E pelas três horas e trinta minutos, depois de beijar o solo rochoso da cripta, deixei o horto de José de Arimatéia. Os soldados da Fortaleza Antónia ali continuavam, desmaiados, como testemunhas mudas da mais formidável notícia: A Ressurreição do Filho do Homem. Pelas cinco horas e quarenta e dois minutos daquele domingo de glória, 9 de Abril do ano 30 da nossa era, o módulo decolou ao nascer do Sol. Ao voltarmos para o futuro, uma parte do meu coração ficou para sempre naquele tempo e naquele Homem, a quem chamam Jesus de Nazaré
Acaba com estas frases, o primeiro volume desta obra. Aqueles que o leram talvez recordem que no relato do major norte-americano se avançava com aquilo a que o próprio Jasão chamou uma segunda viagem no tempo. Pois bem, neste segundo volume ele descreve essa nova e não menos fascinante aventura, interrompida nas linhas anteriores por razões puramente técnicas, era tanta a quantidade de documentação que se tornou necessário dividi-la, pelo menos, em duas partes. Feito este esclarecimento e antes de passar à transcrição dessa segunda fase do diário, entendo também ser meu dever esclarecer mais dois pontos. Primeiro, não seria honesto animar o leitor a continuar a leitura do presente trabalho sem antes ter tido a oportunidade de ler o volume anterior. Eu explico. Dado que o que exposto faz parte de um todo - o diário do Major -, com um enredo que, em grande parte, depende do Já exposto nesse primeiro volume, o leitor que enfrentasse este volume ignorando o Já publicado situaria-se - sem querer - em inferioridade de condições para compreender muitos dos pormenores técnicos, situações, objetivos e acontecimentos registrados na chamada Operação Cavalo de Tróia. Tudo isso me obriga, em suma, a sugerir ao leitor que, se não conhecer a minha obra anterior, adie para depois a leitura do livro que tem na mão. Segundo, dada a natureza dos fatos e das afirmações contidas nas mais de cento e cinqüenta folhas que constituem esta forçada segunda parte do diário, atrevo-me a recomendar aos leitores cujos princípios religiosos se encontram irremediavelmente cristalizados na mais pura ortodoxia que, do mesmo modo, renunciem à presente informação. Apesar de tais acontecimentos e apreciações sobre a infância de Jesus de Nazaré bem como as aparições do Mestre da Galiléia após a sua morte e ressurreição terem sido tratados pelo autor do diário com absoluto respeito, algumas das revelações são - na minha humilde opinião - de tal magnitude que os espíritos pouco evoluídos ou de visão estreita poderão sentir ofendidos ou, pelo menos, desorientados. Em contrapartida, para aqueles que permanecem na difícil senda da busca da Verdade, as sucessivas descobertas que irão surgindo à sua frente - estou firmemente convencido - contribuirão para enriquecer a sua alma e compreender melhor a figura, o contexto e a mensagem do Filho de Deus. Estes, e não outros, foram e continuam a ser os meus objetivos ao escrever os dois livros. Feitos estes esclarecimentos, entremos plenamente nesta última parte do diário do Major.
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O diário (Segunda Parte)
Cinco horas e quarenta e três minutos. Sessenta segundos depois da decolagem, o computador central - o nosso querido Papai Noel - respondeu com a sua habitual eficácia e minuciosidade, estabilizando o berço na cota prevista (oitocentos pés) para o imediato e delicado processo de inversão de massa da nave que deveria transportar-nos de volta ao nosso tempo, ao século XX. Mais exatamente, a 12 de Fevereiro de 1973. Eliseu e eu trocamos um olhar significativo. Absortos nos preparativos para a decolagem, o meu irmão e eu naquela primeira grande viagem, que escrevo estas linhas, quase não tínhamos tido ocasião de comentar as minhas últimas e dilacerantes experiências ao pé da cruz e durante as tensas horas que precederam o amanhecer de domingo, 9 de Abril do ano 30. Quando, finalmente, por volta das quatro horas, abordei o módulo, a minha expressão devia ser tão reveladora que Eliseu se manteve num respeitoso e prolongado silêncio. E mais uma vez me senti aliviado e agradecido pela sua extrema delicadeza. Recordo-me de, enquanto me desvencilhava das roupas suadas e Já malcheirosas que tinham me ajudado no meu papel de mercador grego, o meu companheiro, por iniciativa própria, ter ouvido a gravação efetuada durante a chamada última ceia. (Como Já indiquei noutro ponto deste diário, eu ainda não tivera a oportunidade de ouvi-la) E ambos, em silêncio, até às cinco horas, nos deixamos arrastar pela voz do Rabi da Galiléia; doce, firme e magnificente. Conhecendo como conhecíamos toda a dimensão da tragédia que acabara de acontecer, os conselhos e as recomendações de Jesus aos seus íntimos surgiram perante mim com uma força e luminosidade indescritíveis. Como creio que Já indiquei na devida altura, excetuando João, o Evangelista, os outros escritores sagrados não conseguiram transcrever com fidelidade nem os fatos nem o sentido daquela memorável ceia de despedida. Devo, porém, dominar-me. É necessário que eu saiba controlar as minhas emoções e a torrente de acontecimentos que se amontoam no meu cérebro e, em prol de uma maior clareza, prosseguir o meu relato sob a mais estrita ordem cronológica. Espero que aqueles que chegarem a ler o meu legado saibam compreender e perdoar as minhas contínuas debilidades. A partir das cinco horas - a quarenta e dois minutos do alvorecer Eliseu e eu, enfiados nas roupas espaciais regulamentares, entregamo-nos de corpo e alma a uma exaustiva revisão dos equipamentos, prestando uma especialíssima atenção à fase crítica da decolagem. Embora, como Já frisei na devida altura, os técnicos do projeto tivessem programado a decolagem, o posterior estacionário da nave e o retorno dos eixos do tempo dos swivels de forma automática, uma pungente e lógica dúvida menos tinha tensos. E se falhasse qualquer uma das delicadas manobras Já citadas? O que seria de nós? Provavelmente, foi esta passageira mas crescente excitação que, naqueles momentos, me libertou da profunda angústia que se aninhara no meu coração, provocada pelos onze dias agitados que vivera no Israel do ano 30. Uma angústia - adianto Já - que me marcaria para sempre. Cinco horas e quarenta e um minutos. O computador central, de acordo com o programado, acionou eletronicamente o dispositivo de incandescência da membrana exterior da nave, eliminando assim qualquer germe vivo que pudesse ter aderido à
blindagem do berço. Esta precaução - como Já expliquei - era de vital importância para evitar a posterior inversão tridimensional dos referidos germes num outro tempo ou enquadramento tridimensional. As conseqüências de uma entrada involuntária de tais organismos num outro mundo poderiam ter sido nefastas. Cinco horas. quarenta e um minutos. trinta segundos. O meu companheiro e eu - atentos ao Papai Noel - captamos a rápida aceleração das nossas respectivas freqüências cardíacas: cento e vinte pulsações!. Cento e trinta!. Estávamos a quinze segundos da ignição. Cinco horas quarenta e dois minutos. Oh, meu Deus! As nossas freqüências cardíacas alcançaram o limiar das 150 pulsações. O motor principal não respondia. Cinco horas quarenta e dois minutos três segundos. Vamos!. Vamos! Estamos prontos! Eliseu e eu, com a voz entrecortada, começamos a animar o preguiçoso J85. Foram os segundos mais longos e dramáticos daquela última fase da operação. Cinco horas quarenta e dois minutos seis segundos. Uma vibração familiar sacudiu o módulo, ao mesmo tempo em que o meu irmão e eu contínhamos a respiração. Por fim, a turbina a jato CF200-2V foi ativada, elevando a nave com um impulso de mil quinhentos e oitenta e cinco quilos. Cinco horas quarenta e três minutos. Sessenta e seis segundos depois da decolagem, uma vez alcançados os oitocentos pés de altitude, os foguetes auxiliares, também de peróxido de hidrogênio e com quinhentas libras de potência máxima cada um, estabilizaram o módulo, controlando a sua posição. Embora a primeira fase de retorno - além dos angustiantes seis segundos de atraso na ignição do motor principal - se tivesse concluído sem grandes dificuldades, Eliseu e eu observamos com alguma preocupação que os tanques de combustível fixavam o tempo máximo de funcionamento, a partir do início do estacionário, em novecentos e dez segundos. Era preciso agir com extrema diligência. E o Papai Noel consciente, como nós, da perigosa escassez das nossas reservas de peróxido de hidrogênio, não demorou na execução da seguinte e não menos delicada operação.
Às cinco horas e quarenta e cinco minutos daquele 9 de Abril do ano 30, quando a orla superior do Sol Já despontava por detrás da cinzenta linha do horizonte de Moab, na costa oriental do mar Morto, o nosso fiel computador central, que continuava a manter a incandescência da membrana exterior, acionou o sistema de inversão axial das partículas subatômicas da totalidade do berço, fazendo recuar os eixos do tempo dos swivels aos ângulos previamente estabelecidos pelos homens do Cavalo de Tróia, que correspondiam às sete horas do dia doze de Fevereiro de 1973. No total, um salto de 709 612 dias, uma hora e quinze minutos. É de supor que, tal como acontecera na noite daquele histórico 30 de Janeiro de 1973, data do início da nossa primeira viagem no tempo, uma fortíssima explosão se fizesse sentir no topo do monte das Oliveiras no momento exato da inversão de massa. Mas, obviamente, desta vez não houve forma de confirmar este fato. Instantes após a substituição do nosso primitivo sistema referencial de três dimensões pelo novo tempo - pelo nosso verdadeiro tempo - uma súbita claridade penetrou pelas escotilhas do módulo. Eliseu e eu permanecíamos com o coração apertado e os olhos fixos nos dois pares de monitores dos cronômetros moniônicos, diretamente ligados - graças ao Papai Noel - ao mecanismo de inversão axial dos swivels. A dança vertiginosa dos dígitos concluía com uma seqüência que nos devolveu a calma e que, por sua vez, explicava aquela diferença substancial de luminosidade entre o momento da nossa partida do monte das Oliveiras e a que agora inundava a nave. (O nascer do Sol naquele nove de Abril do ano 30 da nossa Era, tinha ocorrido, como referi anteriormente, às cinco horas e quarenta e dois minutos. Agora - mil novecentos e quarenta e três anos depois -, a aurora dera-se às seis horas e vinte e quatro minutos. A nossa súbita aparição sobre a Jerusalém moderna foi portanto, calculamos, trinta e seis minutos depois do nascer do Sol) Antes de procedermos a uma comprovação visual - e de acordo com o plano de vôo - foi preciso uma nova revisão dos sistemas que garantiam o estacionário do berço e, muito em especial, do mecanismo de emissão de luz infravermelha, vital para a camuflagem da nave. Tudo parecia funcionar perfeitamente. Durante o processo de inversão de massa, a pilha nuclear NAP-IOA continuara a alimentar o motor principal, e tanto a nossa altitude como a posição no espaço não tinham variado. Curtiss e o resto da tripulação de Cavalo de Tróia deviam encontrar-se
a oitocentos pés, tão ansiosos e expectantes como nós. Eliseu chamou a minha atenção para o nível de combustível - limitado a seiscentos segundos - e assenti, tentando tranqüilizar-me e tranqüilizar o meu irmão com um leve sorriso. Ambos sabíamos que não podíamos demorar a descida sobre a mesquita da Ascensão. O menor erro, a menor dúvida ou qualquer variação que efetuássemos do estrito programa previsto para a aterrissagem podia ser fatal. Alguns segundos antes de fazermos a ligação à base em terra, digitamos novamente o computador central, solicitando informação sobre o grau de absorção das ondas dessimétricas pela membrana exterior. Se esta falhasse, os radares militares israelitas não tardariam a detectar-nos. O Papai Noel tranqüilizo-nos. Para começar, supondo que uma estação de rastreio - em especial a situada no monte Hermon - tivesse captado algo de anormal a oitocentos pés sobre o monte das Oliveiras, o possível eco, por não ter retorno, teria sido identificado pelos operadores de radar como uma zona de silêncio, relativamente habitual neste tipo de operações. Não tínhamos tempo a perder. E, após uma rápida localização visual do octógono e dos hangares levantados no recinto interior da mesquita, Eliseu e eu iniciamos a última fase do Programa Apolo XI. Visto que aqueles últimos minutos da grande viagem tornavam absolutamente necessária a comunicação por rádio entre o módulo e o novo ponto de contato, os homens de Cavalo de Tróia tinham inventado um código idêntico ao utilizado por Armstrong e Aldrin para contatar Houston no memorável 20 de Julho de 1969, quando o homem pôs o pé na Lua pela primeira vez. Desta forma, qualquer infiltração estranha ao projeto na banda de emissão só serviria para confundir o hipotético intruso. Uma vez introduzida a banda integrada S, Eliseu pegou no microfone e, sem conseguir disfarçar a sua emoção, perguntou: - Aqui águia. está alguém aí?. Segundos depois, a voz de CAPCOM - o suposto Houston - retumbava nos nossos ouvidos e nos nossos corações - porquê ocultá-lo?como a mais doce das melodias. - Aqui Houston. Bem-vindos a casa. Estamos a recebendo cinco por cinco. Eliseu, responsável pelas comunicações, respirou fundo e, depois de comprovar de novo o nível do peróxido de hidrogênio, anunciou: - Roger, escuta. Estamos a oito por cento de combustível. A advertência deve ter soado como um trovão entre os homens de Curtiss. - Aqui CAPCOM. Entendi: oito por cento.
- Afirmativo - respondeu Eliseu, adotando uma falsa tranqüilidade. - Estamos prontos para aterrar. Câmbio. - Roger, entendido. Altitude: oitocentos pés. Podem ligar o pára-brisas monitorizado 3.
* Naquela época, as ondas utilizadas habitualmente pelos radares militares de Israel oscilavam entre os 1347 e os 2402 megaciclos. (Nota do Major) 2 As comunicações entre o módulo e os equipamentos situados em terra tinham sido estabelecidas na chamada banda integrada S, que se encontra no setor das ondas de rádio ultracurtas. Abrangendo freqüências desde 1550 até 5200 megaciclos, correspondentes a comprimentos de onda de 58 a 19 centímetros. Por razões de segurança não estou autorizado a revelar a freqüência específica utilizada neste caso. (N. do M). Este revolucionário sistema de navegação às cegas, que algum dia ser largamente utilizado na aviação comercial, consiste, em síntese, num párabrisas monitor no qual são projetados todos os dados necessários para a aterrissagem, perfeitamente sobrepostos à paisagem ou a um desenho informático que reproduz fielmente o ponto de aterrissagem. No nosso caso, Cavalo de Tróia desenhou um sistema modificado MLS. O Papai Noel, que Já considerávamos da família, respondeu à minha ordem desenhando no monitor um túnel sintético e quadrangular em cujo centro estava igualmente digitalizada a imagem da nave. Agora tudo era apenas questão de dirigir a descida do módulo pelo interior do túnel. O fundo deste túnel não era mais que o reduzido hangar onde devíamos pousar o berço. - Roger - interveio Eliseu -, Águia a postos. Túnel no tela. - Aqui CAPCOM. Agora só têm de deixar-se conduzir pela mamãe Curtiss. Câmbio. - Aqui Águia. Lá vamos nós. Setecentos e cinqüenta pés. Oscilação nula e continuamos a descer. - Águia, muito bem. - Altitude, setecentos pés, descendo a vinte e três pés por segundo. Podem reduzir para vinte? Câmbio. - Roger, entendido. Reduzimos para vinte. Seiscentos e oitenta pés e vinte abaixo. Seiscentos e dez pés. Quinhentos e oitenta. Quinhentos e quarenta pés. A voz de CAPCOM interveio subitamente, cortando Eliseu:
- Atenção, Águia!. Detectamos rajadas de vento a quinhentos pés. Quarenta e cinco graus e quinze nós. - Repita, Houston. Tanto Eliseu como eu sabíamos que, naquelas circunstâncias críticas, um dos piores contratempos podia ser justamente este. Uma rajada de vento de trinta quilômetros por hora, como a anunciada pela estação em terra, era capaz de deslocar o frágil módulo, tirando-nos do túnel sintético que nos servia de guia eletrônico. Se isso chegasse acontecendo e não fossemos suficientemente hábeis para fazer a nave regressar a tão particular túnel de descida, a aterrissagem podia fracassar. - Repita Houston - insistiu o meu companheiro. - Aqui CAPCOM. Estamos lendo, vento a quinhentos. Direção: quarenta e cinco graus e quinze. - Aqui águia. Entendi quarenta e cinco graus e quinze nós. - Afirmativo, Águia. Afirmativo. Reduzir ao máximo. Reduzir a nove e segurem-se com força até ter passado. - Roger, Houston - indicou Eliseu, fazendo-me sinal para que aumentasse a potência dos retrofoguetes auxiliares -, quinhentos e dez pés e descendo a nove, quinhentos pés, quatrocentos e oitenta pés e mantendo nove pés por segundo. Tal como temíamos, as rajadas de vento noroeste fizeram oscilar o berço. E, apesar dos meus esforços para controlar os oito pequenos motores de posição, a imagem digitalizada do módulo acabou por atravessar as linhas amarelas que configuravam o túnel de descida, fazendo disparar todos os alarmes acústicos e luminosos.
* (Microwave Landing system) que. localizado em terra, simplificava a operação de aterrissagem, projetando, para o módulo um sinal que o computador central decodificava sob a forma de túnel sintético, com efeito de perspectiva. permitindo assim uma aproximação cômoda e automática. Estruturalmente, um sistema deste tipo ‚ formado por quatro elementos básicos: um gerador de símbolos (um tubo de raios cactóides que visualiza as informações de pilotagem recebidas do MLS); um sistema de focalização; um espelho plano que recebe as informações projetadas pelo sistema de focalização e as dirige para a óptica de colimação e a própria óptica de colimação. (N do M) Direção do vento: quarenta e cinco graus (Nordeste). com uma velocidade de vinte e cinco nós (cerca de trinta quilômetros por hora). (N. do M)
- Aqui Houston. Perda de contato com MLS. Desvio a duzentos e vinte e cinco graus. Calma, rapazes. - Aqui Águia - respondeu Eliseu, com os olhos fixos no pára-brisas monitorizado, onde o módulo aparecia, de fato, desviado horizontalmente uns noventa pés. - Jasão luta com essas malditas válvulas. Estamos estabilizados a quatrocentos e cinqüenta pés. - Roger, Águia. Escutamos. Câmbio. - Aqui Águia. Motores na potência máxima. Inclinação do módulo trinta e três graus. Repito: estabilizados horizontalmente a quatrocentos e cinqüenta pés e recuando para MLS. Quarenta pés atrás. Já estamos quase. - Roger, Águia. - a voz de CAPCOM soou tranqüila, numa tentativa de acalmar os nossos ânimos. - Um pouco mais. - CAPCOM, estamos tentando mas este maldito vento, Inclinação trinta graus e continuamos a quatrocentos e cinqüenta pés... Raios! Só faltava isto!... - Aqui CAPCOM. O que ‚ que está acontecendo agora? Câmbio. Sujeitos a uma força máxima, os motores estavam dando conta das reservas de peróxido de hidrogênio cada vez mais reduzidas. E nesse instante, quando a nave recuara oitenta pés no seu vôo horizontal, em busca do interior do túnel de descida, o nível de combustível - reduzido a cinco por cento - fez soar um novo alarme. - CAPCOM, aqui águia. Temos luz quantitativa. Alarme em duzentos e um. Leitura de combustível: cinco por cento. Vamos ativar a última reserva. Câmbio. - Roger, Águia. Autorizado tanques on. - Ok. Tanques on. - Águia, quanto de combustível? Câmbio. - Com a reserva, tempo máximo de funcionamento, cento e oitenta segundos. Que Deus nos ajude! Mas o módulo, obediente tinha vencido a força do vento, colocando-se de novo no centro do túnel. E a voz de Houston soou cinco por cinco: - Aqui CAPCOM. Adiante, Águia. Restabelecida a ligação MLS. Comece a descer. - Roger, graças aos céus. Lá vamos de novo. Quatrocentos pés e continuamos a descer. Trezentos e setenta pés e descendo a nove pés por segundo. Inclinação nula ainda que continue a oscilar. - Roger. Parece que as coisas agora estão a ir bem. Informação sobre o combustível. Câmbio.
* Como Já descrevi anteriormente, o berço dispunha de oito pequenos motores -foguetes. Cada um deles era acionado por uma válvula solenóide individual com intervalos. Como um avião pequeno, o piloto controlava o movimento de levantar e baixar por meio do movimento proa-popa e a oscilação pelo movimento direito-esquerda de uma alavanca. O controle da guinada e os referidos movimentos estavam ligados eletricamente às válvulas. (N. do M) 2 Tanques on: o módulo tinha praticamente esgotadas as reservas exteriores de combustível e procedeu à ignição dos tanques interiores. O volume total de peróxido de hidrogênio era então de, apenas, sete por cento. (N. do M)
- Ok, CAPCOM. Leio cento e vinte segundos e descendo para - Aqui CAPCOM. Entendi cento e vinte segundos. Câmbio. - Afirmativo. Altitude: duzentos e vinte pés e reduzimos a quatro e meio. Cento e sessenta pés e quatro pés e meio por segundo. - Ok, Águia. Vamos, mais um pouco. Mamãe Curtiss Já está ouvindo o seu assobio. Câmbio. O controle em terra referia-se ao ruído dos motores, amortecido pelos potentes silenciadores. Aqueles últimos metros foram para mim - responsável pela aterrissagem - os mais ingratos e penosos. As rajadas de vento - oscilando entre os quinze e vinte nós - empurravam constantemente o berço contra as paredes do túnel eletrônico, obrigando o computador central e eu próprio a uma contínua correção da trajetória. Quando, por fim, Eliseu anunciou os últimos noventa pés, as minhas mãos e a minha testa estavam banhadas de abundante suor. - CAPCOM. Aqui Águia. Descendo, descendo. Noventa pés de altitude. Já podemos ver a plataforma no interior do hangar. Descemos para metade. Quarenta e cinco pés e mantendo os três pés por segundo. Câmbio. - Roger, Águia. Tudo em ordem. Qual a leitura do combustível? - Aqui águia. Tempo máximo de funcionamento: sessenta segundos. Quarenta pés. Adiante, adiante. Trinta pés e descendo a três por segundo. Parece que apanhamos alguma poeira. Trinta segundos. - Roger, Águia. Quase podemos tocá-los com a mão. Câmbio. - Aqui Águia. Vinte pés. Quinze. Nove pés. Luz de contato. Graças a Deus! Quando os apoios amortecedores de choque dos quatro pés do módulo estabeleceram contato com a plataforma da mamãe Curtiss, o computador
central desligou automaticamente os motores. A leitura do tempo máximo de funcionamento deixou-nos sem fala: Dez segundos. Eliseu suspirou, aliviado, ao mesmo tempo em que esperava a ordem de desativação do escudo protetor de infravermelhos. - Aqui CAPCOM. Bem-vindos. Registramos a parada da máquina. Câmbio. - Ok, CAPCOM. Autorizados anulação ordem de subida? Câmbio. - Afirmativo, águia. Proceder à desativação da camuflagem de radiação infravermelha e incandescência da membrana exterior. Têm aqui um grupo de rapazes à beira do desmaio. Respiramos de novo. Muito obrigado. Câmbio. - Aqui Águia. Nós que agradecemos. - CAPCOM. Estão bem? Câmbio.
* O arrefecimento da membrana que cobria a blindagem exterior do berço- cuja espessura era de 00329 metros - requeria, no mínimo, três minutos. Este revestimento poroso da nave, de cerâmica, tinha um elevado ponto de fusão: 726064 graus centígrados, sendo o seu poder de emissão externa igualmente muito alto. A sua condutividade térmica, em contrapartida, era muito baixa: 207113x106 Col/em/s/oC. (N. Do M)
- Perfeitamente. Vamos estar ocupados durante alguns minutos. E o silêncio reinou no interior do nosso querido berço, e apenas foi quebrado pelo crescente repicar dos interruptores que iam sendo desligados. Às sete horas e dezessete minutos daquele dia 12 de Fevereiro de 1973, ao abandonar o módulo, Eliseu e eu concluíamos assim a primeira e mais fascinante viagem jamais feita antes por algum ser humano - Que longe estávamos de imaginar que em breve - muito antes do que alguém poderia supor - o meu irmão e eu nos veríamos envolvidos numa segunda e não menos incrível aventura!
Quando descemos do módulo, uma salva de aplausos devolveu-nos à realidade. Os técnicos da Operação Cavalo de Tróia, com o general Curtiss à frente, lançaram-se literalmente para cima de nós, abraçando-nos. Durante alguns minutos, tal como acontecera onze dias antes por ocasião da nossa partida, formou-se um nó em todas as gargantas. E os olhos do veterano Curtiss apesar de todo o seu esforço, umedeceram-se. Mas aquela alegria duraria pouco.
Nessa mesma manhã, enquanto os engenheiros se dedicavam à vertiginosa desmontagem do berço, Curtiss e os diretores do Projeto, sentados diante das respectivas e fumegantes xícaras de café, estavam prestes a receber duas notícias que mudariam o rumo da operação. De acordo com o estabelecido, uma vez concluída a missão, o trabalho dos homens de Curtiss deveria centrar-se em dois objetivos fundamentais: à desmontagem do módulo, permitindo a entrada dos técnicos israelitas na estação receptora de fotografias procedentes do satélite artificial Big Bird e, juntamente com o berço e os instrumentos utilizados na grande viagem, o nosso regresso imediato aos Estados Unidos. Concretamente, à Base Edwards, onde, sempre em segredo, tinha sido prevista uma análise exaustiva da informação e do material trazido pelos exploradores. A primeira notícia - a minha notificação ao chefe do projeto sobre a perda do microfone, camuflado na noite de Quinta-Feira Santa na base do candeeiro que iluminava a chama da última ceia, no andar superior da casa de Elias Marcos - caiu como um balde de água fria. Uma das regras de ouro da operação estabelecia precisamente que nenhum dos exploradores de outro tempo podia regressar com objetos, manuscritos ou materiais próprios da tal época. Isto era sagrado. E, da mesma forma, os membros de cada expedição estavam obrigados a zelar pelos seus próprios instrumentos e equipamentos, não permitindo, sob qualquer circunstância, que caíssem em mãos alheias ou, simplesmente se perdessem. A rigidez do nosso código moral chegava a tais extremos que, em caso de máxima emergência, qualquer um dos dispositivos tecnológicos manipulados na missão que ficasse gravemente comprometido devia ser destruído. Só as peças ou objetos que se pudessem associar ao momento histórico que motivou a exploração - como era o caso das esmeraldas por mim oferecidas a Pôncio Pilatos e ao comandante da Fortaleza Antónia Civilis, ou o ouro destinado à obtenção de moeda em circulação legal na Palestina do ano 30 - estavam autorizados e podiam ser incorporados no fluxo rotineiro da referida sociedade.
Daí que o extravio involuntário do diminuto e sofisticado microfone - desenhado e construído pelos especialistas da ATT (American Telecone and Telegraph) para esta missão - perturbasse o ânimo de Curtiss e do resto da equipe. E, embora compreendessem que as conseqüências do triploásismo registrado nas primeiras horas da tarde de sexta-feira, 7 de Abril do mesmo ano 30, em Jerusalém, eram totalmente imprevisíveis para
mim e para qualquer outro explorador, só a idéia de ter deixado uma peça tão específica do século XX num contexto histórico-geográfico - remoto e alheio a tal tecnologia, começou a obcecar o diretor da operação. (Sinceramente, agora dou graças aos céus pelo meu erro involuntário e, sobretudo, pela idéia obsessiva que então brotou no cérebro do general) E foi ao longo daquele primeiro exame superficial da nossa exploração e, quase sem querer e como conseqüência do comentário acerca do triplo abalo sísmico, alguns diretores do projeto se mostraram especialmente interessados na natureza de tais tremores. Logicamente, enquanto sismogramas ou registros permanentes instalados no berço não fossem enviados para os Estados Unidos e decifrados por pessoal qualificado, as nossas apreciações tinham o valor de simples hipóteses. No entanto, havia algo que estava claro naqueles primeiros momentos: o terceiro estremecimento do módulo - quando os sismógrafos Já tinham parado - só poderia ser o efeito da presença de uma onda expansiva. Esta firme convicção de Eliseu, que sofrera os dramáticos sessenta e três segundos de duração estimada de ambos os sismos - a bordo do módulo, foi confirmada pela inconfundível presença nos sismogramas das ondas P, características das explosões nucleares subterrâneas 1. A surpresa e o embaraço dos homens de Cavalo de Tróia, como disse, foram tais que, nesse mesmo instante, Curtiss saiu do hangar onde fora montada a estação de recepção de imagens e que servia de quartel-general improvisado, regressando poucos minutos depois com os registros dialógicos e digitais. Estes últimos só podiam ser decodificados por um computador. Por isso Curtiss, ajudado pelos diretores e pelo próprio Eliseu, examinou as oscilações registradas no papel térmico. Lá estava, efetivamente, a série de ziguezagues provocada pelas mencionadas ondas P ou primárias. No segundo abalo - avaliado depois pelos especialistas como tendo uma magnitude situada entre 60 e 69 -, este grau de ondas aparecia em primeiro lugar e com extraordinária clareza. Curtiss, encerrado num profundo mutismo, deixou-se cair na cadeira. Suponho que os seus pensamentos eram muito semelhantes aos do resto da equipe: uma explosão nuclear subterrânea em pleno século I? E justamente no momento crítico em que morria o Filho do Homem? Como entender aquele absurdo?
* energia libertada num terremoto propaga-se na rocha sob a forma de ondas. Embora os seus padrões sejam muito complexos, constantemente modificados pelas variedades de reflexão, difração, refração e dispersão das ondas, internacionalmente foram divididas em três grupos: P, S e L. As
P ou primárias, de impulsão, compressão ou longitudinais, propagam-se no interior da Terra a uma velocidade média entre 6 e 113 quilômetros por segundo. sendo as primeiras a chegar à estação de registro. Nas explosões nucleares subterrâneas, este tipo de ondas P, é característico e muito forte, comparado com as L ou superficiais. (N. do M)
- A não ser que estejamos perante outro tipo de fenômeno. murmurou o general, quase para si mesmo. - De qualquer forma - interveio acertadamente outro membro do programa - é preciso aguardar os resultados definitivos. Todos concordaram. No entanto, o velho general, em cuja mente rondava Já uma nova e audaciosa idéia, sugeriu que tais análises fossem feitas sem demora. Agora, com o passar do tempo, não parece tão estranho ou casual que nesse momento em que Curtiss ia guardar os preciosos sismogramas, decididamente disposto a enviá-los para os Estados Unidos no mesmo dia 12 de Fevereiro de 1973, um dos seus ajudantes irrompesse no hangar para entregar ao general um sobrescrito fechado. Quando pegou nele, todos pudemos distinguir no verso o emblema da embaixada do nosso país em Israel. Após alguns segundos de leitura atenta, o seu rosto ficou sombrio e os seus olhos de falcão acabaram por se fixar nos meus, passando depois a fulminar os de Eliseu. O meu irmão e eu entreolhamo-nos, sem compreender. Não houve tempo para mais nada. Curtiss guardou o documento e levantando-se pediu licença para sair. Que tinha acontecido? A que se devia aquela alteração no semblante do general? Por que motivos o seu olhará se fixara em nós? Aquela carta, procedente da embaixada dos Estados Unidos em Israel, continha a segunda notícia que, como observei anteriormente, contribuiria - e de que forma! - para a alteração dos planos da aparentemente concluída Operação Cavalo de Tróia. Alguns dias mais tarde. Agora ao redigir este diário, estremeço ao pensar no que podia ter acontecido se essas análises médicas tivessem sido feitas na data inicialmente prevista. Mas o destino, uma vez mais, tinha outros planos. Foi então, ao ficar sozinho no meu quarto do Hotel Ramada Shalom, a discreta zona de Beit Vegan, que toda a angústia acumulada no meu coração começou a aflorar, fazendo-me mergulhar num confuso mar de sensações, recordações e sentimentos. Não podia enganar-me a mim
mesmo. Apesar do meu ceticismo inicial e de todo o meu treino, o meu contato com Jesus de Nazaré e,sobretudo, a sua terrível morte, tinham-me marcado para sempre. Eu sabia que nada na minha vida ficaria igual depois daquele encontro com o Mestre da Galiléia. A minha condição humana, as minhas debilidades e os meus múltiplos erros não iriam mudar. No entanto, a minha forma de ver a vida e os meus sentimentos mais íntimos Já não eram como dantes. Que se passava comigo? Porque se sentia a minha alma tão abatida? Porque me importunavam a figura, as palavras e até os silêncios daquele Homem? Eu era somente um explorador. Um simples observador. Porque pareciam fraquejar toda a minha inteligência e pragmatismo? Durante várias horas, no silêncio do meu quarto, procurei uma solução. Tentei chegar a conclusões. Foi inútil. No centro da minha existência, e para sempre, instalara-se um nome: Jesus de Nazaré. E ao descobri-lo chorei desesperadamente. Chorei como nunca tinha chorado antes: com medo, alegria, raiva e a amargura daquele que sabe que nunca mais poderá voltar a ter uma experiência tão singular. Uma vez mais eu me enganava. Nas primeiras horas da tarde - graças aos céus - um telefonema libertou-me de tão sombrios e atormentados pensamentos. Era Curtiss. O tom da sua voz tranqüilizou-me. Queria jantar conosco. E às dezenove horas e trinta minutos um táxi parava em frente do restaurante Shahrazad na estrada de Jerusalém para Belém, muito perto do famoso túmulo de Raquel. Curtiss apresentou-nos ao proprietário, Michael Klair, um árabe tão discreto quanto excelente cozinheiro. O general Já tinha provado as especialidades da casa e desejava compartilhar com Eliseu e comigo umas horas de sossegado e relaxante convívio. Pouco a pouco iríamos descobrindo que eram outras as intenções do chefe do Projeto. Enquanto saboreávamos os primeiros pratos - à base de salada árabe e turca -, a velha raposa mostrou-se interessada na nossa saúde, insistindo, o que era suspeito em aspectos e pormenores muito concretos. Mas, nem Eliseu nem eu tínhamos notado nos nossos respectivos organismos alterações semelhantes às insinuadas por Curtiss. Era a segunda vez que o veterano oficial, com as suas veladas interrogações, deixava entrever que aquele salto no tempo talvez provocasse sérios transtornos psíquicos ou
fisiológicos. Desta vez não pude ou não soube conter-me. Pedi que falasse abertamente. Que estava ocultando? Que espécie de repercussões podia ter a nossa grande viagem? Mas o general, arrependendo-se do passo dado, adotou um tom falsamente jovial, pedindo-nos que desculpássemos aquele enorme desmancha-prazeres. A operação - segundo as suas palavras - tinha sido um êxito e o próprio doutor Kissinger, então conselheiro do presidente Nixon, lhe telefonara mostrando interesse pelo Projeto e dando-lhe parabéns pelos resultados. Esse foi um novo erro do nosso bom amigo - Kissinger? - encurralou-o Eliseu com o seu proverbial descaramento. - Pelo que sei ele foi para Hanói no dia 22 de dez. Curtiss hesitou.
* Aquela segunda-feira, 12 de Fevereiro, foi especialmente intensa Mas tentarei organizar as minhas lembranças e sensações. Nessa mesma manhã, uma vez interrompida a reunião com o general, os diretores do Programa consideraram que a nossa presença na mesquita da Ascensão Já não era necessária e que, logicamente, depois de efetuados os obrigatórios e rotineiros exames médicos, podíamos dispor do resto do dia como muito bem entendêssemos. Se tudo corresse como até àquele momento, na quinta-feira, 15, ou o mais tardar no dia 16 desse mês de Fevereiro, o módulo e os equipamentos auxiliares se encontrariam totalmente embalados e prontos para serem transferidos para o coração do deserto de Mojave. Nós, e grande parte dos sessenta e um integrantes do Projeto, viajaríamos com o material que, supostamente, tinha servido para instalar e pôr em funcionamento a estação receptora de fotografias. Os Israelitas que continuavam a vigiar o exterior do octógono, não se mostravam nada inquietos ou nervosos. Tudo, enfim parecia decorrer na mais perfeita tranqüilidade. Os check-ups médicos, não muito rigorosos dada a precariedade das instalações, quase não chamaram a atenção dos médicos. Eu acusava um grau de esgotamento ligeiramente superior ao de Eliseu, mas dentro dos limites previsíveis numa operação daquela natureza. E, embora o meu aspecto físico não fosse nada animador - fruto sem dúvida, da tensão e das vigílias -, os especialistas despediram-se de mim com um grande sorriso. Na realidade, segundo o programado por Cavalo de Tróia, os exames médicos em profundidade só aconteceriam na Base Edwards,
- Diga-nos, general - pressionou o meu companheiro - o que está
acontecendo? Que relação existe entre esse telefonema e a carta que o senhor recebeu ainda esta manhã? Antes que o chefe do Programa, todo atrapalhado, pudesse reagir, apoiei as perguntas de Eliseu com um comentário que até a mim surpreendeu: - Olhe, general, além de contar com a nossa absoluta discrição, saiba que, tanto o meu companheiro como eu, estamos dispostos a regressar. Eliseu olhou para mim fixamente, adivinhando as minhas intenções . - Não me pergunte como, mas desde a reunião desta manhã no hangar que sei que o senhor amadurece uma idéia. Uma idéia - insisti com toda a convicção de que fui capaz - que aplaudimos e fazemos nossa. É preciso voltar e recuperar esse microfone. Curtiss, gratamente surpreendido, limitou-se a esboçar um amplo sorriso, concordando com um movimento de cabeça. - E agora, por favor, responda às perguntas do meu companheiro: O que ‚ que está acontecendo? - Está bem - suspirou o general -, talvez a sua intuição facilite as coisas. Eu explico. Durante o desenvolvimento da operação aconteceram certos fatos, digamos, preocupantes. Nos primeiros dias de Janeiro, como devem recordar, me vi obrigado a ir a Washington em busca de uma solução para a difícil situação criada pela DIA 1 e pelo então diretor da CIA Helms. Os serviços secretos tinham detectado a existência do nosso Projeto e exigiam, a todo o custo, que os mantivéssemos informados. Por sugestão expressa do doutor Kissinger, o próprio Nixon aconselhou a demissão de Helms, que foi substituído por James Schlesinger. Este homem de confiança de Nixon tomou posse da direção da CIA no passado dia seis. Justamente quando vocês se encontravam do outro lado. Pois bem, Schlesinger, que vem do Gabinete de Orçamentos do Presidente Nixon, decidiu agilizar a maldita Agência Central de Informação, multiplicando os seus homens e meios no Oriente Médio 2. - Não vemos que relação. O general pediu que tivéssemos calma. - Infelizmente, existe - prosseguiu num tom grave. - Schelesinger, homem frio e astuto. Para começar, pediu calma a esse ninho de incompetentes, e a CIA, aparentemente, parece ter-se esquecido de nós, a realidade é outra. Desde há umas horas que duplicou o número de agentes ao serviço dessa ratazana, tanto em Israel e Amã como em Saidan. Esta manhã, como sabem, recebi, através do nosso embaixador, um
comunicado urgente. Devia apresentar-me imediatamente na sede da embaixada. Lá para minha surpresa, puseram-me em contato com Kissinger. Justamente para hoje, doze de Fevereiro, e como medida Complementar de distração que contribuísse para um retorno mais confortável e seguro do módulo, Kissinger tinha orquestrado a tão esperada troca de prisioneiros da guerra do Vietnã. E assim foi. Durante horas, a atenção mundial esteve concentrada em três locais diferentes e foram libertados cento e quinze norte-americanos. O doutor Kissinger parte esta mesma noite da Base Clark, nas Filipinas, rumo a Washington. Antes, porém, amanhã mesmo, para ser mais exato, fará escala em Atenas. E ali terei com ele uma entrevista que, não vos escondo, poder ser decisiva.
* DIA: Agência de Informação da Defesa. (Nota do Tradutor) 2 Durante a Guerra do Vietnam, entre 1967 e 1969 o Governo dos Estados Unidos dedicou seis mil milhões de dólares anuais a atividades de espionagem, empregando cento e cinqüenta mil pessoas em tais tarefas. A CIA, neste caso, teve o maior quinhão. De fato, a partir da tomada de posse de Schlesinger, a CIA desviou a sua ação do Sudeste Asiático, passando a considerar o Oriente Médio como a área geográfica do próximo campo de fricção dos Estados Unidos. (N. do M)
Enquanto Curtiss bebia a sua segunda taça de vinho do Hebron, aproveitei para lhe fazer umas perguntas sobre algo que eu não conseguia compreender. - Porque ‚ que o senhor, meu general, diz que o cerco da CIA não é o pior? - A minha conversa telefônica foi breve. Depois de voltar de Atenas talvez possa responder a essa pergunta com precisão. No entanto, a julgar pelo que insinuou o conselheiro presidencial, estou realmente autorizado a lhes comunicar que a estação receptora de imagens do monte das Oliveiras se encontra gravemente ameaçada. O general adiantou-se aos nossos pensamentos e acrescentou: - Ameaçada porquê e por quem? Só lhes digo uma coisa: o tema ‚ suficientemente sério e urgente para que Kissinger, que deveria permanecer quatro dias em Hanói, antecipasse o seu regresso aos Estados Unidos. - O Governo de Golda Meir sabe isso?
- Não sei - respondeu Curtiss com um gesto de impotência. - Essa será outra das questões a tratar em Atenas. Longe de nos acalmarem, as revelações do diretor do Projeto acrescentaram novas dúvidas aos nossos corações. Que tipo de ameaça pairava sobre a estação receptora de imagens do Big Bird? Mas, sobretudo, como conjugar aquele marasmo de intrigas com a idéia, implicitamente aceita pelo general, de regressar ao tempo de Cristo? Naquela madrugada, enquanto o acompanhávamos ao aeroporto internacional Ben Gurion, em Lod, uma sensação muito familiar me percorreu o ventre. Era o prelúdio - quase me atreveria a afirmar que era um aviso - de uma iminente cadeia de acontecimentos. Curtiss, com a sua proverbial prudência, escolheu um vôo regular da companhia judaica El Al para voltar à Grécia. E antes de partir, levado quem sabe se por uma força oculta ou misteriosa, deixou no ar um pedido que a mim, pessoalmente, me fez alimentar certas esperanças. - Não sei se devia - sussurrou, detendo-se diante da pequena escultura erguida em memória do piloto Dan Heymann -, mas mesmo que seja só por uma vez na minha vida, quero seguir a minha intuição. Acariciou a delicada estatueta que representava um ser humano com asas, ligeiramente inclinado para trás e em atitude de levantar vôo, comovido, sem dúvida, perante o curioso encontro com uma imagem tão próxima dos nossos mais íntimos desejos. - Se não acontecer um milagre - acrescentou - o nosso regresso a Edwards pode atrasar-se indefinidamente. Aceitando em princípio tal circunstância e contando com a vossa absoluta discrição, posso pedir-vos uma coisa? Aquela inegável demonstração de confiança encheu-nos de satisfação E, como um só homem, continuamos. - Quero que façam um plano de trabalho. - o general parecia arrepender-se daquela decisão espontânea, mas, após alguns segundos de silêncio, concluiu: - para a recuperação desse microfone. É claro que tudo isto é tão provisório como confidencial. Ah, e esqueçam da fase de lançamento! Quero unicamente - sublinhou com ênfase - as linhas mestras de uma possível segunda exploração. Boa sorte! Nos veremos quando eu voltar. Mudos e imóveis como estátuas, vimos desaparecer aquele homem imprevisível. Não havia mais tempo para lhe fazermos qualquer das muitas perguntas que começavam a brotar nos nossos desconcertados cérebros. A viagem de volta a Jerusalém foi muito significativa. Nenhum de nós
pronunciou qualquer palavra. No entanto os nossos pensamentos - assim mo confirmaria Eliseu nessa mesma manhã do dia 13 de Fevereiro - giraram em torno da mesma preocupação: a incrível possibilidade de uma segunda grande viagem. Procurando acalmar os nossos próprios ânimos, nos concedemos um tempo de repouso. Às treze horas voltaríamos a nos reunir e trocaríamos impressões. Pretensão inútil. Meia hora depois de me ter metido na cama, voltei a me vestir, presa de uma crescente excitação, e fui bater à porta do quarto do meu irmão. Eliseu, tão alterado como eu, nem sequer tinha tentado adormecer. Naquele momento não conseguia compreender por que motivo o meu organismo - depois de mais de quarenta e oito horas de vigília - não acusava qualquer cansaço. O fato é que, com um entusiasmo febril nos embrenhamos na elaboração de uma série de possíveis planos de trabalho. Ao fim de duas horas intensas de trabalho acabamos por desmoronar. Apesar da infinidade de parâmetros manipulados, os esquemas e rascunhos chocavam-se sempre com duas incógnitas fundamentais. Por um lado, de quanto tempo real iríamos dispor na hipótese de que a segunda exploração fosse, de fato executada? Por outro, quais deveriam ser os pontos de lançamento e de contato? Sem esta informação prévia, as nossas idéias e a nossa boa vontade eram quase estéreis. - Além disso - lembrou Eliseu com razão -, porque forjarmos esperanças quando não há certeza? Seria melhor esquecermos este assunto. Permaneci em silêncio durante algum tempo analisando a lógica esmagadora do meu companheiro. Mas graças a Deus, acabei por me revelar contra o senso comum, animando Eliseu a prosseguir naquele aparente absurdo. - Se nós - fiz-lhe ver com todo o meu entusiasmo -, que vivemos uma experiência tão extraordinária, não conseguirmos avivar o desejo de Curtiss, quem ‚ que você pensa que estará em condições de fazê-lo? E, após uma pausa estudada, colocando as minhas mãos sobre os seus ombros e encarando-o fixamente, acrescentei: - Temos que conseguir. Eu quero, preciso voltar. Um calafrio percorreu-me o corpo, ao perceber que imitara inconscientemente uma das atitudes de Jesus de Nazaré quando falava ou se dirigia a alguém que apreciava. Eliseu deve ter reparado e, pela primeira vez, abriu o seu coração, confessando-me uma coisa em que eu não tinha reparado durante a nossa permanência na Palestina do ano 30.
- Sim, essa é também a minha obsessão. E não se esqueça de que eu não tive a oportunidade de vê-lo. Fiquei paralisado e, ao mesmo tempo, humilhado pelo meu evidente egoísmo. Durante os onze dias de exploração, o meu fiel e querido companheiro não tinha, de fato, abandonado o módulo um só instante. A partir daquela inesperada confissão, uma idéia louca começou a amadurecer no meu coração. Mas teremos tempo de falar sobre ela. O entusiasmo, finalmente, surgiu de novo em Eliseu, e, ultrapassando as dificuldades Já mencionadas, nos concentramos no único plano aparentemente viável. Dado que o objetivo básico desta segunda exploração era a recuperação da peça perdida - esse foi, pelo menos, o nosso ponto de vista inicial -, o novo salto no tempo deveria se situar, necessariamente, nas horas mais próximas do dia 6 de Abril, Quinta-Feira Santa. Contudo, ao fixar o instante preciso para a inversão de massa, ambos estivemos de acordo que seria muito mais prático e interessante retomar a exploração nas primeiras horas do amanhecer de domingo, 9 de Abril do ano 30. Além disso, nem ele nem eu nos sentíamos com forças para reviver os amargos dias da Paixão e Morte do Filho do Homem. Depois de um estudo pormenorizado, concordamos, portanto, que o salto deveria acontecer por volta das três horas da madrugada do domingo da Ressurreição e, se possível, localizar o ponto de contato da nave nas coordenadas utilizadas na missão anterior. Isto é, na cota máxima do monte das Oliveiras. Isso facilitaria um rápido acesso ao lugar onde supúnhamos estar o candeeiro: um dos bairros de artesãos talvez na cidade alta - de Jerusalém. Depois, de acordo com o tempo estipulado para a missão, havia a possibilidade de investigar outro fascinante e obscuro capítulo da vida de Cristo: as suas aparições depois de morto e ressuscitado. Aquele dia de trabalho e o seguinte foram decisivos. Muito mais do que poderíamos imaginar então. Absortos na preparação pormenorizada do audacioso projeto, do equipamento e de uma infinidade de pormenores técnicos necessários, quase nem tivemos consciência das horas que se passaram. E finalmente chegou o dia 15 de Fevereiro. Naquela manhã de quinta-feira, uma chamada do recepcionista do Ramada Shalom precipitaria os acontecimentos. Alguns minutos mais tarde, às dez horas, um veículo oficial da Embaixada dos Estados Unidos deixava-nos defronte ao número cinqüenta e três da Rua Rabiah Adawieh,
a trinta passos da mesquita da Ascensão. Ao sairmos do carro um grande aparato de segurança, montado pelo exército israelita, responsável, como Já referi, pela vigilância do exterior da praça onde se encontrava o octógono e os improvisados hangares, chamou-nos a atenção. Aquele súbito reforço do dispositivo de cerco do nosso quartel-general alarmou-nos. Alguma coisa grave devia estar acontecendo para que em questão de horas - nós tínhamos abandonado o recinto na manhã de segunda-feira - o número de soldados tivesse triplicado. Por um momento, enquanto atravessávamos os controles, cheguei a pensar no pior: teriam os Israelitas descoberto a existência do berço? Logo recuperamos o ânimo quando, ao subirmos os oito degraus de pedra que conduziam à antecâmara do templo, vislumbramos Curtiss junto à porta de acesso. Tinha um ar abatido, como se não tivesse dormido desde o nosso último encontro em Lod. E assim era. Enquanto percorríamos os doze metros que separavam a referida porta do centro da praça, confessou-nos que - dada a gravidade da situação - regressara de Atenas na mesma noite de segunda-feira, 12 de Fevereiro. Eliseu e eu trocamos um olhar de dúvida. Mas o general. com voz cansada, pediu para entrarmos com ele no hangar onde acontecera a primeira e não concluída reunião. Ali, entre os sofisticados painéis Thompsom-CSF, destinados à recepção de imagens do Big Bird, aguardavam os diretores do Programa, silenciosos. Quando nos sentamos à volta da pequena mesa central, ninguém fez qualquer comentário. Todos os olhares estavam fixos em Curtiss. - Bem, meus senhores - decidiu-se ele por fim. depois de tirar uma pequena pasta de pele negra de uma malinha que colocara à sua frente e que, se não me falhava a memória, tinha sido a única bagagem do seu último vôo à Grécia -, imagino que devem estarás fazendo algumas perguntas. Vou tentar ir por partes. E, sem pressa, reviu uma série de notas manuscritas. Ao levantar de novo os olhos. Curtiss captou de imediato a crescente inquietação geral. Forçando um sorriso, exclamou: - Não se assustem! O que viram lá fora - o seu dedo indicador esquerdo apontou para o exterior do octógono - não tem nada a ver com os reais objetivos do Programa. Pelo menos, é o que eu acho. E, voltando aos seus documentos, fez uma nova e desesperante pausa. - Não importa como - prosseguiu finalmente -, mas o caso é que
chegou à Agência Central de Informação e Segurança de Israel, o Mossad, uma informação alarmante: o movimento guerrilheiro palestino tem conhecimento da nossa operação com o Governo de Golda Meir. Refiro-me à instalação da estação receptora de imagens via satélite. Os rostos de todos os presentes refletiram uma extrema gravidade. Os serviços secretos militares de Israel, em especial a partir da Guerra dos Seis Dias, em 1967, eram considerados como os mais eficientes e desenvolvidos do Mundo, sobretudo em assuntos relacionados com o Oriente Médio. Nenhum dos assistentes punha em dúvida tal revelação. - É mais do que certo - continuou Curtiss - que no momento, tanto a OLP como os serviços secretos egípcios, sírios e, naturalmente soviéticos também estejam a par e Já tenham tomado as medidas oportunas. Naqueles momentos dramáticos ninguém percebeu uma sutil e, suponho, involuntária, revelação do general. Porquê, ao referir-se aos serviços secretos, tinha mencionado, única e exclusivamente o Egito, a Síria e a URSS? Dias mais tarde, teríamos a oportunidade de conhecer a razão desta tríplice alusão. - Durante a passada terça-feira, e no mais estrito sigilo, tive a oportunidade de me encontrar com o doutor Kissinger. Os diretores do Projeto entreolharam-se, atônitos, sem dúvida associando aquela reunião à súbita partida do general daquele mesmo hangar. Mas ninguém comentou o fato, deixando Curtiss prosseguir. - O conselheiro presidencial dispunha de informação em primeira mão. As suas ordens tinham sido taxativas: por nada do mundo devemos arriscar a vida dos nossos homens nem os instrumentos que nos foi confiado. Não havia necessidade de mais explicações. Ao referir-se à palavra instrumental, todos sabíamos do que estava realmente falando. - Pois bem, por expresso desejo de Kissinger, e contando sempre com o beneplácito do Governo de Israel, a estação receptora de imagens deve ser desmontada imediatamente. Curtiss pegou de novo os documentos guardados na sua pasta e, dirigindo-nos um olhar de cumplicidade, esclareceu: - Isto implica uma mudança substancial nos nossos planos originais. Para Já. a não ser que os chefões de Washington disponham de outra alternativa, o regresso à Base Edwards fica adiado. Ontem mesmo, quando regressei de Atenas, tive uma reunião urgente com o gabinete de cozinha de Golda. O único assunto em discussão, como Já devem ter intuído, foi
este: que fazer com a estação receptora? Estiveram presentes a primeira-ministra, Golda, o vice primeiro ministro, Alon, o ministro da Defesa, o nosso sempre hesitante moshe Dayan, o chefe do estado-maior. tenente-general David Eleazar, o chefe do Departamento de Investigação dos Serviços Secretos, general de brigada Arie Shalev, e o chefe dos Serviços Secretos, general Zeíra. Depois de hora e meia de intenso debate e por razões que de momento não estou autorizado a revelar, o Governo de Israel mostrou-se de acordo com a referida e imediata desmontagem das instalações, concordando com a sua transferência para outro local secreto.
* OLP: Organização para a Libertação da Palestina. dirigida então por Yasser Arafat. (IN. do M) 2 Assim era chamada pelo povo de Israel a equipe de confiança de Golda, A senhora Meir, com a sua forte personalidade. tinha desenvolvido um estilo próprio e muito peculiar de governo. ultrapassando em numerosas ocasiões a mecânica burocrática e institucional. Ela preferia trabalhar em estreita colaboração com os seus mais próximos, formando um sistema ad-hoc que se tornou célebre e que era conhecido como a cozinha de Golda. (In do t)
(Como Já relatei nas primeiras páginas deste diário, num minucioso estudo elaborado em Washington pelo CIRVIS, em estreita colaboração com o Departamento Cartográfico do Ministério da Guerra de Israel, tinhase estabelecido que a instalação da rede receptora de imagens do satélite artificial Big Bird, devia ser efetuada num prazo máximo de seis meses, a partir da data de chegada dos instrumentos à cidade de Telaviv. Isto aconteceu em Janeiro de 1973. Os especialistas, numa primeira fase, procurariam uma base segura e definitiva. Para isso, os militares israelitas tinham designado três lugares possíveis: o cume do monte das Oliveiras, os montes do Golã - em mãos israelitas desde a guerra de 1967 - (e os maciços graníticos do Sinai) Os diretores do Projeto quebraram o seu mutismo lançando sobre o general uma torrente de perguntas: Quando se efetuaria a desmontagem? Qual dos pontos alternativos - montes do Golã e Sinai - tinha sido escolhido? Que acontecerá com o berço e com todos nós? Curtiss recuperou o seu sorriso e pediu ordem e calma. - Isto é tudo que posso falar por hora: as previsões e avaliações dos serviços secretos israelitas consideram que a situação geral no Oriente
Médio tende para um perigoso agravamento. E rogo-lhes que não me perguntem porquê. O importante, o que nos importa, é que, por decisão do Governo de Golda, a estação receptora é agora mais vital do que nunca e os militares israelitas Já estão procurando outro local, diferente dos previstos inicialmente. Tanto eles como nós dispomos de um prazo máximo de três dias para encontrar esse lugar e fazer a mudança. O doutor Kissinger considera que a nossa presença nesta nova etapa do Projeto é absolutamente necessária. Não podemos nem devemos despertar suspeitas. Para os Israelitas nós somos os proprietários dos equipamentos e os responsáveis por eles, e assim vai continuar a ser. Mas há mais qualquer coisa - anunciou Curtiss, adotando um tom solene. - Uma coisa com que não tínhamos contado e que, vendo bem, poderemos qualificar como um novo e apaixonante desafio. O meu coração deu um pulo. E, instintivamente, procurei o olhar de Eliseu. Não sei como, mas eu sabia o que o general ia comunicar. Pela primeira vez nos anos em que estávamos juntos percebi um ligeiro tremor nas mãos de Curtiss. E a sua voz ficou embargada pela emoção. Nunca me esquecerei daquela rotunda afirmação: - Senhores, regressaremos! Obviamente, os diretores do Projeto não compreenderam o significado daquelas duas simples palavras. E um deles, interrompendo-o, lembrou-lhe que, se não tinha entendido mal, o regresso a casa fora adiado. Os olhos de Curtiss faiscaram maliciosamente. - Senhores - insistiu, enfatizando cada uma das sílabas re-gres-sa-remos. Em poucos segundos, os membros da equipe perceberam o que ele acabara de dizer e, levantando-se, aplaudiram-no calorosamente. Todos sabiam do extravio do microfone e todos, no mais íntimo dos seus corações, tinham previsto e desejado uma segunda oportunidade. Contudo, passados os primeiros minutos de lógico entusiasmo, os frios e racionais diretores do Programa despertaram para a crua realidade, levantando uma série interminável de dúvidas. Alguns daqueles obstáculos técnicos Já tinham sido avaliados por nós nas horas de profunda reflexão e enclausuramento no hotel. Curtiss ouviu pacientemente. Por último, olhando para nós fixamente, fez uma pergunta concisa: - O que é que tem para dizer? - Há uma possibilidade. Mas, antes de continuarmos com o plano traçado no Ramada Shalom, o general deu a reunião por concluída.
- Disso - o atalhou perante a curiosidade geral falaremos no momento oportuno. Agora é urgente desmontar totalmente o módulo e embalar todos os equipamentos. Senhores, mãos à obra! A partir dessa reunião decisiva os homens do Cavalo de Tróia empenharam-se no esgotante trabalho de desmontagem geral. A maioria dos técnicos, alheia aos fatos que acabávamos de conhecer, interrogou-se reiteradamente acerca do porquê daquela estranha pressa e do reforço das medidas de vigilância e segurança exteriores. Foi o próprio general, em mangas de camisa e a trabalhar freneticamente como qualquer um, quem lhes insinuou discretamente que existia o risco de um possível atentado terrorista contra a estação e que nos preparávamos para a sua mudança de lugar imediata. Durante um dos breves períodos de descanso, Curtiss nos colocou a par de outros acontecimentos intimamente relacionados - sempre segundo o Mossad - com a grave ameaça que pairava sobre a estação receptora de imagens. Os agentes israelitas infiltrados em Beirute, Amã e Roma, tinham descoberto um plano para assassinar o rei Hussein da Jordânia, que naquela altura - primeiros dias de Fevereiro - realizava uma visita semi-oficial aos Estados Unidos. O grupo guerrilheiro palestino Setembro Negro planejava apoderar-se de diversos edifícios governamentais de Amã fazendo prisioneiros vários ministros jordanos. Segundo parecia, as intenções de Hussein de negociar a paz com Israel não agradavam aos palestinos, os quais, aproveitando a ausência do monarca, tinham conseguido infiltrar-se em território jordano fazendo-se passar por turistas dos Estados do golfo Pérsico. Alertados pelo Mossad, os serviços de contra-espionagem da Jordânia detiveram um grande número de ativistas, apreendendo um total de vinte automóveis. Entre os guerrilheiros que tinham entrado por via aérea, vindos da Europa, encontravam-se dois indivíduos recentemente libertados pelas autoridades italianas - Ahmed Zaid, estudante do Iraque. e Adnah Hasem, jordano - acusados de tentarem derrubar um avião da companhia Israelita El Al. Nos interrogatórios que se seguiram a estas detenções, os jordanos foram informados de alguns dos projetos imediatos das diferentes facções guerrilheiras palestinas. Entre os mais importantes destacavam-se o assalto a uma embaixada árabe num determinado país do continente africano, a criação de um arsenal e uma infra-estrutura para o ataque a aviões comerciais israelitas na Europa e o assalto de um comando suicida à mesquita da Ascensão. Era óbvio que este último plano terrorista só podia
basear-se numa informação exata do que os Estados Unidos e Israel estavam a fazer em relação ao Big Bird.
