Autor de 50 livros publicados até hoje, com mais de sete milhões de exemplares vendidos, jornalista formado pela Universidade cie Navarra, que depois de ser repórter e enviado especial para vários periódicos, se retirou para pesquisar e escrever.
Sente-se na obrigação de semear a dúvida para que as pessoas pensem por si mesmas. Porque para ele "o mais importante que se pode fazer nesta vida é duvidar de tudo, as certezas não conduzem a lugar algum." E este é o objetivo que persegue com os livros da série Cavalo de Tróia.
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 1 -JERUSALÉM
Um militar norte-americano entra em contato com o autor para lhe entregar a documentação sobre um projeto últra-secreto de 1973. A transcrição desvela que os militares dos EUA viajaram no tempo até a Palestina para reviver os últimos dias de Jesus.
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 2 - MASSADA
Um secundo volume apaixonante que revela que Jesus de Nazaré, depois de sua morte no Gólgota, apareceu mais vezes que as relatadas pela doutrina "oficial" do Evangelho.
E relata em detalhes a última ceia com os apóstolos.
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 3 - SAIDAN
O leitor descobre um dos mistérios mais fascinantes da vida do Filho de Deus: sua infância. Os costumes e gostos, e os retratos de Jesus abordados como nunca antes o foram. Além disso, faz uma análise minuciosa do "corpo glorioso" (o corpo ressuscitado de Jesus) por meio dos mais sofisticados equipamentos e recursos.
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 4 - NAZARÉ
O major apresenta uma investigação sobre os "anos ocultos" de Jesus, o período dos quatorze aos vinte e seis anos que foi totalmente ignorado pelos evangelistas. Relata sobre a vida da família do Filho do Homem, sobre seu trabalho para garantir o sustento da família, sobre como compôs o Pai-Nosso.
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 5 - CESARÉIA
Jasão, preso num subterrâneo, sem a "vara de Moisés", escapa e segue com sua missão, na Palestina do ano 30, nas pegadas de Jesus. E desvelada a verdadeira personalidade de alguns dos personagens que rodearam Jesus. Quem poderia ter imaginado que Pôncio Pilatos era, na verdade, um louco?
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA 6 - HERMON
Esta é a terceira viagem no tempo de Jasão e Iliseu, que transcorre fora do "estabelecido oficialmente". No ano de 25, Jesus se prepara para a vicia pública. Ele confabula com seu Pai no monte Hernion, e descobre definitivamente quem é. E pede aos viajantes no tempo que transmitam a esperança na imortalidade do homem. A morte é apenas um sonho...
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RESUMO DO QUE JÁ FOI PUBLICADO
Janeiro de 1973
Em um projeto secreto, dois pilotos da USAF (Força Aérea Norteamericana) viajam no tempo, ao ano 30 de nossa era. Especificamente, à província romana da Judéia (atual Israel). O objetivo declarado: seguir os passos de Jesus de Nazaré e comprovar, com o máximo rigor, como foram seus últimos dias. Por que foi condenado à morte? Quem foi aquele Homem? Tratava-se de um deus, como afirmam seus seguidores?
Jasáo e Eliseu, os responsáveis pela exploração, vivem passo a passo as terríveis horas da chamada Paixão e Morte do Galileu. Jasão, em seu diário, diz clara e incisivamente: "Os evangelistas não contaram toda a verdade". Os fatos, ao que parece, foram mal interpretados, censurados e mutilados, obedecendo a determinados interesses. Aquilo que se conta hoje em dia sobre os últimos momentos do Mestre é uma sombra do que aconteceu de fato. Mas algo falhou na experiência, e a Operação Cavalo de Tróia foi repetida.
Março de 1973
Os pilotos norte-americanos "viajam" de novo no tempo, voltando a Jerusalém do ano 30. Comprovam no local a realidade do sepulcro vazio e as sucessivas "presenças" de um Jesus ressuscitado. Os cientistas ficam desconcertados: a Ressurreição do Galileu foi inquestionável. A nave de exploração se translada para o norte, junto ao mar de Tiberíades, e Jasão, o major da USAF, assiste a novas aparições do Ressuscitado. A ciência não sabe, não compreende o porquê do "corpo glorioso".
Jasão se aventura em Nazaré e reconstrói a infância e a juventude de Jesus. Nada é da maneira como foi contado. Jesus jamais ficou escondido. Durante anos, as dúvidas consomem o jovem carpinteiro. Ainda não sabe quem é realmente.
Aos 26 anos, Jesus abandona Nazaré e empreende uma série de viagens "secretas" das quais os evangelistas não falam.
O major vai conhecendo e entendendo a personalidade dos muitos personagens que rodearam o Mestre. Assim é que o "Cavalo de Tróia" desmistifica e põe em seu devido lugar protagonistas como Maria, a mãe do Galileu, Pôncio Pilatos e os discípulos. Nenhum dos mais íntimos entendeu o Mestre, muito menos sua família.
Fascinados pela figura e pelo pensamento de Jesus de Nazaré, os pilotos tomam uma decisão: acompanharão o Mestre durante sua vida pública ou de pregação, registrando com exatidão tudo que virem e ouvirem. Para isso, devem atuar à margem do que foi estabelecido oficialmente por "Cavalo de Tróia". E, embora suas vidas se encontrem comprometidas por um mal irreversível, conseqüência do próprio experimento, Jasão e Eliseu se arriscam num terceiro "salto" no tempo, retrocedendo ao mês de agosto do ano 25 da nossa era. Procuram Jesus e o encontram no monte Hermon, ao norte da Galiléia. Permanecem com ele durante várias semanas e assistem a um acontecimento transcendental na vida do Filho do Homem: no alto da montanha sagrada, Jesus "recupera" sua divindade. Agora é um Homem-Deus. Jesus de Nazaré acaba de completar 31 anos.
Nada disso foi narrado pelos evangelistas...
O DIÁRIO
(SÉTIMA PARTE)
17 DE SETEMBRO, SEGUNDA-FEIRA (ANO 25)
Aquele amanhecer se apresentou esquisito; belo e incerto ao mesmo tempo. Os relógios do "berço" marcaram o nascer do sol às 5 horas, 16 minutos e 6 segundos.
Uma neblina espessa ocultava o cume principal do Hermon. Lenta, sem pressa, rolava encosta abaixo, devorando os bosques de cedros. Não tardaria muito a alcançar também a esplanada onde se levantava o nosso acampamento. O sol laranja já se anunciava entre os grandes debruns brancos da neblina inesperada.
A tenda de peles do Mestre estava desmontada e pronta para ser transportada. E junto a ela, o saco de viagem de Jesus de Nazaré.
Eliseu também não se encontrava no acampamento. Eu supus que ambos poderiam estar na "piscina", na região das cascatas. xxx E digo que aquela segunda-feira, 17 de setembro do ano 25 da nossa era, se apresentava incerta porque, para estes exploradores, tudo era novo. Nada sabíamos dos planos do Mestre. O Destino quis que o encontrássemos quatro semanas antes e que tivéssemos a felicidade de sermos testemunhas de um acontecimento do qual não há registro e para o qual, sinceramente, não tenho explicação: o processo (?) de recuperação (?) ou materialização (?) da natureza divina. Do ponto de vista da compreensão humana, pelo menos a partir do meu conhecimento limitado, essa mudança (?) é difícil de entender, caso seja mesmo uma mudança. Seja como for, o que contava é que aquele Homem, a partir de agosto do ano 25, se
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transformou num ser muito especial (mais ainda). Para este que escreve, a definição mais aproximada seria "Homem-Deus", como tenho afirmado em outras páginas deste apressado diário. Ou seja, um Homem com um poder que nada tinha a ver com a mísera natureza humana. Algo nunca visto na história do mundo.
Este era o nosso amigo, e esta, a nova missão: segui-lo dia e noite e dar testemunho de tudo que víssemos e ouvíssemos.
Apressei-me a desmontar a tenda e revistei o equipamento. Suspeitávamos que Jesus regressaria ao yam (mar de Tiberíades), embora, como digo, ignorássemos seus planos. As notícias trazidas pelo Zebedeu pai terminavam aí: "no mês de tisri (setembro-outubro), o Mestre desceu do Hermon..." Iria se mudar para Saidan, ao velho casarão dos Zebedeu nas margens do lago? Quais eram suas intenções? Iria se aproximar do yam pela rota costumeira? Iria se desviar para Nazaré? Quanto tempo dedicaria à viagem de volta? Naqueles momentos, essas perguntas me mantinham relativamente preocupado. Fazia quase um mês que abandonáramos o cume do Ravid e, embora o "berço" se encontrasse nas melhores mãos, as de Papai Noel, o computador central, a segurança da nave continuava a ser uma de nossas prioridades. Devíamos regressar o quanto antes. No entanto, talvez o que mais nos inquietasse era a alarmante escassez do remédio que funcionava como antioxidante (dimetilglicina) e que, lembrando, tratava de deter o mal que nos acometia, conseqüência das sucessivas inversões de massa dos swivels. Ao repassar a "farmácia" de campanha, verifiquei o que já sabia: restavam apenas dois comprimidos. No dia seguinte, quarta-feira, o tratamento seria inexoravelmente interrompido, incentivando assim, teoricamente, a produção de óxido nitroso (NO) que estava "devorando" nossos cérebros. Isto, em suma, como já expus na ocasião, poderia significar uma catástrofe...
Quanto às provisões, reduzidas a alguns ovos e aos recipientes que continham sal, azeite, vinagre e mel, mal considerei. A invasão das formigas arbóreas, as insaciáveis camponotus, inutilizaram muitos dos víveres, mas, como digo, esse não era o problema principal. Nossas bolsas de borracha conservavam boa parte do dinheiro com o qual iniciamos esta nova
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exploração (trinta denários de prata). Quando entrássemos logo mais na aldeia de Bet Jenn poderíamos adquirir tudo o que fosse necessário. "De fato - continuei pensando - hoje é segunda-feira, um dia em que o jovem Tiglat, o fenício, deve prover o acampamento. Se o Mestre está disposto a deixar essas montanhas, como pensa resolver o assunto dos víveres?"
O Mestre? Eliseu? Onde diabos estavam? Inspecionei o aglomerado de neblina. Prosseguia a descida, lambendo os cedros corpulentos que rodeavam o planalto pela face norte. Em questão de minutos cobriria o acampamento, tornando muito difícil o avanço destes exploradores. Mas meus pensamentos voltaram aos antioxidantes. Os cálculos falharam. Se Jesus de Nazaré não retornasse ao lago imediatamente, o que poderíamos fazer? A reserva dos remédios acabava, justamente, nessa segunda-feira... E os velhos fantasmas apareceram de novo. O que aconteceria se os neurônios entrassem em colapso e provocassem um acidente cardiovascular? O que seria de nós com uma súbita perda de memória ou de visão?
Nisso eu estava quando, de repente, meus dedos tropeçaram na pequena prancha de madeira, presente de Sitio, a dona da cruz de Qazrin, que estava no fundo do saco. Havia quase me esquecido dela. "Eu acreditava não ter nada, mas, ao descobrir a esperança, compreendi que tinha tudo." A frase, em koiné (grego internacional), me comoveu. E senti certa vergonha. Será que não aprendera nada naquelas quatro semanas junto ao rabi da Galiléia? Por que me preocupava? Segundo o Mestre, tudo estava nas mãos do Pai...
Eu me sobressaltei. Não ouvi seus passos, que se aproximavam pelas minhas costas. Umas mãos pousaram docemente nos meus ombros e, quando me virei, aqueles olhos rasgados, acolhedores, luminosos como o mel líquido, sorriram para mim. Jesus fez uma leve pressão com seus dedos grandes e finos. Eliseu, a
poucos metros, contemplava a cena com curiosidade.
- Confia - exclamou o Mestre, acariciando-me com aquela voz firme e profunda. E pegando a pequena madeira, concluiu depois de alguns segundos de leitura atenta: - Aqui diz bem claro... Quando tens esperança, quando confias, tens tudo.
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Era impossível se acostumar. Aquele Homem, de repente, deslizava em nossas mentes, acompanhando os pensamentos. Suponho que esse poder fazia parte de sua recém-adquirida divindade. Para falar a verdade, nunca nos acostumamos...
- Vamos, está na hora...
E carregando sacos e tendas, o Mestre e estes exploradores partiram do mahaneh, o acampamento rústico localizado na cota 2.000, muito próxima dos cumes nevados do Hermon; um local difícil de esquecer e ao qual teríamos a felicidade de voltar oportunamente.
O Galileu, indo na frente, tomou a trilha que serpenteava entre as árvores, e iniciou a descida até o refúgio de pedra onde a família Tiglat costumava depositar as provisões todas as segundas e quintas. Meu irmão o seguia a curta distância, e este que escreve, como sempre, fechava a minguada expedição.
A neblina, talvez advertida pelo sol, parecia detida nos arredores do dólmen. Isso nos beneficiou, permitindo um avanço mais rápido e seguro. Um avanço? Para onde nos dirigíamos? Nem Eliseu nem eu trocamos impressões com o Mestre. Simplesmente nos limitamos a segui-LO. Ele, em cada instante, tomou suas próprias decisões. Não
podia ser de outra forma. Segundo meu irmão, naquela manhã, enquanto acompanhava Jesus ao último banho na chamada "piscina de gesso", pouco faltou para que o interrogasse sobre seus planos imediatos. O engenheiro, sem dúvida, fiel às normas, optou pelo silêncio. Era melhor assim.
Alcançamos o "refúgio" na cota 1.800 em questão de minutos. Jesus parecia ter pressa. Pensei que faria uma parada e esperaria a chegada de Tiglat com as provisões. Eu me enganei. O Mestre deixou para trás o pequeno semicírculo de pedras negras que servira de depósito e prosseguiu pela trilha, rumo à aldeia de Bet Jenn. Isso, ao menos, foi o que supus. Era provável que Jesus quisesse se despedir da amável família.
A estreita e revolta trilha de cinza vulcânica desembocou, por fim, numa clareira de tristes lembranças. Jesus se deteve e, em silêncio, contemplou a meia dúzia de ossos e vísceras de cabras que pendiam dos galhos do zimbro corpulento. Ali, quase desencarnada, balouçava também
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a cabeça de Ot, o fiel e valente cachorro de Tiglat, decapitado por um dos bucoles (bandidos da Gaulanítis). E durante alguns segundos me lembrei da luta debaixo do aguaceiro fortíssimo e da fuga dos bucoles.
Eliseu e eu trocamos um olhar significativo. Ninguém disse nada. Jesus reassumiu a caminhada. Meu irmão encolheu os ombros e se apressou a segui-lo. Por um momento pensei na reaparição de "Al", o bandido da perna de pau. Mas por que me atormentava? Nós éramos simples observadores. Devíamos esperar. Só isso...
Ao chegar à altura dos restos do bandido chamado "Anãs" ("castigo"), entre o caminho e o bosque cerrado de pinheiros, o Galileu parou
novamente. Sua atenção estava centrada no fundo do caminho. Nem reparou no esqueleto de Anãs. Avançou alguns passos e voltou a parar. O que estava acontecendo? No final daquele trecho, se bem me lembrava, chegava-se ao asherat, a formação megalítica integrada por cinco pedras cónicas de basalto negro, toscamente talhadas, que representavam outros tantos deuses fenícios.
A inquietação se prolongou por alguns segundos. Meus dedos deslizaram instintivamente ao topo da "vara de Moisés"...
Aos poucos respirei aliviado. Pela trilha negra vimos subir o jovem Tiglat. Andava devagar, puxando as rédeas do burro alto e forte, de propriedade do Mestre. Quando nos viu, deteve a caminhada. O sol, se erguendo acima da serra, o iluminou de frente, cegando os olhos. Suponho que precisou ter certeza da identidade daqueles três inesperados caminhantes. Finalmente, sentando-se na margem do Aleyin, o afluente do rio que nascia nas escarpas, o jovem aguardou a nossa chegada.
O rapaz, de fato, estava conduzindo o animal até o "refúgio" de pedra. Nos dois grandes alforjes de junco, a família tinha reunido as costumeiras provisões suficientes para três dias. E eu me fiz uma pergunta cuja resposta conhecia muito bem: como é que aquele Homem havia detectado a presença do jovem guia fenício? Nem Eliseu nem eu o descobrimos até que ele ficasse visível.
Jesus se acomodou ao pé de um dos ídolos de pedra e nos convidou a descansar também. Tiglat, logicamente confuso, nos interrogou sobre
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xxx o destino das provisões. Meu irmão e eu guardamos silêncio. E Jesus, ausente, continuou com a cabeça reclinada no basalto negro, oferecendo o
rosto ao azul do céu e aos fracos raios solares da manhã. Tiglat não repetiu a pergunta. Dirigiuse ao burro e remexeu os víveres. Eliseu se distanciou alguns metros do asherat, confundindo-se entre o cheiroso arbusto de tomilho, menta e sálvia amarela. Compreendi que desejava urinar.
E minha atenção se voltou ao Filho do Homem. O rosto, bronzeado, alto e estreito, de fronte aberta e barba partida em dois, agora um tanto descuidada pela longa permanência no Hermon, parecia sereno, quase radiante. Tinha os olhos fechados, mostrando aquelas belas pestanas grossas. Não havia dúvida. Jesus era um Homem feliz, pelo menos nesses instantes.
Era desconcertante. O Mestre fora se sentar ao pé da representação de Resef e Aleyin, filhos do deus fenício Baal-Ros, o senhor dos promontórios. Apesar de sua condição de yebuday (judeu), não demonstrava se importar de forma alguma com a natureza pagã da fileira de pedras. Logo nos acostumaríamos também com essa atitude do Galileu, sempre respeitosa e compreensiva com todos e com tudo.
Tiglat estendeu uma esteira de folhas de palmeira sobre a grama que cobria o asherat e, em silêncio, se pôs a arrumar uma série de provisões. Então lembrei que ainda não havíamos tomado o desjejum.
Meu irmão se aproximou eufórico da improvisada mesa e foi inquirindo o rapaz. Enquanto isso, Jesus abriu os olhos e, procurando-me com o olhar, me deu uma piscada...
- Torta de semente de papoula - anunciou Tiglat, apontando para uma massa fofa de cor dourada -. Acabada de assar por minha mãe... Mel, passas, maçãs, manteiga, ovos e casca de limão...
O doce delicioso foi rematado por uma cobertura de molho de amêndoas e ovo batido. Junto com manteiga, confeitos de romã e queijo.
Jesus deu um profundo suspiro. Prendeu os cabelos compridos e lisos cor de caramelo num rabo, como de costume, e, esfregando as mãos grandes e peludas, começou a cortar a torta em pedaços. Por que me dera uma piscadela? Ocorria-me apenas uma explicação. Ele sabia o que eu estava pensando...
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).]. BENÍTEZ
O Mestre, então, esclareceu as dúvidas do jovem fenício e, aproveitando, algumas das nossas. Sua hora estava próxima, disse, e devia voltar aos seus, preparando-se para o momento em que revelaria o Pai. Não falou de datas. E diante do assombro de Tiglat, o Mestre lhe deu de presente o burro, a tenda de peles e quase todas as provisões. Colocou alguns víveres em sua mochila de viagem e, depois de desejar a paz ao rapaz e aos seus, partiu do asherat com. suas típicas passadas rápidas. Eliseu e este que escreve, tão desconcertados quanto o fenício, também nos desfizemos da tenda e, quase sem nos despedir, saímos atrás dele, correndo.
Equivocamo-nos de novo. O Mestre tinha muito claro o que e como fazer. O acontecimento nas montanhas do Hermon foi uma exceção. Nós agora não devíamos fazer a insinuação mais ténue ou insignificante. Mesmo assim...
Eu disse que erramos nas apreciações porque, ao chegar ao cruzamento dos caminhos localizado em frente à estância, o Mestre, sempre na frente, tomou a direção de Paneas, abandonando a trilha que se estendia até Bet Jenn, a aldeia dos Tiglat. Aquela rota, igualmente intrincada e solitária, descia entre os bosques em direção sudoeste. Na referida encruzilhada, um poste de madeira fincado nos resíduos vulcânicos era o único sinal de vida no raio de vários quilómetros: "Paneas. Sete milhas". Isso, mais ou menos, dependendo do Destino, significava por volta de uma
hora e meia de caminhada. Olhei para o sol e deduzi que poderia ser oito da manhã. Aí terminavam os meus cálculos. Quem poderia ir além com aquele Homem?
Eliseu se uniu a este explorador e me interrogou sobre o novo caminho. Pouco pude lhe dizer. Eu suspeitava que desembocava na rota de Damasco, bem perto da citada cidade de Paneas ou Cesaréia de Filipe. E de repente, sem saber como começou, nos vimos enredados numa estúpida polémica. Meu irmão questionou se agimos corretamente dando de presente a tenda de peles ao jovem fenício. Eu argumentei que foi adequado. Agora caminhávamos mais leves e, além disso, de certo modo devíamos fazer isso mesmo. Os Tiglat foram generosos e hospitaleiros. Não houve forma de conciliar as opiniões. Meu irmão argumentou que
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o caminho até o yam era comprido e que essa tenda ainda nos seria bem útil. Este que escreve protestou e o acusou de ruim. Compreendo que me excedi. E o engenheiro respondeu, tachando-me de perdulário, "sem consciência alguma do valor do dinheiro". Levantamos as vozes e também os insultos. Um absurdo.
E assim caminhávamos quando, ao sair de uma curva, tropeçamos com um Jesus a quem quase havíamos perdido de vista e, certamente, esquecido momentaneamente. Ele se encontrava imóvel na metade do caminho e com a sacola de viagem depositada aos pés. Evidentemente nos esperava. Eliseu e eu emudecemos. O mais provável é que ouvira os gritos e os impropérios. Nós nos detivemos a dois ou três metros de distância, envergonhados. Seu rosto parecia grave. Sobre a fronte luzia agora aquele lenço branco, enrolado e amarrado por trás da cabeça, tão conhecido nas grandes caminhadas. O olhar sereno passou de um para o outro. Meu irmão acabou abaixando a cabeça e eu, como um tolo, dei um sorriso amarelo. Então ele se inclinou,
procurando algo dentro da sacola. Em seguida nos entregou algumas porções de keratia amarelenta, as bolachas feitas com as sementes doces de haruv (alfarrobeira, figueirado-egito), que, bem misturadas com ovos, leite e mel, lembravam o sabor do chocolate. Um alimento típico das montanhas da Gaulanítis, tão saboroso quanto energético.
- Por que vos empenhais em saborear o amargo quando podeis desfrutar do doce?
Foram suas únicas palavras. Imediatamente aquele sorriso conhecido e irresistível amanheceu de novo no rosto bronzeado, revelando os dentes brancos e impecáveis. Ele apenas nos abraçou com esse sorriso interminável e, dando meia volta, ergueu a sacola de viagem, reiniciando a caminhada. Nem Eliseu nem eu soubemos o que dizer. Não era necessário. Ele tinha toda a razão.
No tempo previsto vimos Paneas, mas o Mestre, sem hesitação, passou pelo lado de fora da populosa cidade. Deixamos para trás também as obras na estrada romana e, sem contratempos dignos de menção, entramos na estrada muito usada que corria quase paralela ao primeiro trecho
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do rio Jordão e na qual meu irmão e este que escreve vivemos momentos muito intensos. A cinza vulcânica, negra e crepitante, gemeu debaixo das sandálias, anunciando uma nova etapa naquela magnífica e inesquecível aventura... Caminhávamos até o yam pela rota que tínhamos batizado de "das catorze pontes". Isto era tudo o que sabíamos então.
O Galileu se distanciou novamente. Era sua maneira particular de nos dizer que desejava ficar sozinho. E Eliseu e eu nos mantivemos a meia centena
de metros, sempre por perto. Apesar do intenso trânsito de homens, caravanas e gado, num sentido e no outro, a notável estatura do Mestre (1,81 m), muito superior à média dos judeus daquele tempo, nos permitiu segui-lo confortavelmente. Eu já me referi a isto em outras passagens deste diário, mas julgo ser oportuno lembrar que Jesus de Nazaré era também um atraente exemplar humano, com uma constituição física invejável, mais própria de um atleta que de um artesão. Seus ombros eram largos e fortes, com uma musculatura elástica e harmoniosamente desenvolvida. Jamais percebi um grama de gordura. As pernas, especialmente duras e musculosas, se destacavam por sua força e agilidade. Sua capacidade torácica era tal que dificilmente conseguíamos igualá-lo nas caminhadas ou na natação, como tivemos a oportunidade de presenciar nos cumes do Hermon. No ano 25 de nossa era, naquele que nos encontrávamos então, o Mestre, com seus 31 anos recém-completos, se encontrava em plena forma física.
E foi essa excelente forma física que me causou dúvidas. Será que ele pretendia chegar ao mar de Tiberíades nessa segunda-feira? A julgar pelas referências tomadas na viagem de ida até o Hermon, nesses momentos, mais ou menos até as dez da manhã, podíamos estar a pouco mais de cinqüenta quilômetros do yam. Demais para um só dia, contando com o que já foi percorrido desde o amanhecer. E concluí, acertadamente, que Jesus tomaria a sensata decisão de pernoitar ao lado da agitada "artéria". Mas onde?
Decidi não me preocupar mais com o assunto. E os pensamentos voaram além...
Como disse, o Mestre não se havia pronunciado sobre seus pla
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nos. Ao menos, sobre os imediatos. Isso me inquietava. Tínhamos algumas pistas, proporcionadas por Zebedeu pai, a Senhora e os discípulos, mas só se tratava de conjecturas e lembranças, todas, obviamente, passíveis de dúvidas. O velho Zebedeu qualificou aqueles meses prévios ao período da pregação como "especialmente importantes", ratificando o que haviam exposto Maria, a mãe do Galileu, e os íntimos a respeito do batismo de Jesus no Jordão (mês de sebat ou janeiro do ano 26) e do célebre "milagre" (?) de Cana (fevereiro desse mesmo ano 26). Se essas opiniões estivessem certas, ainda deveriam transcorrer cerca de três meses para que o Mestre entrasse em cena, oficialmente. E afirmo, se estivessem certas, porque às dúvidas lógicas se juntavam os resultados do estudo do Evangelho de Lucas, o único que aponta uma data que poderia estar associada (?) aos inícios da vida pública do Filho do Homem1. O problema, muito difícil de solucionar, era que a data indicada pelo escritor sagrado (?), "décimoquinto ano do reinado de Tibério César", estava sujeita a diferentes interpretações por parte dos exegetas e historiadores. Para uns, esse ano 15 corresponderia ao ano 29 de nossa era, tendo como referência a morte de Augusto, o imperador que precedeu Tibério (Augusto faleceu no dia 19 de agosto de 767 ctb Urbe Condita, ou seja, no ano 14 de nossa era). Segundo esse cálculo, Jesus teria sido batizado no Jordão no ano 29. Isso significava mais de três anos de espera...
Para outros especialistas, o décimo-quinto ano do reinado de Tibério devia ser visto pelo cálculo sírio. Assim nos situaríamos dois anos antes (12 da nossa era). Nessas datas, Augusto ordenou que Tibério fosse nomeado "colega imperial", iniciando assim um período de governo conjunto. Aceitando essa hipótese, o Batista teria aparecido na região do Jordão no ano 26 ou 27 de nossa era. Quem tinha razão?
