. O telefone não parava de tocar e a sala de estar era ininterruptamente solicitada para entrevistas, fotografias, ensaios. Neely apareceu em quase todos os programas de rádio, como convidada especial. Assinou contrato com uma grande gravadora. A Metro queria-a para um filme. A Twentieth, também. E Helen Lawson deixou de falar com ela.

Neely sentia-se chocada.

— Imagine, Anne, que ela me trata como se eu estivesse morta.

Jennifer não conteve o riso.

— Isso significa que você é agora uma estrela. Comigo ela continua sendo muito amável.

— Pretendia continuar na peça até a próxima temporada — explicou Neely —, resolvi o contrário. Gilbert Case me ofereceu um novo contrato, a partir de 1.° de junho, com um aumento de cem dólares. Mas não posso aceitar, se Helen me trata dessa maneira.

Anne riu e disse:

— Ora, Neely, você está apenas querendo apaziguar sua consciência por abandonar a peça. Afinal, você não entra com Helen em nenhuma cena.

— Por que deveria sentir gratidão em relação a Case? Eu jamais conseguiria o papel na peça se não fosse por você, Anne, e se Helen não tivesse ficado com medo de Terry King.

Finalmente, assinou um contrato com a Century, e explicou:

— É um estúdio menor do que os outros, mas a agência acha que é o melhor para mim. Dois filmes deles foram premiados pela Academia no ano passado e estão contratando todas as novas estrelas. A Century me dará tudo o que é necessário para a criação de uma estrela.

Mel não ficou feliz com o contrato cinematográfico.

— É maravilhoso — insistia Neely —, ficarei na peça até o último dia de maio. Adele escreveu que estará aqui em meados de junho, e vai querer o apartamento. Portanto ...

— E com relação a Jennifer e Anne? — perguntou Mel.

— Bem, Tocando as Nuvens ficará, pelo menos, mais um ano em cartaz. Jennifer estará na peça até casar com Tony, se bem que as coisas não pareçam encaminhadas nessa direção.

— E onde é que elas vão morar?

— Bem, as coisas agora já estão mais fáceis. Elas podem se mudar temporariamente para o Hotel Orwin, alugar uma suite por um preço razoável.

— E nós, como ficamos?

— Casaremos no dia 1.° de junho, como planejamos.

— Puxa, pensei que você jamais me pedisse — disse Mel sorrindo.

— Depois do casamento, iremos imediatamente para a Califórnia, passar a lua-de-mel. O Chefe vai nos conseguir uma casa.

— O Chefe?

— Ah, esqueci de lhe contar — balbuciou Neely. — Ele esteve em Nova York, na semana passada. Cyril H. Bean é o nome dele, mas ninguém o chama de Cyril ou de Sr. Bean. Chamam de O Chefe. É um velhinho muito simpático, mais ou menos cinquenta anos, pele bem tostada e cabelos brancos. É tão bondoso, verdadeiramente paternal. Vai alugar uma enorme casa para mim em Hollywood, por trezentos dólares mensais, com piscina e tudo. Só que me avisou para não tomar sol, pois já tenho sardas suficientes. Ele me disse que, se as coisas saírem bem e eu triunfar, poderei alugar uma casa em Beverly Hills.

— E qual é a diferença?

— Quem sabe? Achei que ele estava quase me pedindo desculpas porque a casa era em Hollywood. Fingi que não me importava. Imagine, Mel, uma casa com piscina!

— Neely. — Mel tomou-lhe as mãos. — Você sabe que eu a amo.

— Mel, começarei ganhando mil dólares por semana! Imagine a quantidade de dinheiro que teremos.

— Neely... o programa de Johnny Mallon é em Nova York.

— Desista dele.

— Sem mais nem menos?

— Mel, você está maluco? Só ganha duzentos dólares por semana.

— No próximo ano ganharei trezentos.

— Eu estarei ganhando mil, sem contar o dinheiro com os discos. A agência diz que vou faturar vinte e cinco mil só em discos no ano que vem. Imagine!

— E, enquanto isso, que é que eu farei? Ficarei sentado à beira da piscina?

— Mel, você está comigo. Nós somos um. Preciso de você e de toda a publicidade que puder obter; agora mais que nunca.

— O estúdio vai lhe dar alguém para isso.

— Sim, mas não será como você; é um agente para todas as estrelas. Quero que você trabalhe só para mim, e tome conta da parte financeira. Mel, nunca assinei um cheque na minha vida. Mesmo no apartamento, com as garotas, elas me dizem qual é a minha parte e eu dou o dinheiro. Não serei nem capaz de dirigir uma arrumadeira e uma cozinheira, nem saberei o que dizer. Nunca tive uma casa. Você vai tomar conta de tudo. Mel, você tem de vir. Não serei ninguém sem você.

— Não, Neely. Não vai dar certo.

— Por quê? Afinal, você é responsável por tudo isso. Como foi que consegui o contrato no La Rouge?

— Foi a sua agência que conseguiu.

— Mel, a agência só ficou interessada em mim por causa da publicidade que você vinha me dando. Não vieram correndo para mim quando estreei em Tocando as Nuvens. Talvez não fosse a cantora que sou hoje, e que Zeke criou, se você não me fizesse notada.

Ele pegou suas mãos.

— Zeke não lhe deu a voz que tem e não fui eu que a inventei. Você sempre foi o que é. Nós apenas ajudamos a chamar a atenção das pessoas para você.

— Então continue me ajudando, Mel.». . preciso de você, e o amo.

— Neely, duvido que dê certo. Nunca estive em Hollywood, mas sei como são essas coisas por lá. Seria sempre o Sr. Neely O'Hara. Ninguém me respeitaria.

— Você não está achando que eu vou frequentar as extravagantes festas de Hollywood ou me misturar àquela gente? Tudo será como aqui. Vivo recebendo convites para comparecer a estreias e, às vezes, nós vamos. E ninguém o chama de Sr. O'Hara.

— Aqui é diferente, Neely.

— Mas nós somos os mesmos! Ouça, Mel, quero trabalhar duro, ganhar bastante dinheiro e, talvez, dentro de uns cinco anos, dar um pontapé em tudo. E todos vão saber que você é responsável por mim. Eu não irei se você não for comigo.

— Neely...

— Mel, por favor...

O rapaz apertou-lhe a mão e disse alegremente:

— Está bem, sempre sonhei em ter um bronzeado à moda de Hollywood. Menina, o pessoal de Brooklin vai ficar impressionado.

 

                                                                           JENNIFER

 

                                     Dezembro, 1946

Jennifer, trepada numa cadeira, tentava colocar uma caixa de chapéus na última prateleira do guarda-roupa; se não se esquivasse rapidamente, duas malas cairiam na sua cabeça.

— Esta escassez de armários está se tornando insuportável.

Anne ajudou-a a colocar as malas novamente no lugar.

— Eu poderia oferecer o meu, mas já está completamente cheio das roupas que você me deu.

— Como é que um hotel espera que alguém possa viver com dois insignificantes armários? Por que é que Adele não se casou com um lorde inglês e ficou por lá? Meu Deus, como sinto falta daquele apartamento.

— Jennifer, os armários são enormes, mas ninguém precisa de tanta roupa.

— E eu não gosto de nenhuma.

— Jen, não se atreva a comprar mais um vestido! Eu já possuo o melhor guarda-roupa da cidade, só porque você enjoa de um vestido na primeira vez que o usa. Os olhos de Lyon saltam das órbitas quando vê a quantidade de novas criações que ando vestindo.

— Bem, se Tony me der um vison novo no Natal, você pode ficar com o velho.

— Velho? Você o ganhou no ano passado!

— Eu o odeio. Lembra aquele príncipe. Além disso, é um vison selvagem e combinará com o seu cabelo. Eu quero um bem escuro.

— Então eu o comprarei de você.

— Não seja boba!

— Eu tenho dinheiro, Jen. Henry aplicou os doze mil mais o dinheiro da venda do anel.

— Quanto lhe rendeu o anel?

— Bem, só conseguimos vinte mil por ele. Vale mais, mas a oferta era maior do que a procura. Henry investiu tudo em títulos, que não estão subindo muito, mas que me proporcionaram bons dividendos.

— Muito bem, não toque nas ações.

— Você só fala. No entanto, posou para o Vogue e para o Harper's esta semana e já não tem um vintém. Jenni-fer, você deve ter ganho uma fortuna desde que assinou contrato com o Longworth. Mas gasta tudo em roupas. E nem liga para elas, afinal.

— Como posso economizar se o que não gasto em roupas mando para mamãe? Como modelo, ganho de trezentos a quatrocentos por semana, e isso não é grande coisa. Não, o meu grande trunfo é Tony. Tenho vinte e seis anos, Anne, e não tenho nem muito tempo nem muito futuro. Tony se impressiona com as minhas roupas e os jornais dizem que sou glamourosa. Encaro isto como um investimento. Estou pondo tudo neste jogo. Se sair premiada com o casamento, serei independente pelo resto da vida.

— Ainda não vejo motivo para você se desfazer do casaco de vison.

— Toda gente já me viu com ele por mais de um ano. Se me casar com Tony, poderei comprar uma dúzia deles. Você, no entanto, a menos que o livro de Lyon faça um sucesso fora do comum, terá de esperar muito tempo por um vison.

— Bem, Lyon terminou seu livro na semana passada.

— Que ótimo! Então vocês já podem casar.

— Não é tão simples. — Anne sorriu. Em primeiro lugar, o livro terá de ser aceito por um editor. Lyon enviou-o a Bess Wilson, que é uma agente literária muito importante. Se ela gostar, e concordar em cuidar de sua publicação, será meio caminho andado. Qualquer editor lerá com o maior interesse um manuscrito indicado por Bess Wilson.