* O rei Hussein chegara a Washington no dia 6 de Fevereiro mantendo no dia seguinte uma entrevista com o presidente Nixon. Naquela data esperava-se um ofensiva diplomática do meu país no Oriente Médio. Antes de partir de Amã. Hussein declarara que o conflito entre os países árabes e Israel teria de ser resolvido globalmente e não em tratados separados. Desta forma, evitou os rumores existentes sobre um acordo de paz secreto entre o seu país e Israel em relação ao futuro estatuto de Jerusalém e dos refugiados palestinos.
Tão graves acontecimentos - totalmente alheios à nossa verdadeira missão - só vieram perturbar os corações dos membros da equipe, que se entregou até ao limite da sua capacidade à delicada operação de limpeza dos barracões. Dois dias depois - no sábado, 17 de Fevereiro, com pouco mais de vinte e quatro horas de avanço em relação ao previsto, o berço tinha sido desmontado e protegido em três containeres blindados. Por coincidir com o dia sagrado dos judeus. Curtiss, astutamente, apressou-se lhes comunicar que podiam abrir caminho pelo recinto da mesquita. Mas, como era de esperar, declinaram a oferta, demorando a sua participação nos últimos trabalhos de evacuação até ao pôr do Sol. Aquela providencial coincidência nos proporcionaria uma preciosa margem de quase seis horas, durante as quais quase todas os consoles e equipamentos eletrônicos da estação propriamente dita foram deitados abaixo, misturados e escondidos entre as caixas metálicas que continham o módulo e os restantes instrumentos auxiliares. Minutos depois do ocaso - por volta das dezessete horas e quarenta e cinco minutos - os técnicos e oficiais israelitas entravam na praça, Já iluminada por potentes refletores, colaborando com os nossos homens na desmontagem final.
* A libertação destes guerrilheiros levou Israel a pedir explicações ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Itália. Segundo os Serviços secretos israelitas, Zaid e liasem, encarcerados em Roma desde Agosto de 1967, eram dois destacados e perigosos terroristas. (fN. dn 19.)
As informações da serviços secretos jordanos e israelitas eram corretas. Algumas semanas mais tarde - no dia 1 de Março guerrilheiros do Setembro Negro faziam reféns na Embaixada da Arábia Saudita em Cartum (Sudão). Entre as exigências dos terroristas estava a libertação de quarenta guerrilheiros palestinos encarcerados em Israel e de outra meia centena de guerrilheiros presos na Alemanha Ocidental, Jordânia e Israel. assim como do assassino do senador Robert Kennedy, Sirhan Bishara Sirham. Para grande espanto nosso - e supomos que para os serviços de espionagem israelitas e jordanos, que naquela data não conseguiram uma informação mais pormenorizada -, os oito guerrilheiros do Setembro Negro matariam três dos diplomatas retidos na embaixada: Aleo A. Noel, nosso embaixador no Sudão: Guv Eid, funcionário belga e Curtiss iloore, também diplomata norte-Americano. (I. dn11) Este arsenal seria descoberto pela Polícia italiana a 11 de Setembro desse mesmo ano de 1973. em àstia, perto de Roma. Na casa escondiam-se nove palestinos, membros de um grupo terrorista. Entre as numerosas armas foram encontrados dois lança mísseis Strela, de fabrico russo, que podiam ter sido utilizados para derrubar aviões comerciais em pleno vôo. O temível Strela possui um cano de 10 metros, com um peso de treze quilos, podendo ser disparado como uma espingarda: quer dizer, apoiando-o num ombro e apontando com uma teleobjetiva de reduzidas dimensões. Alcança facilmente o motor de um avião, graças ao sistema de guia por raios infravermelhos. (N. do N)
Ao amanhecer, a operação estava concluída. Tudo estava preparado para a mudança. Mas, para onde? Qual era o ponto escolhido? Por razões básicas de segurança - e seguindo as ordens do general de brigada Ari‚ Shalev, chefe do Departamento de Investigação dos serviços secretos israelitas -, os arqueólogos (ou supostos arqueólogos) deveriam permanecer no interior da mesquita da Ascensão até quarenta e oito horas depois da saída definitiva do material. Os árabes, proprietários e guardiões do santuário, atentos a todos os nossos movimentos, podiam ter desconfiado de alguma coisa se os referidos peritos da Universidade de Jerusalém, da Escola Bíblica e Arqueológica Francesa da Cidade Santa e do Museu de Antiguidades de Amã - integrantes da divisão especial encarregado pelo Governo de Golda Meir das escavações e reparação das
fundações da fachada oriental da inesquecível mesquita, supostamente danificadas pelo simulacro de atentado protagonizado pelos agentes de Dayan - tivessem evacuado a zona ao mesmo tempo em que retiravam a carga. Esta carga, segundo as poucas informações que chegaram até nós naqueles dias, desapareceria do local durante a noite e aos poucos, a fim de levantar o mínimo de suspeitas. A grande pergunta que nos fizemos durante aqueles tensos dias de trabalho e que Curtiss não conseguiu ou não soube esclarecer, tinha uma importância decisiva para o planejamento da primeira fase da aventura que nos aguardava. Qual era o local escolhido para a estação receptora do Big Bird? Como Já levemente referi, essa nova e tão esperada decolagem do módulo, e talvez grande parte da segunda exploração, dependiam de um conhecimento exaustivo do lugar onde deveria ser instalada a estação receptora. Logicamente, ao abandonar o monte das Oliveiras, esse misterioso local tinha de ser longe daquele que, em princípio, Já era para nós o ponto de contato da nave: o referido cume do monte que agora estávamos prestes a deixar.
* Embora Já tenha sido pormenorizadamente explicado no primeiro volume desta obra, talvez seja conveniente recordar a natureza deste tipo de satélites artificiais que desempenharam um papel decisivo nos dias dramáticos que precederam a Guerra do Yom Kippur, em Outubro de 1973. A série de satélites Big Bird. ou Grande Pássaro consta numa das notas do Major - e, em especial, o protótipo KH II, pode voar a uma velocidade de vinte e cinco mil quilômetros por hora, demorando noventa minutos a dar uma volta completa ao Planeta. Como esta oscila ligeiramente durante esse lapso de tempo (22 graus e 30 minutos), o Big Bird sobrevoa durante a volta seguinte uma faixa diferente da Terra e volta à sua trajetória original ao fim de vinte e quatro horas. Quando o Pentágono descobre alguma coisa com interesse, pode modificar a órbita do satélite, aumentando o tempo de revolução durante alguns minutos e fazendo-o descer a órbitas que podem ir até 190 quilômetros de altitude. Por exemplo, uma diferença de um grau e trinta minutos por dia permite cobrir em dez dias uma zona de conflito, sobrevoando todas as cidades e zonas de interesse militar. Posteriormente, o Big Bird ‚ impelido para uma órbita superior. Com a instalação em Israel de uma destas sofisticadas estações receptoras de imagens - para além de materializar os propósitos da
Operação Cavalo de Tróia - os Judeus dispunham de um rápido e fiel sistema de controle dos seus inimigos, e os Estados Unidos de uma estação estratégica que lhes permitia poupar tempo e grande parte da manobra sempre complicada de recuperação das oito cápsulas descartáveis que cada satélite transportava e que eram resgatadas cada quinze dias nas proximidades de Havaí. Militarmente, a operação era de grande interesse para os Estados Unidos, que assim podiam fotografar a vontade faixas tão instáveis como as fronteiras da URSS com o Irão e Afeganistão, Paquistão e Golfo Pérsico, recebendo centenas de negativos após três minutos de sobrevôo. (N. de J. J. Benitez)
Para superar este inconveniente, os diretores do Projeto reunidos com Eliseu e comigo durante todo o domingo a fim de planificarmos todos os pormenores do segundo grande salto - estabeleceram só duas soluções. Se a distância entre a nova instalação e o monte das Oliveiras fosse considerável, o berço, uma vez efetuada a decolagem e a imediata inversão de massa, deveria fazer essas milhas num vôo horizontal. Isto complicava ainda mais as coisas. Entre outras razões, pelo evidente consumo adicional de combustível. Uma quantidade de peróxido de hidrogênio que, aliás, tinha de vir secretamente, dos Estados Unidos. Se, pelo contrário, não fossem muitos os quilômetros que nos separavam do ponto de contato, talvez o mais prudente fosse mudar a zona de descida, fazendo a pé o caminho até Jerusalém. Nesse caso, dado o indubitável risco que representaria uma caminhada com essas características, a estratégia deveria ser radicalmente alterada. Por expresso desejo de Curtiss, que praticamente não vimos antes de terça-feira, 20 de Fevereiro, a reduzida equipe que dirigia o Cavalo de Tróia viveu aqueles dias única e exclusivamente para a segunda aventura. No nosso afã de acertar até ao último pormenor da tão apaixonante e porquê negá-lo? - perigosa missão, comprovamos até, nos primeiros momentos, a possibilidade de os montes Golã ou os maciços do Sinai serem reconsiderados pelo Governo israelita como uma das plataformas para a instalação definitiva da estação. O general nos tinha avisado que, devido a situação no Oriente Médio, o estado-maior israelita pusera de lado esses dois locais. E não tivemos outro remédio senão mos rendermos à evidência quando, nesses dias, a imprensa de Jerusalém ventilou duas notícias de acontecimentos registrados na última quinta
feira, e justamente nas áreas de litígio. No golfo do Suez, muito próximo do Sinai. um avião egípcio e outro israelita tinham sido atingidos num duelo aéreo entre aparelhos de ambos os países. Quanto aos montes Golã, tropas sírias tinham destruído dois tanques e uma escavadora israelitas, quando estes atravessaram a linha de cessar-fogo para construírem uma estrada na zona desmilitarizada. A tensão entre Israel e os seus vizinhos árabes continuava a crescer de forma alarmante, pondo mesmo em perigo os nossos objetivos. Mas as horas mais amargas ainda não tinham chegado. Na manhã de segunda-feira, 19 de Fevereiro, aproveitando uma interrupção forçada nas nossas sessões de trabalho, e quase sem querer, os meus passos levaram-me a um lugar que eu tinha evitado até àquele momento: a Cidade Velha de Jerusalém. Enquanto Eliseu e os diretores estavam ocupados na sede da embaixada norte-americana nos trâmites do envio por mala diplomática dos sismogramas obtidos na primeira exploração e que deviam ser estudados, com prioridade absoluta, pelo Centro Geológico do Colorado e pela Administração Nacional do Oceano e da Atmosfera (NOSA), ambos no meu país, eu deixei-me levar por uma necessidade quase imperiosa: caminhar lenta e pausadamente pelos mesmos (?) lugares da Cidade Santa onde - séculos antes tinha vivido tão incríveis e traumatizantes experiências. Talvez não o devesse ter feito. No fundo, eu sabia o que me esperava. Mas o meu espírito queria encontrá-lo ou encontrar algum vestígio que me recordasse a sua presença. Agora, depois de tanto tempo, tenho a certeza de que fiz bem em ocultar a Curtiss e à direção do Projeto a minha profunda angústia e o desejo de voltar, fruto de uma complexa mistura de admiração por Ele e de uma ardente necessidade de o conhecer melhor. Ninguém, nos meus longos anos de vida, tinha atingido tão certeira e profundamente o meu atormentado coração. E constantemente fazia a mim próprio a mesma pergunta: porquê eu? Por que ‚ que um indivíduo ruim, impuro e eternamente em dúvida, como eu, se tinha envolvido em semelhante situação? Que tinha aquele Homem para conseguir transformar tão violentamente uma vida - a minha - cheia de vazio. E assim, se tivesse explicado isso ao Cavalo de Tróia a minha fraqueza por Jesus de Nazaré - porque era disso que realmente se tratava - tão flagrante parcialidade e entusiasmo pela personagem que era motivo da segunda expedição me teriam desqualificado irremediavelmente. A objetividade e frieza, nos exploradores, eram condições básicas para o
desempenho de uma missão daquela natureza. E, embora o meu companheiro e eu compartilhássemos estes sentimentos, creio que no momento da verdade - como se verá mais à frente - soubemos respeitar esta regra-de-ouro da operação, mantendo sempre, e por vezes com sérias dificuldades, uma posição distante e à margem do curso dos acontecimentos. Ao passar por baixo do arco da Porta de Jafa, no extremo ocidental da Cidade Velha de Jerusalém, o frio inicial daquela manhã tinha começado a diminuir. Uns tépidos raios de sol amenizaram a minha intensa palidez e alegraram o ocre das pedras da Cidadela. Uma multidão variegada dava vida à pequena rua que separava os bairros armênio e judeu, a norte, do cristão e muçulmano, a sul. Apesar de eu ter passeado em muitas ocasiões - antes da grande viagem - por aquele mesmo setor da Cidade Santa, agora era diferente. Muito diferente. Ao chegar ao fim da Street of the Chain, hesitei. Para onde me dirigia? À minha direita, a curta distância, encontrava-se o Muro das Lamentações: último e único vestígio do imponente Templo construído por Herodes, o Grande. E instintivamente caminhei nessa direção. Ao chegar ao grande terreiro que existe junto ao muro ocidental do antigo Templo, centenas de pessoas, na maioria turistas, andavam de um lado para o outro, bisbilhotando e tirando fotografias. Aproximei-me a pouco e pouco da muralha. Era incrível que daquela monumental construção que eu vira no nosso primeiro salto só restasse de pé um pequeno troço de parede de doze escassos metros de altura e pouco mais de setenta de comprimento 1. Numerosos rabinos e fiéis judeus, entre os quais se destacavam crianças e jovens, rezavam ou liam os rolos da Lei, com os rostos completamente encostados aos gigantescos e gastos blocos acinzentados. A devoção e o respeito daqueles israelitas, cobertos com os seus mantos brancos e os típicos chapéus pretos e com os filatérios colados à testa, eram impressionantes.
* Este muro chamado das Lamentações, é o lugar mais venerado pelo povo judeu. Trata-se da única relíquia do que foi o grande Templo edificado pelo rei Herodes, o Grande, no ano I a. C. O imperador romano Tito, ao destruir Jerusalém no ano 70 da nossa Era, deu ordens para que aquela parte da muralha que rodeava o Templo permanecesse em pé, como
demonstração do poder de Roma e dos seus legionários, capazes de destruir tão sólida construção. No período bizantino, os Judeus foram finalmente autorizados a visitar a Cidade Santa, podendo aproximar-se do Muro das Lamentações uma vez por ano, precisamente na data do aniversário da destruição de Jerusalém. E ali passaram a lamentar a destruição, rezando pela reunificação do povo de Israel. Este costume perduraria durante séculos. Entre os anos 1948 e 1967, esta parte de Jerusalém foi proibida novamente aos Israelitas, por se encontrar no setor conquistado pela Jordânia. Mas durante a Guerra dos Seis Dias, o muro ocidental foi tomado pelos Judeus e, desde então, constituiu-se em ponto de exaltação nacional e de culto. (N. do M)
Levantei os olhos, percorrendo minuciosamente as onze fileiras de pedra que ainda resistiam ao passar dos séculos, descobrindo como algumas coisas não tinham mudado no venerável muro. Entre os buracos e fendas dos imponentes blocos continuavam a florescer tufos de ervas silvestres que abrigavam uma grande quantidade de pombos e passarinhos. E por entre o sussurro daquelas preces vieram-me à memória as palavras que pronunciara Jesus de Nazaré ao entardecer da terça-feira, dia 4 de Abril do ano 30: "Vistes estas pedras e este Templo maciço? Pois em verdade, em verdade vos digo que dias virão, muito próximos, em que não ficar pedra sobre pedra. Todas serão derrubadas". Levado por uma estranha força, aproximei-me de uma das moles de pedra. As minhas mãos acariciaram a superfície rugosa e o meu rosto, lenta e suavemente, foi tocar na segunda fileira. Fechei os olhos, tentando captar a extraordinária energia que, sem dúvida alguma, estava armazenada naquela relíquia. A minha alma precisava desesperadamente de um sinal, uma simples lembrança, talvez o fugaz perfume de uma das pedras que tinham sido testemunhas mudas da presença de Cristo. Um pranto doce e calmo foi a única resposta. Quando aquela dilacerante tristeza estava quase a sufocar-me, uma mão pousou no meu ombro direito. Por uns instantes neguei-me a abrir os olhos, imaginando que aquele gesto - tão típico de Jesus estava acontecendo noutro tempo. Contudo, ao dirigir a vista para o homem que estava ao meu lado, um reflexo esverdeado me devolveu à trágica realidade. Era um pára-quedista do exército israelita, com o seu camuflado e uma metralhadora no ombro
esquerdo, com o cano apontando para o chão. Em volta do seu pescoço tinha o mais singular manto de oração que eu Já vira diante do Muro das Lamentações: duas cartucheiras, com um brilhante enxame de balas que cintilavam aos fracos raios do sol da manhã. O jovem - talvez fosse um judeu ortodoxo que cumpria o seu serviço militar - olhou para mim em silêncio. E, depois de um breve sorriso, fez um único comentário: - Irmão, o espírito divino está sempre presente nestas pedras. Mesmo que não seja judeu, reze, peça a Deus e os seus desejos serão satisfeitos. Não sei ao certo se correspondi ao seu sorriso. O fato é que me senti aliviado e, seguindo o seu conselho rezei em silêncio e com toda a força do meu coração oprimido. Ao fazê-lo, outras inesquecíveis palavras do Mestre brotaram no meu cérebro: “Nenhuma súplica recebe resposta, a não ser que proceda”. do espírito. Em verdade, em verdade te digo que o homem se engana quando tenta canalizar a sua oração e os seus pedidos para o benefício material, próprio ou alheio. Essa comunicação com o reino divino dos seres de Meu Pai, só obtém a devida resposta quando obedece a uma ânsia de conhecimento ou consolo espiritual. O restante - as necessidades materiais que tanto vos preocupam - não são conseqüência da oração, mas sim do amor de meu Pai 1. Nesse momento compreendi que grande parte da minha angústia nascia de um desejo egoísta: só pretendia satisfazer a minha curiosidade e os meus instintos mais profundos. E ali mesmo pedi perdão, suplicando ao Pai que, se a nossa segunda aventura chegasse a materializar-se, me desse luz e força para a viver e aproveitar com o único fim de beneficiar as gerações futuras. Um pouco mais calmo, afastei-me daquele lugar, dirigindo-me para a extrema direita do muro: o local destinado às mulheres. Dei a volta à barreira metálica que separa os dois setores e, pegando no meu velho caderno de apontamentos, escrevi três palavras: "Voltar a Ele" Aquele era, e é, um dos costumes mais comuns entre as pessoas que visitam o Muro das Lamentações: escrever num papel uma oração ou um desejo particular e, depois de dobrar o papel, introduzi-lo numa das ranhuras que existem entre os grandes blocos de pedras. A tradição popular assegura que essas petições sempre se cumprem. Dado que nenhum homem pode entrar no setor feminino, pedi a uma turista que colocasse a minha mensagem na muralha. A mulher, muito amável, fê-lo logo. E ali ficou - e ali suponho que estar ainda - o breve, sincero e
intenso rogo. Hoje posso garantir que, pelo menos no meu caso, a crença popular está certa. O resto do meu passeio pela Cidade Velha não contribuiria em nada para me animar. Todos os lugares por onde calhou eu passar estavam irreconhecíveis. Não mantinham praticamente nenhuma semelhança com aquela Cidade Santa do ano 30. Era lógico. Se não me falha a memória, desde o ano 587 a. C, data da destruição de Jerusalém e do Templo por Nabucodonosor, a Cidade Santa tinha sofrido dezesseis invasões, sendo arrasada e de novo edificada mais de uma dezena de vezes 3.
* Estas e outras palavras de Jesus de Nazaré sobre a oração aparecem no primeiro volume desta obra (p g. 249 e seguintes). (N. de J. J. Benitez) 2 Antigamente, antes de fazerem uma viagem, os Israelitas colocavam um prego de ferro entre as fendas do muro ocidental, em sinal de apego à sua p tria. (N. do M) 3 Eis aqui, como exemplo do que afirmo, alguns dos mais notáveis episódios vividos por Israel - e por Jerusalém em particular - a partir do citado ano 587 a. C: No ano 539 a. C, o rei persa Ciro conquista a Babilônia, permitindo a volta dos Judeus a Jerusalém. O Templo seria reconstruído por Zorobabel. Em 334 a.C, Israel é novamente conquistada. Desta vez, por Alexandre Magno. Após a sua morte, é controlada pelos Ptolomeus, do Egito. Em 198 a.C, Antíoco III da Síria vence os Egípcios e Israel passa para as mãos dos Selêucidas. Em 175 a. C, Antíoco IV ‚ coroado rei e ordena a supressão do culto a Deus. Profana o Templo, oferecendo no seu altar de sacrifícios pagãos. Em 167 a. C, os Judeus levantam-se contra os Selêucidas e derrotam-nos. No ano 64 a. C, Pompeu conquista Israel. Algum tempo depois, no ano 40 a. C, os Partos derrotam os Romanos e conquistam o país. Em 39 a. C, Herodes, o Grande, vence os Partos e reina até 4 a. C, sempre sob o poder de Roma. Já no século I da nossa Era, no ano 66, os Judeus revoltam-se contra o Império Romano. No ano 70, Tito reprime a rebelião e destrói a cidade. Nos anos 132-135 dá-se uma nova revolta judaica, dirigida por Bar Kokeba. O imperador Adriano vence, destruindo Jerusalém. A reconstrução dá-se pouco depois e Jerusalém recebe o nome pagão de Aelia Capitolina. Nos anos 330-634 acontece a dominação bizantina. Com a conversão de Constantino ao cristianismo constroem-se numerosas igrejas na Cidade Santa. Em 614, nova invasão. Desta vez protagonizada pelos Persas. Foram destruídas centenas de
igrejas. No ano 636. os Muçulmanos conquistam a Palestina, transformando Jerusalém na sua terceira cidade santa, depois de Meca e Medina. No ano 1009, o califa fatímida Jakem destrói a igreja do Santo Sepulcro e outros santuários cristãos dando assim início a duzentos anos de lutas entre o Oriente e o Ocidente, e dando lugar às famosas Cruzadas. No ano 1099, a Cidade Santa cai em poder dos Cruzados. Em 1187, Saladino, príncipe árabe derrota os Cruzados nos chamados Cornos de Hittin, pondo fim ao Reino Latino do Oriente. Em 1263, outro sultão. o mameluco Baibars. do Egito, conquista as fortalezas do litoral que ainda pertenciam aos Cruzados. Nos 250 anos seguintes, permanecerão sob o domínio mameluco. No ano 1400, tribos mongólicas, dirigidas por Tamerlão, invadem Israel. Em 1517 ‚ a vez de os Turcos entrarem na Palestina a sangue e fogo. Durante quatro séculos, Israel fará parte do Império Otomano. Em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial. a Palestina‚ ocupada pelas tropas aliadas dirigidas pelo general Allenby. Esse ano ‚ recordado como o da Declaração Balfour para a criação na Palestina de um Lar Nacional Judaico. Em 1922, o mandato britânico sobre a Palestina ‚ confirmado pela Liga das Nações. Em 1947, a Organização das Nações Unidas estabelece um plano que divide a Palestina num Estado judaico e outro árabe. Em 1948 termina o mandato britânico e, no dia 14 de Maio, o Conselho Nacional Judaico proclama o nascimento do Estado de Israel. Mas o novo Estado é invadido pelos países vizinhos. Ao terminar a guerra, a Palestina fica dividida entre Israel e Jordânia. (N. do M) 1 Construída entre os anos 709 e 715 pelo califa El-Walid, filho de Abdel Malek, que mandou construir a outra mesquita: a do Domo da Rocha. A de El-Aksa encontra-se quase exatamente sobre o que foi o Palácio de Salomão. (N. do M)
Nada mais absurdo que eu pretendesse ver e reconhecer na atual esplanada do Domo da Rocha o magnífico Segundo Templo ou, no bairro muçulmano, o traçado primitivo das ruelas que eu tinha percorrido. Ao entrar no gigantesco retângulo onde outrora se erguera o magnífico templo de Herodes, um guia, a meia voz, explicava a um grupo numeroso de curiosos e respeitosos turistas ingleses como muitos rabinos e judeus de Mea Shearim (o bairro religioso da cidade) só aceitam caminhar descalços ou, então, negam-se a pisar o átrio no qual nos encontrávamos. Segundo
estes rigorosos cumpridores da Lei judaica, ali se encontra sepultada a famosa Arca da Aliança, e, portanto, aquele ‚ um lugar sagrado. Na verdade, enquanto me dirigia para as mesquitas que hoje ocupam o terreno do Segundo Templo - a de El-Aksa e a conhecida como o Domo da Rocha - tive de reconhecer que aquele era um dos escassos lugares onde os humanos não caíram ainda no lamentável tráfico comercial que existe naqueles a que os cristãos chamam lugares santos. Ali tudo é silêncio e recolhimento. A venda ou o comércio de lembranças mais ou menos santas ou religiosas está terminantemente proibida. Diante da Mesquita Distante ou de El-Aksa 1, situada a sul do grande retângulo, o meu espírito voltou a estremecer. Atrás dela e à esquerda da sua cúpula de prata via-se grande parte do monte das Oliveiras e, na encosta ocidental, o Getsémani. A súbita descoberta da colina e da ladeira pela qual eu subira e descera tantas vezes, desencadeou em mim uma reação quase violenta. E, dando meia volta, afastei-me a passos largos, em direção à bela mesquita de Omar, ou Domo da Rocha. Apenas me detive uns instantes junto à Oitava Maravilha do Mundo. Na minha opinião, aquele é o lugar exato onde, há dois mil anos, se erguia, majestoso, o Santuário propriamente dito. Ali, muito perto de algumas das fachadas do octógono de sessenta metros de diâmetro que constitui o exterior da mesquita - talvez nas viradas para sul ou sudoeste -, estiveram outrora as escadarias de acesso ao Templo, onde eu vira e ouvira o Rabi da Galiléia. Ali, naquele terreiro, eu assistira ao insólito espetáculo de um Jesus firme e seguro, de chicote na mão, abrindo as portas do setor norte do chamado Átrio dos Gentios e provocando a fuga impetuosa dos animais destinados aos sacrifícios sagrados. Durante alguns segundos, no silêncio daquele lugar, pude ouvir os mugidos dos bois, a algazarra dos cambistas de moeda e o estrondo das mesas e barracas ao serem atiradas ao chão pelo gado. Que longe e que perto me parecia tudo! A trinta ou quarenta metros para noroeste, naquilo que é atualmente o limite norte do monte do Templo, imaginei por uns momentos a quase inexpugnável e altiva Fortaleza Antónia. E novas e vivas lembranças me vieram à mente. Do formidável quartel-general romano não resta quase sinal ou vestígio algum. Tudo desapareceu. Melhor dizendo, nem tudo. Eu tivera a oportunidade de visitar, tempos atrás, o convento das Irmãs de Sião, onde ‚ venerado pelos cristãos o famoso litóstrotos ou pátio pavimentado com grandes lajes, parte integrante, ao que parece, da primitiva Fortaleza Antónia. Para alguns, foi este o lugar onde Cristo foi julgado por Pôncio Pilatos e apresentado à multidão depois da flagelação.
Outros arqueólogos e exegetas, mais prudentes, não têm tanta certeza. Depois de descer por umas pequenas escadas situadas na esquina noroeste do monte Mori e de deixar à minha direita - no que fora o coração da Fortaleza Antónia - um passeio semi escondido com ciprestes novos, entrei sem mais demora no convento das Irmãs de Sião, em pleno bairro árabe. O meu espírito voltou a inquietar-se. Embora eu compreenda que, às vezes, estas coisas são necessárias ou irremediáveis, não pude evitar um sentimento de aversão. Assim que atravessei a pequena porta do santuário apareceu diante de mim uma brilhante loja, repleta até ao topo de todo o tipo de lembranças da capela da Flagelação ou do venerado litóstrotos: desde medalhas e escapulários até camisolas, cinzeiros, artesanato, postais, bustos policromados de gesso de Maria ou do seu Filho, réplicas da coluna da flagelação e um interminável etcétera, para não falar dos brinquedos japoneses ou dos refrescos. Aquele lugar, como muitos outros, para não dizer a maioria, tinha-se convertido num excelente negócio. à custa de Jesus de Nazaré e dos seus sofrimentos.
* No ano 135 da nossa Era, o imperador Adriano levantou neste lugar um templo dedicado ao deus Júpiter. Desde então, foi considerado um lugar maldito. No ano 636, após a invasão árabe, o califa Omar retirou os escombros do monte Mori e construiu uma mesquita que ainda hoje tem o seu nome. Os Muçulmanos identificaram a rocha ou cume do monte Mori com o lugar de onde Maomé subira aos céus num cavalo alado. Segundo outra tradição, esta rocha branca foi o lugar onde Abraão esteve a ponto de sacrificar o seu filho Isaac. Os Árabes, em contrapartida, consideram que o filho em questão era Ismael. No ano 691, Abdel Malek. da dinastia dos Omíadas, restaurou a primitiva mesquita, transformando-a na que hoje conhecemos. Sob a cúpula. construída à base de folhas de alumínio com um banho de ouro que a fazem brilhar ao Sol de Jerusalém, encontra-se a rocha ou cúspide do monte Mori . Alcança os quarenta e cinco metros de comprimento por onze de largura, elevando-se outros dois acima da superfície circundante. No mundo islâmico, o Domo da Rocha ‚ o terceiro lugar sagrado, depois da Caaba de Meca e do túmulo do Profeta na cidade de Medina. (N. do I) 2 A Fortaleza Antónia foi totalmente arrasada pelo general romano Tito. ao romper o cerco dos Judeus no ano 70. Durante séculos, foi apenas um monte de escombros sobre o qual se ergueram diversas construções. Pouco a pouco, nos tempos modernos, a arqueologia foi fixando a sua posição
exata. Na atualidade, o que foi a fortaleza reconstruída também por Herodes, o Grande, abriga uma escola muçulmana, um mosteiro da Ordem Franciscana e o referido convento das Irmãs de Sião. É neste último lugar onde se encontra, na minha opinião o vestígio mais claro de uma das instalações do quartel-general romano durante as festas da Páscoa dos Judeus. (N. do M) 3 O litóstrotos, que em grego significa pátio pavimentado com grandes lajes, foi descoberto a ocidente do lugar onde supostamente se localizava a Fortaleza Antónia. Com base no texto de João, o Evangelista (1913) - "Então, Pilatos, tendo ouvido estas palavras, conduziu Jesus para fora, e sentou-se no tribunal. no lugar chamado litóstrotos". alguns especialistas bíblicos acreditaram ser aquele recinto o cenário de parte do julgamento do procurador romano de Jesus de Nazaré e da sua apresentação ao povo judeu.
E outras frases de Cristo, pronunciadas na madrugada de segundafeira, 3 de Abril, em casa de Lázaro, em Betânia, voltaram à minha mente: "A minha alma sofre pelos filhos dos homens, porque estão cegos de coração; não vêem que chegaram vazios ao mundo e tentam sair vazios do mundo. Agora estão bêbados. Quando vomitarem o vinho, se arrependerão". Talvez o mais doloroso daquele mercado seja que, tal como acontecera com Anás e os outros sacerdotes - proprietários do negócio dos intermediários no átrio do Templo -, agora, dois mil anos depois, os que se dizem sacerdotes ou religiosos ao serviço do Filho de Deus, continuem a consentir ou a participar em transações comerciais que nada têm a ver com o que Ele desejava e pretendia. E isto, precisamente ali, no cenário de tão trágicos momentos, está a denegrir consideravelmente a grandeza do lugar. Enquanto caminhava em direção à sala abobadada onde está o litóstrotos, perguntei a mim próprio que teria acontecido se o Rabi da Galiléia tivesse expressado o menor desejo de que as suas vestes, objetos pessoais, etc, fossem conservados e reverenciados. Felizmente, Ele conhecia bem a debilidade da natureza humana e teve o máximo cuidado em não cometer semelhante erro. Apesar disso, os cristãos, longe de praticarem os ensinamentos ou a religião de Jesus, caíram desde os primeiros momentos naquilo que, justamente, não desejava o Mestre: uma religião, uma forma de ser e uns ritos a pretexto de Jesus. Ao ver as pedras retangulares, que se supõe serem as mesmas a que
João se refere no seu Evangelho, senti um calafrio.
* Outros, pelo contrário, pensam que o litóstrotos talvez tenha sido o pátio principal da Fortaleza Antónia, onde Cristo foi flagelado e de onde sairia com o madeiro ou patíbulo, rumo ao Gólgota. O convento das Irmãs de Sião foi fundado por um judeu convertido, o padre Ratisbone. Entre 1931 e 1937, a madre Godeleise e o padre Vicente, da Escola Bíblica de Jerusalém, escavaram o lugar e descobriram o pavimento em questão. Recentemente, arqueólogos ingleses e o professor judeu Kaufman levantaram uma terceira hipótese: o litóstrotos poder datar do ano 135 d. C. (do tempo de Adriano). (N. do M)
Algumas das enormes e desgastadas pedras - estriadas, para evitar que os cavalos escorregassem - eram parecidas com as de calcário duro que eu vira e pisara no pátio central da Fortaleza Antónia. O esmero das religiosas responsáveis pelo litóstrotos e a passagem dos séculos tinhamnas transformado em parte, emprestando-lhes um brilho especial. Mas aquele pavimento não correspondia ao do grande pátio empedrado, à base de seixos rolados, e situado no setor norte da fortaleza, onde se juntara a multidão na manhã de Sexta-Feira Santa. Só o empedrado do terraço em frente do terreiro, onde se deu o debate entre Pôncio Pilatos e os sacerdotes judeus, tinha alguma semelhança com o que agora estava diante de mim. A bem da verdade, João Evangelista não cometeu nenhum erro ao comentar que o Mestre fora levado ante Pilatos no tribunal, no lugar chamado litóstrotos. O que pode ser um erro imperdoável é associar este pavimento do convento das Irmãs de Sião com o tribunal onde se sentava o procurador romano. A prova, à margem do meu próprio testemunho, e que os exegetas e arqueólogos bíblicos deviam ter em conta, está gravada nalgumas daquelas pedras. Nelas se pode ver um conjunto de riscos, traçados por espadas ou objetos pontiagudos, que todos os especialistas identificaram como uma espécie de jogo da macaca ou jogo do círculo - citado por Plauto -, e que era muito apreciado pelos legionários romanos. Como Já referi noutra parte do meu diário, sobre uma das lajes do pátio central pude observar um círculo e uma linha sinuosa que passava entre várias figuras (uma coroa real e um B). Os soldados, um após outro, lançavam quatro dados marcados com letras e números, cantando jogadas que identificavam como jogada de Alexandre, de Dario, de Efebo, ou, a que rematava a partida, do Rei. Logicamente, um divertimento desta natureza - que obrigava a
marcar e a danificar um empedrado - dificilmente teria como cenário um lugar tão solene como o litóstrotos, onde Pôncio ditava justiça; mas sim, em contrapartida, no pátio com arcadas do quartel romano, ponto de encontro dos homens dispensados do serviço, e onde não se realizavam muitos atos oficiais. Quando me preparava para sair da câmara, o sussurro de outro guia turístico, comentando as minúcias e os pormenores do jogo do Rei, deteveme. Segundo a tradição, explicou o hebreu, se um réu aceitava jogar e ganhava, podia salvar a vida. No caso de Jesus, concluiu o bom homem com um sorriso, os legionários romanos não aceitaram porque sabiam que o Galileu podia ganhar. Um pouco reconfortado pela ingenuidade daquele guia, deixei para trás o convento das Irmãs de Sião e entrei na chamada, pelos cristãos, Via Dolorosa (Tario A1-Mujahedeen), que faz parte de um intrincado labirinto de vielas estreitas, mal-cheirosas e, por vezes, cobertas, em pleno mercado oriental. Tal como na Jerusalém do ano 30, aquele setor hoje ocupado pelos muçulmanos - conservava ainda alguma semelhança com o que eu tinha conhecido: passadiços e ruas, qual delas a mais apertada, e na maioria dos casos precariamente empedradas, percorridas por valetas pestilentas e, de ambos os lados, um sem-fim de barracas de feira e diminutos estabelecimentos infestados onde se cozinhava, se vendia e comercializava de tudo. Confuso, abrindo caminho com dificuldade entre aquela mar‚ humana mistura de turistas, árabes puxando asnos carregados de volumosos fardos, mulheres de rosto coberto com véus e equilibrando grandes cântaros de barro na cabeça, religiosos de todas as confissões e um ou outro rabino apressado, exibindo as suas tradicionais vestes: levita comprida e negra como a noite e chapéu de abas largas de veludo igualmente azeviche, barbas longas e suíças encaracoladas caindo das têmporas - finalmente consegui chegar a outro dos santuários da Cidade Velha. Sem dúvida, o mais santo para o cristianismo: a Igreja do Santo Sepulcro. Não foi fácil desembaraçar-me da criançada, que, desde o instante em que pisei a suposta Via Dolorosa, praticamente assaltou os transeuntes estrangeiros ou com aspecto de turistas, impingindo-lhes todo o tipo de mercadorias. Lembro-me com tristeza de numa sexta-feira, às três horas da tarde, durante um treino, ter passado por acaso na Via Dolorosa quando havia uma procissão tradicional organizada todas as semanas pelos padres franciscanos. Aquele espetáculo comoveu-me. Enquanto os religiosos e fiéis avançavam lenta e pausadamente pelas ruas, ora de joelhos, ora
carregando grandes cruzes, os donos das lojas, de um lado e do outro, continuavam a apregoar os seus produtos e souvenires, alheios a tudo aquilo e sem o menor respeito para com aqueles devotos cristãos. Mas aquele descarado e irritante negócio fica obscurecido perante o que, para mim, constitui uma das mais negras e frias afrontas que se possa conceber num lugar tão sagrado e especial como o Santo Sepulcro. Agora me interrogo se não deveria ter omitido estas experiências nada edificantes. Mas eu tenho que ser fiel aos meus próprios sentimentos e absolutamente claro e sincero. De fato, também não tem maior transcendência que a rocha do Gólgota - quase oculta sob a basílica do chamado Santo Sepulcro estivesse ou não uns metros mais a norte ou a sul da sua atual e suposta localização. O que interessa é ter sido este o lugar real e concreto onde se desenrolaram as dramáticas horas finais do Nazareno. Nem mesmo a circunstância de o túmulo de Cristo ter sido marcado pela religião e pelas tradições a tão pouca distância do lugar da execução deveria levantar qualquer problema. (Como também expliquei, a propriedade de José de Arimatéia - uma pequena quinta de retiro e repouso - ficava relativamente afastada do Gólgota) Não era habitual, nem lógico, que este tipo de propriedade se situasse praticamente ao lado de um lugar tão tétrico como o das execuções públicas. Depois do meu regresso da Jerusalém do ano 30, e após consultar mapas e percorrer a zona, estou convencido de que a gruta que abrigou o cadáver de Jesus se encontra nalgum lugar da ponta nordeste do atual bairro árabe. Concretamente, entre a Igreja de Santa Ana e o Museu Rockefeller; este último, fora do bairro árabe. Talvez algum dia, se fizerem escavações nesse setor, o mundo possa descobri-lo.
* Digo suposta Via Dolorosa porque, como Já disse em páginas anteriores deste diário, o caminho que Jesus de Nazaré seguiu desde o interior da Fortaleza Antónia até ao Gólgota, na manhã de sexta-feira, 7 de Abril do ano 30, não foi o que tradicionalmente os cristãos veneram. As circunstâncias políticas, como Já expliquei, aconselhavam que o oficial romano escolhesse outra via: a que ia pelo exterior da muralha norte da Jerusalém daquele tempo. Como aconteceu com outros lugares santos “a tradição não foi muito feliz no momento de fixar com exatidão onde ocorreram tão importantes acontecimentos. (N. do N.)”.
O que realmente me pareceu indigno do lugar que se pretende venerar foi um fato que tive de viver naquela manhã agitada. Durante um bom bocado errei pelas escuras e sobrecarregadas capelas, absurdamente divididas entre gregos ortodoxos e católicos romanos, descendo até uma das criptas onde, segundo a tradição, Santa Helena encontrou as três cruzes, atiradas para uma espécie de lixeira pelos soldados romanos, depois de concluídas as crucificações. Noutra das dependências voltei a encontrar-me com a coluna da flagelação: um delicado e caro pilar de mármore vermelho de uns cinqüenta centímetros de altura e com um fino pedestal. Não pude deixar de sorrir. Aquela espécie de pedra milenária jamais poderia ter sido utilizada para amarrar cavalos. Era demasiado cara e delicada.
* O atual caráter pitoresco dos chamados lugares santos chega ao extremo de, um pouco a norte da Porta de Damasco, o visitante poder encontrar outro Gólgota. Tudo começou a partir do ano 1883, quando o general britânico C. Gordon associou um montículo ali existente com a forma de uma caveira. A existência, na rocha, de um túmulo do século contribuiu - e de que maneira! - para dividir as opiniões. Em 1892, a Sociedade do Jardim do Túmulo comprou o lugar, sendo desde então visitado por numerosos peregrinos. Pessoalmente não compartilho do critério do bom general inglês. Entre outras razões, por que a citada Porta de Damasco e a muralha na qual se encontra não existiam no tempo de Cristo. O verdadeiro Gólgota ficava muito mais perto, nas proximidades da Porta de Efraim. (N. do M) 2 A atual Igreja do Santo Sepulcro, construída em grande parte pelos Cruzados no ano 1149. pertence a seis confissões religiosas diferentes, de acordo com um status quo decretado em 1082 pelos Turcos, perante as constantes brigas e autênticas batalhas campais que travavam, e ainda travam, os diferentes credos que a têm em propriedade. O que realmente ‚ o Gólgota, ou Calvário, está ocupado por duas capelas que pertencem às seitas mais prósperas e poderosas: a Igreja Ortodoxa e a Igreja Católica Romana. A primeira - a grega - ocupa o lugar onde se supõe que Cristo foi crucificado. A católica corresponde, segundo a tradição, ao lugar onde Jesus foi despojado das suas vestes. Quase um terço das fundações das duas capelas assentam sobre a rocha do Gólgota propriamente dita. Só uma pequena parte da mesma pode ser observada sob o altar dedicado à Nossa Senhora das Dores, assim como na parte
inferior de outra capela: a de Adão. (iV. do M) 3 Esta tradição tem pouco fundamento. A realidade ‚ que os legionários romanos não costumavam deitar fora as cruzes das execuções. Mais ainda: o madeiro vertical, ou estipe, permanecia espetado no chão. As peripécias desta atormentada igreja remontam ao século iv. No ano 324, quando foi construída pela primeira vez, ficou quase no centro do que era então a Jerusalém amuralhada. Segundo todos os vestígios arqueológicos, cerca de onze anos depois da morte de Cristo (ano 30), o Gólgota Já ficava dentro da cidade, por causa da muralha construída por Herodes Agripa no ano 44. No ano 135, o imperador Adriano, tentando apagar os lugares venerados por cristãos e judeus, ordenou a construção de um templo a Júpiter nos pontos onde, segundo a tradição, se encontravam o Gólgota e o túmulo de Cristo. E o mesmo aconteceria com a gruta da Natividade, em Belém. Tomando como referência estes templos pagãos, a rainha Santa Helena, mãe do imperador Constantino, mandou construir, no ano 326, uma magnífica basílica nos lugares ocupados pelo Calvário e o suposto túmulo de Jesus. No ano 614, os Persas destruíram-na. mas foi de novo levantada pelo abade Modesto. Em 1009, o califa Hakem arrasou-a, sendo a destruição desta igreja uma das causas das Cruzadas No ano 1048 seria restaurada por Constantino Monómaco. (N. do M)
E, de repente, encontrei-me diante de um grupo de turistas em fila para visitar o não menos suposto túmulo do Galileu 1. Aquele era um dos santuários que eu me negara a ver durante a minha etapa de preparação e treino. Acho que Já o disse antes: tanto a direção do Cavalo de Tróia como eu próprio considerávamos que, para determinadas fases da missão, era melhor prescindir das informações Já existentes. Isso proporcionava-nos um maior grau de objetividade. Daí que, ao juntar-me ao paciente grupo, eu sentisse uma inevitável curiosidade. Era totalmente impossível que a gruta que serviu de túmulo a Jesus de Nazaré estivesse tão perto do Calvário. (Apenas vinte ou trinta metros no interior da igreja) Mas decidi dar uma vista de olhos. O monumento que na atualidade cobre e protege essa sepultura, muito decorado e com uma grande cúpula de estilo russo, é tão estreito que só permite a passagem de quatro ou cinco pessoas ao mesmo tempo. A grande velocidade, quase mecanicamente os turistas que me precediam foram entrando e saindo do túmulo. Quando chegou a minha vez,
sinceramente, fiquei horrorizado. Num estreito cubículo com apenas dois metros de comprimento, um de largura e dois de altura, pode ver-se, à direita, uma pedra mármore que não tem mais de um metro e setenta centímetros de comprimento. Era impossível que o corpo de Cristo, com o seu metro e oitenta e um centímetros de altura, coubesse na posição horizontal sobre aquela pedra. Mas estas considerações, insisto, eram de somenos importância. O que me exasperou foi a atitude do padre grego, que permanecia de pé ao lado da cabeceira do suposto túmulo. A sua principal, e eu diria única, missão consistia em arrecadar as notas - se fossem divisas, muito melhor - que cada visitante se via quase forçado a dar. A operação dos cobiçosos gregos ortodoxos era perfeita. Ao entrar na reduzidíssima câmara, os quatro ou cinco fiéis emocionados e trêmulos eram abordados por um ajudante do hierático padre que, mostrando-lhes um punhado de finas velas negras e quase sem pronunciar uma palavra, lhes dava a entender que o correto seria deixar uma boa esmola. Para no caso de que o surpreendido visitante hesitasse ou não soubesse que quantidade devia deixar, os astutos proprietários do túmulo iam depositando as notas de moeda mais forte (dólares, marcos alemães, etc) ao pé de um dos círios situados na cabeceira, junto ao vigilante sacerdote. A abordagem ‚ tão descarada e fulminante que poucas são as pessoas que se negam a participar naquele negócio. E o mais doloroso ‚ que, uma vez consumado o assalto, não há tempo para mais nada. Nem sequer para balbuciar um rápido pai-nosso. (E preciso lembrar que a imensa maioria dos que desfilam diante do túmulo de Cristo está convencida que aquela ‚ a rocha sobre a qual repousou o cadáver do Salvador. Uma coisa tão grandiosa e emocionante como para merecer, pelo menos, que se possa orar ou meditar durante alguns minutos. Mas até isso está sutilmente proibido pelos modernos Anás e Caifás)
* Uma descrição pormenorizada da cripta onde foi sepultado Jesus Cristo aparece no volume anterior desta obra, que corresponde à primeira parte do diário do major norte-americano. Nela, com efeito, se diz que o teto da gruta estava a um metro e setenta centímetros de altura e que a câmara era quadrada: com cerca de três metros de largura. (N. do Autor)
Uma vez acesas as velas, o grupo ‚ convidado - quase compelido - a abandonar o lugar, com a desculpa de que são muitos os fiéis que ainda
aguardam do lado de fora. Nisso têm razão, se bem que as verdadeiras intenções dos gregos ortodoxos apontem para outra direção. Se tivermos em conta que ao longo de qualquer Semana Santa a cripta é visitada, em média, por quarenta e seis mil pessoas e que a média do dinheiro doado por pessoa ‚ de cerca de cinco dólares norte-americanos, não é preciso ser muito perspicaz para adivinhar quais as intenções. Como dizem os Israelitas, o túmulo de Jesus de Nazaré ‚ uma mina de ouro. Que negócio desta natureza arrecada um lucro Médio diário de quinze mil dólares? Foi talvez um momento de fraqueza. Mas, diante de semelhante absurdo, não pude conter-me. É claro que não dei nem um centavo. Encarando o impassível padre, censurei-o pelo que eu considerava um desonesto aluguel do túmulo do Nazareno. O grego acariciou as suas negras e desalinhadas barbas e, olhando para mim com displicência, argumentou: - Ninguém o obriga, irmão. - Claro. Não houve tempo para mais. O ajudante, obedecendo a um significativo e estudado olhar do sacerdote, agarrou no meu braço e, suave mas firmemente, levou-me para a saída. Entristecido e indignado, não parei até alcançar a muralha sul da Cidade Santa. Cidade Santa? Meu Deus! Como as coisas mudaram tão pouco! Uma ligeira brisa recebeu-me sob o arco da Porta de Sião, no final do bairro armênio. Parei, procurando acalmar o meu espírito. No fundo, quem ‚ que pode mudar tão drasticamente as tendências e fraquezas humanas? Talvez algum dia - como profetizou o Mestre - o mundo saia do inverno materialista para entrar na primavera espiritual. Mas isso parece ainda vir longe. Ao entrar na calçada de Hativat Etzioni, entre as muralhas da Cidade Velha e o monte Sião, o meu único guia foi o instinto. Ao fim de alguns minutos eu Já estava à beira dos profundos barrancos do vale de Hinnom, onde, outrora, se localizara a lixeira da Jerusalém bíblica: a Geena mencionada nos Evangelhos canônicos. Aquela sinuosa depressão, salpicada de rochas e penhascos, não tinha mudado muito. A principal e mais forte lembrança daquele desfiladeiro era a ansiosa busca, na manhã de sábado, 8 de Abril do ano 30, em companhia do jovem João Marcos, do desaparecido Judas. Procurei orientar-me, num absurdo esforço por reconhecer o lugar exato sobre o qual se atirara o infeliz apóstolo. Eu
lembrava-me muito bem de que o corpo jazia no fundo daquela garganta, a uns quarenta metros de profundidade. Recuei para ocidente, dando a volta à zona onde hoje se levantam o túmulo de David e o Cenáculo. Foi inútil. As sucessivas edificações e as mudanças na orografia tinham apagado parte da antiga e abrupta depressão. Talvez a Igreja de Santo André, mesmo à beira do Derech Hevron, seja o recanto mais próximo. Mas não consigo ter a certeza. É triste a cristandade não ter levantado - apesar de Judas ter sido um traidor - um simples e modesto monumento à memória de uma personagem tão importante e porque não? - tão próxima do Mestre. Oxalá estas linhas animem alguém a empreender o caritativo - não sei se justo - empreendimento de colocar uma cruz no fundo ou na orla do vale de Hinnom, em memória de Judas Iscariotes. Quanto a mim, depois de apanhar numa das encostas do barranco um punhado das primeiras margaridas e de as ter envolvido em verdes e brilhantes murtas silvestres, muito abundantes entre aqueles rochedos, lancei o improvisado ramalhete para o coração do desfiladeiro. Nunca consegui uma explicação satisfatória do porquê daquele sincero gesto. Talvez, por vezes, me sinta mais atraído pelos homens derrotados ou enganados do que pelos justos ou irrepreensíveis. Ele, apesar de tudo, também tinha amado Judas. E em certa ocasião tinha dito: "Deus é tão liberal que até permite que erres. Quando for o caso, pede explicação ao teu irmão, mas nunca o odeies. Só quando olhardes para os vossos irmãos com caridade ‚ que podereis sentir-vos contentes". Lancei um último olhar à minha modesta oferenda, confundida entre os abrolhos e arbustos que crescem dolorosamente entre as fendas rochosas do fundo e, reconfortado, voltei pelo caminho que serpenteia paralelamente ao Hinnom, vindo pelas Calçadas de Melchisedek e HaOfel. Sob o famoso pináculo do Templo, no extremo mais oriental da Cidade Velha, dezenas de pombos - como há dois mil anos aninhavam-se nos buracos da orgulhosa muralha. Mas a minha atenção desviou-se para a encosta ocidental do monte das Oliveiras. O passar dos séculos e a construção na encosta das conhecidas igrejas e santuários de Getsémani Dominus Flevit, o túmulo da Virgem Maria, o de Santa Maria Madalena e a Igreja das Nações, entre outras, alteraram o perfil primitivo e genuíno do monte sagrado. Excetuando alguns círculos isolados de oliveiras, o resto é igualmente irreconhecível. Caminhei lentamente, seguindo o curso da muralha oriental do desaparecido Segundo Templo, e fazendo contínuas paragens. Mas, salvo os precipícios
que vão configurando o velho leito do Cedron e os quatro monumentos funerários que ainda estão de pé no começo daquela rampa do monte das Oliveiras atribuídos a Absalão, Josafat, Tiago e Zacarias -, nada conserva do seu antigo aspecto. Os velhos caminhos que iam de uma ponta à outra, atravessando o vale, e que o Galileu tinha palmilhado nas idas e vindas de Betânia ou do acampamento de Getsémani, tinham sido apagados ou substituídos por modernas estradas e vias alcatroadas. Um vento frio começou a soprar de nordeste, arrastando nuvens negras e ameaçadoras sobre Jerusalém. Restariam apenas três horas de luz e, consciente de que a nossa próxima reunião no Ramada Shalom tinha sido programada para as dezoito horas, apertei o passo.
* Dominus Flevit ou O Senhor Chorou lembra as lágrimas derramadas por Jesus na manhã do Domingo de Ramos. A primitiva igreja, obra dos Cruzados, data do século XII. Após a sua destruição, foi reconstruída em 1891 em forma de lágrima. (N. do M) 2 Também chamada Igreja Russa. Foi construída em 1888 pelo czar Alexandre III, em memória de sua mãe. É propriedade das freiras russas. Na cripta encontra-se sepultada a grã-duquesa Elizabete Feodorovna, irmã da imperatriz Alexandra, morta na Sibéia em 1918 pelos bolcheviques. (N. do M.) 3 A atual igreja, uma das mais belas de Jerusalém, foi construída no princípio do século XX. É chamada Igreja das Nações porque os fundos para a sua construção foram doados por dezesseis países. Em cada uma das cúpulas pode admirar-se o escudo, em mosaico de cada uma das dezesseis nações. Em frente ao altar pude observar os restos daquilo que a tradição cristã considera como uma das rochas da agonia de Jesus de Nazaré. A verdade é que a basílica e o bloco de pedra em questão se encontram praticamente no fundo do vale de Cedron, e a referida oração do horto teve lugar numa cota superior, e um pouco mais a norte, da encosta ocidental do monte das Oliveiras. (N. do M.) As tradições judaico-cristãs asseguram que este estreito vale do Cedron ser o cenário do Juízo Final. (N. do M)
Também não sabia, naquele momento, o que buscava. Talvez algum oculto ou remoto vestígio do lugar onde o Mestre costumava instalar o Seu acampamento? Conforme me fui aproximando do jardim do Getsémani, aquele interesse foi-se diluindo. Como Já disse, nem mesmo o templo que
recorda o lugar onde foi preso o Galileu está corretamente situado. Durante alguns minutos, fui pela estrada estreita que sobe em direção ao topo e vai dar à mesquita da Ascensão. E, tomando como referência a Porta Dourada do muro oriental do Templo (agora fechada até ao fim dos tempos), virei à esquerda, saindo da calçada. Se não estava enganado, não muito longe dali vivera os intensos momentos da oração do horto, do suor de sangue ou hematidrose de Jesus e, numa cota inferior, no velho e desaparecido caminho, presenciara a chegada das tropas romanas e levitas e a acidentada prisão do Mestre. Não tardei muito a desistir. Depois de uma curta incursão num pequeno campo onde cresciam oliveiras novas, uma série de quintas modernas impediu-me a passagem. Tudo tinha sido engolido pelo progresso. Mais uma vez, perdido no meu próprio presente, lamentei que os seres humanos não tenham sabido ou querido respeitar um lugar tão íntimo e sagrado como aquele. Sei que é um sonho impossível; mas não teria sido mais emotivo e autêntico conservar, tal como eram, os lugares onde viveu Cristo, sem igrejas nem santuários? Depois destas vivências decepcionantes, compreendo melhor os seguidores do Rabi da Galiléia, que preferem manter a sua lembrança afastando-se dos tradicionais lugares santos e procurando os lugares - montanhas, desertos, praias da Galiléia ou campos - que continuam virgens e sem qualquer transformação. Pouco faltou para que, ao descer em direção à movimentada estrada de Derech Jericho - a que passa à frente da igreja de Getsémani - continuasse no meu caminho à procura de um táxi que me levasse ao hotel. Mas, algo inexplicável, essa espécie de força interior que me acompanha desde então, me obrigou a parar diante da porta do Holy Place: o jardim onde se conservam e cuidam oito veneráveis oliveiras que, segundo a tradição, foram as mesmas que abrigaram o Mestre. Depois de me livrar dos inevitáveis vendedores ambulantes e dos árabes que se empenhavam em montar os turistas nos seus camelos, entrei no silencioso e sossegado recinto. Começava a chover e a maioria dos poucos visitantes precipitava-se para a saída. Ao ver as velhas oliveiras enroscadas, senti um estremecimento. Alguns daqueles vetustos e grossos exemplares eram, de fato, idênticos aos que cresciam na propriedade de Simão, o Leproso. Agarrado à cerca de ferro que os separa e protege do público e absorto na contemplação daquelas possíveis
testemunhas mudas da passagem de Jesus de Nazaré durante as Suas caminhadas pelas encostas do monte das Oliveiras, não me percebi da forte chuva que me encharcava. Até que, providencialmente, quase como uma aparição, vi surgir de baixo de uma das frondosas oliveiras, uma personagem pequenina que, rapidamente, se colocou diante de mim. Com um sorriso luminoso, o franciscano fez-me cair na realidade, recordandome que estava a chover. E, sem mais cerimônias, fez-me atravessar a grade, conduzindo-me para junto da gigantesca árvore de onde eu o vira sair uns segundos antes. Era o padre José Montalverne, por acaso jardineiro excelente e uma das autoridades mundiais no tema das velhas oliveiras do Getsémani. Sob as brilhantes folhas verde-brancas do improvisado guarda-chuva estabeleceu-se entre nós uma viva corrente de simpatia mútua. Quando lhe perguntei qual a antiguidade real daqueles oito exemplares, o religioso sorriu maliciosamente, como se aquela pergunta fosse habitual entre os peregrinos que as visitam diariamente. O amável e paciente franciscano explicou-me então que tinham submetido uma mostra de um tronco abatido em 1954 às provas do carbono 14. Pois bem, segundo as tabelas de Nieh-Bohr, aquela madeira remontava a duzentos anos antes de Cristo. Quando retorqui que os romanos tinham mandado cortar todas as árvores que rodeavam Jerusalém 1, Montalverne, sem se alterar, aconselhou-me que, se eu desejasse mais informações sobre as oliveiras, não hesitasse em consultar o professor Shimon Lavee, diretor do Volcani Agriculture Centre, em Bet-Dagan. Lavee ‚ considerado o maior especialista do mundo em oliveiras. E, segundo este cientista, qualquer oliveira de Israel que tenha uma base de seis metros de circunferência, tem, pelo menos, dois mil anos. O franciscano indicou-me então o enrugado e tortuoso tronco da árvore que nos resguardava da chuva, acrescentando: - E esta, meu querido amigo, tem onze metros e oitenta centímetros. A verdade ‚ que eu não precisava de tantas explicações. Mas foram bem recebidas. Saltava à vista que algumas das veneradas oliveiras do horto do Getsémani tinham dois mil anos ou mais. E, movido por um íntimo desejo, peguei com os meus dedos num dos ramos e aproximei-o dos lábios. O bom franciscano, talvez comovido por aquele beijo espontâneo, apressou-se então a cortar um raminho com folhas, e me deu. Eu sabia que aquilo era proibido. Uma das justificações para a existência da cerca metálica que rodeia as oito oliveiras ‚ precisamente esta: "evitar que o excessivo entusiasmo dos peregrinos
destrua as árvores". E agradeci repetidamente a sua generosidade. Hoje, as compridas, ainda verdes e queridas folhas são a única lembrança física da minha passagem por Israel 3.