1 O capítulo III do evangelho de Lucas diz o seguinte: "No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos o governador da Judéia, Herodes o tetrarca da Galiléia, Filipe, seu irmão, o tetrarca de Ituréia e da Traconítide, Lisânias o tetrarca de Abilena, Anás e Caifás eram os sumos sacerdotes. Nesses tempos foi enviada no deserto a João, filho de Zacarias, a palavra de Deus. E ele percorria toda a região do rio Jordão..." (N. do M.)
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A julgar pelos erros e pelas manipulações dos evangelistas, meu coração se inclinou para a versão do Zebedeu. E não demoraríamos muito para comprovar isso...
Com o sol no zénite (hora sexta), Jesus deixou que o alcançássemos. Descemos a pouco mais de cem metros acima do nível do mar, e a temperatura no fértil vale do Hule continuava aumentando. Agora, ao meio-dia, devia estar oscilando entre 20 e 25 graus Celsius.
Deixamos para trás a encruzilhada da pequena aldeia de Dera, e depois de comprar alguns mantimentos ricos em vitaminas E e C, especialmente recomendadas para combater o nosso mal, procuramos uma sombra perto do caminho, numa das prósperas plantações de zayit, das centenárias oliveiras da alta Galiléia. Era o momento de repor as forças. Eliseu, faminto, traçou os ovos crus, o trigo tostado, as cenouras, as tâmaras e as nozes. Jesus preferiu uma ração de lombo seco de cervo. Eu compartilhei da carne, e de sobremesa, figos secos.
Achei que ele estava esquisito. Como eu poderia descrever? O Mestre parecia distante. Conversava conosco, sim, mas o seu olhar acabava se perdendo nas caravanas e carreatas de burros que iam e vinham sem cessar pela estrada do yam. Numa ocasião, meu irmão e eu trocamos um olhar de cumplicidade.
Depois, o confirmaríamos. Alguma coisa estava acontecendo. Aquele não era o expressivo, alegre e comunicativo Jesus do monte Hermon. Foi somente uma suspeita, talvez uma intuição, que eu expresso: era como se o súbito contato com as pessoas o tivesse transformado, quase volatilizado. Ele parecia estar temendo alguma coisa. Parecia como se o Deus que agora o acompanhava lhe tivesse mostrado, de repente, a imensa distância existente entre ele e suas criaturas. Mas, como digo, foi só uma réstia de luz que atravessou a minha mente. Quem sabe?
E sua atenção, no final do almoço, ficou focalizada, quase exclusivamente, nos rostos tensos dos burriqueiros, nos seus gritos, nos passos apressados dos carregadores e na poeira negra levantada pelas caravanas, agora arrastada para leste pelo pontual maarabit, o vento procedente do Mediterrâneo. E assim permaneceu bastante tempo, com uma certa tris
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teza pousada em seus olhos... Nós nos sentimos impotentes. Não sabíamos o que exatamente estava acontecendo com Ele, e, além disso, pouco ou nada podíamos fazer. Como já disse, éramos apenas observadores.
- Prossigamos - anunciou finalmente -. Deixemos que o Pai faça o seu trabalho...
Dessa vez fomos nós que, intencionalmente, ficamos ressabiados. Eliseu, de fato, percebeu e ficou me perguntando. O que estava acontecendo? A que se devia aquela mudança singular? Deixamos de ser seus amigos? Será que fizemos alguma coisa errada? Eu lhe mostrei que, provavelmente, como acontecera no dia 9 de setembro no Hermon, nós nada tínhamos a ver com essa atitude do Mestre. Ele tinha suas razões.
Talvez chegássemos a descobrir em algum momento. E assim foi.
Seriam três da tarde (hora nona), quando, inesperadamente, Jesus se deteve. O vento intensificou-se, o que dificultou a caminhada. Espessas massas de poeira se levantavam sobre o caminho, obrigando-nos a adivinhar a aproximação das montarias e, sobretudo, forçando-nos a náo perder de vista a túnica branca e ondulante do Galileu. O mais provável era que, se náo tivesse parado, estes exploradores tolos náo teriam reparado no novo rumo tomado pelo Mestre. Jesus fez um gesto com a mão esquerda e, apontando um desvio, desapareceu à direita da estrada principal. Pouco faltou, como digo, para perdê-lo...
Quando entramos na trilha, a paisagem mudou. Os jardins e as plantações de oliveiras e macieiras desapareceram e nos vimos rodeados por uma conhecida e enredada "mata" de canas, de até cinco metros de altura, adelfas venenosas e espadanas compactas, com seus talos esbeltos procurando a luz. E no alto, sobre os penachos agitados de plumas e as folhas finas de suf, que serviram para trançar a cesta que salvou Moisés, milhares de perigosos mosquitos zunindo, sacudidos pelo maarabit.
Logo reconheci a trilha estreita. Era o caminho que conduzia ao kan, o refúgio sinistro no qual entramos quando caminhávamos até o maciço montanhoso do Hermon. A lembrança dos doentes que chegamos a
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J.J. BENÍTEZ
ver em duas das choças me fez estremecer. O que nos reservava o Destino nesta nova visita inesperada2?
Segundo meus cálculos, nessa ocasião nos encontrávamos a cerca de seis quilómetros da pousada situada na encruzilhada de Qazrin e a vinte da costa norte do lago
ou mar de Tiberíades. Hesitei. Será que era aquele o lugar onde o Mestre se dispunha a passar a noite? Nas choças, junto com os aleijados e os dementes? Rechacei a idéia e supus que só se tratava de uma visita. O sol descia para o oeste, mas ainda faltavam três horas para o ocaso. O lógico seria continuarmos andando, e pernoitar talvez no albergue de Sitio, o homossexual.
Ao divisar as choças, nos detivemos. Eram sete, que se erguiam em círculo numa esplanada de cerca de cem metros de diâmetro, sobre uma cinza vulcânica negra, rodeadas por um impenetrável bosque de arundos. Atrás do kan, não muito distante, adivinhava-se o ruído do rio Jordão, que se afastava do lago Hule. Centenas de aves aquáticas se recortavam no céu azul, preparando-se com seu chilreies para a promissora pesca ao pôr-dosol. Algumas garças e cegonhas brancas, que pareciam aborrecidas, tinham optado por esperar sobre os telhados de folhas de palmeira das cabanas. E dali, a três metros do solo, observavam ou espantavam com displicência as nuvens de insetos que dominavam a clareira.
O Mestre avançou com segurança até o centro da esplanada. Estava claro que conhecia o lugar. Eliseu e este que escreve esperamos. Na metade da referida esplanada, alguém se empenhava em acender uma fogueira. O vento forte, porém, tornava inúteis as tentativas daqueles
Os kanes, na época de Jesus, eram algo semelhante ao que hoje entendemos por albergues de passagem. A maioria tinha um caráter público, e eram subvencionados por governantes, casta dos saduceus, e doações particulares. Estavam destinados, fundamentalmente, aos estrangeiros, embora, na realidade, fossem ocupados por judeus e gentios, segundo a necessidade de cada um. Alguns, como aquele que ficava ao sul do lago Hule, eram muito mais que uma "estalagem", como menciona Jeremias. Nesses refúgios, sempre distantes das cidades e aldeias, abrigavam-se os doentes que não tinham meios económicos ou que eram rechaçados pela sociedade
por causa de seu comportamento ou aspecto físico. Por essas "pousadas" serem gratuitas, muitos dos kanes acabavam se transformando em asilo de velhacos e indesejáveis. (N. do M.)
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dois personagens. À nossa esquerda, junto da parede de canas de uma das cabanas, transitava uma dezena de homens e mulheres. Outros, sentados ou deitados sobre a cinza, dormitavam ou contemplavam o ir e vir dos primeiros. Alguns dos homens, com as túnicas arregaçadas, limpavam e cortavam peixes, jogando as vísceras em grandes alguidares de barro.
O meu coração acelerou. Olhei para o meu irmão e este, pálido, não respondeu. Seus olhos estavam fixos no mais jovem dos indivíduos que lutavam para fazer pegar o fogo. Era Denário, o garoto surdo-mudo que nos roubara nas proximidades do yam E lembrei da informação que Sitio nos dera. O jovenzinho, de oito ou nove anos de idade, cujo verdadeiro nome era "Examinado" (designação que se dava naquele tempo aos meninos abandonados), fora recolhido no kan por Assi, o responsável e administrador do albergue. Por causa do incidente no que chamávamos "clareira do ruivo", justamente em memória de Denário, Eliseu desenvolveu um carinho especial por ele*. Denário, no entanto, ao alcançar a pousada de Qazrin, desapareceu de nossa vista.
O garoto, rapidamente, levantou a cabeça e percebeu a figura alta do Galileu que se aproximava. Colocou-se de pé e, alarmado, foi tocar o ombro daquele que continuava ajoelhado. De início, coberto com um turbante branco e generoso, não o reconheci. Além do mais, era cinco anos mais novo...
O homem se levantou e, depois de alguns segundos de observação atenta, sorriu ao Mestre. Deu a volta nas pedras que formavam o fogareiro e foi ao
seu encontro. Desejou-lhe a paz e beijou-o na face, e Jesus correspondeu com a mesma saudação. Então eu soube que se tratava de Assi, o essênio. Era o único no kan que se vestia de branco imaculado, com uma túnica que chegava até os joelhos. Brilhava no peito a insígnia de latão (a haruta) que o creditava como médico ou rofé: uma folha de palmeira. Ele, no entanto, recusava esse título, afirmando que somente Yavé era o verdadeiro rofé. Preferia se apresentar como um modesto "auxiliador". Eu o conheci na casa dos Zebedeu, na aldeia de Saidan, e em circunstâncias "delicadas". Mas
*acontecimento narrado em Op. Cavalo de Tróia 6 (N. do E.)
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isso foi no ano 30. Agora, cinco anos antes, não podia me reconhecer.
Aconteceu quase simultaneamente. Enquanto o Mestre e o "auxiliador" caminhavam contentes até o centro da esplanada, Denário emitiu aqueles sons guturais e, pulando por cima do fogareiro, correu como um gamo ao nosso encontro e abraçou meu irmão pela cintura. Eliseu, surpreendido, acariciou o corpo desnutrido, quase esquelético, do garoto e beijou seus cabelos. E o ruivo, trémulo, permaneceu assim durante mais de um minuto.
Assi e o Filho do Homem foram se posicionar ao redor das pedras, para tentar de novo acender o fogo. Pareciam velhos conhecidos. Mais tarde teríamos informação precisa sobre a amizade entre Jesus e o egípcio, designado pela comunidade essênia de Qumran na distante Gaulanítis para atuar como médico entre os mais desfavorecidos. Assi assumiu o kan e conheceu o Mestre em uma de suas visitas costumeiras a Nahum (Cafarnaum). Ali nasceu uma amizade sincera. Jesus visitava o kan com freqüência e inclusive contribuía economicamente. Sempre era bem recebido. Meses
mais tarde, em plena vida pública, como acredito já ter mencionado, aquele essênio doce e compassivo e, especialmente, os doentes e dementes que moravam no kan, desempenhariam um papel importantíssimo num dos milagres do rabi da Galiléia. Mas demos um passo de cada vez...
Jesus sussurrou alguma coisa ao essênio, e este, erguendo os olhos negros e profundos para estes exploradores imóveis, imediatamente incentivou para que nos aproximássemos. Eliseu e o menino foram na frente juntar-se ao chefe do kan e ao Galileu. Eu respondi também às saudações de Assi e fui me sentar a uma distância prudente dos quatro. O Mestre parecia mais animado. No entanto, o instinto me preveniu. Alguma coisa ou alguém espreitava...
Foi necessário esperar. O maarabit não cederia até o pôr-do-sol. Com aquele vento obstinado não era fácil preparar o fogo. Denário, aconchegado no colo de Eliseu, acabou adormecendo. Jesus e Assi continuaram conversando, e este que escreve, lembrando a experiência passada no interior das cabanas, se retirou discreta e silenciosamente, caminhando até o grupo que procedia à limpeza do peixe. Era quase certo que o Mestre desejava passar a noite naquele lugar, e movido pela intuição, eu quis explorá-lo na medida do possível.
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De início concentrei a atenção em três grandes cestos repletos de peixes. Ainda saltitavam, afugentando as moscas e as nuvens de mosquitos. Os cortadores me observavam com curiosidade. Várias mulheres selecionavam e faziam uma primeira lavagem. Acho que reconheci carpas, tilápias, barbos e siluros, todos eles capturados nas águas quentes do Hule. Embora a maior parte dos "inquilinos" do kan não fosse judia, Assi, como essênio, respeitava estritamente o que a lei mosaica
estabelecia sobre animais puros e impuros3. Nesse sentido, os siluros grandes e "cilíndricos",
3 No Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), especialmente no Levítico e no Deuteronômio, Yavé fala ao povo judeu e determina quais animais podem ser comidos (puros) e quais devem ser recusados (impuros): "...Yavé falou a Moisés e Aaráo, dizendo: Falai aos filhos de Israel e dizei-lhes: Eis os animais que comereis dentre as bestas da terra. Comereis todo animal que tem o casco fendido, partido em duas unhas e que rumina. Dentre os que ruminam ou têm o casco fendido, não comereis as seguintes espécies: o camelo, pois embora seja ruminante, não tem o casco fendido; ele deve ser considerado impuro. Considerai impuro o coelho, pois, embora seja ruminante, não tem o casco fendido. Considerai impuro o porco, pois, apesar de ter o casco fendido, partido em duas unhas, náo rumina. Não comereis a carne desses animais, nem toqueis o cadáver deles, porque são impuros. De todos os animais aquáticos, podereis comer os que têm barbatanas e escamas, e vivem na água dos mares e rios. Mas todo aquele que náo tem barbatanas e escamas e vive nos mares ou rios, todos os animais pequenos que povoam as águas, e todos os seres vivos que nelas se encontram, considerareis imundos. Eles são imundos; por isso, náo comereis sua carne e considereis imundo o cadáver deles. Todo ser aquático que náo tem barbatanas e escamas será imundo para vós. Das aves, considerai imundas e náo comeis as seguintes, porque são imundas: o abutre, o gipaeto, o sofrango, o milhafre negro, as diferentes espécies de milhafre vermelho, todas as espécies de corvo, o avestruz, a coruja, a gaivota e as diferentes espécies de gavião, o mocho, o alcatraz, o íbis, o gráo-duque, o pelicano, o abutre branco, a cegonha e as diferentes espécies de garça, a poupa e o morcego. Todos os animais alados, que caminham sobre quatro pés, serão imundos para vós. De todos os insetos alados, que caminham sobre quatro pés, só podeis comer aqueles que, para saltar no chão, têm as
patas traseiras mais compridas que as dianteiras. Podeis comer os seguintes: as diferentes espécies de locustídeos, gafanhotos, acridídeos e grilos. Os outros insetos de quatro pés são imundos. Com esses animais vós vos tornareis impuros; quem tocar o cadáver deles ficará impuro até à tarde. Considerareis impuros os animais que têm casco náo dividido e que não ruminam: quem os tocar ficará impuro também. Todos os
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sem escama, de pele mucosa e praticamente sem barbatanas, eram separados e esquecidos num enorme cesto. Assim ordenava o esquisito Yavé... As carpas, por outro lado, azuis, verdes e rosadas, eram abertas pelo ventre e, uma vez extraídas as entranhas, depositadas em barris de pedra. Ali, outras mulheres as temperavam com especiarias e sal grosso. Alguns dos exemplares, tipo "espelhinhos", podiam pesar até oito quilos.
Ao inspecionar as tilápias e os barbos, já preparados para serem assados ou fritos, meus olhos se detiveram uns instantes nos homens e nas mulheres, supostos "viajantes", de passagem pelo kan, que permaneciam sentados ou deitados ao pé da cabana. Estranhei porque quase náo se moviam. Não falavam. Os olhares, vidrados, como que hipnotizados, seguiam freneticamente os movimentos dos machados dos cortadores de peixes. Pressenti alguma coisa, mas, rechaçando a ideia, baixei os olhos, simulando interesse por um dos exemplares capturados por Assi e sua gente no Hule. Era um bíníf, assim chamado pelos cortadores, um barbo de quase um metro de comprimento e mais de cinco quilos de peso, parecido com as anguilas e que, dias depois, na volta ao "berço", Papai Noel identificou como Ciarias Macracantus, uma das espécies autóctonas de Galiléia, com oito barbas, em vez das duas ou quatro que o resto dos
barbos apresentam no lábio superior.
animais de quatro patas, que caminham sobre a planta dos pés, serão considerados impuros; quem tocar o cadáver deles ficará impuro até à tarde, e quem transportar o cadáver deles deverá lavar suas roupas, e ficará impuro até à tarde. Dos animais que rastejam pela terra, considerai impuros os seguintes: a toupeira, o rato e as diferentes espécies de lagarto, a lagartixa, o crocodilo da terra, o lagarto, o lagarto da areia e o camaleão. De todos os répteis, são esses que considerareis impuros; quem os tocar depois de mortos ficará impuro até à tarde. E ficará impuro todo objeto de madeira, pano, couro ou estopa, e qualquer outro utensílio sobre o qual um bicho desse cair, depois de morto. Deverá ser lavado com água e ficará impuro até à tarde; depois ficará novamente puro. Toda vasilha de barro, na qual um desses bichos cair, deverá ser quebrada, e o seu conteúdo ficará impuro; a comida preparada com água dessa vasilha ficará impura, e também a bebida ficará impura..." (N. do M.) 4A palavra binit, em aramaico (plural, bintot), procedia do substantivo binita (cabelo), por causa das barbinhas que pendem nos barbos; foram descritos pelos assírios mil anos atrás (bu-nii). (N. do M.)
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O Ciarias, embora pertencente à mesma ordem e género dos barbus, se diferenciava também do resto das famílias pelo fato insólito de lançar uns "gritos" que eriçavam os cabelos nas noites de outono.
Suponho que a minha condição de médico foi decisiva. Eu tinha prometido não me apresentar como tal naquele terceiro "salto", evitando assim os problemas nos quais me vi envolvido nas aventuras precedentes. E eu estava disposto a manter
essa decisão, mas, em vista do que tinha na minha frente, não pude ou não soube me distanciar... Não me equivoquei. A intuição jamais trai. A verdade é que ninguém me proibiu que os examinasse. E, lentamente, fui formando uma idéia. Aquele kan era muito especial...
Ali, junto com os que preparavam o jantar, vigiada de certo modo por cozinheiras e cortadores, aguardava uma série de doentes aos quais tive acesso na minha primeira visita ao refúgio. Assi, pouco depois, confirmaria a suspeita: tratava-se dos "menos agressivos e problemáticos"; os únicos que não exigiam uma vigilância estreita e contínua.
Meu Deus do céu! O que era aquilo? Um dos homens, feito um novelo, com as costas apoiadas nas canas, olhava sem ver. Moscas e insetos o devoravam, mas, imóvel como pedra, nem piscava. Passei a mão na frente dos olhos azuis e constatei o que imaginara: era cego. Os dedos, especialmente das mãos, eram extraordinariamente grandes (os polegares chegavam a dez ou doze centímetros de comprimento). Examinei o resto dos tecidos das extremidades e deduzi que se encontrava diante de uma possível síndrome que alterava o crescimento do esqueleto, a doença da qual sofreu Abraham Lincoln5.
Ao lado dele aparecia um menino totalmente nu, de cerca de nove ou dez anos de idade, de joelhos e com as mãos atadas nas costas. O rosto
5 A doença hoje se chama "Marfan", em memória ao pediatra francês que a descreveu em 1896. Provavelmente estávamos diante de um grande transtorno hereditário que provocava alterações no tecido conjuntivo, anomalias cardiovasculares e deslocamento parcial do cristalino. Os investigadores suspeitam que a síndrome é originada por alguma mutação no gene FBN1 (fibrilina). A alteração na proteína, localizada no cromossomo 15, pode ser a responsável pelo estiramento dos tecidos. A cura, por enquanto, é altamente improvável. (N. do M.)
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emaciado também era torturado por nuvens de insetos. Uma mordaça, mais suja do que o rosto do infeliz, mantinha a boca aberta. Espantei as moscas e constatei que os lábios estavam destroçados. Quando me aproximei, ele não se moveu, limitando-se a gemer. Inspecionei os dedos das mãos e dos pés. Não restava dúvida. Faltavam falanges completas. Talvez se tratasse de um caso de autocanibalismo, conhecido em medicina como síndrome de "Nyhan", outra doença de origem cromossomática e, como a anterior, de solução muito difícil6. O garoto, vítima de um retardamento mental e motor, terminava devorando seus próprios lábios e dedos. Daí a necessidade de amarrá-lo e amordaçá-lo de forma permanente.
Antes de prosseguir o exame daquelas pobres criaturas, lancei uma olhada ao grupo que permanecia no centro da esplanada. O Mestre e o resto, embora aparentemente absortos na conversa, seguiam meus movimentos com curiosidade. Foi isso, pelo menos, que deduzi de seus olhares furtivos. Quanto às mulheres e aos cortadores, nenhum deles se preocupou demasiado com a minha presença.
O terceiro e o quarto doentes me deixaram igualmente desarmado e com o coração apertado...
Sentado sobre a cinza vulcânica negra, um "menino-ancião" segurava nos braços um jovem (?) paralítico. Era a primeira vez que eu me deparava nas terras de Israel com um caso de "progéria" ou um garoto com aspecto de um velho.
Fiquei de cócoras e ousei esboçar um sorriso largo. O menino possuía as principais características dessa doença: cabeça enorme, desproporcional, calva, com grossas veias sobressalentes, ausência de sobrancelhas e pestanas, olhos saltados e
pequenos, nariz em forma de bico de papagaio,
6 A chamada síndrome de "Lesch-Nyhan", descoberta nos Estados Unidos em 1964 pelos doutores Lesch e Nyhan, aparece unicamente nos homens (por estar associada ao cromossomo X). As principais conseqüências são de ordem neurológica (atraso psicomotor e paralisia cerebral), movimentos involuntários das articulações (até alcançar a fase de automutilação) e, certamente, o aumento de ácido úrico que acaba provocando a morte. (N. do M.)
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queixo retraído, quase inexistente, peito estreito, articulações grandes e rígidas, e numerosas manchas marrons nos braços e nas mãos. Ele respondeu com um sorriso, mostrando uns poucos dentes, tão irregulares quanto mal distribuídos. A pele era fina, muito frágil, e os braços e as pernas, quase esqueléticos. Não creio que tinha mais do que um metro de altura.
- Qual é a sua idade?
Ele abriu de novo a boca enorme e respondeu feliz: -Vinte...
Aquilo também era singular. Segundo minha informação, poucos síndromes de envelhecimento precoce7 atingem tanta idade.
- ... Este é o meu amigo Tamim. Eu sou Tamid.
E voltou a sorrir ante o jogo de palavras. Tamid, entre outras coisas, significava "viver cada dia". Quanto ao seu amigo, o paralítico, Tamim era sinónimo de "íntegro ou irrepreensível". Compreendi e sorri para mim mesmo. Aquele que os "batizara" com esses apelidos era muito consciente do significado duplo: "viver cada dia" era a única coisa que o "menino-velho" podia aspirar. A progéria traz consigo
geralmente anomalias cardíacas e respiratórias, bem como lesões cerebrais ou do sistema nervoso, que desembocam sempre numa morte precoce. Quanto aTamim, o qualificativo era "irrepreensível"..., e de pouco tempo. O jovem, outrora forte e musculoso, só movia os olhos. Nem conseguia falar: como não ser íntegro nessas circunstâncias? Tamim fora coletor de esponjas nas águas de Chipre e da Grécia. Um dia começou a se sentir mal. Os músculos das mãos foram falhando, a doença foi se estendendo pelos braços. Ele foi transferido para as costas da Fenícia e, dali, ao kan do Hule. Fazia semanas que deixara de comer. Só ingeria líquidos8. Tamid, o "menino-velho", cuidava dele dia e noite.
A progéria, também conhecida hoje como síndrome de HutchinsonGilford, é uma patologia pouco freqüente na qual as crianças apresentam aspecto de velhos, assim como alguns dos sinais e degenerações próprios da velhice. As possíveis causas da doença devem ser procuradas nas alterações genéticas. (N. do M.)
8A julgar pelas indicações recebidas, era possível que o jovem coletor de esponjas sofresse de uma doença de origem obscura, neuronal, que recebe o nome de "esclerose lateral amiotrófica", um mal irreversível, por enquanto. A esperança de vida é curta. (N. do M.)
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O garoto paralítico, que parecia conservar a inteligência intacta, me observou com seus olhos negros profundos e vívidos. Eu não sabia o que fazer nem o que dizer. E a tristeza, uma imensa tristeza, caiu sobre este impotente explorador. Eu não sabia nesses momentos, mas, sem querer, estava passando em revista os protagonistas de um extraordinário acontecimento futuro no qual, naturalmente, Jesus de Nazaré ficou envolvido. Mas esta história chegará em seu devido tempo.
Um pouco mais adiante, deitados em padiolas de tela e fibras vegetais, impassíveis ao vento e às moscas torturantes, ficavam afastados os mais velhos do kan. A maioria, pelo que pude avaliar, se encontrava nas fases mais avançadas de Parkinson9 e Alzheimer. Nos primeiros, o tremor já não era importante, pois as funções motoras pareciam muito deterioradas, tornando inviável caminhar. Na realidade, nenhum deles era capaz de ficar em pé. Eles permaneciam em decúbito dorsal, com as cabeças inclinadas sobre o tórax, as bocas abertas e negras por causa das moscas, e babando permanentemente. Alguns falavam em grande velocidade, com um fio de voz monótono e ininteligível. Certamente, ninguém respondia.
Com os afetados pelo mal de Alzheimer acontecia algo parecido. A última fase os reduzira a simples "vegetais" incómodos, incapazes de se cuidarem por si mesmos. E ali permaneciam durante horas, mudos e rígidos, aguardando que uma pneumonia, uma infecção urinária ou as terríveis úlceras provocadas pela postura permanente em decúbito encurtassem sua existência desgraçada. Os cuidadores (?), agora atarefados com a preparação dos peixes, não se distinguiam precisamente pelo carinho e a dedicação a esses infelizes.
O último dos doentes que consegui distinguir naqueles momentos foi uma mulher. Devia ter ao redor de quarenta anos. Encontrava-se sentada entre os "Parkinson". Os esgares e os movimentos bruscos de mãos e
Parkinson é outra doença de origem cerebral (provavelmente se trata de uma alteração dos neurônios chamados dopaminérgicos pigmentados da substância negra). A disfunção pode ser causada por transtornos do metabolismo ou por processos patológicos que alteram a neurotransmissão dopaminérgica dos gânglios basais, entre outros. (N. do M.)
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pés me indicaram imediatamente o mal do qual padecia: muito possivelmente dança-de-sáo-vito, de Huntington, outro transtorno degenerativo e hereditário que se caracteriza pelos movimentos rápidos e complexos, especialmente nas extremidades10.
Quando cheguei até ela, seus esgares diminuíram. E a mulher, assustada, começou a mostrar a língua em movimentos rápidos, sem parar, elevando as sobrancelhas e contraindo os lábios e as pálpebras. Retrocedi, para evitar uma piora da demente. Mas a sorte não estava do meu lado. Ao ir para trás, tropecei com outro inquilino do kan, e caí em cima dele. Levantei-me rapidamente e, diante do olhar atónito dos cortadores, limpadoras e deste que escreve, a mulher que tinha se ajoelhado se pôs de pé, gritando como uma possuída.