— Quando é que ele vai saber?

— Qualquer dias desses. Esperamos que antes do Natal. Ei, o disco de Neely acabou. — Anne correu para a vitrola e tirou o disco.

— Você está quase gastando esses discos — disse Jennifer.

— São tão bons e estou tão orgulhosa de Neely... Mal posso esperar pelo filme.

— Você se incomoda se eu desligar agora? Quero ler um pouco.

Anne desligou a vitrola.

— Jennifer, são duas horas da manhã. Precisamos dormir.

— A luz do abajur vai incomodá-la?

— Não. Fico preocupada por você dormir tão pouco. Às vezes, acordo no meio da noite e a sua cama está vazia.

— Estou fumando na sala, para não incomodar você.

— Por quê, Jennifer? Preocupa-se com Tony?

Jennifer encolheu os ombros.

— De certa forma, sim. Mas não tenho dormido faz mais de um ano. Estou preocupada também com Tony. Sabe, em fevereiro ele deverá ir à Califórnia, para um programa de rádio.

— Talvez ele a peça em casamento antes de ir para lá.

— Não enquanto Míriam não o largar. Quando estamos sozinhos, sou capaz de fazer com que ele concorde com tudo. E só estamos sozinhos na cama.

— Por que não fogem?

— Já pensei em fugir para Maryland; no momento em que levanta da cama, Tony faz o que Míriam ordena. Agora, vá dormir. Não há necessidade das duas ficarem acordadas.

— Tente dormir um pouco — disse Anne arrumando o travesseiro.

— Primeiro vou fazer meus exercícios e lubrificar o meu equipamento.

Jennifer fechou a porta do banheiro e pegou o pote de manteiga de coco. Olhou-se no espelho, sob a impiedosa luz do banheiro. Finíssimas linhas formavam-se sob seus olhos. Dentro de quatro anos, seria trinta anos! A peça estaria em cartaz até junho e fazia um ano que trabalhava nela. Nada acontecera ainda. Claro, sempre havia o pequeno contrato que lhe ofereceram na Twentieth. Mas, se ela o aceitasse e seguisse Tony à Califórnia, não conseguiria casar com ele nunca. Por outro lado, se ele fosse sozinho, será que sentiria tanta falta dela a ponto de chamá-la? Nunca! Míriam se encarregaria de cercá-lo de garotas lindas e... jovens.

Tony imaginava que ela tivesse vinte anos de idade. Se algum dia ele prestasse mais atenção a uma garota de dezenove ou vinte anos, poderia perder na comparação. Ultimamente, Míriam a observava disfarçadamente, fazendo perguntas esquisitas, tentando apanhá-la em uma armadilha, a respeito de datas na escola. Ainda bem que Tony não era muito inteligente. Jennifer parou de repente. Sim, era verdade, Tony não era nada inteligente. Ou Míriam nunca lhe dava oportunidade de mostrar sua inteligência? Não há dúvida de que tinha inteligência para representar. Sabia de pronto quando uma música saía quase que imperceptivelmente do tom. Não, Míriam é que não lhe dava nunca oportunidade para que ele pensasse por si. Míriam! Passou um pouco mais de creme sob os olhos. Tinha que dormir. Voltou para o quarto. Anne estava quase dormindo. Foi até a cama e apagou a luz.

Uma hora mais tarde, estava ainda completamente acordada. Esta seria mais uma daquelas noites. Saiu da cama quietamente e entrou na sala. Poderia dormir, se tivesse coragem. Pegou a bolsa e tirou dela um pequeno vidro. Ficou olhando para as pequenas cápsulas vermelhas em forma de bala. Irma lhe dissera: "Tome uma só, e dormirá por muitas horas".

Seconal. Irma lhe dera quatro cápsulas: "Para mim, valem ouro. Não posso dar mais que isso". Irma era a substituta de Neely na peça. Dizia que as pequenas "bolinhas" vermelhas tinham salvo sua vida. "Eu lhe daria mais algumas, Jennifer, mas você precisa arranjar uma receita médica. Eu só consigo dez cápsulas por semana."

Deveria experimentar? Era uma ideia que lhe causava medo, saber que uma cápsula, tão pequena, podia pôr a gente a dormir. Foi até a pequena copa e serviu-se de um copo d'água. Ficou segurando a cápsula por um momento, sentindo o coração bater forte. Podia conduzir ao vício... ridículo. Irma tomava uma, todas as noites, e estava sempre bem; estivera nervosa ao entrar na peça, e ainda continuava bastante nervosa, sete meses depois: "Sinto que toda a gente me compara a Neely quando canto. Ela está tão conhecida, agora que saiu o seu novo álbum".

Bem, uma simples pílula não podia fazer mal. Engoliu-a, pôs novamente o frasco na bolsa e correu para a cama. Quanto tempo demoraria? Ainda estava se sentindo completamente acordada. Podia ouvir a respiração compassada de Anne, o tique-taque do relógio na mesinha-de-cabeceira, os sons de tráfego lá longe... Na verdade, todas as sensações pareciam intensificadas. Então sentiu. Oh, Deus! Era fantástico! Seu corpo parecia flutuar... a cabeça estava pesada e, ao mesmo tempo, tão leve quanto o ar. Iria dormir... dormir... ah! aquela linda cápsula vermelha...

No dia seguinte, foi consultar o médico de Henry, que a tratou friamente. Estava em excelentes condições físicas. Que ideia era aquela?! Não, não receitaria Seconal. Que deixasse de tomar café e de fumar tanto; certamente, dormiria. E, se não dormisse, era porque o seu organismo não estava necessitando de sono.

— Não é assim que se faz — explicou Irma, alguns dias mais tarde. — Você não pode ir a um bom médico e, simplesmente, pedir Seconal. Precisa achar um médico humilde, cuja ética esteja um pouco "escondida".

— Onde? Irma, dormi quatro noites seguidas com aquelas abençoadas bolinhas vermelhas e foi um paraíso. Sem elas, há duas noites que não durmo.

— Procure um daqueles hotéis de terceira classe no West Side. Você verá uma placa de médico em alguma janela suja. Não entre e peça as pílulas. É preciso fazer todo o jogo. Entre e diga que você não é daqui. Califórnia é sempre um bom lugar. E não vá com o vison, que o preço será maior. Diga que não consegue dormir. Ele fingirá que está auscultando o seu coração, enquanto você continua a dizer que tudo o que necessita são algumas noites de sono. Aí, ele lhe dá uma receita para uma semana em troca de dez dólares, e saberá que, dentro de uma semana, você estará de volta; ele saberá que tem garantidos dez dólares por semana daqui por diante. Talvez você tenha que tentar alguns antes de acertar. Dois deles não quiseram fazer o meu jogo, mas a gente sempre acaba encontrando algum. E não vá ao Hotel Mackley, que é onde eu vou. Ele pode ficar desconfiado.

Jennifer achou o seu médico na Rua Quarenta e Oito. Sabia que tinha acertado, quando o viu tirar um estetoscópio empoeirado para auscultá-la. Depois, simplesmente puxou um caderno de receitas e perguntou:

— Nembutal ou Seconal?

— As vermelhas — murmurou Jennifer.

— Aqui tem uma receita para Seconal. Deve dar para uma semana, e fazê-la melhorar. Senão, pode vir novamente.

Anne estava encantada com a mudança operada em Jennifer. Não sabia das pílulas; estava, entretanto, contente por ver Jennifer dormir a noite inteira. Pensou se Tony lhe teria dado alguma palavra de encorajamento.

Alguns dias antes do Natal, quando Anne estava arrumando a maleta para passar, como de costume, o fim de semana com Lyon, Jennifer tomou a grande decisão.

— É isso: vou fazer com que Tony vá comigo a Elkton esta noite, ou então não o verei nunca mais. Fiz este plano ontem à noite. Se isso não funcionar, então terei ainda seis semanas para agir. Como ele vai ficar seis semanas na cidade, durante esse tempo poderei surgir com algum outro sujeito nos lugares em que ele estiver e deixá-lo maluco. Maluco a ponto de fazê-lo afrouxar e casar comigo. Se eu esperar até que ele vá para a Costa, estou frita...

— E onde estará Míriam esta noite?

— Onde sempre está... conosco. Hoje haverá uma estreia no La Bombra. Eu disse a Tony que iria para casa mudar de roupa depois de sair do teatro, e que ele me apanhasse aqui. Míriam estará esperando no La Bombra, com o resto do grupo. Eu o terei sozinho para mim e o pegarei de surpresa. E se eu conseguir, como pretendo...

Jennifer estava de roupão quando Tony chegou.

— Ei... vista-se depressa. O show começa à meia-noite e meia.

Ela se aproximou dele.

— Me abrace primeiro — disse suavemente.

Quando a largou, ele suspirou.

— Menina, me deixe respirar. Puxa, preciso de uma transfusão de sangue apenas estando perto de você. — Suas mãos acariciavam os seios de Jennifer; os dedos lutavam com os botões do roupão de cetim.

— Por que você usa esses botões todos?

Puxou a roupa dela até a cintura. Deu um passo atrás, respirando mais rapidamente.

— Jen, ninguém devia vê-los assim.

— São seus, Tony.

Tony afundou o rosto neles, ajoelhando-se.

— Não posso acreditar. Cada vez que toco neles, não posso acreditar. — Sua boca estava faminta, e ela segurava suavemente a sua cabeça.

— Não quero sair daqui — murmurou ele.

— Tony, vamos nos casar.

— Claro, menina, claro... — Continuava lutando com o resto dos botões. O roupão caiu no chão. Ela recuou. Ele engatinhou atrás dela. Ela recuou novamente.