* Para muitos historiadores, este ponto não está completamente claro. Flávio Josefo escreveu que Tito mandou cortar todas as árvores existentes à volta da Cidade Santa. Isto aconteceu no ano 70. Outros especialistas, por seu lado, opinam o contrário: que o general romano Vespasiano e o seu filho Tito tiveram a máxima preocupação em respeitar os lugares sagrados. E este, Getsémani ou Jardim de Zorobabel, como ainda lhe chamam os Árabes, era considerado uma zona sagrada e monumental. Ao que parece, este jardim foi plantado por ordem do rei Ciro da Babilônia, por volta dos anos 520-530 a. C. (N. do M) 2 Durante a minha primeira visita a Israel (1985), ao percorrer o jardim de Getsémani, pude comprovar como alguns turistas chegavam a pagar cinqüenta dólares para que os respectivos guias lhes conseguissem - sempre às escondidas - algumas folhas ou ramos daquelas oliveiras. (N. do A)
Entre as sombras do ocaso, com o meu precioso tesouro nas mãos, regressei finalmente ao nosso quartel-general: o Ramada Shalom. Eliseu estava à minha espera nervoso e impaciente. Algo de muito grave estava para acontecer. A preocupação dos meus companheiros era mais do que justificada. Durante a sua permanência na embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém tinha circulado um rumor - confirmado nessa manhã - que podia pôr em perigo a Já complicada situação. As autoridades jordanas tinham prendido o chefe dos serviços secretos da organização guerrilheira palestina Setembro Negro, Abu Daoud, quando se preparava para entrar, de automóvel, na Jordânia, vindo da vizinha Síria. Com ele foram capturados outros vinte terroristas. A informação, devidamente comprovada pelo Mossad e pelo Agafl, estava correta e não demorou a chegar aos serviços secretos norte-americanos destacados em Amã e, quase simultaneamente, aos de Israel. No dia seguinte, 20 de Fevereiro, o jornal Davar confirmaria os fatos, prognosticando o repetróleoscimento da guerra fria entre a Líbia - defensora até às últimas conseqüências dos movimentos guerrilheiros palestinos - e a Jordânia. Aquilo, insisto, podia prejudicar-nos seriamente. Era por todos sabido que quando o Mossad Lemodin Vetafkidim Meiujadim (o célebre Instituto de Informações e
Operações Especiais ou Mossad) ou o exército israelita davam um golpe na resistência palestina, esta respondia com tanta violência como rapidez, escolhendo - às vezes de maneira suicida - os objetivos mais à mão. E nós - a estação receptora de imagens, desmontada e escondida no interior da mesquita da Ascensão - ‚ramos mais que um hipotético alvo militar das facções palestinas. Aquela noite de 19 de Fevereiro foi especialmente tensa. Receávamos pela segurança do berço, mas, salvo roer as unhas e tentar descobrir onde estava Curtiss, não conseguimos grande coisa. O general, de acordo com as informações que tínhamos em nosso poder, devia encontrar-se - desde a manhã do domingo, 18 de Fevereiro - em plena batalha com o estado-maior do general Eleazar, lutando e pressionando, para descobrir a nova localização da estação e o sistema operacional que permitisse o transporte dos equipamentos. Por volta das onze horas dessa noite, finalmente, tocou o telefone do quarto de Eliseu, onde estávamos reunidos. Era o diretor do Projeto. As suas ordens foram breves e contundentes: tínhamos de pôr em andamento a fase azul do programa. Apesar das nossas insinuações, Curtiss negou-se falando. "Amanhã em Lod - foi a resposta dele. - Está tudo preparado. O árabe estará aí às oito horas. Boa sorte".
*3 Nesta parte do diário do Major aparece um pequenino sobrescrito de plástico, colado à folha correspondente, contendo três folhas de oliveira de 45 centímetros de comprimento cada uma. Para mim também constituem um inestimável tesouro. (N. do il) Agaf ou Agaf Hamodin: Serviços Secretos do Exército de Israel. Trabalha paralelamente ao Mossad. Trata-se de um departamento do estado-maior. Entre as suas múltiplas funções especiais figuram a estruturação das avaliações na política de segurança nacional, sempre baseadas em informações secretas; a obtenção de informação de caráter militar nos países vizinhos (muito em especial nos árabes); desenvolvimento de metodologias e tecnologias especiais para o trabalho dos Serviços Secretos; cartografia militar; censura e segurança militares, e a supervisão da missão dos adidos militares israelitas no estrangeiro. A sua eficácia era extraordinária, tendo granjeado, do mesmo modo que o Mossad, um reconhecido prestígio mundial. (N. do M)
Eliseu compreendeu que não havia nada a fazer e desligou o telefone. A fase azul - nome de código só conhecido por Curtiss, os diretores e nós - era, na realidade, a primeira das três etapas em que tinha sido
dividida a segunda aventura. Mas não irei referir-me, por agora, às fases seguintes: a verde e vermelha. A que devíamos executar no dia seguinte era vital, face à exploração a que nos propúnhamos. Como simples informação antecipada, direi que, segundo o programa previsto pelo Cavalo de Tróia, um dos meus trabalhos do outro lado - supondo que tudo funcionasse corretamente - consistiria na análise da natureza e composição atômica e molecular do chamado, pelos cristãos, corpo glorioso de Cristo. Supondo, naturalmente, que essas aparições, depois da morte e ressurreição, fossem verdadeiras. Para isso, a minha querida e familiar vara de Moisés tão útil nas comprovações médicas durante a Paixão e Morte de Jesus - tinha de sofrer algumas modificações, às quais me referirei em seu devido tempo. Um dos dispositivos, em especial, era fundamental para o desempenho dessa missão de investigação do misterioso corpo glorioso. E, apesar do seu acondicionamento no interior da vara não levantar muitas dificuldades técnicas, a escassez do tempo disponível e o necessário transporte da sofisticada ferramenta para os Estados Unidos preocupava-nos. Nisto, portanto, se baseava a fase azul: enviar para o nosso país os equipamentos susceptíveis de alterações ou mudanças. Dadas as difíceis circunstâncias que atravessávamos - dificultadas ainda mais pela detenção de Abu Daoud -, o que em condições normais teria sido um trâmite sem complicações, apresentava-se agora como uma operação comprometedora. Eu explico-me. Na seqüência dos acontecimentos azarentos vividos nos últimos dias, e por razões de segurança, Curtiss tinha preferido que a vara de Moisés ficasse com o resto dos equipamentos na mesquita. Agora, tinha de a tirar de lá e, devidamente embalada e camuflada, transportá-la o mais segura e rapidamente possível para os Estados Unidos. Com os israelitas, em princípio, não parecia haver muitos problemas. O general, no decurso dos seus contatos com o estado-maior, tinha-se encarregado de esclarecer que, face a uma segunda montagem da estação receptora de imagens, parte dos instrumentos tinha de ser revista e renovada pelos especialistas da USAF. Os israelitas compreenderam e aceitaram, oferecendo todo o tipo de facilidades para o transporte. Mas a ameaça palestina contra o octógono da Ascensão obrigava à adoção de medidas complementares. Aí entravamos nós, sempre de mãos dadas e convenientemente protegidos pelos astutos israelitas. O plano para a retirada da vara era perfeito e sem complicações aparentes. Na manhã seguinte, terça-feira, 20 de Fevereiro, às oito horas,
um potente automóvel - um Subaru, de chapa amarela, com matrícula 22552-84 - parava em frente da porta do hotel. Eliseu e eu, de acordo com o estabelecido, ocupamos os bancos de trás e o automóvel arrancou sem perder um segundo. Ao volante e no banco do lado silenciosos como múmias - viajavam dois indivíduos absolutamente desconhecidos para nós. Vestiam-se à maneira árabe: com os respectivos abba ou albornozes de lã castanho-escuras e lenços aos quadradinhos brancos e vermelhos na cabeça, seguros com duas voltas de um grosso cordão negro. Um deles, o que conduzia, a julgar pelo bigode, pêra e pele escura, devia ser um muçulmano autêntico. Talvez um beduíno. O outro, pelo contrário, mais novo, branco, de nariz proeminente e olhos claros, apresentava características muito típicas dos sabras 1. Ambos deviam ser, sem sombra de dúvida, membros do exército israelita ou, isso nunca o soubemos, talvez de algum dos serviços secretos de Israel. Mas o importante ‚ que estavam ali para nos ajudar. Vinte minutos depois, o Subaru estacionava em frente do restaurante The Tent. Os controles montados pelos soldados israelitas em redor da mesquita da Ascensão - situada a vinte metros do referido restaurante, impediam a passagem de qualquer veículo não autorizado. E o nosso, ao que parecia, também não estava. Estranhei aquilo. Horas depois, Curtiss explicou-nos o porquê de tão anômala e, até certo ponto, absurda situação. Assim que saímos do carro, o árabe de pele branca dirigiu-se ao oficial responsável, mostrando-lhe um documento do qual apenas consegui decifrar algumas palavras em inglês. O resto estava escrito em caracteres orientais. E de repente comecei a perceber. Aquele organismo oficial - Santa Custódia - deu-me uma idéia do que tinham tramado as altas esferas. Desde o início dos trabalhos de restauração dos supostamente danificados alicerces do octógono, os membros da Santa Custódia dos Lugares Sagrados - responsáveis também pela mesquita - vinham controlando o trabalho dos arqueólogos e especialistas. Aquela visita, por conseguinte, podia ser interpretada como uma rotineira ronda de inspeção por qualquer hipotético observador do recinto. O que desconhecíamos, então, era que o tenente que se encarregara do documento estava a par da manobra e, obviamente, da verdadeira identidade dos nossos acompanhantes. Isto explicava porque ‚ que em tão delicados momentos - com a ameaça de um atentado
palestino - o oficial israelita nos dava tão pouca atenção. Depois de simular que revistava a nossa roupa, deu ordem para que nos acompanhassem até ao muro que rodeia a capela. Os supostos árabes foram à nossa frente e, uma vez no interior, fecharam a pequena porta metálica, fazendo-nos um sinal para que avançássemos. Durante o tempo gasto na localização e recolha dos dois estojos blindados - com pouco mais de um metro de comprimento cada um e nos quais fora colocado um rótulo que dizia: Frágil, material de laboratório - que continham as diferentes peças desmontadas da vara de Moisés, os nossos protetores não arredaram pé da entrada.
* Assim são chamados os nascidos em Israel. Sabra ‚ o nome do fruto da figueira da índia, muito abundante naquele país. Tal como os sabras repletos de espinhos por fora, mas doces por dentro -, os Israelitas, à primeira vista, são duros. Quando os conhecemos. vemos que são afáveis e agradáveis como o fruto da figueira da índia. (N. do A)
Às nove horas, uma vez arrumada a carga no porta-bagagens do carro, este partia a toda a velocidade na direção norte. Vinte minutos depois, no aeroporto de Jerusalém um helicóptero da Força Aérea israelita levava-nos para Telavive. Às dez horas e cinco minutos, depois de dezesseis minutos de vôo, aterrissávamos na zona militar do aeroporto internacional de Lod. Ali, no fim da pista, esperava-nos, sorridente, o general Curtiss. Ele próprio tomou conta das caixas metálicas, confiando a sua custódia aos dois membros do Cavalo de Tróia que deveriam levá-las para a Base Edwards, nos Estados Unidos. No meio da manhã, um vôo regular da TWA descolava, via Roma com o nosso precioso equipamento. A fase azul estava quase concluída. Bastante mais calmos, de regresso a Jerusalém, a velha raposa quis saber como terminara a nossa visita à mesquita da Ascensão. Quando lhe perguntei porque ‚ que o Subaru não ia Já com a devida autorização para estacionar na praça, simplificando assim as coisas, Curtiss fez-nos a seguinte observação: - A farsa, preparada de fato, pelos serviços secretos israelitas, tinha um objetivo primordial: despistar os possíveis informantes da guerrilha palestina, muito atenta, segundo o Mossad a todos os movimentos dentro e fora da mesquita. Neste sentido, a sutileza israelita tinha chegado ao extremo de utilizar um automóvel semelhante ao do árabe encarregado de vender os
souvenires no escuro interior do octógono. Falsificando até a matrícula. Em resumo, dada a estreita ligação deste muçulmano - cuja identidade silencio por razões óbvias - com a Santa Custódia, o serviço secreto aconselhou a substituir, para esta missão, o encarregado da mesquita, com automóvel e tudo. Se o resgate da vara - concluiu o general - tivesse sido efetuado às claras pelo exército israelita ou pelo pessoal norte-americano, o seu transporte estaria permanentemente ameaçado. O Mossad avisou com toda a clareza, não se responsabilizando pela segurança dos instrumentos se não acatassem o seu plano e os seus métodos. Uma vez concluídas estas explicações, Curtiss não fez mais comentários, apesar da nossa insistência. O resto dos sessenta e dois quilômetros que separam Telavive de Jerusalém foi feito num profundo silêncio. Sabíamos que o general estava na posse de mais informações. Mas respeitamos o seu silêncio, embora impacientes, isso sim, por conhecermos o desenlace da missão. Aquilo era novo. Curtiss olhou para nós, divertido, mas não disse nada. Quando finalmente nos sentamos no quarto de Eliseu, o general, referindo-se aos três homens à paisana que havíamos cumprimentado no corredor, junto às portas dos nossos respectivos quartos, esclareceu: - Não se assustem. São coisas da embaixada. Lá em baixo, no hall, só para que tenham conhecimento, há mais. Era a primeira vez que se tomavam medidas de segurança tão excepcionais e, francamente, ficamos alarmados. Evidentemente, alguma coisa não estava correndo bem. Mas o som do telefone nos obrigaria a adiar algumas das muitas perguntas que, na minha opinião, tínhamos direito a fazer. O resto da equipe estava à espera na sala de jantar do hotel. Quando saiu do quarto, Curtiss trocou umas breves palavras com um dos funcionários, e logo dois deles se juntaram a nós. Ainda mal tínhamos começado a almoçar - sempre sob a discreta vigilância dos guarda-costas, sentados a uma mesa próxima – e o general adiantou-se aos meus pensamentos e às minhas intenções. - Suponho que Já sabem da prisão desse guerrilheiro. Como é que se chama? - Abu Daoud - interveio um dos diretores do Projeto. - É isso - concordou Curtiss com um gesto de preocupação. O Governo de Golda receia uma represália palestina. Portanto, não se admirem - comentou baixando o tom da voz e apontando dissimuladamente para os funcionários - das medidas especiais que se adotaram. Pessoalmente, creio que este incidente pode nos beneficiar. Perante a
lógica consternação dos presentes, concluiu assim a sua exposição: - Esse perigo latente obrigou os israelitas a acelerar a mudança dos equipamentos para o novo local. - Então - interrompeu Eliseu -, Já se sabe onde fica. Curtiss esboçou um sorriso malicioso. Todos esperávamos a ansiada resposta. Mas isso não aconteceu. - Há quarenta e oito horas. Exatamente desde a manhã de domingo, pouco depois da rede do Mossad ter sido informada da presença de Daoud na Jordânia. - E então? - pressionamos. - Sinto muito. Mas precisam ter um pouco de paciência. Às sete horas da próxima quinta-feira, dia vinte e dois, talvez eu Já esteja autorizado a revelar o local. Curtiss percebeu o descontentamento e a desilusão nos nossos rostos. Éramos os seus homens de confiança. Porquê, então, aquela postura absurda? - Compreendam - insistiu, tentando vencer a evidente decepção coletiva. - São ordens do estado-maior israelita. O que sem dúvida posso adiantar é que a Operação Eleazar terá início amanhã ao anoitecer. Eleazar? Amanhã? Que diabos teria querido dizer? Curtiss, seguindo o seu costume, deixou-nos falar. Quando os ânimos Já pareciam mais calmos, tomou de novo a palavra, fazendo duas únicas advertências. Primeira: O exército israelita levaria a cabo nessa noite, dia vinte e um, um ataque preventivo que marcaria o começo da Operação Eleazar; Segunda: Às seis horas e quarenta e cinco minutos de quinta-feira, todos nós - juntamente com a nossa bagagem - nos deveríamos nos encontrar vestíbulo do hotel - Ah, Já havia me esquecido! - concluiu Curtiss, retomando o seu sorriso tranqüilizador. - E com o aspecto de arqueólogos dedicados. Nenhum dos presentes insistiu. Conhecíamos o veterano militar e não valia a pena. Algo decisivo - isso estava claro - fora orquestrado nos gabinetes do estado-maior israelita. Mas o quê? Até que ponto estava em perigo a segurança da estação receptora de imagens para que o exército tivesse planejado um ataque preventivo? Meu Deus! Todos conhecíamos a dureza desses ataques-surpresa israelitas e começávamos a suspeitar que não tardaria a haver sangue. Aquela funesta idéia - tão estranha ao que eu tinha aprendido com o Mestre - não me abandonaria nas tensas horas seguintes. Curtiss mudou de tema, interessando-se pelos pormenores do próximo
salto. Examinou muito superficialmente o relatório redigido pela equipe e, depois de guardá-lo na pasta, prometeu estudá-lo nessa mesma noite. Vários diretores do programa, logicamente preocupados com uma infinidade de problemas técnicos, assaltaram-no com perguntas. Mas o general só respondeu com alguma precisão a uma delas: a que se referia à necessária reserva de combustível. Sem essa reserva de peróxido de hidrogênio - que deveria chegar dos Estados Unidos - a nova e fascinante aventura no tempo seria inviável. - Está a caminho - anunciou, ao mesmo tempo em que se levantava, dando assim por encerradas a refeição e a reunião. - Amanhã, às oito, voltaremos a ver-nos. Nesse momento talvez Já se possam desvendar algumas das incógnitas que me colocaram. Entretanto, por favor, continuem trabalhando no plano. Estou preocupado principalmente com o novo equipamento de Jasão e o tempo real de permanência no outro lado. A propósito - acrescentou, fazendo-me um gesto para que o acompanhasse -, tenho um trabalho, extra para você. Enquanto nos aproximávamos da porta do hotel, Curtiss abriu de novo a pasta e tirou um pequeno embrulho. E, antes de entrar no veículo oficial que o esperava, sussurrou-me quase ao ouvido: - Confio na sua total discrição. Quero que estude isto. Isso lhe será de grande utilidade. Mas, por favor, nem uma palavra a ninguém. Pelo menos até eu te autorizar pessoalmente. Concordei com a cabeça. Segundos depois perdia-me na solidão do meu quarto. Aquele misterioso pedido do general tinha aguçado novamente a minha curiosidade. O embrulho continha quatro livros não muito volumosos. Todos sobre um mesmo tema. Curtiss, ao selecionar os autores - Flávio Josefo, Adolfo Chutem, Yadin, e a antologia formada por Avi-Yonah, N. Avigad, Y. Aharoni, I. Dunayevski e S. Guttman -, tinha procurado, como sempre, a máxima eficiência. Ao informar-me, por intermédio daquelas páginas, das sucessivas expedições arqueológicas protagonizadas e dirigidas pelos referidos autores (excetuando, naturalmente, o judeu romanizado Flávio Josefo), comecei a compreender. Aquele lugar, descrito com toda a riqueza de pormenores nas obras que o general me tinha dado, tinha de ser o misterioso local da estação receptora de imagens e do berço. Sendo assim, a não menos intrigante Operação Eleazar do exército israelita também começava a ter um indubitável e inteligente sentido. Permaneci absorto no estudo e na leitura daqueles textos, mapas e
fotografias até alta noite. Então, a minha máxima preocupação era a distância considerável que existia entre aquele monumento da história de Israel e o ponto de contato que tínhamos escolhido, em princípio, para a descida do módulo. Esta circunstância, podia multiplicar os riscos da missão. Mas, é justo dizê-lo, também a suposta futura base de operações reunia consideráveis vantagens. Só quando Eliseu reclamou por telefone a minha presença‚ que compreendi que me esquecera dos outros companheiros. A equipe estava reunida há horas no quarto ao lado, o do meu irmão. Não demorei a juntar-me a eles para retomar as exaustivas revisões do plano. Ninguém me perguntou nada. No entanto, ao ver a minha expressão grave e preocupada, Eliseu olhou para mim com apreensão. Dois dias depois - em plena evolução da Operação Eleazar - me recordaria daquele momento e de como ele pressentira que eu estava informado de algo importante. Pouco faltou para que, ao irmos nos deitar - Já bem de madrugada, eu contasse ao meu querido companheiro o que Curtiss tinha colocado nas minhas mãos. Mas, o espírito de disciplina impôs-se e deixei que os acontecimentos seguissem o seu curso natural. Ao contrário do que deve ter acontecido com os diretores do Programa e com Eliseu, a tensão nervosa traiu-me. Foi uma noite difícil. Carregada de presságios. Angustiante. Depois de me remexer várias vezes na cama, optei por me levantar, mergulhando novamente nos livros do general. Aquela informação obcecou-me. Mas as longas horas de vigília não foram totalmente infrutíferas. Pelo menos, tinha chegado a uma conclusão que seria de indubitável utilidade na resolução da futura exploração: uma vez consumada a inversão axial das partículas subatômicas do módulo, este deveria efetuar um vôo horizontal e manual até ao ponto de contato, no topo do monte das Oliveiras. Essa seria a minha proposta definitiva. Às oito da manhã de quarta-feira, 21 de Fevereiro, após um prolongado e relaxante banho de chuveiro, fui encontrar com os diretores e com o pontual Curtiss no hall. E quero salientar um fato que descobri naquela mesma manhã, justamente quando me preparava para o asseio pessoal, e, ao qual, na altura não dei o devido valor. Tratava-se de uma série de sardas em que eu não tinha ainda reparado e que salpicavam grande parte dos meus ombros, tórax, braços, antebraços e costas das mãos. Mas o que mais me surpreendeu foi a presença de escamas, não muitas, nas pernas (faces anteriores) e nas zonas dorsais dos antebraços. Nunca havia acontecido nada que se parecesse, e, na verdade, nesse momento
também não lhe dei muita importância. Talvez o prolongado uso da "pele de serpente", pensei, tenha provocado estas alterações na epiderme. Felizmente, me esquecei do incidente, sem sequer chegar a comentá-lo com o meu irmão, ou com o resto dos homens do Cavalo de Tróia. Se o tivesse feito, e tendo em conta a fatal descoberta de Curtiss pouco antes do lançamento, a missão talvez tivesse naufragado ali mesmo. Mais uma vez, a sorte esteve do nosso lado. O general, tal como prometera, tinha revisto a fundo o projeto elaborado e redigido pelos diretores da operação e por nós próprios. Mas, longe de esclarecer as dúvidas, foi ele quem dedicou grande parte da manhã a interrogar-nos. A discussão centrou-se, como era de prever, no tempo de permanência do módulo e dos seus tripulantes no outro lado. Para alguns chefes do projeto, o ideal seria uma exploração que não ultrapassasse os três dias. Quer dizer, o necessário para recuperar o microfone. Os restantes, praticamente a maioria, consideraram que se tratava de uma ocasião única para tentar desvendar o que acontecera nos quarenta dias que, segundo os textos evangélicos, se passaram entre a morte e a suposta ascensão aos céus de Jesus de Nazaré. A nova missão fora concebida por forma a que, para além de recuperarem a peça perdida, os exploradores tivessem a oportunidade de verificar algumas das misteriosas aparições do Mestre da Galiléia e, sobretudo, como Já referi, de analisar a natureza do discutível e discutido corpo glorioso. De fato, a vara de Moisés seria preparada para isso. Este último critério - o dos quarenta dias - encerrava, não obstante, um sério inconveniente que todos reconhecemos. Com sorte, esticando ao máximo o período de montagem dos instrumentos secretos da estação receptora de imagens, o Cavalo de Tróia podia contar com uma margem de quinze a vinte dias para o lançamento do berço, o desenrolar da missão e o retorno à base. Um tempo insuficiente, sem dúvida alguma. A possível solução - que surpreendeu a todos - chegou desta vez pelas mãos de Eliseu. Depois de nos ouvir pacientemente, expôs o que ele chamou uma via intermédia. Basicamente, consistia no seguinte: a ausência física do módulo, a partir do instante da inversão de massa até ao regresso, podia ser estabelecido nos quinze ou vinte dias Já referidos. Mas, uma vez situados no domingo, 9 de Abril do ano 30, os expedicionários executariam o seu trabalho por um período de tempo indefinido. Uma vez concluída a exploração, seria apenas uma questão de manipular os swivels, forçando os seus eixos para o instante escolhido para o retorno e descida.
no século XX. Embora os astronautas vivessem física e realmente esses quarenta dias, ou mais, no passado, essa manipulação dos swivels tornaria viável o salto para o futuro, exatamente no momento cronológico fixado para o final da operação 1.
Nota do Autor: Embora no primeiro volume desta obra se incluam diversas notas explicativas sobre esta intrincada matéria, entendo que talvez seja bom refrescar neste momento a memória do leitor com algumas daquelas surpreendentes revelações. No essencial (escrevia o major), o "sistema básico" que dera impulso à operação consistia na descoberta de uma entidade elementar - generalizada no Cosmos - em que a ciência não reparara até àquele instante, e que foi e seria, no futuro, a "pedra angular" para uma melhor compreensão da formação da matéria e do próprio Universo. Esta entidade elementar - que foi batizada com o nome de swivel - pôs em evidência que todos os esforços da ciência para detectar e classificar novas partículas subatômicas não eram mais que uma estéril ilusão. A razão minuciosamente comprovada pelos homens da operação em que trabalhei - era tão simples quanto espetacular: um swivel tem a propriedade de alterar a posição ou orientação dos seus hipotéticos "eixos", transformando-se, assim, num swivel diferente. Hoje. ainda, e dado que esta sensacional descoberta não foi dada a conhecer à comunidade científica do Mundo, numerosos investigadores e peritos em física quântica continuam a descobrir e a detectar uma infinidade de sub partículas (neutrinos, mésons, antiprotons, etc) que só contribuem para obscurecer o intrincado campo da física. No dia em que os cientistas tenham acesso a esta informação compreenderão que todas aquelas partículas elementares que constituem a matéria não são mais que diferentes cadeias de swivels, cada uma delas orientava-se, por conseguinte, com dois termos e realidades aparentemente sobrepostos - o tempo cronológico que fluía em 1973 e o de idêntica natureza que fluíra num outro agora: o do ano 30 da nossa Era -, mas que, graças à nossa tecnologia, se tornavam independentes entre si.
Jogada de forma peculiar em relação às outras. Tanto os especialistas que trabalharam nesta operação como eu próprio tivemos de alterar as nossas velhas concepções do espaço euclidiano com a sua rede de pontos e retas, para assimilar que um swivel ‚ formado por um feixe de eixos ortogonais que "não podem cortar-se entre si". Esta aparente contradição ficou explicada quando os nossos cientistas comprovaram que não se
tratava de "eixos" propriamente ditos, mas sim de ângulos (Daí que tenha metido entre aspas a palavra "eixo" e me tenha referido a "hipotéticos eixos"). A chave estava, portanto, em atribuir aos ângulos uma nova propriedade ou caráter: o dimensional. A descoberta deixou perplexos os poucos iniciados arrastando-os irremediavelmente para uma visão muito diferente do espaço. da configuração íntima da matéria e do tradicional conceito de tempo. O espaço, por exemplo, Já não podia ser considerado como um "contínuo escalar" em todas as direções. A descoberta do swivel lançava por terra as tradicionais abstrações de "ponto", "plano" e "reta". Estes não são os verdadeiros componentes do Universo. Cientistas como Gauss, Riemann, Bolyai e Lobatschewsky tinham compreendido genialmente a possibilidade de ampliar os apertados critérios de Euclides, elaborando uma nova geometria para um "n-espaço". Neste caso, o auxílio das matemáticas evitava o grave escolho da percepção mental de um corpo de mais de três dimensões. Nós tínhamos imaginado um universo em que os tomos, partículas. etc, formam as galáxias, sistemas solares, planetas. campos gravitacionais, magnéticos, etc. Mas a descoberta e posterior comprovação do swivel deu-nos uma visão muito diferente do Cosmos: o Espaço não é mais que um conjunto associado de fatores angulares, integrado por cadeias e cadeias de swivels. Segundo este critério, poderíamos representar o Cosmos não como uma reta, mas como um enxame destas entidades elementares. Graças a estas bases, os astrofísicos e matemáticos que tinham sido recrutados pelo general Curtiss para o Projeto Swivel foram verificando, com assombro, como no nosso universo conhecido se registram periodicamente uma série de curvaturas ou ondulações, que oferecem uma imagem geral muito diferente da que sempre tivemos. Em princípios de 1960, e como conseqüência de um mais intenso aprofundamento nos swivels, uma das equipes do Projeto materializou outra descoberta que na minha opinião, será um marco histórico da Humanidade: mediante uma tecnologia que não posso sequer insinuar, os hipotéticos eixos das unidades elementares foram invertidos na sua posição. O resultado encheu de espanto e alegria, ao mesmo tempo. Todos os cientistas: o minúsculo protótipo com o qual se fizera a experiência desapareceu à vista dos investigadores. No entanto, o instrumental continuava a detectar a sua presença. Ao multiplicarmos os nossos conhecimentos sobre os swivels e dominarmos a técnica da inversão da matéria, apareceu diante da equipe uma fascinante realidade: "mais além" ou do "outro lado" das nossas limitadas percepções
físicas existem outros universos tão físicos e tangíveis como o que conhecemos. Em sucessivas experiências, os homens do general Curtiss chegaram à conclusão de que o nosso cosmos goza de uma infinidade de dimensões desconhecidas. (Matematicamente, foi possível a comprovação de dez) Destas dez dimensões, três são perceptíveis para os nossos sentidos. e uma quarta - o tempo - chega até aos nossos órgãos sensoriais como uma espécie de "fluir", num sentido único, e que poderíamos definir grosseiramente como "flecha ou sentido orientado do tempo". A mim, pessoalmente, o que acabou por me cativar foi o novo conceito de "tempo". Ao manipular os eixos dos swivels, comprovou-se que estas unidades elementares não "sofriam" a passagem do tempo. Elas eram o tempo! Longas e laboriosas investigações puseram em relevo, por exemplo, que aquilo a que chamamos "intervalo infinitesimal de tempo" não era mais do que uma diferença de orientação angular entre dois swivels intimamente ligados. Aquilo constituiu um autêntico cataclismo nos nossos conceitos do tempo. As verificações seguintes demonstraram. por exemplo, que o tempo pode assemelhar-se a uma série de swivels cujos eixos estão orientados ortogonalmente em relação aos raios vetores que implicam distâncias. De acordo com isto, descobrimos que pode dar-se o caso - se a inversão dos eixos for a adequada – que um observador, no seu novo marco de referência, considere como distância o que no antigo sistema referencial era avaliado como "intervalo de tempo". É então fácil de compreender porque ‚ que um evento ocorrido longe da Terra (por exemplo, num planeta do cúmulo globular M-13, situado a vinte e dois mil e quinhentos anos-luz) nunca pode ser simultâneo com outro que se registre no nosso mundo. Isto deu-nos a explicação do motivo por que um objeto que pudesse viajar à velocidade da luz encurtaria a sua distância no eixo de translação, até se reduzir a um par de swivels. Distância que, ainda que tenda para zero, não ‚ nula, como afirma erradamente uma das transformações do matemático Lorentz. E Já que mencionei o processo de inversão dos eixos dos swivels, devo assinalar que, no princípio. muitas das tentativas de inversão da matéria falharam, precisamente por uma falta de precisão na referida operação. Por não se conseguir uma inversão absoluta, o corpo em referência - por exemplo, um átomo de molibdênio - sofria o conhecido fenômeno da conversão da massa em energia. (Ao desorientar no seio do átomo de Mo, um só núcleo - um proto, por exemplo - obtínhamos um isótopo do Nióbio-10)
Quando essa inversão foi absoluta, o próton parecia aniquilado, mas sem quebrar o princípio universal da conservação da massa e da energia. Não foi muito difícil detectar que - por um daqueles milagres da Natureza - os eixos do tempo de cada swivel se orientavam segundo uma direção comum. Para cada um dos instantes que poderíamos definir ingenuamente como o "meu agora". No instante seguinte, e no seguinte e no seguinte - e assim sucessivamente - esses eixos imaginários variavam a sua posição, dando passagem a diferentes "agora". E o mesmo acontecia, obviamente, com os "agora" a que chamamos passado". Aquele potencial simplesmente ao alcance da nossa tecnologia - fez-nos vibrar de emoção, imaginando as mais esplêndidas possibilidades de "viagens" ao futuro e ao passado. Procurarei indicar, ainda que sucintamente, algumas das linhas básicas referentes à nova definição de "intervalo de tempo". Como Já disse, os nossos cientistas entendem um intervalo de tempo "T" como uma sucessão de swivels, cujos ângulos diferem entre si em quantidades constantes. Quer dizer, consideremos, num swivel, os quatro eixos (que não são mais que uma representação do marco tridimensional de referência), e que não existem, na realidade: por outras palavras, que são tão convencionais como um símbolo, embora sirvam ao matemático para fixar a posição do ângulo real. Se dentro desse marco ideal oscila o ângulo real, imaginemos agora um novo sistema referencial dos ângulos, cada um dos quais faz noventa graus com os quatro anteriores. Este novo marco de ação de um ângulo real e o anteriormente referido definem, respectivamente, espaço e tempo. Observemos que os "eixos vetores", que definem espaço e tempo, possuem graus de liberdade distintos. O primeiro pode percorrer ângulos-espaço em três orientações diferentes que correspondem às três dimensões típicas do espaço; o segundo está "condenado" a deslocar-se num só plano. Isto leva-nos a crer que dois swivels cujos eixos difiram num ângulo tal que não exista no universo outro swivel cujo ângulo esteja situado entre ambos definirão o mínimo intervalo de tempo. A este intervalo, repito, chamamos "instante". Como exprimi anteriormente nem sequer posso sugerir a base técnica que conduz à mencionada inversão de todos e cada um dos eixos dos swivels, mas posso adiantar que o processo ‚ instantâneo e que a contribuição de energia necessária para esta transformação física ‚ muito considerável. Essa energia necessária, posta em jogo até ao instante em que todas as subpartículas sofrem a sua inversão, é restituída "integralmente" (sem perdas), transformando-se no novo marco tridimensional em forma de massa. As experiências iniciais demonstraram que, imediatamente depois
desse salto de marco tridimensional, o módulo se deslocava a uma velocidade superior, sem que a mudança. Outra questão era o tempo biológico. Os cientistas sabem, e Já o demonstraram, que este obedece a parâmetros que em muitíssimas ocasiões nada têm a ver com os do tempo cronológico. Um ser humano vê ou sente passar o seu tempo cronológico e, por sua vez, os seus órgãos podem estar a passar por outro tipo de envelhecimento – o biológico - que pode não ter qualquer relação com aquele. Esta foi a nossa grande incógnita. A sugestão de Eliseu era tecnicamente viável. No entanto, nas experiências efetuadas no deserto de Mojave nunca se tinha manipulado o tempo até esse extremo. Desconhecíamos, portanto, quais as conseqüências que poderia provocar no organismo humano. E isso, evidentemente, preocupava-nos a todos. Este fato me acarretara, a mim, que escrevo estas linhas, e ao meu irmão, danos gravíssimos e irreversíveis. O polêmico assunto ficou finalmente em suspenso, à espera de um estudo mais pormenorizado. Curtiss, nervoso perante os acontecimentos que se aproximavam e que, lamentavelmente, eram de uma natureza mais prosaica, tinha pressa de encerrar a reunião. Antes de sair do Ramada Shalom, deu-nos as últimas instruções: no dia seguinte, às sete horas, um veículo especial, a mando de um oficial israelita, viria buscar-nos. Até esse momento, era aconselhável que não saíssemos do hotel. - Sobretudo, evitem a mesquita da Ascensão.(Ao que parece, a Operação Eleazar começaria nessa mesma noite, com o transporte dos contendores ali depositados) - A hora há - acrescentou - coincidir com um ataque israelita preventivo. Esse golpe de força visa uma dupla finalidade: desviar a atenção dos palestinos e do povo em geral para a direção oposta à das colunas da Operação Eleazar. O general fez uma pausa. -. Quanto ao segundo objetivo, amanhã vocês o conhecerão pelos jornais. Eu não estarei no transporte especial. A minha missão é cuidar pela integridade dos equipamentos. Irei à frente de um dos dois comboios. Nos veremos na nova base. Boa sorte. Mais uma vez nos deixou mergulhados na incerteza. O que ele queria dizer com o conhecerão pelos jornais? Aquele foi um dos poucos momentos divertidos da aventura em que estávamos imersos. Quando, pouco antes das sete da manhã de quinta
feira, 22 de Fevereiro, os diretores do Projeto, Eliseu e eu nos encontramos no hall do hotel, não conseguimos conter uma enorme gargalhada coletiva. O nosso vestuário podia parecer-se com o de qualquer profissão, menos com a sugerida por Curtiss: a de arqueólogo. Embora, digamos isso em nosso favor, quem diabos podia saber qual é a roupa mais usual entre esses esforçados profissionais? O fato é que deixando-nos levar pelo puro instinto ou pelo que cada um recordava dos romances e filmes relacionados com estes assuntos, vários colegas meus puseram na cabeça rudimentares chapéus de palha (nunca soube onde os conseguiram), grossos blusões - nas cores mais extravagantes e berrantes que se possa imaginar - grandes e pesadas botas militares e, é claro, máquinas fotográficas e cachimbos de duvidosa utilidade. (Pouparei a descrição da roupa que eu levava vestida, que não era muito diferente da dos meus companheiros.) A nossa alegria acabaria em breve. Às sete horas, de acordo com o previsto, uma camionete branca, com a matrícula amarela (60-609-72) e janelas negras, a uma considerável altura do chão - uns dois metros parava suavemente em frente do Ramada Shalom. Imediatamente, um tenente com as insígnias da Divisão de Sapadores do Exército de Israel saiu e cumprimentou-nos. O motorista, outro oficial de Engenharia, encarregou-se da bagagem e, sem mais demora, às sete horas e quinze minutos partíamos rumo ao desconhecido. Como se tudo tivesse sido meticulosamente planejado, sobre cada um dos assentos que devíamos ocupar encontrava-se um exemplar do jornal matutino Jerusalém Post. E, recordando as palavras do general lançamonos com avidez sobre as suas páginas. O tenente, sentado ao lado do motorista, parecia estar à espera desta reação. Mas não fez qualquer comentário e limitou-se a espiar a nossa expressão. Meu Deus! Na primeira página, e com letras garrafais, lemos duas notícias que nos fizeram estremecer. A primeira tal como Curtiss tinha prognosticado, correspondia ao ataque preventivo israelita. Forças de terra, mar e ar, rezava a informação, atacaram na noite passada vários acampamentos palestinos no Líbano. Foi uma das incursões mais profundas em território libanês. Segundo parece, há numerosas vítimas. Os objetivos militares foram os campos de guerrilheiros e bases terroristas contra Israel nas proximidades de Trípoli, no Norte do Líbano, a cerca de cento e noventa quilômetros da fronteira israelita mais próxima. Duas unidades da Marinha lançaram um intenso bombardeamento contra o acampamento de Nahar El Bard, a norte da mesma cidade de Trípoli. Simultaneamente, helicópteros israelitas aterraram numa área vizinha do
acampamento Badawi. Não pude evitar um calafrio. Quando li a concisa e trágica informação, senti-me cúmplice daquele morticínio. Dias depois, ao folhear os jornais norte-americanos atrasados que tinham chegado à base, pudemos confirmar as nossas suspeitas iniciais. Segundo um telex da agência palestina Wafa Press, um grande número de mulheres e crianças tinham sido mortas ou feridas naquele golpe, do exército israelita em território libanês. Segundo os palestinos, o número de mortos era superior a vinte e um. A organização guerrilheira Al Fatah, por seu lado, sustentava que os serviços jordanos e israelitas de espionagem estavam unidos na luta contra a causa palestina. Naturalmente, a imprensa de Jerusalém justificava o ataque preventivo como uma medida necessária face aos planos terroristas dos palestinos, descobertos a partir das detenções na Jordânia de Abu Daoud e seus seguidores. Este era o segundo objetivo a que se referira o general Curtiss. Em contrapartida, do primeiro – a manobra de diversão para tirar os equipamentos da mesquita - não se dizia uma só palavra. Como disse, senti-me deprimido. Eliseu e os outros experimentaram uma sensação idêntica. Aqueles não eram os nossos propósitos. Éramos todos cientistas e homens de paz. Tínhamos certeza de que existiam outros métodos menos violentos para procurar um transporte seguro e eficiente do material. A segunda notícia, tão desoladora como a que acabava de ler, dizia o seguinte: “Aviões israelitas derrubaram ontem um avião comercial Líbio, um Boeing 727, com oitenta e três passageiros, ao ser localizado sobrevoando a península do Sinai e ao negar-se a acatar as ordens para aterrissar.” As primeiras e confusas informações falavam de setenta passageiros mortos e treze sobreviventes. O avião, continuava o jornal, caira a cerca de vinte quilômetros a leste do canal do Suez, na zona do Sinai. Helicópteros israelitas transportaram os feridos para o hospital de Tel Hashomer, em Telavive. O Boeing 727 efetuava um vôo regular do Bahrein nos Emirados Árabes – para Alexandria, no Egito. A única explicação, naqueles momentos, para tão lamentável acontecimento foi a seguinte: O avião, ao que parecia, errara a rota, devido às péssimas condições meteorológicas, entrando no espaço aéreo de Israel. Tanto a mim como aos meus companheiros pareceu-nos estranho aquele raciocínio dos jornais israelitas. Teríamos de esperar por novas
informações - especialmente dos jornais árabes - para sabermos o que realmente tinha acontecido na península do Sinai. Ninguém do grupo podia então imaginar as gravíssimas repercussões que iria ter o triste e casual (?) incidente líbiosraelita. Tanto para as Já tensas relações de Israel com os seus vizinhos como para a nossa própria missão. Curtiss tinha feito veladas insinuações sobre o agravamento da situação de nem guerra nem paz existente entre o Egito, a Síria e Israel. No entanto, para dizer a verdade, o plano de paz - em três fases -, apresentado na segunda-feira 19 desse mesmo mês de Fevereiro, por Hafiz Ismail, na altura conselheiro egípcio da Segurança Nacional, tinha despertado em nós a esperança de uma provável e paulatina melhoria das coisas. Mas, de súbito, com a queda do Boeing 727 da Líbia, tudo se tornava mais sombrio. A camionete seguiu pela estrada de Jericó. Nenhum dos elementos da expedição parecia disposto falando. Em parte, devido à atenta vigilância do oficial israelita e, suponho, porque também estavam deprimidos pelos trágicos acontecimentos de que acabávamos de tomar conhecimento.
* Na data referida, Hafiz Ismail voou até Londres com o fim de se avistar com Sir Alec Douglas Home, na ocasião ministro dos Negócios Estrangeiros inglês. Objetivos? Em primeiro lugar, negociar uma possível abertura do canal de Suez. Assim como um novo plano de paz para o Oriente Médio. Esta proposta compreendia três fases. Primeira: retirada parcial das tropas israelitas da zona do Sinai afim de permitir a reabertura do Suez. Esta etapa só seria aceite pelos Árabes no caso de Israel se comprometer a passar a uma segunda fase, na qual a retirada fosse completa na zona do canal, golfo de Akaba, Jordânia e Síria. Segunda: o problema palestino entraria então em discussão, embora se ignorasse na altura a fórmula que o Egito iria propor. Especulou-se então que talvez se estivesse a tentar dar aos palestinos uma voz nas negociações. Terceira: seria negociado um acordo que desse por finda a guerra de 1967, e pelo qual os Árabes se comprometeriam a respeitar as fronteiras de Israel. Ismail, o Kissinger do presidente egípcio Anuar E1 Sadat efetuaria em Londres a primeira de uma série de reuniões com potências mundiais sobre o plano de paz elaborado pelo Cairo. Nos círculos pró-judaicos de Londres especulou-se então que o plano não era de paz, mas de não guerra. (N. do M)
Durante algum tempo, fiquei com o olhar perdido num céu tempestuoso que fustigava o asfalto e as janelas de vidro fumado do veículo com furiosas rajadas de chuva. (Era admirável. A meticulosidade dos israelitas atingia extremos insuspeitados. Naquela camionete , por exemplo, os vidros escuros - na realidade tratava-se de vidros semirefletores permitiam a visão de dentro para fora, mas não ao contrário. Isto, unido à considerável e calculada altura das janelas, tornava quase impossível que um hipotético observador distinguisse quem ou o que viajava dentro do veículo). Durante alguns minutos esforcei-me por afastar da minha mente os negros presságios que pairavam sobre a futura missão, fixando a atenção em pormenores como os da camionete, a crescente tempestade ou a paisagem. Mas foi inútil. A cada instante, surgiam no meu cérebro como relâmpagos, as cenas sangrentas dos bombardeamentos ou da queda do avião de passageiros. A velha angústia aflorou então e senti um nó na garganta. Nesse momento, a mão de Eliseu - sentado à minha esquerda - apertou o meu antebraço. Não fizemos qualquer comentário. O meu rosto devia ser um livro aberto. Por volta das sete horas e quarenta e cinco minutos, a camionete deixou para trás o pedregoso deserto da Judéia. E placas amarelas, indicando a distância em hebraico e inglês, começaram a confirmar o que eu Já sabia. Nas proximidades de Almog dobramos à direita, deixando a estreita estrada que conduz à fronteira da Jordânia. Quando avistamos a plácida e esverdeada superfície do mar Morto, o meu companheiro indicou-me num mapa de estradas que aquela nos conduzia ao Sinai. Estive a ponto de esclarecer as suas dúvidas, desenhando o lugar - mesmo em frente ao famoso mar que agora costeávamos - onde, se eu não estava enganado a viagem deveria terminar. Mas arrependi-me e, com um sorriso forçado, voltei a pôr o lápis na algibeira do meu pesado casaco. Com efeito, aquela estrada ia dar à cidade mais meridional de Israel: Eliat, junto ao golfo do mesmo nome, e às portas do deserto do Sinai. O motorista reduziu a velocidade. A intervalos, da escarpada encosta avermelhada que se erguia à nossa direita precipitavam-se pequenas e brancas cascatas de água que invadiam a estrada, dificultando a circulação. As torrentes, que iam aumentando em número e volume à medida que nos íamos aproximando do nosso objetivo, terminavam indefetivelmente nas salgadas águas do mar Morto (a quatrocentos metros abaixo do nível do Mediterrâneo).
Às oito horas, quando a contemplação das famosas grutas de Qumrân - onde os Beduínos descobriram os célebres Manuscritos do Mar Morto - tinha conseguido distrair em parte a nossa tristeza, o motor de um helicóptero do exército devolveu-nos à realidade. Vinha do Norte, seguindo a linha da costa, a baixa altitude, sobre os escassos trezentos metros de dunas que nos separavam da margem do grande lago. Todos, instintivamente, dirigimos o olhar para o tenente. Mas o oficial, impassível, limitou-se a olhar para o aparelho. Este, depois de ter pairado uns segundos diante da camionete, levantando nuvens de areia e agitando sem piedade os juncos e as gestas, empreendeu de novo o vôo em direção ao Sul. Embora aquela zona, desde o extremo noroeste do mar morto estivesse cercada de arame e repleta de tabuletas que recordavam a proibição de tomar banho e o caráter militar daquela faixa de terra, todos sentimos a mesma coisa: o helicóptero não estava fazendo um vôo rotineiro. E o fato de ter efetuado um vôo estacionário em frente ao veículo aumentou as nossas suspeitas. Não havia dúvidas. A viagem da camionete estava sendo vigiada. O motorista acelerou, deixando para trás o oásis de Ein Gedi. E às oito horas e vinte minutos, para surpresa geral, abandonava a estrada principal e metia por um desvio à direita. No meio do inesperado cruzamento, um enorme cartaz gritou-nos o nome do nosso iminente destino. Um destino que, efetivamente, Já me tinha sido adiantado pelo general Curtiss. Massada! Um murmúrio quebrou o silêncio do grupo, fascinado perante a repentina aparição, a ocidente, do histórico e altivo rochedo. Em pouco mais de oito minutos, a camionete percorreu os escassos três quilômetros de curvas que unem o sopé do grande monte truncado ao litoral do mar Morto. Com o passar dos séculos, os leitos das correntes como naqueles tempestuosos momentos - tinham esculpido formas estranhas e quase mágicas entre as dunas e montículos ocres e amarelados que cercam quase por completo a formidável meseta de Massada. O local não podia ser melhor nem mais adequado. Tanto para a montagem da estação receptora de imagens como para os nossos verdadeiros objetivos. E isto por dois motivos. O primeiro, pelas características físicas daquela montanha isolada, a qual, na sua vertente oriental, se eleva a mil e trezentos pés sobre a superfície do mar Morto, e segundo, pela sua localização privilegiada: a cerca de cem quilômetros a sul de Jerusalém e a centenas de milhas dos dois focos de atrito (os montes Golã, na fronteira com a Síria, e o Sinai). Aquele colosso de rochedo,
dourado pelo ardente sol do vizinho deserto da Judéia, com o seu cume plano e em forma de convés de barco, com mil e novecentos pés de comprimento (de norte a sul) e outros seiscentos e cinqüenta (de este a oeste), praticamente cortada a pique em toda a volta, era uma base segura, Quase inacessível, e ideal para uma operação como a que nos propúnhamos levar a cabo. O segundo motivo era mais íntimo e importante para os israelitas do que para nós, os homens do Cavalo de Tróia. Na extensa documentação que me fornecera o general estava pormenorizada a insólita e emocionante história daquele gigantesco promontório. Massada tinha sido o cenário de um dos mais dramáticos e simbólicos acontecimentos da sempre agitada vida de Israel. No ano 66 da nossa Era, o povo judaico voltou a pegar em armas contra o Império Romano. Aquela guerra duraria quatro anos. Por fim, no ano 70, o general romano Tito conseguiria vencer a resistência dos defensores de Jerusalém, destruindo a Cidade Santa. Mas um último foco de valentes israelitas se refugiaria no alto de Massada, resistindo ao cerco romano até à Primavera do ano 73. No ano 72, o governador romano Flávio Silva tomou a decisão de esmagar este último e incômodo reduto de judeus revoltosos. Dirigiu-se a Massada com a Décima Legião, tropas auxiliares e milhares de prisioneiros israelitas. Ao todo eram cerca de quinze mil homens. Tanto os sitiados como os atacantes se prepararam para um prolongado assédio. Silva mandou construir oito acampamentos em volta da montanha bem como uma muralha que rodeasse Massada, cortando qualquer tentativa de fuga.
* No início da rebelião judaica do ano 66 d. C, um grupo de fanáticos tomou de assalto a escassa guarnição romana destacada para Massada. E ali se manteve enquanto durou a guerra. Quando Tito conquistou Jerusalém, um grupo de zelotas, famílias, e também alguns membros da seita dos Essênios, fugiram para o Sul, refugiando-se em Massada e unindo-se aos patriotas que tinham conquistado a fortaleza. Durante dois anos lutaram pela sua liberdade, fustigando os romanos a partir daquele lugar estratégico. Segundo Flávio Josefo, o primeiro a fortificar esta defesa natural foi Jonatas, o Grande Sacerdote. Mas, quem verdadeiramente transformou Massada num reduto quase inexpugnável foi o rei Herodes, o Grande. Entre os anos 36 a.C. e 30 a.C. - seguramente por temer uma possível invasão dos exércitos de Cleópatra -, construiu uma muralha com
ameias que rodeava todo o cume, uma torre de vigia, grandes cisternas escavadas na rocha, armazéns, quartéis, palácios e arsenais. Estas construções foram aproveitadas pelos novecentos e sessenta zelotas. (N. do M) *1 Flávio Josefo: nos seus livros Antiguidades Judaicas (XIV e XV) e A Guerra dos Judeus (I, II, IV e VII). (N. do M)
Devido às escarpas abruptas que formam as paredes do rochedo, os romanos levaram a cabo uma obra faraônica na face ocidental da grande meseta: uma rampa, à base de pedras e de terra branca batida. Quando a rampa - que ainda se conserva - ficou pronta, Silva levantou no final da mesma uma torre de ataque provida de um formidável aríete, conseguindo abrir uma brecha na muralha. Naquela noite – a anterior à conquista definitiva de Massada pela legião romana -, os novecentos e sessenta zelotas que integravam o núcleo da resistência judaica tomaram uma decisão heróica. Num discurso memorável - narrado pelo historiador Flávio Josefo 1 -, o chefe dos revolucionários, Eleazar Ben Yair, perante a dificuldade da situação, decidiu que era preferível uma morte com glória a uma vida de infâmia, e que a solução mais digna seria a de rejeitar a idéia de sobreviver à perda da sua liberdade. Josefo escreve: Antes de serem feitos escravos do vencedor, os defensores - novecentos e sessenta homens, mulheres, velhos e crianças tiraram ali mesmo a sua própria vida com as suas mãos. Quando, na manhã seguinte, os romanos chegaram ao topo da montanha, nada mais encontraram que silêncio. E assim encontraram os romanos, conclui Josefo a sua dramática narração, uma multidão de mortos mas não puderam alegrar-se com isso, embora se tratasse de inimigos. Nem sequer puderam fazer mais do que admirar o valor, a determinação e o imbatível desprezo pela morte que tantos deles tinham demonstrado ao levarem a cabo uma ação como aquela. Só duas mulheres e cinco crianças se salvaram do suicídio coletivo escondendo-se numa gruta. Foram elas que, segundo o historiador judaico romanizado, contaram os fatos aos romanos. Massada, desde então, tem sido e continua a ser um símbolo para o povo de Israel. Um monumento ao heroísmo e aos homens que preferem a morte à perda da honra e da liberdade. Essa heróica resistência de Eleazar Ben Yair e dos seus zelotas fez com que um poeta judaico exclamasse: "Massada não voltar a ser conquistada!" Era fácil de perceber por que motivo o Governo de Golda Meir-
permanentemente ameaçado pelos seus vizinhos, os árabes escolhera o cume de Massada como localização ideal para uma equipe de técnicos e uma série de instrumentos que devia velar pela segurança e, em última análise, pela liberdade de todo um povo. Ali, a Operação Eleazar adquiria um profundo e simbólico significado que nós soubemos respeitar. Por outros motivos, aquele baluarte também iria representar para o Cavalo de Tróia um símbolo histórico e inesquecível. Ao lado de Massada, na vertente oriental, os israelitas tinham aproveitado as péssimas terras formadas por depósitos de greda sedimentada construindo um incipiente mas lucrativo, complexo turístico virado para a exploração das antiguidades do cume da grande meseta. Desde que o eminente arqueólogo judeu Yigael Yadin, catedrático de Arqueologia da Universidade Hebraica, concluíra as suas escavações e os trabalhos de restauração (entre os anos 1963 e 1965) na fortaleza rochosa, os curiosos e visitantes tinham vindo a aumentar. Mas só a partir de 1970, quando a companhia suíça Willy Graf, de Meilen, instalou um sistema de teleféricos perto da base do rochedo, é que o fluxo de turistas começou a ser considerável. O teleférico se tornaria de vital importância para os nossos trabalhos no cume. Por volta das oito horas e trinta minutos daquela quinta-feira, 22 de Fevereiro, a camionete parava finalmente num amplo terreiro, muito perto da base do teleférico e de umas ainda modestas instalações turísticas. Um forte vento de sudeste, com rajadas, encharcou-nos de chuva e de um penetrante cheiro a salitre vindo do mar Morto. Curtiss, vestido de civil e protegido por um grosso capote impermeável, deu-nos as boas-vindas, convidando-nos a segui-lo até uma pousada da juventude situada a pouco mais de cem passos. O general parecia satisfeito. E isso deu à equipe muitas esperanças. Desde o momento em que descemos da camionete , chamou-nos a atenção a presença naquele lugar de quatro caminhões velhíssimos e quase a caírem aos pedaços, carregados com blocos enormes de pedra de uma belíssima tonalidade alaranjada. Em volta, formando um círculo fechado vimos também vários veículos militares e um grande grupo de soldados armados. Sinceramente, ao princípio, não associamos aqueles caminhões de carroçaria verde e sem toldo com a Operação Eleazar. Mas os judeus nos surpreenderiam novamente. Quando entramos na pousada da juventude, dois oficiais do corpo de engenheiros do exército israelita, que, sem dúvida, aguardavam a nossa chegada, puseram-se de pé e fizeram continência. Atrás deles tinham sido colocados vários mapas e
grandes fotografias aéreas; todos do cume de Massada. Curtiss, depois de se livrar do seu encharcado capote verde-azeitona, serviu-nos uma reconfortante xícara de café, dizendo que nos sentássemos diante dos planos. - Bem senhores - manifestou o general com uma frieza a que nunca cheguei a habituar-me totalmente -, como sabem, a Operação Eleazar está em andamento. Parte dos equipamentos (o primeiro carregamento, para sermos exatos) encontra-se há horas neste mesmo lugar. Curtiss apontou muito rapidamente com o indicador direito para qualquer coisa que devia estar no exterior no terreno. Mas nem eu nem os meus companheiros conseguimos identificar a coluna. Perante os olhares incrédulos de alguns diretores do Programa, o general sorriu e, apontando para os silenciosos oficiais israelitas esclareceu: - Compreendo a vossa surpresa. Os nossos amigos e aliados, com a sua habitual eficácia, descobriram uma forma de transportar esses instrumentos nos caminhões que devem ter visto ao descerem da camionete . Curtiss, seguindo um velho costume, tratava-nos por vocês, segundo o seu estado de espírito ou a gravidade do momento. - Ora bem, agora não faz sentido continuar a ocultar. Esse tipo de transporte civil, o único autorizado a atravessar a fronteira jordana e a ir até Amã, foi a camuflagem perfeita para tirar os equipamentos da mesquita da Ascensão e trazê-los para Massada. - Mas - interveio Eliseu - esses caminhões só estão carregados com grandes blocos de pedra alaranjada. O general não respondeu. Limitou-se a trocar uma piscadela de cumplicidade com os israelitas, prosseguindo a sua exposição nos seguintes termos: - Como lhes ia dizendo, a Operação Eleazar, em memória de Eleazar Ben Yair, está em andamento. Hoje mesmo se incorporarão os outros homens, e, no sábado, se Deus quiser, chegará o outro carregamento. O transporte dos instrumentos para o topo da montanha começará às dez horas. Isto ‚. - Curtiss consultou o relógio – daqui a mais ou menos cinqüenta e cinco minutos. As ordens são claras e precisas. Uma vez concluída a transferência de material da base para o topo, nos instalaremos no alto do rochedo. Repito: todos, sem exceção, acamparemos em Massada. A ênfase colocada naquelas últimas palavras alarmou-nos. Que queria ele dizer? Que nos esperaria naquela nebulosa e desafiante meseta?