Foi tudo vertiginoso. Agarrou os meus testículos e, berrando, exigiu que "lhe devolvesse o que era dela". Ao me sacudir, o manto que a cobria escorregou, descobrindo uns olhos proeminentes, do tamanho de ovos, e com as córneas ensangüentadas e ulceradas. Fora de si, depois de soltar os genitais, agarrou o ventre e, puxando com violência o cinto, reclamou "seu estômago e os intestinos".
- Me roubastes, ladroes!... Onde está o meu sangue? Onde pusestes o meu estômago e minhas entranhas?
Os olhos, com as pupilas dilatadas, incapazes de pestanejar, com uma exoftalmia (projeção anormal do globo) progressiva e aguda, me assustaram. Quando reparei no pescoço e vi o bócio tive certeza. Aquela doente padecia de um hipertireoidismo (talvez a chamada doença de Graves) ao que se devia acrescentar um problema mental grave que os psiquiatras denominam síndrome de Cotard, ou "delírio de negação". O sujeito, em conseqüência de uma esquizofrenia ou de uma
lesão cerebral, considera que lhe roubaram não só seus pertences materiais, como também seus órgãos. E acredita que os ladroes estão por todo lado.
10 Corea, do grego khoreia (dança). Chama-se assim porque o doente interrompe a caminhada em consequência dos movimentos involuntários, lembrando, de certo modo, uma espécie de bailado ou dança. O mal, de caráter hereditário autossômico dominante, conduz irremediavelmente a transtornos de conduta e à demência. (N. do M.)
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A mulher, então, puxou a túnica que cobria o meu peito e, passando dos gritos aos gemidos e ao choro, perguntou sobre o seu coração:
- Onde o puseste?...
Não houve tempo para mais nada. Dois cortadores de peixe e ajudantes do "auxiliar" pularam sobre a pobre doente e a imobilizaram. Eu recuperei a "vara de Moisés" e, envergonhado, sem saber o que fazer, me afastei do grupo.
Assi, de pé, alertado pelos gritos da demente, observava atentamente. Eliseu também e o garoto surdo-mudo se levantaram na expectativa. Só Jesus continuava sentado. Sua cabeça estava abaixada, como se o incidente não tivesse existido.
Os cortadores fizeram um sinal e o essênio, compreendendo que tudo estava sob controle, voltou a se ajoelhar diante das pedras que compunham o fogareiro, aguardando a minha chegada.
Minha mente, confusa diante do que acabara de ver e o que lembrava da primeira visita ao kan, procurou se estabilizar. Por que fomos parar neste inferno? O Destino sabia... Eu tinha dado não mais de três ou quatro passos até o centro da
esplanada, quando, inesperadamente, o vento cessou. O maarabit, como acho que já disse, procedia do mar Mediterrâneo e costumava soprar entre o nisán (marçoabril) e o tisri (setembro-outubro), sempre entre o meio-dia e o pôr-do-sol. Instintivamente, me virei e verifiquei que faltava mais de uma hora para o ocaso.
Foram segundos. Tudo aconteceu muito rápido... Ao contemplar a posição do sol, uma súbita revoada das aves que descansavam no alto das cabanas me preveniu. Alguma coisa as assustara. E várias delas, estendendo e batendo as asas brancas, se afastaram até o horizonte das canas.
Imediatamente, em meio ao silêncio provocado pela queda do vento, ouvimos um uivo dilacerante. De início fiquei desconcertado sem saber se era humano. Vinha de algum ponto próximo ao canavial, a leste do refúgio. E as garças e as cegonhas que ainda permaneciam sobre as cabanas fugiram em direção ao sol.
O uivo, agora mais próximo, se repetiu pela segunda vez, acabando por colocar todo o kan em estado de alerta. Assi, de novo em pé, dirigiu o
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olhar a uma das cabanas próxima do caminho de acesso ao albergue. Fez um gesto a Denário e este, rápido como uma gazela, correu até o ponto do qual aparentemente vinha o triste e prolongado lamento.
Homens e mulheres se mobilizaram e, antes que o meu irmão e eu conseguíssemos entender, se dirigiram até a cabana em questão, na entrada do kan. Eliseu não tardou a se juntar ao grupo agitado, tentando averiguar o que estava acontecendo.
Os uivos se intensificaram e eu deduzi que o homem ou o animal se encontrava muito perto dos cuidadores e das cozinheiras que gritavam. Era esquisito. Se fosse uma
fera, por que não fugiam? Todos correram em bando ao encontro do responsável dos uivos...
Nesses momentos de agitação, não sei muito bem porque, procurei com os olhos o Mestre. Ele continuava sentado no mesmo lugar, com os braços apoiados nos joelhos. Olhava fixamente os galhos depositados no fogareiro que tentaram inutilmente acender. Seu rosto, grave e ligeiramente pálido, me colocou em alerta mais do que os uivos e o tumulto. O que estava acontecendo?
Os uivos então cessaram, como também a gritaria. O Mestre, então, levantou o rosto ao céu. Deu um profundo suspiro e permaneceu durante alguns segundos com os olhos fechados. Minha mente continuava em branco, sem entender nada.
E da mesma forma súbita com a qual cessaram, os uivos voltaram, desta vez mais lúgubres e prolongados...
O grupo, como se fosse uma só pessoa, deu um passo para trás, ao mesmo tempo que erguia os punhos ameaçadores. Aquilo, o que fosse, continuava avançando. Algumas mulheres aterrorizadas voltaram-se e fugiram dando gritos agudos.
Quando percebi, o Galileu se levantara e caminhava na direção do grupo. Não hesitei e fui atrás dele. Jesus, com passadas decididas, rodeou os cuidadores e foi se colocar na frente dos indivíduos nervosos, ao lado do essênio e do garoto surdo-mudo. Como pude esquecer? Ali estava o responsável pelos uivos. Eliseu e eu tivemos um encontro com ele na primeira visita ao kan. Era o jovem acorrentado, de cerca de 20 anos de
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idade, negro como carvão e "tatuado" da cabeça aos pés com pequenos círculos (na realidade, cicatrizes ou incisões na pele, provocadas por algum
buril ou arma branca). Estava nu, suado, com o rosto desfigurado pela raiva e o tornozelo esquerdo ferido e sangrando pelo contínuo esfregar do grilhão que o prendia. Uma corrente de elos grossos, de cerca de três metros de comprimento, o prendia a uma base de uma das cabanas. O negro, alto e musculoso como o Galileu, tinha chegado ao limite permitido pela corrente, a pouco mais de dois metros de Assi e de Denário. Arquejava violentamente, ameaçando os moradores do refúgio com um pelicano morto, que segurava acima da cabeça. Várias vezes o lançou até o auxiliar, acompanhando os ataques com outros tantos uivos.
O desgraçado, como já disse, padecia de uma síndrome ligada à loucura que provocava ataques furiosos de ira. Nesses momentos se transformava numa besta selvagem, sem controle algum, capaz de esmagar quem estivesse ao seu alcance. A possível doença, chamada amok ("lançar-se furiosamente à batalha", segundo interpretação malaia), era relativamente comum entre os orientais e determinadas etnias da África central.
A cada acometida, Assi e o grupo retrocediam instintivamente. O essênio, nervoso, tentava acalmar o louco, aconselhando que largasse no chão a pesada ave com o bico azul grande e afilado. As palavras, os gestos e a proximidade do chefe do kan tiveram o efeito contrário ao desejado. E o negro, em plena crise, cego de raiva, lançou outro ataque. Desta vez, bruscamente estancada pelo grilhão, aquela massa de ódio e força bruta perdeu o equilíbrio e bateu contra a cinza vulcânica. O pelicano rodou pelo chão e Assi correu para pegá-lo.
Jesus, então, se dirigiu a seu amigo o auxiliar e pediu que libertasse o negro. O rosto do Mestre continuava sério. Assi, como era de se esperar, negou veementemente, argumentando com razão que o estado de "Aru" era perigoso para todos. Aru? Aquele, de fato era o nome, ou melhor, o sobrenome do jovem negro amok. Em aramaico significa
"olha" ou "eis aqui". Mas não entendi a razão do apelido.
E Assi prosseguiu com seus argumentos, procurando convencer Jesus de que o pedido era inadequado. Segundo o essênio, Aru estava pos
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suído por um espírito imundo e libertá-lo seria provocar o tal demónio. Jesus não respondeu. Apoiou o joelho esquerdo na cinza e, lentamente, com ambas as mãos, acariciou o crânio úmido e "tatuado" do demente. Ninguém respirou. A reaçào do amok podia ser fulminante e perigosa. O grupo deu outro passo para trás e, imaginando um feroz embate, se desfez, perdendo-se pela esplanada e as choças próximas.
Assi lançou um grito, suplicando ao Mestre que se afastasse de Aru. Jesus continuou mudo. Os grandes dedos do Filho do Homem pousaram mais uma vez sobre o couro cabeludo pelado do agitado negro. A respiração de Aru era convulsa. Continuava com a boca para baixo, não sei se inconsciente. Procurei Eliseu com o olhar. Ele continuava atrás do garoto, tão desconcertado quanto todos. Nesses momentos não sabíamos, não podíamos saber, quais eram os pensamentos e as intenções daquele Homem. Foi depois, muito depois, que entendemos o que realmente aconteceu naquele entardecer, no kan do lago Hule...
O Mestre olhou para o excitado auxiliar, e aqueles olhos firmes e doces ao mesmo tempo o transpassaram. Assi emudeceu. Sem trocar uma única palavra, o essênio, compreendendo que a ordem não admitia discussão nem demora, voltou-se para Denário e por sinais lhe ordenou que fosse buscar uma pessoa. O surdo-mudo, admirado com a evidente coragem do Galileu, obedeceu imediatamente, desaparecendo atrás das cabanas.
Eu não conseguia sair do meu assombro. Por que libertar o negro perigoso? O que é que Jesus pretendia? Eu estava muito próximo, a cerca de um metro e meio, e tentei achar uma explicação no seu rosto ou em seus gestos. Aquilo que consegui descobrir não me serviu naqueles instantes críticos. Como já disse, eu era muito lerdo para compreender...
O Mestre, em silêncio, dobrou também a perna direita, ajoelhandose diante do negro. Virou o corpo de Aru e o ergueu suavemente, deixando descansar as costas dele sobre suas pernas. Imobilizou a cabeça do amok sobre o ventre, pegou a faixa de tecido que amarrava seus cabelos e a desatou.
Aru, com os olhos fechados e a respiração entrecortada, parecia ter perdido a consciência. Uma das sobrancelhas, ferida pelo impacto contra
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os dejetos vulcânicos, vertia sangue em abundância. O Mestre, então, se dirigiu de novo ao essênio e pediu água. Assi hesitou. Até que, rendido diante daquela voz afável e decidida, virou-se para obedecê-lo.
Jesus dobrou o sudarium com o qual costumava amarrar os cabelos nas caminhadas compridas e, procurando uma região não contaminada pelo suor, tamponou a ferida da sobrancelha, fazendo uma pressão delicada. Depois de meio minuto levantou a improvisada gaze hidrófila e observou o corte. Pelo que pude perceber, havia apenas um corte, de pouca importância, mas impressionante. O sangue (provavelmente dos capilares), de um vermelho vinho, fluía continuamente, formando poças.
O Mestre examinou o "curativo" e seu grau de absorção e, dobrando o tecido, repetiu a operação, tentando conter a hemorragia. Foi um longo e inesquecível minuto.
Difícil de entender, sim, mas inesquecível... Um deus, ajoelhado, apoiava em seu colo um negro miserável e anónimo. A mão esquerda, firme e segura, velava sobre a ferida, e a direita, com doçura, acariciava a bochecha suja de Aru. Os dedos passeavam devagar pela fronte e os lábios, ressecados e quase irreconhecíveis.
Observei cada gesto e tentei me insinuar entre seus sentimentos. Pobre de mim! Como ousar semelhante intento? Jesus, alheio a tudo que o rodeava, continuou estancando a hemorragia. A cabeça, ligeiramente inclinada sobre o rapaz, começou a receber os raios alaranjados de um sol que se retirava além do Jordão, mas que, a julgar pelo empenho em iluminar o Filho do Homem, sabia muito bem o que estava acontecendo...
Fiquei impressionado..., mais uma vez. Os cabelos, cor de caramelo, agora sobre os ombros, receberam a luz do crepúsculo e eu diria que de mais Alguém... Foi nesses instantes, enquanto acariciava com as pontas dos dedos as pálpebras ensangüentadas e fechadas do amok, que fiquei prisioneiro de seus olhos. Não sei explicar. As palavras, mais uma vez, são o meu inimigo...
Não foi possível desviar o olhar. Foi como se o universo inteiro o tivesse visitado. Os olhos, agora mais expressivos que nunca, mais vivos e falantes, apesar do silêncio, ficaram úmidos. E o rosto inteiro, dourado por aquele sol cúmplice, se transfigurou. Eu vi a luz que o banhava e
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que se transformava em sua verdadeira pele. Então, uma lágrima rolou de repente e apressada se escondeu na barba desgrenhada, deixando o meu coração apertado.
Acho que empalideci. Como poderia definir isso? Era um Homem-Deus
com um homem entre as mãos. Talvez fosse a misericórdia que o fez verter aquela lágrima. Nunca soubemos, só suspeitamos. Talvez fosse uma infinita piedade que o moveu e fez descer a alma daquele ser tão especial até os níveis nos quais labutávamos. Não sei explicar, mas o instinto me diz que foi o amor que abriu a porta para a ternura, comovendo até a última célula de Jesus de Nazaré. Ele aparecera num mundo imperfeito e cruel, e agora tinha uma dessas criaturas imperfeitas entre as mãos. Talvez essa mistura de misericórdia, piedade, amor e ternura fizesse o milagre. Quem sabe...
Apresentaram-se ao mesmo tempo, afugentando aquelas reflexões. Assi, com a água e sua inseparável caixa de madeira na qual transportava "o necessário" para atuar como médico ou auxiliador. E com ele, Denário e outro singular personagem que nos deixou intrigados desde o primeiro momento. Eu já o tinha visto, mas não podia saber porque estava com a cabeça coberta por um manto negro. Uma túnica de um vermelho queimado o cobria até os pés, ocultando, inclusive as mãos. Do cinto de corda pendia um molho daquelas chaves de ferro e madeira, grandes e pesadas, com as quais nunca nos acostumamos.
Assi exigiu a atenção de "Hasok", como era chamado, com razão, e ordenou que libertasse o pé do negro. O encapuzado continuou indeciso. Suas dúvidas eram compreensíveis. Aru continuava inconsciente e ninguém podia saber como reagiria ao voltar a si. Mas o essênio repetiu a ordem...
- "Trevas"..., faça o que te digo.
Hassok, de fato, significa "trevas" em língua aramaica. Não fui capaz de descobrir o rosto do homem. Trevas se empenhava para mover-se com agilidade e, ao mesmo tempo manter o rosto na escuridão do manto. Pouco depois, acabaríamos descobrindo o porquê.
Uma vez solto o grilhão, e depois de jogar a corrente ao pé da cabana, ele
se manteve imóvel e vigilante, com os braços soltos sobre a túnica.
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O Mestre retirou o "curativo" e verificou com satisfação que o sangue começara a coagular. O tecido de algodão cumpriu sua função. O auxiliador forneceu a ele outro pedaço de tecido, previamente embebido em água, e Jesus, com idêntica paciência e delicadeza, dedicou um tempo a uma minuciosa limpeza da ferida, retirando os grãos de lava que continuavam enterrados no corte.
Denário contemplava a cena, escondido atrás de Eliseu. Nenhum dos ajudantes se atreveu a voltar. Assistiam o desenrolar dos acontecimentos do lugar no qual limpavam e cortavam os peixes. Acredito que ninguém esperava a libertação do amok.
Assi abriu a caixa de madeira e mostrou ao Galileu alguns dos remédios que tinha de utilizar no caso com o qual se ocupavam. Indicou com o dedo três pequenos frascos de vidro. Um continha mel. Outro, como disse, folhas de nogueira cozidas em água, e o terceiro, uma infusão de sófora, uma árvore pouco conhecida em Israel, naqueles tempos, e cujos botões eram trazidos pelas caravanas das regiões mais orientais da Ásia11. Mais uma vez, fiquei espantado com a habilidade do essênio. Tanto o mel quanto as folhas de nogueira eram excelentes desinfetantes. Enquanto a sófora, com um alto conteúdo em glucósido flavônico, o que poderia dizer. Ajudaria, e com muita eficácia, na recuperação dos capilares feridos. Assi, como já disse, estudou medicina em Alexandria, recebendo uma clara influência dos seguidores de Hipócrates. Sua veneração pelo sábio de Cós podia ser observada inclusive pela forma de executar as bandagens. Sabia quase de cor Do oficio do médico, uma das obras do notável médico grego.
O essênio finalizou a bandagem em torno da cabeça e, nisso, Aru abriu os olhos. Trevas, atento, alertou o chefe do kan. Assi, pálido, se inclinou para trás e recolheu rapidamente a caixa de madeira. Jesus não se moveu. O negro passou aqueles olhos verdes, enormes e surpresos ao seu redor e, ao reparar Trevas, levantou-se assustado.
Era a sófora trepadeira, uma acácia que crescia no atual Japão, de grande utilidade em farmácia. Os botões contêm até cerca de 30% de glucósido flavônico, muito eficaz para multiplicar a resistência dos capilares nas hemorragias. (N. do M.)
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O Mestre, de joelhos, não intercedeu. Aru retrocedeu um passo e, subitamente, se deteve. Lançou uma olhada ao solo de cinza e, ao comprovar que não estava acorrentado, se inclinou, e apalpou o tornozelo esquerdo esfolado. Assim permaneceu alguns segundos. Trevas, consciente da gravidade do momento, foi se interpor entre o amok e o auxiliador. Era evidente que procurava defender Assi.
E de cócoras, entre a surpresa e a confusão, Aru desviou o olhar para o Galileu. Temi pelo pior. Jesus era o mais próximo. Se o louco se arrancasse, o que faríamos? E instintivamente deslizei os dedos até a parte superior do cajado, buscando a cabeça de cobre dos ultrassons.
O Mestre não moveu um músculo. Mantinha a vista fixa na maçã verde dos olhos do corpulento rapaz. Nenhum dos dois pestanejou. E a inicial firmeza, o olhar do Filho do Homem, como a luz que nos rodeava, foi descendo, que palavras devo utilizar?, até uma doçura que podia ser tocada. E aquele fio invisível entre o Deus e o homem propiciou um final benéfico. Isso, ao menos, é o que deduzo agora, ao
colocar por escrito aqueles dias inesquecíveis...
Aru, para a surpresa de todos, sorriu. Assi e o encapuzado, mudos, o observavam com desconfiança. O negro, no entanto, relaxou e curioso foi tocar a bandagem que protegia a sobrancelha machucada. A crise, aparentemente, foi embora. E interpretei a calma como o período que segue os violentos ataques de fúria. O doente fica abatido, sem forças nem para se pôr em pé e com uma amnésia demolidora que o impede de lembrar o que aconteceu. E ali mesmo, ao ser testemunha do comportamento do amok, algo me disse que o diagnóstico não era totalmente correto. O negro "tatuado" se levantou de novo. Não parecia exausto. Totalmente ao contrário...
Nesses instantes aconteceu um detalhe que aumentou a minha confusão e, suponho, a do resto das testemunhas. Aru reparou na sua nudez e, num gesto instintivo, cobriu seus genitais com ambas as mãos. Olhou para nós envergonhado e abaixou a cabeça. Não, aquela não era a conduta costumeira de um demente dessa natureza. Mas, então, o que é que acontecera? E uma idéia, tão absurda quanto inquietante, me assaltou durante
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alguns segundos. "Não, disse a mim mesmo, isso não é possível... Ele mesmo havia repetido: ainda não chegou a sua hora."
O Mestre aliviou a cena incómoda. Desfez-se do manto cor vinho e, devagar, foi ao encontro de Aru. O negro, a princípio, retrocedeu. Jesus lhe mostrou a túnica de lã e, sorridente, continuou andando. O rapaz, compreendendo, aguardou e o Galileu foi cobri-lo.
Não conseguia entender o ocorrido... E o Mestre, feliz, abraçou o jovem. Aru, mais confuso ainda, não reagiu e deixou que o Homem esquisito
agisse. Pouco depois, após aconselhar que lhe dessem de comer, o Galileu voltou ao centro do kan.
Trevas, Denário e Eliseu o seguiram. Este que escreve, intrigado, permaneceu no lugar, vigilante. Assi deve ter lido os meus pensamentos e fez a mesma coisa. E o jovem negro, vestido com o manto de Jesus, deixou-se cair sobre a cinza, sentando-se junto à corrente.
Jesus e o resto se esforçaram e, aos poucos, vi subir um fogo nervoso e voraz. Os ajudantes e as cozinheiras iam e vinham, preparando o jantar.
Trevas não demorou a voltar. Trazia duas tigelas de madeira. Uma com um pão escuro e a segunda com um cacho carregado de uva branca. Deixou a comida diante do negro e se afastou de novo até a fogueira.
O essênio e eu esperamos a reação do amok. Negativo. Aru não fez nada anormal. Observou os alimentos e, desviando o olhar até o auxiliador, voltou a sorrir. Foi um sorriso limpo, sem assomo de demência e carregado de gratidão. Não era possível. Um louco não deveria se comportar dessa maneira, ao menos depois de uma crise tão aguda...
E a idéia absurda me voltou. Será que foi curado pelo Mestre? Como já disse, isso não era possível. Não era a sua hora. Ou era?
Aru, finalmente, partiu o pão e começou a comer com avidez. Assi acariciou pensativo sua espessa barba negra e continuou estudando o demente. Acredito que estava tão assombrado quanto este explorador. Trevas interrompeu as reflexões do chefe do kan. Mostrou-lhe uma cabaça de água e esperou instruções. Assi tomou o recipiente e, sem perder de vista o negro faminto, depositou-o sobre a cinza entre as suas pernas. E assim
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continuou durante alguns minutos, sentado e em silêncio. Por fim abriu a caixa de madeira e tomou um dos vidrinhos.
Aru, tranqüilo, estava terminando o cacho de uva. De vez em quando parava e olhava para nós. Os olhos, insisto, aparentavam serenidade. E o auxiliador, depois de hesitar, foi derramando o conteúdo do vidrinho na água. Ele o fez sem disfarçar. Abertamente. Pareceu-me que inclusive exagerava os movimentos. Aru, certamente, percebeu a manobra de Assi. Fui eu, tolo como sempre, que não percebeu o alcance da operação sutil... Depois, junto ao fogo, Assi me esclareceria o porquê do gesto e a natureza da beberagem que jogou no interior da cabaça.
Como disse, o líquido era um extrato de lúpulo, muito eficaz para acalmar a ansiedade12. Tinha, além do mais, um efeito sedativo que garantia um profundo sono reparador. O essênio não se sentia seguro e, deixando-se levar pelo sentido comum, preferiu drogar o negro perigoso. Era uma fórmula habitual naquele lugar e com muitos daqueles doentes. Mas havia também outra intenção nos gestos exagerados do inteligente egípcio. Aru, em sua demência, mostrava sempre alguns tiques ou sinais que anunciavam ou pressagiavam as crises violentas. Uma dessas "manias" era uma obsessão incompreensível pela caixa de madeira do auxiliador e, especialmente, pelo seu conteúdo. Se o louco via ou suspeitava qualquer manipulação da água ou da comida, diretamente relacionada com os "fármacos" de Assi, a negativa de ingerilos era automática, e se desencadeava imediatamente outro ataque de ira. Era por isso que Assi e sua gente procuravam ministrar os sedativos sem que o amok visse.
Nesta oportunidade, no entanto, tudo foi diante de seus olhos e com premeditação. E o essênio e seu ajudante, o Trevas, assistiram perplexos a reação pacífica do rapaz. Aru não se intimidou. Terminou as uvas e, satisfeito, acompanhava
com curiosidade os movimentos dos presentes.
12 A planta cultivada em sebes, valas e muros era bem conhecida pelos curandeiros daquele tempo. As flores femininas desta morácea proporcionam os frutos ricos em tanino, trimetilamina, resina com ácido lupamárico e humuleno, entre outros, muito recomendados para a insónia e as alterações nervosas. (N. do M.)
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Assi pediu ao demente que se aproximasse da cabaça. Esse foi outro momento de tensão, segundo o auxiliador. Trevas, com grande comedimento, ficou de cócoras diante do negro e lhe ofereceu o recipiente. Não sei se conseguiu ver o rosto do demente. A questão é que Aru respondeu de uma forma imprevisível, nas palavras de Assi. Tomou a tigela e bebeu até terminar a água e o lúpulo. Afastou a cabaça e esboçou um leve sorriso. De novo parece que descobri a gratidão...
Depois ele se recostou sobre a cinza e fechou os olhos. Assi expressou seus pensamento em voz alta...
- Não entendo isso...
Deixamos Aru e nos juntamos ao redor da fogueira que crepitava no centro da esplanada. Estava a ponto de anoitecer. Os relógios do módulo deviam mostrar 17h30.
Durante uns instantes observei os movimentos do chefe do kan. Aquele homem dedicado, generoso, paciente e amável se uniu ao grupo de Jesus e dos ajudantes na preparação do jantar. Ia e vinha, fazendo de tudo. De vez em quando, espiava dissimuladamente o Mestre e, suponho, se perguntava o que acontecera com aquele negro violento e errático. Agora, com a vantagem do tempo e da distância, é fácil chegar a conclusões. Na época (setembro do ano 25 de nossa era), não foi simples.
Aquele auxiliador, assim como o resto das pessoas com as quais Jesus de Nazaré conviveu, não podia saber quem era na realidade o Galileu. Eram amigos ou conhecidos, sim, mas insisto, ninguém imaginava seu poder e, muito menos, sua natureza divina. Era lógico, portanto, que Assi quisesse saber porque sua voz e seu olhar eram tão persuasivos. Quem era aquele Homem? Por que agia assim? O que é que acontecera com o negro "tatuado"? Nós também não soubemos com certeza naquela ocasião.
Eu aderi à tarefa de cuidar do jantar. O resto, com Assi liderando, resgatava as carpas cheirosas, os barbos e as tilápias da grande panela de ferro e repartia as rações gordurosas entre os enfermos e os doentes mentais do outro extremo do kan, os quais este explorador tinha revistado. Em muitos casos, o peixe tinha de ser cortado em bocados e levado à boca daqueles infelizes, incapazes de segurar um prato. Vários cortadores car
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regaram algumas bandejas e se perderam no interior das choças de cana. Dessa vez eu não me mexi. Já tinha visto o suficiente...
Suficiente? E o Destino, mais uma vez, foi ao meu encontro. Enquanto cuidava do assado de um daqueles enormes bínít, ou barbos do Hule, de quase um metro de comprimento, eu os vi se aproximarem. Formavam duas fileiras. Eram outros "inquilinos" do kan, permanentemente reclusos nas cabanas e que só pisavam a explanada para ser alimentados ou lavados.
Os homens, não todos, vestiam modestos saq ou tangas pretas esfarrapadas. As mulheres, com as cabeças raspadas, apresentavam a mesma roupagem: túnicas que outrora foram cor de laranja, agora ensebadas e em farrapos.