— Tony, tudo isto — apontou para o próprio corpo — não é seu... é meu. — Ele a perseguiu, ela fugiu novamente. Continuava a passar as mãos pelo próprio corpo e a apontar entre as pernas. — É minha, também — disse corn suavidade. — Mas nós queremos você, Tony. Tire a roupa.

Ele arrancou a camisa com tanta fúria que os botões caíram ao chão. Ficou nu, parado na frente dela.

— O seu corpo é bonito — disse ela, com um sorriso vagaroso. — O meu é muito mais. E se acariciou demoradamente, enquanto ele a observava, com a respiração ofegante. Tony correu para ela, ela recuou novamente.

— Pode olhar... mas não pode tocar, até que tudo isso pertença a você.

— Mas me pertence... você é minha! — Tony estava quase rosnando.

— Por empréstimo. — Ela sorria docemente. — E agora, estou tomando de volta. A menos que queira ficar com tudo, para sempre.

Ele a seguiu, tremendo.

— Eu quero. Venha comigo... agora.

— Agora, não. Não, até que você se case comigo.

— Claro — disse alegremente. — Casarei com você. — Tony continuou a segui-la, ela fugia, sorrindo e acariciando o seu corpo todo o tempo, deixando que suas mãos deslizassem pelos seios, pelas pernas e entre elas, com os olhos sempre fixados nele.

— Quando é que vai casar comigo, Tony?

— Falaremos nisso mais tarde, logo depois de... — Tony continuava a querer alcançá-la, completamente hipnotizado pelo novo jogo que ela inventara. Jennifer deixava que ele a alcançasse, que a tocasse, que a mordesse, e então fugia.

— Jen. — O rapaz ofegava. — Que é que você está tentando fazer? Quer me matar?

— Vamos nos casar ou será esta a última vez na vida que você toca em mim.

— Vamos nos casar, sim...

— Já. Esta noite.

— Como é possível casar esta noite? Precisamos fazer exame de sangue. Precisamos de uma licença. Começaremos amanhã pela manhã. Eu lhe prometo.

— Não, até lá Míriam fará você desistir.

Mencionar o nome de Míriam tinha sido má estratégia.

Isso fez com que ele voltasse à realidade. Sua excitação começou a arrefecer. Rapidamente, ela atravessou a sala acariciando os seios e dizendo:

— Vamos sentir falta de você, Tony.

Ele se aproximou dela e agarrou-a.

— Case conosco esta noite, Tony. Nós o queremos. —Jennifer encostou-se nele.

— Como?

— Pegue o carro. Podemos guiar até Elkton, em Maryland.

— Quer dizer que nos casariam assim de repente?

— Isso mesmo.

— Mas, Míriam...

— Falarei com Míriam — disse ela. — Telefonaremos para ela assim que nos casarmos. Eu lhe direi, deixe que ela grite comigo. Você estará em meus braços, e eu lhe pertencerei inteirinha... para sempre. Toque em mim, Tony. Tudo isso lhe pertencerá. Você poderá me fazer tudo o que quiser. Mesmo as coisas que eu não deixo fazer agora. E farei tudo o que você quiser, tudo o que você me suplicou que fizesse... Depois de estarmos casados.

— Agora, por favor. Depois iremos a Elkton.

— Não. Só depois de Elkton.

— Não poderei suportar, não poderei esperar até lá.

Ela chegou mais perto.

— Sim, você pode. Porque esta noite, depois de nos casarmos, vamos nos divertir muito. — Os dedos dela o acariciavam minuciosamente.

Com a boca seca, Tony gritou: -

— Você ganhou. Por Deus do céu, vamos.

Ela se lançou ao seu pescoço.

— Você não se arrependerá. Eu o farei tornar-se um selvagem.

Houve uma batida seca na porta.

— Não estou esperando vivalma, Tony. Você disse a alguém que estaria aqui?

Ele sacudiu a cabeça. Ela se vestiu. Um mensageiro.

— É para Anne. Vou telefonar. Pode ser importante. Sentou-se na cama e ligou para o apartamento de Lyon. Tony entrou no quarto. Era uma estupidez fazer aquilo. Onde estava Anne? Por que não respondiam?

— Alô? — Era Lyon. — Sim, vou chamar Anne.

Tony começou a lutar com o roupão. Ela o empurrou.

— Alô, Anne. Acaba de chegar um telegrama para você. Claro, vou ler. Um momento.

Jennifer abriu o telegrama. Tony deitou-a com força na cama. Ela ficou segurando o fone com uma das mãos, o telegrama com a outra, enquanto, silenciosamente, tentava se livrar dele. Cobriu o bocal com a mão, dizendo baixinho-.

— Não, Tony! Agora, não. — Mas ele já estava em cima dela e ela olhava para o telegrama... — Oh, Deus! Anne, sim.... estou aqui... Anne! Bom Deus, sua mãe morreu! — Jennifer sentiu que ele a penetrava rudemente. Apertou os dentes e tentou manter a voz no mesmo tom, enquanto dizia: — Sim, Anne. Isso é tudo o que diz. Sinto muitíssimo. — Tony caiu atravessado sobre ela, arquejante de satisfação.

— Tony, isto não foi justo. Você simplesmente se aproveitou de mim.

Ele sorria preguiçosamente.

— Menina, com os dois predicados que você tem, o que é que esperava?

— É melhor nos vestirmos. Anne vem já para cá.

Ele vestiu a camisa.

— Puxa, eu estava doido por você, não é? Esta camisa ficou sem um botão. Vou dar um pulo no hotel e pegar outra.

— E arrume a mala, Tony.

— Para quê?

— Nós vamos a Maryland, lembra-se?

Ele sorriu.

— Agora não, menina. Se nos apressarmos, ainda poderemos ver uma parte do espetáculo do La Bombra. Esteja vestida quando eu voltar, dentro de vinte minutos.

— Tony, se não viajarmos hoje, você não me verá nunca mais.

Caminhou para ela e afagou o seu queixo.

-— Claro que a verei, menina. Eu sou o maior. Quem poderá me substituir?

Foi até a porta e disse, ainda:

— Vista alguma coisa sensacional. Os jornalistas estarão lá.

Jennifer ficou olhando para a porta fechada. Malditos! Malditos! Maldita mãe de Anne! Malditas todas as mães! Até na morte conseguiam fazer alguém sofrer. De repente, lembrou-se. Esquecera de mandar um cheque para a mãe naquela semana. E o Natal estava ali. A mãe vira um casaco de cordeiro persa e simplesmente tinha de comprá-lo. Queria, pelo menos, ter um casaco de pele antes de morrer. Foi até a mesinha e emitiu um cheque de quinhentos dólares, enfiou-o num envelope e escreveu: "Feliz Natal, e feliz casaco de cordeiro. Jeannete". Bem, pelo menos a mãe ia ter um Natal feliz. Quando é que ela teria um?

Começou a se vestir com pressa. Não queria estar ainda em casa quando Tony chegasse. Tinha de forçar as coisas. O tempo era tão curto!

Iria a Lawrenceville com Anne. Claro, devia isso a Anne como amiga. Chamou Henry Bellamy. Sua voz sonolenta tornou-se alerta quando ela lhe contou as novidades. Claro que devia ir com Anne. E que não se preocupasse, pois ele falaria com Gil Case. Devia também alugar um carro e mandar-lhe a conta. Seria mais fácil ir de carro a Lawrenceville do que se incomodar com as várias conexões dos horários de trem. Pobre Anne — uma tia e a mãe, tudo no mesmo ano.

Quando Anne chegou com Lyon, tudo estava providenciado. Jennifer tinha até arrumado uma maleta de viagem para Anne.

— Pus dois vestidos pretos e o seu costume cinzento.

— Poderemos tomar o primeiro trem da manhã — disse Anne.

— Não, é apenas meia-noite e meia e, de qualquer maneira, nunca durmo mesmo. Eu dirijo e você dorme durante a viagem. Estaremos lá amanhã cedo. Já aluguei o carro, que deverá estar lá embaixo a qualquer momento.

— Irei com o funeral — disse Lyon.

— Não, Lyon. Afinal, você nem conhecia minha mãe. Estarei bem com Jennifer e você poderá dedicar mais tempo ao livro.

— Telefone quando chegar.

Jennifer apressou-se a descer. O porteiro estava esperando ao lado de um enorme carro preto. Deu as chaves e os documentos a Jennifer e, em cinco minutos, já estavam a caminho. Lyon ficou olhando as luzes do carro se misturarem ao tráfego. Tudo acontecera tão depressa, estava espantado com a liderança assumida por Jennifer. Enganara-se ao julgá-la; positivamente, ela não era fútil. Desceu à rua; por pouco não se encontrou com Tony Polar, que chegava em um táxi.

O funeral foi na segunda-feira. Em Lawrenceville, Anne encarregou-se friamente de tudo. A mãe morrera em um acidente do qual ela mesma tivera culpa: ultimamente, sofria de catarata. Enquanto tia Amy vivia, era ela quem dirigia. Mas, após a morte de Amy, insistira em dirigir. Numa noite de chuva, quando voltava de um jogo de bridge, na igreja, não conseguiu ver a tempo o enorme caminhão. Um choque terrível, a morte instantânea.

O funeral foi sereno e dignificante. Lyon e Henry enviaram enormes arranjos de flores. A Srta. Steinberg e as moças do escritório também enviaram uma coroa. À noite, Anne se dispôs a enfrentar a rotina de receber os amigos. Toda a cidade compareceu para expressar seus sentimentos, e olhar Jennifer.