- E agora, por favor, prestem atenção. Curtiss cedeu a palavra a um dos oficiais. - Chamo-me Bahat. Estou encantado de estar a seu serviço como supervisor da Operação Eleazar. Oficialmente somos mais uma expedição arqueológica, patrocinada e dirigida pela Universidade Hebraica de Jerusalém, pela Sociedade de Exploração da Terra Santa e pelo Departamento de Antiguidades do Governo de Israel. O meu camarada, capitão Yefet, é o chefe do acampamento. Quando acabarmos esta breve reunião informativa, serão fornecidos os documentos que os credenciam como membros dessa operação. Enquanto permanecermos em Massada, os seus nomes e profissões serão os que figuram nesses documentos. Alguns minutos depois, quando o capitão Yefet distribuiu os falsos bilhetes de identidade, os meus colegas não perceberam de um pormenor que refletia a sutileza dos serviços secretos israelitas. Como ignoravam os pormenores das anteriores expedições arqueológicas a Massada - dirigidas pelo general e arqueólogo Yadin entre 1963 e 1965 - os homens do Cavalo de Tróia não descobriram que pelo menos trinta e quatro daquelas filiações e profissões correspondiam a arquitetos, arqueólogos, restauradores, supervisores e pessoal administrativo que, efetivamente, tinham sido membros das expedições dirigidas por Yadin. Os nomes de Bahat e Yefet, por exemplo, aparecem nos relatos dessas expedições históricas como supervisor e chefe de acampamento, respectivamente. Imagino que os israelitas não sabiam que eu tinha conhecimento disso. Embora também duvide que isso os preocupasse. - Vou lhes mostrar agora o novo local. O suposto Bahat - nunca soubemos se era esse o seu verdadeiro apelido - apontou para uma das enormes fotografias aéreas do cume de Massada. - Observem que se trata de uma enorme meseta, em forma rombóide ou de convés de barco. Mede aproximadamente seiscentos e trinta e três metros, de norte a sul, e duzentos e dezesseis, de leste a oeste. Pouco mais da metade norte desta plataforma natural ‚ ocupada pelas ruínas dos palácios, armazéns, sinagoga, etc. , edificados por Herodes, o Grande, pelos zelotas e pelos monges bizantinos que mais tarde se apoderaram de Massada. O resto, pouco menos da metade sul, não tem quase nenhuma construção, se excetuarmos o banho ritual, o acesso a uma cisterna subterrânea, a chamada lagoa grande, e, é claro, as ruínas da muralha que cercava todo o cume. O oficial ia indicando na fotografia cada uma dessas relíquias
arqueológicas. - Pois bem, depois de estudar o terreno e as nossas necessidades, a zona escolhida para a colocação da estação receptora de imagens do satélite Big Bird foi esta: o sul da meseta. Bahat dirigiu-se então para junto de um mapa topográfico, o que reproduzia o cume à escala, completando a sua exposição: - Notarão que o local de assentamento se parece com um triângulo isósceles quase perfeito. Ali nos movimentaremos. A sua dimensão é mais do que suficiente para os nossos objetivos: noventa metros de base e cem de altura. No total, pouco menos de quatro mil e quinhentos metros quadrados, se descontarmos a superfície das ruínas, de que Já falei antes. O oficial dedicou mais alguns minutos a diversos aspectos relacionados com a segurança do Acampamento Eleazar - e aos que em breve me referirei -, passando de imediato às perguntas. Na realidade, as dúvidas dos presentes centravam-se, sobretudo, em assuntos que nada tinham a ver com toda aquela montagem judaica. Por isso, as perguntas foram poucas e simples. No entanto, uma das perguntas, feita por um dos diretores do Projeto, era muito importante para os nossos objetivos secretos: - Se o cume de Massada continua aberto ao turismo, com que grau de segurança se levará a cabo a Operação Eleazar? O oficial israelita parecia estar à espera desta pergunta. - Refletiu-se muito sobre essa questão - explicou. – A princípio, os responsáveis do nosso Governo admitiram a possibilidade de fechar Massada ao turismo e aos visitantes em geral. Mas o parecer dos serviços secretos mudou essa alternativa. É mais seguro e inteligente que tudo se mantenha no seu curso normal. Nesta época, a afluência de visitantes não é muito alta. Por outro lado, como compreenderão assim que forem lá para cima, adotamos todas as medidas de segurança possíveis. Apesar de sermos apenas um esforçado grupo de arqueólogos, entre o pessoal do Acampamento Eleazar haverá um destacamento permanente e secreto encarregado da vigilância interna e externa. Adotando um tom tranqüilizador, Bahat acrescentou: - Não devem alarmar-se. Tal como aconteceu com o primeiro local, na mesquita da Ascensão, o nosso Governo não poupará esforços para que o seu trabalho seja realizado com um mínimo de comodidades e tranqüilidade. Aquela segurança do oficial israelita fez-me tremer. Que teriam preparado no alto da montanha?
- É claro que - concluiu, ao mesmo tempo que Yefet pegava nos bilhetes de identidade, preparando-se para entregá-los assim que o camarada desse por encerradas as informações -, durante estes dias, enquanto os containeres não estiverem todos no acampamento, Massada permanecerá fechada. Calculamos que no próximo domingo a situação Já deve estar normalizada. De acordo com as nossas previsões, o mau tempo reinante favorece-nos. É mais do que provável que entre hoje e amanhã as violentas correntes de água que vocês Já tiveram oportunidade de ver durante a viagem obriguem a sucessivos e lamentáveis cortes da estrada. Isso tornará mais simples o imprescindível encerramento temporário das ruínas arqueológicas. Suponho ter-me exprimido com clareza. A intenção de algumas das palavras pronunciadas por Bahat, e que coloquei entre aspas, não deixava lugar para dúvidas. As intensas chuvas de Fevereiro provocavam naquela zona freqüentes e habituais desabamentos ou inundações. Não era estranho, portanto, que a estrada para sul do mar Morto, por Ein Hatzeva, Ein Yahav e Elat viesse a ser afetada pelas enchentes de água que descem do deserto escarpado da Judéia. Acabada a reunião, o chefe do acampamento distribuiu os falsos documentos de identidade, bem como grandes capas impermeáveis, requisitando todas as nossas câmaras fotográficas. E, cumprindo as instruções de Curtiss, nós o acompanhamos até à plataforma-base do teleférico. A chuva tinha parado momentaneamente, mas o vento não. Eram quase dez da manhã. Quando atravessamos o terreiro percebemos que os caminhões Já não estavam no mesmo lugar. Também não vimos qualquer movimento de turistas ou visitantes. A explicação para o misterioso desaparecimento dos caminhões não tardaria a chegar. Os responsáveis pela Operação Eleazar tinham-nos estacionado em fila junto ao barracão que servia de abrigo às duas cabinas do teleférico. Utilizando um poderoso guindaste instalado num transporte militar, os blocos de pedra alaranjada tinham começado a ser içados e colocados sobre umas pequenas bases quadradas ou retangulares providas de rodas e que eram rapidamente introduzidas no interior de cada uma das cabinas do teleférico. Previamente, a porta de correr de cada módulo tinha sido desmontada, facilitando assim o acesso dos aparentemente pesados blocos de pedra. O local estava cercado pelo pelotão de soldados que víramos pouco antes junto dos caminhões. Os meus companheiros e eu começamos a compreender.
Um após outro uma vez carregados com os blocos, os teleféricos saíam da base, subindo em direção ao cume de Massada. Esta difícil operação - como pudemos comprovar pessoalmente no transporte do último carregamento - implicava, sem dúvida, um grande risco. Principalmente quando o vento atingia os sessenta quilômetros por hora. Nesse caso, a cabina podia chegar a balançar perigosamente. E uma queda de duzentos e sessenta e dois metros teria sido fatal. Esta circunstância obrigou a fazer muitas pausas durante o transporte dos blocos de pedra. Os militares israelitas destacados para o alto da montanha estavam constantemente a estabelecer contatos por rádio com os seus colegas na base do teleférico, informando sobre as variações dos anemocinemógrafos 1. O conhecimento preciso da intensidade e direção do vento era vital. Quando a velocidade era nula ou inferior aos sessenta quilômetros por hora, o teleférico empreendia a subida. Às treze horas, aproveitando o transporte dos últimos blocos, o primeiro grupo da equipe do Cavalo de Tróia (doze dos sessenta e um membros) embarcou nas cabinas, rumo ao topo. Eu fui com Curtiss e com três oficiais israelitas. O nosso teleférico - o vermelho – estava praticamente ocupado com a última das vinte e seis misteriosas pedras que Já tinham sido enviadas para o alto do rochedo. Nunca esquecerei aqueles momentos de tensão. Após termos feito metade dos setecentos e noventa e nove metros do percurso, o telefone do guarda-freios tocou. O militar que substituíra o vigilante e o condutor habitual do teleférico respondeu com um seco e preocupante "está bem!. Paramos!" E a cabina ficou imóvel sobre o vazio, a uns setecentos e oitenta pés de altura. Talvez a expressão imóvel não seja correta, porque as rajadas de vento começaram a assobiar entre os cabos, fazendo-nos oscilar como uma pena. Os israelitas verificaram a segurança da pedra, e ao repararem na minha palidez, sorriram zombeteiramente. Agarrado às barras horizontais de segurança, evitei olhar para o abismo, concentrando a minha atenção na escassa decoração da frágil cabina. Carga máxima: 40 mais 1 pessoa ou 2600 quilos. Não fumar. Meu Deus Os ganchos resistiriam àquela tensão? O vento sul continuava a fustigar-nos, fazendo ranger o L metálico que unia o teto do teleférico aos grossos cabos de aço. Instintivamente desviei o olhar do segundo letreiro: 262 metros: queda vertical Quem teria tido a idéia de colocar ali um aviso tão macabro?
Capacidade por hora: 640 pessoas A cabina continuava a oscilar, comprometendo o nosso precário equilíbrio. Tentei dominar o medo - porquê ocultá-lo? começando a fazer um inútil cálculo mental.
* O anemocinemógrafo ‚ um dos mais completos aparelhos usados na meteorologia para medir a velocidade e a força do vento. Costuma ser constituído por um cata-vento registrador, um anemômetro que registra o percurso do vento e um registrador de rajadas que se baseia no chamado "tubo de Pitot. (N. do M)
Se a extensão do percurso é de quase oitocentos metros e a capacidade máxima por viagem é de quarenta e uma pessoas, isso representa um total de quinze viagens por hora ou, o que é a mesma coisa, uma deslocação cada quatro minutos. Se estivermos mais ou menos a metade do caminho, ainda faltam dois minutos ou mais para pisar esse maldito cume HegemanHarris C. O. N. York Esse deve ser o fabricante, pensei. Ou serão os suíços. Tanto fazia. A única coisa que eu desejava era que o material resistisse. Sem dar por isso, estava a utilizar um dos sistemas de descompressão mental para situações de emergência, que são ensinados a todos os astronautas no Instituto da Força Aérea norte-americana em Ohio. Tratava-se, sem perder de vista o problema principal, de desviar a atenção do piloto para outros assuntos, evitando assim uma queda emocional. O general deve ter adivinhado a minha situação e os meus pensamentos. E, apontando para as fotografias de uns rapazes e um pequeno vaso com um cravo - tudo isto sobre o painel de comando do guarda-freios -, brincou com os oficiais perguntando-lhes se aquilo (propriedade, sem dúvida, de algum dos guarda-freios oficiais) também fazia parte da Operação Eleazar. Os militares israelitas aceitaram com prazer o relaxante comentário, esquecendo por alguns instantes a nossa delicada situação. A verdade é que os meticulosos israelitas corrigiram o pequeno descuido quando chegamos ao topo, fazendo desaparecer da cabina os retratos e a flor. Finalmente, o vento amainou e o toque do telefone foi para dar o esperado sinal para continuar a subida. Por volta das catorze horas - depois de agüentar dez longos minutos de violenta imobilização sobre o abismo - a cabina número dois estacionou na plataforma de embarque da montanha, a sessenta pés abaixo do topo.
Poucas vezes na minha vida desejei com tanta vontade pisar terra firme. Os engenheiros militares israelitas e o resto dos nossos amigos esperavam-nos com impaciência. E, sem qualquer demora, os técnicos desengancharam a pedra alaranjada, fazendo rodar a plataforma até ao estreito passadiço de terra entre o terminal do teleférico e a Já referida encosta avermelhada de Massada. As barreiras de ferro que habitualmente indicam os caminhos de entrada e saída dos passageiros das cabinas também tinham sido desmontadas, para facilitar a movimentação dos blocos. Fiquei perplexo. Sobre as nossas cabeças, mesmo na borda do cume, os israelitas tinham montado uma grua que, em questão de minutos, começou a içar a carga. Desta forma resolvia-se o incomodo desnível que separa o terminal da meseta propriamente dita. Ao percorrer os cento e vinte metros do estreito passadiço que sobe pela vertente oriental de Massada - o único acesso que vai da base do teleférico ao cume -, compreendi também que o transporte dos blocos por aquele passadiço de três metros de largura teria sido tão penoso quanto ineficiente. No final desse carreiro havia uma pequena casamata de cimento - que fazia as vezes de local de controle e de venda de mapas das ruínas - e que teria impedido também a passagem das pedras. Quando, finalmente, pusemos os nossos pés no cume, um misto de emoção e curiosidade se apoderou de toda a equipe. O vento continuava a fustigar aquela incrível plataforma natural, trazendo do Sul uma neblina que se arrastava lentamente pela poeira e pela terra ressequida do cume. Aquele seria, se não houvesse alterações, o nosso local de lançamento. A árida e majestosa beleza de Massada me cativaria minuto a minuto. A ocidente recortavam-se os suaves montes arredondados e os alcantilados amarelados do deserto da Judéia, milagrosamente vivos e em movimento, devido às dezenas de cascatas e ribeiros serpenteantes que, transportando a água das chuvas, corriam imparáveis em direção à margem ocidental do mar Morto. Durante a minha estada em Massada pude compreender como aqueles wadi tinham alimentado com as suas águas turbulentas as gigantescas cisternas mandadas escavar na rocha viva por Herodes, o Grande. Em frente à montanha, a uns três quilômetros para leste, as águas verde-azuladas do mar Morto refletiam aqui e ali como um espelho. Os raios do Sol conseguiam atravessar nalguns lugares as baixas nuvens negras e atingir a superfície do lago salgado em belíssimas celagens. E ao longe, à beira-mar, o oásis de Ein-Gedi.
Curtiss afastou-me destas primeiras observações. A equipe do Cavalo de Tróia Já se dirigia, na companhia do chefe do acampamento e de Bahat, o supervisor, para a zona sul da meseta. Era espantoso! Junto à grua estavam amontoados grande parte dos blocos de pedra que tinham sido transportados pelo teleférico. Vários tratores de lagartas transportavam sem interrupção os blocos pelo centro da meseta em direção a uma comprida paliçada de madeira que separava a parte sul de Massada do resto da meseta. Mas, como teriam conseguido colocar aquelas pesadas máquinas no alto do rochedo? Claro que era impossível terem subido sozinhas, e também não cabiam nos teleféricos. A explicação seria dada nessa mesma noite. A paliçada - porque era disso que realmente se tratava – fora erguida pelos israelitas com troncos grossos firmemente enterrados. Tinha a altura suficiente - uns quatro metros - para que nada do que viesse acontecendo do outro lado pudesse ser captado nas ruínas do setor norte. Ao atravessar o largo portão por onde entravam, incansáveis, os tratores, um espetáculo insólito surgiu diante dos meus olhos. À direita desse único acesso, bem junto dos restos da muralha do lado oeste de Massada, o exército israelita instalara dez grandes tendas de campanha, alinhadas em duas fileiras. A seguir a estas, também na linha da casamata herodiana, os israelitas tinham montado dois barracões. Um, a pouca distância das negras tendas quadradas, Já servia de refeitório para os técnicos e militares que, a julgar pelo que via, deviam estar há algum tempo naquele lugar. O outro, muito mais pequeno, estava situado a uns vinte metros do primeiro barracão, e praticamente encostado à chamada lagoa grande, uma das poucas ruínas arqueológicas que - como nos informou o oficial - estava dentro do triângulo isósceles que constituía o Acampamento Eleazar. Mas o que chamou logo a atenção do grupo foi uma enorme escavação - Já concluída - aberta no centro geométrico do triângulo. Tinha cinqüenta metros de comprimento por trinta de largura e dez de profundidade. Ficamos atônitos com aquela impressionante piscina. Naquele momento ainda não sabíamos se o general estava a par da enigmática e audaciosa escavação. Mas, quando nos aproximamos e vimos no fundo alguns dos blocos de pedra alaranjada, começamos a perceber a verdadeira finalidade do fosso. Outra potente grua, apoiada na borda norte da escavação, recolhia os blocos e depositava-os no leito da piscina. Tanto as paredes como o fundo tinham sido cuidadosamente consolidados e cobertos com camadas de um material isolante. No canto sudoeste, um
grupo de trabalhadores iluminava o fundo do tanque com as deslumbrantes chamas azuladas dos maçaricos. Alguns diretores do Programa trocaram comigo e com Eliseu olhares significativos, procurando uma explicação para tal obra. Mas ninguém se atreveu a formular qualquer hipótese. Nas nossas costas, ao pé da paliçada empilhavam-se centenas de sacos que, presumi, deviam conter as toneladas de terra extraídas do enorme buraco. Os oficiais israelitas, silenciosos e divertidos, deixaram-nos bisbilhotar. Após alguns minutos, Yefet, o chefe de tão estranho acampamento, convidou-nos amavelmente a ir para o refeitório. O almoço estava pronto. Ali, finalmente, tiraríamos as dúvidas. Embora o barracão não tivesse aquecimento, a comida em abundância e o vinho do Hebron serenaram depressa os ânimos, fazendo com que nos esquecêssemos, momentaneamente, da torrente de interrogações que tinham se acumulado nas nossas mentes desde que puséramos os pés em Massada. À hora do café, quando os últimos engenheiros e militares israelitas acabaram de almoçar e se voltaram para os seus trabalhos, Bahat, o supervisor, fechou a porta à chave. Desta vez foi o general Curtiss quem se dirigiu à equipe. - Sei que querem saber uma infinidade de coisas - disse ele num tom muito calmo. - Parte do material, como lhes disse, está no acampamento. A velha raposa fez uma pausa, perscrutando os nossos rostos. - Suponho que me tomarão por louco - acrescentou, aumentando intencionalmente o ar de mistério que envolvia tudo aquilo e, ao mesmo tempo, a curiosidade geral. - Aqui só há pedras, dirão vocês, grandes blocos de rocha dolomítica alaranjada. Sim e não. Seguindo um rigoroso plano israelita, dois terços dos instrumentos da estação de imagens foram transportados para o topo desta montanha, camuflados no interior dos falsos blocos de pedra. Como sabem esses caminhões e esse tipo de carga são os únicos autorizados a cruzar a fronteira com a Jordânia, chegando habitualmente até Amã. Seria difícil que alguém suspeitasse dos aparentemente maciços cubos pétreos. - Quanto ao resto do equipamento - continuou, dirigindo-se aos dois militares israelitas sentados à nossa mesa -, se não houver inconveniente, estarão aqui em cima sábado de manhã, seguindo outro tipo de via. Bahat e Yefet concordaram. - Até essa altura - continuou o chefe do Cavalo de Tróia -, a nossa missão será muito simples: esperar. Amanhã, talvez a esta mesma hora, o grupo do gerador elétrico entrará em funcionamento.
- E o que está previsto - manifestou-se o chefe do acampamento, como se procurasse a nossa indulgência. – Hoje mesmo será desembarcado. Pedimos-lhes que nos desculpem o atraso. Desembarcado? A quase mil e quatrocentos pés de altitude. Oh! Os judeus são capazes de tudo. Por isso ninguém se atreveu a perguntar nada. - A próxima e lógica pergunta - continuou Curtiss - é onde e quando será montada a estação receptora. Por razões de segurança, e seguindo igualmente as instruções do Governo de Golda, desta vez não haverá hangares ao ar livre. O general percebeu a nossa estranheza. E, pegando na sua inseparável pasta tirou um papel branco com a inconfundível estrela azul de seis pontas, emblema do Estado de Israel. Ao abrir o seu conteúdo, apareceu uma planta do acampamento Eleazar e, nela, um esquema pormenorizado do fosso que tínhamos ido ver uma hora antes. Não foram necessárias muitas explicações. Curtiss, apontando com o indicador para o centro da piscina - assim a chamaríamos na gíria do Cavalo de Tróia -, convidou-nos a dar uma olhada. A escavação, tal como tínhamos pensado, não era mais do que o local onde ficaria colocada a estação de imagens. Quase toda a metade norte do fosso (vinte dos cinqüenta metros disponíveis) receberia o grosso dos equipamentos, consoles autônomos operacionais (números 1 e 2), painéis de comando (de distribuição e alimentação elétrica), cabos telefônicos e de rádio, armários de telecomunicações e conversão digital de sinais do satélite, receptores especiais, transmissores em freqüência S, monitores de televisão, sub controladores de tempo, climatizadores e um longo etcétera. Os restantes trinta metros da piscina estavam divididos em dois setores: em todo o comprimento da parede sul (ocupando uma superfície de dois por dez metros) tinham sido colocados os laboratórios de revelação de fotografias e uma seção auxiliar de telemetria, armários para gravadores de fita magnética (para unidades de fita larga ou estreita) e impressoras ultrarápidas, capazes de ler e imprimir dados à razão de oitenta mil dígitos por minuto. O resto da faixa sul (de vinte por dois metros) aparecia como armazém de hélio. O espaço existente entre estas baterias de instrumentos encontrava-se praticamente vazio. No total, vinte e oito metros. Aquela era outra das novidades da Operação Eleazar. Este quase quadrado (vinte e oito por vinte e cinco metros) no centro da piscina seria para uma antena parabólica orientável de vinte e seis metros, capaz de seguir automaticamente o Big Bird e receber os seus sinais à distância de cem quilômetros.
* Apesar de não pretender pormenorizar aqui a sofisticada tecnologia secreta norte-americana utilizada neste tipo de instalações, posso especificar que os dois amplificadores maser da estação - de grande alcance - processam os dados com uma perfeição extraordinária. A baixa temperatura requerida por este tipo de aparelhos (69 graus centígrados abaixo de zero) obrigaria a um isolamento especial dos amplificadores no conjunto da estrutura. Cada maser funcionava em duplo canal. A suo característica fundamental era a grande capacidade do seu canal de informação que lhe permitia uma recepção de dados da ordem dos duzentos quilobits por segundo. (N. do M) Esta antena parabólica - construída com base em materiais muito leves - pode trabalhar simultaneamente próximo dos dois MHz e dos quatrocentos MHz. graças a um sub-refletor dicróico, transparente a algumas freqüências. Graças ao seu extraordinário alcance, pode aumentar um milhão de vezes a potência do transmissor, podendo ser orientadas para qualquer ponto do espaço com uma precisão de milésimos de grau. (Iv do 17)
O GSFC tinha recomendado, desde o princípio da operação, a utilização deste tipo de antenas. No entanto, por razões de espaço, não foi possível a sua utilização na mesquita da Ascensão. A verdade é que a inesperada e rapidíssima desmontagem das instalações não permitira sequer a montagem das antenas rastreadoras de varredura de fase, que deveriam substituir a aconselhada pelo Centro de Vôos Espaciais Goddard. Uma vez concluída a montagem da estação a piscina ficava fechada por meio de um engenhoso sistema - ativado elétrica ou manualmente - que ocultava o grande fosso. Os israelitas deram-nos mais pormenores a este respeito. A cobertura, que ficava recolhida no lado norte, fora desenhada como uma lâmina dupla de vidro plastificado, de grande dureza e ductilidade, que permitia a passagem dos sinais radioelétricos procedentes do Big Bird. Isto, especialmente durante as transmissões diurnas, favorecia a camuflagem da estação. No caso das recepções noturnas, a cobertura podia ser retirada, deixando à vista a superfície ocupada pela antena parabólica. Esta, pintada de preto, era praticamente invisível a qualquer avião de reconhecimento inimigo. Quando a montagem do material terminou, ficamos muito admirados. A astúcia e a meticulosidade dos israelitas levava-os ao extremo de pintarem a cobertura com a mesma cor amarelada da terra ocre que cobria
toda a meseta. Aqui e ali, com uma paciência beneditina, os engenheiros militares foram colando sobre essa cobertura um sem-fim de pedrinhas recolhidas na zona norte do cume que proporcionavam à falsa superfície um mimetismo inveJável. Quando os últimos raios de sol tingiam de vermelho o deserto da Judéia, os trabalhos no Acampamento Eleazar eram interrompidos. A falta de energia elétrica tornava difícil e perigoso o movimento dos tratores e da grua. Ainda por cima, as chuvas e o forte vento continuavam a fustigar o cume de Massada. De forma que, de comum acordo, fomos para as tendas que nos tinham sido atribuídas. Daí em diante, cada um daqueles incômodos abrigos, de dura lona preta, servia de alojamento a dez membros da suposta operação arqueológica. Com muita astúcia, os judeus fizeram com que um ou dois dos seus homens compartilhassem conosco os seus respectivos abrigos de campanha. Desta forma podiam estar a par das nossas conversas e intenções. Esta circunstância provocaria na equipe do Cavalo de Tróia alguns momentos de tensão. Contudo, soubemos resistir a esta sutil espionagem. À luz tênue da botija de gás que pendia do teto da tenda, com o ulular do vento entre as lonas, os meus pensamentos, mais uma vez, voltaram-se para Ele. Não havia dúvidas: a sua imagem e as suas palavras Já faziam parte do meu próprio ser. E uma doce melancolia foi-me invadindo. Só de vez em quando, com muito esforço, conseguia voltar à realidade. Nesses momentos, uma quantidade enorme de dúvidas obscurecia aquele estranho sentimento. Havia uma, em especial, que não me deixava conciliar o sono. Como faríamos para lançar o berço de dentro daquele fosso? A antena parabólica - embora pudesse ser desmontada - constituiria um sério obstáculo. De repente, por volta das nove horas da noite, um ensurdecedor estrondo tirou o acampamento do seu repouso forçado. Todos ao mesmo tempo os oito norte-americanos e os dois israelitas que dormíamos naquela tenda corremos para a saída. Uma inusitada agitação apoderou-se da meia centena de homens que ocupava a base naqueles momentos. No meio da escuridão e da implacável chuva, a pouco mais de dez ou vinte metros sobre as nossas cabeças, quatro potentes refletores iluminavam a extremidade sul do Acampamento Eleazar. O ruído dos motores e os piscas vermelhos e verdes fizeram-nos compreender que se tratava de dois poderosos helicópteros. Estavam em vôo estacionário entre o fosso e as escadas de pedra que davam para a cisterna subterrânea situada nas
proximidades da face sudeste de Massada. Ao nos aproximarmos, graças à extraordinária potência dos quatro focos instalados na parte de baixo dos aparelhos, vimos que dos CH-47 Chinook - helicópteros de transporte utilizados pela Marinha israelita pendiam uns containeres enormes. Pouco a pouco, seguindo as indicações do pessoal de terra, as cargas foram colocadas no solo. E, rapidamente, cumprida a missão, os Chinook apagaram os faróis, aumentaram a potência dos motores e desapareceram em direção a norte, entre as temíveis rajadas de vento e chuva. Na manhã seguinte, quando vi o peso, o volume e a natureza do material transportado, não pude deixar de admirar aqueles audazes pilotos israelitas. Encharcados até aos ossos, voltamos para as tendas, à espera do novo amanhecer com impaciência. E, na verdade, aquela sexta-feira, 23 de Fevereiro de 1973, seria um dia cheio de surpresas. A primeira surpresa chegou com o alvorecer. Perto das seis horas e quarenta e cinco minutos, depois de uma noite intranqüila, em que quase não consegui conciliar o sono, ao chegar à porta da tenda deparei com um espetáculo inesperado. Como por milagre, amplas zonas da superfície do acampamento e do resto do cume surgiram atapetadas de flores de todas as cores. Era admirável. Em poucas horas, fruto das chuvas torrenciais, a meseta estava florida, adornada com milhares de brilhantes e aromáticas flores amarelas, verdes e vermelhas. Nas partes mais baixas a tempestade deixara imensos charcos transformando o terreno num lamaçal. Apesar da aridez de Massada e dos seus arredores - com o mar Morto à direita e o deserto da Judéia à esquerda -, a realidade que surgira diante dos meus olhos só vinha confirmar as palavras de Flávio Josefo quando, mil e novecentos anos antes, descreveu estas salvadoras chuvas.
*1 Segundo os dados do Serviço Meteorológico de Israel - que tão valiosas informações prestaria à missão - a média dos dias com sol na região de Massada e Sodoma, ao sul do mar Morto, é de vinte e seis dias para Fevereiro e trinta e um para Março. Este fato levara os eruditos a contínuas polêmicas em torno das afirmações do historiador F. Josefo em relação às chuvas sobre Massada. Josefo refere, por exemplo, que antes do reinado de Herodes, o Grande, José e outros membros da sua família se refugiaram nesse cume. Resistindo às tropas dos últimos Asmonianos e seus aliados - os Partos - estavam a ponto de morrer de sede quando, de repente, os céus se abriram e as cisternas de Massada se encheram de água. E José e os seus, diz Flávio
Josefo, salvaram-se. Mas, como anteriormente Yigael Yadin pudemos confirmar a veracidade dos textos do judeu romanizado. (N. do M)
A segunda surpresa ocorreu ao entrar no barracão preparado para os banhos e higiene em geral. Como Já comentei, tinha sido construído quase parede-meia com a peça retangular conhecida por lagoa grande. Aquele foi outro dos múltiplos pormenores de que eu não percebera durante o primeiro dia no acampamento. Além da falta de energia elétrica no alto do rochedo, uma das principais dores de cabeça, no momento de preparar a colocação da estação receptora de imagens, foi a ausência de água. Certamente, segundo nos iriam explicando os técnicos israelitas, ambos os problemas podiam ter sido resolvidos - sempre de forma incompleta - indo buscar a água nas instalações situadas no lado oriental da montanha, no local do fumicular. Mas isso, com as quilométricas extensões de cabos e canalizações, tornava-se tão complicado quanto escandaloso. Além disso, o fornecimento de energia elétrica seria claramente insuficiente para o elevado consumo da estação. Daí o Governo israelita decidiu, depois de estudar exaustivamente os dois assuntos, pelo transporte até ao alto de Massada de um conjunto de geradores resolvendo o segundo obstáculo - o da água - de uma forma semelhante à das expedições de Yadin nos anos de 1963 a 1965. A umas quatro milhas a oeste da montanha existia uma rede de canalizações que tinha sido propriedade da companhia Nafta Oil e que fora utilizada, na época na (Companhia Nacional da Água) também do exército israelita a Mekha. Foi instalada uma canalização mais estreita, que resolveu os problemas de Yadin, e agora, oito anos depois, os nossos. Esta canalização ia até ao alto de Massada, paralelamente à rampa romana. No lugar onde terminava - na extremidade noroeste - os engenheiros ligaram várias centenas de metros de novos tubos, escondidos no piso de terra da casamata ou da muralha de duplo muro que se estende ao longo da face oeste da meseta. Ao mesmo tempo, o interior da lagoa grande tinha sido aproveitado para a montagem de depósitos com capacidade para cento e vinte mil litros. Por último, os israelitas os tinham camuflado cobrindo a lagoa grande com canas. Dessa forma, o fornecimento de água potável ao acampamento e aos complexos sistemas de refrigeração ou alimentação do equipamentos estava assegurado. (Na hipótese de uma avaria, o tanque escondido entre as paredes retangulares da lagoa podia satisfazer as necessidades da
estação - sempre prioritária - durante seis ou sete dias) Concluído o pequeno-almoço, Curtiss e o resto da equipe ofereceramse para colaborar com os técnicos israelitas nas tarefas que estes julgassem oportunas. Mas Yefet, depois de agradecer a nossa sincera e excelente disposição, não aceitou argumentando que não eram aquelas as ordens. O Sol pairava, sobre as colinas azuis de Moab, rumo a um céu transparente. O vento havia cessado e o dia, finalmente, parecia apresentar-se ameno e aprazível. Alguns minutos antes do pequeno-almoço, os oficiais destacados para a base do teleférico tinham estabelecido contato pelo rádio com o acampamento, informando o general sobre as razões do atraso da meia centena de homens que completava a expedição do Cavalo de Tróia e que, segundo Curtiss, deveria ter chegado a Massada na noite anterior. Ao que parecia, a camioneta que os transportava desde Jerusalém tinha sido obrigada a regressar, devido aos cortes na estrada. A sua chegada ao acampamento Eleazar, concluíram os militares, seria ainda de manhã. Naquela altura nós ainda não conhecíamos as más novas que nos trariam aqueles compatriotas e companheiros. Já que não tínhamos obrigações, cada qual dedicou-se ao que achou mais conveniente. Curtiss e vários diretores fecharam-se na tenda que fazia as vezes de estação de rádio e os outros optaram por descansar ou andar a ver o alto do rochedo, sempre sob a discreta vigilância de alguns israelitas, que se ofereceram, com muito prazer, como improvisados guias turísticos. Eliseu e eu, de comum acordo, ocupamos grande parte da manhã num minucioso reconhecimento do perfil e da topografia do triângulo que formava a nossa base. Desde o amanhecer que o acampamento tinha recuperado o seu intenso ritmo de trabalho. Os tratores de lagartas, levados para o alto da meseta pelos helicópteros, continuavam no transporte febril das pedras alaranjadas, que eram colocadas pela grua no fundo da piscina. Grande parte dos engenheiros e técnicos israelitas dedicava todo o seu esforço e atenção aos dois gigantescos containeres de aço baixados pelos Chinook. Um deles continha um potente equipamento, de geração contínua, perfeitamente desmontado. Tratava-se do coração do acampamento. Sem aquele gerador de corrente elétrica tudo teria sido inútil. Os israelitas sabiam disso e se apressaram em retirá-lo da superfície do rochedo, transportando o motor, o alternador, a base, o painel de comandos, os sistemas de filtragem, etc, para o fundo da cisterna subterrânea. Até nisto tiveram sorte os israelitas e, indiretamente, o Cavalo
de Tróia. A localização do gerador tinha sido um problema difícil. Por elementares razões de segurança não podia ficar à vista nem ser colocado na piscina, junto dos delicados instrumentos da estação receptora. As constantes vibrações, bem como o ruído do motor, teriam interferido no equipamento e causado uma série de inconvenientes desnecessários. Por isso, ao estudar o solo e a configuração da zona sul da meseta, os peritos não hesitaram em escolher a cisterna subterrânea como o esconderijo ideal para o gerador e para o correspondente tanque diário de gasóleo. A gigantesca cisterna - escavada na rocha por Herodes, o Grande - tem uma capacidade de cento e quarenta mil pés cúbicos. Trata-se de uma formidável sala de oito metros de altura, à qual se tem acesso por escadas igualmente conquistadas à rocha. Para lá, foi transportado e montado o flamante gerador - tipo dezesseis cilindros (V), da série 149, fabricado pela General Motors - com uma potência de mil e duzentos KVA ou mil e trezentos HP e uma voltagem de saída de trinta mil volts. (Com semelhante monstro teria sido possível alimentar as principais instalações de um aeroporto de tipo Médio) Foi assombroso. Aquelas dez toneladas - em seco, isto é, sem a água e sem o óleo - ficaram montadas e prontas a entrar em funcionamento em vinte e quatro horas. A perícia dos engenheiros, em especial na altura da operação decisiva de alinhamento do motor e do alternador, foi total. Por último, um feixe de cabos, enterrados a um metro de profundidade e cuidadosamente isolados, foi estendido ao longo do acampamento, pronto para dar vida aos diferentes serviços. Aproveitando duas grandes aberturas no teto da cisterna subterrânea - pelas quais penetrava outrora a água, e visíveis sobre a escarpa sudeste da montanha -, os especialistas israelitas montaram também um poderoso sistema de extratores e ventiladores, proporcionando assim uma contínua e excelente renovação do ar. Embora o Charlie - assim batizamos o gerador - quase não soltasse fumaça, tanto os tubos de saída de gases como o resto do complexo de ventilação foram equipados com finas grelhas de filtragem. Se chegasse a haver uma fuga de vapor ou de qualquer fonte de calor um hipotético inimigo saberia que algo anormal estava acontecendo nas entranhas de Massada. O segundo container depositado pelos helicópteros no acampamento Eleazar era de idêntica importância. Continha cerca de trezentas e
cinqüenta chapas de aço, de um metro de largura cada uma, destinadas à construção dos dois depósitos de combustível do equipamento eletrógeno. Charlie consumia cerca de cento e sessenta gramas de gasóleo por cavalo-hora. Isso exigia a presença de um tanque com uma capacidade mínima de 5420 litros por dia. (Este foi o consumo diário Médio do gerador) Como era lógico, tornava-se mais prático, rentável e seguro instalar na rocha um tanque de fornecimento ou armazenamento do que efetuar todos os dias o correspondente transporte de combustível. Uma operação que, dada a localização de Massada só podia ser efetuada com rapidez e comodidade pelo ar. Neste sentido, os helicópteros-cisterna do exército de Israel desempenhariam um papel de destaque. Uma vez por mês, vários daqueles gigantescos Sikorsky S-64 (tipo CH-54 Tarhe), previamente modificados, voavam durante a noite até ao acampamento enchendo o tanque de reserva. 162 600 metros cúbicos. Este segundo depósito - com cinco metros de largura, quinze de comprimento e três de altura - foi montado numa das grutas que se alinhavam no Já referido alcantilado sudeste da montanha, muito perto da cisterna subterrânea 2. Com a ajuda da grua e de cordas, os israelitas, numa verdadeira demonstração de alpinismo, foram transportando as peças de aço desde o topo até à entrada da gruta natural, pondo em risco a própria vida num alcantilado com mais de mil pés de altura.
* Este tipo de geradores consome, em média, 14? m de ar por minuto, só para a combustão do motor (este trabalha à razão de sessenta ciclos). Por outro lado, a refrigeração do radiador exige 2349 m de ar, também por minuto. Todo o conjunto emite um calor equivalente a 189 KW por minuto. (N. do M) 2 Neste alcantilado sudeste de Massada, muito perto da casamata, pode ver-se uma fileira de grutas. Na que se situa no extremo sul - a mais pequena de todas -, as expedições arqueológicas de Yadin encontraram os esqueletos de vinte e cinco seres humanos. Provavelmente, zelotas autoimolados naquela histórica noite. Entre os esqueletos havia fragmentos de tecidos e bocados de pano. Segundo o doutor N. Hass, da Faculdade de Medicina da Universidade Hebraica. aqueles ossos eram de catorze homens, seis mulheres e, o resto, de crianças. Com quase toda a certeza, defensores de Massada. Esta circunstância, ainda que incrível, condicionou muito a operação. Apesar de os arqueólogos de Yadin terem examinado as outras grutas, não encontrando
novos esqueletos, antes de profanar uma daquelas grutas com o depósito de gasóleo, os israelitas fizeram uma revisão exaustiva da caverna em questão, com o fim de se certificarem de que, de fato, nenhuma guardava ainda vestígios dos seus heróis nacionais. (N. do M)
Creio que nunca lhes agradeceremos bastante. Na manhã de sábado, uma vez concluída a operação de junção e soldagem do tanque, os engenheiros deixaram em condições as bombas para a mudança do líquido, unindo os dois depósitos - o de reserva e o diário - com uns tubos que foram colocados e camuflados na parede sudeste de Massada. A conduta penetrava na cisterna subterrânea através de um dos orifícios de ventilação. Os meus conhecimentos sobre a história de Massada, dos seus edifícios e dos castros romanos que a rodeiam - tudo isso fruto da documentação proporcionada pelo general -mostrariam-se muito úteis quando, seguindo o nosso plano de reconhecimento do terreno, nos dirigimos para norte da meseta. O meu irmão e eu ficamos admirados com a audácia e beleza do Palácio do Norte, com os seus três terraços em socalcos. E sentimos uma emoção especial ao percorrer o labirinto formado pelas ruínas dos armazéns construídos por Herodes e que serviram de despensa aos heróicos zelotas. Assomando àquela espécie de proa, no ponto mais alto de Massada, compreendi por que motivo o rei Herodes tinha construído, precisamente ali, o seu palácio suspenso. Aquele vértice do grande rochedo - em especial os terraços central e inferior - ‚ o único ponto resguardado do ardente sol e dos temíveis ventos de sul, que, às vezes, ultrapassam as sessenta milhas por hora. Se não fosse este compacto complexo de ruínas (palácios, armazéns, balneários, edifícios administrativos, postos de guarda, etc), o acampamento Eleazar, explicou-nos um dos inseparáveis guias, teria sido instalado aqui mesmo. Os incômodos ventos de sul e sudoeste, tão freqüentes em Massada, iriam ser um autêntico pesadelo para os homens do Cavalo de Tróia; sobretudo nos minutos decisivos da decolagem e posterior descida do módulo. (Espero que Deus me conceda as forças suficientes para chegar a esse ponto deste relato) Nos estudos meteorológicos da estação de Kalya, a norte do mar Morto, as estatísticas elaboradas com base nos dados recolhidos em 1972 pelos três centros de observação indicavam, no
entanto, para o mês de Fevereiro, uma freqüência e intensidade dos ventos relativamente baixas ou suportáveis: a estação número vinte apontava uma percentagem de 189 para o vento sul e só 40% para o vento sudoeste. Por seu lado, as estações números vinte e um e vinte e dois fixavam - para os mesmos ventos - índices de 189 e 79 e de 147 e 56, respectivamente. Nos três casos, as velocidades dos referidos ventos oscilavam entre os doze e os dezenove quilômetros por hora. Só as estações vinte e vinte e um‚ que previam ventos entre cinqüenta e sessenta e um quilômetros por hora, mas numa percentagem muito baixa (01). Naturalmente, a parte mais alta de Massada encontra-se a mais de mil pés de altitude e Isso notava-se. Mas o lugar que mais nos impressionou - talvez por se conservar tal como o deixaram os legionários de Silva - foi a rampa de terra batida que se eleva desde a base até quase tocar a orla noroeste da meseta. Aquele reduto de assalto é sem dúvida alguma, uma das estruturas ou fórmulas de assédio do exército romano mais interessante do Mundo. A verdade é que se encontra francamente bem conservada.
* Por não existir estação meteorológica em Massada, os dados foram fornecidos pela de Kalya Alef. Os seus três observatórios situam-se a 395, 270 e 60 metros abaixo do nível do mar, respectivamente. (N. do N)
A brancura da rampa - cuja terra foi extraída do chamado promontório branco, justamente onde ela se inicia - ‚ deslumbrante. Durante alguns minutos, ficamos ali, pasmados e absortos perante a visão da rampa e do acampamento de Flávio Silva. Agora, mil e novecentos anos depois daquela luta pela soberania e liberdade de um povo, o Estado de Israel tinha voltado a Massada, precisamente, para velar por essa segurança. O nosso passeio pelas ruínas de Massada foi agradavelmente interrompido quando, no meio da manhã os teleféricos conduziram para o topo os últimos cinqüenta especialistas do Cavalo de Tróia. Tal como fizera conosco, Curtiss tinha-os posto a par de alguns pormenores da missão secreta. E todos, como era previsível, se mostraram entusiasmados com aquela segunda tentativa. A sua permanência no Acampamento Eleazar foi, por isso mesmo, tão discreta e eficaz como seria de esperar. Mas aqueles amigos não eram precisamente portadores de boas notícias. A pedido de Curtiss tinham reunido uma ampla seleção de jornais internacionais daqueles dias. Tanto o general como o resto do grupo intuiu
que a recente queda do Boeing 727 líbio na península do Sinai podia trazer péssimas conseqüências para o deteriorado panorama político do Oriente Médio. Não nos enganamos. Os comentários e as reações de metade do mundo foram unânimes: o metralhamento do avião de passageiros e a morte de cento e quatro ocupantes foram condenados sem atenuantes. Os países árabes manifestaram-se especialmente agressivos, aquecendo ainda mais a atmosfera de pré-guerra para com o seu vizinho Israel. A leitura daqueles jornais ingleses, norte-americanos e egípcios encheu-nos de confusão e incerteza. Os jornais do Cairo, por exemplo, qualificavam o fato de assassínio premeditado e de um novo e bárbaro crime contra civis árabes. O jornal egípcio Al Ahram transcrevia também as declarações de um porta-voz do Governo de Sadat, nas quais, entre outras coisas, assegurava que o sionismo israelita, que vive da agressão, da usurpação e do delito, pagar caro esta ação e receber o justo castigo, das mãos dos Árabes.
* Nos escritos de Flávio Josefo lê-se, em relação a esta rampa: Que o general romano Silva tinha construído uma muralha no exterior, à volta de todo este lugar, como o dissemos anteriormente, e de tal forma tinha construído uma proteção tão adequada para evitar que qualquer dos sitiados fugisse, que se dedicou ao assédio propriamente dito, embora encontrasse apenas um único lugar onde era possível construir a rampa que projetara, porque por trás daquela torre que protegia o caminho do palácio e até ao topo da colina pela parte ocidental, havia uma grande saliência da rocha, muito larga e proeminente, e apenas trezentos côvados (quinhentos pés) sob a parte mais elevada de Massada. Era chamado o "promontório branco". Portanto, fixou-se naquele lugar da rocha e ordenou aos soldados que trouxessem terra, e quando se aplicou a esta tarefa com ardor grande quantidade deles, levantou-se a rampa que era sólida, de duzentos côvados (trezentos pés) de altura e, no entanto, não se considerou essa rampa suficientemente alta para o uso das máquinas de guerra que deviam instalar-se ali e elevou-se sobre esta rampa outra, alta e grande, feita de grandes pedras unidas, medindo cinqüenta côvados, tanto de altura como de largura" (N. do M)
Por seu lado, os mais prestigiados jornais de Nova Iorque e Washington pronunciavam-se nos seguintes termos: A incursão israelita no Líbano e a queda de um avião de passageiros no Sinai desencadearam no
mercado de valores de Nova Iorque o medo de que a situação no Oriente Médio se agrave. O que provocou uma queda brusca dos preços dos títulos. Nixon e o secretário de Estado norte-americano, William P. Rogers, enviaram mensagens de condolências a Muamar Kadhafi e ao presidente do Egito Dino Sinai, The Times afirmava num editorial intitulado Tragédia, o incidente não era só mais um infeliz ato de guerra, mas uma matança irrefletida de civis. E, como tal, injustificada, senão mesmo premeditada. O Daily Telegraph qualificava a ação israelita de brutal, garantindo que a matança de civis representava um duro golpe nas tentativas de Nixon para conseguir um acordo sobre o canal do Suez. Por último, porque a lista seria interminável, o Financial Times escrevia: Depois de um período de cinco anos de "nem paz nem guerra", Israel não quer arriscar-se a negociar um verdadeiro acordo de paz Em tudo aquilo, no entanto, havia qualquer coisa estranha. Por mais que voltássemos a folhear os jornais. em nenhum encontramos uma única reação ou declaração do veemente coronel Kadhafi. O Boeing abatido era do seu país e, além disso, cinqüenta e cinco dos cento e quatro passageiros mortos eram líbios. Porque mantinha um mutismo tão invulgar? Seria que tinha alguma coisa a ocultar da opinião pública? Porque teria desviado o avião centenas de milhas das duas rotas de vôo habituais do Bahrein, nos Emirados Árabes, para o seu aeroporto de destino, em Alexandria. Naquele momento não dispúnhamos dos dados meteorológicos da zona relativos ao dia 21 de Fevereiro - data do acidente -, mas parecia-nos difícil acreditar que as más condições climáticas (razão alegada a princípio pela imprensa judaica) tivessem forçado o Boeing a violar o espaço aéreo de Israel, e justamente sobre uma zona militar. Era, pelo menos, suspeito. As tímidas e escassas notícias procedentes de Telavive também não projetaram muita luz sobre o que tinha acontecido na zona central do Sinai. Numa conferência de imprensa realizada no Cairo, os jornalistas garantiram ter ouvido a voz do comandante do Boeing 727 gritando: Estão disparando contra nós! Estão disparando de um caça! Naturalmente, como era de esperar, a imprensa israelita acusava o piloto de ter desobedecido às ordens dos interceptores. O co-piloto, Jean Pierre Hure, um dos sete sobreviventes, garantiu que estavam aterrorizados e que não seguiram as instruções dos caças israelitas, optando por fugir.
Poucas horas depois do incidente, o chefe supremo da Força Aérea israelita, general Mordekai Hod, e dois pilotos dos Phantom, cujos nomes não foram revelados, realizaram outra conferência de imprensa a fim de darem informações sobre o gravíssimo assunto. Segundo estes militares israelitas, fizeram-se esforços desesperados para obrigar o Boeing a aterrissar. Um dos caças até se aproximou o suficiente para fazer sinais com as mãos à tripulação do avião líbio para que aterrissasse. Mas o 727 fugiu, informaram os oficiais israelitas, para evitar um conflito diplomático. Mais tarde, a própria imprensa de Israel lançaria outra explicação não menos estranha: Receavam que o Boeing fosse a Telavive em missão de sabotagem e ainda que, de fato, as ameaças dos guerrilheiros de bombardear aquela cidade fossem reais, no fundo, ninguém acreditou em nenhuma das justificativas. Nem nas israelitas nem nas árabes.
* As rotas comerciais do vôo de Bahrein para Alexandria, no Egito, seguem, habitualmente, as seguintes direções: uma para Damasco e, dali, sobrevoando o Sul de Beirute e águas internacionais do Mediterrâneo, para Alexandria. A segunda rota atravessa a Arábia Saudita, sobre Buraida e norte de Medina, até entrar no Egito. Ao norte de Assuão, os aviões giram noventa graus, na direção de Alexandria. O Sinai encontra-se na bissetriz de ambas as rotas. (N. do M)
Dias mais tarde, após o seu regresso dos Estados Unidos, Curtiss nos informaria acerca da verdadeira razão daquele lamentável acontecimento. Uma causa que era de fato suficientemente grave para os israelitas e que eles jamais admitiriam oficialmente. Nada digno de menção aconteceria Já naquela sexta-feira, 23 de Fevereiro. A equipe, inquieta devido aos acontecimentos, fazia a si própria milhares de perguntas. Mas, para Já todas continuavam sem resposta. Em que medida o envenenamento das relações israelo-árabes poderia vir a afetar a evolução da nossa missão? Se tudo acabasse em novas hostilidades ou, o que seria pior, numa quarta guerra, que papel iria desempenhar aquela meia centena de norte-americanos, perdida no alto de uma montanha solitária? Ao entardecer, pouco antes dos teleféricos deixarem de funcionar, submetendo-nos assim a um forçado isolamento, Curtiss conseguiu rodearse de vários dos seus diretores do Projeto e, num aprazível passeio pelas ruínas do setor norte - desta vez sem guias nem israelitas intrusos ditou as
instruções para o dia seguinte, sábado: - Devemos estar atentos à chegada do resto dos equipamentos. Uma vez no alto da meseta, o Cavalo de Tróia porá em andamento a fase verde da operação. Esta fase, como assinalei, consistia, fundamentalmente, no processo de montagem da estação e, a partir de um determinado momento, do berço. Esta última parte da fase verde sofrera substanciais modificações em relação à operação gêmea da mesquita da Ascensão, no topo do monte das Oliveiras. A configuração especial da piscina e do Acampamento Eleazar exigia outro tipo de tática para manter os israelitas afastados durante o processo de montagem dos scanners ópticos e dos restantes instrumentos secretos. O trato inicial de Curtiss com o Governo de Golda Meir, segundo o qual o pessoal israelita deveria abandonar a estação enquanto durassem os trabalhos secretos, continuava em vigor. Mas ninguém estava a par da argúcia planejada por Curtiss. Quando um dos diretores mostrou interesse pela vara de Moisés e pelo imprescindível combustível para o módulo - em especial pela forma escolhida para o levar clandestinamente para Massada -, o general limitouse a repetir: - Calma. Tudo está previsto. O pôr do sol pôs um ponto final no trabalho febril dos israelitas. Excepcionalmente, dada a urgência e natureza da Operação Eleazar, os turnos de montagem do Charlie e do tanque de armazenamento foram libertos da sagrada obrigação de guardar o sábado. Apoiados por grandes holofotes alimentados a gás, os técnicos encerrados na cisterna subterrânea e na gruta prosseguiram nas suas tarefas durante toda a noite. O resto do acampamento ficou mergulhado numa quase total escuridão, apenas interrompida pelos fracos candeeiros instalados no interior das tendas e do refeitório. Por razões óbvias de segurança o exército tinha proibido a utilização de focos na superfície da meseta. Nem mesmo quando o gerador de eletricidade entrou em funcionamento se quebrou esta norma rigorosa. A integridade física da estação e da centena de homens que compunha o acampamento assim o exigia. Éramos uma simples e pacífica expedição arqueológica e, por conseguinte, a presença de focos no triângulo sul de Massada só teria servido para levantar suspeitas. Na manhã do dia seguinte. quando nos preparávamos para tomar o pequeno almoço, notamos a falta de Curtiss e de vários oficiais-chefes do acampamento. Bahat, adivinhando as nossas perguntas, convidou-nos a
olhar à ponta oriental do rochedo. Para lá nos encaminhamos, cheios de uma enorme curiosidade. Sinceramente, naqueles momentos ninguém se lembrava das palavras do general acerca da chegada do último terço do material. No portão de entrada do chamado caminho de serpente ou das víboras - um sinuoso e estreitíssimo carreiro que sobe até ao alto de Massada pela sua vertente oriental - surgiu diante de nós uma visão difícil de esquecer: muito perto da base do teleférico, ocupando praticamente o terreno contíguo, agrupava-se uma grande manada de camelos ou de dromedários (daquela distância era difícil ter certeza). O grupo entrou numa grande polêmica acerca das possíveis razões da presença daquela caravana de animais do deserto em Massada, será que o carregamento tinha vindo em cima daqueles animais? E se fosse, porquê? O debate terminou com a chegada de alguns militares israelitas. Reclamavam a nossa presença na estação de rádio. Alguns minutos mais tarde, cerca de vinte homens do Cavalo de Tróia embarcavam no teleférico, rumo às instalações da base. O insólito espetáculo multicor que nos aguardava no sopé do rochedo deixou-nos sem fala. Curtiss e várias dezenas de israelitas empenhavam-se na descarga de uma série de enormes volumes, ajudados continuamente pelos membros daquela caravana beduíno. Cerca de quarenta ou cinqüenta dromedários - os famosos barcos do deserto - encostavam-se, nervosos, à plataforma do teleférico. Das suas gibas pendiam - de ambos os flancos - fardos amarrados que continham arcas, utensílios domésticos e até pequenos cordeiros. A alguma distância, entre as dunas, permaneciam outros seis ou oito animais, com grandes baldaquinos descobertos, onde se viam mulheres e crianças.
* Este caminho escarpado nasce praticamente no sopé da montanha, a uns mil e duzentos pés do topo. Caminhando depressa demora-se de quarenta a cinqüenta minutos - se não mais - para percorrê-lo. As suas pedras escalonadas foram dramaticamente descritas por Flávio Josefo. Os Israelitas desaconselharam o seu uso para o transporte do material até ao topo do planalto. (N. do M)
Os nômades, vestidos com grandes albornozes negros de lã, sem mangas, e com as cabeças cobertas com gorros de pêlo de camelo e vistosos mantos vermelhos e brancos, desenganchavam os canastros, que eram imediatamente transportados para o interior das cabinas do teleférico.
Por um momento perguntei-me para que precisaríamos nós no acampamento de todos aqueles objetos, incluindo os carneiros. Os beduínos tinham obrigado os dromedários a ajoelharem-se, mantendo-os nesta posição mais acessível com uma corda que unia as cabeças dos animais a um ou a ambos os joelhos. Concluída a operação, os dromedários foram desatados e um dos voluntários árabes - o que parecia o xeque ou chefe da tribo - despediu-se do oficial mais graduado com um seco Salaam aleikum (A paz esteja contigo). O israelita correspondeu com outra ligeira inclinação de cabeça, respondendo Aleikum as salaam (Que contigo seja). Beduínos e dromedários tomaram a direção das dunas, juntando-se ao grupo das mulheres. Sentia-me tão fascinado por aqueles incríveis exemplares humanos que, de volta ao rochedo, quase nem prestei atenção às explicações do general sobre os fardos que acabavam de ser descarregados e sobre a sua insólita viagem. Ao que parecia, se bem me lembro, três dias antes, a caravana se encarregara do último terço do material, perfeitamente camuflado nos fardos. Recolheram o carregamento na noite do dia 21, quarta-feira, num ponto a noroeste de Qumrân, em pleno deserto da Judéia. Aquela zona era freqüentada desde tempos imemoriais pelas caravanas de beduínos que iam e vinham da Arábia. Muitas destas tribos traficavam armas ou trocavam vinho por mulheres, atravessando livremente a fronteira da atual Jordânia. Suponho que aquela tribo ou clã dos nobres shammar aceitara por um alto preço a missão de transportar até Massada aquilo que, oficial e aparentemente, era apenas um prosaico conjunto de vasilhas e outros utensílios domésticos. necessários em qualquer acampamento. Os beduínos fizeram-se surdos e mudos perante a generosa recompensa dos israelitas. Na verdade, o plano dos serviços secretos judaicos funcionou perfeitamente. Quem podia ter imaginado que entre os fardos daquela austera caravana viajava um sofisticado equipamento de recepção de imagens via satélite? Sempre longe das estradas e dos centros populacionais, os shammar tinham caminhado durante a noite - descansando de dia - por uma complicada rede de aziagas e veredas, em pleno deserto, que conheciam e percorriam há séculos. Mas a missão dos beduínos ainda não tinha acabado. Naquele meio dia, correspondendo a um convite do xeque da tribo para participar no
sempre complexo ritual da preparação e degustação do café, Curtiss teria a oportunidade de forjar um novo e astuto plano. Um estratagema que nos cobriria as costas no momento crítico do lançamento do módulo.
* Os shammar constituem uma das mais nobres e antigas tribos beduínas da Arábia Setentrional. Subdivide-se em quatro grandes facções tribais: os abde, os singiara, os aslam e os tuman. Os shammar consideram-se qathanitas, isto é, descendentes de Qathar. Este, juntamente com o mítico Ismael‚ reconhecido como um dos fundadores de várias estirpes do povo muçulmano. Supõe-se que os shammar se estabeleceram na região compreendida entre o Yébel Aeia e o Yéhel Selma a sul e o terrível deserto do Grande Siefud, a norte. (N. do M)
Aquele trabalho foi bem-vindo. O isolamento no alto do nosso portaaviões de pedra, sem energia elétrica nem distração alguma e com meia centena de homens, de braços cruzados, começava a preocupar-nos. Por isso, o grupo do Cavalo de Tróia ofereceu-se, espontânea e voluntariamente, para transportar os fardos e os depositar - com o resto dos blocos cor de laranja - no fundo da piscina. Oficialmente, a fase verde acabava de ser inaugurada. Curtiss forjava qualquer coisa no seu cérebro, pediu-nos que separássemos meia dúzia de carneiros. E o pessoal o fez com satisfação, prendendo-os a uma das cordas da tenda do general. Alguns rapazes, com pena dos lastimosos balidos dos frágeis cordeiros, armaram-se em improvisadas amas-de-leite esgotando as reservas de leite da cozinha. A verdade é que os cozinheiros israelitas não ficaram zangados. Ali, o que menos faltava era comida e aborrecimento. (Todas as manhãs, pontual e religiosamente, o teleférico abastecia-nos de pão fresco, de leite e dos alimentos que começavam a escassear nas despensas do barracão). Por volta das duas horas da tarde, o general pegou nos seis cordeirinhos e, acompanhado por Bahat o supervisor, cruzou o portão da paliçada em direção à plataforma do teleférico. O paciente Curtiss encarou com bom humor as gracinhas de judeus e norte-americanos, divertidos perante a pouco habitual cena de um general da USAF pastoreando um rebanho. Quando perguntei a Eliseu qual seria a intenção do chefe da operação, o meu irmão encolheu os ombros. Ninguém no Acampamento Eleazar tinha a menor idéia do motivo que o levara a preocupar-se com os animais. A possível explicação devia estar dentro da grande tenda negra de pele de
cabra que naquela mesma manhã os shammar tinham montado nas amarelentas dunas que se estendem a nordeste da montanha à distância de uma pedrada das ruínas do acampamento romano B. Era evidente que os beduínos tinham a intenção de permanecer naquele lugar, pelo menos durante algum tempo. Mas esta circunstância não parecia inquietar os militares israelitas. De qualquer forma, nos enganamos quando demos como certo que, ao regressar ao topo da montanha, Curtiss nos desvendaria o mistério. Entre outras razões, porque o general não voltaria a Massada.