Enquanto se aproximavam da fogueira percebi alguns movimentos anormais, quase grotescos. Pouco depois, quando parei diante do fogo, comecei a compreender... Eles andavam em ziguezague. Outros levantavam exageradamente os pés, e em seguida os abaixavam com força sobre as pranchas. Alguns, com as pernas rígidas, arrastavam-se com passos lentos e curtos. Observei também os indivíduos que avançavam com a cabeça erguida, olhando fixamente para o céu. E entre aqueles não menos afortunados, vários meninos e meninas, providos de bastões, e com o andar típico de "tesourada".
Um calafrio me visitou de novo... Os "possuídos", porque eram isso segundo o auxiliador, foram atados com uma corda comprida, amarrada a cada tornozelo direito, o que anulava qualquer tentativa de fuga. Entre as duas correntes de "possessos", vi o enigmático Trevas, vigilante. Carregava nos braços uma criatura.
A um grito do encapuzado, aqueles que estavam na frente das fileiras pararam a pouca distância do fogareiro. Então, comecei a suspeitar aterrorizado...
Os supostos "possuídos" ou "endemoninhados" eram, na realidade, doentes e aleijados que manifestavam, junto com os transtornos mentais, os estigmas de sua doença. Assim, os afetados por "paralisia cerebral" (encefalopatia estática) mostravam algumas conseqüências do problema: hemiplexia (com deformação "eqüina" da bacia, do joelho e do pé), displexia (com joelhos e pés equinovaros) e tetraplexia espástica (com as extremi
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dades inferiores na posição típica "em tesouras"). Outros, com a medula lesada, apresentavam o que em medicina se chama "deambulação atáxica", ou seja, uma falta
de coordenação, especialmente nos movimentos musculares. Eram doentes aos quais, além de tudo, a "ataxia" em questão alterava os músculos do rosto e da língua, o que provocava uma mímica marcante quando riam e quando tentavam falar. Essa situação, definitivamente, relegava-os à penosa e injusta classificação de loucos ou possuídos pelas forças do mal.
Lembro de um daqueles infelizes com especial tristeza. Era muito alerta. Na juventude, como conseqüência possível de um tumor ou de uma hemorragia, seu cérebro ficou afetado, o que causou um andar inseguro e chamativo. A cada passo se via na necessidade de separar as pernas, colocando os braços em cruz a fim de manter o equilíbrio (deambulação cerebelar). Essa patologia era suficiente para negar a inteligência incontestável do indivíduo, condenando-o ao esquecimento e à miséria. Nesse caso ocupava o primeiro posto em uma das cordas. Era um dos poucos que obedeciam ordens.
Aquele que encabeçava a segunda fileira também sofria de algum problema de origem nervosa. Ao andar, o pé, rígido, traçava um arco, evitando que os dedos colidissem com o chão (caminhar conhecido como "do ceifado r", por parecer com o deslocamento da foice). Tanto esta quanto as outras síndromes tinham sua origem não numa possessão, mas em alterações medulares ou cerebrais que remontavam ao nascimento ou ao período fetal13. "Endemoninhados"? Pobre gente...
Trevas ordenou que se sentassem. Primeiro o fizeram os "inteligentes". Depois, aos empurrões, os ajudantes conseguiram mais ou menos que os "possessos" se deitassem sobre a cinza. As mulheres foram as mais recalcitrantes. E entre risos nervosos acabaram por se acomodar ao redor do fogo.
13 Muitos casos de paralisia cerebral, especialmente a chamada encefalopatia hipoxicoisquêmica, se devem a traumatismos ou complicações surgidos no parto ou durante a gravidez. A escassez de oxigénio, por exemplo, lesa o cérebro e causa
um atraso mental, dificuldades auditivas ou visuais, convulsões, hemiplexia ou tetraplexia e deformações ortopédicas progressivas, entre outros transtornos. (N. do M.)
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Ao observá-las com mais detalhe pressenti que aquelas infelizes, também "diagnosticadas" como "possuídas", eram oligofrênicas14. Em outras palavras: seres humanos de inteligência escassa ou, como os franceses preferem, "débeis mentais". Suas idéias e conceitos são tão pobres, sua experiência tão escassa e sua capacidade de relação tão breve que os rendimentos intelectuais acabam sempre deficitários, para não dizer inviáveis. Ali, obviamente, ao ar livre, só se permitia a presença das que manifestavam uma "possessão" leve ou moderada. As oligofrênicas graves ou profundas não saíam das cabanas. A incontinência dos esfíncteres, os atos impulsivos elementares (masturbação etc.) e, em suma, a absoluta incapacidade para cuidar de si mesmas as mantinha prisioneiras nas cabanas. As débeis mentais de caráter leve eram as menos conflitantes. Não sabiam distinguir um pássaro de uma borboleta, ou um menino de um anão, embora isso pouco importasse naquele lugar. Estavam sempre apegadas ao concreto e ao material. Apenas tinham memória, e quando muito, Assi e os seus deviam ter cuidado com os utensílios que pegavam. Seu egoísmo era tamanho que ficava muito difícil a devolução. As oligofrênicas "moderadas" eram mais complicadas. Desenvolviam também uma linguagem oral limitada, quase mímica, mas sua dificuldade para compreender as normas sociais as tornava incapazes para quase tudo.
Possessão diabólica? Meu Deus do céu! Como fazê-los entender que não se tratava de espíritos imundos alojados naqueles desgraçados? Como lhes explicar que as oligofrenias
têm outra origem? Como dizer ao auxiliador que existem mais de dez causas conhecidas que podem levar a esse tipo de retardamento mental15?
14 Oligofrenia, termo cunhado por Kraepelin, procede do grego (oligos significa "pouco", e phren quer dizer "mente"). Segundo o critério psicométrico (Binet e Simon), são considerados débeis mentais os indivíduos que não alcançam um quociente intelectual superior a 70. A Associação Psiquiátrica Americana, no entanto, estima esse "limite" na faixa de 65-75, considerando que a inteligência não pode ser medida de forma matemática e muito menos com o auxílio exclusivo de testes. (N. do M.)
15 Entre as causas (etiologia) desse tipo de retardamento mental, segundo especialistas como Pitt e Robot, podemos estabelecer os traumatismos, tanto pré-natais quanto
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Eu me abstive, naturalmente. Não era aconselhável. Para Assi, e para a sociedade daquele tempo, essas mulheres eram "território" ocupado por uma legião de demónios, todos a serviço de Yavé ou dos deuses, e todos encarregados de castigar os pecados daqueles infelizes ou de seus ancestrais. O fato de não conhecer sequer o próprio nome - como podia fazer isso uma oligofrênica grave ou profunda? - era um "sinal" inquestionável do castigo divino. Era o que diziam. E para "dar o exemplo" ao resto dos cidadãos sobre as conseqüências do pecado, vestiam as "endemoninhadas" com a cor laranja. Ao ver essas túnicas, todos sabiam o que esperar...
Jesus, imediatamente, parou de partir o pão e, dando a volta na fogueira, foi até uma das cordas de "endemoninhados". Um dos infelizes, não sei se por causa dos empurrões ou por estar travado pela corda, caíra pesadamente e
permanecia mudo, com o rosto enfiado nos dejetos vulcânicos.
Eliseu e eu o acompanhamos com o olhar. Acredito que o resto dos ajudantes não se deu conta da manobra decisiva do Galileu. E digo decisiva porque aquele ancião, cego e surdo, estava se asfixiando com a cinza que cobria o kan. Pelo que pude distinguir, o homem padecia do que hoje chamamos de doença de Paget, uma enfermidade de origem desconhecida que ataca essencialmente os ossos e os destrói de forma rápida e irregular. As pernas, muito arqueadas, pareciam de trapo. Não obedeciam às ordens do cérebro. A superatividade osteoclástica deteriorou o esqueleto, atacando principalmente a cabeça. A doença o transformara num monstro, com
intranatais ou pós-natais (tentativas de aborto, anoxia fetal, hemorragias etc.), infecções (pré-natal: rubéola, toxoplasmose e outras doenças, ou pósnatal: meningite e encefalite, entre outras doenças), transtornos metabólicos (hipotireoidismo, hipercalcemia idiopática, desidratação hipernatrêmica e falhas dos lipídeos, aminoácidos e glúcideos), agentes tóxicos (envenenamentos, intoxicações maternas que podem afetar o feto, e filhos de mães diabéticas) e neoformações (neoplasias intracranianas e facomatose, fundamentalmente). A esta etiologia é preciso acrescentar outras influências desconhecidas para a ciência e que, segundo todos os indícios, poderiam ter raízes neurológicas. Exemplos: defeitos cerebrais congénitos, malformações múltiplas diversas, anomalias cranianas primárias, síndromes de nanismo intra-uterino, mielomeningocele, hiperterolismo, doença de Crouzon, transtornos motores, epilepsia, leucodistrofias, ataxia de Friedreich, seqüelas de psicoses infantis e o denominado "retardamento mental familiar cultural". (N, do M.)
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um engrossamento espetacular dos ossos do crânio. Eu jamais havia visto uma cabeça tão enorme e desproporcional...
O Mestre o ergueu e se apressou a limpar a boca e as fossas nasais. O homem respirava... Endemoninhado? Um pobre velho com uma osteíte que estava arruinando seus ossos e que, presumivelmente, estava cego e surdo em conseqüência dessa inflamação aguda e crónica dos ossos? Era injusto, eu sei, mas devia me acostumar. Éramos observadores. Só isso...
O Mestre, então, sentando-se junto ao ancião, pediu a Assi uma das rações de peixe. Trevas, atento, deixou o menino que carregava nos braços aos pés do essênio e correu para cumprir os desejos do Filho do Homem. Jesus partiu a tilápia recém-assada e foi introduzindo o peixe na boca do "possuído". Uma apagada bênção foi a forma particular de agradecer a ajuda do Galileu. Mas o ancião não obteve resposta. Jesus, sério e grave, só se preocupou em alimentá-lo.
Suponho que foi excessivo para ele. Meu irmão, desolado, escolheu se retirar. Fez um sinal para mim. Pegou a sacola de viagem e se afastou alguns metros do fogo. Eu o vi se cobrindo com o manto e procurando se acomodar no chão de cinza. Aos poucos ouvi os roncos conhecidos...
A lua crescente se despedia já num firmamento branco e negro. Assi, tão esgotado quanto Eliseu, tomou o menino em seus braços e se dispôs a lhe dar comida. Não permiti isso. Roguei-lhe que me entregasse a criatura. Eu faria isso. O essênio aceitou e, durante uns instantes, me contemplou com curiosidade. O comportamento daqueles gregos de Tessalônica, silenciosos e ligados ao Galileu, não era muito normal. Eu me limitei a remover o pão de cevada que flutuava no leite. O que é que podia lhe dizer?
E fui levar a tigela de madeira aos lábios do bebé, não acredito que tivesse mais de oito meses de idade, quando recebi o penúltimo susto daquele dia
agitado. A escuridão e a imagem do Mestre depositando o peixe na boca do homem da cabeça enorme me despistaram. O menino não reagiu à minha voz. A cabeça pendia flácida por cima do meu antebraço. Como digo, eu me assustei. Depositei a colher no chão e tomei o pulso dele. Estava vivo, mas...
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O auxiliador, que não perdia nenhum detalhe, perguntou se além de "comerciante rico" eu era médico. A forma de tomar o pulso, no pescoço, não passou despercebida para o egípcio perspicaz. Neguei como pude, e Assi tomou de novo o bebê e o suspendeu no ar, sustentando-o pelo peito. A criatura, nessa posição ventral, prestava a forma característica em "U" invertido, com uma fixação deficiente dos braços e a referida flacidez da cabeça. Era como um farrapo.
- Seus pais pecaram - esclareceu o essênio -. Agora o Santo, bendito seja o seu nome, o castigou. Um espírito maligno o mantém dormindo o dia inteiro...
Guardei silêncio. O Santo, cujo nome não devia ser pronunciado, era Yavé. Quanto ao "castigo" pelo pecado dos pais!, não se tratava, certamente, de invasão de um demônio, e sim de uma hipotonia, um grave problema neurológico que afeta o sistema nervoso periférico e que, definitivamente, provoca uma debilidade muscular. Eu não quis entrar numa discussão que, com toda a probabilidade, não nos levaria a parte alguma. Além do mais, em todo o caso, este era um dos propósitos do Mestre: mostrar ao povo judeu e ao resto do mundo o "novo rosto do Pai".
E tentando contemporizar me interessei pelo "demónio" que governava, como supus, o negro "tatuado". Seu comportamento esquisito, depois da crise, tinha me desconcertado.
O essênio, acirrado defensor dos anjos e demónios, assentiu com preocupação. Ele também havia notado alguma coisa singular, mas não sabia o que pensar. Na realidade, não estava certo do tipo de demónio que morava nele. Podia ser um anjo caído, disse, ou talvez um dos filhos de Adão, "concebidos antes dos 130 anos, quando o pai da humanidade teve, finalmente, um filho segundo sua imagem". Conforme ele falava, fui reconhecendo o quinto capítulo do Génesis.
- ... são invisíveis - prosseguiu Assi em voz baixa, como se temesse que os diabos pudessem ouvi-lo -, mas Trevas e eu temos visto suas pegadas nos pântanos. São idênticas às pegadas dos galos, só que maiores...
Tratei de averiguar alguma coisa sobre a procedência e o perfil de Aru. Assi não sabia muito. Fazia parte de um love de escravos, trazido
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das terras da África (possivelmente dos oásis ao sul da atual Líbia) até o mercado de Damasco quando a caravana cruzou o caminho do chefe do kan. Assi, curioso, inspecionou o "carregamento" e chamou a sua atenção o adolescente de então. Era forte, parecia sadio. Apontava para os círculos que cobriam quase todo o seu corpo e repetia sem cessar "AruL.Aru!" ("Olha! Observa!", referindo-se às cicatrizes ou incisões que faziam a "tatuagem".) Assi nunca soube por que, mas decidiu comprá-lo. Pagou uma "mina" (aproximadamente duzentos e quarenta denários de prata); um preço vantajoso em relação ao custo da época de um escravo judeu16. Não tardou em compreender e se arrepender do "negócio". Ninguém lhe falou do mal que o rapaz padecia. Por isso, provavelmente o venderam por um preço tão irrisório. Desde então se passaram cinco anos. Ao chegar ao kan, surgiram os problemas, e Aru teve de ser acorrentado. Num dos ataques de cólera feriu gravemente vários "endemoninhados" que, obviamente,
não podiam fugir para se defender.
Algum tempo depois, como mencionei em outro momento deste diário, o Destino revelaria o porquê da presença de Aru naquele albergue sinistro. Tudo efetivamente estava "programado"...
Falamos então da manutenção do kan. Assi, compadecido pelo interesse do estrangeiro, foi aberto e disse que, apesar da vontade de Filipe, o tetrarca da Gaulanítide17, que arcava com boa parte dos gastos (um talento e meio anual: quase vinte e dois mil denários de prata), a
16 O preço de um escravo pagão variava consideravelmente, segundo o lugar e as circunstâncias do mercado. Em Roma, por exemplo, oscilava entre cinco e cem "minas" (uma "mina" equivalia a sessenta siclos ou duzentos e quarenta denários de prata). Em Jerusalém, o custo mínimo era de 0,25 "mina", e podia chegar a cem (ver Misná B. Q. IV, 5). Na Judéia, o salário médio de umfelah ou camponês era de um denário por dia. (N. do M.)
17 Herodes Filipe foi um dos inumeráveis filhos de Herodes o Grande. Começou a reinar no ano 4 antes de Cristo e faleceu no ano 34 da nossa era. Governou os territórios ao leste da Galiléia (Traconítide, Bataneia, Auranitide e Gaulanítide). Pouco teve a ver com a sangrenta família herodiana. Era um sábio, amante da natureza e, especialmente, da geografia. Dedicou parte de sua vida para resolver o mistério do nascimento do rio Jordão. Interessou-se também por aquele "Galileu esquisito" chamado Jesus. (N. do M.)
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realidade daqueles doentes e impedidos (mais de sessenta) era bem mais penosa. Mesmo assim, ele continuaria à frente daquele desastre. Era
médico e essênio, ou seja, "duplamente humano". Eu estava, em verdade, diante de um grande homem...
O jantar terminou. O encapuzado recuperou o bebê hipotônico e com alguns gritos alertou as cordas de aleijados. Foi preciso o auxílio de vários ajudantes para colocá-las em movimento. Aos poucos desapareceram na escuridão. Denário foi embora com eles.
Jesus voltou e, depois de alimentar a fogueira, sentou-se entre Assi e este explorador. Não falamos durante um tempo. Observei o Mestre. Continuava ausente. Seus olhos permaneciam fixos no oscilar manso e vermelho das chamas. Depois, não sei se consumido pela tristeza, ergueu o olhar para as estrelas. Eu quis penetrar naqueles olhos e averiguar o que estava acontecendo. Ele não deixou. Nesses momentos, como acontecera nas neves do Hermon, aquele Homem estava muito longe, em comunicação íntima com o Pai. Era sua forma de rezar. Podia fazer isso em qualquer circunstância, sempre que desejasse ou precisasse. Eu me resignei. Se ele não aceitava o diálogo, não seria este pobre observador que o forçaria. Devíamos ser muito sutis, quase estranhos, seguindo o Filho do Homem. Certamente nem sempre o conseguimos...
Assi, finalmente, rompeu o silêncio e dirigiu a conversa ao assunto que ficou em suspenso e pelo qual sentia especial atração: a possessão de Aru em particular e a loucura em geral. Como já mencionei, o essênio estudou para ser rofé ou "auxiliador" nas prestigiosas academias de medicina da cidade egípcia de Alexandria, no delta do Nilo, e nzper-ankh ou "Casa da Vida" de Assi. Daí recebeu seu nome.
Era ou se considerava aluno dos discípulos do lendário Hipócrates. Tinha lido muitas obras suas. Mencionou Da epilepsia ou enfermidade sagrada, Dos humores, Do regime das enfermidades agudas, Ares, águas e lugares e Do oficio do médico,
entre outras. Sua devoção, no entanto, era Herófilo, outro notável seguidor da medicina hipocrática. De fato, como confessou, pertencia à chamada escola "herofilista", uma espécie de seita médico-filosófica que se extinguiu ao longo desse século I de nossa era e à
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qual, ao que parece, pertenceram médicos tão renomados como Andréas de Caristo, perito em ervas medicinais (o primeiro que informou sobre os perigos do ópio adulterado); Facas, médico de Cleópatra; Demóstenes de Marselha, ocultista, e Estrabáo, que fala dos "herofilistas" em sua obra A geografia. Foi de Herófilo de Calcedônia, a quem Plínio chamou "oráculo da medicina", que aprendeu a "doutrina do pulso", e calculou que as palpitações só eram registradas no coração e nas artérias. Daí sua surpresa ao observar que esse grego buscava um sinal de vida no pescoço do bebé. E foi de Alexandria, notavelmente influenciada pelos "herofilistas", que recebeu novas ideias sobre a crasis ou harmonia, uma das chaves para entender as doenças, incluindo a loucura. Embora Assi fosse judeu e, como digo, pertencente ao grupo essênio, não se prendeu ao obsessivo obscurantismo da lei mosaica a respeito da doença. E como um bom observador, duvidava daquele princípio supostamente irremovível: pecado = castigo de Yavé = doença. Suponho que a revolução hipocrática o arrastou a um estado de dúvida saudável e permanente...
Para Assi, as doenças tinham uma tripla origem. Ele partia do pressuposto, falso, naturalmente, de um corpo humano integrado por sangue, pituíta (muco), bílis amarela e bílis negra. Isso era tudo. Se esses elementos se encontravam em "discrasia" ou desarmonia, tanto em qualidade quanto em quantidade, aparecia o conflito. A doença, portanto, procedia de um desequilíbrio dos humores, segundo rezava Da
natureza do homem, de Hipócrates. No momento em que a pituíta ou a bílis amarga "ferviam" (!), o indivíduo se transformava em louco. Esse processo, dizia, apresentava diferentes intensidades. Por isso havia loucos perigosos e outros muito mais calmos.
A segunda "fonte" de doenças se encontrava no vento. Para o auxiliador do lago Hule, tratava-se de mais um alimento, exatamente igual ao pão ou à bebida. Esse ar penetrava nos vasos e nas cavidades do corpo, favorecendo o ingresso de miasmas perniciosos e, o que era pior, de todo tipo de espíritos imundos. O vento esfriava o interior dos órgãos e provocava tremores, queimações e dores. A mais grave e comprometedora, segundo Assi, era a invasão dos seres humanos por Lilit e companhia, um
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grupo de diabos femininos que se deslocavam justamente com o vento e que, uma vez misturados no sangue e no resto dos humores, ocasionavam paralisia de todo o tipo, a doença sagrada (epilepsia) e acessos de fúria como o que acometia Aru.
A terceira etiologia ou causa de loucura era ainda mais confusa. O egípcio se apropriou de alguns princípios de Platão18, e os modificou segundo as idéias mosaicas. O homem dispunha de uma alma imortal (no caso da mulher havia discussões complicadas), submetida ao corpo, localizada no interior da cabeça. Era o centro da inteligência e dos sentimentos. Abaixo, no tórax, separada pelo pescoço, residia uma segunda alma que participava da razão e que era regada pelos influxos do coração, nódulo de veias e fonte do sangue. Uma terceira alma, tão mortal como a anterior, estava aninhada entre o diafragma e o umbigo. Não dependia da razão; só da comida e da bebida. Pois bem, as três almas podiam ser alteradas pelo vento ou pelo
desequilíbrio dos humores. Se os espíritos maléficos se apossavam da segunda, residente no peito, o sujeito deixava de utilizar a razão e se transformava num "possesso". Se se apoderavam da terceira, o infeliz perdia o apetite, deixava de comer e caía num estado de prostração que desembocava geralmente na morte.
Embora eu tivesse informação a respeito, escutar dos lábios de Assi foi diferente. A realidade, mais uma vez, superava toda a ficção ou imaginação. Aru, definitivamente, segundo o auxiliador, estava sendo escravizado por Lilit, o diabo-mulher que se introduziu furtivamente um dia em seu corpo e que invadiu a "segunda alma". E outro tanto acontecia com o resto dos aleijados e dos dementes do kan. Todos, em maior ou menor medida, eram vítimas do "desfalecimento" das "três almas", que, por sua vez, era conseqüência da ira de
Platão, embora não fosse médico, defendeu o princípio das "três almas". Considerava que o mundo era esférico e que os deuses o formaram com os quatro elementos básicos (terra, água, ar e fogo). O homem foi criado com esses mesmos materiais e a divindade lhe deu de presente uma alma imortal e duas mortais. Segundo os defeitos e as fraquezas do homem, essa criatura imortal podia ser transformada em mulher ou em animal numa segunda encarnação. As hipóteses de Platão causaram grande agitação entre as culturas mediterrâneas de sua época e dos séculos posteriores. (N. do M.)
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Yavé, provocada, naturalmente, por seus pecados ou os pecados dos pais. Essa era a situação e, de certo modo, entendi o silêncio do Mestre. Não invejei seu trabalho futuro como educador daquelas pessoas atrasadas e supersticiosas...
Assi percebeu o meu desalento e, otimista apesar de tudo, se apressou a enumerar alguns "remédios" com os quais contavam para controlar os espíritos imundos e, se o Bendito ficasse aplacado, tirar da "escravidão física e moral" todos os doentes que o merecessem. Quando ele mencionou o Bendito (Yavé), olhei de soslaio para o Galileu. Continuava absorto, com os olhos fixos no céu estrelado.
- Não é fácil - prosseguiu o essênio com sua exposição -, mas, de vez em quando, usamos pintinhos de falcão. Eles abundam no Hermon. A carne combate os "diabos" e faz retroceder o deavón (pesar) e o kilayón (poderia ser traduzido como sensação de aniquilamento).
Deduzi que a suposta ação curativa das crias de falcão (mais do que suposta) poderia advir do fato de que os pintinhos eram alimentados com carne de serpente, o "antídoto", segundo os médicos da época, contra as doenças mentais.
- ... Incluímos também carne de ouriço, ideal para o hipazón (esto uvamento) e para o isavón (nervosismo). Mas, como deveis saber, é a víbora que, devidamente cozida com sal, vinagre e mel, é definitiva contra todo o tipo de sigaon (alienação, loucura).
Eu sabia alguma coisa. O Papai Noel, nosso computador central, nos informara a respeito. A carne da serpente, cozida no vinho ou no azeite e oliva, era um "remédio" habitual, muito recomendado contra a asma, o reumatismo, a paralisia e a loucura em geral. No Talmud e na medicina grega daquele tempo se falava da tariaka, uma espécie de "remédio de serpente", vital para as doenças degenerativas, respiratórias e mentais. Se a serpente era comida crua, macerada no mel, muito melhor...
- ... Mais escassos são o veneno e o sangue de cobra - acrescentou o auxiliador -. Não podem ser encontrados aqui, nos pântanos. Quando alguém nos traz, pagamos um bom dinheiro. São muito eficazes contra o ivarón (cegueira espiritual),
o simamón (estupor) e o sigayón (alucinação) (?).
Assi lamentou não poder praticar o que era recomendado pelos "he
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rofilistas" para contribuir com a harmonia dos humores do corpo. Tinha razão. Aquele kan, perdido no fim do mundo, não era o lugar mais apropriado para a música, o estudo ou a filosofia, como pretendiam os gregos.
Todos esses métodos, eu sei, eram de eficácia muito duvidosa para lutar com as síndromes mencionadas neurológicas, hereditárias etc. Mas eu tive de reconhecer uma coisa: a entrega, o amor e a capacidade de sacrifício daquele homem eram tais que, em muitos momentos, a impotência na hora de curar era o que menos importava. Cada vez que tive a sorte de encontrar com ele, e foram várias no terceiro "salto", aprendi muito. Assi sentia uma satisfação especial com aquele ingrato trabalho de médico e repetia com freqüência que o juramento hipocrático19 o obrigava até a morte.
Assi insistiu. Embora não fosse um judeu ortodoxo e intransigente, confiava na Lei e em seu inspirador (Yavé). Era por isso ou acima dos remédios ou conselhos que considerava Deus como o único rofé ou curador.
19 Os médicos educados nas escolas de Hipócrates concluíam sua graduação com um célebre "Juramento", uma bela expressão de ética para aquela época e também para a nossa. Dizia assim: "Juro por Apoio médico, por Asclépio, Hígia e Panaceia, e coloco como testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, o juramento cujo texto é o seguinte: Estimar da mesma forma que os meus pais aquele que me ensinou esta arte, viver em comunidade com ele, e se for
necessário, dividir com ele meus bens; considerar seus filhos como meus próprios irmãos, ensinar-lhes esta arte se precisarem aprendê-la, sem salário nem promessa escrita; comunicar os preceitos, as lições e tudo o mais do ensino a meus filhos, aos do mestre que me instruiu, aos discípulos inscritos e obrigados segundo os regulamentos da profissão, mas ninguém mais.