Na terça-feira de manhã, Jennifer falou da volta a Nova York. Estavam sentadas na ensolarada sala, tomando café. Jennifer gostara de Lawrenceville. Divertiu-se com a admiração de toda a cidade. Mais que tudo, no entanto, ficara impressionada com a enorme casa que pertencia agora a Anne.

— Preciso voltar por causa da peça — disse Jennifer. — Imagino, porém, que você gostará de ficar mais algum tempo.

— Eu? E para quê?

Jennifer olhou à volta.

— Bem, esta casa. Você não pode largar tudo e ir embora.

— Já falei com meu advogado. Dei instruções no sentido de que ele a ponha à venda, com móveis e tudo.

— É uma casa tão linda, Anne. Talvez fosse melhor você alugá-la.

— Eu a odeio. Eu odeio esta cidade. Por isso quero cortar todas as amarras que me possam ligar a isto. Se continuar com a casa, ela será sempre um motivo para que ainda volte aqui. Se a vender, então saberei, que nunca, jamais, voltarei aqui.

— Sua infância foi tão infeliz assim?

— Infeliz, não. Feliz, também não. Não foi coisa alguma.

— Imagino que você não gostava de sua mãe.

— Bem, eu não gostava dela. Mas não a detestava. Nunca me deu oportunidade para nenhuma dessas alternativas. Não a culpo por isso. Culpo Lawrenceville. Oh, Jennifer prefiro passar o resto da minha vida naquele pequeno quarto da Rua Cinquenta e Dois a morar aqui. Lawrence-ville me sufoca. Posso sentir isso quase que fisicamente. Durante todo o tempo que passei aqui, conheci umas trinta garotas e nenhuma delas se tornou minha amiga. Estou em Nova York há pouco mais de um ano, e tenho você, Neely e Lyon.

— Bem, quanto a mim e a Lyon, eu garanto. Mas não temos tido notícias da nossa estrela de cinema há meses.

— O filme dela estreia em março. Imagine, sua primeira fita estrear no Music Hall.

— É, parece que ela vai muito bem. Li em algum lugar que já começou a fazer o segundo filme. Quando começará a ter filhos? E Mel, será que engordou? Era tão magro!

As duas riram e Jennifer serviu-se de mais café.

— Bem, preciso partir hoje à tarde. Chegarei a Nova York tarde da noite. Pelo menos, amanhã, faço a matinê. Tony, provavelmente, deve estar pensando que fui raptada, pois não deixei nenhum recado. E Míriam deve estar comemorando. — Pensou muito em Tony durante a monótona viagem de volta a Nova York. Mesmo que as coisas dessem certo e eles se casassem, sempre haveria Míriam. Para Tony, ela era um tabu.

— Ela me criou, deu sua vida toda para isso — gritava Tony, quando ela se queixava da eterna intromissão da irmã na vida deles. — E é a única pessoa no mundo que se importa mesmo comigo.

Míriam, entretanto, não podia ir para a cama com eles. E depois, não queria casar com ele apenas pelo dinheiro e pela segurança. Queria também ser uma boa esposa. Queria ter filhos. Tony ganharia tanto quanto ela. Não pretendia enganá-lo. Enganá-lo? Teria graça. Um homem era exata-mente igual a qualquer outro. Tony conseguia satisfazê-la, qualquer um conseguiria. Maria lhe ensinara os segredos do seu corpo e como conseguir excitar-se. Era fácil...

Sua caixa de correspondência estava repleta: recados da Agência Longworth (esquecera de notificá-la), recados de Tony. A telefonista do prédio informou-a de que o Sr. tony Polar tinha acabado de chamá-la, pela décima vez naquele dia. Jennifer sorriu satisfeita. Duas horas da manhã. Subiu ao apartamento e despiu-se; não tomou Seconal. Na cama, ficou esperando.

Vinte minutos depois, o telefone tocou. Sentiu o alívio de Tony quando respondeu. Ele rosnou:

— Onde é que você se escondeu?

— Longe daqui.

— Eu sei. — O tom de sua voz mudou e, em seguida com súbito fervor: — Escute, menina, tenho estado meio doido. Onde é que se meteu?

Não se convenceu de todo quando ela lhe contou. Nem ficou sossegado.

— Desde quando sai correndo da cidade para assistir a funerais?

— Anne é a minha melhor amiga.

— Está certo, mesmo assim você ficou fora da cidade um tempo enorme. Que foi que aconteceu? Será que um dos carregadores do caixão era tão bonito?

— Todos eram. Na verdade nunca vi tantos homens bonitos como nessa cidade — disse ela docemente.

A verdade é que não tinha falado com um homem que não tivesse para mais de cinquenta anos.

— Jen — disse ele suavemente —, posso ir até aí?

— Tony, são quase três horas.

— Posso chegar aí em cinco minutos.

Ela forçou um bocejo.

— Sinto muito, estou exausta.

— Então amanhã. De tarde. Às três horas tenho uma gravação, estarei livre mais ou menos às quatro.

—- Tenho matinê. É quarta-feira, você se lembra?

— Então estarei aí depois da matinê.

— Não. Você sabe que fico maquilada até o espetáculo da noite. Além disso, desmancharia o meu penteado.

— Está bem, está bem. Então vou levá-la para jantar.

— Vamos ver... — E desligou.

Não foi para casa depois da matinê. Esforçou-se para assistir a um filme entre os dois espetáculos. Depois da sessão noturna, deu instruções ao porteiro para que dissesse a Tony que saíra se ele perguntasse, e ficou no caminho até a hora de fechar o teatro. Sim, o Sr. Polar tinha vindo, ele dissera o que ela mandara. Deu cinco dólares ao porteiro e foi para casa a pé.

O telefone estava tocando quando entrou no quarto. Deixou que tocasse. Continuou tocando a cada vinte minutos. Toda vez que ela perguntava à telefonista, era sempre o Sr. Polar. Finalmente, às cinco horas da manhã atendeu ao telefone ao terceiro toque.

Ele estava furioso.

— Onde é que você esteve?

— Fui ao cinema entre os dois espetáculos. — Deliberadamente fez com que parecesse mentira.

— Sim, claro, e nesta noite? Não há dúvida de que. saiu voando.

— Eu estava lá. O porteiro deve ter se enganado.

— Imagino que esteve em casa a noite toda?

— Mmmmmmm...

— Bem, para sua informação, chamei desde as onze e trinta, em intervalos de vinte minutos. Você simplesmente acaba de chegar. — A voz dele era triunfante.

— Eu devia estar dormindo, não ouvi o telefone.

— Não duvido. Provavelmente, dormindo com alguns daqueles bonitões que você encontrou no funeral.

Jennifer desligou o telefone com um sorriso de beatitude. O plano estava funcionando. Entrou no banheiro e pegou um vidro cheio de cápsulas vermelhas. Que sorte inesperada. Em Lawrenceville, falou inocentemente ao velho Dr. Rodgers sobre o seu problema de insónia. E ele, cego pelo seu sorriso, foi muito compreensivo. Os funerais, em geral, davam insónia nas pessoas. No dia seguinte, apareceu com um vidro de vinte e cinco cápsulas de Seconal.

Ouviu o insistente toque do telefone novamente. Tony não desistia. Pediu à telefonista que não a chamasse maís, que dissesse que ela não estava aceitando mais chamados naquela noite. Como precaução extra, passou a corrente de segurança na porta. Então, abriu o vidro de pílulas. Pegou duas, pensando: se uma funciona tão bem, imagine duas — a mais deliciosa sensação do mundo! Pôs suavemente a cabeça no travesseiro e o delicioso torpor começou a percorrer o seu corpo. Oh, Deus! Como é que ela conseguira viver sem aquelas deliciosas bolinhas vermelhas?

Continuou a brincar de gato e rato com Tony ainda por dois dias. E todas as noites olhava para o vidro de Seconal com afeto. Nunca teria conseguido aquilo sem as pílulas; passaria as noites fumando, preocupada, sem dormir, acabaria perdendo a coragem.

Na sexta-feira, de noite, Tony estava à entrada do teatro quando ela chegou. Agarrou-a rudemente pelo braço.

— Está bem, você ganhou. Vamos a Elkton esta noite... já.

— Mas eu tenho espetáculo agora, e amanhã, matinê.

— Direi ao diretor que você está doente.

— Todos vão ler nos jornais amanhã que nós fugimos para casar. E eu serei despedida, e talvez até chamada à ordem pelo sindicato dos atores.

— E daí? Você será a Sra. Tony Polar. Não pretende continuar trabalhando na peça, não é?

(É claro que não pretendia — seria alguma maluca? E, depois, Henry arranjaria tudo para ela.)

Agarrou Tony pelo braço e disse:

— Diga a eles que estou muito doente, Tony. Na verdade, estou mesmo começando a ficar tonta.

Jennifer estava feliz e Tony estupefato. Estavam casados: os jornais de Elkton foram informados. Posaram para os cinegrafistas e fotógrafos locais. Fizeram declarações à AP e à UPI. Finalmente, conseguiram chegar até um pequeno hotel fora da cidade. Agora, enquanto Tony estava sentado à beira da cama, observando Jennifer desarrumar a mala, todo o torpor causado pela excitação começou a se desvanecer. Ficou subitamente muito assustado.

— Míriam vai me matar — disse ele vagarosamente.

Jennifer chegou perto dele e o abraçou.

— Você não é uma criança, Tony. Você é meu marido.

— Terá de ficar ao meu lado quando lhe dissermos — murmurou.

— Sou sua mulher, querido. Ficarei sempre a seu lado.

— Mas ela vai ficar tão furiosa, Jen...

Lágrimas lhe vieram aos olhos de repente; enterrou a cabeça no travesseiro e ficou soluçando.