* O plano do cerco de Massada pelo general romano Silva, compreendia a construção de uma muralha que desse a volta ao monte, assim como o levantamento de oito acampamentos para cerca de quinze mil homens. Estes castros, conservam-se em tão bom estado que, observados do topo ou de avião, parecem como se acabassem de ser abandonados. Foram montados dois acampamentos grandes - o 8, e o F - e outros seis mais pequenos. O primeiro, a leste de Massada, e o F, a oeste. Ambos se encontram fora da muralha de obstáculos e são quase gêmeos, tanto em dimensões - cento e quarenta por cento e oitenta jardas o B" e cento e trinta por cento e sessenta o F, - como na sua planificação. Metade do grosso da X Legião (fretensis) alojou-se no "B, e o resto no F. Este último acampamento, segundo Josefo, foi o quartel-general de Silva durante o cerco. (N. do M)
Pelas quatro horas dessa tarde de sábado, o teleférico trouxe Bahat para a meseta. Vinha com o encargo de recolher os poucos objetos pessoais do general e levá-los rapidamente para a plataforma da base. O supervisor foi muito sóbrio nas explicações. Um carro oficial aguardava Curtiss. Tinha sido chamado com urgência à embaixada dos Estados Unidos. Algumas horas mais tarde, os oficiais encarregados do rádio receberiam uma comunicação do próprio general. Encontrava-se em Telavive pronto para decolar para os Estados Unidos. Tudo aquilo deixou os homens do Cavalo de Tróia abatidos. Nos planos do chefe da operação - pelo menos que nós soubéssemos - não figurava aquela viagem repentina. Que estaria acontecendo? As últimas palavras da mensagem de Curtiss, no entanto, pareciam tranqüilizadoras: “ Comecem sem mim. Regressarei a tempo”. O resto do dia passou quase sem percebermos. Os homens refugiaram
se nas tendas ou no refeitório, discutindo e polemizando sobre tão inesperada partida. Já tinha anoitecido quando as acaloradas discussões foram momentaneamente interrompidas pela presença dos Sikorsky no cume. De acordo com o programa previsto pelos israelitas, uma vez concluída a montagem dos depósitos de combustível, estes seriam cheios durante duas noites consecutivas: as de sábado e domingo. Para a maior parte do acampamento, aquela transferência do gasóleo foi um dos piores suplícios de toda a operação. Por razões de segurança, os gigantescos helicópteros-grua israelitas - em cujos bojos tinham sido colocados tanques de dez toneladas cada um - só podiam sobrevoar Massada em plena escuridão e, se possível, sem luzes. O troar dos motores principais, com as suas seis pás, foi, como digo um pesadelo. De hora a hora, pontuais como relógios, um par de Sikorsky aterrava na orla sudeste do triângulo para esvaziar os seus depósitos. Foi inútil tentar dormir. Impacientes por verificar o bom funcionamento do gerador, os israelitas depois de atestado o tanque diário com os cinco mil e quinhentos litros - ligaram o Charlie. Os sistemas responderam com perfeição e os técnicos, como é lógico, felicitaram-se mutuamente. Por volta das cinco da madrugada de segunda-feira, 26 de Fevereiro, o último S-64 descolava do topo da meseta, afastando-se na direção sul: para a base de Etzion. O trabalhoso armazenamento de quase cento e setenta mil litros de combustível havia terminado. Um mês depois, se tudo corresse bem, os helicópteros repetiriam a operação de encher o tanque de armazenamento. Mas antes, muito antes, se dariam outros acontecimentos. Muito antes do amanhecer de domingo, 25 de Fevereiro mais de metade do Acampamento Eleazar Já estava de pé, despertado pelo incessante ruído dos helicópteros. De comum acordo, apesar dos rostos dos homens denotarem um profundo cansaço como conseqüência de uma noite de vigília, os oficiais israelitas e os diretores do Cavalo de Tróia escolheram aquela mesma manhã para o início da montagem da estação receptora de imagens. No entanto, a maior parte do dia foi dedicado a trabalhos preliminares, à abertura dos falsos blocos de pedra e dos fardos e, muito especialmente, a uma série exaustiva de provas do fecho elétrico que devia cobrir a piscina. Quando os técnicos de ambos os lados se consideraram satisfeitos, o teto, da futura estação foi fechado, dando-se
início aos trabalhos prévios de desembalagem. Israelitas e norte-americanos, lado a lado, nos empenhamos com ardor naquilo que, para as duas partes, significava uma missão de importância vital. Para eles num sentido, para o Cavalo de Tróia, naturalmente, noutro sentido muito diferente. Só sete dos vinte e seis cubos de pedra cor de laranja - previamente marcados com um círculo negro - foram respeitados. Para os nossos amigos, aquela parte continha o material secreto, e só podia ser aberta e manipulada por nós. Com prudência, a fim de evitar desagradáveis confusões ao manipular o material, os sete caixotes, em questão foram isolados no centro do fosso e convenientemente presos. Ao fixarem os turnos de trabalho - o plano previa quatro turnos de seis horas cada um -, os diretores norte-americanos designaram três dos dez especialistas norte-americanos (cada turno era formado por duas brigadas - israelita e norte-americana - de dez homens cada - com o objetivo de não perderem de vista os blocos. Graças a este método sutil, o berço, ficou protegido de dia e de noite, todos os dias desde que a estação começou. À medida que foram passando a adquirir forma, Eliseu e eu percebemos outro pormenor, magistralmente planejado pela equipe de diretores. Como Já disse, uma das nossas preocupações, desde que tínhamos chegado a Massada, havia sido a inevitável antena parabólica, prevista no centro da estação. A nossa estupidez foi imperdoável. Ao colocar os sete blocos de pedra, no meio do fosso, Curtiss, astutamente, impossibilitou o início da montagem da parabólica, que, em condições normais, podia ser feita simultaneamente com a dos outros equipamentos. Esta manobra facilitaria consideravelmente o trabalho. (A colocação do módulo, foi projetada para o lugar que devia ser ocupado pela parabólica de vinte e seis metros de diâmetro). Por outro lado, com uma boa lógica, e com a finalidade de não atrapalhar o trabalho dos técnicos, os israelitas concordaram com a proposta dos seus aliados: a instalação e a prova da parabólica seriam efetuadas em último lugar. Até terça-feira, 27 de Fevereiro, não se iniciaria a montagem propriamente dita da estação receptora de imagens do Big Bird. Na segunda-feira, finalizada a operação do armazenamento do gasóleo, os israelitas, sempre minuciosos e desconfiados, colaboraram na desembalagem dos equipamentos, mas os seus esforços e a sua máxima atenção concentraram-se na infra-estrutura que devia mover aquela
complexa rede de instrumentos e instalações. Grande parte dos seus homens permaneceu debaixo de terra, verificando e comprovando constantemente os sistemas de ventilação, fornecimento de combustível, instalação elétrica, etc. Lembro-me que a chegada dos jornais - por volta do meio-dia dessa terça-feira - trouxe uma salutar descontração ao acampamento. Embora as reações contra a queda do 727 líbio continuassem a ser extraordinariamente duras, as tranqüilizadoras declarações de Hafiz Is O rei Hassan II de Marrocos chegou a anunciar que enviaria tropas para a Síria no mês de Março. Pelos vistos, estava convencido de que Israel atacaria os seus irmãos. Amail, conselheiro da Segurança Nacional do Egito - chamado o Kissinger egípcio - lançaram um pouco de luz sobre a atualidade atormentada do Oriente Médio. Apesar do incidente no Sinai, dizia Ismail em Washington, ainda há esperanças de paz. Ao mesmo tempo, Dayan pedia um telefone-vermelho para unir Israel às outras capitais árabes, a fim de evitar incidentes como o do Boeing. Mas o que causou um impacto especial foi a súbita viagem de Golda aos Estados Unidos. Segundo os jornais israelitas, a primeira-ministra chegaria nessa mesma noite de terça-feira, 27 de Fevereiro, aos Estados Unidos. Fontes oficiais adiantavam que a visita tinha como objetivo prioritário a realização de encontros com o presidente Nixon e outras altas autoridades e, presumivelmente, negociações para a compra de aviões de guerra Phantom. Se tivéssemos em conta que no sábado, dia 24, o ministro israelita Galili tinha declarado ao Jerusalém Post que a visita de Golda aos Estados Unidos se efetuaria em princípios de Março, como deveríamos interpretar semelhante alteração nos planos? Instintivamente, nós, homens do Cavalo de Tróia, associamos este inesperado vôo da primeira-ministra israelita a Washington com a também repentina viagem do nosso chefe, o general Curtiss. Algo muito grave estava acontecendo. Era curioso e significativo. Por mais que mergulhássemos no emaranhado de notícias não conseguíamos encontrar uma única que se referisse ao pensamento ou às intenções do coronel líbio Kadhafi. Tinham passado seis dias desde a queda do 727 e, inexplicavelmente para os observadores políticos, o messiânico e polêmico líder da revolução líbia continuava mudo. Algumas horas depois, em Bengazi, durante os funerais das vítimas do
Boeing, milhares de líbios tinham explodido, gritando: Vingança, Kadhafi, vingança! Levavam cartazes onde se podia ler: “As almas dos mártires do Sinai só descansarão com a vingança e olho por olho e dente por dente”. O tumulto alcançou tal grau de histeria e violência que Kadhafi se viu obrigado a escapar da multidão num Land Rover. Mesmo assim, o dirigente líbio não fez qualquer declaração. Os egípcios, por seu lado, também tinham saído para as ruas, clamando por vingança e bradando em coro um grito que nos encheu de espanto: “Guerra, guerra, Sadat!”. Meu Deus! Em que iria acabar tudo aquilo? Talvez a melhor síntese tivesse sido a que fez o então ministro dos Negócios Estrangeiros do Egito, Mohamed Hassan E1 Zavyat: O Oriente Médio, declarou na segunda-feira, 26 de Fevereiro, está prestes a explodir. O nosso país deve pôr em ação todos os seus esforços nacionais, quer políticos e militares, quer econômicos, para acabar com a situação atual
* interesses sírios pelos montes Golã. (N. do M) 2 No decurso da visita do Kissinger egípcio aos Estados Unidos - a primeira de um representante do Governo do Egito desde a Guerra dos Seis Dias (1967) -, a Casa Branca anunciaria também a chegada de Golda Meir aos Estados Unidos nos primeiros dias de Março. (N. do N)
Estas declarações - proferidas depois da reunião dos embaixadores árabes no Cairo para tratar do incidente do Sinai - abalaram de uma forma muito especial os militares israelitas do Acampamento Eleazar. Mas, prudentemente, mantiveram-se em silêncio, negando-se a fazer comentários. As medidas de segurança em torno da nossa base e das instalações do teleférico, essas, sim, foram discretamente reforçadas. Notícias provenientes de Damasco - onde se efetuara uma reunião de guerrilheiros palestinos, presidida por Yasser Arafat, líder da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) - advertiam para um iminente repetróleoscimento dos atentados terroristas contra Israel, em todo o mundo e a todos os níveis. Naquela tarde, a pedido dos israelitas, se realizaria no acampamento uma reunião secreta e urgente com a participação dos nossos diretores, na qualidade de representantes de Curtiss. No dia seguinte, os homens teriam a oportunidade de conhecer e sentir algumas das medidas especiais adotadas pelos nossos superiores. Encerrada a reunião, a tenda que abrigava o rádio conheceu uma
atividade inusitada. Os oficiais israelitas entravam e saíam ditando instruções ao pessoal às suas ordens. Depois de uma comunicação secreta com a plataforma-base do teleférico, a grua e os tratores começaram a ser desmontados rapidamente. Por volta das dez da noite, o eco do motor de um helicóptero, batendo como uma gigantesca maça na parede oeste de Massada, nos fez sair das tendas. Poucos minutos depois, outro potente Sikorskv (S-64) mantinha-se em vôo estacionário a três metros do topo. E ali permaneceu, sem tocar a terra, até o container, com o material desmontado, ficar devidamente enganchado ao seu bojo. Depois desapareceria como uma sombra entre as estrelas. De acordo com o estado-maior israelita, as ruínas arqueológicas da montanha foram definitivamente abertas ao público na manhã de quartafeira, 28 de Fevereiro. O tempo tinha melhorado nos últimos dias e, por recomendação expressa do Mossad, era conveniente não levantar suspeitas, mantendo fechado o acesso ao topo. Se, como se esperava, as ações de guerrilha voltassem a multiplicar-se, a normalidade parcial em Massada podia ser uma excelente forma de desviar a atenção dos palestinos. A presença de turistas, ainda que escassos, implicava também alguns riscos. Mas os serviços secretos judaicos e os militares do Acampamento Eleazar souberam resolver isso satisfatoriamente. A partir daquela mesma manhã, tudo retomou o seu ritmo habitual, tanto no teleférico como nas ruínas do setor norte. Os soldados desapareceram, e diante do portão da paliçada foi colocado um enorme cartaz (em hebraico e inglês) que dizia: “OBRAS DE RESTAURAÇÃO DA CIDADELA OCIDENTAL UNIVERSIDADE HEBRAICA DE JERUSALÉM SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO DA TERRA SANTA DEPARTAMENTO DE ARQUEOLOGIA DO GOVERNO DE ISRAEL - PROIBIDA A PASSAGEM”. Nem ‚ preciso dizer que aquele Proibida a Passagem, na prática, estava a mais. O único acesso ao triângulo sul era por aquele portão. E este Já estava, desde o amanhecer daquela quarta-feira, vigiado permanentemente por dois israelitas cuja missão básica era identificar todos os que entrassem ou saíssem. Na reunião secreta do dia anterior, os diretores e oficiais israelitas tinham chegado a um acordo que, entre outras coisas, estabelecia rigorosos turnos de vigilância interna e externa do acampamento, assim como um curioso sistema de contra-senhas. Todos os dias - enquanto durasse a operação - o chefe da segurança receberia do estado-maior, em código um nome. Esta palavra era
transmitida pelo rádio à meia-noite e era válida até à mesma hora do dia seguinte. Isto deve ter sido invenção de alguém que conhecia bem os pormenores das anteriores escavações arqueológicas de Yadin. Ao longo desses trabalhos, os membros da expedição - julgo lembrarme de que foi um dos voluntários, domador de elefantes na sua vida normal - encontraram entre as ruínas onze pequenos e estranhos ostraca, ou pedacinhos de barro com inscrições, e que na Antiguidade eram um material comum e habitual de escrita. (Convém recordar que o papiro e o pergaminho eram muito caros) Pois bem, nestes onze ostraca - diferentes das setecentas inscrições encontradas em Massada - apareciam vários nomes, todos diferentes, embora, ao que parecia, escritos pelas mesmas mãos. Eram vocábulos estranhos. Qualquer coisa como ápodos ou epítetos. Por exemplo: Joav ou Joab (um nome pouco freqüente na época do Segundo Templo e que significava homem sobremaneira valoroso). Outro nome era o mítico Ben Yair, que, seguramente, se referia ao caudilho zelota: Eleazar Ben Yair. As contra-senhas usadas naqueles dias baseavam-se, em última análise, nesses nomes. De acordo com as necessidades do acampamento, cada pessoa que saía dele recebia a senha e a contra-senha do dia. Só o chefe da segurança e os guardas do portão ‚ que tinham conhecimento do nome. Qualquer tentativa, pouco provável para entrar, por parte de um indivíduo alheio à operação, estaria condenada ao fracasso. Além desta medida, os israelitas indicaram, dentre os seus homens dispensados do serviço na piscina, um turno permanente de dez guardas, responsáveis pela segurança geral do acampamento. Nós, de acordo com os planos do exército fomos dispensados de tão ingrata missão. Embora o acesso ao cume de Massada pelos alcantilados oriental e ocidental fosse quase impossível, os israelitas estabeleceram seis pontos de observação (três em cada uma das vertentes referidas), estrategicamente distribuídos no interior da casamata. Com tanta vigilância, os trabalhos na meseta estavam contínua e perfeitamente protegidos.
* Yadin conta que este achado ocorreu num dos lugares estratégicos de Massada: perto da entrada que d para as condutas de água e próximo da praça que se encontra entre os armazéns e o edifício administrativo, num ponto em que confluem todos os caminhos que vão dar ao topo. (N. do M) 2 Os arqueólogos pensam que estes onze ostraca podem ter sido as peças
utilizadas no fatídico sorteio realizado pelos zelotas. Josefo escreve a propósito: “Então, eles escolheram por sorteio dez homens, para que matassem todos os outros; todos se estenderam no chão, ao lado da respectiva mulher e filhos, e, pondo o braço por cima deles ofereceram o pescoço para ser cortado por aqueles que, por sorteio, levaram a cabo tão triste tarefa; e quando estes dez homens sem medo acabaram de matar todos os outros, seguiram a mesma regra para sortearem entre eles, pois aquele a quem coubesse a sorte primeiro, mataria os outros nove e depois matar-se-ia” (N. do M.)
Demasiado protegidos, lamentamo-nos nós os homens do Cavalo de Tróia, prevendo que aquele férreo controle do Acampamento Eleazar só nos poderia trazer dores de cabeça, nos momentos decisivos da decolagem do berço. Mas Curtiss não era fácil de vencer. A rotina era quase um milagre com aquele homem. E de novo surpreendeu a todos. Às doze horas de quarta-feira 28 de Fevereiro, quando o primeiro turno de trabalho - no qual eu estava incluído - deu por terminada a sua missão na piscina, um rosto sorridente e familiar nos esperava no alto da pequena escada de acesso ao fosso. Curtiss! O general havia regressado tão inesperadamente como tinha partido. E, como era seu costume, não houve grandes explicações pelo menos nas primeiras horas da sua nova estada no acampamento. O pessoal que não estava de serviço rodeou-o e bombardeou-o com milhares de perguntas. Mas ele, imperturbável, limitou-se a mostrar grande interesse pelo andamento da montagem da estação. A verdade é que os oficiais israelitas, a partir daquele acontecimento no Sinai e do agravamento da situação internacional, tinham imprimido um ritmo acelerado às tarefas de montagem. Era claro que pressentiam qualquer coisa e desejavam concluir a Operação Eleazar em tempo recorde. Eliseu, os diretores e eu próprio quase nem trocamos nenhuma palavra com o general. Bastou-nos observar os olhos dele para compreendermos que ocultava alguma coisa muito grave. Decidimos esperar. Se ele quisesse, nos informaria. Depois do almoço, com a desculpa de querermos mostrar-lhe o Charlie e as admiráveis instalações construídas na cisterna subterrânea, os diretores, o meu irmão e eu recebemos essa informação.
Sinceramente, hesitei no momento de narrar esta parte da operação. Será que interessa a alguém, agora que se passaram cinco anos, o conhecimento do que aconteceu naqueles primeiros meses de 1973? Talvez não. Do que estou, sim, certo - a razão que em última análise me impeliu a relatá-lo - é de que o mundo tem direito a saber como e até que ponto é manipulado secretamente pelas grandes potências. Meu Deus, como estamos cegos! Ignoramos o que se trama nos gabinetes dos políticos e dos militares. E o pior‚ muitas dessas obras, e operações confidenciais - como nesse caso - têm levado e continuarão a levar à morte, para a ruína e para o caos milhões de inocentes. O general Curtiss explicou-nos que fora chamado com urgência pelo próprio Kissinger. No mesmo dia da sua chegada a Nova Iorque - domingo 25 - o então conselheiro do presidente Nixon acolhera-o no seu apartamento de luxo do Hotel Waldorf Astoria. No mais rigoroso sigilo, Curtiss receberia duas informações que justificavam a sua apressada viagem aos Estados Unidos e que, certamente, o fizeram estremecer. A primeira referia-se aa queda do Boeing 727 líbio no coração da península do Sinai. Todos nós tínhamos intuído que aquele acontecimento obedecia a razões especialmente graves. Não era normal que a Força Aérea de Israel se dedicasse a metralhar aviões de passageiros em pleno vôo. Os agentes norte-americanos em Jerusalém e Telavive - sempre em estreita ligação com os serviços secretos israelitas - tinham confirmado um aspecto decisivo que, obviamente, jamais seria admitido, pelo Governo de Golda: no momento do encontro entre os caças Phantom e o Boeing 727, este sobrevoava a área de Refidim. Nesta zona estava estacionado, naquela altura, parte do arsenal nuclear israelita. (Em Outubro desse mesmo ano de 1973, no decurso das primeiras e dramáticas horas da Guerra do Yom Kippur - quando o Estado judaico foi surpreendido pelos ataques sírio-egípcios -, o próprio Parlamento de Israel chegou cogitar a hipótese da utilização de uma das suas bombas atômicas sobre a cidade de Damasco. Mas este tenebroso assunto nos levaria para muito longe do verdadeiro objetivo deste diário) A desobediência dos pilotos do avião Líbio, em última instância, irritou o estado-maior israelita, que deu a ordem para o neutralizarem. O que nunca se averiguou - Kissinger, pelo menos, parecia não o saber - foi se o 727 chegou a recolher alguma informação à sua passagem sobre Refidim ou se, como opinavam alguns setores do Mossad, os planos secretos daquela base Já estavam no Boeing. Neste caso, o desvio do avião podia visar a
confirmação de algo que eles Já sabiam. De uma forma ou de outra, a verdade ‚ que a queda do 727 cortara pela raiz as duas possibilidades, ambas verossímeis. (Há que recordar que as vítimas - incluindo os sete sobreviventes - e os destroços do aparelho foram controlados desde o primeiro momento pelo exército de Israel) Se isso era certo, então o desacostumado silêncio do coronel Kadhafi estava justificado.
* Nove meses depois da queda do Boeing Líbio. O prestigiado comentador político Hassanein Heikal, amigo pessoal do presidente egípcio Sadat, revelaria (23 de Novembro) uma informação que ratificava o que tinham dito os serviços de informação israelo-norte-americanos. Segundo Heikal, Israel Já dispunha naquela altura de três bombas nucleares e de capacidade para fabricar outras num prazo de seis meses. Os esforços dos israelitas para disporem deste tipo de armas", escrevia o comentarista do Cairo. remontam a 1957; isto é, depois da Guerra do Suez, na qual Israel, ajudado pela Grã-Bretanha e pela França, atacou o Egito. Naquela ocasião, a França vendeu aos israelitas um reator atômico que foi instalado em Dimona. Por seu lado, os árabes também se tinham esforçado por conseguir bombas atômicas. Que se saiba - prosseguia Heikal - em três ocasiões: a primeira, antes de estourar a Guerra dos Seis Dias em 1967. Mas a falta de meios e de dinheiro obrigou-os a desistir. A segunda, depois de 1967, quando a China começou a estreitar relações com países árabes. Mas Pequim aconselhou-os a que, nesta matéria, aprendessem a depender de si próprios. A terceira foi protagonizada pelo coronel líbio Muamar Kadafi, em 1970 quando tentou comprar uma bomba nuclear. O “clube atômico” respondeulhe que as bombas atômicas não estavam venda. Um dia antes destas revelações do comentarista egípcio, outro prestigiado jornal - o New York Times - insistia sobre o tema das armas nucleares. O jornal norte-americano garantia que a Rússia tinha enviado bombas atômicas para o Egito, a seguir à Guerra do Yom Kippur, em Outubro de 1973. Essas bombas estariam sob o rígido controle dos assessores sovi‚ticos. Estas informações, conseguidas pelos serviços secretos dos Estados Unidos, foram uma das principais causas que levaram Nixon a declarar em estado de alerta máximo as tropas norte-americanas no Mundo durante a chamada quarta guerra israelo-árabe. (No dia 16 de Outubro desse ano de 1973, o presidente Nixon declarava a esse respeito: “A crise mundial mais difícil e grave desde 1962” quando do envio de mísseis russos para Cuba, teve lugar durante a Guerra do Yom Kippur, A Rússia
estava decidida a enviar para o Egito uma “força substancial”, pelo que os Estados Unidos puseram os seus exércitos em estado de alerta máximo (N. do N)
Segundo Kissinger, este incidente era suspeito demais para ser classificado de casual ou para atribuí-lo a uma infeliz audácia dos líbios, inimigos mortais de Israel. O Mossad estava especialmente preocupado com aquele vôo. Como teriam obtido uma informação tão altamente secreta? Quem estaria por trás dos medíocres serviços de espionagem da Líbia? A possível resposta surgia irremediavelmente ligada à segunda informação fornecida pelo conselheiro presidencial a Curtiss. Uma informação que fez empalidecer o nosso chefe, e a nós também. O ruído do Charlie era tão grande que Curtiss convidou-nos a procurar um lugar mais sossegado. Mas antes, abrindo as páginas de um exemplar do New York Times exclamou, apontando para o jornal - Reparem nisto! Mao também está aprendendo inglês. Desconcertados pelo insólito comentário, nos lançamos sobre o jornal que o general tinha nas mãos. Na página seis, com efeito, entre outras informações das agências United Press International e Associated Press aparecia uma breve e discreta notícia sobre uma entrevista televisiva nos estúdios da NBC (National Broadcasting Company), em Nova Iorque. Os protagonistas: Henry Kissinger e a temida jornalista Barbara Walters. Tomando como pretexto a recente viagem que Kissinger efetuara à China e a sua entrevista com Mao Tsé-Tung, Barbara interrogara o conselheiro presidencial acerca do inglês do líder chinês. - Leiam, leiam! - animou-nos Curtiss. - É um diálogo que não devemos esquecer! Nos olhamos, espantados. O que queria dizer? Porque‚ que não devíamos esquecer semelhante trivialidade? Referindo-se a um comentário anterior de Kissinger - no qual afirmava que Mao usava algumas frases em inglês - a jornalista fazia-lhe a seguinte pergunta: - Pode nos dizer quais? - Sente-se, por favor - respondeu Kissinger. - Isso é mais do que aquilo que o senhor consegue dizer em chinês. - Isso é verdade Alguém do grupo perguntou a Curtiss qual o interesse de um diálogo tão intranscendente. O chefe, depois de pigarrear banalmente, lançou um
olhar furtivo aos técnicos de manutenção do gerador. Continuavam distantes e alheios à nossa conversa. - Simplesmente - sentenciou com altivez -, não se esqueçam disto. Pode nos ser útil na fase vermelha. Obedecemos sem responder. Ao fim de uns minutos quando tínhamos memorizado o diálogo, o general continuou a folhear o jornal, mostrando-nos outra surpresa. Sobre toda a página dedicada à habitual seção de Business-Finance tinha sido cuidadosamente colada uma folha de papel datilografada e com um cabeçalho que, a princípio, não nos disse grande coisa: “O RAPTO DE EUROPA” Pelo pouco que conseguimos ler, aquele documento - tão habilmente camuflado - falava de um plano secreto entre a União Soviética e o nosso país, os Estados Unidos. E digo que mal tivemos tempo de passar do primeiro parágrafo porque quando Curtiss calculou que Já tinha prendido a nossa atenção, fechou o jornal e deixou-nos na expectativa. Subimos os degraus de pedra e, uma vez no acampamento, o rosto do general sofreu uma drástica transformação. Dias depois, com a chegada dos novos equipamentos, os seus olhos voltaram a obscurecer-se com uma amargura semelhante. O Sol começava a tingir de violeta o horizonte do deserto, e, sem pressa. simulando um passeio, fomos nos aproximando da metade oriental da paliçada. Ali, sentados sobre os sacos de terra, a uma prudente distância dos atarefados israelitas, tomamos conhecimento do mais sujo e inumano projeto que qualquer homem pode imaginar. Curtiss abriu de novo o jornal e, com voz baixa e alquebrada, leu aquele documento: a segunda informação - altamente confidencial fornecida por Kissinger. Em síntese - porque a exposição do pormenorizado plano poderia ocupar muitas páginas e não ‚ esse o meu verdadeiro objetivo -, e tal como tínhamos lido estávamos perante um acordo secreto dos dois grandes - URSS e EUA - para provocar a destruição moral e econômica dos dois perigosos rivais no concerto mundial: a Europa e o Japão. Estes dois blocos estavam a criar graves dificuldades aos programas econômicos e expansionistas de soviéticos e norte-americanos. Ora bem, algumas semanas antes, Moscou e Washington tinham projetado o chamado Rapto de Europa: título em código de uma manobra diabólica. Tanto o corrupto Nixon como o frio e impiedoso Brejnev sabiam que a fórmula mais eficaz
para atingir os seus propósitos era a utilização de uma nova arma infalível: o petróleo. Se a Europa e o império nipônico vissem cortados os seus respectivos fornecimentos de óleo cru, as suas economias sofreriam uma travagem violenta. Mas, como consegui-lo? Como fazer com que os poços petrolíferos do Oriente Médio - as principais torneiras de alimentação da pujança do mundo ocidental -fossem fechados? E, sobretudo como conseguir que nenhum dos inspiradores deste macabro projeto fosse descoberto ou envolvido diretamente.
* O Rapto de Europa era um título tristemente inspirado na mitologia grega. Europa filha de Fênix, rei da Fenícia, estava um dia à beira-mar, colhendo flores. Nesse momento reparou na presença de um touro de pêlo brilhante e aspecto majestoso, que pastava entre os rebanhos do seu pai. Europa não imaginou tratar-se de Zeus, que adotara esta forma para a raptar. A jovem aproximou-se do animal, para o acariciar. O touro, gentilmente, dobrou os joelhos, permitindo assim que a jovem subisse para o seu lombo. De repente, o touro levantou-se e avançou para a água, levando consigo a infortunada Europa. Zeus levou-a até Gortina, na costa meridional da ilha de Creta. Da união do deus e de Europa nasceram Ninos, Radamantis e Sarpédon. O rei Astérion, de Creta, adotou-os e converteu-se no esposo de Europa. (N. do N)
Nem ser preciso dizer que um plano assim só era conhecido pelos mais próximos de Nixon e de Brejnev. A Operação Rapto de Europa tinha em conta uma solução sinistra: uma quarta guerra no Oriente Médio. Assim tão simples e tão cruel. Para isso - continuou o general com uma voz que parecia falhar em alguns momentos - sempre de comum acordo, os grandes deviam usar todos os métodos ao seu alcance para estimular e dirigir os maltratados sentimentos patrióticos dos árabes contra o sempre odiado vencedor: Israel. Essa guerra tinha sido minuciosamente planejada a partir do Kremlin e do Pentágono. O documento chegava a estabelecer as possíveis datas para o conflito, a sua duração máxima, os países que deveriam enfrentar o exército israelita, as táticas a seguir, o tipo de equipamentos bélicos a utilizar, os limites nos apoios logísticos e de material por parte dos Estados Unidos e da União Soviética aos seus respectivos aliados e até o cálculo de número de baixas durante as hostilidades
* Ainda que me repugne recordar esta história tão louca. Eis aqui, muito resumidos, alguns dos relatórios da Operação Rapto de Europa: As datas mais propícias para o ataque a Israel foram fixadas inicialmente para três momentos de 1973: segunda quinzena de Maio, Setembro e Outubro. De fato, em Janeiro desse ano. Sadat ordenaria ao chefe do estado-maior egípcio, general Shazli, que estivesse preparado para atravessar o canal de Suez. Com o passar dos dias, os Russos optariam pela terceira data. E o dia "D foi marcado para 6 do mês de Outubro. O ódio cego dos Árabes aos Judeus os levaria a escolher essa data, não só porque a mar‚ no canal era mais favorável, como também, muito especialmente, porque esse dia coincidia com o décimo dia do Ramadan. (Nesse dia, no ano 614, o profeta Maomé iniciou os preparativos para a Batalha do Badir. que seria o prelúdio da sua triunfante entrada em Meca e do começo da expansão do Islã) Para cúmulo das coincidências, esse dia 6 de Outubro era o Dia do Perdão dos Israelitas: uma solene celebração religiosa em que todo o judeu é obrigado a reconciliar-se e pedir perdão a quem tiver ofendido no decurso do ano. Durante o Yom Kippur, ou Dia do Perdão, tudo para em Israel. O maquiavelismo árabe e - porquê negá-lo? - russo-norte-americano chegou a estes extremos repugnantes. Um ataque em massa naquele dia - previa o plano - seria vantajoso para os exércitos atacantes: egípcios, sírios e jordanos. Seriam estes - segundo o Rapto de Europa - os países árabes que suportariam o peso da nova guerra. Outras nações do Oriente Médio figuravam como “forças de apoio e reserva”, tanto no envio de tropas como de armamento em geral. Na hora da verdade, o prudente rei jordano não cairia na armadilha, limitando-se a enviar a Brigada 40 quando a guerra lá fosse no sétimo dia e as pressões sobre ele se tornassem insuportáveis. A duração máxima, permitida, das hostilidades - assim rezava o plano secreto - seria de quarenta dias. (Efetivamente, o acordo final de cessarfogo egípcio-israelita foi assinado no domingo, 11 de Novembro pelo general Aron Yariv, anterior chefe dos serviços secretos militares israelitas, e pelo também general egípcio Ismail Jamsi, chefe de operações do exército. Tinham transcorrido trinta e cinco dias desde o 6 de Outubro. ) O plano geral de ataque - batizado com o nome de código de Faísca - baseava-se em duas fases: a primeira, a travessia do canal do Suez e a consolidação dos exércitos egípcios no Sinai; a segunda, uma invasão em massa e simultânea dos montes Golã pelas forças sírio-jordanas. Com o
mais frio pragmatismo os artífices da guerra tinham previsto, inclusive, o número de baixas de soldados, blindados e aviões, em especial na frente do canal: a mais virulenta. No total, a operação da travessia do canal poderia custar cerca de trinta mil baixas para os egípcios. incluindo dez mil mortos. O minucioso estudo russo-norte-americano especificava qual podia ser o contingente de forças de ambos os lados antes da guerra. Israel disporia de trinta mil homens, embora fosse exeqüível uma mobilização de trezentos mil reservistas em setenta e duas - horas. Quanto ao potencial bélico dos egípcios sírios e jordanos, Rapto de Europa calculava-o em cerca de quinhentos mil homens (298000 egípcios, 132000 sírios e cerca de 70000 jordanos). Israel contava com mil e setecentos carros de combate, de tipo Médio, contra cerca de quatro mil dos seus inimigos. A temida e eficaz Força Aérea israelita dispunha, por sua vez, de 488 aviões de combate (12 bombardeiros ligeiros, 9 caças F-4, 36 Mirage. 16 caças-bombardeiros Skyhwak, modelo A-4, 24 caças Baraks. 18 Super-LlvstŠre e 23 llstŠre, entre outros). Os atacantes somavam mais de mil e duzentos aparelhos, sem contar os duzentos aviões egípcios de reserva. Esta esmagadora desproporção de forças e o fator surpresa (os Árabes dispunham de dezesseis preciosos minutos antes que soassem os alarmes eletrônicos de Israel) faziam pender a balança da guerra para o lado atacante. No entanto, segundo o documento de Curtiss, a vitória seria parcial. Isto é, as batalhas teriam um único duplo objetivo: reconquistar os montes Golã e parte do Sinai e desferir um golpe mortal em Israel. A provisão de munições e equipamentos militares aos beligerantes - tanto no caso russo como norte-americano - era calculada num máximo de cem mil toneladas. com um investimento máximo em armas (antes do conflito) de mil e quinhentos milhões de dólares, respectivamente. O obstáculo representado pela não presença de assessores sovi‚ticos no Egito - expulsos em Julho de 1972 - foi ultrapassado com o compromisso de sucessivas reuniões russo-egípcias e, durante a guerra, com uma ponte aérea através da Iugoslávia. (Em Janeiro desse ano Sadat visitou o marechal Tito, consolidando o direito de trânsito da URSS sobre o território iugoslavo) (N. do n) 2 Entre os atentados e operações terroristas perpetrados nos meses anteriores à Guerra do Yom Kippur, cabe destacar - como simples mostra - o assalto, no dia 29 de Setembro, a um comboio que levava emigrantes judeus de Moscou para Viena. No momento em que o comboio chegou à fronteira entre a Checoslováquia e a Áustria, dois guerrilheiros palestinos
apoderaram-se de cinco cidadãos judeus e de um funcionário aduaneiro austríaco. No decurso das tensas negociações, o então primeiro-ministro da Áustria, Bruno Kreiskv, propôs que em troca da liberdade dos reféns se fechasse o acampamento de passagem para os emigrantes judeus da Rússia, instalado no Castelo de Schonau, perto de Viena. A medida causou indignação em Israel, forçando até uma viagem relâmpago de Golda Meir a Viena. (N. do M.) 3 Entre os enganos árabes, recordo o estranho comunicado aparecido na imprensa britânica sobre "o pobre estado de manutenção dos mísseis antiaéreos no Egito. As fontes da informação - russas, é claro - garantiam que tais armas eram praticamente inutilizáveis. Depois da quarta guerra, Sadat declararia, com evidente regozijo, que os israelitas chegaram a morder no anzol” (N. do N) Entre os métodos a seguir para elevar a temperatura de pré-guerra na zona, o plano Rapto de Europa especificava uma série de mobilizações graduais dos exércitos árabes. (a partir de Janeiro de 1973, o Egito mobilizaria as suas reservas vinte vezes), intensas campanhas terroristas, intoxicação da opinião mundial contra Israel, com a difusão de emissões de rádio que apontassem para um ataque iminente dos israelitas em qualquer das suas fronteiras, pistas falsas e comunicados na imprensa estrangeira acerca do deficiente material bélico dos Árabes. e um pormenorizado etcétera que contribuiu ainda mais para aumentar a nossa vergonha. A operação concluía com uma análise também exaustiva das posições políticas e econômicas dos países europeus e do Japão em relação aos Árabes e Judeus, e das quase certas conseqüências dessa quarta guerra. Conseqüências que - como fatalmente aconteceria - provocariam a divisão entre os povos e o sombrio colapso das economias. (Nem a Rússia nem os Estados Unidos dependiam do petróleo árabe) No caso do império nipônico, por exemplo, o seu consumo de petróleo desde 1971 representava oito por cento de toda a produção mundial. Dessa percentagem, setenta e cinco por cento procedia dos poços do Oriente Médio. A cilada, em suma, era perfeita. No fundo, o resultado do conflito - pré-traçado por Washington e por Moscou - era pouco importante. A chave da sinistra operação era outra: forçar o mundo muçulmano a fechar ou reduzir o fornecimento de petróleo. O fantasma do aumento dos preços do petróleo pairava há muito tempo sobre os países industrializados. Com esta jogada criminosa, a Europa e o Japão se veriam
forçados a tomar posição, ou a favor do dinheiro judeu, ou do fluxo, vital, do petróleo árabe. A neutralidade perante a guerra era quase impensável. E, no caso de acontecer essa neutralidade, nem uns nem outros a perdoariam. A sorte do Japão e da Europa estava lançada. (Basta dar uma vista de olhos aos meses que se seguiram à Guerra do Yom Kippur para perceber a dimensão do diabólico plano. (Um projeto que ninguém se atreveu a desvendar até hoje) Era grotesco. Sentados sobre uns prosaicos sacos de terra, acabávamos de conhecer um dos segredos mais bem guardados. Mas o mais paradoxal era que nós estávamos ali, no alto de Massada, em pleno coração de Israel, colaborando na montagem de uma estação receptora de imagens espiãs e, ao mesmo tempo os que se declaravam amigos dos Judeus - os Estados Unidos da América do Norte - forjavam e consentiam uma guerra contra o seu aliado. Não era de enlouquecer? Na opinião de Curtiss a queda do Boeing Líbio fazia parte da campanha orquestrada por Rapto de Europa para instigar e promover o ódio generalizado aos Israelitas, contribuindo assim para a crescente deterioração da atmosfera política no Oriente Médio. Neste sentido, Kissinger insinuara que, segundo os seus serviços secretos, a informação sobre o arsenal nuclear em Refidim tinha sido fornecida à Líbia seguindo uma típica e tortuosa via que não criasse suspeitas nos receptores de tão grande segredo.
* A grande crise do petróleo - da qual o Mundo ainda não recuperou - foi, em última análise, o resultado do confronto entre seis milhões e quinhentos mil árabes contra seiscentos e cinqüenta milhões de europeus e de japoneses. No dia 8 de Novembro desse mesmo ano de 1973, a Arábia Saudita, o maior exportador mundial de petróleo, reduziria a sua produção de petróleo em cerca de 317 por cento, em relação à produção de Setembro. A Arábia Saudita planejava para esse Novembro de 1973 uma produção global de 91 milhões de barris diários. Esta quota, como disse, seria reduzida para 344 milhões/dia. O exemplo da Arábia seria seguido pelos restantes países árabes do Oriente Médio, caindo, desse modo, na cilada russo-norte-americana. No dia 13 de Novembro, por exemplo, o primeiro-ministro da Líbia, Abdel Salam Jallud, declararia que o embargo de petróleo para a Europa e o Japão continuaria enquanto se negassem a fornecer armas modernas ao mundo árabe. A Europa veio abaixo e os países do golfo Pérsico aproveitaram a anemia
e as disputas do Ocidente para intensificar a pior das guerras: a da energia. Excetuando o Irã, os países do Golfo - que representavam sessenta por cento da produção mundial de petróleo - estabeleceram três frentes de batalha: uma, aumentando o preço do ouro negro em dezessete por cento; duas: Abu Dhabi, primeiro, e os restantes países árabes, depois decidiram suspender o envio de petróleo para qualquer nação que se declarasse partidária de Israel. Além disso, reduziram a sua produção em dez por cento e, mais tarde, em cinco por cento acumulativo; e três: tendendo para a nacionalização dos seus recursos e indústrias derivadas. Se tivesse ocorrido a nacionalização absoluta, a medida teria virado contra os Estados Unidos. Mas isso. obviamente, nunca chegaria a acontecer. (N. do M)
A maquiavélica operação foi desencadeada nos finais de 1972 pela GRU, serviço secreto soviético, com prévio conhecimento e consentimento da CIA. Os agentes russos expulsos do Egito em Julho de 1972 pelo presidente Sadat tinham conseguido apoderar-se de preciosos e precisos pormenores acerca da localização e natureza da bombas atômicas israelitas. O Mukhabarat El Kharbeiyah (serviço de espionagem do Cairo) tinha pressionado os assessores soviéticos para que o informassem sobre tão apetitoso assunto. Mas Moscou negou-se rotundamente. Como costuma acontecer no tenebroso mundo dos serviços de informação, os egípcios, contrariados, não tiveram escrúpulos em trocar esta pista pelos cada vez mais numerosos homens da CIA em terras egípcias. Em contrapartida, os serviços secretos norte-americanos forneceram-lhes relatórios de segunda categoria e outros, altamente secretos. e falsos. O fato é que, quando os russos abandonaram o país os serviços secretos egípcios de espionagem - e, quase simultaneamente, os norte-americanos - depararam com várias surpresas. Uma delas, sobretudo, foi muitíssimo grave. Durante a sua estada no Egito, os agentes do Departamento de Tecnologia e Investigação do Ministério da Defesa da URSS tinham realizado experiências de guerra bacteriológica no interior das pirâmides. Aquilo provocou um abalo na CIA. Pelo que Kissinger relatou a Curtiss, as surpreendentes alterações de radiação dentro das pirâmides favoreciam em grande medida o desenvolvimento de determinadas bactérias, altamente letais. Os egípcios não souberam o que fazer com aquela perigosa informação. Mas a CIA, sim. Naquele mesmo Verão de 1972,
representantes do KGB e da CIA concordaram num encontro em terreno neutro: em Paris. Ali, uns e outros confirmaram a veracidade das suas respectivas suspeitas: os norte-americanos sabiam das atividades russas nas pirâmides e Moscou, por sua vez, do arsenal atômico israelita e da assistência técnica de Washington ao referido arsenal. E, como em ocasiões precedentes, estabeleceram um pato: cada parte arquivaria o que havia descoberto em relação à outra. Ambos os lados tinham muito a perder e, por conseguinte, o acordo foi rápido e simples. Mas, ao nascer o projeto Rapto de Europa, russos e norte-americanos decidiram, de comum acordo, utilizar uma parte daquela informação em benefício mútuo.
* GRU: Glivanoie Rizviedilvatelnoie Upravlenie. (N. do M) 2 Os serviços secretos norte-americanos multiplicaram-se no Egito na seqüência da referida expulsão dos assessores russos. Substanciais créditos norte-americanos e um paciente trabalho da CIA, intoxicando o Mulhabarat El Kharbeiyah e o Mukhabarat Elasma (serviço secreto de contra-espionagem egípcio), convenceram Sadat de que Moscou poderia arrebatar-lhe o poder, determinando assim a expulsão. Entre outros argumentos, a CIA utilizou perante os egípcios o fato - totalmente falso - de que os serviços de informação soviéticos tinham entrado em contato com o partido comunista no Cairo, a fim de levarem a cabo um plano que pusesse o partido comunista no poder. Para isso contaram com a ajuda de um falso agente chinês que, no Quênia, entrou em contato com um membro dos serviços secretos do Egito, informando-o sobre as aspirações de hegemonia russa no Egito. (N. do N)
Era um segredo conhecido por todos que a França vinha fornecendo armamento - em especial aviões Mirage - a diferentes países árabes. Pois bem, Washington e Moscou estenderam a sua teia, preparando uma sutil cilada. Quase no final desse ano de 1972, três agentes soviéticos na França - Alexei Kyogen, V. Romano e Victor Volumem - receberam dos seus superiores um dossiê altamente secreto, com a missão específica de o deixarem cair em mãos francesas. O documento continha uma pormenorizada e fidedigna informação sobre a possível base nuclear em Refidim (Sinai). Um dos agentes russos, acima mencionado, tinha organizado uma rede de espionagem dentro da polícia política francesa. A “infiltração” do dossiê, portanto, não deu muito
trabalho. O que as autoridades gaulesas desconheciam, naturalmente, era que - paralelamente - Kadhafi recebera também dos próprios russos algumas insinuações, dando-lhe a entender que Paris dispunha de uma preciosa informação sobre o arsenal atômico de Israel. Nas suas conversas com o coronel líbio, os astutos soviéticos aconselharam-no a pagar as elevadas quantias exigidas pela França para a venda dos Mirage, desde que os franceses - como justa compensação - fizessem com que o valioso dossiê "acompanhasse" os caças O temperamental Kadhafi caiu na armadilha esfregando as mãos de contentamento perante a magnífica oportunidade de obter um segredo que iria beneficiar os seus irmãos árabes. A ambiciosa França cedeu finalmente às pretensões da Líbia, fechando o negócio da venda de vinte e oito aviões Mirage 2. Em princípios de 1973 o documento em questão foi transferido para o chefe da revolução Líbia. É fácil imaginar o resto desta truculenta história. Com uma mais que notável imbecilidade, Kadhafi deve ter pedido aos pilotos do 727 que confirmassem a informação que ele tinha em seu poder. O resultado final - por todos conhecido - elevou a tensão no Oriente Médio, exatamente como os pais da Operação Rapto de Europa desejavam.
* Estes espiões russos - o primeiro foi terceiro-secretário da embaixada russa em Paris e chefe de treino do KGB em França; o segundo, adido de imprensa, e o terceiro, membro dos serviços de segurança da embaixada - foram expulsos de França no final de 1972, graças à denúncia de um quarto agente soviético - Fedosseiev -. que se passou para os serviços secretos da NATO na Inglaterra. (N. do M) 2 Pouco depois da chegada dos Mirage ao território líbio exatamente como esperavam os responsáveis pelo Rapto de Europa, o Mossad, de Israel, descobriu a presença dos caças na Líbia. E a 21 de Março, um avião de transporte norte-americano C-130, preparado para espionagem eletrônica e tripulado por pessoal israelita, esteve a ponto de ser derrubado pelos caças líbios. O C-I30, com base em Atenas, pretendia confirmar as suspeitas dos serviços secretos de Israel. Ao ser atacado, a sul da ilha de Malta, teve de fugir precipitadamente. Naqueles momentos, a imprensa internacional associou este novo incidente aa queda do Boeing líbio no Sinai. O Governo de Golda Meir denunciou a presença de aviões Mirage franceses na Líbia, mas a França, numa demonstração de cinismo, negou a acusação. Como previam os militares israelitas, os caças foram transferidos para o Egito. Mas as insistentes reclamações israelitas foram sistematicamente
desatendidas. No dia 26 de Abril de 1973, o Conselho de Ministros francês, sob a presidência de Georges Pompidou, chegou a publicar uma nota em que se dizia: “até agora, não há confirmação dos rumores que correm sobre o tema”. Horas depois, o comentador Yves Cau, de Le Figaro, punha em xeque o Governo de Paris, revelando que, de fato, os Mirage vendidos pela França à Líbia se encontravam nas bases egípcias próximas do canal do Suez. Dezoito dos caças saíram de Trípoli na primeira semana de Abril. A mudança definitiva foi levada a cabo dias depois, gradualmente, e com vôos entre Tobruk e a base egípcia de Nasr. Dali passaram para as bases de Benisueif e Fayum. (N. do M)
Quando Curtiss acabou a sua minuciosa e dramática exposição, um silêncio de morte caiu sobre nós. Não era preciso que o general nos recordasse o caráter absolutamente confidencial desse plano tão monstruoso, nem mesmo o grave risco que corriam as vidas de todos os presentes, no caso de alguém decidir prevenir os israelitas ou os árabes. Simplesmente, estávamos prisioneiros da gigantesca envergadura do próprio segredo. Alguém, por fim se decidiu a fazer um comentário lamentando que um presidente dos Estados Unidos fosse capaz de semelhante aberração. E Curtiss, com um olhar fatigado, apressou-se a responder com frases que se revelariam proféticas: - Nixon pagará por isto. Watergate será o seu fim. Antes de nos retirarmos para as tendas, o general fez um último esforço para nos aconselhar que esquecêssemos aquilo e nos dedicássemos à nossa verdadeira e secreta missão de paz. Kissinger, ao mostrar-se interessado nos preparativos do Cavalo de Tróia para a segunda grande viagem, tinha-o incentivado a realizá-la o mais depressa possível. Se o plano de Moscou e de Washington fosse avante, não haveria mais oportunidades. A enlouquecida máquina da guerra estava em marcha. Era preciso, portanto, agir com cautela e diligência. Na manhã seguinte, quinta-feira, 1 de Março, durante a sobremesa, Bahat o supervisor, mais excitado do que nunca, embrenhou-se numa polêmica acalorada com outros militares israelitas. O motivo não era mais do que a repentina visita a Moscou do ministro da Guerra egípcio. O general Ahmed Ismail Ali, acompanhado por representantes de todas as armas do seu país, tinha começado na capital soviética uma suspeita ronda de consultas ao mais alto nível. Embora esta cimeira egípcio-soviética
aparecesse envolta num impenetrável segredo, o fato de Ismail Ali ter ido num avião especial e escoltado por altos oficiais de todos os exércitos egípcios criou em Israel um receio especial. Para alguns técnicos que polemizavam com Bahat, estávamos perante uma perigosa etapa de rearmamento egípcio. O supervisor pelo contrário, ia mais longe: Aquela súbita aproximação do Cairo a Moscou - expôs ele com tanta veemência como razão - só podia ser o prelúdio da guerra. Curtiss, em silêncio, deixava-os falar. Ao ouvir a palavra guerra, o general, mantendo um olhar eloqüente, deu-nos a entender que Bahat não estava muito enganado nas suas apreciações. Aqueles cinco dias de entrevistas na União Soviética não tinham outra finalidade senão a de pôr os egípcios a par de alguns aspectos essenciais do sinistro plano concebido por Washington e Moscou. Naturalmente, durante as cinco horas que durou a reunião entre Ismail e Brejnev, o premier russo pôs um cuidado especial em não levantar suspeitas entre os seus amigos, os egípcios, quanto aos verdadeiros objetivos e inspiradores do projeto Rapto de Europa. Quando os enviados de Sadat regressaram ao Cairo, a quarta guerra Já era irreversível. Aquele inevitável sentimento de perigo - paradoxos do destino! - beneficiaria os nossos planos secretos. Israel, sempre desconfiado, ativou as suas defesas e redes de informação até limites insuspeitados. E uma das ordens do estado-maior israelita até nos afetou em cheio: A estação receptora de imagens tinha prioridade absoluta. Não se devia poupar homens nem meios para entrar em funcionamento o mais rapidamente possível. Os militares e técnicos israelitas - e nós juntamente com eles - lançaram-se a um trabalho esgotante. A estação, devia começar as suas primeiras recepções de imagens no dia 1 de Abril. Isto dava-nos uma escassa margem de tempo e, conseqüentemente, novas preocupações. A mais grave, pelo menos naquele momento era o combustível do berço. Nem os diretores do programa, nem Eliseu e eu tínhamos a mais remota idéia de como e quando podia chegar ao alto de Massada. É claro que as nossas notícias acerca da vara de Moisés eram igualmente nulas. Mas alguma coisa tínhamos aprendido naquela apaixonante aventura: a confiar em Curtiss. E por isso, no decurso da primeira semana de Março, apesar destas interrogações na mente de todos, ninguém exteriorizou qualquer inquietação. Simplesmente, trabalhamos duramente e esperamos. Naquela quintafeira, ao tomarmos conhecimento do assalto à embaixada da Arábia
Saudita em Cartum (Sudão), por guerrilheiros do Setembro Negro, o acampamento sofreu um novo abalo. As ações terroristas, como o Mossad previra, continuavam a sua incansável espiral, favorecendo, assim, as diabólicas maquinações do Rapto de Europa. Por fim, ao meio-dia de sábado, 3 de Março o nosso chefe decidiu falar. Depois de usarmos a contra-senha do dia - Zehohanan (João) -, cruzamos o portão de saída e nos misturamos como se fôssemos turistas aos escassos visitantes das ruínas. O general, os diretores, o meu irmão e eu comunicamos a Yefet que deseJávamos desentorpecer as pernas e que regressaríamos no último teleférico. A tensão e o esforço daqueles dias tinham sido tão grandes que os israelitas compreenderam e não se opuseram ao que se supunha um inofensivo passeio de descontração pelo chamado caminho das víboras. Deixamos para trás o cume e começamos, com ar bem-disposto, a descer lentamente pelo sinuoso caminho da face oriental de Massada. Quando nos encontrávamos a uns cem metros do topo, Curtiss detevese. Sentou-se à beira do caminho e com a cabeça inclinada, começou a desenhar estranhos sinais na amarelenta e calcinada terra. O seu espírito parecia mais calmo do que nos dias anteriores. Finalmente, tomado de uma contagiosa excitação, informou-nos sobre seus planos mais imediatos: - Dada a rapidez com que decorrem os trabalhos no Acampamento Eleazar, é mais que provável que na próxima segunda ou terça-feira nos vejamos obrigados a dar início à fase secreta da montagem da estação. Nesse momento - continuou com uma crescente euforia -. ativaremos a última etapa do nosso plano: a etapa vermelha. Como sabem, os israelitas deverão desimpedir a piscina. O general fez uma pausa, como que à procura das palavras e do tom adequado para o que pretendia nos dizer. - Sei qual será a resposta - continuou, ao mesmo tempo que apontava para o alto de Massada -. mas tenho que perguntar. Os homens do Cavalo de Tróia estão em condições de agüentar um novo e considerável esforço? - De que tipo? - foi a nossa pergunta. - É preciso que o módulo esteja pronto no fim da tarde de sexta-feira, nove de Março. Olhamos uns para os outros em silêncio. Supondo que, de fato, a fase secreta da montagem começasse na segunda ou terça-feira, isso significaria uma margem de três ou quatro dias. Alguns diretores balançaram a cabeça, manifestando as suas dúvidas. - Para quando está previsto o lançamento? - interveio Eliseu com o seu
habitual pragmatismo. - Para a noite do dia nove - respondeu o general sem rodeios -, se formos capazes de colocar o berço no centro do fosso. Creio que nenhum dos presentes duvidava da eficiência e do espírito de dedicação da meia centena de especialistas que nos acompanhava desde o princípio da missão. O que de fato nos preocupava - e foi isso que dissemos a Curtiss - era a falta de notícias acerca do combustível, da vara de Moisés e do resto dos equipamentos projetados para a segunda exploração. Além de tudo isso, as reservas de hélio - vitais para o funcionamento dos amplificadores maser 1 - também não tinham chegado ao alto do rochedo. O general sabia, como nós, que sem os tanques de gás, os trabalhos eram inviáveis. Mas o chefe do Cavalo de Tróia, como fizera noutras ocasiões, não se alterou. Evidentemente, o que o preocupava naquele momento era saber se podia contar, ou não, com o supremo esforço que exigia dos nossos homens. Quando, por fim, assumimos o sentimento da maioria, lhe garantimos que o berço estaria pronto no local e momento desejados, Curtiss aliviou a ansiedade geral anunciando-nos que, de acordo com os planos, tanto o hélio como o combustível para o módulo estavam a caminho. Ambos chegariam ao acampamento na noite seguinte, domingo. Prevendo uma possível sabotagem palestina, o fornecimento de hélio à estação receptora tinha sido planejado - seguindo as recomendações do serviço de informação militar israelita - tendo em conta uma via dupla. Excetuando, obviamente, as jazidas russas, o resto das reservas naturais deste gás nobre, localizava-se no Canadá, na Polônia e no meu próprio país: os Estados Unidos. Esta circunstância, e o fato de os Estados Unidos monopolizarem a sua extração, manipulação e distribuição por meio mundo, proporcionaram-nos uma vantagem considerável. O abastecimento estava garantido, tanto em volume como em periodicidade.