Aplicarei os regimentos, para o bem dos doentes, segundo minhas faculdades e o meu juízo, nunca para fazer mal a ninguém. Não darei a ninguém, por complacência, um remédio mortal ou um conselho que o induza à sua perdição. Não darei a uma mulher um recurso abortivo. Conservarei puros a minha vida e a minha arte. Não praticarei uma incisão num paciente de cálculos, deixarei esta operação aos praticantes. Em toda a casa para onde for, entrarei para fazer o bem aos doentes, mantendo-me longe dos prazeres do amor com as mulheres e com os homens, livres ou escravos. Tudo o que no exercício ou fora do exercício da profissão, e no comércio da vida, for ouvido ou visto e que não deve ser divulgado, eu o conservarei sempre como segredo. Se cumprir este juramento com fidelidade, que possa gozar de minha vida e de minha arte com boa reputação entre os homens e para sempre; se não o fizer e o romper, que me aconteça o contrário." (N. do M.)
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Junto com as beberagens e a harmonia corporal, dava também especial importância à oração. No kan, todos os dias se escutava o "Schema Israel", umas bênçãos semelhantes a uma espada de fio duplo, "definitiva contra os demônios noturnos". "E se o vento aumentava - acrescentou -, então era preciso recorrer aos tefilin ou filacterias, as pequenas caixas de couro negro que amaravam no braço e na fronte e em cujo interior depositavam versículos da Bíblia. Um especialmente, o quinto do Salmo 91,
era recomendado contra Lilit e companhia: "Não temerás o terror da noite, nem a seta que de dia voa...". Hoje, muitos cristãos repetem isso durante a reza de completas sem conhecer muito bem a origem do mesmo...
O misterioso homem com cabeça coberta pelo manto se juntou de novo à fogueira. O kan desfrutou então de um período de silêncio. Todos os doentes foram recolhidos às choças. Trevas, em pé ao lado do auxiliador, permaneceu imóvel alguns segundos. Depois se inclinou e sussurrou alguma coisa ao essênio. Assi me observou.
Instintivamente me pus de guarda. Desviei o olhar até o meu companheiro. Eliseu continuava adormecido. Mais adiante, na escuridão entre as cabanas, adivinhei o vulto de Aru, entregue também a um sono profundo. Por que Assi me escrutava com tanta severidade? Tentei lembrar os movimentos no refúgio, mas, exceto o incidente com a mulher que padecia da síndrome de negação, eu não tinha consciência de ter infringido norma alguma. Ou se tratava de algo relacionado com o meu irmão?
- Trevas diz que te conhece...
A confusão se tornou mais densa. A inesperada resposta do essênio me deixou atónito.
- Não sei... - balbuciei.
A verdade é que não tinha a mais remota idéia. O manto impedia qualquer identificação... Trevas, compreendendo, foi se sentar perto dos lhamas e, lentamente, retirou o roupão que o cobria. O fogo o iluminou e, quando o reconheci, senti um calafrio e entendi porque sempre se apresentava encapuzado... Era o indivíduo com o qual eu tinha conversado brevemente durante nossa primeira visita ao kan. Sofria de um mal que provocava o medo e a repulsa dos que
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o rodeavam. Era um "cara de cachorro", outro pobre doente atacado por "hipertricosis lanuginosa congénita", um hirsutismo ou abundância de cabelo duro e grosso que enfeava o rosto e, suponho, todo o corpo. As conjuntivas avermelhadas, a falta de dentes e a fibromatosis gengival (gengivas ulceradas e inflamadas) acabavam transformando-o num monstro repulsivo, mais próximo do mito do homem-lobo do que da triste realidade de uma síndrome de origem cromossomática. Por isso o chamavam "Hasok" ("Trevas" em aramaico). Dificilmente dava para vê-lo à luz do dia, e muito menos com o rosto descoberto. Aquele homem sem dúvida era a mão direita de Assi. Todos o amavam e o respeitavam. Seu coração, ignorando seu próprio problema, era amável e carinhoso. Sempre estava disposto a colaborar e a socorrer os mais fracos. No seu devido tempo, em plena vida pública do Mestre, se transformaria em outra notável "referência" para este explorador. Uma "referência" que os evangelistas também não mencionam...
Trevas agradeceu por eu não ter desviado o olhar nem dado sinal algum de horror ou de repulsa por aquele rosto doente. Sorriu com os olhos e, imediatamente, voltou a se cobrir, abaixando a cabeça.
Não sei porque fiz aquilo. Senti, talvez, uma raiva incontida contra aquela situação. Trevas não era um "endemoninhado" ou um louco. Por que vivia naquele lugar, afastado de tudo e de todos? Por que Yavé permitia semelhante injustiça?
Interroguei o essênio sobre esse particular. Desta vez fui eu quem utilizou um tom severo.
- Responde primeiro minha pergunta - replicou Assi com idêntica firmeza -. O que é que buscáveis no kari! Quem sois?
Não tive oportunidade de responder. A voz profunda de Jesus se interpôs.
- Eu já te disse, querido Assi... Eles procuravam a mim.
Foi suficiente. O auxiliador aceitou e as dúvidas se dissiparam.
O Mestre, integrado novamente em nossa realidade, foi buscar uma carga de lenha. Alimentou o fogo e se sentou, deixando que o chefe do kan respondesse às minhas questões.
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- Eu te direi o que penso, Jasão. Trevas não sofre de um mal provocado pela possessão dos espíritos imundos. Suas três almas estão em perfeito estado. É algo pior ainda...
Não consegui entender. Olhei para Jesus e me deparei com uns olhos serenos, quase cúmplices. Tive a sensação de que pediam paciência.
- ...No começo, quando veio até mim, experimentei todo tipo de remédios. O rosto de Hasok não mudou. Depois, conforme o conselho do livro dos Aforismos do grande Hipócrates, procurei a solução usando o ferro. A doença, não obstante, resistiu.
"Experimentei usando o fogo..." Estremeci.
- ...Aí acabava o meu trabalho de auxiliador. Aquilo que o fogo não cura deve ser considerado incurável.
Eu continuava não entendendo.
- Finalmente, Trevas confessou: era um balai, um filho ilegítimo de um sacerdote20. Sua mãe, uma escrava, foi violada por um desses cães do Templo de Jerusalém...
Comecei a adivinhar. O grande "pecado" de Trevas que definitivamente provocou o seu mal foi o fato de ter sido concebido numa união não autorizada por Yavé. Essa "mancha" era uma indignidade e, naturalmente, Deus castigava com crueldade extrema. Esse era o pensamento de Assi. Embora, como essênio, detestasse os sacerdotes (daí o qualificativo de "cão"), compartilhava as ideias sobre a pureza de origem. O hirsutismo do halal, em suma, explicavase perfeitamente aos olhos dos judeus: os pais pecaram (pouco importava que fora uma violação) e, conseqüentemente, o filho recebeu o castigo...
20 Como já afirmei em outra parte deste diário, a pureza da origem era uma obsessão para os judeus. A princípio, essas idéias nasciam de Yavé (Levítico 21, 7-14, e 21, 15). Qualquer filho nascido de um casamento ou de uma união entre um sacerdote e uma mulher não reconhecida como pura era classificado de "profano" (halal ou halalah). Além de não ter os direitos mais elementares, era tachado imediatamente de "pecador", e podia ser repudiado pela sociedade. Convém lembrar que os sacerdotes, levitas e israelitas de direto pleno eram os únicos "não pecadores" perante Yavé. O resto, filhos ilegítimos de sacerdotes, prosélitos, escravos emancipados, bastardos, escravos do Templo, filhos de pai desconhecido, castrados, homossexuais e hermafroditas eram lixo. (N. do M.)
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J.J. BENÍTEZ
- É esse o desejo do Santo, bendito seja o seu nome...
Fiquei mudo, olhando para eles. Não valia a pena discutir sobre aquele princípio injusto. Era isso que Yavé queria? O Deus dos judeus queria que a pureza na origem fosse prioritária? Era capaz de castigar um inocente com a doença pela suposta culpa de seus pais? Que tipo de Deus era Yavé? Procurei me acalmar. A mistura de fanatismo
religioso, erro e superstição era habitual naquele tempo e entre os crentes da Tora ou Lei judaica. A situação, especialmente desde a volta do exílio da Babilônia e a reforma de Esdras21, chegara a tais extremos que os contratos de casamento entre homens e mulheres judeus (de origem pura) só podiam ser assinados e ratificados por sacerdotes, levitas ou por outros varões que provassem sua pureza racial, ao menos em cinco gerações. Mas havia mais coisas...
Os mais fanáticos acrescentavam à história tenebrosa da pureza na origem um elemento econômico e outro, digamos, "estético" que tornavam a vida de "pecadores" como Trevas ou Aru ainda mais insuportáveis. Foi Yavé quem, desde o princípio, fixou as normas sobre curas. Só os
A obsessão de Yavé pela pureza racial, presente no Pentateuco, foi reforçada depois do exílio babilónico como conseqüência da mistura com os conquistadores. Depois da vitória de Nabucodonosor sobre Judá no ano 587 antes de Cristo, as famílias judaicas que foram desterradas acabaram aceitando os persas e, segundo Esdras, ficou ameaçada a legitimidade da origem implantada pelo Deus do Sinai. Por isso é que, seguindo as instruções do profeta (Esd. 9,1-10,44), quando voltaram da Babilónia, os judeus puros separaram-se definitivamente daqueles que haviam se "contaminado" com os pagãos. Foi daí, fundamentalmente, que nasceu o problema racial e a prova da legitimidade se transformou em moeda de uso legal. Para determinados judeus, os mais exigentes com a Lei, a pureza de origem era a garantia diante de Deus e a única possibilidade de restabelecer e conservar a nação judaica. Só eles constituíam o verdadeiro Israel. Foi nessa época, inspirados provavelmente por Esdras, que os judeus começaram a utilizar os nomes dos pais das doze tribos como designação de nomes próprios. Com o tempo, a pureza da origem se utilizou como "alavanca" para mover influências e, definitivamente, para arrematar poder e riquezas. Somente aqueles que demonstravam essa "limpeza genealógica" tinham direito a determinados
trabalhos e privilégios. Essa pureza era exigida, inclusive, dos funcionários e de todos aqueles que faziam parte dos conselhos locais ou nacionais. Obviamente, os "não puros" eram odiados por Yavé... (N. do M.)
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sacerdotes tinham essa faculdade. Se alguém, pecador, "endemoninhado" ou afetado por uma doença, desejava ser curado (ou seja, perdoado por Yavé), só tinha uma opção: ir ao Templo e, mediante pagamento, entregar-se aos cuidados da casta sacerdotal. O "negócio", como é fácil imaginar, era perfeito. O problema surgia quando o "pecador", que continuava com a doença em questão, voltava para os sacerdotes e exigia uma cura que não acontecera mediante o primeiro pagamento. O indivíduo tinha de desembolsar pela segunda vez, uma terceira, uma quarta... O cidadão não melhorava e, finalmente, o prestígio do Templo ficava abalado. Quando acontecia isso, os sacerdotes se empenhavam em incluir os recalcitrantes no submundo dos "impuros" (indivíduos que não podiam ser perdoados por Yavé), proibindo inclusive que se aproximassem do recinto sagrado. Se os "pecadores" protestavam ou se mostravam irreverentes, o conselho (pequeno sinédrio) tinha a autorização para mandar para o exílio, argumentando que "bastava a visão dos impuros para alterar o ânimo dos justos".
Não perguntei se aquele era o caso de Trevas. O que importava era que situações tão injustas conduziram à criação de guetos como o kan do Hule. Porque, em suma, era isso mesmo: um lugar escondido entre pântanos, longe dos núcleos urbanos e das consciências dos mais religiosos.
- ... É isso que Yavé quer - murmurou Assi pela segunda vez -. Este é o desejo do Santo, bendito seja seu nome...
Ele não esperou pela resposta. Levantou-se e, depois de nos desejar a paz,
foi até uma das cabanas. Hasok, Trevas, foi atrás dele. Imaginei que deviam madrugar...
Jesus, sentado com as pernas cruzadas, olhou de leve para mim. Foi como uma câimbra. Aquele olhar jamais passava desapercebido para o coração. Tínhamos ficado a sós, com a única companhia do fogo e do silêncio. E, mais uma vez, ele facilitou as coisas...
- Acreditas que o Pai quer isso?
Olhei para ele sem entender. Ele prosseguiu com a voz comedida:
- Acreditas que o Pai condena seus filhos à doença?
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- O que importa, Senhor, não é que eu acredite, e sim que eles - e apontei para a escuridão das choças - entendam. Tu tens ensinado que este Pai é amor...
Guardou silêncio durante alguns instantes. Tive a sensação de que media as palavras.
Naquele tempo, como já relatei em outras ocasiões, a doença era uma conseqüência direta do pecado, inclusive por omissão. Era uma concepção exclusivamente religiosa daquilo que hoje entendemos por doença ou patologia. Foi inventada pelos mesopotâmios22. A Bíblia está semeada por alusões a esta trágica equação: pecado = cólera divina = castigo (doença)23.
- Aquilo que tu observas, que escutas e, sobretudo aquilo no que acabas acreditando, é muito importante. Tu és um enviado. Depois quando voltares, sê fiel. Outros descobrirão a verdade por intermédio de ti. Tu és importante ou não?
Ele sorriu acolhedor. Jesus voltava a ser aquele do Hermon. Risonho, afável, comunicativo.
- Responde a minha pergunta: consideras que o Pai deseja o mal e a doença?
- Se eu tivesse um filho - respondi, um pouco angustiado -, nunca o castigaria com uma doença. Provavelmente - retifiquei -, não o castigaria...
22 A palavra mesopotâmica shertu significava ao mesmo tempo "pecado", "ira divina" e "castigo". Essa crença obrigava o médico a diagnosticar depois de submeter o paciente a um interrogatório intenso e minucioso, no qual buscava basicamente a informação sobre a possível conduta "deletéria" do sujeito. Algo parecido com a confissão dos católicos. Graças a esse "hábil interrogatório", o auxiliador estava em condições de averiguar que deus fora ofendido e por quê. No século VII antes de Cristo, na biblioteca de Assurbanipal, já existiam documentos nos quais era estabelecido o modelo que o médico devia seguir: "O pai instigou contra o filho? O filho instigou contra o pai? O amigo instigou contra o amigo? ...Disse sim quando devia dizer não? Utilizou balanças e pesos falsos? Tirou cercas, fronteiras ou estacas? Expulsou de sua família um homem honrado? ...Sua boca tem sido reta e seu coração falso?..." (N. do M.)
23 Serve como exemplo o trecho do Salmo 38: "Yavé, não me corrijas na tua repulsa, em teu furor não me castigues. Tuas flechas penetraram em mim, sobre mim abateuse tua mão; nada está ileso na minha carne, por tua ira, nada de são em meus ossos devido ao meu pecado." (N. do M.)
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E ficou flutuando na minha mente uma frase que eu não soube interpretar naqueles instantes: "quando voltares...". Por que falava no singular? Mas,
perdido na conversa, aquele "lampejo" importantíssimo se apagou e não voltei a lembrar dele..., até um tempo depois.
- Em verdade te digo, Jasáo, que estás próximo do âmago da questão. O problema é que não conheces o Pai ainda e, portanto, não sabes que as palavras "castigo" e "pecado" não são concebíveis para Ele. Sois vós que levantastes essas calúnias contra Deus.
Ele percebeu a minha confusão e me animando com um sorriso interminável, cuidou de caminhar passo a passo.
- Comecemos pelo final. O que é pecado para ti?
- Se eu fosse religioso - expliquei -, entenderia isso como uma transgressão das leis e dos preceitos divinos.
- E quais são essas leis e normas?
Ele me surpreendeu. Sabia melhor do que eu. Ele conhecia a Tora e os 613 mandamentos revelados por Moisés (365 proibições, segundo o número de dias do ano solar, e 248 ordens positivas que - diziam - correspondiam às partes do corpo humano). Não me deixou responder.
- Acreditas que o Pai ditou essas leis?
- Sempre achei que foi Yavé...
O olhar cortante me repreendeu.
- Não estou falando de Yavé, e sim do Pai, o Número Um, como diz teu irmão...
Ele me encurralou.
- Sabes qual é a única lei para o Pai?
- O amor. Isso sabemos por ti...
- E o profeta Amos resumiu isso num só mandamento: "Procuraime e vivereis". Isto é o que o Pai pede: procurá-lo. Essa é a única lei. Pois bem, dizei: que castigo pode advir do descumprimento dessa lei? Acreditas que se o homem não busca Deus é um pecador?
Ele me deixou perplexo outra vez.
- Mas, querido amigo, embora seja importante, essa não é a questão principal. O problema, como dizia, é que a inteligência humana não está
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preparada para entender a natureza do Número Um. E lógico. Lembras da borboleta na ponta daquele galho?
Assenti em silêncio. O Mestre se referia à Euprepia. oertzeni, o belo lepidóptero que pousara no galho que Jesus segurava numa das inesquecíveis noites ao redor da fogueira, no Hermon. Lembrava muito bem de suas palavras: "Dize-me, querido anjo, acreditas que esta criatura está em condições de compreender que um deus, seu deus, a está segurando?"
- Não (disseste), a distância é grande demais... E o Mestre continuou abrindo caminho.
- ...Correto. Há uma distância tão imensa que nenhuma mente humana pode suspeitar como é o Pai. O finito (tu sabes muito bem) não abarca o infinito. Enquanto viverdes submergidos no tempo e no espaço, não podereis intuir sequer o que existe mais além, nas regiões do espírito.
Jesus aliviou a tensão. Apontou para o firmamento negro e cintilan
te e perguntou:
- A mente de Aru poderia captar a ordem que rege as estrelas? E, se não é assim, como aceitar que possa ofendê-las? Por que sois tão vaidosos e convencidos? Se nem compreendeis Deus, como vos atreveis a colocá-lo no vosso nível? Como é possível que o julgueis capacitado para ser ofendido e para castigar?
Não pisquei. O Mestre foi categórico.
- ...Pecar? Achas de verdade que uma criatura finita pode molestar, injuriar ou provocar Deus? Acreditas que Deus é humano?
-Tu, sem dúvida, tens falado (e falarás) do pecado e dos pecadores...
- Eu vos disse uma vez: quando chegar a minha hora, falarei como educador. Tu, melhor que ninguém, deverias entender o que digo. Haverá momentos em que minhas palavras deverão ser tomadas como uma aproximação da realidade. Estes - acrescentou, referindo-se aos habitantes do kan - são a conseqüência de uma época. Só conhecem uma linguagem... Vós, por outro lado, estais mais próximos...
Eu o interrompi. O assunto do "pecado" me mantinha perplexo. Nunca fui um homem religioso e, de certo modo, a postura do Galileu me satisfazia. Mas...
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- Se o pecado não existe, ao menos como ofensa ao Pai, o que acontece com os assassinos, ladrões etc.? Não são pecadores?
O Filho do Homem esperava a pergunta. Esboçou um meio sorriso e negou com a cabeça.
- Uma coisa é tentar ofender o Pai (impossível, como tenho dito) e outra muito diferente é causar o mal a teus irmãos, os seres humanos. Quando
alguém descumpre as leis, está infringindo as normas regidas entre os homens. Não confundas este pecado com o outro...
- Mas, no final das contas, Deus castiga estes pecadores, digamos, "de segunda categoria"...
- Novo erro, querido Jasáo. O Pai é amor. Já falamos isso. Se o pecado não faz parte da consciência de Deus, e assim é, por que pensar que é um juiz que castiga? Nem pecado nem castigo são conceitos compreensíveis para o amor. E Ele, teu Pai, é o Número Um, é o amor...
- Eu sei, com maiúsculas.
- Acreditas então que ele deseja e envia a doença? Silêncio.
- Podes admitir que uma pessoa enamorada nem consiga imaginar como ofender e castigar seu amado ou amada?
Jesus permitiu que as idéias planassem sobre o meu coração. Depois, pausadamente, foi descendo...
- O Pai (não Yavé) não faz contas. Eu já te disse: confia. Agora estais cegos, mas algum dia se fará a luz em vossas inteligências. Tudo obedece a uma ordem, inclusive a maldade.
A palavra "ordem" se propagou solene em meu interior. Aquilo era novo para mim. Demasiado novo...
- Tu sabes muito bem, Jasão. A doença não é um castigo divino. Sua origem é outra. A doença só existe nos mundos materiais. Faz parte do processo natural. Mas como explicar isto a estes pequeninos? Será que vós poderíeis fazer isso?
- Precisam de tempo - murmurei com tristeza.
- E vós também... Confia, querido amigo. Só se pede isso de vós:
confiança. No amor não há restos.
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J.J. BENÍTEZ
- Então, Yavé... quem é?
- Melhor dizendo, quem foi?...
EspereHntrigado. O Mestre se perdeu no crepitar das chamas e permaneceu assim durante um tempo que me pareceu interminável. Eu me arrependi da pergunta. Talvez não fosse oportuna. Finalmente, voltando para mim, explicou:
- Este é outro momento no qual minhas palavras só podem se aproximar da tua realidade. Digamos que foi um "instrumento"...
- Tu queres dizer que não era Deus?
Não respondeu. Seu olhar buscou de novo as brasas da fogueira e quem escreve acreditou "ler" no silêncio.
- Por que tanta confusão?
O Mestre voltou a negar com a cabeça. Em parte compreendi sua impotência na hora de transmitir idéias.
- Eu já te disse. Tudo obedece a uma ordem. Nada é por acaso. Aquilo que tu julgas confusão é falta de perspectiva. Acabas de ser imaginado por Ele. Acabas de aparecer como criatura mortal. Tudo te parece confuso. És um recém-chegado. Confia e receberás a informação..., no momento adequado. Estes concebem Deus como um juiz e acreditam que o ideal é a total submissão aos preceitos. A justiça divina (para estes) é algo lógico. No futuro, graças a mensageiros como tu, isto mudará. O mundo lembrará minhas palavras. Reconhecerá o verdadeiro rosto deste Deus-Pai e, simplesmente, irá ao seu encontro...
- Um momento - interrompi -, estás dizendo que algum dia, no futuro, a justiça divina desaparecerá? Não é fácil conceber um Deus sem justiça...
- Agora é assim. Esta é a ordem daquilo que te falei. O amanhecer chega sempre depois da escuridão. Mas haverá uma manhã e o mundo descobrirá que o Deus justiceiro (como Yavé) faz parte de um tempo passado. Tu és mais: dir-te-ei algo que já deverias saber...
Ele me observou divertido.
- O Pai nunca foi justo...
E o Mestre, compreendendo minha estranheza, suavizou a afirmação:
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- Assim como acontece com o conceito de pecado, sois vós homens que decidistes que Deus faz justiça...
- E não é o justo?
- O amor não precisa da justiça. Insisto: é o ser humano que se empenha em fazer Deus à sua imagem e semelhança. Eu disse em certa ocasião que a justiça divina é tão eternamente justa que inclui inevitavelmente o perdão compreensivo. Agora, no silêncio deste lugar, te digo que minhas palavras são insuficientes. Agora, e para ti, meu querido mensageiro, te digo que o Pai jamais precisou da justiça. Se o pecado, como a ofensa à divindade, não faz parte da consciência de Deus, de onde vem a justiça? Compreendes o porquê das minhas palavras? Compreendes quando digo que Deus nunca foi justo?
- Permite, Senhor, que eu volte atrás. Se o Pai não precisa da justiça, o que fazemos com os maus? Quem os julga? Como e onde pagam suas
atrocidades?
O Filho do Homem deu um profundo suspiro. Seus olhos, longe de repreender, me acolheram com doçura. E tentou descer até a minha realidade, mais uma vez...
- Este é um lugar especial - associei suas palavras ao kan (erro grave) -. Aqui, por desejo expresso da divindade, tudo é autorizado: o mais nobre e o mais baixo. Mas isso, Jasão, não significa que a criação tenha escapado das mãos do Pai. Eu te disse: nada escapa do amor do Número Um. A maldade, inclusive, faz parte do jogo...
Certamente eu não prestava atenção suficiente. E, como um tonto, insisti...
- Mas quem faz justiça? Quem pede contas?
- Já falamos disso também. Depois da morte, ninguém julga. O amor nunca julga. Sê paciente e confia. Existe uma ordem que tu mal imaginas...
- Então o que devemos fazer?
Jesus respondeu com uma só palavra:
- YedaL. Dar graças!
Assim terminou aquele dia intenso.
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DE 19 A 22 DE SETEMBRO
Aquele novo dia, tão claro como o anterior, nasceu por volta de 5 horas e 16 minutos.
No início não entendi o motivo do corre-corre de Assi e de sua gente. Eles andavam de um lado para o outro. Entravam e saíam das cabanas e se interpelavam aos gritos. Foi Eliseu quem me informou:
- Aru, o negro, desapareceu...
Minutos depois, Jesus retomava a caminhada. O essênio desculpouse com o Mestre. O jovem "tatuado" tinha desaparecido com o manto que o Galileu lhe emprestara. Era a primeira vez que isso ocorria, se bem que, pensando melhor, era a primeira vez também que o demente amanhecia
sem as correntes...
Não me pareceu tão estranho. Eu também teria fugido daquele inferno... O Mestre não fez nenhum comentário. Despediu-se do kan e o vimos afastarse, com suas passadas típicas, em direção à estrada principal.
Tudo transcorreu bem, sem incidentes, até chegarmos à encruzilhada de Qazrin. Devia ser umas sete horas da manhã, mais ou menos. O Mestre seguia sozinho. E nós íamos um pouco atrás, caminhando em silêncio. Cada um, suponho, absorvido em seus pensamentos.
Eu não podia deixar de pensar na checagem dos medicamentos que tínhamos feito bem na noite anterior. Como já disse, não tínhamos uma pastilha sequer de dimetilglicina, o antioxidante usado para inibir o óxido nitroso que ameaçava nossas vidas.
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No acampamento do monte Hermon, misteriosamente, como sempre, ele procurou me acalmar. No entanto... Eu estava cheio de dúvidas. Não sabíamos para onde ele estava indo, mas suspeitávamos que pretendia chegar ao yctm ou mar de Tiberíades nesse mesmo dia. Não perguntamos nada, nem Eliseu nem eu.
A caminhada tranqüila foi interrompida subitamente quando avistamos a
pousada de Sitio, o homossexual de Pompéia. A uns cinqüenta metros destes exploradores, o Mestre se deteve. Meu irmão e eu fizemos o mesmo. O que estaria acontecendo?
No mesmo instante, à nossa esquerda, junto ao muro de três metros de altura que circundava a hospedaria, distinguimos um indivíduo que corria em direção ao Filho do Homem. Não foi preciso dizer nada. Nós, simplesmente, nos precipitamos para junto do Mestre. Porém, no meio do caminho, tive a impressão de reconhecer o rapaz. "Não é possível", disse a mim mesmo.
O indivíduo aproximou-se de Jesus e, sem se deter, atirou-se aos pés do Galileu e abraçou-se a eles.
Eliseu e este que escreve, esbaforidos e desconcertados, diminuímos o ritmo. Quando cheguei perto de nosso amigo, vi que eu estava certo. Era o negro "tatuado"! Nem Eliseu nem eu compreendemos nada.
O rapaz, agarrado às sandálias de Jesus, gritava e chorava desconsolado. E não parava de repetir em um péssimo aramaico:
- Aru! AruL. Olha! Olha!... Eu, teu escravo!... Eu, para ti!...
O Mestre abaixou-se e, com firmeza, sem dizer nada, obrigou o louco a se recompor. Louco? Examinei-o detidamente e ele não me pareceu doente. Apenas suplicava, entre lágrimas, que Jesus aceitasse ser seu novo amo. Como já disse, Aru era escravo de Assi, o essênio. Um escravo pagão.