— Estou com medo, Jen... estou com medo.

Por um momento, Jennifer ficou parada. Sentiu uma onda de repulsa e uma vontade louca de sair correndo... mas, para onde? Ninguém compreenderia. Todos pensariam que havia algo de errado com ela. Tinha de fazer com que esse casamento funcionasse de alguma forma. Afinal, Tony era um astro; e os artistas tinham suas manias. Talvez fosse isso. Tony era bastante mais emotivo que a maioria dos homens.

Sentou na cama e pôs a cabeça dele no seu colo.

— Tudo vai ficar bem, Tony — disse suavemente.

— Míriam vai se sentir ofendida. E vai gritar comigo __ Olhava para ela com os olhos cheios de lágrimas; e acrescentou: — Você é a culpada. Você é que me obrigou a isso.

— Eu já lhe disse que enfrentarei Míriam.

— Sinceramente? Você vai fazer isso?

— Claro que sim. Lembre-se de que sou sua mulher. — E acariciou a sua cabeça.

Tony tocou nos seios dela. Vagarosamente, enxugou as lágrimas e começou a sorrir.

— Então agora posso fazer tudo o que quiser com você.

— Sim, Tony... — Ela conseguiu sorrir.

Ele puxou o roupão que ela vestia e ordenou:

— Vire.

Jennifer apertou os dentes em agonia à medida que ele... depois, sentiu as unhas dele rasgarem suas costas, Sorria, Jen, disse para si mesma... você conseguiu o que queria... agora você é a senhora Tony Polar.

Míriam amassou o telegrama e ficou olhando para o espaço. Elkton! Bem, aconteceu, apesar de ela ter tomado todas as precauções. Duzentos dólares por semana para aquele Ornsby! Levantou o telefone e discou violentamente.

— Desculpe interromper o seu sono, Sr. Ornsby, acontece que eu não estou lhe pagando para dormir — gritou.

O homem acordou instantaneamente.

— Eu o segui até a porta do teatro, às oito. Ficou esperando por ela até oito e pouco e começaram a conversar. Sabia que ela devia entrar daí a meia hora. Então resolvi sair por alguns minutos e comer qualquer coisa. Sabia que, durante três horas, podia ficar sossegado, pois ela tinha de entrar na peça. Voltei às onze horas. Não o vi por perto. Quando vai buscá-la, chega às onze e quinze, o mais tardar. Esperei até as onze e meia, e então fui para o meu posto no hotel. Saí de lá há pouco tempo, e ele ainda não tinha chegado. Verifiquei em todas as boates, ele não está em nenhuma. Por isso, achei que devia ter algum outro encontro esta noite, e ela também. Ela o tem evitado todas as noites e tem ido para casa sozinha depois do espetáculo.

— Bem, esta noite ela não entrou no teatro. Fugiram Para casar — gritava Míriam.

Houve um breve silêncio no outro lado da linha.

— Tenho pago a você duzentos dólares por semana, apenas para evitar que acontecesse isso. Afinal de contas, que espécie de detetive você é?

— Um dos melhores — respondeu o homem rispidamente. —- Mas aqueles dois são de amargar. Muitas noites eu congelei o meu traseiro, observando o hotel dele, enquanto os dois estavam bem quentinhos e confortáveis na cama... Perdão, senhora, mas eu não sou o FBI. Tenho de comer e, de vez em quando, fazer xixi. Acredito que a única hora em que estou garantido é quando aquela sujeita está no palco. Quem poderia imaginar que ela iria faltar ao espetáculo?

Míriam bateu o telefone. Reconheceu, porém, que o homem tinha razão. Jennifer tinha sido muito esperta. Suspirou. Tomara tanto cuidado e agora, provavelmente, tudo iria por água abaixo. Até agora, o público, todos tinham sido enganados. Aceitavam as respostas infantis de Tony como parte do seu encanto. Alguns até acreditavam que se tratava de um fingimento muito inteligente. Apenas Míriam sabia da verdade, e ela a tinha ocultado de todos, até mesmo de Tony. Com uma mulher, funcionava como um homem, só fisicamente. Seu talento era uma dádiva do céu. Quando cantava, fazia, automaticamente, tudo certinho. Mentalmente, emocionalmente, Tony não tinha mais de dez anos de idade.

E agora? Até agora estivera presente a todas as entrevistas que o irmão dera e conseguira encobrir a verdade. Agora havia Jennifer. Até que ponto teria Jennifer adivinhado? Ela não tinha particularmente nada contra a moça. Provavelmente, devia estar verdadeiramente atraída por Tony. E por que não? Ele era bonito, talentoso, sensual. Talvez não tivesse notado nada. Afinal, não estavam nunca sozinhos, a não ser para o sexo. Míriam se encarregara de ficar sempre com eles e de fazer com que estivessem sempre rodeados por um ou dois escritores e letristas. Tinha treinado Tony a acertar isso. "Um astro sempre anda com um grande grupo" — incutira-lhe na mente. ~E agora ele só achava natural viajar e circular cercado de uma porção de gente. Dessa maneira, não havia oportunidade para que alguém conversasse mais demoradamente com ele.

Até o aparecimento de Jennifer, tudo fora fácil. Míriam sabia que ele precisava satisfazer-se fisicamente, e ela sempre o encorajava a isso, cuidando, ao mesmo tempo, que tudo se realizasse em bases transitórias. Em geral, sempre havia uma corista, nos lugares em que Tony cantava, disposta a aparecer com ele e brilhar um pouco à sombra de sua glória, até que tudo terminasse com votos de mútua afeição e um presente que a deixasse satisfeita. Fora sempre assim, até ele conhecer Jennifer. Míriam fizera tudo para que rompesse. Cada vez que saíam da cidade, praticamente atirava-lhe nos braços as mais belas garotas do mundo. Ele as tomava, também, mas sempre voltava para Jennifer. Só lhe restava esperar que a estada na Califórnia terminasse com tudo. E agora, a menos de duas semanas da viagem, acontecia isso.

Míriam suspirou. A maioria das pessoas achava que ela não largava Tony porque gostava do reflexo que a glória dele lançava sobre ela. No entanto, teria dado qualquer coisa para ter uma vida normal e sossegada. Só não podia abandonar Tony. Por isso, ali estava ela, uma virgem de quarenta e quatro anos, conduzindo Tony para um sucesso espetacular. E por que devia ser assim? O pecado dos pais, pensou tristemente. Sim, os pecados caíram sobre Tony, e ela é que tinha de aguentar o pior; a culpada de tudo, a infeliz mãe que tiveram, quantos segredos escondera de Tony e do mundo! Inventara a bela história de um pai que morrera em um acidente ferroviário, antes que Tony viesse ao mundo. A mãe, todos imaginavam uma linda e frágil mulher; não suportando o choque da perda do marido, morrera, também, ao dar à luz o garoto, deixando Míriam, uma menina de quatorze anos, a cuidar do bebé. A imprensa acreditara na história, Tony também. Nunca soube que o pai, como o pai de Míriam, seria sempre um mistério, não desvendado nem pela própria mãe.

A verdade é que os dois tinham sido gerados por homens diferentes, dos muitos que passavam, todas as noites, pelos braços da pobre mãe. O que lhe deu Tony devia ter sido belíssimo... Pensou na vida errante da mãe, trabalhando como garçonete-cantora. Ela tinha jurado que o pai de Míriam era um bom sujeito de Pittsburg. Talvez. Mas o pai de Tony, fosse lá quem fosse, devia ter sido muito bonito. Tony herdou, sem dúvida, as características mais bonitas do pai e da mãe: os olhos da mãe, cobertos por uns cílios inacreditáveis; o nariz curto, a boca sensual; ela, de baixa estatura e quase sem um traço de beleza. Sorriu tristemente. O tal sujeito de Pittsburg podia ser um homem muito bom, mas, decididamente, não era nenhum Robert Taylor. Na verdade, se algum dia encontrasse, em Pittsburg, um homem baixo e gordo, o nariz parecendo uma batata, certamente sentiria vontade de chamá-lo de "papai".

Escolhera o nome Polar por simples sentimentalismo. O amante mais bondoso e permanente que a mãe teve chamava-se Polarski. Sempre gostara dela, então uma tímida menininha, e nunca se esquecia de lhe trazer um pequeno presente e de lhe acariciar o rosto. Jamais o esqueceu. Por isso, anos depois, ao pensar em um sobrenome para ela e Tony, encurtou o nome de Polarski, num silencioso tributo.

Não foi difícil esconder a verdadeira identidade dos dois, nem da imprensa nem do próprio Tony. Toda cidade tinha mulheres como a mãe, mulheres já não tão jovens, que tocavam piano e cantavam, com voz rouca, pelos bares. Belle começara a cantar no Tony Pastor, única época dourada de sua vida. Daí por diante, passou para os bares e cervejarias, e de homem para homem.

Míriam nasceu em um hospital de caridade de Filadélfia. Belle internou-a em um abrigo de menores até a idade de oito anos. Quando encontrou um emprego, que parecia mais ou menos permanente, em Coney Island, mandou buscá-la. Então, por alguns anos, Míriam conheceu o luxo de morar em um apartamento com dois cómodos, e a afeição paterna do Sr. Polarski; quando ele seguiu o seu caminho, veio uma terrível sucessão de homens. Belle já estava ficando madura e as duas ficaram estarrecidas quando ela descobriu que estava novamente grávida.

Permaneceu no emprego até os seis meses de gravidez; quando o vestido não podia esconder mais sua condição, foi despedida. Mudaram-se para um quarto e Míriam, então com quatorze anos, deixou a escola e se empregou como balconista. Não tinham amigos nem vizinhos. Uma noite, Belle teve de ser conduzida ao hospital em uma ambulância, Míriam sempre ao seu lado. Morreu cinco minutos depois de ter dado à luz um garoto.