* Os dois amplificadores maser da estação, como creio Já ter explicado antes, processavam os dados com uma precisão extraordinária. Esses sofisticados equipamentos requerem uma temperatura permanente de 269 graus centígrados negativos (quer dizer, apenas quatro graus acima do zero absoluto). Para isso, tinham de ser mergulhados em hélio-60 previamente liquefeito num crio gerador que fazia parte do instrumental. Este crio gerador, ou coldbox, tinha sido comprado a uma importante multinacional suíça. Com a ajuda de turbinas de expansão, gradientes ou etapas de gás e
comutadores térmicos de placas, alcançava-se a temperatura requerida: - 269x C (42 K), conseguindo assim a liquefação do heliogás. Logicamente, sem essas reservas de hélio, o crio gerador e os maser não podiam funcionar. (N. do M)
Quanto à dupla via de fornecimento a Massada, judeus e norteamericanos tinham estabelecido duas pontes aéreas: uma com origem na Polônia e a outra nos Estados Unidos. Aviões de carga, especializados neste tipo de transporte, deviam aterrissar em Israel no decurso das primeiras horas do domingo, 4 de Março. Mas um suspeito acidente de aviação, ocorrido na noite do dia 28 de Fevereiro, obrigou a alterar parte dos planos, fazendo com que os responsáveis da Operação Eleazar prescindissem de uma das pontes de abastecimento: a polaca. Na noite da última quarta-feira, segundo as informações recebidas por Curtiss, por volta das vinte e três horas, um aparelho da Força Aérea polaca tipo AN-24, despenhara-se a uns seis quilômetros do aeroporto de Varsóvia. Vinha de Golenion, nas proximidades do porto de Sczcecin, no mar Báltico. Apesar da boa visibilidade, o aparelho incendiou-se em pleno vôo, provocando a morte dos seus quinze ocupantes. O Mossad não descartava a hipótese de um atentado. O Governo da Polônia tinha sido previamente avisado das intenções de transportar um determinado carregamento de hélio para Israel - com fins puramente industriais - e, casualmente, como gás para a cromatografia. A pessoa que estava a par dessa transação comercial, o ministro polaco do Interior, Wieslaw Ocieka, viajava nesse avião. Como medida de segurança, o estado-maior israelita optou por esquecer a fonte polaca. O fornecimento, portanto, viria unicamente das jazidas dos Estados Unidos. O resto do passeio até à plataforma-base do teleférico transcorreu em animada conversa. O general tinha conseguido contagiar-nos com o seu entusiasmo. Quase sem perceber, estávamos a ponto de iniciar a contagem decrescente da ansiada segunda aventura. Não imaginávamos então que, dois dias mais tarde, as nossas ilusões sofreriam um duro revés. A ordem de Curtiss foi recebida com euforia pela equipe do Cavalo de Tróia: A descida dos tanques de hélio para o fundo da "piscina" marcaria o início da fase "vermelha" E todos nos preparamos para o grande momento. No dia seguinte, domingo, ao cair da noite, um trêmulo resplendor avermelhado e o matraquear de motores chamou-nos a atenção para os potentes S-64 que se aproximavam. Os dois primeiros helicópteros-grua depositaram no cume de Massada um total de trezentos e
sessenta tanques de hélio-gás (N-60). Duas horas mais tarde outro par de Sikorsky terminava o transporte com um carregamento semelhante. No total, setecentas e vinte tanques de 93 metros cúbicos cada uma. Uma reserva mais que suficiente para garantir o funcionamento permanente (vinte e quatro horas por dia) do crio gerador durante trinta dias. O que os israelitas não podiam suspeitar era que, confundidas entre aqueles tanques de aço de um metro e sessenta de altura e sessenta e oito quilos de peso cada uma, se encontravam também outras tanques - aparentemente idênticas - mas com um conteúdo muito diferente: o combustível para o berço 1! Segundo as explicações que o general nos daria, a direção do Cavalo de Tróia, devido à maior duração do tempo de vôo do módulo neste novo salto, tinha mudado de tipo de carburante, substituindo o peróxido de hidrogênio por uma mistura mais segura e potente. Existia, aliás, outra razão: o forte caráter oxidante do HOZ desaconselhava o seu transporte por via aérea.
* O consumo Médio de hélio calculado pelos especialistas na liquefação do gás era de cerca de cinco litros por hora. (De cada garrafa de 93 m obtinha-se, aproximadamente, esse mesmo volume de gás) (N. do M)
Na mesquita da Ascensão, apesar da argúcia utilizada para introduzir o combustível ter sido praticamente a mesma (escondido entre o hélio-gás), o Cavalo de Tróia não precisou lidar com um transporte aéreo dessa carga. Enfim, o que importava era que o carburante - vital para os nossos propósitos - Já se encontrava no Acampamento Eleazar. Como proprietários e únicos responsáveis pela montagem dos maser, a manipulação do hélio N-60 foi dirigida e executada pelo grupo norteamericano. Isso era o combinado. Os israelitas, respeitosos, nos deixaram agir. Durante essa noite, sob a vigilância atenta do general, descemos os setecentos e vinte tanques até ao fundo da piscina, depositando-as cuidadosamente, em posição horizontal, no recinto de vinte metros por dois, destinado a armazém. Ao alvorecer de segunda-feira, 5 de Março, quando as nove filas - de oitenta tanques cada uma - Já estavam colocadas, Curtiss anunciou a Yefet e aos restantes oficiais israelitas que estávamos prontos para iniciar a fase secreta da montagem da estação. Assim, deu-se início à última etapa de preparação do lançamento do módulo. Mas os problemas, como vou contar a seguir, não haviam acabado.
A equipe da direção do Cavalo de Tróia soube conjugar as nossas verdadeiras necessidades com as dos israelitas. No protocolo prévio, Curtiss estabelecera, entre outros acordos, um tempo máximo de duas semanas para a montagem completa do material secreto. Durante este período - considerado razoável pelo estado-maior de Israel - a presença dos técnicos e militares israelitas no Acampamento Eleazar seria substancialmente reduzido. Só uma mínima parte dos cinqüenta homens permaneceria no cume e, naturalmente, sem possibilidade de acesso ao interior da estação. Mantiveram-se os serviços de vigilância, assim como os de cozinha e supervisão do Charlie e do tanque de reserva de gasóleo. Yefet, como chefe do acampamento, foi o único oficial autorizado a continuar na meseta, ficando responsável pelas comunicações. Naquela manhã de segunda-feira, trinta e quatro israelitas abandonaram temporariamente Massada, dispostos a desfrutar de um merecido descanso. O seu regresso foi fixado para terça-feira, 20 de Março. Esta era, portanto, a margem disponível para colocarmos o berço em condições de lançamento e posterior regresso. Se não surgissem inconvenientes, a hora zero - isto é, a decolagem do módulo - se efetuaria na noite de sexta-feira, 9 de Março. (Curtiss manteve em segredo a hora exata até à manhã desse novo histórico dia) De acordo com estes planos, Eliseu e eu nos ausentaríamos durante dez dias.
* O novo combustível - tetróxido de azoto (oxidante) e uma mistura de cinqüenta por cento de hidracina e dimetil-hidracina assimétrica - tinha sido calculado para um período global de combustão de cinco horas e catorze minutos, com uma disponibilidade máxima de dezesseis mil e quatrocentos quilogramas. (N. do M)
A missão deveria terminar, impreterivelmente, na madrugada de 19 para 20 desse mesmo mês de Março. No entanto, como sugerira Eliseu numa das múltiplas sessões de trabalho do Cavalo de Tróia, a nossa permanência real no outro lado não seria de dez dias. A manipulação dos swivels nos daria a oportunidade única de viver um período indefinido (fixado inicialmente em quarenta ou cinqüenta dias), podendo voltar ao nosso presente cronológico (1973) no instante desejado. Como também sugeri, a idéia tropeçou inicialmente com a resistência de alguns diretores do Projeto.
Não havia informações sobre as possíveis repercussões no organismo humano desta exagerada manipulação do tempo. Era provável que nada acontecesse. Mas, baseando-nos nesta mesma lógica, também não podíamos ignorar o contrário. Em última instância, estávamos dispostos a levar a cabo uma experiência singular: viver um tempo - biológico e cronológico -, mais prolongado e teoricamente dissociado do nosso agora real. Apesar dessas compreensíveis dúvidas, a missão era tão fascinante, quer do ponto de vista histórico quer científico, que os diretores acabaram por ceder, assumindo, como nós, o possível risco. Quem poderia então imaginar que aquela idéia genial de Eliseu nos levaria a uma terceira e maravilhosa experiência e à morte. Os homens do Cavalo de Tróia, tal como supúnhamos, aceitaram entusiasmados o novo desafio. Contávamos com quatro dias e algumas horas para instalar o módulo no centro da piscina e efetuar o seu lançamento. E às doze horas daquela segunda-feira, 5 de Março, com uma certa solenidade, o fecho hidráulico foi ativado, sepultando no fosso meia centena de técnicos e engenheiros, absolutamente eufóricos. Contra a vontade geral, Curtiss estabeleceu um rigoroso sistema de turnos de trabalho. Não convinha despertar suspeitas entre os israelitas que nos acompanhavam no acampamento lançando-nos - como pretendia a equipe - a um trabalho em bloco e sem pausa, durante o qual todos nós, norte-americanos, permanecêssemos debaixo de terra. Por outro lado, além do necessário descanso, os homens de folga deveriam vigiar atentamente os passos e a atitude dos nossos aliados. Como medida de precaução, a cobertura do fosso só seria retirada nos últimos minutos antes da decolagem do berço. Até essa altura, as entradas e saídas do pessoal se efetuariam pelas duas escotilhas de emergência, abertas no centro do fecho hidráulico nos lados oriental e ocidental do grande retângulo, respectivamente. Assim, as nossas manobras no interior da estação ficavam a salvo de qualquer olhar indiscreto. Enquanto os técnicos desembrulhavam rapidamente os sete grandes cubos de pedra alaranjados colocados no centro da piscina, Curtiss e outros especialistas dedicavam-se a uma exaustiva revisão dos tanques de hélio. Ainda que, à primeira vista todas fossem iguais, depressa percebi o que distinguia as que tinham combustível. Na parte superior - na zona da ogiva cor de tabaco - estas tinham uma etiqueta de contraste que, habitualmente, se situa no corpo do tanque.
E, junto à indicação da pressão (duzentos bares) havia, igualmente, uma análise do falso conteúdo 1. Seria preciso conhecer muito bem o que constitui uma análise típica do hélio N-60 para detectar que um dos seus componentes - o Oz - aparecia ligeiramente alterado na sua proporção. Em lugar de 015 ppm, Cavalo de Tróia colocara 016. Esta ligeiríssima diferença no índice de oxigênio e a posição das etiquetas nas cabeças das tanques, muito perto das torneiras correspondentes, eram a chave para as distinguir umas das outras. Mas, subitamente, Eliseu e eu sentimos uma profunda emoção. Ao retirar os painéis cor de laranja - que não eram mais do que grossas pranchas de aço, revestidas exteriormente com uma fina camada de pedra dolomítica -, o módulo, a nossa querida nave, ficou à vista. E, ao acariciarmos as peças, um turbilhão de recordações e sensações invadiu-nos. Tudo decorreu com normalidade até pouco depois daquela comunicação da plataforma-base do teleférico. Pelas quatro horas da tarde de terça-feira, 6 de Março, Yefet anunciou ao general a chegada dos dois técnicos norte-americanos que, dias antes, tinham ido de avião aos Estados Unidos com os estojos blindados que continham, oficialmente, material de laboratório. O regresso dos nossos companheiros com a vara de Moisés encheu-nos de alegria. Tudo parecia correr sobre rodas. No entanto, para Curtiss, Eliseu e eu, essa satisfação esfumou-se com uma das notícias trazidas pelos viajantes vindos da Base Edwards. O próprio chefe do Cavalo de Tróia, acompanhado por alguns homens que estavam de folga, foi ao encontro dos recém-chegados, levando para o interior da piscina as urnas que continham as diferentes peças que deviam integrar a minha saudosa vara e os dois volumosos baús de aço, nos quais estavam escritos rótulos idênticos: “Frágil. Material de laboratório”. Os responsáveis deste transporte entregaram a Curtiss dois envelopes lacrados. E ali mesmo, perante a mal dissimulada curiosidade dos técnicos, atarefados na preparação final do módulo, o general abriu um deles. Depois de dar uma vista de olhos aos documentos, acabou por os entregar a um dos diretores. A informação - a que me referirei no devido momento - estava relacionada com os novos equipamentos a instalar no berço. E transmitia, igualmente, uma série de instruções sobre as modificações introduzidas na vara de Moisés e sobre o meu equipamento pessoal. Os novos instrumentos encontravam-se nos containeres metálicos. A leitura da segunda mensagem foi muito diferente. O general, apanhado de surpresa pelos relatórios, foi empalidecendo durante alguns segundos. Um dos documentos, em especial, devia conter qualquer coisa tremendamente
grave. Não satisfeito com uma primeira leitura, releu-o, ao mesmo tempo que nascia entre os seus dedos um quase imperceptível tremor que o traía. Maquinalmente, entregou o primeiro relatório a outro diretor, guardando o que o afetara tão profundamente. Então, com o semblante alterado, procurou-me entre os homens lançando-me um olhar penetrante. Nesse instante soube que a informação tinha a ver comigo e, presumivelmente, com o meu irmão de expedição. Mas, em que sentido? Porque ela alterara o frio e veterano militar? A resposta, desoladora, chegaria nessa mesma noite. A partir desse momento, desculpando-se com uma pertinaz dor de cabeça, o nosso chefe desapareceu do fosso. E, depois de pedir licença para abandonar o acampamento, perdeu-se para norte da meseta. Era evidente que precisava refletir sobre o nosso setor, quem poderia suspeitar na altura? - tomar uma decisão crítica. Eliseu, alguns diretores e eu trocamos um olhar cheio de funestos presságios. Mas os trabalhos na estação continuaram no ritmo habitual. Antes de irmos descansar, Eliseu e eu fomos chamados pela equipe de diretores, que nos mostrou um dos documentos: o que estava no segundo envelope. Era remetido pelo Centro Geológico do Colorado e era a resposta dos especialistas em terremotos aos sismogramas obtidos no topo do monte das Oliveiras no inesquecível dia 7 de Abril do ano 30. Tal como resumia o Cavalo de Tróia, as análises apontavam para uma considerável explosão subterrânea como a explicação mais verossímil do que aparecia nos registros digitais e analógicos. Naturalmente, os sismólogos não tinham sido informados nem do lugar nem da data em que tinham sido captados aqueles movimentos telúricos. Por esta razão, os especialistas em sismologia, - embora determinassem a magnitude dos abalos, a possível energia libertada na suposta explosão e outros parâmetros complementares - insistiam na necessidade de conhecer, sobretudo, as coordenadas da estação sismográfica de onde procediam aos misteriosos sismogramas. Com este dado e com a data exata dos movimentos sísmicos - esquecimento qualificado de incompreensível por aqueles especialistas do Colorado -, seria possível uma consulta à rede de estações mais próxima completando assim o estudo. É claro que o Cavalo de Tróia nunca lhes forneceria as informações solicitadas e supostamente, para nós era mais do que suficiente a simples ratificação de que estávamos perante uma série de abalos provocada por uma explosão e não por um terremoto vulgar ou habitual. À vista das ondas longitudinais o tempo que as ondas P demoram
para chegar a cada estação em função da distância e profundidade do foco. A partir dos tempos de chegada, obtém-se com precisão a localização da fonte com uma margem de erro inferior a dez ou vinte e cinco quilômetros, se os dados sísmicos forem de alta qualidade". (N. do M)
Talvez a vinda de Eliseu à minha tenda tenha sido providencial. Eram nove horas da noite e o general continuava sem dar sinais de vida. Preocupado, o meu companheiro convenceu-me a sair à sua procura. Não era normal que em plena fase vermelha Curtiss se ausentasse durante tanto tempo. A amena temperatura daquela terça-feira e o rutilante firmamento de Massada convidavam para um passeio. De forma que, cada um com a sua lanterna e com a correspondente contra-senha, deixamos a paliçada. Em silêncio, com uma crescente inquietação, como se pressentíssemos alguma coisa, evitamos o labirinto dos armazéns herodianos, dirigindo-nos ao Palácio do Norte. Uma vez na proa do porta-aviões de pedra, vislumbramos logo o escuro perfil do general. Estava debruçado sobre a balaustrada semicircular que fecha o terraço superior. Ao ouvir os nossos passos voltou-se lentamente. - Estava esperando por vocês - exclamou com voz inflamada. Uma familiar corrente de fogo - prelúdio sempre de situações graves ou comprometedoras - percorreu-me as entranhas. - Estava esperando por vocês - repetiu com um fio de voz. E, metendo a mão direita num bolso da sua farda de trabalho, mostrou-nos os documentos que o tinham feito empalidecer no fosso. Nem Eliseu nem eu nos atrevemos a articular qualquer palavra. O general pegou então na minha lanterna, iluminando o cada vez mais intrigante relatório. - Tenho más notícias - anunciou por fim com o rosto alterado. - Esta informação, absolutamente confidencial, vem de Edwards. - E então - A voz do meu irmão surgiu repleta de impaciência. - Se isto for verdade, talvez tenhamos cometido um erro irreparável. Visivelmente esgotado, Curtiss deteve-se de novo. Eliseu fez o gesto de lhe tirar os papéis, mas, segurando-o pelo antebraço pedi-lhe calma, o general entregou-me o relatório. - Será melhor que, como médico - o leia e dê a sua opinião.
Assim fiz. E depois de uma leitura atrapalhada, o meu semblante também se alterou. Eliseu, sem pestanejar, esperava a minha resposta.
- Bom, Mas isto não parece definitivo. - balbuciei sem muita convicção. - Pelo amor de Deus! - explodiu o meu companheiro. - Que raio está acontecendo? Comecei a minha explicação, buscando termos pouco complicados. - Qualquer coisa anormal nas cobaias do laboratório. Parece que os rapazes de Mojave, estabeleceram uma estreita relação com as experiências de inversão de massa dos swivels. Perante o olhar de incredulidade tive que lhe mostrar várias microfotografias que acompanhavam os documentos. Numa delas, marcados com uma flecha, apareciam os pigmentos do envelhecimento (lipofucsina), típicos da passagem do tempo nos neurônios e em outras células fixas osmitóticas ou sumamente diferenciadas dos mamíferos e restantes animais pluricelulares. A microfotografia em questão apresentava o aspecto característico do referido pigmento num neurônio do cérebro de uma cobaia de oito meses 1. (A imagem tinha sido aumentada quinhentas vezes) - continuei sem muitas esperanças de que captara o sentido dramático das minhas palavras - A presença destes pigmentos do envelhecimento seria normal se não fosse um pormenor arrepiante: esses neurônios das cobaias começaram a morrer vertiginosamente rápido à partir do momento em que foram submetidos a sucessivos processos de inversão de massa. O que, num envelhecimento natural, precisaria de meses ou anos, nessas circunstâncias mudou em questão de dias. Não sei se me explico com suficiente clareza. * Está comprovado que o corpo dos mamíferos, incluindo o do homem, contém nos seus tecidos células que envelhecem e outras que, pelo contrário, conservam o seu aspecto juvenil, mesmo em seres velhos. Um exemplo das primeiras são os neurônios do cérebro e as que se alojam nas fossas de Lieberkuhn, no duodeno. As segundas - amebóides - têm uma capacidade inesgotável de crescimento. (N. do M)
- Mas porquê? - interpelou-nos Eliseu, que intuía o alcance daquelas descobertas. - Isso não ‚ claro - retorqui, apontando para o relatório. - Parece que durante o tempo infinitesimal da inversão dos swivels há qualquer coisa que afeta os neurônios, superexcitando-os ou provocando-lhes um cansaço e o subseqüente e galopante consumo de oxigênio. E isso, como deve
saber, é uma arma de dois gumes. O homem, na sua dependência aeróbica de ser pluricelular altamente diferenciado, deve ao oxigênio a sua vida e o seu envelhecimento. Estamos, em suma, perante a teoria dos chamados radicais livres, proposta pelos doutores Harman, Nagy, Hosta e outros. Os radicais livres, para que me compreenda, na minha qualidade de médico, e a partir dessa fatal descoberta, consultei as mais avançadas hipóteses acerca do obscuro problema do envelhecimento humano. Em especial, as formuladas por homens como Harman, da Universidade de Nebraska (pai da teoria dos radicais livres); Warburg, Prêmio Nobel, que identificou o oxigênio como o grande responsável da diferenciação celular; J. Miyuel, chefe da Seção de Patologia Experimental do Ames Research Center da NASA; Imre Zs-Nagy. E muitos outros. Todos, à sua maneira, coincidiam em que o calcanhar de Aquiles do envelhecimento não está nas células que têm capacidade de divisão, mas nas que, como o neurônio. perderam a virtude da proliferação e que, devido ao seu elevado consumo de oxigênio nas mitocôndrias, sofrem uma desorganização perioxidativa mais não são do que o oxigênio normal, transformado e ativado pelas células. Pois bem, se excitamos um neurônio, o seu consumo de oxigênio multiplica-se e os R-OH (radicais livres) atuam como oxidantes poderosos e corrosivos, acelerando o seu envelhecimento, e até mesmo a paradoxalmente, um consumo anormal de oxigênio por parte dos neurônios leva-nos, definitivamente a uma evolução senil. Mesmo havendo toda uma gama de fatores ambientais e de dieta que contribuam igualmente para a ação oxidante dos R-OH, o stress é, possivelmente, um dos grandes culpados. Já reparou como e a que velocidade envelhecem os estadistas ou os executivos?
Miquel, que pôs à prova a teoria do doutor Harman, explica isso quando diz: “A nossa hipótese está no genoma mitocondrial ser a chave. A sua vulnerabilidade abre o caminho à evolução senil. O envelhecimento celular ‚ o resultado da toxicidade do oxigênio, ou melhor, dos radicais livres” (ROH). Estes radicais surgem durante a redução univalente do oxigênio na cadeia respiratória mitocondrial (N. do M) 2 Dentro da programação genética da duração da vida, como assinala o doutor A. Hosta, a teoria da sua limitação pela toxicidade dos radicais livres ao nível celular está na seqüência coerente dos conhecimentos e das experiências dos últimos anos. A escassa divulgação do conceito R-OH leva-me a considerar, aqui e agora, o que são e como agem. Com isso, o leitor poderá aproximar-se melhor da natureza da nossa tragédia. Os “R
O1” são compostos químicos de gênese plural, com uma grande capacidade de reação e alto poder oxidante. Digo gênese plural porque podem ter origem tanto ao nível celular, resultado forçoso da respiração aeróbica da célula, como pela ação direta ou induzida da contaminação do meio que os rodeia: meio ambiente, radiações, alimentação, etc. Os R-OH atuam interferindo com a sua capacidade reativo-oxidante nos esquemas de funcionamento metabólico preestabelecidos. Os R-Ohf são responsáveis pela peroxidação dos ácidos gordos insaturados dos fosfolípidos componentes das membranas biológicas. Ao desorganizarem as membranas celulares e os seus pequenos órgãos, acumulam lipopigmentos (fundamentalmente no cérebro e no coração). incrementam o eross-linking de macromoléculas (especialmente colágenos e elastinas) geram a fibrose arteríolo-capilar e degradam os mucopolissacarídeos. O microscópio eletrônico mostra-nos as mutações morfológicas que a ação dos R-OH introduz na célula, sobretudo quanto à perda de estrutura (membranas), diminuição do número de mitocôndritis (fonte da energia celular ou ATP) e inclusões no citoplasma de lipopigmentos inertes (lipofucsina. etc). Do ponto de vista funcional, o panorama anterior implica uma perda de funcionalidade da célula que, na destruição da mitocôndria, alcança o clímax da evolução celular. Já que não pode responder à demanda de energia (noventa por cento da energia celular provém da mitocôndria). e Já não só à demanda normal quanto mais aos grandes tiumentos de consumo que o organismo do paciente vai exigir inúmeras vezes.
O meu companheiro caiu num profundo abatimento. - No entanto - retomei tentando animá-lo e animar-me - não pode ser tomado como definitivo. No fim de contas, os resultados, em animais de laboratório nem sempre são aplicáveis ao homem. Curtiss e o meu irmão ouviram-me com benevolência. A verdade é que nem eu próprio concedia muita credibilidade a esse raciocínio. No fundo nem eu conseguia compreender o meu próprio comportamento. Talvez eu, como Eliseu fosse vítima de um erro fatal da Operação Cavalo de Tróia. E, no entanto, em lugar de me mostrar nervoso, estava lutando para tirar importância do assunto. Nunca consegui encontrar uma explicação para o porquê daquela serenidade fora do normal. - A verdade - argumentou o general, abandonando o seu mutismo e pegando de novo os documentos - é que estamos perante uma grave possibilidade. E, para confirmá-la ou não, só há um meio: voltarem para
casa de avião e submeterem-se a um minucioso exame médico. Aqui não temos especialistas nem meios adequados. Se o processo de inversão de massa afetou também o seu cérebro, talvez ainda tenhamos tempo de evitar uma catástrofe.- suspirou ruidosamente o general, levantando os olhos para as estrelas, encerrando-se numa nova e prolongada meditação. Um estranho tremor invadiu-me dos pés à cabeça. Eu sabia o que significavam as últimas frases do chefe do Projeto. Mas uma súbita e importante pergunta do meu companheiro veio dispersar os meus receios. - Senhor, por que motivo não fomos avisados antes do primeiro salto? Será que a falha não foi detectada nas experiências preliminares? Eliseu, com a sua pergunta, Já tinha inconscientemente respondido. O general desenhou nos seus lábios um amargo sorriso. - Está Insinuando que, se o soubéssemos antecipadamente, o projeto os teria lançado para essa aventura? - Não suponho que não. - reconheceu Eliseu, baixando os olhos. - A única coisa que posso dizer - revelou-nos Curtiss, pedindo indulgência - é que, em todos os ensaios prévios com animais de laboratório, o controle e acompanhamento dos especialistas se concentraram no comportamento das funções vitais das cobaias. E nunca foi detectada uma alteração grave. Certamente, sabemos agora, devíamos ter insistido nas explorações com os scanners, a nível cerebral, exatamente como tinha sugerido o doutor Shock, de Baltimore. Meu Deus! Aquela confissão trouxe-me à memória a inexplicável obsessão do general pela nossa segurança pouco antes do lançamento do módulo na mesquita da Ascensão. E ainda que nunca chegasse a censurálo por isso, naquele momento tive certeza de que o chefe da operação sabia qualquer coisa, muito antes de Janeiro de 1973. - Mas quem podia imaginar que se registraria uma alteração desta natureza e num lugar tão oculto como o sistema de neurônios? Nisso, Curtiss tinha razão. Por outro lado, a má sorte - ou não foi a má sorte? - fez com que a maioria daqueles animais utilizados nas inversões dos swivels fosse esquecida ou sacrificada uma vez concluídas - satisfatoriamente - as experiências. O caráter secreto e militar do Cavalo de Tróia, e a pressa inerente a este tipo de operações, não eram conciliáveis, evidentemente, com uma verdadeira e sensata política de investigação científica. Mas nada disto tinha solução. Era necessário enfrentar os fatos. Agora eu compreendia a razão da palidez do general na piscina e o porquê do seu anormal isolamento na solidão do rochedo. Sentia-se
responsável. E, de repente, como se fosse uma pancada, anunciou-nos o que, sem dúvida, era fruto de uma prolongada e penosa reflexão: - Eu decidi. Não haverá segunda exploração. Fiquei paralisado. Praticamente, senti-me pregado ao chão de Massada. E o general, sem mais comentários, fez menção de se retirar. Se não fosse por Eliseu, tudo teria acabado ali mesmo. Mas o meu companheiro, recuperada a sua habitual frieza, interpôs-se no seu caminho. E, pondo as mãos nos ombros de Curtiss - um gesto muito familiar para mim -, falou-lhe nos seguintes termos: - Um momento. Eu acho que você está enganado. Cansado, o general olhou para ele sem compreender. - De qualquer forma - acrescentou Eliseu com calor -, nós é que deveríamos tomar essa decisão. Os nossos cérebros ‚ que estão teoricamente lesados. Se a descoberta de Edwards não fosse sobre nós, reconhece que teríamos perdido uma oportunidade única. Se, pelo contrário, não se enganaram e os nossos neurônios estão danificados, esta - pense bem! - é uma ocasião que não podemos nem devemos desperdiçar. Curtiss moveu a cabeça, aturdido. - Escute, velho teimoso! Estamos a um passo da decolagem. Você mesmo reconheceu: agora é impossível analisar os nossos malditos cérebros. Em compensação, se continuarmos com o plano previsto, esta terceira e quarta inversões podem fornecer novos e preciosos dados sobre o assunto. Como você sabe, tanto eu como Jasão voltaríamos a uma missão fatal ou estimamos** as nossas vidas e não nos parece irreversível. Acredito que os médicos e especialistas talvez pudessem impedir ou remediar mais a alteração neurônica se contassem com uma série de testes. O meu irmão procurou apoio para o seu duvidoso raciocínio lançando-me um olhar de que jamais me esquecerei. E, deixando-me guiar pela intuição, acabei de encurralar o frágil ânimo do nosso chefe. - Estou de acordo. Se da valor realmente as nossas vidas, permita que sigamos em frente. E, aí sim - reforcei com toda a autoridade de que fui capaz -, exigimos um controle minucioso no momento da inversão dos swivels. Como deve ter visto, as condições físicas e mentais dos seus astronautas não podem ser melhores. Mais ainda - acrescentei sem muito convencimento -, duvido muito que os nossos neurônios estejam afetados. Aquela meia verdade naufragaria no meu coração. Quase simultaneamente, me lembrei das escamas e das manchas cor de café que tinham aparecido na minha pele. Era mais do que provável que aqueles
sintomas de envelhecimento estivessem dando razão aos cientistas da Base Edwards. Mas, graças a Deus, Curtiss ainda não tinha sido informado pelo menos não naquela altura. Eliseu e eu descobrimos um fundo de complacência no ressuscitado olhar do nosso amigo. - E então? - incitou-o o meu irmão. O general pigarreou, tentando ganhar tempo. - Não sei. - murmurou com teimosia. - Curtiss! Em nome da nossa amizade, confie em nós! - Não sei. Tenho que pensar nisso. E, esquivando-se das mãos de Eliseu, voltou-nos as costas rumo ao acampamento. Alguns segundos depois, deteve-se. Girou sobre os calcanhares e, com os olhos úmidos, sussurrou: - Deus os abençoe. Aquela noite de terça-feira, 6 de Março, foi, simplesmente, um pesadelo. Suponho que Curtiss, como nós, também não conseguiu conciliar o sono. A frio na solidão da minha tenda, a informação procedente do deserto de Mojave se instalaria para sempre na minha vida. Os dados eram escassos e não totalmente comprovados, mas tragicamente corretos. Eu o sabia, na minha perspectiva atual quero agradecer à Providência o fato de as coisas me terem acontecido senão tivesse chegado aquele envelope lacrado e nem o meu companheiro nem eu teríamos tomado uma decisão que - felizmente tomamos - em plena segunda exploração. Mas essa é outra história, que terei de contar mais adiante. Por enquanto - e sobre isso não havíamos mentido - os nossos cérebros continuavam a funcionar normalmente. Mas até quando? Entre as confusas explicações científicas expostas no fatídico documento, havia uma que, intencionalmente, passei por alto na nossa conversa no extremo norte de Massada. Segundo os neurofisiólogos, a maior parte das mutações observadas nos cérebros das cobaias registravase no hipocampo. E eu sabia que essa área cerebral regula o conceito e a sensação de espaço e de tempo. Em inúmeros casos de demência senil, por exemplo, o envelhecimento do hipocampo é uma realidade clara e indiscutível. O que aconteceria a Eliseu e a mim se os nossos respectivos hipocampos se vissem igualmente lesados? Uma perda de memória em tais circunstâncias, só para dar um exemplo, teria sido o fim. Assaltado por estes e outros não menos funestos pensamentos, acabei
por saltar da cama e sair da tenda. Uma brisa suave começara a soprar de norte, fazendo baixar a temperatura e arrancando trêmulas e intermitentes cintilações brancas e azuis das estrelas. Comecei a andar sem rumo. Excetuando os dez vigilantes israelitas e o correspondente turno ocupado nos trabalhos do fosso, o resto do acampamento dormia placidamente. Contornei o bordo norte da piscina e, procurando um canto solitário, dirigi-me para o setor leste da paliçada. Quando Já estava a poucos metros dos sacos de terra, a inesperada presença de um vulto escuro sobressaltou-me. Ao ver-me, o indivíduo pôsse de pé, avançando em direção a mim. A escuridão era tanta que só quando chegou a um metro de mim ‚ que distingui a robusta silhueta de Eliseu. Tal como eu, também ele não conseguira adormecer. Mas as suas razões eram outras. Sentados sobre os sacos, e sem necessidade de pressioná-lo, abriu-me o seu coração, confessando-me porque tomara aquela valente e insólita atitude perante o general. De certo modo, o desejo do meu irmão não era novo para mim. Ele Já o tinha insinuado durante a nossa estada em Jerusalém: Desejava, precisava de ver Jesus de Nazaré face a face E aquela segunda oportunidade talvez não voltasse a se apresentar. Não podia permitir que uns malditos relatórios, por muito graves que fossem, arruinassem os seus propósitos. - E mais - acrescentou com veemência -, se for preciso, continuarei a mentir e a fingir. - A mentir? - interrompi-o sem compreender. - Meu querido amigo - manifestou ele como se lesse os meus pensamentos -, o teu destino e o meu estão unidos. Não nos enganemos. Sabe muito bem que não fui sincero ao antepor o interesse científico da missão à nossa sobrevivência. Não me preocupa mesmo nada saber se, com as novas inversões de massa, se consegue impedir ou não o mal que se instalou no nosso organismo. Foi a primeira coisa que me ocorreu naquele momento crítico e foi como se Deus me tivesse iluminado. Curtiss duvidou. Não acha? - É claro que não. O general - disse-lhe eu claramente - não é homem fácil de enganar. Mas numa coisa tem razão e ele soube captar e agradecerte por isso: a decisão de levar a cabo a segunda exploração depende, agora mais do que nunca, de nós. Eliseu Já conhecia a minha posição a este respeito, mas, com a sua natural candura, pressionou-me para que eu a expressasse de novo.
* O hipocampo ‚ uma saliência alongada que ocupa a parede externa do divertículo esfenoidal de cada ventrículo lateral do cérebro. (N. do M)
- Está bem - tranquilizei-o -, eu também quero voltar. E compartilho os teus sentimentos: não é a procura de um remédio para o nosso mal que me move a isso. É Ele que me puxa. O meu companheiro sorriu, satisfeito. E, embora ambos soubéssemos que era Curtiss quem teria a última palavra, nos deixamos levar pelo entusiasmo e pela esperança, discutindo e analisando até ao amanhecer os pormenores da nossa segunda e ainda hipotética missão. E, justamente ao amanhecer, as nossas dúvidas se veriam definitivamente dissipadas. - Muito bom dia. rapazes! Eliseu, perplexo, não conseguiu responder ao general. Quase que tive de arrastá-lo para a mesa onde, solitariamente, tomava uma fumegante e apetecível xícara de café. O rosto do nosso chefe estava transfigurado. Aquela cordialíssima saudação e o sorriso franco e prolongado, tão opostos ao semblante sombrio da noite anterior, deixaram-nos estupefatos. Que teria acontecido depois de tomar uns goles, divertido, repetiu os bons dias e foi diretamente ao que deseJávamos ouvir: - Vocês ganharam. A missão seguirá em frente. Faltou pouco para que o meu irmão saltasse em cima dele para abraçá-lo. Curtiss e eu o acalmamos, fazendo-lhe ver que não estávamos sozinhos no refeitório. - sentenciou, ao mesmo tempo que apontava para os documentos que guardava numa das algibeiras. - Sobretudo que ninguém saiba, pelo menos até vocês regressarem, da existência deste relatório. Aceitamos com um fulminante e afirmativo movimento de cabeça. No entanto, enquanto Eliseu, com o entusiasmo recuperado, devorava seu pequeno-almoço, Curtiss leu no meu olhar: O que tinha feito mudar de idéia?, - Suponho que têm direito a saber o porquê desta decisão. O general esfregou o rosto suavemente, fechando os olhos cansados e avermelhados. Quando tirou as mãos, o sorriso inicial tinha-se transformado num trejeito solene. - Como sabem, os graves acontecimentos que se aproximam no Oriente Médio ditaram Já a sentença da Operação Cavalo de Tróia. Esta é, portanto, a nossa última oportunidade de voltar. E, dado que vocês, meus queridos exploradores, livre e voluntariamente, colocaram o interesse
histórico e científico da missão acima da vossa própria segurança e sobrevivência. não serei eu a opor-me. Compreendo que há momentos na vida de todo o ser humano em que um ideal pode e deve prevalecer até sobre os interesses individuais ou pessoais. Nenhum de nós, agora é suficientemente consciente da transcendência do que temos em mãos. Será a História, um dia, a julgar a Operação Cavalo de Tróia. E, antes de se retirar, comovido, resumiu os seus sentimentos com as mesmas palavras que pronunciara diante do Palácio do Norte: - Que Deus vos abençoe. Tal como eu imaginava, apesar de se ter referido ao interesse histórico e científico da missão, o general estava a par das verdadeiras motivações que nos tinham levado a continuar. Curiosamente, tínhamo-nos convertido os três em cúmplices de um sonho. Trinta e seis horas antes do lançamento do berço, a atividade na piscina alcançou níveis inimagináveis. O renovado otimismo de Curtiss foi determinante. Tudo estava pronto. O módulo, definitivamente montado e com os novos equipamentos a bordo, esperava unicamente o atestar dos tanques de combustível. Mas, por estritas razões de segurança, o carburante não seria introduzido até à manhã do dia seguinte, sexta-feira. O resto daquela quinta-feira, 8 de Março, mesmo arrastando o cansaço de uma tensa e dramática noite de vigília, transcorreu num abrir e fechar de olhos. As reuniões com a equipe de diretores sucederam-se até à tardinha. Os planos da segunda exploração foram revistos várias vezes, prestando uma especial atenção aos vôos obrigatórios da nave de Massada ao monte das Oliveiras e vice-versa. Todos estávamos conscientes da transcendência daquela navegação. Qualquer falha, quer na ida quer na volta ao rochedo, podia ser desastrosa. Mas deixarei para depois os pormenores do nosso plano de vôo, assim como a descrição de algumas inovações introduzidas no módulo e nos equipamentos tendo em vista esta fascinante exploração no ano 30 da nossa Era. O que desejo anotar, aqui e agora, é um fato ocorrido nessa mesma noite de quinta-feira e que, na minha opinião, veio confirmar o que Já sabíamos em relação às verdadeiras e profundas motivações do general Curtiss no momento de autorizar aquele segundo lançamento. Por outro lado, acho que - de acordo com a minha intenção de transcrever fiel e escrupulosamente tudo o que vi e ouvi na Palestina de Cristo ‚ este um momento adequado para introduzir um relato que tinha ficado pendente: o diálogo de Jesus de Nazaré com os amigos mais íntimos na
histórica última ceia de quinta-feira, 6 de Abril. Por razões estritamente éticas, como assinalei em páginas anteriores, não me foi permitido estar presente em tão notável acontecimento. Mas, graças às gravações captadas a partir do módulo e aos meus diálogos com André, o irmão de Simão Pedro, o importantíssimo banquete pode ser reconstituído pelo Cavalo de Tróia. Antes de entrar plenamente na transcrição do mesmo, é minha obrigação recordar uma coisa que Já indiquei na devida altura: pela enésima vez, como conseqüência inevitável da passagem do tempo, muitas das palavras do Mestre da Galiléia naquela última ceia seriam mutiladas, ignoradas e, o que ‚ pior, adulteradas pelos chamados "escritores sagrados", e, em última instância, pelas próprias Igrejas, Com o passar dos séculos a maravilhosa mensagem protagonizada por Jesus naquela quintafeira santa foi caricaturizada e reduzida a uma mera fórmula matemática. Foi por volta das dez horas da noite. Eu tinha ido descansar quando, inesperadamente, se apresentou na tenda um dos vigilantes israelitas. Curtiss reclamava a minha presença. A princípio pensei que se trataria de alguma comprovação técnica. Mas, ao ver que nos dirigíamos para o portão da paliçada, a minha curiosidade voltou a acender-se. Ao dar-me a contra-senha, o israelita indicou-me o Palácio do Norte, explicando-me que o general e outro colega estavam à minha espera ao pé do terraço superior. Um tanto alarmado, dirigi os meus passos para o setor em questão. Ali, de fato, descontraídos e em animada conversa, encontrei o meu irmão e o chefe da operação. Ao ver-me, Curtiss disse-me que me sentasse ao pé deles, no chão do terraço. E, sob o branco silêncio de milhares de estrelas, num tom doce, quase suplicante, pediu-me que, antes de partir, lhe satisfizesse um íntimo desejo seu, materialmente sufocado até àquele momento pelas circunstâncias: - Fale-me dEle! Realmente, os infelizes acontecimentos que nos tinham dominado desde que colocáramos o módulo no hangar da mesquita da Ascensão, as suas viagens e mudança para Massada, não nos tinham permitido uma serena e sossegada troca de impressões sobre a incrível personagem que fora o motivo do nosso primeiro salto. E apesar de ter me sentido feliz por poder falar de Jesus de Nazaré, da Sua impressionante atração humana, das Suas palavras e da Sua fascinante personalidade, tive um cuidado especial em não mostrar uma
veemência excessiva. A sagacidade do general não tinha limites e um erro nesse sentido, revelando o meu entusiasmo por Ele e pondo em causa a nossa obrigatória objetividade talvez tivesse repercussões como exploradores de outro tempo, mais graves que as da descoberta de Edwards. Mais ainda, precavendo-me, manifestei algumas dúvidas em torno da Sua suposta ressurreição, acrescentando com toda a intenção que a nova exploração poderia tornar-se altamente esclarecedora nesse sentido. Curtiss ouviu durante várias horas a minha exposição quase sem fazer perguntas. Mas, ao chegar a quinta-feira santa e ao lembrar-lhe do burro lazarento e dos seus apóstolos, e que as suas palavras tinham sido gravadas no berço, o general, com a voz alquebrada por uma súbita emoção, suplicou-me que esperasse um momento, apanhou um pequeno embrulho envolto em papel. Colocou-o no chão e, cerimoniosamente, começou a desembrulhá-lo. Ao vermos do que se tratava, Eliseu e eu olhamos um para o outro, intuindo a intenção dele. E um relâmpago de sensações se propagou dentro de mim turbando-me a mente. Curtiss ligou o diminuto gravador e uma saudosa voz - doce, profunda e brilhante como aquele firmamento - preencheu o silêncio da montanha, crispando-me a ele. O dedo do general deteve o andamento da fita, fazendo-a retroceder até ao princípio da gravação. Uma gravação que eu conhecia perfeitamente. - Jasão. Um último favor. Não consegui responder. Tinha um nó na garganta. - Quero que traduza as suas palavras. Como não respondi, Curtiss, tendo-se percebido de que Já eram quase duas horas da madrugada e, interpretando o meu silêncio como um lógico sintoma de cansaço pediu-me que entrasse e ofereceu-me um copo de café. Com o pretexto de estirar as pernas doridas, apoiou-se no meu ombro direito, batendo com o joelho no fumegante café. O café caiu sobre a minha perna e a dor fez-me reagir. O pequeno e intencional incidente devolveu-me à realidade. Preparei uma nova dose de café e, mais calmo, disse-lhe que Já estava preparado. Contudo, antes de ligar o gravador fiz-lhe um resumo de alguns dos acontecimentos anteriores aos diálogos que nos preparávamos para ouvir e que, do meu ponto de vista, eram fundamentais para uma melhor compreensão do que acontecera naquela noite no andar superior da casa
dos Marcos.
* A fim de refrescar a memória do leitor - apesar destes acontecimentos a que o Major se refere terem sido narrados pormenorizadamente no primeiro volume desta obra, considerei oportuno recordá-los neste momento. Uma vez terminada a última ceia, a narração do Major transcorria nos seguintes termos: "Os onze, pelo menos naqueles instantes, estavam muito menos tensos que durante a manhã. Despediram-se da família e eu acompanhei-os de regresso ao acampamento de Getsémani. Enquanto atravessávamos as ruas solitárias do Bairro Baixo, em direção à Porta da Fonte, no extremo sul de Jerusalém, consegui que André se separasse do grupo. E, um pouco para trás, interessei-me pela forma como correra a ceia. O chefe dos apóstolos começou a dizer-me que, tanto ele como os seus companheiros, estavam intrigados com o repentino desaparecimento de Judas e muito especialmente, pelo fato de não ter voltado ao cenáculo. "De começo, quando o vimos sair, todos pensamos que vinha ao andar de baixo, talvez à procura de algum dos víveres para a ceia. Outros acreditaram que o Mestre lhe confiara algum encargo". "Os pensamentos dos discípulos eram corretos, Já que ninguém dispunha de verdadeira informação sobre a conjura. Por outro lado, com exceção de David Zebedeu - que não participara no convite pascal - nem André nem os restantes sabiam ainda que Judas Iscariotes deixara de ser o administrador e que o dinheiro comum estava desde essa tarde em poder do chefe dos emissários". "E André continuou com a sua narrativa, destacando um fato que se dera logo à entrada no andar de cima da casa dos Marcos, e que - do meu ponto de vista - esclarecia perfeitamente a razão por que o Nazareno se decidiu a lavar os pés dos discípulos. Os evangelistas tinham dado uma versão correta: Jesus levou a cabo aquele gesto, manifestando a muito honrosa virtude da humildade. No entanto, qual fora a "chispa" ou a causa final que obrigou o Mestre a proceder à lavagem dos pés? Será que tudo aquilo era devido a uma pura e simples iniciativa de Jesus? Talvez sim e talvez não. Ao visitar a sala onde ia celebrar-se a ceia pascal, eu tinha reparado nos lavatórios, jarros e toalhas, colocados para as abluções obrigatórias de pés e de mãos. O costume judaico exigia que, antes de se sentar à mesa, o convidado devia ser lavado pelos servos ou pelos próprios anfitriões. Aquela, repito, era a tradição. No entanto, as ordens do Mestre tinham sido
terminantes: não haveria criadagem no andar de cima. E a prova ‚ que - segundo pude comprovar - os gêmeos desceram a dada altura para virem buscar o cordeiro assado. Pois bem, aí surgiu a discussão entre os doze. "- Quando entramos no cenáculo - continuou André -, todos reparamos que estavam ali os jarros e a água para a lavagem dos pés e das mãos. Mas, se o Rabi ordenara que não haveria criadagem na sala, quem se encarregaria da lavagem obrigatória? Tenho de te confessar humildemente que, tanto eu como os restantes, tivemos os mesmos pensamentos. Para Já eu não cairia tão baixo que me prestasse a lavar os pés dos outros. Essa era uma missão da criadagem. "E, todos em silêncio, dissimulamos, evitando qualquer comentário sobre a questão da lavagem. "O ambiente começou a ficar perigosamente pesado e, para cúmulo, o aborrecido assunto da limpeza pessoal viu-se envenenado por outro fato que nos irritou, originando uma azeda discussão. O Mestre tardava em subir e, entretanto, cada um de nós dedicou-se a examinar os divãs. Saltava à vista que o lugar de honra correspondia ao divã mais alto - o colocado ao centro - e novamente caímos na tentação: quem ocuparia os lugares próximos de Jesus? Suponho que quase todos voltamos a pensar o mesmo: "Será o Mestre a escolher os discípulos prediletos" E nestes pensamentos estávamos quando, inesperadamente, Judas se dirigiu para o assento colocado à esquerda do que fora reservado para o Rabi, manifestando a sua intenção de nele se sentar como convidado preferido. Esta atitude de Judas Iscariotes revoltou-nos a todos, originando-se uma desagradável discussão". Conforme fui avançando na minha exposição, o rosto do general foi refletindo a sua surpresa. De certo modo, a situação era absurda. O responsável máximo do Cavalo de Tróia - embora eu reconheça que havia razões de sobra para isso - não conhecia ainda muitos dos pormenores da nossa primeira missão nem as circunstâncias que rodearam os onze. "Mas Judas instalara-se Já no divã e João, num dos seus impulsos, fez o mesmo, apoderando-se do lugar da direita". "Como pode imaginar, a irritação foi geral. Porém, as ameaças e os protestos de nada serviram. Judas e João não estavam dispostos a ceder. Talvez o mais aborrecido fosse meu irmão Simão. Sentia-se ferido e prejudicado pelo que chamou orgulho indecente dos seus companheiros. E, visivelmente zangado, deu uma volta à mesa, escolhendo então o último lugar. justamente no divã mais baixo. A partir desse momento, os restantes
foram-se instalando onde podiam. Sabe que Pedro é bom e ama intensamente o Mestre, mas naquela altura, a sua fraqueza foi grande. Conheço meu irmão e sei porque fez aquilo. Perdido pelos ciúmes e pelo desgosto, - animei-o a que fosse sincero comigo. - Porque. - André precisava contar a alguém e desabafou: "A impertinente iniciativa de Judas e de João, Simão não hesitou em se sentar no último lugar da mesa com uma secreta esperança: que, quando entrasse o Mestre, lhe pedisse publicamente que deixasse aquele divã e fosse para o lugar de Judas ou, até mesmo, do jovem João. Desta forma, ocupando um lugar de honra, seria honrado e deixaria mal os seus orgulhosos companheiros, ainda nos encontrávamos em plena batalha dialética, recriminando-nos mutuamente pelo sucedido, quando o Rabi apareceu na abertura da porta. Vimo-lo e, bruscamente Jesus permaneceu uns instantes no umbral. O seu rosto fora ficando paulatinamente sério. Evidentemente, tinha compreendido a situação. Mas, sem fazer comentário algum, dirigiu-se para o seu lugar, ante o olhar desolado de meu irmão Pedro. Foram minutos difíceis. No entanto, Jesus foi recuperando a habitual e característica doçura e todos nos sentimos um pouco mais calmos. As conversas voltaram a surgir, ainda que alguns dos meus companheiros continuassem empenhados em se atacar por causa do incidente da escolha dos divãs, bem como da aparente falta de consideração da família Marcos, ao não ter previsto um ou vários servos para a lavagem dos pés Jesus desviou então o seu olhar para os lavatórios, verificando que, efetivamente, não tinham sido utilizados. Mas também nada disse. Tadeu começou a servir a primeira taça de vinho. enquanto o Rabi escutava e observava em silêncio. Como sabes uma vez bebida esta primeira taça, a tradição estabelece que os hóspedes devem levantar-se e lavar as mãos. Nós sabíamos que o Mestre não apreciava muito estes formalismos e aguardamos em expectativa". "Ante a surpresa geral, o Rabi levantou-se, caminhando silenciosamente para os jarros de água. Encaramo-nos, surpreendidos. e, sem uma palavra, despiu a túnica, cingindo um dos panos em volta da cintura. Depois, pegando na bacia e na água, deu uma volta completa à mesa, chegando até ao lugar menos honroso: o que meu irmão ocupava, Ajoelhando-se, com grande humildade e submissão, dispôs-se a lavar os pés de Pedro. Ao vê-lo, nós os doze nos levantamos como um só homem. Do espanto, passamos à vergonha. Jesus tomara a si o trabalho de um
qualquer criado, recriminando-nos assim pela nossa falta de consideração e de caridade. Judas e João baixaram os olhos, aparentemente mais feridos que os restantes". - Judas também - interrompi-o. com alguma incredulidade. André deteve os seus passos e, olhando-me fixamente, perguntou, por sua vez: - Jasão, tu sabes alguma coisa. Que se passa com Judas? Encolhi os ombros. procurando esquivar-me. Mas o chefe dos apóstolos insistiu e - dada a iminência da prisão - expus-lhe que, efetivamente, também eu duvidava da lealdade de Judas Iscariotes.
* últimos dias da vida de Cristo. Daí que lhe causassem uma grande comoção, por exemplo, o incidente dos divãs e a negativa dos apóstolos em lavarem os pés e as mãos. Nenhum dos evangelistas - como apontou acertadamente - tinha feito referência a esses fatos, criando assim uma imperdoável lacuna informativa que deixava incompleta a realidade histórica. A cena da lavagem dos pés aparece nos Evangelhos Canônicos como uma simples iniciativa do Galileu, desligada de qualquer outro acontecimento anterior. No entanto, basta reler os textos que os cristãos consideram sagrados para ver que o Mestre não gostava muito de iniciativas gratuitas. Todos os seus atos e palavras tiveram sempre uma razão de ser. Contudo, como Já contei e continuarei a revelar nas próximas páginas, estes não foram os únicos acontecimentos escamoteados - consciente ou inconscientemente por estes evangelistas. O microfone, dissimulado na base do candeeiro que iluminara a mesa em forma de U da última ceia, tinha respondido perfeitamente. O som foi captado cinco por cinco nos instrumentos do módulo. No meio de um solene silêncio, Curtiss ligou o gravador. E o meu coração voou para a tão histórica noite.
Prosseguimos. e ao atravessarmos o Cedron. o meu companheiro saiu do seu mutismo. Supliquei-lhe que continuasse a sua narrativa e André acabou por aceitar. - Quando Simão viu Jesus ajoelhado na sua frente o seu coração inflamou-se de novo e protestou energicamente. Como te disse, meu irmão ama o Mestre acima de tudo e de todos. Suponho que ao vê-lo assim, como um criado insignificante e disposto a fazer o que nem ele nem nós tínhamos aceitado, compreendeu o seu erro e quis dissuadir o Mestre. Porém, a decisão do Rabi era irrevogável e Pedro consentiu. Um a um, como te dizia, Jesus foi-nos lavando os pés. Depois das palavras de Pedro,
nenhum se atreveu a protestar. Num silêncio dramático, o Mestre foi rodeando a mesa até chegar ao último dos convidados. "Depois vestiu a túnica e voltou ao seu lugar. - João e Judas continuavam à direita e à esquerda do Mestre, respectivamente? - Sim. ninguém saiu dos seus lugares, com exceção de Judas, que saiu da sala pouco antes de ter sido servida a terceira taça: das bênçãos. A proximidade do acampamento obrigou-me a suspender aquela esclarecedora narrativa. No entanto, na minha mente ainda se acumulavam muitas interrogações. Como fora a revelação de Jesus a João sobre a identidade do traidor? Como era possível que os outros apóstolos não o tivessem ouvido - Não havia dúvidas de que era assim, - Já que nenhum estava a par dos atos de Judas Iscariotes. Só havia suspeitas (N. de J. J. Benítez) * Este sofisticado microfone, com pouco mais de dez gramas de peso, media vinte milímetros de comprimento, doze de largura e seis de espessura com uma antena de vinte e cinco centímetros de comprimento e um fio de dois milímetros de diâmetro. (A pequena antena, do mesmo modo que o emissor multidireccional, tinha sido perfeitamente camuflada entre as franjas que pendiam do candeeiro) Os especialistas de Cavalo de Tróia tinham feito um excelente trabalho ao incorporar no microemissor um conversor A/D (analógico-digital) miniaturizado, que eliminava qualquer ruído estranho, Dado que o som devia atravessar várias paredes antes de se propagar até ao topo do monte das Oliveiras, dividindo assim por dois o alcance máximo (calculado em cerca de dois quilômetros) a transmissão tinha sido apoiada por um telemicrofone, do tipo unidirecional, montado sobre o berço, e a que apontava diretamente para o andar superior da casa de Elias Marcos. Esta espécie de teleobjetiva sonora - sincronizada na mesma freqüência do microfone multidireccional (130 Mhz) - atuava como um zoom, apanhando e facilitando o transporte do som emitido pelo microfone espião. Um receptor Sone, excepcionalmente sensível, alimentado pela pilha SAP-IOA, fazia o resto. (N. do n)
A extrema sensibilidade do microfone tinha registrado até o ranger da porta de dupla folha, empurrada pelos companheiros de Jesus quando entraram no aposento, decididos a participarem na ceia. - O Mestre - fui comentando, enquanto ouvíamos uma série de passos e alguns murmúrios - encontrava-se no andar de baixo conversando com a
família de Elias Marcos. As vozes - todas num claro aramaico ocidental ou galileu (a língua falada por Jesus - foram-se tornando mais fortes e nítidas, à medida que os doze começaram a distribuir-se em torno do U. Durante quatro ou cinco minutos tudo correu normalmente. Mas, de repente fez-se um brusco silêncio. Segundos mais tarde, o sinal elevou-se consideravelmente. Numa confusa miscelânea, foram surgindo ameaças protestos e até maldições. Os discípulos, encolerizados, recriminavam Judas por ter se colocado no divã situado à esquerda do lugar de honra. A algazarra aumentou ainda mais quando - a julgar pelos comentários - João Zebedeu fez o mesmo, acomodando-se no divã da direita. A voz de Simão Pedro, mais exaltado do que os outros, distinguiase facilmente. Mas, também de repente, a voz rouca e poderosa do fogoso Pedro deixou de se ouvir. E entre as acaloradas acusações ouvimos uns passos que, precipitadamente, se afastavam da curvatura da mesa. - Esse é Pedro - intervim, interrompendo a gravação. - Se dirige ao divã mais baixo e afastado, como me explicou o seu irmão. - Qual foi a distribuição final em torno da mesa? - perguntou o general. - Segundo o meu informante, Judas Iscariotes e João ficaram à esquerda e à direita do Mestre respectivamente. Este, como sabe, ocupava o divã de honra, no centro do U. Os outros dispuseram-se na seguinte ordem: Simão, o Zelota, Mateus, Tiago Zebedeu e André, a seguir a Judas. À direita de João, os gêmeos Alfeu, Filipe, Bartolomeu, Tomé e Simão Pedro, nesta ponta do U. Ao ligar o microfone, e durante cinco ou seis minutos, sucederam-se, num tom mais do que vergonhoso, as violentas recriminações mútuas dos discípulos. Provavelmente, anos mais tarde, quando alguns daqueles apóstolos e seguidores do Nazareno decidiram escrever a vida e a mensagem do Filho do Homem tiveram o máximo cuidado em esquecer um incidente que, embora humano, punha em causa a dignidade do recém-nascido no colégio apostólico. Subitamente, os doze guardaram silêncio. As gravações do módulo tinham captado o leve ranger de uma porta. - Aí está Jesus. - exclamei, imaginando o Mestre no umbral do cenáculo. Cinco segundos depois, sonoros no meio de um denso silêncio, ouviam-se os passos do Gigante em direção ao centro da mesa.