No mesmo instante, ele despiu o manto cor vinho que estava vestindo e entregou-o ao seu proprietário. Aru ficou nu. Meu olhar percorreu o corpo belo e musculoso, e se deteve em algo que me pareceu estranho. As feridas do tornozelo esquerdo, provocadas pelo grilhão, tinham desaparecido. E aquela idéia que me assaltara no kan do Hule veio a minha mente de novo...
O Mestre, sorridente, aceitou a entrega do manto e, como resposta, abraçou o jovem.
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J.j. BENÍTEZ
Meu companheiro e eu nos olhamos atónitos. Será que aquele gesto significava que Jesus aceitava o negro como escravo? Rechacei a idéia. Isso era absurdo... Observei o rosto do Filho do Homem. Continuava radiante. Os braços fortes envolviam o jovem, consolando-o. Então, nossos olhares se cruzaram e Jesus me deu uma piscada. Senti um calafrio. Provavelmente, era a resposta à antiga suspeita de que, como eu estava dizendo, surgira nos pântanos. Foi assim que interpretei...
Nesse meio tempo, enquanto as lágrimas e lamentos de Aru iam cedendo, alguns vendedores que estavam encostados no muro negro de basalto em torno do mutatio ou albergue foram se aproximando. Vinham cheios de curiosidade. Tinham assistido à cena e, intrigados, queriam averiguar o que estava se passando em seus domínios. Como já disse, eles eram, em sua maioria, felah ou camponeses da aldeia de Qazrin e arredores. Todas as manhãs desciam à encruzilhada e instalavam suas tendinhas à beira da estrada movimentada. Passavam o dia ali, oferecendo aos gritos frutas, verduras, cerveja, guisados de carne e peixe e, principalmente, os doces típicos da região: o "chocolate" de keratia, a semente do haruv ou algarobo, grãos açucarados e ricos em cálcio. Outro dos fracos do Mestre...
Primeiro murmuraram. Depois, de forma mais ostensiva, aproximaram-se do negro e, apontando para ele, o identificaram. Então começaram os gritos, os insultos, as maldições e os lamentos. A situação se complicou. Os demais vendedores, alertados pelos que tinham reconhecido Aru, juntaram-se ao grupo inicial, confirmando sua identidade, o que aumentou ainda mais o vozerio e a confusão. Segundo meu cálculo, somando mulheres e crianças, os felah não eram menos do
que quarenta ou cinqüenta.
Eliseu olhou para mim. Eu não sabia o que fazer. O Mestre, com o manto nas mãos, parecia tão perplexo quanto nós.
- É o ruah - repetiam ameaçadores. - É o diabo do kan
De fato, ruah era um termo utilizado para designar um tipo de espírito ou demónio (provavelmente trazido da Babilónia) que se distinguia por ser particularmente mau e feroz.
Entendi. Estávamos a uns seis quilómetros do kan dos loucos, e aquela gente, que conhecia os "inquilinos" do refugio de Assi, descobriu
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que o negro era o selvagem ruah que vivia acorrentado. E, naturalmente, todos se perguntavam como tinha escapado.
Aru, assustado, deu um passo para trás. As mulheres, aos berros, recolheram as crianças, e com suas túnicas amplas e coloridas ao vento, fugiram para a encruzilhada. Outras foram em direção ao pátio em torno da pousada, sempre correndo e gritando por socorro.
Os homens, contagiados por aquele pânico supersticioso, imitaram as mulheres, mas apenas momentaneamente. A poucos passos, instigados por três ou quatro felah mais audaciosos, reagiram. Voltaram a fustigar o "demónio tatuado", e avançando lentamente, aproximaram-se de nós. Os que marchavam à frente ergueram as pedras que tinham nas mãos prestes a nos apedrejar.
Instintivamente, coloquei os dedos na parte superior da "vara de Moisés", e acariciei a cabeça do cravo de cobre que ativava o sistema de defesa dos ultrassons.
Não foi necessário. Os gritos e o avanço ameaçador da turba acabaram por despertar o assustado Aru. De um salto, desvencilhou-se do Mestre e correu como um gamo para o pátio pavimentado. Depois de alguns segundos, desapareceu atrás da muralha que protegia a pousada. Os gritos e ameaças dos vendedores recrudesceram, e eles saíram em debandada atrás do "demónio".
Permanecemos imóveis. Os homens passaram por nós sem sequer nos dirigir um olhar, e se dispersaram pelo pórtico. Então Jesus guardou o manto no saco de viagem e, com seu mutismo habitual, entrou no albergue.
A reação do Galileu nos deixou desconcertados. Aquilo podia se complicar ainda mais. Eliseu foi atrás. Eu dei uma olhada ao redor e, depois de comprovar que a rua estava deserta, segui os passos de meu companheiro.
Os vendedores agora formavam um círculo fechado no centro da esplanada. Continuavam com os punhos erguidos, vociferando e blasfemando.
Temi pelo pior. Com certeza, Aru estava sendo encurralado e acossado. O que fazer? Nada. Essas eram as normas do "Cavalo de Tróia". Não podíamos intervir. Apenas observar...
O Mestre contornou a transtornada quadrilha defelab e, sem hesitar um instante, continuou caminhando em direção ao arco de entrada da
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j.). BENÍTEZ
pousada propriamente dita. Parecia conhecer o lugar. Pelo menos, essa foi nossa primeira impressão.
Sem saber que decisão tomar, me deixei conduzir pelo instinto. Eliseu abriu passagem entre os camponeses e eu fiz o mesmo. A verdade é que
não me agradava a idéia de que Aru fosse apedrejado.
E o Destino, mais uma vez, zombou deste que escreve...
Entre os felah, pálido, sem saber quem ouvir, encontramos um velho conhecido: Sitio, o homossexual dono da pousada onde havíamos pernoitado no caminho para Hermon. Vestia uma vaporosa túnica de seda azul que realçava o rosto estreito e ossudo e a cabeça totalmente descoberta. Na mão direita brilhava uma faca longa e afiada. Do negro, nem sinal...
Os felah, todos ao mesmo tempo, exigiam a devolução do ruah. Sitio, sem entender, pedia calma. As mulheres o haviam alertado e agora, em meio àquela balbúrdia, tentava descobrir o motivo da súbita invasão. Passaram-se alguns minutos. Finalmente, sua voz se sobrepôs ao tumulto, e ele assumiu o controle da situação. Os vendedores cederam e um deles explicou o motivo da revolta.
- Aru? - perguntou por sua vez Sitio, sem dar crédito ao que ouvia. -Aqui? Impossível. Ele está acorrentado...
Os protestos recrudesceram. Então, resignado, Sitio deu por encerrada a discussão e autorizou que revistassem a pousada.
Foi só nesse momento, depois que todos se dispersaram, que Sitio notou a presença daqueles dois indivíduos, até então camuflados entre os felah. Reconheceu-nos de imediato. E, atordoado - ou deveria dizer "atordoada"? -, veio logo nos cumprimentar, desculpando-se pela recepção inadequada e, principalmente, por não ter tido tempo de se maquiar. Eliseu e eu trocamos um olhar de cumplicidade. Lembrávamos muito bem do primeiro encontro - mais que um encontro, uma "aparição" -, a peruca loura, as castanholas, a dança grotesca com que nos recebeu naquele mesmo pátio e o espantoso vermelho escuro dos lábios. Mas, acima de tudo, Sitio era gentil e
atencioso. Disso também não havíamos nos esquecido.
Esperou que os vendedores encerrassem as buscas. Ninguém encontrou o "demónio do kan". Que fim levara esse negro enigmático? Nesse
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meio tempo, enquanto osfelah andavam de um lado para o outro, Eliseu colocou-o a par do que ocorrera no kan, silenciando sabiamente sobre a presença de Jesus na pousada.
- Assi libertou esse "endemoninhado"?
Como já havia demonstrado na primeira visita, Sitio conhecia bem os moradores da região. O essênio era um velho amigo e, como era de se esperar, não aceitou facilmente a versão de meu irmão.
- Não pode ser... Assi sabe que esse negro é perigoso. Tem a força de dez homens e está louco. Eu jamais o deixaria livre...
- Mas foi o que aconteceu - acrescentei, confirmando as palavras de Eliseu.
Sitio compreendeu que não ganhávamos nada dizendo isso. Além do mais, o comportamento dos outros, osfelah, não era normal. E gaguejando, porque estava começando a ficar amedrontado, perguntou quase que para si mesmo:
- Então, ele está aqui, na minha pousada? Não soubemos responder. Não tínhamos idéia.
- E de quem tu achas que foi a idéia brilhante de soltar a corrente de Aru?
- De Jesus de Nazaré - respondeu Eliseu, atento à reação do pompeano, que transpirava cada vez mais.
No primeiro encontro, tínhamos falado sobre ele, mas, até então, o Mestre era um ilustre desconhecido. Sitio não podia acreditar no que dizíamos, porém, intrigado com nosso interesse pelo Galileu, prometeu investigar e, sobretudo, caso encontrasse com ele, fazer-lhe uma pergunta muito concreta: "És como Hillel1". Como já disse também, o homossexual era um fervoro
Hillel ou Hilel foi um dos jajamin, ou intérpretes da Lei mosaica, mais célebres de Israel. Nasceu na Babilónia (e por isso era chamado de "o Babilónico"). Sua família era tão pobre que retornou a Jerusalém a pé. Durante muitos anos trabalhou como jornaleiro, recebendo um teroppaiq por dia (meio denário). Com isso alimentava sua família e podia freqüentar as escolas ou casas de estudo. Certa vez - segundo o relato de Misná -, não dispondo do dinheiro necessário para entrar na aula, foi obrigado a ficar ouvindo da janela. A neve e o frio quase acabaram com ele. Juntamente com
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só admirador desse sábio judeu. Boa parte das paredes do interior da pousada estava coberta de pranchas de madeira de todo tamanho, pintadas ou gravadas a fogo, onde se liam frases, ditos e adágios particularmente profundos e sutis. Sitio, apesar de sua vida tumultuada, ainda buscava a verdade...
- Jesus de Nazaré? Sitio se recordou.
- O carpinteiro!... Vós tínheis interesse em conhecê-lo. Assentimos com um gesto.
- E quem é ele para agir de forma tão irresponsável? Continuamos em silêncio.
Sitio exigia uma explicação. Mas nós, simplesmente, não sabíamos o que
dizer. Nem meu irmão nem eu tínhamos a menor idéia do que havia ocorrido. Imaginávamos que o gesto de Jesus, ao libertar o negro, se devia à bondade daquele Homem maravilhoso. Não era só isso. Mas falarei a respeito no momento oportuno...
- Pergunta tu mesmo a ele...
Minha resposta, acompanhada de um sorriso sugestivo, iluminou o rosto descarnado de Sitio. Indicou com a faca a entrada da pousada e, arqueando as sobrancelhas, exclamou:
- Está aqui?
Não esperou mais nada. Ignorou os felah que já iam saindo pelo pórtico do albergue. As coisas pareciam estar voltando ao notmal. E, chacoalhando as cadeiras e as mãos despudoradamente como de costume, dirigiu-se à peça que funcionava como cozinha e refeitório.
Comecei a tremer. O que ele tinha em mente? Será que Aru estava lá dentro? Descartei essa possibilidade. Se estivesse, os vendedores o teriam encontrado.
Sammay, que também era rabino, formou uma das mais célebres duplas ou "pares" da sabedoria judaica da época. Faleceu, provavelmente, por volta do ano 20 de nossa era. Jesus chegou a conhecê-lo em sua famosa escapada ao Templo quando tinha apenas treze anos de idade.
Hillel se destacou por sua humildade e por sua grandeza moral e intelectual. A chave da Lei ou Tora - segundo o Babilónico - estava no espírito, não nos detalhes. (N. do M.)
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O mau cheiro e a imundície me fizeram lembrar onde estávamos. A pousada de Sitio, como já disse, não primava propriamente pelo esmero. A sala retangular, pessimamente ventilada por duas janelinhas, conservava o fedor e a desordem de um mês atrás, quando decidimos fazer uma parada no caminho para as montanhas do Hermon. Precisei de alguns segundos para me acostumar à penumbra. Havia uma lamparina em cada uma das duas mesas escuras e ensebadas de pinho carrasco, dispostas uma ao lado da outra no centro da cozinha-refeitório.
Aparentemente, o lugar estava deserto. Essa foi a primeira impressão. Mas logo em seguida, enquanto a anfitriã remexia entre as vasilhas, distingui uma ténue luz amarela de outra lamparina. Ela tremulava na escuridão quase absoluta em um dos cantos, na parede que se erguia à nossa esquerda. Eliseu e eu, sem saber que atitude tomar, continuávamos imóveis sob o arco da entrada.
Sitio destampou um dos cinco barris que formavam o típico balcão daquelas pousadas e das tabernas em geral e encheu uma jarra com um vinho tinto espesso. Fez um sinal indicando-nos uma das mesas. Obedecemos, e nos sentamos à que ficava mais próxima da parede onde a luzinha continuava tremulando. Eliseu me alertou:
-É ele...
E era mesmo. Quando saiu do lugar, distingui a silhueta corpulenta e familiar do Filho do Homem. Ele segurava a lamparina na mão esquerda, que subia e descia ao longo do muro. Entendi. Jesus estava absorvido na leitura das inscrições que Sitio pendurara em três paredes. Lembro que na visita anterior consegui ler umas trinta, a maioria em grego internacional (coiné) e aramaico. Algumas eram de Hillel. Era justamente uma dessas tabuletas que eu carregava no meu saco de viagem, presente de Sitio. "Eu acreditava não ter nada - dizia a frase -, porém, ao descobrir a
esperança, compreendi que tinha tudo."
Recusamos o vinho. Ainda era muito cedo para nós. Sítio, que ainda tremia, esvaziou o copo e ficou contemplando os movimentos pausados do carpinteiro.
- Não é possível - sussurrou -. Deve ter alguma coisa errada. Assi jamais permitira que soltassem esse possesso. Se ele matar alguém...
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Encheu o copo de novo e, sem esperar resposta, continuou falando baixinho.
- Em Roma, isso não teria acontecido... Com certeza, se eu conseguir agarrá-lo, vou devolvê-lo ao seu legítimo dono2.
Sitio provavelmente não ignorava que a Lei protegia o escravo fugido. O Deuteronômio (23, 16-18) diz claramente: "Não entregarás ao seu amo o escravo que tenha recorrido a ti fugindo dele. Permanecerá contigo, entre os teus, no lugar que escolher em uma de tuas cidades, onde lhe pa
2 Ainda pretendo dedicar um espaço ao doloroso fenómeno da escravidão nos tempos de Jesus, em particular aos escravos judeus, mas creio que é oportuno esclarecer, aqui e agora, que Yavé autorizava e protegia a escravidão. Os testemunhos nos supostos livros sagrados (Êxodo 20,10e23,12, e Deuteronômio 23,16, dentre outros) são eloqüentes. Entretanto, se a situação dos servos ou ebed israelitas era lamentável, a dos pagãos era ainda pior. Segundo as informações de que dispomos, na província romana de Judéia, sob o mandato de Tibério, o número de escravos era estimado em quinhentos mil. Em Jerusalém, por exemplo, era rara a família que não tinha vários ebed (chamados eufemisticamente de "servos"). Em outras regiões do Mediterrâneo, essa população de escravos era ainda maior. (No caso de
Ática, na Grécia, o censo do ano 309 antes de Cristo apontou o seguinte resultado: 21 mil homens adultos livres e quatrocentos mil escravos.) Esses infelizes, que se costumava comprar nos mercados, eram vistos em geral como "ferramentas", sem qualquer direito, exceto os que se convertiam ao judaísmo. Varrâo pregava que "o escravo era uma coisa que sabia falar". Para os judeus, os ebed não convertidos à sua religião só tinham direito a um dia de descanso por semana, como os animais. Nada do que eventualmente possuíssem era seu, nem mesmo o que encontravam na rua. Não precisavam submeter-se à circuncisão contra sua vontade, mas se depois de doze meses de escravidão continuassem pagãos, a Lei obrigava a que fossem vendidos a náo-judeus. Essa mesma Lei mosaica proibia a tortura ou a morte dos escravos, mas, ao mesmo tempo, incentivava os amos a utilizar o castigo: "Faz trabalhar o servo - diz o Eclesiástico -, e encontrarás descanso, mas se deixas livres suas mãos, ele buscará a liberdade. Jugo e correntes o domarão, ao mau criado torturas e inquisições..., se não obedece, enche seus pés de grilhões".
Naturalmente, o tratamento dado aos ebed dependia sempre da bondade do dono e de seu grau de reverência a Yavé. A liberdade podia vir a qualquer momento, conforme a vontade ou os interesses do proprietário, como também o abuso. Era o caso das mulheres escravas. Quase sempre eram compradas como objetos sexuais para os homens da casa. Se uma dessas ebed tinha um filho, este era considerado automaticamente como mais um escravo. Se o amo desejasse ou necessitasse, os escravos eram dados de presente ou
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recer melhor; não o molestarás." Eu o adverti para isso, mas ele fugiu do assunto, argumentando que "não concordava com essa falsa lei judaica".
- Como pompeano e como cidadão romano...
Não conseguiu concluir a frase. Do fundo, com a chama amarela na mão, destacou-se a figura do Mestre. Caminhou até a mesa e, ao se aproximar de Sitio, colocou a lamparina do lado da jarra de barro. Foram apenas dois ou três segundos. Jesus olhou fixamente para o homossexual. Era um olhar tão intenso quanto acolhedor. Sem palavras. Sitio, com sua sensibilidade aguçadíssima, deve ter notado a força daqueles olhos. Notei que estava nervoso, piscando sem parar. Tentou dizer alguma coisa. Impossível. Seu rosto empalideceu novamente. E Jesus, ainda olhando nos olhos do perplexo anfitrião, disse:
- Vamos..., temos de seguir viagem.
Eliseu e eu nos levantamos, dispostos a reiniciar a caminhada. Subitamente, deixando o copo sobre a mesa de pinho, Sitio ergueu-se e perguntou:
- Es como Hiller, o sábio?...
Hesitou um pouco, mas amparando-se na luz dos olhos do Galileu, concluiu o que pretendia dizer.
- ...Estes gregos garantem que és muito mais.
Nós não tínhamos dito isso, mas deixamos passar. Ele tinha razão.
O Mestre aproximou-se e colocou as mãos sobre os ombros de Sitio. O dono da pousada ficou sem reação. Aquele gesto típico e afetuoso deixouo desarmado. Deu um sorriso breve e, tocado pela cordialidade daquele Homem, imagino, baixou os olhos enrubescendo.
- Não, amigo, não sou como Hillel... - respondeu o Mestre com doçura.
Sacudiu levemente os ombros do homossexual, solicitando toda a atenção
do ruborizado Sitio. O "homem" obedeceu prontamente e retribuiu o olhar.
utilizados como garantia. Não tinham direito a herdar, embora fizessem parte da herança familiar. Tampouco podiam testemunhar perante um juiz. Se uma mulher escrava "náojudia" ganhava a liberdade, imediatamente era tachada de prostituta. Todo mundo sabia qual era seu destino: a rua ou os bordéis. (N. do M.)
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- Sou a esperança...
E apontando com a mão esquerda para a parede atrás de si, acrescentou:
- ...A que te falta agora...
Aconteceu de novo. Nunca me acostumei com isso. Como ele podia saber que faltava uma tabuleta de madeira naquela parede? Casualmente (?), a que falava da esperança, e que estava guardada na minha mochila...
E desviando os olhos para este atónito explorador, deu-me uma piscada.
- Sim - balbuciou Sitio -, tens razão. Mas, dize-me, como posso recuperála?
- A esperança, querido amigo, sempre estará contigo. Agora está adormecida. Qualquer dia ela despertará...
- Qualquer dia? - protestou Sitio, impaciente. - Quando?
- Ainda não chegou a minha hora...
- Mas, quem és tu?
-Já te disse: sou a esperança. Quem me conhece confia...
- Quero conhecer-te melhor...
Jesus, comovido, concordou em parte com o pedido.
- Se tu desejas tanto...
Sitio incentivou o Mestre com vários movimentos afirmativos de cabeça. O magnetismo daquele Homem o havia cativado definitivamente...
- ...procura Aru. A esperança está com ele. -Aru?
- Depois, quando ouvires dizer que o Filho do Homem está entre vós, procura-me, se ainda desejares...
O albergueiro não compreendeu.
- Procura-me - insistiu o Galileu - e, juntos, despertaremos a esperança...
- O Filho do Homem? Quem és tu? Onde o encontrarei?
Jesus pegou o saco de viagem. Sorriu de novo para Sitio e, antes de se dirigir para a porta, lembrou a ele e também a nós:
- Ainda não chegou minha hora...
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E o dono da pousada permaneceu ali, desconcertado. O que ele quis dizer ao referir-se ao "negro tatuado"? Por que a esperança estava com ele? Por que não se identificou mais claramente? Por que sugeriu a Sitio que o procurasse mais tarde, quando se tornasse conhecido por aquelas pessoas como o Filho do Homem. Não consegui responder e decidi aguardar. Era a única coisa que podia fazer. Ele sabia...
Só uma hora depois, mais ou menos na terça (nove horas da manhã, aproximadamente), Eliseu rompeu o silêncio. Estávamos na encruzilhada
de Jaraba, local onde o menino surdo-mudo - Denário - teve a má sorte de ser derrubado por um dos asnos núbios de Azzam, o árabe que traficava o apreciado vinho de zimbro. Segundo meus cálculos, faltavam duas horas e meia para avistarmos a superfície prateada do yam, admitindo que Jesus estivesse indo em direção ao mar de Tiberíades...
Ao passar por outro ajuntamento de vendedores, meu irmão e eu abaixamos a cabeça para que eles não nos reconhecessem. O incidente ocorrido não fazia muito tempo naquela paragem, quando fui obrigado a deixar três camponeses inconscientes, foi bem desagradável. Se alguém se lembrasse de nós, poderíamos ter problemas de novo. Não aconteceu nada.
E quando já estávamos deixando para trás quase todos osfelah, Eliseu, como eu disse, fez uma pergunta ao Galileu. A pergunta, tão inesperada e audaz, me deixou mudo. Eu jamais me atreveria a tocar nesse tema. Mas Eliseu era assim, e, de algum modo, fiquei agradecido. Hoje sei mais graças a ele...
- Dize-me, Senhor, como explicar a homossexualidade em um reino tão perfeito como o do Pai?
Entre curioso e um pouco irritado, aguardei a resposta do Mestre. Jesus, porém, como se não tivesse ouvido, continuou andando, escoltado por estes dois exploradores cheios de expectativa.
Eu compreendia as dúvidas de Eliseu. Sitio, além de pagão, era homossexual. Isto é, duplamente passível de culpa aos olhos dos ortodoxos e estritos observadores da Lei de Moisés. Yavé os condenava sem concessões. A sodomia, abordada no Génese (corrupção em Sodoma), era motivo de suplício. A união com o varão (como confirma o tratado Yebamot, cap. 8) era um crime que merecia ser punido com a morte.
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E o pior é que a Lei mosaica e as tradições orais judaicas juntavam no mesmo "saco" e no mesmo conceito eunucos, afeminados, andróginos (indivíduos de dois sexos), castrados e pessoas de sexo duvidoso. O Deuteronômio (Yavé, em última análise) proclamava claramente: "A mulher não se vestirá como homem, nem o homem se vestirá como mulher, porque quem o faz é abominação a Yavé, teu Deus" (22.5). (Os judeus incluíram isso entre os 365 preceitos negativos que todos deviam evitar.) O desprezo dos rigoristas era tal que chegaram a incluí-los em uma lista na qual, obviamente, ocupavam os últimos lugares (ver Tos. Meg. II, 7). Os primeiros - os mais dignos - eram os sacerdotes, levitas e israelitas de pleno direito (nessa ordem), seguidos dos prosélitos, escravos emancipados, filhos ilegítimos de sacerdotes, escravos do Templo, bastardos e, por último, os homossexuais, incluindo os castrados, tumtôm (indivíduos com as partes sexuais ocultas) e hermafroditas. Yavé - segundo o Pentateuco - maldizia-os, e rechaçava inclusive aqueles cujos órgãos sexuais tinham sido esmagados ou amputados (Deuteronômio 23, l)3. Essa condição de homossexual, andrógino etc. significa ficar marcado para sempre como "pecador". Eram suspeitos de relações sexuais "não autorizadas" e, conseqüentemente, candidatos à pena capital, como proclamam os Livros Sibilinos. A pior situação era a dos hermafroditas4. Eles eram considerados monstros de feira e repudiados em seu duplo papel de afeminado e mulher. Sobre eles pesava a impureza do sémen e do sangue menstrual. Eis o que diz a Misná (tratado Bikkurim) sobre isso: "Os andróginos se contaminam com o branco [esperma], como os
3 Segundo as escolas rabínicas, os eunucos a que Yavé se refere eram os eunucos castrados pelas mãos do homem. Segundo a Bíblia, eles não podiam pertencer à comunidade de Israel. Eram igualmente amaldiçoados. Não participavam do sinédrio
nem dos tribunais de justiça. (N. do M.)
4 Hermafrodito foi um personagem mitológico, filho de Hermes e Afrodite, ou Vénus, que era dos dois sexos. A presença de um e de outro sexo, com órgãos genitais internos e externos geralmente ambíguos, provoca estados patológicos de intersexualidade. (N. do M.)
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varões, e com o vermelho [menstruação], como as mulheres... Podem trazer as primíciais [ao Templo], mas não podem fazer a oração, já que não podem dizer: "Que tu, Senhor, me deste." (Deuteronômio 26, 10). Segundo a Lei, "não podiam ficar sozinhos com os homens, como as mulheres, nem sozinhos com as mulheres, como os varões". Não recebiam herança, como as mulheres. Nem estavam habilitados a depor em um tribunal ou a comer coisas santas, do mesmo modo que as fêmeas. Não eram nada.
Portanto, Jesus começava a marcar posição. Chamar de "amigo" um homossexual era um precedente que não deviríamos esquecer. Ainda estávamos no ano 25...
Nesse instante ele fez um desvio e tomou a margem esquerda do caminho. Ali, sobre a cinza, entre enormes cestos de folha de palma, um velho badawi (beduíno) aguardava sentado. Era um vendedor de uva.
O Mestre olhou atentamente para os cachos amontoados. Havia ali as famosas uvas da alta Galiléia, particularmente das regiões de Batra e Rafid. Eram uvas de um vermelho aveludado, chamadas de aríje, cultivadas em cepas de um metro de altura. E havia também uvas originárias da África, igualmente enormes, negras e lustrosas como o azeviche. Distingui ainda as verdes e brancas, do tipo albilho e abehar, umas de casca fina e outras de casca grossa, dulcíssimas...
O nómade, animado com a presença daqueles possíveis compradores, espantou os bandos de vespas que zumbiam sobre os cestos, e com um forte sotaque aramaico incentivou o cliente mais próximo - no caso Jesus - a provar a mercadoria.
- ...As anavim (uvas) são um presente dos deuses - disse -. Além disso, clareiam a pele. Vão iluminar teu rosto...