Míriam levou o bebé para casa. Foi fácil convencer o pessoal do hospital que havia uma avó em casa para cuidar dele. E, completamente sozinha, a garota de quatorze anos criou Tony. Quando recordava aqueles anos, parecia impossível o que conseguira. As primeiras semanas, a mamadeira, as fraldas, os duzentos dólares que ela e a mãe conseguiram economizar, cada centavo contado, a alimentação de sopa em lata e enormes caixas de bolacha barata.

Quando tinha quatro meses de idade, Tony teve a primeira convulsão. Outra vez, a ambulância e o hospital. Testes, muitos médicos, Tony teve de ficar no hospital durante um ano. Míriam, mesmo desesperada de preocupação, pôde conseguir um emprego, que lhe permitiu economizar algum dinheiro. Então, devolveram-lhe Tony. Até os cinco anos de idade ele teve muitas convulsões e muitas idas ao hospital. Daí por diante, as convulsões pararam e ela o matriculou no jardim de infância. De alguma forma, o menino conseguiu passar para o segundo ano; foi aí, porém, que lhe sugeriram uma escola especial para o garoto. Resolveu mantê-lo em casa, não iria permitir que o seu Tony se misturasse a um grupo de crianças malucas. Pacientemente, ensinou a ele tudo o que era capaz de aprender.

Sim, fora quase impossível. Aos quinze anos, a gente pode sobreviver a tudo. Aos vinte, pode-se lutar contra o próprio mundo. Agora, porém, as dificuldades estavam se amontoando novamente e Míriam estava cansada. Algumas vezes, quase chegara a confessar a verdade a Jennifer, para que a moça se convencesse de que qualquer ideia de casamento com Tony seria uma loucura. Seria arriscar muito. Vamos que a moça se voltasse contra eles e espalhasse a história? Destruiria a carreira de Tony, e o próprio Tony.

Mas ela não podia desistir de tudo agora. Custara muita luta chegar aonde estava. Deus, tinha lutado até contra o Exército! Tony se entusiasmara com o aviso para servir, era como brincar de soldado. A carreira dele estava começando, nunca soube das viagens secretas que ela fizera a Washington, da burocracia que tivera de enfrentar e da insensibilidade das altas patentes militares. Estava quase desistindo quando encontrou o Major Brackman. Ele tinha um irmão como Tony. Leu todos os relatórios médicos, que Míriam guardava num enorme envelope pardo. O neurologista do Exército examinou Tony e, finalmente, Míriam recebeu uma nova coleção de relatórios para guardar no envelope pardo. Ele foi recusado definitivamente pelo Exército. O major se encarregou de declarar aos jornais que Tony fora rejeitado por causa de um rompimento do tímpano.

Não, não desistiria agora. Lutara contra o Exército, contra a imprensa, contra esse mundo maldito, não iria permitir que uma loira sabida estragasse tudo. Ficaria com eles. Iriam para a Costa, dentro de duas semanas, ela iria junto. Quem sabe... era possível até que tudo desse certo. Amarrou o roupão em torno do corpo cansado e, resolutamente, organizou um plano de ação. Avisaria a imprensa, os colunistas. A quem devia dar o furo? Não, melhor que não favorecesse a ninguém especialmente. Os serviços telegráficos deviam ter notificado todos os jornais. Quando eles voltassem, arranjaria entrevistas com Jennifer e Tony.

 

                                                                              ANNE

 

                                   Dezembro, 1946

Na noite em que Anne voltou a Nova York, encontrou o quarto completamente desarrumado e uma nota de Jenni-fer sobre a mesinha-de-cabeceira. "A luta foi dura, mas eu ganhei. Quando você estiver lendo este bilhete, já serei a Sra. Tony Polar. Desejo-lhe boa sorte. Jen."

Ficou contente por Jennifer; a vitória dela, entretanto, pareceu dar mais ênfase à melancolia de sua situação. Lyon telefonou para Lawrenceville, para contar a grande novidade. Bess Wilson gostara do livro, achava que prometia muito; disse, porém, precisar ser inteiramente reescrito antes que pudesse mostrá-lo a um editor. Lyon estava entusiasmadíssimo. Claro que isso significava ficar sentado à máquina de escrever por mais seis meses; mas Bess Wilson gostara do livro e ela era difícil de contentar...

Anne tentou esconder o seu desapontamento. Seis meses mais... e, agora, Jennifer fora embora. A suite do hotel parecia tão vazia... Poderia pagar sozinha pela suite. Tinha bastante dinheiro, ou melhor, teria, assim que tudo ficasse em ordem. Infelizmente, ainda não pudera se livrar de tudo o que a ligava a Lawrenceville, simplesmente entregando ao Sr. Walker as chaves. Vários ajustes legais exigiam sua presença, o testamento devia ser formalizado; quanto aos móveis, não poderia simplesmente jogá-los na rua. O Sr. Walker dissera que cada peça tinha algum valor. Tudo teria que ser etiquetado e enviado a Boston ou a Nova York para ser leiloado. Apuraria bom dinheiro com isso. A mãe deixara também cinquenta mil dólares em bónus, em ações e em dinheiro. O dinheiro de tia Amy também seria para ela. Vinte e cinco mil dólares. O Sr. Walker achava que poderia conseguir quarenta mil dólares pela casa vazia, bem situada e em um terreno de um acre de ótima terra. Sim, teria bastante dinheiro, mais de cem mil dólares, sem contar com a venda dos móveis; devia, porém, voltar a Lawrenceville, pelo menos por uma semana. Estremeceu. Só de pensar em mais uma semana naquela casa ficava inexplicavelmente deprimida.

Tomou um banho rápido, mudou de roupa e pegou um táxi para ir ao apartamento de Lyon. Estava escrevendo quando chegou.

— Vamos, entre na masmorra — disse-lhe, abraçando-a carinhosamente. — Não se incomode com o lixo, trabalhei a noite toda. Está saindo, mais facilmente do que esperava.

Anne forçou um sorriso.

— Fico contente com isso, Lyon. Tenho certeza de que será um bom livro... — Pegou um maço de páginas recém-terminadas e passou os olhos por elas. — Essa não é a época apropriada para ficar presa em Lawrenceville, mas vou levar o que você terminou e passar a limpo.

— Que é que eu faria sem você? Minha letra parece hieróglifos. — De repente enrugou o cenho. — Acho que tudo isso não é justo, você tem sido tão paciente... E agora ainda tenho que reescrever tudo.

Anne sorriu.

— Eu lhe disse que esperaria para sempre, se fosse necessário. Não se incomode com o meu humor sombrio, Lyon. Lawrenceville me deixa assim.

Mais tarde, nos braços de Lyon, Lawrenceville parecia estar a milhares de quilómetros de distância. Como se nunca tivesse existido. Só bem mais tarde é que ela se lembrou de contar a respeito do casamento de Jennifer.

— Estou contente por ela — disse ele. — Mas isso não a deixa numa pequena dificuldade, isto é, sem companheira de quarto?

— Tenho dinheiro, Lyon. Minha mãe deixou algum.

— Não diga a ninguém. Algum caçador de dotes pode agarrá-la.

— Lyon, por que não nos casamos? Tenho dinheiro suficiente para vivermos durante... bem, durante muito tempo.

— E você levantaria cedo todas as manhãs e iria trabalhar ...

— Para não atrapalhá-lo. Uma vez que o livro estivesse publicado, só trabalharia para você. Datilografaria seus manuscritos, cuidaria da correspondência das fãs...

— Não é assim que a coisa funciona, Anne Você sabe o que Bess Wilson disse: ainda que seja um bom livro, talvez não ganhe com ele nada mais que uma pequena reputação. Aí, teria de trabalhar mais um ano, sem receber dinheiro algum. E não pense que não gostaria de escrever, o tempo todo. Estas últimas noites provaram que a gente se acostuma a um certo ritmo, quando pode se dedicar ao trabalho horas a fio.

— Então eu tenho razão — disse Anne, sentando-se.

— E também não tem. Anne, tenho algum dinheiro; até que comece o próximo livro, teria gasto tudo. Então teria de lhe pedir, até para comprar cigarros. Ficaria humilhado demais para escrever. Não, querida, não dá certo.

— Que é que espera que eu faça? Que fique sentada aqui, torcendo para que você ganhe o Prémio Pulitzer?

— Não. Sente-se e espere para ver como será recebido esse livro. Mas não tenho nem certeza absoluta de que será publicado.

— Será. Tenho certeza de que será. E eu esperarei. — Ficou por uns momentos pensativa e perguntou: — Quanto demora para se publicar um livro?

Ele riu e a tomou nos braços.

Anne passeava, de um lado a outro, pela plataforma de madeira da estação de Lawrenceville. Como de costume, o trem estava atrasado. Pobre Lyon! A viagem de cinco horas até Boston já era horrível, e tomar o trem local, sem aquecimento, que fazia tantas paradas...

Os últimos três dias tinham sido terríveis para ela. Agradeceu a Willie Henderson tê-la conduzido a todos os lugares em seu novo carro. Havia tanta burocracia ligada a cada pequeno detalhe, e, às vezes, parecia que nada ficaria resolvido. Teria, ainda, que ficar até meados da próxima semana, para que o leiloeiro de Boston viesse discutir os detalhes sobre os móveis. Tudo devia ser discutido, tudo devia ser feito de acordo com a burocracia legal. Era como se tivesse caído numa armadilha.