Um minuto, Dois, O silêncio era geral, apenas interrompido por um ou outro embaraçoso pigarro. Pouco a pouco, as vozes foram surgindo na sala, um pouco mais descontraídas e cordiais. Jesus de Nazaré continuava calado, provavelmente observando os seus amigos. E, por fim, como se não tivesse acontecido nada, a sua voz soou doce e conciliadora, enchendo-nos a todos de uma indescritível emoção: - Desejei ardentemente - fui traduzindo com um fio de voz - comer esta ceia da Páscoa convosco. Queria fazê-lo mais uma vez antes de sofrer. Chegou a minha hora e, quanto ao amanhã, estamos todos nas mãos do Pai, cuja vontade vim cumprir. Não voltarei a comer convosco até que vos senteis comigo no reino que o meu Pai me entregará quando tiver terminado aquilo para que me enviou a este mundo. O Mestre calou-se e as conversas recomeçaram. Mas nenhum dos comensais fez referência às proféticas palavras do Rabi. Pelo contrário, vários dos discípulos retomaram a áspera polêmica dos divãs, criticando igualmente a família Marcos por não ter designado um ou dois criados que tivessem evitado o tema desagradável das abluções. Por um momento imaginei o rosto grave e talvez desiludido do Galileu, atento à polêmica. Como André me advertira, os seus olhos procuravam as jarras destinadas às abluções, verificando que, de fato, não tinham sido usadas. O ardor da discussão foi decaindo, sendo substituído pelo inconfundível som do vinho ao ser servido nos recipientes de vidro. Era o ritual da primeira taça. Dois minutos depois, cumprida a cerimônia da mistura da água e do vinho, Tadeu voltou para o lugar dele e a voz de Jesus de Nazaré - mais severa do que da vez anterior - encheu novamente o recinto. Depois de dar graças, exclamou: - Tomai esta taça e dividi-a entre vós. E quando a tiverdes compartilhado, pensai que Já não beberei convosco o fruto da videira. Esta é a nossa última ceia. Eliseu, Curtiss e eu captamos uma sombra de tristeza naquela breve pausa. - Quando nos sentarmos outra vez - concluiu o Mestre - será no reino que está por vir. Um novo silêncio caiu sobre a sala. Como Já referi, a tradição judaica estabelecia que, uma vez bebida esta primeira taça, os comensais deviam levantar-se, para procederem ao formalismo das abluções. Mas, tal como dissera o chefe dos apóstolos, a gravação sonora não detectou
qualquer movimento entre os doze. Melhor dizendo, apenas registrou o roçar das vestes de um homem que se levanta do seu assento e uns passos - os do Nazareno - contornando o U em direção às bacias. Logo a seguir, vindo daquele canto do aposento, ouvimos o barulho de um líquido - a água de um dos jarros - a ser vertido numa vasilha larga e metálica. Depois, mais três ou quatro passos, o golpe seco de uma bacia sendo colocada no chão e outro impate - de natureza desconhecida sobre o assoalho do aposento. (Possivelmente o ruído produzido pelo Galileu ao deixar-se cair de joelhos no soalho) Apenas dois segundos depois, o microfone fazia-nos chegar uma mistura confusa e enorme de sons: taças depositadas na mesa, algumas exclamações de surpresa e corpos que se levantavam precipitadamente. Eram os doze a levantarem-se dos seus bancos, aturdidos ao descobrir as intenções do Mestre. E, durante vários e prolongados minutos, silêncio. Um total e eloqüente silêncio. Ninguém parecia disposto a reconhecer a infantil e estúpida atitude geral. O final daquele dramático vazio deveu-se a Pedro. Com voz trêmula e insegura, perguntou: - Mestre, vais realmente lavar-me os pés? Jesus deve ter levantado o rosto para o impetuoso e desiludido pescador, porque, logo a seguir, ouvi-mo-lo a dizer: - Talvez não compreendais o que me disponho a fazer. Mas, de agora em diante, conhecereis o sentido de todas estas coisas. Um suspiro profundo saiu da garganta de Pedro. - Não me lavarás os pés! - Mestre - ouvi-mo-lo de novo a andar. Um tímido murmúrio acompanhou esta imperativa resolução do discípulo. Era claro que os onze concordavam com as palavras do companheiro, rejeitando o que qualificavam de penosa humilhação. Como desejei ter presenciado aquela cena e, sobretudo, ter perscrutado o rosto de Judas Iscariotes! Realmente, ele partilharia aquele sentimento? - Pedro - respondeu Jesus, num tom que não deixava lugar a dúvidas -, em verdade te digo que, se não te lavar os pés, não tomarás parte comigo no que estou a ponto de realizar. Silêncio. Quinze, vinte, trinta segundos de angustiante silêncio. Não era difícil imaginar o olhar atônito de Simão. E, finalmente, outra das típicas explosões do bom Galileu: - Então, Mestre, não me laves só os pés. Também as mãos e a cabeça! Ninguém na sala parecia respirar. Só o barulho da água revelava que
o Rabi tinha iniciado a lavagem. - Aquele que Já está limpo - interveio de novo o Mestre - só precisa de que lhe lavem os pés. Vós, que vos sentais comigo esta noite, estais limpos. Seguiu-se uma pausa. - Embora nem todos. Apuramos o ouvido, tentando captar alguma pergunta relacionada com esta observação de Cristo. Mas talvez aqueles homens não soubessem dar valor à velada acusação do Rabi. E a voz de Jesus, entremeada com o ruído da água, continuou assim: - Deveríeis ter lavado o pó dos vossos pés antes de vos sentardes para tomar o alimento comigo. Além disso, quero fazer este serviço para ilustrar um novo mandamento que vos vou dar. Não houve mais comentários, durante o tempo que o Galileu levou para lavar os pés dos seus amigos mais íntimos - trinta e seis minutos ao todo -, só os seus passos, o sucessivo ajoelhar-se em volta da mesa em que o ruído das mãos na água da bacia foram os únicos registros gravados no módulo. Concluída a operação, Jesus de Nazaré voltou para o seu divã. O ranger da madeira sob os seus pés foi desta vez, mais lento e suave. Como se as abluções o tivessem acalmado. Pouco depois, a sua potente voz soou clara e cálida: - Compreendeis o que vos fiz? Silêncio. - acrescentou em tom condescendente - Chamais-me "rabi". dizeis bem pois o sou. Então, se o Mestre vos lavou os pés porque vos negais a lavar-vos uns aos outros? Que lição deveis aprender desta atitude? Que o mestre vos fez com tanto prazer um serviço que vós vos negastes a fazer mutuamente. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que o seu senhor. Nem é o enviado maior do que aquele que o enviou. Vistes qual tem sido a forma do meu serviço em vida. Bendito seja quem tiver a graciosa valentia de fazer outro tanto. Mas, porque sois tão lentos a aprender que o segredo da grandeza no reino do espírito nada tem a ver com os métodos do mundo material? Quando cheguei a esta sala, não só vos recusáveis a lavar os pés uns aos outros, como também, além disso, discutíeis sobre quem deve ocupar os lugares de honra em torno da mesa. Essas honras são os fariseus, e as crianças, que as buscam. Mas não será assim entre os mensageiros do reino celestial. Será que não sabeis que não pode haver lugar de preferência na minha mesa? Não compreendeis que vos amo a
cada um de vós como aos outros? O lugar mais próximo de mim pode não significará nada em relação ao vosso lugar no reino dos céus. Não ignorais que os reis dos gentios têm poder e majestade sobre os súditos e que até são chamados benfeitores. No reino dos céus não será assim. Se algum de vós quiser ter a referência, que saiba renunciar ao privilégio da idade. E se outro deseja ser chefe, que se torne servidor. Quem é maior: o que se senta para comer ou o que serve? Não é o primeiro que é considerado o mais importante? Mas, no entanto, vede que eu estou entre vós como aquele que serve. Em verdade, em verdade vos digo que se agirdes assim, fazendo comigo a vontade do Meu Pai, então, sim, tereis um lugar ao Meu lado, no poder. Quando Jesus acabou, parei o gravador, alertando o absorto general para as cenas que iríamos ouvir e que dão uma nova luz às confusas explicações dos evangelistas acerca de Judas e da sua traição. Perto das oito horas daquela noite de quinta-feira, 6 de Abril do ano 30 da nossa Era - uma hora, mais ou menos depois do início da histórica última ceia - os sensíveis receptores instalados no berço registraram uma série de passos e o agudo lamento dos gonzos da porta a abrir-se. Aqueles sons correspondiam à primeira saída dos discípulos do cenáculo. Eram os gêmeos, Tiago e Judas de Alfeu, que iam ao andar de baixo buscar parte da ceia. Lembro-me muito bem dos seus rostos, extraordinariamente tristes. O regresso à sala foi marcado por um segundo ranger da porta por mais passos sobre o assoalho, pelo bater de pratos e pelo alegre ruído da água e do vinho sendo servidos. Durante breves minutos, Curtiss assistiu - entre o divertido e o escandalizado - a uma inconfundível "sinfonia de sons". Aqueles homens rudes não se distinguiam, precisamente, pela sua delicadeza ao comer ou beber. Era evidente que os apóstolos tinham fome. Durante cinco ou dez minutos, ninguém fez o menor comentário. Mas, pouco a pouco no meio do segundo prato, começaram a surgir algumas graças acerca do cordeiro assado. O Galileu, recuperando o seu característico e habitual bom humor, interveio também, fazendo um caloroso elogio da jar“set: uma geléia à base de vinho, vinagre e frutas esmagadas feita pela mãe do pequeno João Marcos e cuja finalidade era aliviar o forte sabor das obrigatórias ervas amargas. Assim, a conversa foise tornando, progressivamente, mais alegre e intranscendente. Como se nada tivesse acontecido. Mas o Mestre tinha ainda muitas coisas para
dizer. E a sua voz voltou a soar, cinco por cinco, anunciando, pública e oficialmente, a traição de Judas Iscariotes: - Já vos disse quanto desejava celebrar esta ceia convosco... Jesus de Nazaré parecia perturbado. - ... E sabendo de que forma as forças demoníacas das trevas conspiraram para levar à morte o Filho do Homem, tomei a decisão de cear convosco, nesta sala secreta e um dia antes da Páscoa... Os discípulos, a julgar pelos estalidos esporádicos das suas línguas, pelo barulho dos ossos ao serem atirados para os pratos e por um ou outro generoso arroto, continuavam comendo, mais atentos, ao que parecia, aos deliciosos manjares do que às frases proféticas do Rabi. - ... dado que amanhã, a esta mesma hora, Já não estarei convosco. O dramático anúncio de Cristo deve ter sido captado por alguns apóstolos porque, de repente, a movimentação da ceia diminuiu. E o silêncio tornou-se mais intenso. - ... Disse-vos repetidas vezes - continuou o Nazareno - que tenho de voltar para o Pai. Agora é chegada a minha hora, embora não fosse necessário que um de vós me traísse, entregando-me aos meus inimigos. Depois destas palavras a ausência de sons foi tal que Curtiss chegou a perguntar se tinha havido alguma falha na transmissão. Neguei com a cabeça. Pela primeira vez, os amigos do Galileu - alertados pelo próprio Rabi - começavam a tomar consciência da existência de um renegado no seio do grupo. Aquilo foi tão grave e inesperado que precisaram de vários minutos para reagir. Por fim, um após outro, timidamente, fizeram a mesma pergunta: - Serei eu? Intencionalmente, a fim de que o general reparasse no que estava prestes a acontecer, fui contando e identificando a origem das sucessivas perguntas. Ao chegar ao décimo primeiro "serei eu?" - todos sem resposta por parte do Nazareno - parei o gravador. - Você notou - disse-Lhe eu - que Judas foi o único que não perguntou. ... - É óbvio - retorquiu Curtiss. - Judas Iscariotes, embora traidor, não era burro. - Observe o que vem a seguir... Liguei o gravador e, depois do décimo primeiro "serei eu?", surgiu a voz de Cristo, repetindo parte do que Já expusera antes: - É preciso que Eu vá ao Pai. Mas, para cumprir a Sua vontade, não era preciso que um de vós se convertesse em traidor. Isto é fruto da
maldade de um ser que não conseguiu amar a Verdade... Que falso é o orgulho que precede a queda espiritual! Um velho amigo, que até agora, come o meu pão, está desejoso de me trair. Até mesmo agora - reiterou o Galileu, dando uma ênfase especial às suas palavras - que mete a sua mão no prato juntamente com a minha... A esta nova alocução seguiram-se murmúrios e um ou outro repetitivo "serei eu?". Mas o Mestre não respondeu. Os comentários entre os discípulos generalizaram-se e foi esta, com quase toda a certeza, a razão de nenhum dos onze ter prestado atenção a um imediato e lacônico diálogo entre o Judas Iscariotes e Jesus. - No meio daquele marasmo de opiniões, Judas - reclinado à esquerda do Mestre - perguntou, por sua vez, ainda que num tom dificilmente perceptível pelos outros: - Serei eu? A meu pedido, durante as horas que antecederam a decolagem do módulo e em que tive a oportunidade de ouvir esta gravação pela primeira vez, Eliseu tinha neutralizado o ruído de fundo, amplificando até ao máximo aquele breve diálogo e os poucos sons que pareciam vir do centro da curvatura do U. Graças a este milagre da técnica foi possível reconstituir um pormenor que, como Já disse, não aparece de todo claro na exposição dos evangelistas. Uma vez feita a pergunta de Judas, o Rabi mergulhou um pedaço de pão no prato de ervas que tinha à sua frente, oferecendo-o ao traidor. Segundos depois de perceber o ranger do pão partindo-se no fundo de madeira do prato Jesus - também a meia voz - respondeu com o seu fatídico... "Tu o disseste!" Não houve silêncio ou qualquer sintoma que, depois da curta conversa entre Judas Iscariotes e o Rabi, revelassem que os outros onze tinham ouvido a confirmação definitiva da traição. Normalizada a gravação, esta apenas ofereceu uma continuação dos atropelados e confusos comentários dos apóstolos,- discutindo acaloradamente acerca da identidade do hipotético renegado. É mais do que lógico que bastava que um dos que se sentavam mais perto do Galileu o tivesse ouvido, para que a polêmica morresse logo. A prova disso é que, pouco depois, João Zebedeu - reclinado à direita do Mestre, e num nível de audição sumamente baixo, como se a pergunta tivesse sido feita quase ao ouvido (o próprio João, ao referir-se a este episódio, especifica que (se inclinou sobre o peito de Jesus) - lhe perguntaria: - Quem é?... Devemos saber quem é infiel à sua crença. E o Rabi - num tom igualmente confidencial - respondeu:
- Já vo-lo disse: aquele a quem dou pão molhado... Não houve resposta de João. O costume do anfitrião ou do convidado de honra oferecer pão embebido num molho era tão comum naquelas celebrações que, muito provavelmente, nenhum dos onze - no caso de o ter visto - deve ter dado muita importância a este gesto tão específico. Naqueles momentos que antecederam a segunda exploração duvidamos até que João, tão próximo da cena em questão, tenha captado o sinal de Jesus. (Este era outro dos muitos pontos a ser esclarecido no iminente regresso ao ano 30.) Jesus de Nazaré permaneceu calado. Na sala continuava a batalha dialética. E, inesperadamente, de uma das pontas da mesa, uma excitada e inconfundível voz eclipsou as restantes. Era Simão Pedro. - Pergunta-Lhe quem é!... Ou, se Já te disse, diz-me quem é o traidor. Pela direção do som parecia provável que a sugestão do nervoso galileu se tinha dirigido a João. No entanto, este não teve a oportunidade de satisfazer a curiosidade de Pedro. (Supondo, é claro, que o soubesse naquele momento.) Os cochichos e as hipóteses peregrinas dos apóstolos foram interrompidos de repente por Jesus. - Entristece-me - disse-lhes ele - que este mal tenha chegado a prosperar. Esperava, mesmo até esta hora, que o poder da Verdade triunfasse sobre as perversidades do mal. Mas estas vitórias não se ganham sem fé e sincero amor pela Verdade. Não vos diria isto na nossa última ceia, se não desejasse avisar-vos e preparar-vos acerca do que está agora sobre nós... Apesar da nitidez das suas palavras, Curtiss, Eliseu e eu estivemos de acordo numa coisa: aqueles onze rudes judeus não pareciam compreender o verdadeiro alcance daquelas revelações. Como Já narrei anteriormente, os acontecimentos ocorridos nas horas que se seguiram ao convite nos dariam a razão. - Falei-vos disto porque desejo que recordeis, depois da minha partida, que eu sabia de todas estas malvadas conspirações e que vos avisei da traição. E faço-o para que possais ser mais fortes face às tentações e julgamentos que temos justamente pela frente. Concluídas estas advertências, o Nazareno, num tom imperativo e suficientemente alto para que todos pudessem ouvi-lo, dirigiu-se a Judas, comunicando-lhe: - O que decidiste fazer... faça-o depressa. Eram nove horas da noite. Judas Iscariotes não abriu a boca. Levantou-se do assento e o ranger precipitado da madeira sob as suas
sandálias de couro revelou-nos que se dirigia para a porta e para o inevitável... Nessa altura, João Zebedeu tinha razão. Nenhum dos presentes - nem mesmo o próprio evangelista - entendeu o sentido real da ordem de Jesus. Entre outras razões porque, como expliquei em páginas anteriores, supunham que Judas continuava como administrador do grupo. (Judas Iscariotes, como se sabe, havia horas que transferira a bolsa comum a David Zebedeu, o chefe dos emissários:) Todos acreditaram que a ordem do Mestre - o que decidiste fazer... faça-o depressa - tinha alguma relação com a sua tarefa diária como "pagador" ou "tesoureiro". Quando Judas Iscariotes abandonou a sala, Curtiss fez um comentário interessante. Uma observação que provocou rios de tinta e grandes polêmicas. ao longo da História: - Então é verdade que o traidor não chegou a comungar... A minha resposta - um imediato e irônico sorriso - deixou-o perplexo. - Não te compreendo - acrescentou num tom de lógica censura. - Vai entender Já - retorqui. - Prepare-se para ouvir uma coisa que nada tem a ver com o que escreveram três dos quatro evangelistas e, muitíssimo menos, com a posterior interpretação das Igrejas... - Quer dizer que não houve instituição da Eucaristia? Neguei-me a responder. Liguei de novo a gravação, convidando-o a que prestasse toda a sua atenção. Como eu dizia, os discípulos não deram muita importância à saída precipitada de Judas Iscariotes. Mais ainda, a discussão sobre a identidade do traidor se prolongaria durante mais alguns minutos. É quase certo que Jesus deve ter feito algum sinal, porque, de repente, a polêmica cessou. Ouviram-se uns passos que se aproximavam do divã do Rabi e, logo a seguir o ruído da água e do vinho - em partes iguais - sendo servidos na taça do Mestre. O discípulo encarregado desta cerimônia - conhecida como a terceira taça ou taça da bênção - voltou para o seu lugar: O Galileu pôsse de pé e todos fizeram imediatamente a mesma coisa. Depois de uma breve pausa - possivelmente, de acordo com a tradição e com o seu próprio costume, Jesus abençoou a taça -, a sua voz encheu de novo o silêncio de Massada: - Tomai esta taça e bebei todos dela... Esta será a taça da minha recordação. Esta é a taça da bênção de um novo desígnio divino de graça e verdade. Este será o símbolo da outorga e do ministério do divino Espírito da Verdade.
Da solenidade, o Rabi passou à tristeza. - ... não beberei mais convosco até que o faça numa nova forma no reino eterno do meu Pai. Os apóstolos pareciam constrangidos. Assim que acabaram de beber, a taça de vidro foi colocada sobre a mesa. Nesse instante, o suave roçar das vestes de Jesus revelou que Ele se inclinava para a mesa em U. Pegou em qualquer coisa e, depois de dar graças, ouviu-se o som do pão a ser partido. O microfone multidirecional captaria igualmente um movimento generalizado. Como se os discípulos distribuíssem os pedaços entre si. - Tomai este pão e comei-o - disse-lhes o Mestre. - Afirmei-vos que sou o pão da vida, que é a vida unificada do Pai e do Filho num só dom. A palavra do Pai, tal como foi revelada pelo Filho, é realmente o pão da vida. Quando acabaram de comer reclinaram-se nos divãs, e fez-se de novo o silêncio. Parecia que o Galileu - não sei se os seus homens também - tinha entrado numa profunda reflexão. Estive a ponto de intervir. Queria comentar aquelas últimas frases sobre o vinho e o pão, tão diferentes das que figuram nos escritos de Mateus, Marcos e Lucas. Mas, suponho que com um bom critério, deixei isso para o fim da gravação. No fim, Jesus rompeu o seu silêncio: - Quando fizerdes estas coisas, recordai a vida que vivi na Terra e regozijai-vos porque continuarei a viver convosco. Não luteis por averiguar quem é o maior entre vós. Sede como irmãos. E quando o reino crescer até alcançar numerosos grupos de crentes, não luteis também por essa grandeza ou para procurar subir nesses grupos. E todas as vezes que fizerdes isto, fazei-o em memória de mim. E quando me recordardes, primeiro olhai para trás: a minha vida na carne. E recordai que uma vez estive convosco. Então, pela fé, percebei que todos ceareis alguma vez, comigo, no reino eterno do Pai. Esta é a nova Páscoa que vos deixo: a palavra da verdade eterna, o meu amor por vós e o derramamento do Espírito sobre a carne... A um sinal do Mestre, os onze levantaram-se e entoaram o Salmo 118: K - Aleluia! "Dai graças a Javé, porque é bom, porque é eterno o seu amor...! A voz de Cristo, vigorosa e contida - inveja de qualquer bom barítono - impôs-se desde o princípio, eclipsando e conduzindo as dos seus homens. ... "Javé está comigo, não tenho medo, que pode fazer-me o homem?..." Senti um novo arrepio. Até as estrofes pareciam especialmente escolhidas para aquele momento...
"... A pedra que os construtores rejeitaram, em pedra angular se converteu, esta foi a obra de Javé... " Terminado o cântico, alguns discípulos comentaram a necessidade de voltar a Getsémani. A cena terminara e, obviamente, era tarde. Mas Jesus disse-Lhes que se sentassem. - Recordais bem quando vos enviei sem bolsa nem bagagem e até vos avisei que não levásseis roupa de muda... Os apóstolos, com monossílabos, responderam afirmativamente. - ... Todos recordareis que nada vos faltou. No entanto, agora os tempos são difíceis. Já não podeis depender da boa vontade das multidões. Portanto, doravante, aquele que tiver bolsa, que a leve. Quando sairdes para o mundo a proclamar este evangelho, fazei provisão para o vosso sustento, como melhor vos parecer. Eu vim trazer a paz, mas, por algum tempo, esta não aparecerá. Chegou o tempo em que o Filho do Homem será glorificado e o Pai, nEle... A sua voz ficou de novo alquebrada. - ... Meus amigos, vou estar convosco só mais um pouco. Em breve me buscareis, mas não me encontrareis, pois vou para um lugar para onde, desta vez, não podeis vir. Quando tiverdes terminado o vosso trabalho na Terra, como eu concluí o meu, então vireis até mim da mesma forma que eu me preparo agora para ir até ao Pai. Os comentários em voz baixa de vários discípulos evidenciavam que não entenderam o mestre. Mas Jesus, como se não os tivesse ouvido, continuou: - Dentro de muito pouco tempo vou deixar-vos... Não me vereis na Terra, mas ver-me-eis todos no tempo vindouro, quando subirdes ao reino que o meu Pai me deu. Ferida pela tristeza, a sua voz fraquejou. E os onze, ainda que sem muita decisão, engalfinharam-se numa nova disputa, esforçando-se por desvendar o misterioso significado daquelas frases. Jesus de Nazaré deixou-os falar e, ao fim de uns minutos, erguendose, dirigiu-lhes palavras que, tal como muitas outras, foram depois pessimamente transmitidas. - Quando vos contei uma parábola mostrando como deveis estar ansiosos por servir uns aos outros, disse-vos também que desejava dar-vos um novo mandamento. Fa-lo-ei agora, Já que estou prestes a deixar-vos. Conheceis perfeitamente o mandamento que ordena amar-vos uns aos outros e ao vosso próximo como a vós mesmos...
Jesus fez uma pausa calculada. - No entanto, não estou totalmente satisfeito, mesmo com esta sincera devoção por parte dos meus filhos. Quero que façais maiores atos de amor no reino da irmandade dos crentes. Por isso, eis aqui o meu novo mandamento: "que vos ameis uns aos outros como eu vos amei". A expressão "como eu vos amei" foi reforçada com uma clara elevação do tom da voz. - Se assim o fizerdes, os homens saberão que sois meus discípulos. Logo a seguir, o Nazareno referiu-se a outra coisa que também não foi recolhida na sua totalidade. Nem mesmo por João, que estava à sua direita. - Com este novo mandamento não sobrecarrego as vossas almas com um novo peso. Antes pelo contrário: trago-vos uma nova alegria e torno possível que sintais um novo prazer, ao conhecerdes as delícias da entrega, pelo amor, ao vosso próximo. Eu próprio estou prestes a sentir o supremo regozijo (mesmo suportando uma pena exterior), com a entrega do meu afeto por vós e pelos restantes mortais. Quando vos convido a amar-vos uns aos outros como eu vos amei, estou a mostrar-vos a suprema medida do verdadeiro afeto. Nenhum homem pode alcançar um amor superior a este: o de dar a vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos e continuareis a sê-lo se apenas desejardes fazer o que vos ensinei. Chamastes-me Mestre, mas eu não vos chamo servidores. Se vos amardes uns aos outros como eu vos amo, então sereis meus amigos e eu falar-vos-ei daquilo que o meu Pai me revelou. Não fostes vós que me elegestes, mas, sim, eu. E mandei-vos ir pelo mundo para entregar o fruto do serviço amoroso aos vossos semelhantes, da mesma forma que eu vivi entre vós e vos revelei o Pai. Ambos trabalharemos convosco e sentireis a divina plenitude da alegria se apenas obedecerdes a este novo mandamento: "amai-vos uns aos outros como eu vos amei". Se compartilhardes o regozijo do Mestre, deveis compartilhar também o seu amor. E compartilhar o seu amor significa que compartilhastes o seu serviço. Tal experiência de amor não vos liberta das dificuldades deste mundo. Mas, certamente, torna "novo" o velho mundo... A seguir, Jesus de Nazaré pronunciaria umas frases que - em especial uma delas - se fossem conhecidas, talvez tivessem modificado alguns dos conceitos religiosos incongruentes sobre o sacrifício. - Recordai: é lealdade o que vos peço. Não sacrifício. A consciência de sacrifício implica a ausência desse afeto incondicional que faria desse
serviço amoroso uma suprema alegria. A idéia de dever ou obrigação significa que, mentalmente, vos converteis em servidores, perdendo assim a poderosa sensação de praticar o vosso serviço como amigos e para os amigos. A amizade transcende o significado do dever e o serviço de um amigo a outro amigo nunca deve ser qualificado como sacrifício. O Mestre ensinou-vos que sois filhos de Deus. Chamou-vos irmãos e agora, antes de partir, chama-vos amigos. Cristo optou por abandonar o seu divã. E, enquanto caminhava de um extremo ao outro da sala dirigiu-Lhes a seguinte parábola: - Eu sou a verdadeira videira, e o meu Pai é o agricultor. Eu sou a videira e vós os ramos. O meu Pai só vos pede que deis muito fruto. A vinha só é podada para aumentar a fertilidade dos seus ramos. Todos os ramos que brotam de mim e que não dão fruto, o meu Pai corta-los-á. Em compensação, aqueles que trouxerem frutos o Pai limpa-los-á para que multipliquem a sua riqueza. Já estais limpos, através das palavras que vos dirigi, mas deveis continuar limpos. Deveis morar em mim e eu em vós. Se for separado da videira, o ramo secará. Assim como o ramo não pode dar fruto se não morar na videira, assim vós não podeis produzir os frutos do amor se não morardes em mim. - Recordai: eu sou a verdadeira videira e vós os ramos vivos. O que vive em mim, e eu nele, dará muito fruto e sentirá a suprema alegria da colheita espiritual: Se mantiverdes esta ligação viva e espiritual comigo, os vossos frutos serão abundantes. Se morardes em mim e as minhas palavras em vós, podereis comunicar livremente comigo. Então, o meu espírito vivo entrará em vós de tal forma que podereis pedir o que quiserdes. O Pai garantirá a vossa petição. Assim é glorificado o Pai. Que a videira tenha muitos ramos vivos e que cada ramo produza muito fruto. Quando o mundo conseguir ver esses ramos vivos e carregados de fruto (isto é, os meus amigos que se amam como eu os amei), os homens saberão então que sois na verdade os meus discípulos. Como o meu Pai me amou, assim eu amei. Vivei no meu amor, do mesmo modo que eu vivo no do Pai. Se fizerdes como eu vos ensinei, morareis em mim e, como vos prometi, no seu amor. Os discípulos continuavam sem compreender. O mestre guardou alguns minutos de silêncio, mas continuou a caminhar pela sala, ouvindo - como nós - as opiniões díspares dos seus homens acerca da mensagem da videira e dos ramos. Finalmente, detendo-se em frente da porta, pediu silêncio, insistindo mais uma vez na sua iminente partida:
- Quando vos tiver deixado, não fiqueis desalentados perante a hostilidade do mundo. Não vos deixeis abater quando crentes de coração fraco se voltarem até contra vós e juntarem as suas mãos às dos inimigos do reino. Se o mundo vos odeia, recordai que, primeiro do que a vós, me odiou a mim. Se vós fosseis deste mundo, então o mundo amaria o que era seu. Mas, porque não o sois, o mundo nega-se a amar-vos. Estais neste mundo, mas as vossas vidas não devem ser deste mundo, Escolhi-vos no meio do mundo para representardes o espírito de outro mundo. Lembraivos sempre das minhas palavras: o servo não é maior do que o seu senhor. Se atrevem a perseguir-me, também vos hão-de perseguir a vós. Se as minhas palavras ofendem os não crentes, também as vossas ofenderão aos sem Deus. Far-vos-ão tudo isto porque não crêem em mim nem Naquele que me enviou. Por isso sofrereis muitas coisas em nome do meu Evangelho. Mas, quando suportardes estas tribulações, recordai que eu também sofri antes de vós em nome deste Evangelho do reino celestial. - Muitos dos que vos atacarem ignoram a luz do céu. Isto, em contrapartida, não é assim para alguns que agora nos perseguem. Se não lhes tivéssemos mostrado a Verdade poderiam fazer coisas estranhas sem cair na condenação. Mas agora, que Já conheceram a luz e se atreveram a rejeitá-la, não têm desculpa para a sua atitude. Aquele que me odeia, odeia também o meu Pai. Não pode ser de outro modo. Da mesma forma que a luz vos salvará, se for aceita, assim vos condenará se, conscientemente, for respeitada. E que fiz eu para que estes homens me odeiem com tanta pertinácia? Nada, salvo oferecer-lhes a fraternidade na Terra e a salvação no céu. Não lestes na Escritura: "E odiar-me-ão sem uma causa"? Mas não vos deixarei sós no mundo. Muito em breve, depois de eu ter partido, vos enviarei um Espírito auxiliador. Tereis então convosco alguém que ocupará o meu lugar. Alguém que continuará ensinando o caminho da Verdade, e que até vos consolará. - Não permitais que se perturbem os vossos corações. Credes em Deus. Continuai a crer também em mim. Apesar de ter de vos deixar, não estarei longe de vós. Já vos disse que no universo do meu Pai há muitos lugares onde ficar. Se não fosse verdade, não vos teria falado repetidamente sobre isso. Vou regressar a esses mundos de luz: paragens no céu do Pai, às quais alguma vez ascendereis. Desses lugares vim a este mundo e agora é chegado o momento em que devo voltar ao trabalho do meu Pai nas esferas do alto. - Portanto, se vou antes de vós para o reino celestial do Pai, tende a
certeza de que mandarei buscar-vos para que possais estar comigo nos lugares que foram preparados para os filhos mortais de Deus antes de que existisse este mundo... - Estranhas palavras - murmurou Curtiss, referindo-se aos "mundos de luz". - Muito estranhas... - Sobretudo para aqueles homens do ano trinta... - cortei com toda a intenção. - ... Apesar de ter de vos deixar - continuou Jesus perante a lógica incompreensão dos atentos discípulos - continuarei presente em espírito. Finalmente estareis comigo em pessoa quando tiverdes subido até mim, no meu universo, assim como eu estou prestes a ascender ao meu Pai, ao seu universo maior(1). E o que vos digo é eterno e verdadeiro, mesmo que agora não o compreendais totalmente. Eu vou para o Pai e, mesmo não podendo seguir-me agora, fa-lo-eis certamente no futuro. Os passos do Galileu dirigiram-se para o divã. E, depois de se reclinar, um dos apóstolos pôs-se de pé, manifestando o seu peculiar sentido prático. Era o pragmático Tomé: - Mestre - disse-Lhe ele - nós não sabemos para onde vais. Não conhecemos o caminho. Mas, se o mostrares, esta mesma noite Te seguiremos... Aquelas palavras resumiam perfeitamente o desconcerto e o amor dos onze pelo seu Rabi. A resposta do Mestre não se fez esperar: - Tomé, eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Nenhum homem vai ao Pai senão por mim. Todos os que encontram o Pai, primeiro encontramme a mim. Se me conhecerdes, conheceis o caminho para o Pai. E vós conheceis-me porque tendes vivido comigo e agora me estais a ver. Jesus ficou calado, como que mergulhando nos corações dos seus amigos. Mas, como se verá a seguir, os seus pensamentos eram muito profundos. Tomé sentou-se novamente e, no meio de um significativo silêncio, apenas se ouviu uma longínqua troca de opiniões entre dois discípulos. Eram Filipe e Bartolomeu. O primeiro, talvez atendendo a um pedido do segundo, levantou-se e, dirigindo-se ao Rabi, falou assim: - Mestre, mostra-nos o Pai e tudo quanto disseste ficará claro. O Nazareno retorquiu, em tom de evidente decepção: - Filipe, há tanto tempo que estou contigo e ainda não me conheces? De novo vos declaro: quem me viu, viu o Pai. Como podes então dizer "mostra-nos o Pai"? Não crês que estou no Pai e Ele em mim? Não vos
ensinei que as palavras que vos digo não são minhas, mas do Pai? Eu falo pelo Pai e não por mim mesmo. Estou neste mundo para fazer a sua vontade e é isso o que tenho feito. O meu Pai mora em mim e atua através de mim. Crede em mim quando digo que o Pai está em mim e que eu estou nEle. Ou, então, crede pelo menos em nome da vida que vivi e em nome das minhas obras. Os onze, mais por boa fé do que por outra coisa, enredaram-se numa nova discussão. E nós percebemos como o mestre se levantava do seu assento e se dirigia ao lugar em que se encontravam as bacias e os jarros de água. Ouvimos então um ruído de água - como se alguém estivesse refrescando o rosto - e, logo a seguir, as passadas do Rabi, voltando para o divã. A polêmica foi crescendo e, por entre aquele labirinto de vozes, impôs-se de novo o vozeirão de Simão Pedro. Ao que parecia, estava disposto a lançar-se à aventura de um longo discurso. As suas palavras foram cortadas de um golpe pelo Galileu. - Quando eu tiver ido para o Pai - interveio de novo Jesus - e depois de Ele aceitar o trabalho que para vós fiz na Terra e eu receber a soberania final do meu próprio domínio, então direi ao meu Pai: - "Tendo deixado os meus filhos sozinhos sobre a Terra, envio-lhes, de acordo com a minha promessa, outro Mestre." E quando o Pai o aprovar, eu derramarei o Espírito da Verdade sobre toda a carne. O Espírito do meu Pai Já está nos vossos corações, e, quando chegar esse dia, também me tereis a mim convosco, do mesmo modo que agora tendes o Pai. Este novo dom ‚ o Espírito vivo da Verdade. Os que não acreditarem não ouvirão os seus ensinamentos, mas os filhos da luz recebê-lo-ão com agrado e com todo o seu coração. E conhecereis este Espírito quando ele vier, da mesma forma que conhecestes a mim. E recebereis este dom nos vossos corações e - Ele morará em vós. Percebeis, portanto, que não vos vou deixar sem ajuda e sem guia? Não vos deixarei na desolação. Hoje só posso estar convosco em pessoa. Nos tempos vindouros estarei convosco e com todos os homens que desejarem a minha presença, onde quer que estejais e com cada um ao mesmo tempo. Não vedes que é melhor para mim que me vá embora e vos deixe na carne para poder estar convosco em espírito? - Dentro de umas poucas horas, o mundo não me verá mais. Mas continuareis a conhecer-me nos vossos corações até eu vos enviar o novo mestre: o Espírito da Verdade. Do mesmo modo que vivi convosco em pessoa, assim viverei então em vós - serei uno com as vossas experiências pessoais no reino do espírito.
E, quando for chegado o momento de isto acontecer, sabereis com toda a certeza que eu estou no Pai e que, enquanto a vossa vida estiver oculta com o Pai em mim, eu também estarei convosco. Eu amei o Pai e mantive a sua palavra. Tendes-me amado e mantereis a minha palavra. Do mesmo modo que o meu Pai me deu o seu Espírito, assim eu vos darei o meu. E este Espírito da Verdade que eu vos outorgarei guiar-vos-á e confortará e, por fim, conduzir-vos-á a toda a Verdade. - Digo-vos estas coisas para que vos possais preparar melhor e suportar as provas que a partir de agora surgirão diante de vós. Quando chegar esse novo dia, sereis habitados pelo Filho e pelo Pai. E estes dons do céu trabalharão sempre um com o outro, do mesmo modo que o Pai e eu construímos sobre a Terra, e diante dos vossos olhos, o Filho do Homem como uma só pessoa. Este Espírito amigo trará à vossa memória tudo o que eu vos ensinei. Aquelas, sem dúvida, difíceis palavras acabaram por confundir o Já perturbado espírito dos discípulos. Ninguém respondeu. Quem poderia associar a profundidade daquela mensagem com as idéias tão enraizadas de um messias político e libertador do jugo romano? Necessitariam de tempo e da vinda desse Espírito da Verdade para começarem a vislumbrar a grandeza do que Jesus acabava de lhes anunciar. Mas não adiantemos os acontecimentos... O fato é que, no meio de tanto silêncio e confusão, um dos apóstolos mais tímidos - o gêmeo Judas de Alfeu - atreveu-se a levantar-se e a perguntar: - Mestre... sempre viveste entre nós como um amigo. Como te conheceremos quando Já não te manifestares a nós senão através desse espírito? Se o mundo não te vir, como estaremos nós certos de ti? Como te mostrarás a nós? - Meus queridos filhos - a voz de Cristo era sumamente cordial - eu vou partir. Volto ao Pai. Dentro de pouco Já não me vereis como agora, como carne e sangue. E em breve vos enviarei o meu Espírito, que é igual a mim, exceto por este corpo material. Este novo Mestre é o Espírito da Verdade, que viverá com cada um de vós, nos vossos corações. Portanto, todos os filhos da luz serão um. Desta forma, tanto o meu Pai como eu poderemos viver nas almas de cada um de vós e também nos corações dos outros homens que nos amam e que tornam esse amor uma realidade, amando-vos uns aos outros como eu vos amo agora. Durante alguns minutos, Pedro, os irmãos Zebedeu e Mateus dirigiram-se ao Mestre, fazendo-lhe perguntas sobre esse misterioso
Espírito da Verdade e sobre a sua não menos incompreensível partida. Jesus de Nazaré passaria a responder a todas as perguntas naquilo que, com toda a evidência, era o seu discurso de despedida. - Digo-vos isto - repetiu pela enésima vez - para poderdes estar preparados face ao que vos espera e para não cairdes no erro. As autoridades não se contentarão em expulsar-vos das sinagogas. Aviso-vos: aproxima-se a hora em que aqueles que vos matarão acreditando que estão a prestar um serviço a Deus. Far-vos-ão tudo isso porque não conhecem o Pai. E recusaram conhecê-Lo porque recusaram receber-me. E eles recusam receber-me porque vos rejeitam. Digo-vos estas coisas antecipadamente para que, quando chegar a vossa hora, como agora é chegada a minha, possais reconfortar-vos ao recordar que tudo era por mim conhecido e que o meu espírito estará convosco em todos os vossos sofrimentos. Tem sido com este fim que eu tenho estado falando tão claramente desde o princípio. - Até vos avisei de que os inimigos de um homem podem ser os da sua própria casa. Embora este evangelho do reino nunca deixe de trazer grande paz à alma do crente, ele não trará a paz à Terra até que o homem esteja ansioso por acreditar nos meus ensinamentos com todo o seu coração, estabelecendo a prática de fazer a vontade do Pai como o propósito principal de toda a vida mortal. - E agora que vos deixo, vendo que é chegada a hora em que estou prestes a ir para o Pai, estou surpreendido por nenhum de vós me ter perguntado: "Porque nos deixas?" De qualquer forma, sei que fazeis estas perguntas nos vossos corações. Falar-vos-ei com clareza. Como um amigo a outro... O silêncio tornou-se mais denso. Sinal inequívoco da expectativa despertada pelo Mestre. - ... É na verdade proveitoso para vós que eu parta. Se não me fosse embora, o novo Mestre não poderia vir aos vossos corações. Devo ser despojado deste corpo mortal e restituído ao meu lugar, lá no alto, antes de poder enviar esse espírito esclarecedor. E quando o meu Espírito vier morar em vós, ele fará luz sobre a diferença entre o pecado e a retidão e tornar-vos-á capazes de julgar com sabedoria. O cansaço devia estar fazendo estragos entre os seus homens, porque, de repente, Jesus aludiu a ele: - Ainda tenho muito para vos dizer, embora Já veja que não vos tendes em pé. Quando o Espírito vier, ele conduzir-vos-á finalmente a toda a Verdade, fazendo-vos passar por muitas moradas do universo do meu
Pai. Este Espírito não falará de si próprio, mostrar-vos-á o que o Pai revelou ao Filho e, até, as coisas que hão de vir. Ele glorificar-me-á, assim como eu o fiz com o Pai. Ele vem depois de mim e revelar-vos-á a minha verdade. Tudo o que o Pai tem neste domínio é agora meu. Portanto, este novo Mestre tomará do que é meu e vo-lo manifestará. Vou deixar-vos dentro de muito em breve, ainda que por pouco tempo. Depois, quando voltardes a ver-me, eu Já irei a caminho do meu Pai. Então, não me vereis por muito tempo. Como era de esperar, os apóstolos estavam de novo profundamente confundidos. E, aproveitando o silêncio do Mestre, começaram a perguntar-se uns aos outros: - O que é isso que ele nos disse?... "Em breve vos vou deixar e, quando me virdes, será por pouco tempo, pois irei a caminho do Pai?" O que pode querer dizer com esse "dentro de muito pouco" e com "ainda que por pouco tempo"?... Não conseguimos compreender o que ele nos está a dizer... As respostas a estas perguntas óbvias - facilmente compreensíveis para os que sabem da ressurreição do Filho do Homem - não tardariam a ser respondidas. Mas os fatigados discípulos precisariam de semanas para as assimilar na sua totalidade. - Vós perguntais uns aos outros o que é que eu quis dizer quando afirmei que dentro de muito pouco tempo Já não estaria convosco e que, quando me vísseis outra vez, iria a caminho do meu Pai? Falei-vos claramente - insistiu Jesus. - O Filho do Homem deve morrer, mas voltará a levantar-se. Será que não conseguis discernir o significado das minhas palavras? - Primeiro ficareis tristes. Mais tarde, quando estas coisas tiverem acontecido, regozijar-vos-eis com todos aqueles que compreenderem. A mulher fica verdadeiramente aflita na hora do parto. Mas quando deu à luz um filho, esquece imediatamente a sua angústia perante a alegria de saber que trouxe ao mundo um homem. E assim estais vós: quase aflitos por causa da minha partida. Mas em breve voltarei a ver-vos e, nessa altura, a vossa tristeza converter-se-á em regozijo. E recebereis uma nova revelação sobre a salvação de Deus. Uma revelação que nenhum homem vos poderá arrebatar. E todos os mundos serão abençoados nesta mesma revelação de vida, ao levar a cabo a derrota da morte. Até agora fizestes todas as vossas petições em nome do meu Pai. Depois de voltardes a ver-me, também podereis pedir em meu nome, e eu ouvir-vos-ei. - Aqui em baixo ensinei-vos em provérbios e falei-vos em parábolas.
Fi-lo assim porque sois apenas crianças no espírito. Mas é chegado o tempo em que vos falarei claramente a respeito do Pai e do seu reino. E falo-ei porque o próprio Pai vos ama e deseja ser plenamente revelado a vós. O homem mortal não pode ver o Pai, que é espírito. Por isso vim ao mundo: para vo-Lo mostrar. Quando o crescimento do espírito vos aperfeiçoar, então vereis o próprio Pai. Para nosso assombro, alguns discípulos replicaram com frases como estas: - Olhai, realmente fala-nos com clareza. Certamente, o Mestre veio de Deus. Mas, porque diz que tem de voltar para junto do Pai? Apesar dos seus reiterados esforços, saltava à vista que não o compreendiam. Aqueles rudes galileus estavam muito longe de captar o glorioso sentido de esperança das suas palavras. Mas, curiosamente - e convido os cristãos a comprovarem-no por si próprios - nenhum dos evangelistas reconhece esta limitação humana dos seus cérebros naqueles momentos dramáticos... Acabado o que poderíamos qualificar de discurso de despedida, o Nazareno afastou-se do seu divã. Alguns apóstolos imitaram-no e, durante quinze ou vinte minutos, conversaram amistosamente, rememorando algumas experiências da sua vida em comum. Depois, todos voltaram para os seus respectivos lugares. - Jesus prepara-se para dar os últimos conselhos - avisei ao não menos fatigado general. Mas Curtiss fez-me um gesto tranqüilizador. Estava disposto a ouvir até ao fim. Quando os onze voltaram a reclinar-se nos seus divãs, o Mestre, de pé, falou-lhes assim: - Enquanto permanecer convosco, sob a forma de carne, não posso ser mais do que um indivíduo no meio do mundo. Mas, quando tiver sido libertado desta investidura de natureza mortal, poderei voltar como espírito e morar em cada um de vós e nos outros que crêem neste evangelho do reino. Assim, o Filho do Homem tornar-se-á uma encarnação espiritual nas almas de todos os verdadeiros crentes. - Quando tiver voltado a vós em espírito, poderei guiar-vos melhor através desta vida e das muitas moradas da vida futura, no céu dos céus. A vida na eterna criação do Pai não é um descanso, uma ociosidade sem fim. ... Ainda não sei porque o fiz. O fato é que interrompi a gravação, rebobinando parte da fita. Curtiss e Eliseu olharam para mim surpreendidos. Mas nada perguntaram.