Jesus deslizou a mão esquerda sobre uns cachos brancos com pintas pretas e, depois de vacilar um pouco, arrancou uma das uvas. Ergueu-a e olhou-a contra o sol, constatando admirado a textura e a firmeza da polpa. Depois virou-se para trás e ofereceu-a ao engenheiro, sugerindo-lhe que a degustasse. E perguntou sorridente:
- O que estavas me dizendo?
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Eliseu, desconcertado, não respondeu. Ambos sabíamos que o Mestre tinha ouvido muito bem e que sua memória era excelente. Estava tramando alguma coisa...
- Muito doce - respondeu meu irmão finalmente. - Quanto à minha pergunta...
Vi que ele vacilava. Achei que tinha recuado. Mas não. Eliseu não era daqueles que se intimidam ou que desistem. Encarou o Mestre e prosseguiu:
- ...só queria saber tua opinião sobre a homossexualidade.
Jesus contemplou-o em silêncio. Percebi uma pitada de ironia no olhar. Nós três lembrávamos da pergunta original. O sentido não era o mesmo. Mas o Galileu logo afastou
aquela leve sombra e, colocando as mãos sobre os ombros robustos do engenheiro, respondeu em um tom que não admitia discussão:
- Filho, tu crês que o Pai comete erros?
Ato contínuo, sem esperar resposta, pagou um quadrante (um quarto de ás, níquel puro) por um cacho longo e ralo da uva que tinha oferecido a Eliseu, dividiu conosco e retomou a marcha.
Quase não nos falamos no resto do caminho. Eu estava tentando resolver o enigma que o Filho do Homem deixou no ar. Não sei se consegui. O que ele quis dizer? O exemplo utilizado - uma uva: dulcíssima e perfeita - foi muito didático, tanto para Eliseu como para mim. Além da beleza daquela uva engor, seu conteúdo não podia ser mais rico e equilibrado5. Se Deus era responsável por tal perfeição - continuei pensando - como entender uma anomalia como a homossexualidade? Como explicar outros "erros" (?) da natureza? Por que das síndromes que tínhamos acabado de presenciar no kan do Hule? Se o reino do Pai era perfeito - como disse meu irmão em sua primeira pergunta - como explicar tanta miséria e dor?
5 Entre 12 e 30 por cento são constituídos de açúcar, ácidos orgânicos, minerais, tanino, matérias nitrogenadas, vitaminas e colorantes (localizados sobretudo na pele). O restante é água. Seu valor nutritivo é muito elevado. (N. do M.)
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Nesse momento, a caminho doyam, me veio à mente um comentário feito pelo Galileu na noite anterior, ao ser indagado sobre os maus e sobre a justiça divina. Ele respondeu com aquela segurança que me deixava desconcertado: "Este é um lugar especial. Aqui, por desejo expresso da divindade, tudo é permitido: do mais nobre ao mais vil.
Mas isso, Jasão, não significa que a criação tenha escapado das máos do Pai". Achei que ele estava se referindo ao kan. Agora sei que não se tratava disso. O Mestre falava do nosso mundo. Um lugar especial? Quem sabe um planeta experimental, onde "alguém" permite e até programa a doença e o mal quimicamente puro? Jesus nunca mentia. Se ele dizia que a Terra é um lugar especial, assim devia ser. E prometi a mim mesmo aprofundar-me nisso. Não sei porque, mas intuí que a resposta dada a Eliseu - "Tu crês que o Pai comete erros?" - tinha uma estreita relação com aquele comentário do Mestre no kan, junto ao fogo: "Este é um lugar especial..." Se a homossexualidade é algo "previsto" pelos céus - nem sequer pensei nas razoes - seria mais fácil entender sua possível origem genética6. Se fosse assim, por que condená-la ou desprezá-la? "A homossexualidade não é um erro de Deus." Foi assim que interpretei as palavras de Jesus. Nós é que somos ignorantes. "Tudo obedece a uma ordem..."
6 Atualmente, a maior parte dos médicos considera a homossexualidade como uma doença psiquiátrica. Esse suposto transtorno mental (como o qualifica a Organização Mundial de Saúde em sua nona classificação) afeta hoje 5 por cento da população, segundo os estudos de Kinsey (cerca de trezentos milhões de pessoas). Outros especialistas estimam essa porcentagem em torno de 10 por cento. Pessoalmente, não estou muito convencido da origem psiquiátrica da homossexualidade. Há alguns anos, por razões de meu trabalho, tive conhecimento de um projeto desenvolvido pela Marinha dos Estados Unidos que recebeu o nome secreto de "Task Force" (Força de Choque). Aproveitando as experiências de geneticistas tão renomados como Dean Hamer (Ogene de Deus, Ed. Mercuryo, 2005), os laboratórios militares fizeram uma pesquisa para averiguar se a homossexualidade masculina tinha um caráter hereditário. Se os resultados fossem positivos, haveria uma possibilidade de anular ou conter essa "deformação", que tantos problemas causava - e ainda causa - a essa Força. Foram realizados testes com mil gémeos verdadeiros, e constatouse que 50 por
cento dos gémeos de pais homossexuais também eram homossexuais. Esse caráter parcialmente hereditário animou os pesquisadores. Pouco depois, localizou-se uma região nos cromossomos ("Xq 28") que poderia ser a origem do problema. Entre os voluntários, quase 90 por cento dos gémeos homossexuais apresentavam o mesmo
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Ao deixar para trás a "clareira do ruivo", Jesus apressou o passo, distanciando-se destes exploradores. Pouco depois, ao cruzar a ponte sobre o primeiro desaguadouro do rio Jordão, seguiu direto. Só então tivemos certeza de que se dirigia para Nahum (Kefar Nahum), também conhecida como Cafarnaum pelos cristãos. As balizas ou miliares indicavam uma distância de 3,3 milhas romanas desse povoado e duas milhas de Beth Saida Julias. Em menos de uma hora avistaríamos Nahum.
Observei o sol. Ele se aproximava do zénite. Estávamos perto da sexta (meio-dia). E me perguntei: se o Mestre parasse em Nahum, o que faríamos? E por que pararia ali? De fato, não sabíamos nada sobre os planos imediatos do Galileu. Será que ele tinha família naquele povoado? Poderia ser um local de passagem - talvez para pernoitar - como ocorreu no kan de Assi? A única coisa que tínhamos certeza é que, chegando a Nahum, estaríamos a pouco mais de nove quilómetros do cume do Ravid. O "berço" e nossas reservas de antioxidantes continuavam ali. Talvez devêssemos subir ao "porta-aviões" e verificar o estado geral da nave. Embora tudo estivesse nas máos impecáveis do computador central, de vez em quando batia a intranqüilidade. "Se o Destino assim o quiser - me disse - hoje mesmo estaremos em nosso lar. O ocaso será às 17 horas e 38 minutos. Há tempo suficiente para chegarmos lá em cima ainda com luz."
Porém, o Destino tinha outros planos. Não demoramos a perceber.
conjunto de cinco marcadores. Em outras palavras: eram os genes que interferiam no hipotálamo, favorecendo a homossexualidade. Os cinco marcadores (pontos do genoma nos quais a sequência do ADN varia de um indivíduo a outro: polimorfos) - casualidade? - foram detectados no extremo da abertura mais longa do cromossomo "X" naquela faixa "Xq 28". O número de genes envolvidos era de 101. O sistema, conhecido como "clonagem posicionai", deixou claro que a homossexualidade é transmitida sempre pela mãe (o cromossomo "X" é herdado por via materna). Não se sabe por que, mas a questão é que os indivíduos com essa zona cromossômica mais longa têm a tendência a produzir um maior volume de serotonina (uma vez e meia superior à que proporciona a forma curta). Portanto, para os pesquisadores parece claro: a homossexualidade tem uma origem cromossômica. Simplesmente se herda, como a cor dos olhos, do cabelo ou a tendência a padecer de determinadas doenças. Esse é o critério dos militares. (N. do M.)
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Nahum, como já mencionei nestas memórias apresadas, era um povoado grande; náo me atreveria a qualificá-lo de cidade. Reunia umas nove mil almas, embora a população flutuante fosse considerável.
Meu irmão e eu nos detivemos por alguns instantes. O Mestre seguia à nossa frente, a pouca distância.
Nahum era um todo escuro, sem limites precisos, com exceção do yam ou mar de Tiberíades, que surgiu azul e ondulado no extremo sul. A pedra escura e vulcânica - o basalto - predominava em todo aquele núcleo cosmopolita, situado em
um privilegiado entroncamento de caminhos. Era como uma Jerusalém em miniatura. Embora Nahum fosse judia, seus habitantes formavam uma intricada mistura de gentios, entre os quais se destacam fenícios, beduínos, gregos, egípcios, mesopotâmicos e até orientais, oriundos das longínquas regiões das atuais China e índia. Para ali convergiam caravanas procedentes da Nabatéia, de Tiro, do delta do Nilo, da rota da seda e do reino de Sabá, entre outros. Ali, em suas ruas e mercados, conviviam pacificamente credos, filosofias e esperanças. Ali se adoravam os deuses da Numídia, da Córsega, da Grécia, do Egito, dos desertos da Líbia, da Gália, da Pérsia, das distantes terras germânicas e, naturalmente, o inflexível Yavé.
A fumaça branca das casas espalhou-se repentinamente, encobrindo a massa negra do povoado. Era o aviso. O pontual vento do oeste se lançara sobre o Kennereth, agitando as águas do lago e dando vida às embarcações que o atravessavam. O maarabit soprava até o pôr-do-sol. Quando isso ocorria, Nahum, assim como outros povoados e aldeias das costas do yam, ficava quase irrespirável. O pó das ruas subia, e os redemoinhos, junto com a fumaça dos fogões, deambulavam pelas esquinas, ferindo e sufocando quem cruzasse seu caminho.
Eliseu ponderou que não devíamos perdê-lo de vista. Ele tinha razão. Se o Mestre desaparecesse, poderíamos ter problemas. E seguindo seu conselho, fomos ao seu encalço na pequena ponte que se estendia sobre o rio Korazaín, nas imediações de Nahum. As águas terrosas corriam minguadas em conseqüência da estiagem.
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E então reparei. Eu já náo me lembrava mais. Junto à pontezinha, à nossa esquerda, surgiu o velho casarão que funcionava como "aduana". Diante da lembrança, meu
coração teve um sobressalto. Ali trabalhava Mateus, um dos íntimos de Jesus, ou melhor, que seria - no "futuro" - um de seus discípulos.
Como reagiria o Mestre? Será que ele já sabia quem iria compor esse grupo inicial de apóstolos? Depois de tudo o que tinha visto e ouvido naquelas semanas, por que eu ainda me assombrava? Pobre ignorante! Não sabia nada sobre aquele Homem!
O edifício, tão obscuro como a reputação dos inspetores do fisco que o ocupavam, era um lugar obrigatório. Ele ficava próximo do limite dos territórios regidos por Felipe, ao norte, de onde vínhamos, e por Herodes Antipas, seu meioirmão, que - teoricamente - reinava na Galiléia e na Peréia. Qualquer um que cruzasse num sentido ou no outro era inspecionado. O "pedágio" dependia da carga e do bom humor do publicano de plantão...
Fomos nos aproximando lentamente. Na fachada norte, encoberto entre as sombras de duas frondosas figueiras, Mateus (seu verdadeiro nome era Matatiahu) roncava inofensivo. Na mesma parede, apoiados nas pedras de basalto, descansavam as lanças, os escudos vermelhos e ovalados e os temíveis gladius hispanicus (as espadas de fio duplo) dos soldados romanos que normalmente protegiam o lugar. Não chegamos a vê-los. Talvez estivessem descansando ou dormindo no interior da "aduana". A temperatura no yam devia estar próxima de 25 graus Celsius.
Fiquei aliviado. A presença das tropas auxiliares - geralmente samaritanos, sírios ou germânicos -, de extração social muito baixa, era quase sempre fonte de conflitos. Eu sabia disso por experiência própria...
Esperávamos a reação do Mestre. Ele não se moveu. Durante alguns segundos ficou parado a uns dois passos do arrecadador de impostos. Eliseu e eu nem ousávamos respirar. Só se ouviam os roncos - heróicos - e o zumbido dos insetos, apinhados
sob as grandes folhas verdes das figueiras, aproveitando seu frescor.
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Mateus, como eu já disse antes, era relativamente jovem. Devia ter então (ano 25 da nossa era) uns 31 anos. A mesma idade do Mestre. E digo relativamente jovem porque a expectativa média de vida dos varões na época não passava de 45 anos...
Recostado no muro, com a túnica de linho branco molhada de suor, Mateus às vezes reagia automaticamente ao assédio das moscas e insetos. Quando o conheci era magro, ligeiramente encurvado e os cabelos ruivos e ondulados estavam sempre meticulosamente lavados e penteados, à altura dos ombros estreitos. Sua estatura - cerca de l ,75 metro - e aquele perfil afilado davam uma impressão falsa. O publicano não era frágil. Ao contrário. Mateus era um judeu de grande força exterior... e interior. Logo comprovaríamos isso...
Curioso Destino. O Mestre se depararia justamente com os dois símbolos mais abominados por seus compatriotas judeus: o invasor romano e os publicanos ou arrecadadores da fazenda. Estes últimos eram particularmente odiados pela população. Os gabbai - como eram chamados - representavam outro dos ofícios desprezíveis, que rebaixavam socialmente de forma inexorável (em uma das listas dos judeus ortodoxos, "Sinédrio 25", apareciam neste último posto, abaixo dos jogadores de dados, dos agiotas, dos organizadores das brigas de galos e de apostas em geral, dos traficantes de produtos do ano sabático e dos pastores). À parte o tratamento despótico e da falta de escrúpulos desses publicanos - nem todos agiam tão despudoradamente - o fato é que a nação israelita os via como um prolongamento de Roma, os miseráveis kittim. Além dos impostos de natureza religiosa, os judeus tinham de pagar também os civis, com o agravante de que essas taxas enriqueciam os
invasores7 e seus colaborado
7 Há mais de duzentos anos, os povos dominados por Roma pagavam alguns impostos a sociedades ou a indivíduos romanos (geralmente cavaleiros da ordem eqüestre) que, por sua vez, se comprometiam a pagar quantidades concretas ao tesouro público (inpublicum). Esses arrecadadores ou publicanos nomeavam seus representantes nos respectivos países, designando-os para a missão nada agradável de arrecadar o dinheiro que eles tinham adiantado a Roma. Essa situação se prestava a todo tipo de abusos e de subornos. Depois de descontada a quantia fixada por Roma, os publicanos estavam livres para cobrar o que quisessem ou pudessem, sempre muito acima do necessário ao tesouro público
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rés. Os publicamos tinham fama de ladrões, mentirosos e traidores. Eram "pecadores" da pior espécie, no mesmo nível dos bastardos e pagãos. Ninguém lhes dava crédito. Ninguém os ouvia. Viviam praticamente isolados, sem nenhuma relação de vizinhança. Se alguém simpatizasse com eles ou se sentasse à sua mesa - esse foi o caso do Filho do Homem durante a vida pública ou de pregação - automaticamente era considerado "pecador" e, o que é pior, "traidor" da nação judaica.
Esse era, em princípio, o "cartão de apresentação" do homem que estava diante de nós...
Em uma daquelas manobras bruscas, ao espantar com uma das mãos as moscas que o martirizavam, Mateus abriu os olhos. Em um primeiro momento, ao perceber as três figuras imóveis e silenciosas que o
correspondente. No caso da Judéia, os encargos fiscais estabelecidos pelo invasor eram intoleráveis (em torno de 50 por cento dos ganhos anuais de
uma família). Os judeus chegaram a protestar em diversas oportunidades aos respectivos imperadores (como relata Tácito no ano 17 depois de Cristo). Nesse "saco" dos impostos indiretos entrava tudo o que o publicano podia imaginar: acesso a pontes, caminhos ou estradas, transporte de mercadorias (cada produto tinha seu preço), abertura de comércios, venda de água, e assim por diante. Para que possamos ter uma idéia aproximada do que significava esse movimento de dinheiro, temos informações de que os territórios de Antipas pagavam a Roma cerca de seiscentos talentos por ano; isto é, uns dois milhões e oitocentos mil denários de prata (mais ou menos três milhões de dólares). Tudo o que ultrapassava esse valor era lucro. E os judeus, com razão, reclamavam e encorajavam todo tipo de protesto, obrigando os publicanos a contratar proteção armada.
Além desses impostos indiretos, Roma cobrava impostos diretos: os chamados tributum soli (por terras e patrimônio) e os tributum capitis (pessoal). Para cobrar as rendas por terras, casas etc., o Estado recorria às chamadas "toparquias" (divisões administrativas com seus respectivos "arquivos cadastrais", nos quais nem uma pedra deixava de ser registrada. Na Galiléia, por exemplo, havia quatro: Garaba, Tarichéia, Séforis e Tiberíades). Para a execução desse segundo imposto - de "capitação" - era imprescindível a existência de censos (um deles foi o que levou os pais terrenos de Jesus a se deslocarem de Nazaré a Belém). Os publicanos também eram responsáveis por essa cobrança. Quando o contribuinte não tinha condições de pagar a cota, o arrecadador podia emprestar dinheiro ao cidadão, sangrando-o com juros desproporcionais. E criava-se o paradoxo de que uma dívida pública acabava se tornando um "negócio" privado. Roma era implacável e exigia uma constante atualização das propriedades, obrigando a avaliações permanentes e
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espreitavam, o arrecadador ficou um pouco perturbado. Piscou nervoso, enquanto os olhos azuis tentavam se acostumar à luz intensa do meio-dia. Mas, com um excelente autocontrole, examinou-nos um a um, compreendendo que seu descanso havia terminado.
Jesus facilitou-lhe as coisas. Abriu o saco de viagem e, sem palavras, aproximou-o de seus pés. Mateus Levi não acatou as indicações do Mestre. Embora soubesse que tinha de revistar a mochila, mantinha o olhar fixo no do Galileu. Tive a sensação de que vasculhava na memória. Talvez já o tivesse visto. Talvez o rosto de Jesus lhe fosse familiar. Nunca cheguei a entender o porquê daquela intensa e estranha troca de olhares. Minto: no caso do Mestre, suspeitei, sim. Ele "sabia" quem era Mateus e o que ocorreria dali a alguns meses...
retificações correspondentes dos tributos. O invasor exigia a décima parte das colheitas de cereal, assim como um quinto do vinho. Cada trabalhador tinha de pagar uma proporção do valor das produções pessoais ou profissionais. Se o industrial, camponês, pescador ou comerciante tinha assalariados, era obrigado a reter uma parte do salário, a título do mencionado imposto de "capitação".
A esse quadro funesto seria preciso acrescentar as taxas religiosas obrigatórias a que já me referi oportunamente, fixadas no Génese (14,20), que pressupunham que o "dízimo de tudo pertencia ao Altíssimo". Esses impostos garantiam a manutenção do Templo em Jerusalém e, naturalmente, dos milhares de sacerdotes a serviço dele. Os judeus maiores de doze anos pagavam meio shekel (dois denários de prata), além da contribuição exigida pelas sinagogas das respectivas cidades e povoados. Mas esse tributo era insignificante em comparação com o chamado "dízimo". A lei estabelecia que a décima parte de toda colheita, rebanho, pesca e, de
maneira geral, qualquer produto do solo, devia ser entregue ao culto da Cidade Santa. A ambição dos sacerdotes chegava a extremos impensáveis. Dizimavam tudo o que se podia imaginar: desde os ovos de um galinheiro até as modestas ervas usadas para cozinhar ou a lenha guardada para o inverno. E pobre daquele que ocultasse suas propriedades dos levitas que faziam a inspeção! Um produto não dizimado era qualificado de "impuro" e, como conseqüência, seu proprietário caía na ignomínia do pecado. A partir de 15 de odor (fevereiro-março), longas caravanas de carros com os dízimos afluíam a Jerusalém de todos os cantos do país, transportando as "primícias" e tudo o que se recolhia da produção. E os responsáveis pelo Templo esfregavam as mãos de satisfação. O sustento de todos eles - e um pouco mais - estava garantido "em nome deYavé". (N. do M.)
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O publicano baixou os olhos e, finalmente, espiou dentro do saco de viagem do Galileu. Logo se deparou com alguma coisa que parece ter chamado sua atenção. Ergueu os olhos e, com aquela voz melodiosa característica, Mateus perguntou a Jesus, enquanto tirava alguma coisa da mochila:
- E isto?
O Mestre encolheu os ombros e, apontando para Eliseu, comentou:
- Um presente...
Mateus não respondeu. Inspecionou o tecido úmido que envolvia as pequenas raízes da oliveira e exclamou em tom grave:
- Apressa-te... Ela pode morrer.
Então, o Filho do Homem pegou o ramo de oliveira que, de fato, ganhara de presente de aniversário de meu irmão quando completou trinta e um anos, nas montanhas do Hermon, e sentenciou enfaticamente:
- Nada morre nas minhas mãos. Muito menos a paz...
E recordei emocionado as palavras do Mestre naquele 21 de agosto, ao receber a oliveira que nos foi entregue pelo general Curtiss: "...Um presente de outro mundo para o Senhor de todos os mundos... Vamos plantá-lo como símbolo da paz... A paz interior: a mais difícil..."
- De todo modo - insistiu o publicano -, é melhor te apressares... O Filho do Homem guardou com carinho a muda e respondeu com
palavras que Mateus, logicamente, não compreendeu nesse momento.
- Nunca tenho pressa... Deus age, mas jamais com pressa... Quando chegar a hora, quando decidir plantar a paz nos corações, tu serás um dos primeiros a saber...
- Está bem - retrucou o arrecadador impassivelmente -, nós, os gabbai, também temos direito a um pouco de paz... Por ora, essa paz te custará um ás...
- Quanto a vós - acrescentou sem examinar nossos sacos -, dois léptons cada um já é o suficiente...
Paguei o "pedágio" e nos afastamos do casarão. Mateus voltou a se acomodar debaixo das figueiras e, aos poucos, os roncos soaram "cem por cento", forte e claro, às nossas costas.
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E o Mestre, tomando a iniciativa, contornou a aduana, dirigindose
vagarosamente para a teia de aranha formada pelos hortos e plantações que circundavam Nahum pelo flanco oriental.
Não sei porque eu me surpreendia. Jesus de Nazaré era assim. Durante o tempo que permanecemos com Ele, nunca se perturbou com aquilo que desagradava seus patrícios. O encontro com o publicano e com as armas do kittim não pareceu incomodá-lo. Não mudou de atitude nem deu margem a nenhum comentário a respeito. Que eu me lembre, nunca se manifestou contra - nem a favor - do invasor de seu país ou da odiosa presença dos arrecadadores. Nesse aspecto também era categórico. Jamais misturou a política ou os negócios com sua missão. Jamais.
Eliseu perguntou em voz baixa se eu tinha idéia de nosso destino imediato. Fiz um gesto negativo com a cabeça. A única coisa que estava clara era que o Galileu pretendia chegar a algum ponto do povoado.
E, mostrando conhecer muito bem a região, o Mestre avançou por pequenos atalhos desviando-se das muretas de pedra negra que delimitavam as dezenas de frondosos hortos onde se destacavam altas nogueiras, romãzeiras, amendoeiras, figueiras e espessos sicômoros. Vimos pouquíssimos yê^z/;. O intenso calor no yam não aconselhava o trabalho ao ar livre. Imaginei que a maioria dos camponeses, do mesmo modo que Mateus, procuravam aliviar o rigor daquelas horas com um bom sono e uma sombra ainda melhor.
Alguns responderam à saudação do Mestre, chamando-o por seu nome: "Yehosua" ou "Yesúa" ("Salve Yavé") [o Filho do Homem nunca recebeu o nome de Jesus. Essa designação foi bem posterior8]. Era evidente que o conheciam. E lembrei das informações do velho Zebedeu, proprietário dos estaleiros onde o Galileu parece ter trabalhado durante um tempo. Era verossímil que Jesus tivesse se alojado em Nahum nessa época. Será que era por isso que retribuíam a saudação acrescentando o
"Yesúa"?
Na realidade, o nome de Jesus, pelo que se sabe, é uma "ocidentalização" da designação hebraica; mais exatamente do termo aramaico Yesúa ou Josué. (N. do M.)
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Quando deixamos para trás o cinturão verde que rodeava a população, o vento do Mediterrâneo, suspenso até esse momento entre as plantações de fruta, invadiu os becos que compunham aquela parte do povoado. E castigou duramente, encobrindo-nos na mistura de pó e cinza vulcânica que "pavimentava" Nahum.
Jesus continuou caminhando com absoluta segurança. A zona, no extremo oriental, era desconhecida para mim. Eu supunha que o Galileu tinha escolhido um atalho para evitar as ruas mais movimentadas. Mas, nesse momento, percebi que estava especulando. E na medida do possível, de redemoinho em redemoinho, procurei guardar o máximo de referências, sempre úteis quando precisávamos nos deslocar.
Nahum, tirando as ruas principais, desenhadas segundo o padrão helênicoromano (fardo maximus e decumani), isto é, em forma de cruz, e um punhado de calçadas que interceptavam essas vias básicas verticalmente e horizontalmente, era mais um labirinto infernal, que lembrava um pouco os bairros antigos da Cidade Santa. Demoramos um pouco, mas finalmente conseguimos nos orientar naquele pandemônio de ruelas.
Ruelas? Aquilo não passava de um emaranhado de becos estreitíssimos em que mal podiam passar duas pessoas ao mesmo tempo. As casas, todas de pedra negra - exceção feita ao "centro" -, penetravam umas nas outras, e era impossível distinguir os limites entre as propriedades. Nunca soubemos onde começava e onde
terminava a habitação de uma família.
O maarabit golpeava os toldos que, nos dias de verão, eram criteriosamente amarrados entre um terraço e outro, o que proporcionava uma temperatura mais amena aos transeuntes; além disso, tingia de sugestivas tonalidades alaranjadas, verdes e brancas tudo que havia no beco. Algumas mulheres, assustadas com o ímpeto do vento, assomavam às janelas estreitas - quase frestas - para alertar as vizinhas com gritos agudos. Olhavam para nós por alguns instantes e desapareciam nas trevas, trancando com força os reposteiros de madeira. Mais adiante, outras matronas repetiam a operação, impedindo assim o vento mortificante.
Tentei olhar o interior das casas. Impossível. A maioria das portas, largas e muito altas, estava coberta por uma espessa rede escura que im
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pedia de ver qualquer coisa de fora para dentro. Mas de dentro para fora era possível. Em alguns pátios abertos, consegui divisar as silhuetas de seus habitantes, quase sempre mulheres. Cozinhavam, lavavam ou cuidavam das crianças. A luta contra a fumaça dos fogões era uma batalha perdida. E a tosse e as lamentações se somavam aos gritos das "avisadeiras", ao choro das crianças e aos latidos ameaçadores dos cães.
Jesus seguia em frente, inabalável. O terreno continuava descendo suavemente. Eu náo tinha a menor idéia para onde estávamos indo. De vez em quando, o Mestre e estes exploradores, forçados pela aparição de um ou vários asnos, éramos obrigados a sair para os lados e nos refugiar nos vãos das portas ou no umbral dos pátios. Animais e burriqueiros tinham preferência. Esse era o costume.