Lyon, porém, vinha passar o fim de semana com ela, dois maravilhosos dias juntos; para isso, até Lawrenceville servia. Pela primeira vez, a enorme cama da mãe abrigaria duas pessoas unidas pelo amor. Quando a arrumara naquela tarde, ficou imaginando quantas noites de frustração o pai passara nela, quantas rejeições teria recebido de sua mãe, uma mulher emocionalmente virgem.

— Bem, prepare-se para ter esta noite muitas surpresas — murmurou para a velha cama, enquanto lhe dava um último olhar.

Agora, contudo, quando estava na estação, à espera de Lyon, ficou imaginando se isso tinha sido prudente. Toda Lawrenceville saberia que Lyon ficaria ali, hospedado na casa dela. E daí? Depois que vendesse a casa, jamais a veriam novamente. Bolas para a cidade! Não se incomodaria com o que pensassem.

Ouviu o apito do trem se aproximando e o viu primeiro. Uma finíssima neve começara a cair, pondo manchas nos negros cabelos de Lyon à medida que ele caminhava pela plataforma. Sentiu aquele aperto no peito, sempre que via Lyon. Quando chegaria o dia de ficar sossegada, certa de que ele lhe pertencia? Agora, quando o viu sorrir ao cumprimentá-la, sentiu, com assombro, que sim, que ele lhe pertencia. Viera a Lawrenceville apenas para estar com ela.

— Já não acreditava que chegaria — disse ele, abraçando-a. — Meu Deus, a quantidade de cidades por que passamos! Aposto que ninguém sabe que existe uma Roma em Massachusetts.

— Ou uma Lawrenceville — disse Anne.

— Lawrenceville toda a gente conhece. Você a fez famosa. Como é que se vai à mansão dos seus ancestrais? De trenó?

Levou-o até um táxi. Aconchegou-se a ele, enquanto olhavam a paisagem pela janela.

— Não precisava dizer ao motorista para onde vamos?

— O Sr. Hill sabe onde todas as pessoas da cidade moram. Se você tivesse chegado sozinho, ele o levaria, sem perguntas, ao pequeno hotel.

Lyon sorriu.

— Gosto disso. Um pouco diferente dos táxis de Nova York. Bem, mas esta sua terra é muito bonita.

— A neve ajuda — disse Anne sem entusiasmo.

— Quando foi que começou? O tempo em Nova York estava bom.

— Deve ter começado em agosto. Aqui neva durante quase todo o tempo.

Ele pôs o braço ao redor dos ombros dela.,

— Não vai ficar deprimida, não é? Quando você odeia uma coisa, parece que não há remédio.

— Dei vinte anos de minha vida a Lawrenceville. Acho que isso é suficiente para qualquer cidade.

Lyon adiantou-se pata falar com o motorista.

— O senhor gosta de Lawrenceville, Sr. Hill?

— Claro, por que não? Nasci aqui. É uma bela cidade. A Srta. Anne acaba de passar por muitos desgostos aqui, mas vai mudar. Logo que fique aqui por algum tempo.

— Eu lhe disse que ia embora para sempre, Sr. Hill.

— Tenho certeza de que quando chegar a hora de vender sua bela casa a senhorita vai mudar de ideia. Lembro ainda do dia em que sua mãe nasceu, naquela mesma casa. E sou capaz de apostar que os seus filhos nascerão lá também. Claro que agora já temos o grande hospital de Wes-ton, a oito milhas daqui. Melhor que muitos hospitais de Nova York. Imagine que Boston mandou buscar o pulmão de aço em Weston quando houve a epidemia de pólio.

O táxi entrou na estrada que levava à casa de Anne e parou defronte a ela. Lyon desceu e a olhou silenciosamente.

— Esta casa é sua? — Voltou-se para Anne, com os olhos iluminados de admiração. — Anne... esta casa é belíssima!

— Parece pitoresca, assim na neve — disse Anne sombriamente.

Lyon pagou ao motorista, desejou-lhe um feliz Natal e a seguiu, entrando na casa. Anne teve que admitir que o fogo da lareira fazia com que a enorme sala parecesse acolhedora. Em seguida, mostrou a casa toda a Lyon e os olhos dele demonstraram aprovação por tudo quanto via. Ela sabia .que ele não estava apenas sendo gentil, tinha realmente gostado da casa.

Assaram carne na enorme cozinha e jantaram diante da lareira. Lyon insistiu em acender a lareira do quarto. Anne surpreendeu-se ao ver a agilidade com que ele manejava os ferros.

— Não se esqueça de que passei a maior parte de minha vida em Londres, onde não acreditam em aquecimento central — lembrou Lyon. — É uma casa maravilhosa. Você está muito perto dela para poder apreciá-la devidamente. Combina com você, e se vê logo que você pertence a este lugar.

— Não diga isso nem brincando — respondeu Anne ameaçadoramente. — Não acho isso um elogio.

No domingo, parou de nevar e eles fizeram um longo passeio a pé. Passaram pela igreja, quando mais da metade dos habitantes saíam. Anne cumprimentou várias pessoas; não parou, entretanto, para falar com ninguém, porque sentiu o peso dos olhares curiosos à medida que ela e Lyon continuavam andando. Quando voltaram a casa, Lyon se ocupou da lareira e Anne lhe trouxe um copo de sherry.

— É a única coisa que encontrei. Não há uma só gota de uísque.

— Considere-se desonrada — disse Lyon, enquanto tomava a bebida. — Vi quando seus vizinhos nos olhavam. Verificarão que não estou registrado no hotel e eu terei de me casar com você para restaurar sua honra nesta cidade.

— Não me importo com o que a cidade possa pensar de mim.

Sentou-se ao lado dela.

— Vamos, minha pequena teimosa da Nova Inglaterra. Concorde que esta é, realmente, uma casa maravilhosa. Que sala belíssima! O retrato sobre a lareira não é de um sargento?

— Acho que sim. É meu avô. Vou mandá-lo a uma das galerias de Nova York. Ofereceram bom preço por ele.

— Conserve-o por mais um tempo. O preço subirá. — Fez silêncio por algum tempo e depois lhe disse: — Anne, falo sinceramente, você nunca foi tão bonita como agora, sentada aqui. Este é o ambiente perfeito para você. Não parece estar deprimida, acho que Lawrenceville combina com você.

— Porque você está aqui, Lyon.

— Você quer dizer: o lar é onde nosso coração está. — Abraçou-a e ficaram olhando para o fogo da lareira. Depois de alguns minutos, ainda olhando sonhadoramente para a madeira que ardia, disse: — Talvez dê certo.

— O quê?

— Nós.

Chegou-se mais a ele.

— Sempre achei que daria. É inevitável.

— Anne, tenho uns seis mil dólares. Quais são os impostos aqui?

— Aqui?

— Não devem ser muito altos. Lembre-se: eu disse que não podia casar com você e aceitar que você me sustentasse. Mas posso aceitar sua hospitalidade nesta casa. Com seis mil dólares, poderíamos viver durante um ano. E, se conseguir um bom adiantamento sobre o livro, poderia começar a escrever outro. Anne, pode dar certo.

Lyon se levantou e esfregava as mãos enquanto dizia:

— Ah, seria maravilhoso! E eu poderia escrever aqui.

— Aqui? — perguntou Anne, com voz sufocada.

— Anne! — Ajoelhou-se diante dela. — O tipo de nossa relação não é considerado muito respeitável. Aqui, nesta bela e respeitável casa, proponho-lhe, da maneira mais respeitável, e de joelhos: você quer se casar comigo?

.— Claro que quero. Você quer dizer que gostaria que eu conservasse a casa, para que você pudesse vir aqui escrever? Eu faria isso, mas se leva tanto tempo para chegar aqui, e o fim de semana é tão curto...

— Moraríamos aqui, Anne, a casa é sua e eu pagaria os impostos e a alimentação. Estaria sustentando-a. E algum dia ganharei dinheiro bastante para acrescentar uma nova ala à casa. Acredito que foi isso que o seu pai fez, pois o Sr. Hill disse que sua mãe nasceu aqui. Serei um bom escritor. Você vai ver.

— Morar aqui? — Olhava-o com espanto.

— Irei a Nova York e explicarei tudo a Henry. Se você quiser, poderemos casar em Nova York. Jennifer está lá e...

— Tudo está lá.

— Nada que nos faça falta.

— Lyon, odeio isto aqui! Odeio esta cidade, odeio esta casa!

Pela primeira vez, percebeu pânico na voz dela.

— Mesmo comigo aqui? — perguntou cuidadosamente.

Anne começou a andar pela sala, tentando desesperadamente ordenar o seu pensamento. Precisava fazê-lo compreender.

— Lyon, você disse que poderia escrever aqui. Provavelmente poderia. Oito horas por dia. E eu, o que faria? Entraria no clube das senhoras? Jogaria bingo uma vez por semana? Renovaria minha pseudo-amizade com as tolas garotas com quem cresci? E ninguém o aceitaria logo, Lyon. Você é um estranho; devia ser, pelo menos, a terceira geração se quisesse ter alguma importância nesta cidade esnobe.

O rosto dele se desanuviou.

— Então é disso que tem medo? Muito bem, aceitarei o ostracismo. Não se preocupe, sou muito duro. Iremos à Mareja. Andaremos por aí. Quando perceberem que pretendemos ficar, tenho certeza de que me aceitarão.

— Não. Não posso fazer isso. Não posso viver aqui.

— Por quê, Anne? — A voz dele era muito suave.