- ... através desta vida - voltou a ouvir-se a voz de Jesus - e das muitas moradas da vida futura, no céu dos céus. A vida na eterna criação do Pai não é um descanso, uma ociosidade sem fim ou uma comodidade egoísta, mas uma incessante progressão em graça, verdade e glória. Cada uma das muitas moradas da casa do meu Pai é um lugar de passagem por uma vida projetada para que vos sirva de preparação para a seguinte. E assim, os filhos da luz seguirão de glória em glória até alcançarem o estado divino (no qual serão espiritualmente perfeitos), da mesma forma que o Pai é perfeito em todas as coisas. - Meu Deus! - explodi sem poder conter-me. - Ouviram o mesmo que eu? É a promessa mais clara e categórica, não de uma, mas de muitas vidas em contínua e progressiva perfeição!... Mas o que poderão ser essas moradas? - Aí está outra razão maravilhosa para voltar - reforçou o meu companheiro, cravando o seu olhar em Curtiss. O general assentiu em silêncio. Logo a seguir, o Mestre faria uma recomendação sutil. Uma insinuação que, quando analisada pormenorizadamente, põe em causa o esforço constante de muitos cristãos por imitar em tudo o Filho do Homem. - Se me seguirdes quando eu vos deixar, dedicai os vossos mais ardentes esforços a viver de acordo com o espírito dos meus ensinamentos e com o ideal da minha vida: fazer a vontade do meu Pai. Fazei isto em vez de tentar imitar a minha vida natural na carne... - O Pai enviou-me a este mundo, mas só uns poucos escolheram receber-me plenamente. Eu derramarei o meu espírito sobre toda a carne, mas nem todos os homens optarão por receber este novo Mestre como guia e consolo da sua alma. No entanto, os que o receberem serão iluminados, limpos e reconfortados. E este Espírito da Verdade transformar-se-á neles num poço de água viva, jorrando a vida eterna. - E agora, Já que vou deixar-vos dentro em pouco, quero transmitir-vos palavras de consolo. Deixo-vos a paz. Dou-vos a minha paz. E dou-vos estes dons, não como os dá o mundo, por medida. Dou a cada um de vós tudo o que fordes capazes de receber. Não permitais que o vosso coração se turbe, ou se mostre assustado. Eu venci o mundo e, em mim, todos triunfareis pela fé. Já vos avisei que o Filho do Homem será morto, mas asseguro-vos que voltarei antes de ir ao Pai, mesmo que seja só por um pouco: E depois de ter ido ao Pai, com certeza enviarei o novo Mestre para que habite nos vossos próprios corações. E quando virdes que está chegando o momento em que tudo isto acontecerá, não fiqueis tristes:
Crede. Tanto mais que já o sabíeis antecipadamente. Amei-vos com grande afeto e não vos deixaria, mas é a vontade do Pai. A minha hora chegou. - Não duvideis destas verdades, mesmo que estejais dispersos pelo estrangeiro por causa das perseguições ou abatidos por muitas penas. Quando vos sentirdes sós no mundo, eu saberei da vossa solidão, da mesma forma que vós sabereis da minha quando deixardes o Filho do Homem nas mãos dos seus inimigos. A diferença é que eu nunca estou só. O Pai está sempre comigo. - Até nesses momentos pedirei por vós. Disse-vos estas coisas para que possais ter paz e a tenhais em abundância. Neste mundo tereis aflições, mas conservai o bom humor. Eu triunfei sobre o mundo e mostrei-vos o caminho para a alegria eterna e para o serviço eterno. - Não deixeis que se turbe o vosso coração... nem deixeis que ele tenha medo. Aquelas belas palavras quase que puseram o ponto final na chamada última ceia. Restava apenas um derradeiro e emocionante capítulo: o das despedidas pessoais... Um... dois passos. O Mestre foi colocar-se diante do divã ocupado por João Zebedeu. Este levantou-se imediatamente. E o Galileu, num tom cálido e íntimo, dirigiu-lhe as seguintes palavras de despedida: - Tu, João, és o mais novo dos meus irmãos. Estiveste muito perto de mim e, embora vos ame a todos com o mesmo afeto que um pai tem pelos seus filhos, foste designado por André como um dos três que deviam estar sempre perto de mim... Curtiss pediu que parasse a fita. - Que significa isto? - perguntou-me, acreditando que eu conhecia a resposta. - De que designação está falando? É claro que eu também não tinha uma explicação. A enigmática escolha de André, o chefe dos apóstolos, devia ter sido um fato ocorrido muito antes da nossa primeira exploração. Certamente - como tivera a oportunidade de comprovar na oração do horto de Getsémani -, Jesus de Nazaré parecia mais próximo de três dos seus homens que dos restantes. Noutras muitas passagens dos textos evangélicos - passagens sempre de uma especialíssima transcendência -, João, o seu irmão Tiago e Simão Pedro encontravam-se sempre muito perto da figura do Rabi. Todos os exegetas e comentadores bíblicos atribuíram este fato a uma predileção concreta do Mestre por estes homens. Por não existir nos Evangelhos e outros textos sagrados uma única
referência a esta designação específica de André, era lógico supor que a presença contínua dos eleitos junto do Nazareno tivesse uma origem puramente emotiva. No entanto, quando se conhece e estuda profundamente a vida e o comportamento do Filho do Homem, torna-se difícil aceitar que Cristo fizesse distinções pessoais, provocando assim hipotéticas e nada aconselháveis situações de inveja ou ciúme entre os que o rodeavam diariamente. Embora naquele momento ignorasse tudo sobre aquela designação, a suspeita segundo a qual esta teria sido uma coisa, precisamente, dos apóstolos, e não do Mestre, começou a ganhar terreno no meu coração. E se a escolha daqueles três galileus obedecesse a uma ânsia pura e simples de proteger a pessoa do Mestre? Isto, pelo menos em teoria, podia encaixar na forma de agir de Cristo e, sobretudo, na aceitação geral e pacífica dos mencionados guarda-costas por parte do grupo. Da mesma forma que Filipe e Judas Iscariotes tinham sido nomeados, respectivamente, intendente e administrador dos fundos comuns, os irmãos Zebedeu e Pedro podiam ter assumido também a responsabilidade da segurança do guia. Com exceção de Judas Iscariotes, o restante dos discípulos nunca se tinham mostrado em desacordo com esta permanente escolta, em torno de Jesus. Sintoma inequívoco de que tinham participado naquela designação ou, no mínimo, de que estavam de acordo com a decisão de André. Talvez agora, com o passar dos séculos, quando as figuras dos apóstolos adquiriram uma natural auréola de santidade e elevação espiritual, se torne difícil imaginar estes homens empenhados na tarefa de designar todo um serviço de proteção. Mas, em prol da verdade, não devemos esquecer que, durante grande parte das suas vidas, as reações e os pensamentos deles não foram tão santos como hoje nos inclinamos a crer. Uma boa prova do que digo ‚é por exemplo, o fato de irem armados... Naturalmente, tanto Eliseu como eu prometemos ao general que aquele seria outro dos mistérios a desvendar no nosso iminente salto no tempo. O que não podíamos imaginar, então, eram as circunstâncias em que chegaríamos a obter essa informação. Mas continuemos com o "adeus" de Jesus de Nazaré ao jovem João: - ... Além disso, atuaste por mim próprio e deves continuar assim, a trabalhar em prol dos assuntos relacionados com a minha família na Terra. Eu vou para o Pai, João, confiando plenamente em que continuará velando
por aqueles que são meus na carne. Tenta que a sua presente confusão sobre a minha missão de nenhuma maneira te impeça de dar-lhes toda a simpatia, o conselho e a ajuda que, sabes bem, eu lhes daria se tivesse de permanecer na carne. - E agora, enquanto entro nas horas finais da minha carreira na Terra, mantém-te próximo, à mão, para eu poder deixar alguma mensagem à minha família. Desta vez fui eu que interrompi a gravação. Desejava que o chefe do projeto captasse a especial importância daquela última frase do Rabi. ... mantém-te próximo, à mão, para eu poder deixar alguma mensagem à minha família. Isto explicava perfeitamente o acompanhamento quase permanente de João Zebedeu durante as horas da prisão, dos interrogatórios e da crucificação e morte do Galileu. Como comentei noutro lugar deste diário, o jovem e audaz discípulo se juntaria ao pelotão que prendeu o Mestre nos arredores da quinta de Getsémani, não se separando nunca mais dele, excetuando os trágicos momentos do espancamento durante um dos intervalos do simulacro de julgamento por Caifás, no interior da Fortaleza Antónia, da não menos dramática flagelação e ao longo do caminho para o Gólgota(1). Embora ainda tenha tempo de comentar, nunca consegui entender porque é que João, ou os outros evangelistas, nunca se referem a estas despedidas nos seus respectivos escritos. No primeiro caso, a constatação da ordem do Galileu – pedindo a João que não se afastasse do seu lado, - teria poupado múltiplas e peregrinas explicações exegéticas sobre as razões de Zebedeu para permanecer ao lado do Mestre. Como vemos, as coisas quase sempre são mais simples do que julgamos. - ... No que diz respeito à minha obra, posta nas minhas mãos pelo Pai - prosseguiu Jesus - ela está concluída, com exceção da minha morte na carne. E estou preparado para beber esta última taça. Quanto às responsabilidades deixadas por José, o meu pai na Terra, assim como eu as atendi durante a minha vida, agora dependo de ti para que atues no meu lugar, resolvendo estes assuntos. E escolhi-te para fazeres isto por mim, João, porque és o mais novo e, portanto, é provável que sobrevivas aos outros apóstolos. Esta insólita revelação de Jesus de Nazaré - também omitida pelos evangelistas - vinha corroborar as minhas suspeitas sobre o anteriormente exposto. A designação de João como guardião dos seus assuntos familiares
- incluindo o cuidado de Maria, sua mãe - não obedecia a razões sentimentais ou de especial simpatia pelo Zebedeu. Antes pelo contrário. Julgando por estas palavras do Nazareno, eram motivos muito pragmáticos: Jesus sabia ou intuía que, ao ser João o mais novo, a sua permanência no mundo dos vivos devia ser mais prolongada. E não se enganaria. João, o Evangelista, deve ter falecido na década de noventa da nossa Era. Talvez perto do ano cem. - Uma vez chamei-te a ti e ao teu irmão "filhos do trovão". Começaste conosco com uma mente rude e intolerante. Mas mudaste muito desde que me pediste que fizesse cair fogo do céu contra os ignorantes e irrefletidos não crentes. E ainda deves mudar mais. Tens de chegar a ser o apóstolo do novo mandamento que vos dei esta noite. Dedica a tua vida a ensinar os teus irmãos a amarem-se uns aos outros como eu os amei. Quando Jesus terminou, um impagável coro de lamentações quebrou o silêncio dos ali reunidos. João chorava. E, com a voz entrecortada, respondeu: - Assim o farei, Mestre. Mas como posso aprender a amar os meus irmãos? - Aprenderás a amar mais os teus irmãos – retorquiu solicitamente Jesus - quando aprenderes a amar primeiro o seu Pai do céu e quando chegares a estar verdadeiramente interessado no bem-estar de todos eles... no tempo e na eternidade. E todo este interesse humano ver-se-á favorecido com o serviço generoso, com a compreensão, com a simpatia e com o perdão ilimitado. Nenhum homem desprezará a tua juventude. Mas exorto-te a concederes sempre a devida consideração ao fato de a velhice representar, normalmente, experiência. E nada, nos assuntos do homem, pode substituir a autêntica experiência. Esforça-te por viver bem com todos os homens. Em especial, com os teus amigos na irmandade do reino celestial. E lembra-te sempre, João: não lutes contra as almas que puderes ganhar para o reino. Sem poder conter o pranto, João sentou-se. Os passos do Galileu contornaram então o seu próprio divã, em direção ao outro braço do U. Mas ao chegar diante do assento que Judas ocupara, deteve-se. E permaneceu ali, imóvel e em silêncio, durante vinte ou trinta segundos. Não houve comentário ou sinal que nos permitisse reconstituir o semblante ou a atitude de Jesus diante do divã vazio do traidor. (Mais adiante, ao regressar à Palestina do ano 30, André descreveria aquele momento crítico como de uma tristeza para o Mestre. O único pensamento que então
perpassou pela mente dos onze foi a inusitada demora de Judas Iscariotes. Tinham acontecido tantas coisas desde que Judas desaparecera da nossa vista - acrescentaria o chefe dos apóstolos que chegamos até a esquecernos dele.) No fim desse breve período de reflexão, Jesus de Nazaré avançou mais um pouco, detendo-se em frente do aguerrido Simão, o Zelota. Uma vez de pé, o provável membro ou simpatizante do grupo guerrilheiro ouviu as seguintes palavras: - Tu és um verdadeiro filho de Abraão. Mas durante quanto tempo tentei transformar-te num filho do reino celestial!... - Amo-te, e também a todos os teus irmãos. Sei que me amas, Simão, e que amas também o reino, mas continuas a tentar que este reino seja de acordo com o teu gosto. Sei muito bem que, finalmente, compreenderás a natureza espiritual e o significado do meu Evangelho e que realizarás um grande trabalho para a sua proclamação. Mas estou preocupado pelo que te possa acontecer quando eu partir. Alegrar-me-ia saber que não duvidarás. Seria feliz se pudesse saber que, depois de eu partir para o Pai, não deixarás de ser meu apóstolo e que te comportarás aceitavelmente como embaixador do reino celestial. O ardente patriota não hesitou na sua resposta: - Mestre, não temas pela minha lealdade. Virei as costas a tudo para poder dedicar a minha vida à implantação do teu reino na Terra e não falharei. Até agora sobrevivi a todas as decepções e não te abandonarei. Estas frases do Zelota eram de suma importância para entender melhor o grau de frustração de alguns dos seguidores do Galileu, convencidos até ao último momento do papel político e terreno de Jesus. Mas ainda haverá tempo para aprofundar este espinhoso assunto, tão escassamente tratado pelos evangelistas... Ao ouvir tão veemente afirmação, o Mestre retorquiu com alguma crueza. - É realmente reconfortante ouvir-te falar assim num momento como este. Mas, meu bom amigo, ainda não sabes do que estás falando. Nem por um momento eu duvidaria da tua lealdade ou devoção. Sei que não vacilarias em seguir em frente na luta e em morrer por mim, como também estes... Um murmúrio geral de aprovação interrompeu as palavras de Cristo. - ... Mas não se exigirá isso de vós. Disse-vos repetidamente que o meu reino não é deste mundo e que os meus discípulos não terão de lutar para levar a cabo a sua implantação. Disse-vos isso muitas vezes, Simão,
mas não quereis encarar a verdade. Não estou preocupado com a vossa lealdade.para comigo ou para com o reino. Mas o que fareis quando eu partir e por fim vos perceberdes de que não compreendestes o significado dos meus ensinamentos e que tereis de ajustar os vossos conceitos errôneos a uma outra realidade? Simão tentou falar. Mas Jesus continuou: - Nenhum dos meus apóstolos é mais sincero e honesto de coração do que tu, mas nenhum estará tão abatido e perturbado como depois de eu ter partido. No teu desalento, o meu espírito morará em ti e estes teus irmãos não te abandonarão. - Não esqueças o que te ensinei sobre a relação entre os cidadãos do mundo e a "cidadania" dos outros filhos: os do reino do meu Pai. Medita bem sobre tudo o que te disse sobre aquilo de dar a César o que é de César, a Deus o que é de Deus e a mim o que é meu. Dedica a tua vida, Simão, a mostrar quão aceitavelmente pode o homem mortal cumprir o meu preceito referente ao reconhecimento simultâneo do dever temporal para com os poderes civis e o serviço espiritual na irmandade do reino. Se fores ensinado pelo “Espírito da Verdade" nunca haverá conflito entre as obrigações que a cidadania da Terra impõe e as de ser filhos do céu... a não ser que os dirigentes temporais pretendam de vós a homenagem e a adoração que só a Deus pertencem. - E agora, Simão, quando vires finalmente tudo isto, e tiveres sacudido de ti a depressão e caminhares em frente, proclamando com grande poder este evangelho, nunca esqueças que eu estava contigo, até durante todo o tempo de desalento e que continuarei contigo mesmo até ao fim. Sempre serás meu apóstolo e, quando chegares a ver com os olhos do espírito e submeteres plenamente a tua vontade à do Pai do céu, então voltarás a trabalhar como meu embaixador. Apesar da tua lentidão para compreender as verdades que te ensinei, ninguém te tirará a autoridade que te dei. Assim, Simão, aviso-te uma vez mais: os que lutam com a espada, com a espada morrem. No entanto, os que trabalham no espírito conseguem a vida eterna no reino e a paz e a alegria na Terra.. Quando a missão que te foi encomendada tiver sido concluída no mundo, tu, Simão, sentar-te-ás comigo no meu reino. E verás realmente o reino pelo qual suspiraste. Mas não será nesta vida. Continua a crer em mim e no que te revelei e receberás a recompensa da vida eterna. A seguir, o Mestre colocou-se diante de Mateus Levi. - Já não te competirá cuidar da caixa do grupo apostólico. Em breve, muito em breve todos vos dispersareis. Não vos será permitido desfrutar
sequer do reconfortante e contínuo apoio de um só dos vossos irmãos. Quando fordes pregar este evangelho do reino, tereis de procurar novos companheiros. Enviei-vos dois a dois durante o tempo de preparação, mas agora que vos deixo, depois de terdes recuperado do choque, ireis sozinhos e até aos confins da Terra, proclamando esta boa nova: os mortais vivificados na fé são os filhos de Deus. Mateus, por sua vez, com a sua habitual calma e sentido prático, perguntou: - Mas, Mestre, quem nos enviará e como saberemos para onde ir? Ensinar-nos-á André o caminho? - Não, Levi - respondeu Jesus, confirmando assim o que eu já sabia e que deixei bem claro em relatos anteriores: a chefia do irmão de Simão Pedro -, André não vos dirigirá na proclamação do evangelho. Na verdade, continuará como vosso amigo e conselheiro até ao dia em que chegar o novo Mestre. Então, o Espírito da Verdade guiar-vos-á até ao estrangeiro para trabalhardes pela ampliação do reino. Muitas mudanças se operaram em vós desde aquele dia, na casa aduaneira, quando, pela primeira vez, começastes a seguir-me. Mas muitas mais virão antes de poderdes contemplar a visão de uma irmandade em que gentios e judeus se sintam em associação fraternal. Mas continuai em frente na vossa pressa por conquistar os vossos irmãos judeus. Quando estiverdes totalmente satisfeitos, voltai então com força para os gentios. De uma coisa podes ter certeza Levi: ganhaste a confiança e o afeto dos teus irmãos. Todos gostam de ti. Um novo e coletivo murmúrio de aprovação sublinhou as últimas palavras de Jesus. - Levi, sei das tuas ansiedades, dos teus sacrifícios e trabalhos para manter cheia a caixa. Os teus irmãos não o souberam. E sinto-me contente, apesar de estar ausente o que leva a bolsa, de estar aqui o embaixador do taverneiro, na minha reunião de despedida, com os mensageiros do reino. - Oro para que possas discernir o significado dos meus ensinamentos com os olhos do espírito. E quando o novo Mestre chegar ao teu coração, segue em frente. Ele te guiará. E mostra aos teus irmãos e a todo o mundo o que o Pai pode fazer com um odiado cobrador de impostos que se atreveu a seguir o Filho do Homem e a crer no evangelho do reino. Ameite logo desde o princípio, Levi, como amei estes outros galileus. Sabendo então muito bem que nem o Pai nem o Filho têm em conta as pessoas, procura não fazer essas distinções entre os que vierem a ser crentes no Evangelho através do teu ministério. E assim, Mateus, dedica toda a tua vida de serviço futuro a mostrar aos homens que Deus não tem em conta a
posição das pessoas. Que, à vista do Pai e na irmandade do reino, todos os humanos são iguais, todos são filhos de Deus, Tiago Zebedeu, o irmão de João, aguardava em pé o Mestre. Este encaminhou-se para ele, dizendo-lhe: - Tiago, quando tu e o teu irmão mais novo viestes uma vez ter comigo, pedindo preferências nas honras do céu e eu vos respondi que essas honras eram outorgadas pelo Pai, perguntei-vos se seríeis capazes de beber do meu cálice. Os dois respondestes que sim. Se bem que nem naquela altura nem agora estejais preparados para isso, em breve estareis dispostos para tal serviço, devido à experiência que estais a ponto de atravessar. Por aquele comportamento zangaste-te com os teus irmãos. Se ainda não te perdoaram totalmente, fa-lo-ão quando virem que bebes do meu cálice. Seja o teu ministério longo ou curto, conserva a tua alma em paz. Quando vier o novo Mestre, deixa que ele te ensine o equilíbrio da compaixão e essa amável tolerância que nasce da sublime confiança em mim e na perfeita submissão à vontade do Pai. Dedica a tua vida a demonstrar afeto humano e dignidade divina combinados. E todos os que viverem assim revelarão o evangelho, até na forma da sua morte. Tu e o teu irmão João ireis por caminhos diferentes e um de vós talvez se sente comigo no reino eterno muito antes que o outro.... Sutilmente, Jesus de Nazaré estava a anunciando a Tiago que a sua morte ocorreria muito antes que a do seu irmão. - Ajudar-vos-ia muito saber que a verdadeira sabedoria compreende discrição e coragem ao mesmo tempo. Aprendereis a sagacidade, para acompanhar a vossa agressividade. Virão momentos supremos em que os meus discípulos não hesitarão em dar as suas vidas por este evangelho. Mas, nas outras circunstâncias, nas ordinárias, será melhor acalmar a ira dos não crentes para poderdes viver e continuar a pregar a boa nova. - Enquanto tiverdes forças, vivei durante muito tempo para que o vosso trabalho seja frutífero em almas ganhas para o reino celestial. Terminadas as suas palavras de despedida a Tiago, Jesus foi até ao fim da mesa. Ali encontrava-se André, o seu fiel ajudante. As suas frases relacionadas com a chefia do apóstolo não deixaram lugar a dúvidas: - André, representaste-me com fidelidade como cabeça dos embaixadores do reino celestial. Apesar de teres duvidado muitas vezes e noutras ocasiões teres manifestado uma clara e perigosa timidez, mesmo assim foste sempre sinceramente justo nas tuas relações com os teus companheiros. Desde a tua nomeação, e a dos teus irmãos, como mensageiros do reino, soubeste governar-te a ti mesmo nos assuntos
administrativos do grupo. Em nenhum outro assunto temporal tive de agir para dirigir ou influenciar as tuas decisões. Só o fiz para te ensinar, tendo em vista as tuas deliberações nos grupos futuros. No meu universo e no universo dos universos do meu Pai, os nossos filhos-irmãos são tratados como indivíduos em todas as suas relações espirituais. Mas nas de grupo procuramos que exista uma direção. O nosso reino é um reino de ordem e, onde duas ou mais criaturas atuem em cooperação, sempre existe essa autoridade. - E agora, André, dado que és o chefe dos teus irmãos pela autoridade da minha nomeação, e dado que assim tens servido, como meu representante pessoal, já que estou prestes a partir e a ir para o meu Pai, liberto-te de toda a responsabilidade no que diz respeito aos assuntos temporais e administrativos. - De agora em diante podes não exercer jurisdição sobre os teus irmãos, exceto a que tiveres ganho pela tua capacidade como guia espiritual e que eles reconheçam livremente. A partir deste momento podes não exercer nenhuma autoridade sobre os teus irmãos, a não ser que eles a restaurem. Mas esta libertação como cabeça administrativa do grupo de forma alguma diminui a tua responsabilidade moral para fazeres tudo o que estiver nas tuas mãos com respeito à manutenção da união de todos no período de prova que se avizinha. - Daqui em diante apenas exercerei autoridade espiritual sobre e entre vós. Se os teus irmãos desejarem manter-te como conselheiro, digo-te que deves fazer tudo o que puderes para promover a paz e a harmonia (tanto nos assuntos temporais como espirituais) entre os grupos de sinceros crentes no evangelho. Dedica o resto da tua vida a incentivar os aspectos práticos do amor fraterno. Sê amável com os meus irmãos na carne. Manifesta uma devoção amorosa e imparcial aos gregos, do oeste, e a Abner, do leste. Embora estes, os meus apóstolos, venham a ser dispersos dentro de muito pouco pelos quatro cantos da Terra para proclamarem a boa nova da salvação, deves mantê-los unidos durante o tempo de prova que se avizinha. Nessa altura tereis de aprender a crer neste Evangelho sem a minha presença pessoal. E assim, André, apesar de não recaírem em ti os grandes trabalhos que os homens vêem, contenta-te em ser o mestre e conselheiro dos que os fazem. Continua com o teu trabalho na Terra (até ao fim) e assim continuarás este ministério no reino eterno. Não te disse muitas vezes que tenho outras ovelhas que não são deste rebanho? A despedida seguinte foi para os gêmeos Alfeu. De pé, entre os dois, anunciou-lhes:
- Meus filhos, vós sois um dos grupos de irmãos que escolheram seguir-me... Como eu não conhecia com exatidão como fora a escolha dos doze, aquelas palavras confundiram-nos. Será que só metade dos discípulos - os irmãos Alfeu, André e Simão Pedro e os também irmãos João e Tiago de Zebedeu - escolheu seguir o Mestre? E os outros seis? Os motivos que justificavam o nosso regresso continuavam a multiplicar-se... - ... Os seis - prosseguiu Jesus - tendes trabalhado bem e em paz com a vossa própria carne e sangue. Mas ninguém o fez melhor do que vós. Aproximam-se tempos duros... Talvez não compreendais tudo o que vai acontecer, mas não duvideis de que uma vez fostes chamados para a tarefa do reino. Por algum tempo não haverá multidões para dirigir. Mas não desanimeis. - Quando o vosso trabalho nesta vida estiver concluído, receber-vosei no alto, e ali, na glória, falareis da vossa salvação aos exércitos seráficos e às multidões dos altos Filhos de Deus. Dedicai a vossa vida a engrandecer as tarefas triviais, mostrai a todos os homens e aos anjos como o homem mortal pode ser alegre e forte. E, após o vosso tempo ao serviço de Deus, voltai aos trabalhos dos dias passados. Se, de momento, virdes concluído o vosso trabalho nos assuntos exteriores do reino, voltai às tarefas quotidianas. E fazei-o com a nova luz da experiência de sabervos filhos de Deus. - A vós, que tendes trabalhado comigo, tudo se vos tornou sagrado. Todo o trabalho terreno se tornou num serviço ao Deus Pai. E quando ouvirdes notícias dos feitos dos vossos anteriores companheiros apostólicos, regozijai-vos com eles e continuai o vosso trabalho diário como os que esperam em Deus e servem enquanto esperam. Tendes sido os meus apóstolos e sempre o sereis e recordar-vos-ei no reino que há de vir. Era a primeira vez que Jesus de Nazaré revelava que vários dos seus homens mais próximos não desempenhariam a tarefa de evangelizadores depois da sua partida A verdade é que, excetuando uns poucos discípulos, as atividades apostólicas do resto do grupo quase não ficaram refletidas nos escritos e nas tradições dos cristãos. Filipe foi o seguinte. De pé, como os outros, ouviu atentamente o seu Rabi: - Filipe, fizeste-me muitas perguntas loucas. E eu fiz o possível para responder a todas. Agora vou responder à última que surgiu na tua mente muito honesta, embora pouco espiritual. Estive todo o tempo a ir em tua
ajuda, enquanto tu te interrogavas: "Que farei eu se o Mestre se for embora e nos deixar sozinhos no mundo?" Oh, tu, homem de pouca fé! E, mesmo assim, tens quase tanta como muitos dos teus irmãos... Foste um bom servidor, Filipe. Falhaste poucas vezes. E uma dessas falhas, utilizamo-la para manifestar a glória do Pai... - Ao que estará se referindo? - interveio Curtiss. Também não lhe soube responder. Eu sabia que Filipe era o responsável pela intendência-geral do grupo, mas, naquele momento, não conseguia imaginar de que falava o Galileu. Quem poderia supor que eu próprio contemplaria a "falha" em questão? Mas não antecipemos os acontecimentos... - ... O teu ofício de servidor está prestes a terminar. Em breve deverás fazer o trabalho para que foste chamado: a pregação deste evangelho. Filipe, tu sempre quiseste que te mostrassem as coisas. Em breve vais ver grandes fatos. Dado que foste sincero, mesmo na tua visão material, viverás para ver as minhas palavras cumpridas. E nessa altura, quando te for concedida a visão espiritual, continua no teu trabalho, dedicando a tua vida à condução da Humanidade em busca de Deus e das realidades espirituais, mas com os olhos da fé, não com os da mente material. Recorda, Filipe, que tens uma grande missão na Terra. O mundo está cheio de homens que olham para a vida como tu o fizeste. Tens um grande trabalho para fazer, e, quando estiver concluído, virás a mim, no meu reino, e terei um grande prazer em mostrar-te o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, nem a mente mortal concebeu. Entretanto, sê como uma criança pequena no reino do espírito e permite-me, como espírito do novo Mestre, guiar-te para o reino espiritual. Desta forma poderei fazer muito por ti: o que não pude levar a cabo enquanto permaneci contigo como um mortal. - E recorda sempre, Filipe: quem me viu a mim, viu o Pai. Ao terminar, Filipe voltou a reclinar-se. E os passos do Mestre dirigiram-se para o divã seguinte: o de Bartolomeu ou Natanael. Este pusera-se de pé, mas Jesus indicou-lhe que se sentasse, fazendo o Rabi outro tanto, acomodando-se ao lado dele. E falou-lhe assim: - Natanael, aprendeste a viver acima dos preconceitos e a praticar uma tolerância cada vez maior, dado que te fizeste meu apóstolo. Mas ainda há muito para aprender. Foste uma bênção para os teus companheiros, sempre admoestados com a tua sinceridade. Quando me tiver ido embora, talvez a tua franqueza inteira nas relações com os teus irmãos, quer com os antigos quer com os novos. Deves aprender que até a expressão de um bom
pensamento tem de ser modelada de acordo com o nível intelectual e o desenvolvimento espiritual daquele que ouve. A sinceridade é mais útil nas tarefas do reino quando se junta à discrição. - Se aprendesses a trabalhar com os teus irmãos poderias finalizar muito mais coisas. Mas se te encontrares a ti mesmo na busca daqueles que pensam como tu, nesse caso dedica a tua vida a demonstrar que o discípulo conhecedor de Deus pode chegar a ser um construtor do reino, mesmo quando está só e separado dos seus irmãos crentes. Sei que serás fiel até ao fim. E um dia dar-te-ei as boas-vindas no amplo serviço do meu reino, lá no alto. Bartolomeu dirigiu-se então ao Rabi, perguntando-lhe: - Tenho ouvido os teus ensinamentos desde a primeira vez que me chamaste ao serviço deste reino. Mas, honestamente, não consigo compreender todo o significado do que nos dizes. Não sei que mais devemos esperar. E acho que a maioria dos meus irmãos está perplexa, como eu, embora hesitem em confessar a sua confusão. Podes ajudar-me? - Meu amigo - respondeu Cristo logo a seguir -, não é estranho que estejas perplexo no teu esforço por compreender o significado dos meus ensinamentos espirituais. Carregais com o preconceito da tradição judaica e colocais o empenho todo em interpretar o meu evangelho de acordo com os ensinamentos dos escribas e fariseus. Ensinei-vos com a palavra da minha boca e vivi a minha vida entre vós. Fiz o possível para iluminar as vossas mentes e libertar as vossas almas, mas o que não conseguistes até agora com os meus ensinamentos, deveis adquiri-lo da mão desse mestre dos mestres: a experiência real. Nesse novo caminho, eu irei à frente e o Espírito da Verdade estará convosco. Não temais. O que agora não podeis compreender, o novo Mestre, quando vier, vo-lo revelará nesta vida e na vossa aprendizagem no tempo eterno. Jesus dirigiu então a sua voz para o centro da mesa: - Não fiqueis perturbados por não poderdes assimilar todo o significado do Evangelho. Não sois mais do que homens finitos e mortais e o que eu vos ensinei é infinito, divino e eterno. Sede pacientes. Tende coragem. Tendes as idades eternas à vossa frente. Nelas continuareis a vossa progressiva perfeição, assim como o vosso Pai do Paraíso é perfeito. Curtiss, Eliseu e eu olhamos uns para os outros. Nos vimos assaltados pelo mesmo sentimento. Era como se aquelas últimas frases do Mestre - dirigidas para o centro do U, para o lugar onde se encontrava o microfone - não se destinassem apenas aos seus amigos íntimos...
Jesus levantou-se e foi até ao lugar de Tomé. E ouviu-se que dizia: - Tomé, muitas vezes a fé te faltou. No entanto, apesar desses momentos de dúvida, nunca te faltou a coragem. Sei muito bem que os falsos profetas e mestres não te enganarão. Depois de me ir embora, os teus irmãos apreciarão muito mais a tua forma crítica de ver e julgar os ensinamentos. E quando todos vos dispersardes pelos confins da Terra, lembra-te de que ainda és o meu embaixador. Dedica a tua vida à grande obra de mostrar como a mente crítica material pode triunfar sobre a inércia da dúvida intelectual quando se enfrenta com a demonstração da manifestação da verdade viva. - Tomé, estou contente por te teres juntado a nós. E sei que, após um curto período de perplexidade, seguirás em frente no serviço do reino. As tuas dúvidas confundiram os teus irmãos, mas a mim não. Tenho confiança em ti e irei à tua frente para os lugares mais longínquos da Terra. E Jesus, lentamente, foi colocar-se diante de um dos homens mais difíceis e queridos: Simão Pedro. Vamos ouvir outra alocução profética... No caso de Pedro, as críticas do Mestre foram mais duras. - Pedro, sei que me amas. E sei que dedicarás a tua vida à proclamação pública deste evangelho do reino a judeus e gentios. Mas estou triste... Os teus anos de tão firme ligação a mim não te ajudaram o suficiente a pensar antes de falar... Foi uma pena eu não ter estado presente naquela reunião. Tenho a certeza de que a expressão de Pedro deve ter sido como um livro aberto. - Que experiência tens de viver para aprenderes a ser cauteloso com a tua boca? Quantos problemas nos deste pela tua irreflexão e pela tua presunçosa confiança em ti mesmo! E estás destinado a criar muitos mais se não dominares essa tua debilidade. Sabes que, apesar desse defeito, os teus irmãos te amam. E deves também compreender que essa debilidade não diminui em absoluto o meu afeto por ti. Mas retira-te eficácia e multiplica os teus problemas... O tom de Jesus tornou-se menos severo. - Sem dúvida, a experiência por que passarás esta noite ser-te-á de grande ajuda. E o que agora te digo, Simão Pedro, serve também para todos os aqui reunidos: esta noite correreis um grave perigo se estiverdes comigo. Sabeis que está escrito: "O Pastor será castigado e as ovelhas dispersas." Quando eu estiver ausente haverá o risco de alguns de vós sucumbirdes perante a dúvida e cairdes por aquilo que me acontecer a mim. Mas agora mesmo vos prometo que voltarei durante um espaço curto de tempo e que, nessa altura, entrarei na Galiléia.
O fogoso Pedro não tardou a replicar: - Não importa se todos os meus irmãos sucumbirem perante a dúvida por tua causa. Prometo que não irei contra nada que Tu possas fazer. Irei contigo! E, se for necessário... morrerei por ti! O exaltado e voluntarioso apóstolo esperou a resposta do Mestre. E esta chegou como um jarro de água fria. - Pedro, em verdade, em verdade te digo que esta noite, antes de o galo cantar, ter-me-ás negado... três ou quatro vezes. - Três ou quatro vezes? - exclamou o general que, obviamente, não conhecia ainda a nossa versão sobre o que aconteceu naquela madrugada de quinta para sexta-feira. - Afirmativo - respondi. - Foram três negações públicas e uma praticamente em privado. - ... Desta forma - continuou Jesus -, o que não conseguiste aprender com a tua pacífica união comigo assumi-lo-ás entre problemas e sofrimentos. E quando tiveres entendido esta necessária lição, deverás reconfortar os teus irmãos e continuar em frente, levando uma vida dedicada à pregação deste evangelho. Mesmo que possas ir para a prisão e, talvez, seguir-me, pagando o preço supremo pelo serviço amoroso da construção do reino do Pai. Simão Pedro e os outros não compreenderam na altura o trágico alcance daquelas palavras proféticas. - Mas lembra-te da minha promessa: quando eu ressuscitar, ficarei convosco algum tempo antes de ir para o Pai. Mesmo esta noite lhe suplicarei que vos dê forças para o que ireis ter de suportar. Amo-vos a todos com o amor com que o Pai me ama e, portanto, de agora em diante, deveis amar-vos uns aos outros como eu vos amei. O grupo pôs-se de pé e, dirigido por Jesus de Nazaré, entoou um novo cântico. Por volta das vinte e duas horas e trinta minutos daquela quinta-feira, 6 de Abril do ano 30, os passos e os murmúrios dos doze perdiam-se em direção ao andar de baixo da casa de Elias Marcos. A última ceia havia terminado. Caímos os três num prolongado silêncio. Havia muitos pontos sobre os quais meditar. E apesar de deixar ao hipotético leitor deste diário o direito a tirar as suas próprias conclusões, considero que é minha obrigação dar conta de algumas apreciações e comentários expressos naquela madrugada na solidão do cume de Massada. Para o general - muito mais afetado do que nós pelo que acabávamos
de ouvir - era totalmente incompreensível que os evangelistas não mencionassem, entre outras coisas, os incidentes dos divãs e da lavagem dos pés, bem como das onze últimas despedidas do Galileu. Só um dos escritores sagrados - Lucas - deixa entrever que algo esquisito aconteceu entre os apóstolos: Entre eles houve também uma discussão sobre qual se devia considerar o maior, (22, 24). Porque ‚ que nenhum dos outros três fala dessa estranha discussão? Para Eliseu, como para mim, a possível resposta - sempre a título de hipótese de trabalho - estava justamente no denominador comum das três situações referidas. Tanto na azeda polêmica sobre quem devia ocupar os lugares mais próximos do Rabi como na orgulhosa atitude de não quererem lavar os pés uns aos outros e nas despedidas, os apóstolos não ficavam bem vistos. Como vimos, em cada adeus do Mestre pairava uma considerável carga de censura. Jesus, mais uma vez, chamou as coisas pelo seu nome, pondo a nu os principais defeitos dos seus amigos mais íntimos. E isto, repito, com o passar dos anos, não deve ter sido considerado muito edificante pelo colégio apostólico ou pelos responsáveis das respectivas redações evangélicas. Nem sequer é o único caso nos Evangelhos Canônicos... Em justificativa, é altamente estranho, para não dizer sintomático, que só um dos evangelistas, João, recorde nos seus escritos o belíssimo gesto de Jesus de lavar os pés aos seus discípulos. Porque é que Mateus, Marcos e Lucas se esquecem por completo de um acontecimento tão instrutivo? Não terá acontecido que, à hora de o redigirem, se sentissem na obrigação moral de contar os fatos tal como se deram, optando finalmente pelo silêncio em vez de deteriorarem a sua imagem individual e coletiva? Em defesa da objetividade informativa dos evangelistas - ainda que haja fissuras demais para acreditarmos nela - cabe alegar também que, talvez, as atuais versões dos textos de Mateus, Marcos e Lucas não correspondam ao verdadeiro e originariamente escrito. O primeiro documento sobre a vida e ensinamentos de Cristo - pelo menos de que se tem notícia - foi a obra de Mateus. A tradição assegura que este Mateus foi um dos doze. No entanto, os cristãos não dispõem de uma prova irrefutável nesse sentido. Mesmo admitindo que esse Mateus Levi, o autor do referido evangelho, fosse o apóstolo, deparamo-nos com um outro fato irredutível: o texto original, redigido em língua aramaica, perdeu-se. Resta-nos, isso sim, um evangelho de Mateus, em grego, que não é outra coisa senão uma nova redação - carregada de possíveis alterações - do Mateus genuíno. Para piorar a situação, a versão atual, em grego, deve ter sido redigida
por volta dos anos sessenta da nossa Era. Isto é, uns trinta anos depois da morte do Salvador. Um tempo, embora historicamente curto, longo demais para se poder recordar com exatidão os extensos e profundos discursos de Jesus. Eu acrescentaria que os dez ou vinte anos que podem ter decorrido desde o desaparecimento do Galileu até à redação do primeiro evangelho - o Mateus aramaico - são muito tempo para tentar memorizar e reter devidamente as centenas de milhares de palavras que saíram da boca do Mestre. Quanto aos outros evangelistas - Marcos e Lucas -, a situação ainda se torna mais sombria. O primeiro talvez tenha sido aquele adolescente - João Marcos(1) - que, de fato, conheceu e conviveu com o Galileu. Mas a sua permanência ao lado do Mestre foi muito espaçada e esporádica. É provável que quando escreveu as suas recordações e investigações sobre Cristo ele tivesse de recorrer às fontes existentes: Mateus e outros documentos que circulavam nas comunidades cristãs. Por não ter estado presente na última ceia, Marcos teve de confiar em versões alheias. E, ou a discussão dos divãs e o tema da lavagem já teriam sido censurados ou, por acordo com os apóstolos sobreviventes, considerara mais prudente ignorálos. O certo é que nunca conheceremos as razões deste tríplice vazio informativo. O caso de Lucas parece mais lógico. Os especialistas demonstraram que o seu evangelho foi escrito baseando-se – em grande medida - nos textos de Mateus e de Marcos(2). O evangelista copiou, modificou e suprimiu uma infinidade de passagens, seguindo o seu critério pessoal e, sem dúvida, os dos que o rodeavam. A sua versão, por conseguinte, deixa muito a desejar, ainda que, tenha cometido o deslize de insinuar o caso da discussão...
*1. João Marcos é o filho da família de Elias Marcos, em cuja casa se celebrou a última ceia. No evangelho de Marcos (14, 51-53) oferece-se uma sutil pista sobre a sua própria identidade: "Um jovem o seguia coberto apenas com um lençol, e prenderam-no. Mas ele, largando o lençol, escapou-lhes". (N. do M.) 2. Por simples comparação dos textos verifica-se que em Lucas há trezentos e cinqüenta versículos comuns a Marcos e Mateus (tradição tríplice) e uns cinqüenta em comum com Marcos (tradição dupla). (N. do M.)
Mas talvez o capítulo mais delicado seja o da instituição da Eucaristia, do meu ponto de vista, Jesus de Nazaré não instituiu nenhuma Eucaristia,
tal como hoje os cristãos entendem este sacramento. E uma prova importante do que afirmo está precisamente na única testemunha que - com toda a certeza - viveu e escreveu sobre aquela ceia: João. Se Cristo tivesse pronunciado realmente as conhecidas palavras - "tomai, este é o meu corpo ou este é o meu sangue" -, o jovem discípulo, que se encontrava à sua direita, não as teria ignorado. O fato, se foi assim, reveste-se de uma importância tal que, sozinha, obscurece muitas outras passagens da vida do Galileu. Porque é que, então, não aparece na narração de João, o Evangelista? Alguns exegetas tentam remendar o acontecimento, alegando que a missão de João ao escrever o seu evangelho era apenas a de completar as lacunas dos outros três. A hipótese é muito fraca. Se fosse realmente essa a intenção do Zebedeu, porque é que repetiu tantas passagens que figuravam nos evangelhos dos seus companheiros? Porque é que insistiu, por exemplo, na morte e ressurreição? Ao longo de toda a sua vida, o Filho do Homem nunca deixou um só legado ou lema que não fossem mensagem e atitude suas perante a vida. Foi tão sutil que nem nos deixou nada escrito. Nem sequer se conservaram os seus restos mortais. Por que razão se arriscaria a cristalizar em palavras algo que, com o passar do tempo, podia vir a ser motivo de interpretações e definições que limitassem as suas grandes verdades espirituais? Seria mais lógico que, sob o simbolismo do pão e do vinho, falasse aos seus discípulos de uma simples ceia de recordação. Esta, na minha opinião, pode ter sido a sua verdadeira intenção: que soubéssemos e tivéssemos consciência de que ele está presente sempre que os crentes se reúnem. Mas que o está sempre, sem necessidade de fórmulas mágicas ou matemáticas, que, em última instância, constituem hoje a Eucaristia. Mais uma vez, as suas palavras e intenções foram dominadas e enclausuradas pelos juízos falsos e pueris do homem, que sente uma atração especial pelos dogmas. Quando acontece uma reunião de fiéis crentes, não é preciso associar a presença divina a um pedaço de pão ou a um cálice de vinho. O Espírito vivo do Filho de Deus - tal como ele repetiu - torna-se fisicamente presente em cada um dos espíritos dos congregados. Tomai esta taça e bebei dela. Esta será a taça da minha recordação... A manipulação do homem, mais uma vez, foi total. Duvido muito que Jesus desejasse destruir o conceito individual da divina comunhão, estabelecendo uma fórmula tão precisa e estranha às suas maneiras habituais como aquela que hoje praticam os cristãos. O seu estilo não foi
precisamente o de limitar a imaginação espiritual do crente, aprisionando-a com formalismos. Tomai este pão e comei-o. Manifestei-vos que sou o pão da vida, que é a vida unificada do Pai e do Filho numa só doação. A palavra do Pai, tal como foi revelada pelo Filho, é realmente o pão da vida. Que relação existe entre estas frases e as que nos foram transmitidas pelos três evangelistas? Na minha opinião, nenhuma. Nem na letra, nem no espírito. Infelizmente, de todas as suas parábolas e ensinamentos, esta talvez tenha sido a mais manipulada e estandardizada. Mas, como se verá mais à frente, não é o único acontecimento deformado ou ignorado... Por conseguinte, considerando que não houve transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue do Galileu, como hoje é dita a crença dos cristãos, também não se pode polemizar sobre se Judas chegou ou não a comungar. O bocado de pão embebido no molho foi, simplesmente, um costume e um sinal. Uma pista que também não foi captada pelos discípulos. Tal como vimos, nem mesmo João - que se encontrava reclinado à direita do Rabi -percebeu o breve diálogo entre o Mestre e o traidor. É óbvio, portanto, que o chamado anúncio da traição de Judas, de que fala João, foi um fato descoberto pelo Evangelista, não no momento em que se produziu, mas a posteriori. O certo é que os onze saíram do cenáculo ignorando as maquinações de Judas Iscariotes. Só depois ‚ que souberam. Por último – já que a análise da última ceia nos levaria muito longe -, porque é que os textos evangélicos não dizem uma única palavra sobre a chefia de André, o irmão de Simão Pedro? Porque é que não dedicam mais espaço às belas e esperançosas revelações de Jesus sobre o seu universo e o universo dos universos do Pai, ou sobre as moradas ou lugares de passagem no além? Será que o universo do Filho do Homem é um e o do seu Pai, outro?(1) Será que não interessava deixar testemunho de tudo isso ou, simplesmente, não o compreenderam? Suponho que a leitura de algumas destas apreciações pessoais podem ferir ou inquietar o espírito dos cristãos menos evoluídos. Não é essa a minha intenção. Poucas pessoas neste mundo professam uma fé em Cristo como a que me foi dada. Mas isso não tem que significar uma escravizante submissão a dogmas ou rituais que não me satisfazem e que, sobretudo, não foram desejados pelo Mestre... As nossas discussões terminaram ao amanhecer. E não por falta de
temas ou de interesse. Simplesmente por esgotamento. Curtiss, compreendendo que tinha se excedido, recomendou-nos que fôssemos dormir. E assim fizemos. Por volta das duas horas da tarde daquela sexta-feira nove de Março de 1973, Eliseu tirou-me de um sono profundo e reparador. O seu rosto parecia feliz. Iluminado. - Vamos - sussurrou-me sem dissimular a emoção. - está tudo pronto.
*1. Sobre estas revelações insólitas em torno do universo particular, de Jesus e do "universo dos universos" do Pai, atrevo-me a sugerir ao leitor que se aventure no meu último livro: La rebelión de Lucifer. (N. de J. J. Benitez).
O tempo mudara bruscamente. Nuvens negras e ameaçadoras levantavam-se a norte, empurradas por um vento forte. O meu companheiro percebeu a minha inquietação e, empurrando-me para o refeitório, pediu-me que ignorasse a meteorologia. Pouco depois, de um frugal almoço, descemos ao fosso. A atividade febril do dia anterior diminuíra sensivelmente. O esforço extraordinário dos homens do Cavalo de Tróia começava a dar os seus frutos. No centro da piscina aguardava - reluzente e majestoso - o módulo, com os seus quase vinte e três pés de altura. Naqueles instantes, ao rodeálo, um calafrio sacudiu-me dos pés à cabeça. E creio que foi a partir desse momento que intuí que "algo" de extraordinário e inimaginável nos esperava do outro lado. O carburante - a dimetil-hidrazina e o tetróxido de nitrogênio - já tinha sido introduzido nos tanques. No total, dezesseis mil e quatrocentos quilos. Mais do que suficiente para os nossos propósitos. Com aquelas quase dezesseis toneladas e meia dispúnhamos de uma margem máxima de vôo de cinco horas e catorze minutos. Desta vez, como conseqüência dos novos equipamentos e da maior duração da missão, o peso do berço tinha aumentado consideravelmente, até alcançar as vinte e cinco toneladas. O general fez-nos um sinal, convidando-nos a ir a uma reunião com os diretores do projeto. Ali, por fim, tivemos a notícia da hora zero. O lançamento, salvo imprevistos, se realizaria à uma hora da madrugada de sábado, dez de Março. Quando nos interessamos pelas medidas de segurança para o momento crítico, Curtiss, sem perder o sorriso, desviou a questão.
- Não há problema - limitou-se a responder. - Será como um passeio. - Mas... e os vigilantes? - insisti, alarmado. O chefe da operação nem sequer me ouviu. E continuou mergulhado nos pormenores da exploração. Por unanimidade, a inclinação dos eixos dos swivels tinha sido estabelecida para a uma hora da madrugada de domingo, dia 9 de Abril do ano 30. Deste modo, uma vez efetuada a inversão de massa do módulo, teríamos tempo suficiente para alcançar o topo do monte das Oliveiras antes das três da madrugada desse mesmo dia. A razão era simples: eu devia estar no jardim, de propriedade de José de Arimatéia, exatamente no momento em que se produzisse a primeira das supostas aparições do Ressuscitado. Como mencionei, a vara de Moisés sofrera algumas modificações. Uma delas, consistia na introdução de um sistema revolucionário baseado em transdutores de hélio que, na opinião dos cientistas, poderia ser de grande utilidade para analisar o misterioso corpo glorioso de Jesus de Nazaré. Mas as coisas não iriam ser tão simples... O general e os diretores mostravam-se especialmente preocupados com a falta de dados concretos sobre as referidas aparições do Mestre da Galiléia. Estas, insisto, constituíam um dos objetivos básicos da missão. Mas, no momento de traçar um plano, as múltiplas contradições dos evangelistas - a nossa principal fonte informativa - só contribuíram para complicar as coisas. Enquanto Mateus e Lucas, por exemplo, apenas falam de duas aparições, Marcos refere três e João, o mais digno de confiança, quatro. Um dos poucos pontos em que há coincidência entre os quatro evangelistas era o da data da primeira aparição: no primeiro dia da semana. Eis aqui os textos evangélicos que nos serviram de suporte inicial. Mateus, no capítulo 28, versículos 1 a 11, escreve: "Passado o sábado, ao amanhecer do primeiro dia da semana, foi Maria Madalena e a outra Maria visitar o sepulcro. De repente deu-se um grande terremoto, porque o Anjo do Senhor desceu do céu, e, aproximando-se, fez rodar a pedra e sentou-se sobre ela. O seu aspecto era como um relâmpago, e o seu vestido branco como a neve. Os guardas, atemorizados diante dele, puseram-se a tremer e ficaram como mortos. O Anjo dirigiu-se às mulheres e disse-Lhes: "Não temais, porque sei que procurais a Jesus o Crucificado; ele já não está aqui, porque ressuscitou, como tinha dito. Vinde, vede o lugar onde ele estava. E, agora,
ide dizer aos seus discípulos: Ressuscitou de entre os mortos e irá diante de vós para a Galiléia; lá o vereis. Eu já vo-lo disse ". Elas partiram a toda a pressa do sepulcro, com medo e grande júbilo, e foram correndo a dar a notícia aos seus discípulos. Nisto, Jesus saiu-Lhes ao encontro e disse-Lhes: "Deus vos guarde!" E elas, aproximaram-se dEle e abraçaram os seus pés e adoraram-No. Então disse-Lhes Jesus: "Não temais. Ide, avisai os meus irmãos para que vão à Galiléia; lá Me verão". Mais adiante (versículos 16 a 18), diz-se: "Por sua vez os onze discípulos partiram para a Galiléia, para o monte que Jesus Lhes tinha indicado. E, vendo-O, O adoraram; alguns, porém, duvidaram" - Quanto a Marcos (16, I-19), eis a sua versão: "Tendo passado o dia de sábado Maria Madalena, e Maria, mãe de Tiago, e Salom‚ compraram aromas para irem embalsamá-Lo. E, de madrugada, no primeiro dia da semana, ao nascer do Sol vão ao sepulcro. Diziam-se umas às outras: "Quem nos há de retirar a pedra da porta do sepulcro?" E levantando os olhos viram que a pedra já estava retirada, a qual era muito grande. E, entrando no sepulcro, viram um jovem sentado do lado direito, vestido com uma túnica branca, e ficaram assustadas. Mas ele disse-Lhes: "Não vos assusteis. Buscais Jesus de Nazaré, o Crucificado; ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar onde o puseram. Mas ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele irá adiante de vós para a Galiléia; lá O vereis, como Ele vos disse". Elas saíram fugindo do sepulcro, porque um grande tremor e espanto se tinha apoderado delas, e não disseram nada a ninguém, porque tinham medo". "Jesus ressuscitou de madrugada, no primeiro dia da semana, e apareceu primeiro a Maria Madalena, da qual tinha expulsado sete demônios. Ela foi levar a notícia aos que tinham vivido com Ele, os quais estavam tristes e chorosos. Eles ao ouvirem que Ele vivia e que tinha sido visto por ela, não acreditaram. Depois disto, apareceu, sob outra forma, a dois deles, quando estavam a caminho de uma aldeia. Eles voltaram para o comunicar aos outros; mas também não acreditaram nestes". "Por último, estando à mesa os onze discípulos, apareceu-lhes e censurou-Lhes a sua incredulidade e dureza de coração, por não terem acreditado nos que o tinham visto ressuscitado. E disse-Lhes: "Ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova a toda a criatura. O que crer e for batizado, salvar-se-á; o que não crer, condenar-se-á. Estes são os sinais que acompanharão os que crerem: em meu nome expulsarão demônios falarão em línguas novas, agarrarão em serpentes com as suas mãos e, mesmo que
bebam veneno, não Lhes fará mal; imporão as mãos sobre os enfermos, e estes ficarão curados". "Com isto, o Senhor Jesus, depois de lhes falar, foi elevado aos céus e sentou-se à direita de Deus" Lucas dedica o último capítulo do seu evangelho, o 24a, a narrar os acontecimentos nos seguintes termos: "No primeiro dia da semana, muito cedo, foram ao sepulcro, levando os aromas que tinham preparado. Mas viram que a pedra tinha sido retirada do sepulcro, e entraram, mas não encontraram o corpo do Senhor Jesus. Não sabiam que pensar disso quando se apresentaram diante delas dois homens com vestes resplandecentes. Como elas estivessem com medo e virassem os olhos para o chão, eles disseram-Lhes: "Porque buscais entre os mortos O que está vivo? Não está aqui, ressuscitou. Recordai como Ele vos falou quando ainda estava na Galiléia, dizendo: É necessário que o Filho do Homem seja entregue nas mãos dos pecadores, e seja crucificado, e ao terceiro dia ressuscite ". E elas lembraram-se das suas palavras. Regressando do sepulcro, anunciaram todas estas coisas aos onze e a todos os outros. As que diziam estas coisas aos apóstolos eram Maria Madalena, Joana, Maria, a de Tiago, e as outras que estavam com elas. Mas todas estas palavras Lhes pareciam como que desatinos e não acreditavam nelas". "Pedro levantou-se e foi correndo ao sepulcro. Inclinou-se, mas viu só os panos e voltou para casa, admirado com o sucedido. Naquele mesmo dia iam dois deles a uma aldeia chamada Emaús que ficava à distância de sessenta estádios de Jerusalém, e conversavam entre eles sobre tudo o que se tinha passado. E sucedeu que, enquanto eles iam conversando e discutindo, o próprio Jesus se aproximou deles e caminhou com eles; mas os seus olhos estavam como que fechados para que não O reconhecessem. Disse-Lhes Ele: "De que falais entre vós enquanto ides andando?" Eles pararam com ar entristecido. "Um deles, chamado Cléofas respondeu-Lhe: "És tu o único morador de Jerusalém que não sabe as coisas que nestes dias se tem passado nela?" E Ele disse-Lhes: "Que coisas?" Eles disseram: Sobre Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obras e em palavras diante de Deus e de todo o povo; como os nossos sumos sacerdotes e magistrados O condenaram à morte e O crucificaram. Nós esperávamos que seria Ele quem iria libertar Israel; mas, com todas estas coisas, Já lá vão três dias desde que isto se passou. O caso é que algumas mulheres que estavam conosco nos sobressaltaram, porque foram de madrugada ao sepulcro e,
não tendo achado o seu corpo, vieram dizer que até tinham visto uma aparição de anjos que diziam que ele estava vivo. Foram também alguns dos nossos ao sepulcro e acharam-no tal como tinham dito as mulheres, mas a Ele não o viram" "Ele disse-Lhes: "Oh, insensatos e lentos de coração para crer tudo o que disseram os profetas! Não era necessário que o Cristo sofresse isso e assim entrasse na sua glória?" E começando por Moisés, e passando por todos os profetas, explicou-Lhes o que sobre Ele havia escrito em todas as Escrituras". "Ao aproximarem-se da aldeia para onde iam, Ele mostrou intenção de seguir em frente. Mas eles retiveram-No, dizendo-Lhe: "Fica conosco, porque se faz tarde e o dia já declinou". E entrou para ficar com eles. E aconteceu que quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e começou a distribuí-lo. Então abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-no mas Ele desapareceu ao pé deles. Disseram um para o outro: "Não estava ardendo o nosso coração dentro de nós, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as escrituras?" E, levantando-se logo, voltaram para Jerusalém e encontraram juntos os onze, e os que estavam com eles, e que diziam: "É verdade! O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!" Eles, por seu lado, contaram o que se tinha passado no caminho e como O tinham reconhecido ao partir o pão. Estavam falando destas coisas, quando Ele se apresentou no meio deles e Lhes disse: "A paz seja convosco" Surpreendidos e assustados, julgavam estar a ver um espírito. Mas Ele disse-Lhes: "Porque vos perturbais, e porque surgem dúvidas no vosso coração? Olhai para as minhas mãos e para os meus pés; sou Eu mesmo. Apalpai-me e vede que um espírito não tem carne e ossos como vedes que eu tenho E, dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. Como eles não conseguiam acreditar de tanta alegria e se mostrassem assombrados, disse-Lhes: "Tendes aqui alguma coisa que se coma?" Eles ofereceram-lhe parte de um peixe assado. Tomou-o e comeu diante deles". "Levou-os até perto de Betânia e, levantando as mãos, abençoou-os. E aconteceu que, enquanto os abençoava, se separou deles e foi levado para o céu. Eles, depois de se prostrarem diante dEle, voltaram para Jerusalém com grande júbilo, e estavam sempre no Templo bendizendo a Deus"
* Isto é, no domingo. A mesma coisa não acontecia, em contrapartida, com
a hora. Para Mateus, as mulheres que foram ao sepulcro - sobre cuja identidade e número também não estão de acordo os escritores sagrados - fizeram-no ao alvorecer do dia. Marcos, como vimos, fala da saída do Sol. Lucas é mais impreciso: de manhã cedo. Finalmente, João, mais minucioso, oferece-nos um dado importante: de madrugada quando ainda estava escuro.
Por último, João Evangelista (201-31 e 211-25) fala de quatro aparições: "No primeiro dia da semana vai Maria Madalena ao sepulcro, de madrugada, quando ainda estava escuro, e vê a pedra tirada do sepulcro. Desata correndo e vai ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus amava, e disse-lhes: "Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram". Saíram Pedro e o outro discípulo e dirigiram-se para o sepulcro. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo correu à frente mais rápido que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro. Inclinou-se e viu os panos no chão; mas não entrou. Chega também Simão Pedro, seguindo-o, entra no sepulcro e vê os panos no chão, e o sudário que cobrira a sua cabeça, não junto aos panos mas dobrado num lugar à parte. Então entrou também o outro discípulo, o que tinha chegado primeiro ao sepulcro viu e acreditou, pois até então não tinha compreendido que, segundo a Escritura, Jesus devia ressuscitar de entre os mortos. Os discípulos, então, voltaram para casa". Quanto à aparição a Madalena, João diz: "Estava Maria junto ao sepulcro, fora, chorando. E, enquanto chorava, inclinou-se para o sepulcro e viu dois anjos de branco, sentados onde estivera o corpo de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés. Dizem-Lhe eles: "Mulher, porque choras? A quem procuras?" Ela, pensando que era o encarregado do horto, disse-Lhe: "Senhor, se tu o levaste, diz-me onde o puseste, e eu o levarei comigo" Disse-Lhe Jesus: “Maria" Ela volta-se e diz-lhe em hebraico: "Rabboni" - que quer dizer "Mestre" Diz-Lhe Jesus: "Não me toques, que ainda não subi para o meu Pai. Mas vai aos meus irmãos e diz-Lhes: subo para o meu Pai, e vosso Pai, para o meu Deus, e vosso Deus". Foi Maria Madalena e disse aos discípulos que tinha visto o Senhor e
que tinha dito estas palavras". "Ao entardecer daquele dia, o primeiro da semana, e estando fechadas com medo dos Judeus as portas do lugar onde se encontravam os discípulos, apresentou-se Jesus no meio deles e disse-lhes: A paz seja convosco". Dito isto, mostrou-lhes as mãos. Os discípulos alegraram-se ao ver o Senhor. Jesus disse-Lhes de novo: "A paz seja convosco. Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio". Dito isto, soprou sobre eles, e disse-Lhes: "Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-Ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos". Tomé, um dos doze, chamado "o Dídimo não estava com eles quando veio Jesus". Os outros discípulos disseram-Lhe: "Vimos o Senhor" Mas ele respondeu: "Se não vir nas suas mãos a abertura dos cravos, e não lhe tocar com a minha mão, não crerei". Oito dias depois, estavam outra vez os seus discípulos dentro e Tomé com eles. Apresentou-se Jesus no meio deles estando as portas fechadas, e disse: "A paz seja convosco". Depois disse a Tomé: "Aproxima aqui o teu dedo e olha as minhas mãos, aproxima a tua mão e toca-me, e não sejas incrédulo, mas crente". Tomé respondeu-Lhe: "Senhor meu e Deus meu". Disse-lhe Jesus: "Porque me viste, tu creste. Ditosos os que não viram e creram". Finalmente, depois de afirmar que Jesus realizou outros muitos sinais na presença dos seus discípulos, João narra a aparição nas margens do lago de Tiberíade: "Depois disto tornou a manifestar-se Jesus aos seus discípulos, nas margens do mar de Tiberíade. Manifestou-se desta maneira. Estavam juntos Simão Pedro, Tomé, chamado "o Dídimo", Natanael, o de Canaã da Galiléia, os de Zebedeu e outros dois discípulos. Simão Pedro disse-lhes: "Vou pescar" Responderam-Lhe eles: "Também nós vamos contigo". Foram e entraram para a barca, mas naquela noite nada pescaram. Quando amanheceu, estava Jesus na margem; mas os discípulos não sabiam que era Jesus. Disse-lhes Jesus: "Rapazes, não tendes peixe?". Responderam-Lhe: "Não".
Disse-lhes Ele: "Lançai a rede para o lado direito da barca e encontrareis". Lançaram, pois, e já não podiam arrastá-la, pela grande quantidade de peixes. O discípulo a quem Jesus amava disse então a Pedro: "É o Senhor". Quando Simão Pedro ouviu "É o Senhor", vestiu a sua roupa - pois estava nu - e lançou-se ao mar. Os outros discípulos vieram na barca, arrastando a rede com os peixes; pois não distavam muito da terra, apenas uns duzentos côvados. Logo que saltaram em terra, viram umas brasas preparadas e um peixe em cima delas e pão. Disse-Lhes Jesus: "Trazei alguns dos peixes que acabais de pescar". Subiu Simão Pedro e tirou a rede para terra, cheia de peixes grandes, cento e cinqüenta e três. E, mesmo sendo tantos, não se rompeu a rede. Disse-Lhes Jesus: "Vinde e comei". Nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-lhe: "Quem és tu?" sabendo que era o Senhor. Aproximou-se então Jesus, tomou o pão e repartiu-o; e de igual modo o peixe. Foi esta Já a terceira vez que Jesus se manifestou aos seus discípulos, depois de ter ressuscitado dos mortos (N. do M) Para nós, embora conhecêssemos a hora exata em que se registraram os enigmáticos acontecimentos que rodearam a suposta ressurreição, o fato de podermos determinar com precisão o momento em que as mulheres entraram na propriedade de José de Arimatéia tinha um interesse especial. Tendo em conta que o nascer do Sol em Jerusalém ocorrera naquela data às cinco horas e quarenta e dois minutos, a tendência geral entre os homens do Cavalo de Tróia inclinava-se para a versão de João, o Evangelista. Mas seria preciso uma comprovação sobre o terreno. No que se refere ao famoso terremoto citado por Mateus - ignorado pelos outros três evangelistas -, o nosso ceticismo foi quase total. As vibrações e o zunido que acompanharam ou precederam – pois este ponto não estava de todo claro - o desaparecimento do cadáver do interior da gruta nada tinham a ver com o que hoje interpretamos como um sismo. Quanto à pedra que fechava o sepulcro, as contradições eram igualmente palpáveis. Mateus culpa o Anjo do Senhor que baixou do céu. Marcos, Lucas e João, prudentemente estão de acordo em que, quando as mulheres chegaram ao lugar, a pedra já tinha sido deslocada. Mas como ou por quem? Possivelmente, como eu próprio tive a oportunidade de ouvir do pombal, o movimento, não de uma, mas das duas
lajes foi devido a alguma força ou entidade invisíveis aos olhos humanos. Com respeito aos jovens ou anjos, de vestes brancas e resplandecentes que foram vistos pelas mulheres, o assunto complicava-se até limites insuspeitados. Mateus e Marcos só falam de um. Para o primeiro, fora do sepulcro. O segundo, pelo contrário, coloca-o no interior da cripta. Lucas e João referem-se aos dois, respectivamente. Com que versão ficávamos? O primeiro dos evangelistas - Mateus -, quando narra a aparição às mulheres entra de novo em flagrante contradição com João. Enquanto aquele afirma que Jesus saiu ao encontro das mulheres e que estas, aproximando-se, abraçaram os seus pés e adoraram-No, o Zebedeu assegura algo de muito diferente: que Maria Madalena voltou-se - estando ainda junto do sepulcro - e viu Jesus. Mais ainda: chegou a confundi-lo com o jardineiro, pedindo-lhe que lhe dissesse onde tinha colocado o corpo do Mestre. Quando, finalmente, a de Magdala reconheceu o Galileu, este proibiu-a de Lhe tocar, que ainda não subi para o meu Pai. Enfim, para quê continuar? O estudo e a revisão destas passagens só contribuiu para nos confundir. Era preciso reconstituir, os fatos. E fazê-lo desde o princípio. Daí ser vital a minha presença no jardim. E, se fosse possível, como planejara o Cavalo de Tróia, a partir do momento da suposta ressurreição. Mas o destino tinha outros planos. Pelo segundo dos livros atribuídos a Lucas - os Atos dos Apóstolos - sabíamos que a última aparição do Mestre aos seus discípulos (denominada entre os cristãos como a Ascensão aos Céus) deve ter acontecido quarenta dias depois da ressurreição. Isto é mais ou menos no dia 18 de Maio, quinta-feira. Mas, logicamente o dado não era muito seguro. Mesmo assim, embora o tempo atribuído a esta segunda exploração estivesse nas nossas mãos, Cavalo de Tróia teve a preocupação de encher a despensa do módulo com uma reserva de água e alimentos suficientes para uns doze dias. Embora não tão grande, esta foi outra das preocupações do general. Se a missão, como estava inicialmente previsto, se prolongasse até um total de quarenta ou cinqüenta dias, Eliseu e eu tínhamos de resolver a falta de provisões, recorrendo às fontes naturais do próprio meio. Dadas as deficientes condições de higiene da época, a equipe de diretores fixara uma série de normas drásticas, de caráter preventivo, que devíamos cumprir com todo o rigor. Mas prefiro deixar este assunto para mais adiante. A maior parte das
reservas alimentícias do berço, tal como acontecera no primeiro salto, tinha sido minuciosamente estudada, seguindo - é claro! - as diretrizes e os costumes da NASA. No plano diário de trabalho - que dizia respeito sobretudo ao meu irmão - havia três indicações muito concretas: pequeno-almoço, almoço e jantar. No total, o Cavalo de Tróia tinha selecionado uma dieta constituída por trinta e cinco pratos diferentes, todos desidratados. A dieta diária abrangia desde espaguete com carne picada até cocktail de gambas, passando pelos mais variados sumos de fruta, torta de maçã, queijo, leite e uma infinidade de hortaliças e legumes e outros alimentos ricos em açúcares ou hidratos de carbono, lipídios, vitaminas e minerais. Este último capítulo recebeu uma atenção especial da parte dos nossos especialistas. Como se sabe, os minerais, assim como as vitaminas, não fornecem energia, mas são muito importantes para regular todas as funções vitais. O homem pode suportar a falta de vitaminas durante semanas. No entanto, qualquer pequena alteração na concentração de cloreto de sódio no sangue, para dar um exemplo, pode provocar conseqüências fatais. Daí as provisões ricas em minerais - sobretudo em sódio, potássio, ferro, magnésio, cálcio, fósforo, iodo, cobalto, cloro e flúor - terem merecido um tratamento especial. Os alimentos, que acabavam por desfazer-se em migalhas, foram reunidos em porções. Cada uma perfeitamente envolta por uma camada de fécula que evitava que se desmanchassem. A preparação do correspondente menu obrigava a um tratamento prévio, à base de água fria ou quente, dependendo dos gostos pessoais e da natureza da refeição. Cada pequeno-almoço, almoço ou jantar fora acondicionado em diferentes recipientes cilíndricos e tudo, por sua vez, hermeticamente protegido num compartimento destinado a despensa e situado na popa da nave. Tendo em conta a forma prismática do berço - com pouco mais de sessenta metros cúbicos de capacidade -, tinha sido colocado naquilo a que podíamos chamar a proa, a maior parte dos equipamentos eletrônicos, de navegação e o computador central: o nosso serviçal e utilíssimo Papai Noel. À direita e à esquerda dos assentos de pilotagem, ocupando quase a totalidade das paredes laterais, estavam os depósitos de combustível, água e gases auxiliares. Tudo isto, em compartimentos estanques, fabricados com uma liga especial de alumínio. As juntas e outras zonas que podiam vir a ser submetidas a maiores esforços mecânicos eram de titânio.
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CONTINUA
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Sob os nossos pés, ficavam o motor principal e os dois reatores auxiliares e reguláveis. Os outros oito foguetes estavam distribuídos estrategicamente nas diferentes faces do módulo. A popa, à frente da despensa e dos beliches, abrigava complexos circuitos de rádio de medição ambiental interna e externa e uma bateria atômica - tipo SNAP 27 – capaz de transformar a energia calorífica do plutônio radioativo em corrente elétrica (50 W), com uma vida útil de um ano. Esta pilha, especialmente blindada, era o coração do módulo. Todos os circuitos e instrumentos dependiam dela em maior ou menor grau. Não quero nem pensar no que poderia nos acontecer se houvesse uma falha no fornecimento de eletricidade. Como medida de precaução, o Cavalo de Tróia acrescentou aos novos equipamentos uma bateria de espelhos metálicos - doze no total - que podiam ser montados na face externa do berço, aproveitando a radiação solar e podendo gerar até 500 W. Entre os assentos dos tripulantes encontrava-se o núcleo de controle dos eixos dos swivels, essencial para a inversão de massa e para o retrocesso no tempo. Este enxame de equipamentos era controlado pelo computador central - o Papai Noel -, cuja natureza nada tem a ver com a dos seus irmãos, os computadores de válvulas de elevado vácuo ou de estado sólido. A coordenação dos principais sistemas - propulsão, inversão dos eixos, verificação visual para vôos, descida do módulo, detecção e emissão, controle do meio biológico, alimentação geral dos equipamentos, etc. – era executada através da técnica conhecida como controle por retroação com o auxílio de computadores 1.
A lista de alimentos ricos em vitaminas abrangia os sete grandes grupos essenciais. I: verduras e hortaliças; II: frutos cítricos (laranjas, tangerinas e limões); III: batatas e frutas diversas; IV: leite e seus derivados; V: carne, peixe e ovos. VI: pão, massa, cereais e seus derivados, e VII: manteiga, margarina enriquecida com vitamina A" e óleos vegetais. (N. do hl). Estes espelhos, de vidro revestido de prata, tinham 293 centímetros de diâmetro. Na parte posterior tinham coladas diversas películas de cobre, podendo ser fixos a um estribo de ferro, em disposição azimutal biaxial. Inventado pelo professor israelita Tahor, o sistema, graças à fórmula especular assimétrica e ao deslocamento do eixo de giro horizontal no centro da curvatura da imagem permitia que toda a radiação refletida incidisse num único ponto. Embora a capacidade de reflexão do vidro revestido de prata fosse alta - cerca de oitenta e oito por cento -, Cavalo de Tróia abasteceu-nos também de outras pranchas de reserva, à base de aço maleável prateado e metal eletroprateado, com índices de reflexão de noventa e um e noventa e seis por cento, respectivamente. (N. do M). * Este núcleo de controle tinha sido colocado numa pequena cúpula cilíndrica. A rede do sistema de inversão de massa estendia-se, no entanto, a toda a estrutura sólida do berço, incluindo, naturalmente, a membrana que recobria a blindagem externa. Qualquer partícula subatômica ou qrirn energético que se fechasse nesse recinto era invertido automaticamente, incluindo, é claro, as massas dos astronautas, os gases, etc. A inversão simultânea dos eixos orientados dos suivels alcançava também uma pequena área do invólucro cortical clinwe: até uma distância de 1111329 metros. (N. do M) * Veja-se o primeiro volume desta obra. (N. do A)
E apesar de não pretender alongar-me nas sempre difíceis e complexas características técnicas dos instrumentos e dos sistemas utilizados, tanto o meu companheiro de aventuras como eu próprio sentimos um profundo prazer quando, ao revistar o interior do berço, comprovamos que o Cavalo de Tróia tinha atendido algumas das nossas sugestões, imaginando a iminente exploração. Na popa, devidamente acondicionados, encontravam-se, entre outros, os seguintes aparelhos e ferramentas: ...
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