— Lyon, você não compreende? Assim como você tem os seus princípios, quando não admite que eu o sustente em Nova York, bem, eu também tenho os meus pontos fracos. Não muitos. Na verdade só um: Lawrenceville. Eu a odeio! E adoro Nova York. Antes de ir à Nova York, vivia neste mausoléu. Eu não era ninguém. Me sentia morta. Quando cheguei a Nova York, levantei um véu... Pela primeira vez, senti que respirava, que vivia.

— Agora temos um ao outro. — Os olhos dele estavam fixos, indagadores.

— Não aqui, não aqui. Você não compreende? Uma parte de mim morreria.

— Então, pelo que vejo, você só pode me amar em Nova York. Simples questão de embalagem.

— Eu o amo, Lyon. — As lágrimas corriam agora pelo rosto. — Eu o amaria em qualquer lugar do mundo, e iria a qualquer lugar onde o levasse o seu trabalho. Menos aqui...

— Você nem sequer concorda em tentar... um ano ou dois?

— Lyon, venderei a casa... darei a você todo o dinheiro, viverei num cómodo com você, não aqui.

Virou as costas e ficou olhando para o fogo.

— Bem, então está resolvido. — Depois, continuou em outro tom: — É melhor que eu ponha mais lenha antes de ir embora. O fogo está morrendo.

— É cedo ainda.

— Acho melhor pegar o trem das quatro horas. Amanhã vai ser um dia cheio, e com o Natal caindo na quarta-feira...

— Vou com você à estação.

Discou o telefone e chamou o Sr. Hill.

O fogo estava quase apagando quando voltou. Sem Lyon a sala parecia mais triste do que nunca. Oh, Deus, teria Lyon compreendido? Estivera tão quieto durante a ida à estação.

— Voltarei na terça-feira —prometera-ela. — Nada fará com que eu passe o Natal longe de você.

Quando entrou no trem, não se voltou para lhe acenar. Anne sentiu quase uma vertigem. Maldita Lawrenceville! Era como um polvo, que tentava agarrá-la de qualquer maneira.

No dia seguinte, Jennifer telefonou. Ela e Tony estavam morando no Essex, em uma bela suite. Míriam estava num quarto, no andar de baixo, e agira muito amavelmente a respeito do casamento. Iriam para a Califórnia antes do que esperavam, a 2 de janeiro. Quando é que Anne voltaria? Ela e Tony dariam uma grande festa na véspera do Natal.

— Estarei lá — prometeu Anne. — Parece que as coisas nunca ficarão resolvidas por aqui. Falei com Henry há alguns dias, e ele foi ótimo. Disse para ficar o tempo que for preciso. Mas resolvi voltar a Nova York antes do Natal. Quando Lyon telefonar esta noite, eu lhe falarei a respeito da festa.

Lyon não telefonou à noite. Provavelmente, estava amuado. Era a primeira briga deles, além do desentendimento em Filadélfia. Bem, ela também não se curvaria. Amanhã, telefonaria ao escritório para lhe dizer que viajaria pelo trem do meio-dia.

Ligou para o escritório às dez da manhã. Henry não estava no escritório, nem Lyon. Falou com George Bellows.

— Não sei onde está Lyon. Ninguém me diz nada do que se passa neste escritório. Lyon chegou ontem de manhã e saiu ao meio-dia. Henry foi para a Califórnia na sexta-feira; houve uma emergência com o espetáculo de Jimmy Grant. Talvez tenha chamado Lyon. Como lhe disse, ninguém me conta nada.

Anne desfez a mala. Não tinha motivo para ir a Nova York. Estava desapontada, mas, ao mesmo tempo, sossegada. Lyon, provavelmente, tinha ido à Califórnia, por isso não telefonara. Pelo menos, não estava zangado. Talvez a chamasse à noite para explicar.

Passou a noite de Natal sozinha. Lyon não chamou. Às três da manhã, ligou para o seu apartamento. Talvez não tivesse ido à Califórnia. Talvez estivesse amuado. Ninguém respondeu.

Foi o pior Natal de sua vida. Culpava Lawrenceville por isso. Não tinha mais lenha para a lareira, ligou o aquecedor. A casa estava aquecida, mas morta. Tomou uma xícara de café e comeu alguns biscoitos. As canções de Natal que ouvia pelo rádio deixaram-na mais deprimida ainda. A noite era fraternidade e amor, e ela estava sozinha. Jennifer com Tony. Neely com Mel. E ela, sozinha em Lawrenceville.

Passou os dias seguintes com o Sr. Walker. Tudo foi etiquetado e posto em ordem. Poderia ir embora no fim da semana; onde estava Lyon? Passaram-se cinco dias. Em desespero, ligara para Henry, no Beverly Hills Hotel, na Califórnia.

— Henry, onde está Lyon?

— Isso é o que eu gostaria de saber. — A voz dele soava furiosa. — Ele não está aí com você?

— Comigo, não. Pensei que estivesse com você. Não o vi nem ouvi desde domingo.

— Não brinque. — A voz de Henry denotava preocupação agora. — Chamei o escritório ontem à tarde. George disse que ele não aparece lá desde segunda-feira. Naturalmente, pensei que tivesse ido passar o Natal com você.

— Henry, temos de encontrá-lo.

— Por quê? Que acha que aconteceu? Bem, um sujeito não desaparece assim, sem mais nem menos... Telefonei para o apartamento dele três noites seguidas, e ele não estava lá.

— Volto amanhã para Nova York. Henry, você precisa encontrá-lo. — Estava, de repente, apavorada.

— Vamos com calma. Vocês tiveram alguma briga?

— Apenas um desentendimento. Não pensei que fosse tão sério.

— Volto amanhã, também — disse Henry —, a menos que o tempo piore. Vou tomar um avião às quatro horas de hoje. Não se preocupe. Lyon não nos abandonaria assim. Provavelmente estará no escritório segunda-feira, com uma explicação lógica. Por que não descansa aí durante o fim de semana?

— Descansar? Não vejo a hora de sair daqui.

Quando chegou a Nova York havia uma carta à sua espera no hotel. Era de Lyon.

"Cara Anne.

Agradeço a oportunidade que me deu para que eu fizesse um exame de tudo. Foram cinco horas de meditação. A viagem de volta me proporcionou tempo suficiente para pensar nas coisas que devo fazer e — escrever. Até agora estava sempre procurando desculpas. Tinha que trabalhar para Henry... Então surgiu sua casa, o lugar perfeito. Até parece que o que eu quero é que tudo neste' mundo funcione, de tal maneira, que eu possa escrever. Ora, afinal de contas, quem sou eu para pretender tanto? Foi realmente egoísmo de minha parte querer transformá-la na pobre esposa sacrificada de um pequeno escritor, como a gente lê em tantos livros. Na minha opinião, no momento, estou no limbo. Isto é, não sou mais o ativo Lyon Burke que Henry conheceu, mas também não sou o escritor dedicado que pretendo ser. Tudo que consigo ver do meu futuro são meias-verdades: meio-escritor, meio-agente, adiando sair do emprego até que tenha alcançado sucesso comercial como escritor, adiando o casamento por não poder ser um marido de tempo integral, adiando escrever porque preciso trabalhar para Henry. Até agora, entreguei uma parte de mim a você, outra a Henry e outra a meu livro. Evidentemente, isso não basta. Por isso, o melhor é desaparecer da vida das duas pessoas a quem mais quero. Escrevi quase a mesma coisa a Henry. George Bellows é um bom homem, e é o homem certo para Henry. E em algum lugar de Nova York, minha caríssima, há o homem certo para você, apenas esperando que você o encontre.

Eu tinha lhe dito que tenho algum dinheiro. Tenho, também, a possibilidade de ocupar uma enorme casa no Norte da Inglaterra, só que sem aquecimento. Pertence a parentes meus, mas ninguém a usa. Pretendo abrir alguns cómodos e viver lã. Para isso não precisarei mais que algumas libras e poderei escrever até que minhas juntas fiquem doendo. Durante o inverno, há poucas horas de claridade — Lawrenceville, em comparação, pode ser considerada tropical — mas ninguém me perturbará.

Junto a esta estão as chaves do meu apartamento, querida Anne. É a única coisa prática que posso fazer por você. Agora que Jennifer casou, está sozinha e ainda é difícil encontrar um bom apartamento. E, afinal de contas, foi por sua generosidade que fiquei com ele e toda a mobília. Acho que é muito justo que você fique com tudo. E não é muito. Levo o maravilhoso presente que me deu: a máquina de escrever. Se o apartamento a agrada, pode sublocá-lo. E não vá fazer nenhuma tolice, como por exemplo esperar por mim: previno-a de que pretendo me casar com a primeira solteirona gorducha que encontrar e que esteja disposta a cozinhar e a cuidar de mim. E, daqui a alguns anos, se por acaso conseguir escrever um livro que seja considerado bom, poderemos ambos dizer: 'Houve uma coisa, pelo menos, que ele fez com absoluta sinceridade'.

Eu a amei, Anne. Você é maravilhosa demais para aceitar uma pequena parte de uma pequena pessoa que tentava se dispersar em tantas direções. Por isso, de agora em diante, vou me concentrar em escrever e dessa maneira não poderei jamais ferir alguém que não seja eu mesmo. Agradeço-lhe por me ter proporcionado o ano mais belo de minha vida.

Lyon.

 

                                                                           JENNIFER

 

                                           Maio, 1947

Jennifer estava sentada à beira da piscina, na sombra. Leu novamente a carta de Anne. Parecia que estava razoavelmente feliz — era a primeira carta em que não mencionava Lyon. Talvez tivesse superado a crise. Como podia morar em seu apartamento? Teria esperança ainda de que, num dia qualquer, ele estaria de volta? Depois de cinco meses? E sem ter recebido jamais uma palavra dele? Isso mostrava bem que a gente nunca pode saber o que um homem...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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