E foi numa dessas paradas obrigatórias, enquanto aguardávamos a passagem de um daqueles grandes jumentos selvagens, transportando peixe do yam, que vi uma coisa que me chamou a atenção. Não estava muito longe. Talvez a uma centena de metros, na outra margem do rio, que deslizava preguiçosamente em direção ao lago. No início, não imaginei o que aquela gente estava fazendo. Depois, ao notar as pequenas chamas e a fumaça que emanavam de boa parte do montículo, comecei a entender. Era o depósito de lixo de Nahum. Cerca de vinte pessoas, todas carregando sacos e canastras, movimentavam-se lentamente na géhenne", procurando e selecionando o que outros descartavam.
Os depósitos de lixo, em Israel, recebiam o nome Ás. géhenne ovígehenna (inferno). O mais conhecido era o que ficava a leste de Jerusalém. O vale dos filhos de Hinon já aparece no livro segundo dos Reis (23, 10). Provavelmente, tratava-se de um nome jebuseu ou cananeu, anterior à chegada dos judeus. Embora inicialmente se tratasse de um lugar onde se adorava o deus cananeu Molok, os israelitas, depois do exílio, adotaram-no como símbolo do inferno: um lugar escuro, subterrâneo, sempre em chamas, onde as almas dos ímpios eram atormentadas. Era o Tofet, segundo Jeremias (7, 31), onde tudo era queimado. Para os babilónios, esses depósitos de lixo eram o reino de Nergal, o deus do inferno. Os cristãos, posteriormente, apropriaram-se da idéia, modificando o sentido da palavra géhenne. (N. do M.)
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O Destino, como sempre, me reservara uma surpresa, diretamente relacionada com aquele grupo de infelizes. Mas espero tratar disso oportunamente...
E aos poucos fomos deixando para trás o labirinto de pedra, o cheiro das fornalhas, os gritos e os relinchos, o fedor de urina, ou as batidas ritmadas
das janelas e o zumbido do maarabit, enredado em toldos e redes.
Eu a reconheci na hora. Ao sair do bairro oriental, fomos desembocar no cardo, a rua principal de Nahum. A via, com uns seis metros de largura, cortava o povoado de norte a sul. Eu já a havia percorrido em diferentes oportunidades. A primeira com Jonas, umfelah muito amável que me prestou um bom serviço ao me conduzir até o estaleiro dos Zebedeu, na foz do rio Korazaín.
O fluxo de pessoas era menor. Imaginei que, com o sol a pino e o vento rebelde, náo era uma boa hora para as visitas aos comerciantes que se alinhavam dos dois lados da calçada, sob os pórticos. Os comerciantes, irritados, pelejavam com o maarabit, protegendo os produtos com grandes telas de pano. Ainda assim, a cada rajada, frutas, verduras, carnes, especiarias, cereais e peixe eram contaminados com novas doses de pó e cinza.
Notei uma certa alegria no rosto de Jesus. E seus olhos perscrutavam entre os passantes e curiosos. Tive a impressão de que ele esperava encontrar alguém entre os que iam e vinham. Seguimos caminhando para o sul, em direção ao porto, e este que escreve, contagiado pelo mesmo sentimento, começou a explorar os rostos dos clientes que inspecionavam as mercadorias ou que regateavam com os encarregados ou donos dos negócios. Mas quem ele esperava encontrar? Talvez o velho Zebedeu ou seus filhos, Tiago e João. Se náo me falhava a memória, nessa época eles eram os únicos do círculo do Mestre que freqüentavam Nahum. Como já disse, sua casa ficava na aldeia próxima de Saidan.
O Mestre foi diminuindo o passo, até que finalmente parou. Estávamos náo muito distantes do cais. Talvez a uma centena de metros. Eliseu e eu estávamos grudados nele, cheios de expectativas. O que pretendia? O olhar se fixou em um muro de uns três metros de altura. Era uma construção típica de Nahum:
pedra basáltica, em forma de disco, cuida
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ciosamente empilhada e com os vãos preenchidos com barro e cascalho. Estendia-se por cerca de vinte metros, à direita do cardo (tomarei como referência a direçáo norte-sul que estávamos seguindo nesse momento). Aquela fachada era desnivelada em relação aos pórticos e galerias da rua, formando uma estreita e longa esplanada. Aquele espaço, como todo o cardo, era pavimentado com grandes pranchas de basalto, desgastadas e lustrosas pelo passar do tempo e das cavalarias. Três degraus conduziam à base do pórtico. Aquele sistema, elevando o nível das construções no cardo maximus e no decumani, era muito útil. No inverno, com as fortes chuvas, impedia que a água inundasse as casas.
O Mestre continuava observando. Não disse nada. Parecia desfrutar da visão da porta, totalmente aberta, e das paredes que sobressaíam acima do muro. Em um primeiro momento ou, melhor dizendo, em um primeiro exame, eu não sabia o que pensar. Talvez se tratasse de uma das conhecidas habitações judaicas, geralmente compartilhadas por várias famílias. Dois dos habitáculos, como eu ia dizendo, elevavam-se acima do muro protetor, atingindo quatro e seis metros de altura, respectivamente. O terraço no alto de cada uma das casas era protegido por muretas, conforme ditava a Lei. O Deuteronômio (212, 8) exigia que a varanda fosse provida do correspondente peitoril, "para que tua casa não incorra na vingança de sangue no caso de alguém cair ali". Abaixo da proteção determinada por Yavé, distingui as vigas de sicômoro (resistentes aos gusanos) que sustentavam o teto. (Naquela região, os telhados eram frágeis. Eram construídos com essas vigas e uma armação de bambus, paus e varas sobre a qual
se espalhava uma grossa camada de barro misturado com palha. Quando acabava o período das chuvas, os proprietários remodelavam e alisavam o telhado). Um pouco mais abaixo, as paredes escuras eram perfuradas com quatro ou cinco janelinhas mais estreitas, e cuja função, naquele clima quente, era, sobretudo, a ventilar.
Será que estávamos diante de uma habitação judaica? Ao reparar nos umbrais de pedra do pórtico fiquei na dúvida. Ali não havia a mezuzah, o pequeno estuque metálico de apenas dez centímetros de extensão que se cravava à direita da porta ou nos postes que serviam de umbrais e
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que, segundo a Tora, protegia a morada contra todo tipo de males e demónios10. Sempre que um judeu entrava ou saía de casa, ou de qualquer outra habitação considerada "limpa"", ele tocava a mezuzah com reverência e levava os dedos aos lábios. A maioria achava que esse gesto era suficiente não só para garantir a proteção pessoal, como também para ter êxito no trabalho ou nos negócios nesse dia. A superstição estava tão arraigada que homens e mulheres cuidavam permanentemente para que a área próxima a essa mezuzah (em um raio de um cotovelo, uns quarenta e cinco centímetros) estivesse limpa e reluzente. Do contrário - diziam - a casa poderia ser invadida por 365 demónios...
E estávamos nesse ponto quando o Mestre avançou. Nós o seguimos, mas, antes que pudéssemos reagir, uma carreta, uma daquelas redas com quatro enormes e sólidas rodas de madeira, atravessou no nosso caminho. Por pouco não nos atropelou. O condutor, com o chicote na mão, nos amaldiçoou e, açulando as mulas, perdeu-se no cardo em direçáo à porta tripla, ao norte. Foram apenas alguns segundos, porém...
Nunca soubemos de onde saiu aquele sujeito e como veio parar diante destes perplexos exploradores. Talvez tivesse vindo na redá, en
10 No interior do estuque metálico era guardado um pequeno pergaminho, colado longitudinalmente, no qual se escreviam as 22 linhas conservadas no Deuteronômio (6, 4-9 e 11, 13-21): "Ouve, Israel: Yavé, nosso Deus, é o único Yavé. Amarás Yavé, teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua força. Que estas palavras que te digo hoje permaneçam no teu coração. Tu as repetirás para teus filhos, tu as proferirás tanto se estiveres em casa como se estiveres de viagem, tanto deitado quanto de pé; tu as atarás às tuas mãos como um sinal, e elas serão como uma insígnia entre teus olhos; tu as escreverás nos umbrais de tua casa e em tuas portas..."
A mezuzah, assim como os filactérios, era um símbolo externo que ajudava a identificar os judeus e também suas habitações ou propriedades. Para a casta dos fariseus, a mezuzah era uma obrigação, ditada por Yavé. Muitos daqueles que simpatizavam com esses rigoristas da Lei exteriorizavam sua postura mediante o uso do mencionado estuque metálico nas portas. Para nós, sempre foi de grande utilidade. (N. do M.)
11 As chamadas diroth cavod ou "moradas de honra" (exclusivamente judias) eram os únicos lugares onde a mezuzah podia ser fixada. Era importante que tivessem o caráter de habitação. Assim, por exemplo, as sinagogas, os banhos e as lojas em geral jamais deviam ostentá-la. (N. do M.)
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tre os tonéis. Essa era a única explicação mais ou menos lógica. O fato é que nos interceptou.
- Troco moedas! - gritou, ao mesmo tempo em que agitava uma bolsa de tecido diante dos olhos de Eliseu. - Necessitas de moeda romana? Talvez judia?
O sujeito, de baixa estatura, amarelado, com uma barba longa e tingida de vermelho, amarrada ao cordão, ostentava um parche de couro preto no olho esquerdo. Instintivamente, levantei os olhos, à procura do Mestre. Ele já tinha sumido no pórtico da suposta casa judia que tinha contemplado com tanto interesse. Quis me esquivar do "cambista", mas, habilmente, ele me segurou por uma das mangas, insistindo:
- ...Ofereço-te o dracma a vinte e cinco sestércios!
Eu nem recusei. Meus olhos continuavam fixos no pórtico. Eliseu, ao meu lado, tampouco conseguiu reagir.
- Está bem - disse o caolho -, posso te pagar quatro denários e meio pelo tetradracma.
E percebi que estávamos diante de um desses gatunos que infestavam Nahum. Um cambista oficial, autorizado pela Lei, não usaria esses termos. Naquela época, o dracma grego tinha a mesma cotação do denário de prata romano. Um tetradracma ou stater equivalia a quatro denários ou vinte e quatro sestércios. Ali tinha mutreta, como costumo dizer.
Enquanto tentava me safar do sujeito pegajoso com sua chamativa barba vermelha, ouvimos os primeiros gritos. Vinham do edifício onde o Filho do Homem acabara de entrar.
Ficamos assustados. O que estaria acontecendo?
Os gritos aumentaram. Pareciam vozes de mulheres. Alguns transeuntes, também assustados, correram até o pórtico e se amontoaram na soleira.
Finalmente, consegui me livrar das garras do caolho e saltei o muro
rapidamente. Suponho que Eliseu fez o mesmo. Nem me virei para confirmar. Alguma coisa me dizia que tinha de ficar atento. Tratei de abrir passagem entre os curiosos que obstruíam o pórtico. Impossível. As pessoas, tão interessadas como eu, não me deixaram passar. E fiquei preso ali, com uma visão parcial do que ocorria naquele pátio aberto.
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J.J. BENÍTEZ
A primeira coisa que vi foi uma mulher, abraçada fortemente ao Galileu. Estava quase que pendurada no seu pescoço. Era jovem. Atrás, ajoelhada diante de uma bacia, as mangas arregaçadas, outra mulher contemplava a cena. Ao lado, uma criança de alguns meses, que estava nua, sentada nas pedras, olhava boquiaberta. Eu não sabia quem eram essas pessoas, até então. Jesus e a mulher com quem estava abraçado encobriam a outra, que estava ajoelhada.
Como não percebi antes? Aqueles cabelos avermelhados... A jovem continuava gritando, e a criança, assustada, começou a chorar. Então ela se levantou e eu a reconheci. A de túnica arregaçada correu a pegar a criança, e apertando-a contra seu peito tentou consolá-la.
- E o tektônl - exclamavam alguns dos que me aprisionavam. - É o carpinteiro!... Ele voltou!
E a Senhora, com a criança no colo, uniu-se ao abraço, repetindo:
- Yesúa!... Tu voltaste!...
A Senhora, na verdade, era Míriam ou Maria, a mãe de Jesus de Nazaré. Achei-a mais magra. Nesse mês de setembro de 25 devia estar com uns quarenta e cinco anos de idade. Conservava parte de sua beleza. Os olhos rasgados, muito verdes, e agora umedecidos, e os cabelos pretos, desbotados, penteados com uma
risca no meio e presos na nuca, trouxeram gratas recordações.
- Diziam que havia morrido! - garantiu um dos vizinhos.
- Não - interveio um terceiro - a família afirmava que estava estudando na Alexandria!
Comecei a compreender. O Mestre estivera ausente por quase quatro anos, com duas ou três breves e esporádicas visitas aos seus. Foi o tempo das grandes viagens, como já mencionei. Uma etapa "secreta" - a única - que jamais foi desvendada. E, de fato, correram rumores de que o tektôn (carpinteiro e ferreiro) de Nazaré estava morto ou desaparecido. Fazia cinco meses que a Senhora o vira pela última vez.
Eu não consegui entender naquele momento, mas notei uma coisa estranha. Aquele abraço, o da Senhora, não foi tão efusivo quanto o da ruiva. Por quê? E a jovem Ruth, alvoroçada, continuou beijando e
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abraçando seu irmão mais velho, ao mesmo tempo que gritava o nome de Jesus. O Galileu, emocionado, acariciava os cabelos avermelhados da "esquilinha" e, timidamente, os de sua máe.
Demorei um pouco, mas acabei percebendo. A menina pendurada no pescoço de Jesus era a caçula da família, a filha póstuma de José, nascida na noite de 17 de abril do ano 9 de nossa era. Tinha completado 16 anos há cinco meses. Estremeci ao reconhecê-la. Estava mais atraente que no ano 30. Os olhos, igualmente amendoados e verdes - herança da Senhora -, e a pele transparente, de porcelana, levemente polvilhada por um punhado de
sardas, proporcionavam-lhe uma beleza quase enigmática. Usava o clássico chaluk, a túnica até o tornozelo. O que estava vestindo nesse momento era azul claro, brilhante, com um cordão amplo que realçava o belo busto.
O "incidente" começava se esclarecer. Tratava-se apenas do retorno de um filho. Foi o que viram ou entenderam os vizinhos e curiosos. Uma vez esclarecida a incógnita dos gritos, deram meia volta e desapareceram. E, finalmente, Eliseu e este que escreve, pudemos entrar naquele pátio a céu aberto. Um pátio comum, típico em Nahum, para onde convergiam as diferentes estâncias que integravam a casa. Era longo e relativamente estreito. Calculei que tinha quinze por seis metros. No fundo, alegrando a cor negra das paredes, abria-se uma romãzeira nova carregada de frutas. Embora estivéssemos no final do verão, a copa verde e arredondada ainda tinha alguns brotos de flores vermelhas, muito vivas. Eu diria que essa era a característica que distinguia aquela casa: as flores. Elas estavam em toda parte. Nos muros, nos terraços e nos jardins junto às paredes. Lembro sobretudo dos lírios negros, das rosas afogueadas de Sharon (na realidade, um tipo de tulipas), das delicadas coroas de Salomão, das voluntariosas margaridas brancas e amarelas, da tulipa da montanha cantada por Isaías, dos narcisos do mar; precursores da chuva, com as flores brancas como a neve, e da menta, com suas variedades de hortelã-pimenta e "pimentinha", suavizando os aromas desagradáveis dos fogões.
Só ao chegar ao umbral reparamos na terceira mulher. Permanecia imóvel, à nossa direita, quase pregada a uma daquelas portas baixas e
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J.J. BENÍTEZ
incómodas. Estava grávida. Ao seu lado, agarrada à túnica marrom, uma menina de uns quatro anos, com a cabeça raspada, assistia curiosa à cena de Ruth e da Senhora
abraçando aquele homem de 1,81 m de altura. Era Esta, a esposa de Tiago, irmão do Mestre. Achei que a menina, Raquel, a filha mais velha do casal, que conheci em Nazaré, não se parecia com seu tio. E estranhei a atitude de Esta. Parecia esquivar-se. Por que não tinha corrido ao encontro de Jesus?
O Mestre também percebeu a presença da tímida (?) cunhada e, libertandose delicadamente do abraço da Senhora, foi em direção à grávida. Ruth não permitiu que seu irmão mais velho a soltasse, e assim, pendurada a seu pescoço, acompanhou-o até Esta. Só ali concordou em descer do seu colo. Os pés descalços ostentavam vários aros de um material negro e brilhante.
Jesus, sorridente, esperou uma saudação ou uma palavra de cortesia. Contudo, Esta, perturbada, só respondeu com um sorriso amarelo. Ruth salvou a situação. Com sua natural espontaneidade, pegou a mão esquerda do recém-chegado e a colocou sobre o ventre da mulher.
- Presta atenção! - comentou a "esquilinha". -Já se mexe! Nascerá no adar
Isso queria dizer fevereiro, mais ou menos. Portanto, Esta devia estar no quinto mês de gestação.
O Mestre, com a mão estendida sobre a túnica, aguardava impaciente. E, em pouco tempo, o assombro e outro sorriso vieram confirmar as palavras da ruivinha. O feto tinha se mexido. E o Galileu passou da emoção ao riso.
- Está se mexendo! - gritou.
Não conseguia me acostumar. Aquela imagem de Jesus de Nazaré aguardando o chute de um bebé no ventre materno era absolutamente nova para mim... E a cena seguinte foi igualmente desconcertante.
Depois de acariciar as bochechas da menina de cabeça raspada, o Mestre se deu conta da nossa presença e, aproximando-se de sua mãe, cochichou
lhe alguma coisa. A Senhora pôs a criança que segurava no colo no pavimento escuro de pedra, veio até nós e, depois de nos desejar
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paz, pediu que ficássemos à vontade na casa. Estremeci. Maria não tinha me reconhecido. Nem podia. Agradecemos a hospitalidade e, sem saber muito bem o que fazer, demos alguns passos...
Foi tudo muito rápido. A uma ordem da Senhora, Ruth e Esta a seguiram e sumiram no interior de um dos aposentos. A menina, com os olhos fixos naqueles trêsjiomens, aos tropeções, sempre agarrada à túnica da mãe, também se perdeu na escuridão da estância.
E então Jesus, feliz, pegou no colo o menino que brincava perto da bacia, ergueu-o e perguntou:
- Quem és tu?
O bebé, que também tinha o crânio raspado (uma medida sábia contra as epidemias de piolhos que martirizavam todas as populações), observou Jesus, com seus enormes olhos azuis.
- Tu deves ser Amos!
A voz do Galileu, terna e suave, tremeu ligeiramente. Imaginei que o nome lhe trazia lembranças longínquas. Há muito tempo, quando tinha dezoito anos, seu irmão Amos faleceu em Nazaré aos seis anos de idade. Provavelmente, foi levado por uma epiglotite aguda. Conforme pude averiguar depois, Tiago e Esta decidiram homenagear o infeliz Amos dando seu nome ao primeiro de seus varões.
O Filho do Homem, absorto em suas viagens, conhecia pouco seus sobrinhos. E o bebé reagiu como era de se esperar. Primeiro fez beicinho. Em seguida, apesar das tentativas do Mestre de fazer amizade com a criatura, vieram as lágrimas. De nada serviram as palavras carinhosas. Amos, agitado no ar por aquele estranho, chorou mais ainda. O Galileu, sem saber como agir, levantou-o um pouco mais, acima da cabeça. E aconteceu. O menino, assustado, urinou e molhou o rosto e a barba do inexperiente tio.
Tive de me segurar para não soltar uma gargalhada. Eliseu, ao contrário, não conseguiu se conter, e os risos encheram o pátio. O próprio Jesus acabou se unindo ao deleite de meu irmão e também soltou boas risadas. Assim era aquele Homem...
Esta e Ruth retornaram em meio ao alvoroço. Foi Jesus, ainda com o menino entre as mãos, que confessou o ocorrido. E a "esquilinha" largou as
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J.J. BENÍTEZ
esteiras que estava carregando e se incumbiu de Amos, enchendo a criança de mimos. Esta enfileirou as esteirinhas de esparto ao pé da romázeira e limitouse a apontar para elas, sugerindo que nos sentássemos. Depois, sem palavras, pegou o bebê e voltou a se perder no interior de uma das estâncias.
Eliseu e eu obedecemos. E durante alguns instantes permaneci ensimesmado, acariciando com as pontas dos dedos o curioso trançado das cordas. Era como um barrote redondo, similar ao utilizado nas cobertas dos barcos. Alguém as tinha trabalhado com grande paciência e habilidade. O desenho me pareceu familiar - três círculos concêntricos -, mas, nesse momento, eu não entendi por quê. Naturalmente, não perguntei. Só alguns meses mais tarde descobri a identidade do artesanato das estranhas
esferas e a razão dos desenhos...
Creio que o que se segue ocorreu quase que simultaneamente. A ruivinha, com as mãos na cintura, desafiou o irmão com o olhar. E o Mestre, dando um passo para trás, negou com a cabeça.
Eliseu, sentado à minha esquerda, se mexeu inquieto. Eu não sabia o que estava acontecendo. Meu irmão examinou a túnica e ficou apalpando o cordão.
-Já disse para tirares a roupa! - ameaçou Ruth sem contemplações. - Não vou repetir!
Jesus voltou a negar e continuou andando para trás...
Eliseu, então, pálido, ergueu-se de um salto e, sem dizer nada, continuou examinando a roupa. Pensei em algum inseto...
Foi tudo muito rápido. Ao recuar, o Galileu tropeçou na bacia em que, aparentemente, a Senhora lavava quando ele chegou em casa. E o Mestre caiu na água espumosa estrepitosamente, provocando uma gargalhada fulminante de sua irmã.
Não sabia para onde olhar.
O engenheiro levantou as esteiras. Que diabos estava procurando? Depois, sem responder às minhas perguntas, dirigiu-se para o pórtico com a cabeça baixa. Fiquei de pé. Eliseu caminhava lentamente, passo a passo. Parecia perscrutar cada pedra do pavimento. Foi até os jardins e o vi revolvendo entre as flores.
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tre os tonéis. Essa era a única explicação mais ou menos lógica. O fato é que nos interceptou.
- Troco moedas! - gritou, ao mesmo tempo em que agitava uma bolsa de tecido diante dos olhos de Eliseu. - Necessitas de moeda romana? Talvez judia?
O sujeito, de baixa estatura, amarelado, com uma barba longa e tingida de vermelho, amarrada ao cordão, ostentava um parche de couro preto no olho esquerdo. Instintivamente, levantei os olhos, à procura do Mestre. Ele já tinha sumido no pórtico da suposta casa judia que tinha contemplado com tanto interesse. Quis me esquivar do "cambista", mas, habilmente, ele me segurou por uma das mangas, insistindo:
- ...Ofereço-te o dracma a vinte e cinco sestércios!
Eu nem recusei. Meus olhos continuavam fixos no pórtico. Eliseu, ao meu lado, tampouco conseguiu reagir.
- Está bem - disse o caolho -, posso te pagar quatro denários e meio pelo tetradracma.
E percebi que estávamos diante de um desses gatunos que infestavam Nahum. Um cambista oficial, autorizado pela Lei, não usaria esses termos. Naquela época, o dracma grego tinha a mesma cotação do denário de prata romano. Um tetradracma ou stater equivalia a quatro denários ou vinte e quatro sestércios. Ali tinha mutreta, como costumo dizer.
Enquanto tentava me safar do sujeito pegajoso com sua chamativa barba vermelha, ouvimos os primeiros gritos. Vinham do edifício onde o Filho do Homem acabara de entrar.
Ficamos assustados. O que estaria acontecendo? Os gritos aumentaram. Pareciam vozes de mulheres. Alguns transeuntes, também assustados, correram até o pórtico e se amontoaram na soleira.
Finalmente, consegui me livrar das garras do caolho e saltei o muro
rapidamente. Suponho que Eliseu fez o mesmo. Nem me virei para confirmar. Alguma coisa me dizia que tinha de ficar atento. Tratei de abrir passagem entre os curiosos que obstruíam o pórtico. Impossível. As pessoas, tão interessadas como eu, não me deixaram passar. E fiquei preso ali, com uma visão parcial do que ocorria naquele pátio aberto.
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A primeira coisa que vi foi uma mulher, abraçada fortemente ao Galileu. Estava quase que pendurada no seu pescoço. Era jovem. Atrás, ajoelhada diante de uma bacia, as mangas arregaçadas, outra mulher contemplava a cena. Ao lado, uma criança de alguns meses, que estava nua, sentada nas pedras, olhava boquiaberta. Eu não sabia quem eram essas pessoas, até então. Jesus e a mulher com quem estava abraçado encobriam a outra, que estava ajoelhada.
Como não percebi antes? Aqueles cabelos avermelhados... A jovem continuava gritando, e a criança, assustada, começou a chorar. Então ela se levantou e eu a reconheci. A de túnica arregaçada correu a pegar a criança, e apertando-a contra seu peito tentou consolá-la.
- E o tektôn - exclamavam alguns dos que me aprisionavam. - É o carpinteiro!... Ele voltou!
E a Senhora, com a criança no colo, uniu-se ao abraço, repetindo:
- Yesúa!... Tu voltaste!...
A Senhora, na verdade, era Míriam ou Maria, a mãe de Jesus de Nazaré. Achei-a mais magra. Nesse mês de setembro de 25 devia estar com uns quarenta e cinco anos de idade. Conservava parte de sua beleza. Os olhos rasgados, muito verdes, e agora umedecidos, e os cabelos pretos, desbotados, penteados com uma
risca no meio e presos na nuca, trouxeram gratas recordações.
- Diziam que havia morrido! - garantiu um dos vizinhos.
- Não - interveio um terceiro - a família afirmava que estava estudando na Alexandria!
Comecei a compreender. O Mestre estivera ausente por quase quatro anos, com duas ou três breves e esporádicas visitas aos seus. Foi o tempo das grandes viagens, como já mencionei. Uma etapa "secreta" - a única - que jamais foi desvendada. E, de fato, correram rumores de que o tektôn (carpinteiro e ferreiro) de Nazaré estava morto ou desaparecido. Fazia cinco meses que a Senhora o vira pela última vez.
Eu não consegui entender naquele momento, mas notei uma coisa estranha. Aquele abraço, o da Senhora, não foi tão efusivo quanto o da ruiva. Por quê? E a jovem Ruth, alvoroçada, continuou beijando e
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abraçando seu irmão mais velho, ao mesmo tempo que gritava o nome de Jesus. O Galileu, emocionado, acariciava os cabelos avermelhados da "esquilinha" e, timidamente, os de sua mãe.
Demorei um pouco, mas acabei percebendo. A menina pendurada no pescoço de Jesus era a caçula da família, a filha póstuma de José, nascida na noite de 17 de abril do ano 9 de nossa era. Tinha completado 16 anos há cinco meses. Estremeci ao reconhecê-la. Estava mais atraente que no ano 30. Os olhos, igualmente amendoados e verdes - herança da Senhora -, e a pele transparente, de porcelana, levemente polvilhada por um punhado de
sardas, proporcionavam-lhe uma beleza quase enigmática. Usava o clássico chaluk, a túnica até o tornozelo. O que estava vestindo nesse momento era azul claro, brilhante, com um cordão amplo que realçava o belo busto.
O "incidente" começava se esclarecer. Tratava-se apenas do retorno de um filho. Foi o que viram ou entenderam os vizinhos e curiosos. Uma vez esclarecida a incógnita dos gritos, deram meia volta e desapareceram. E, finalmente, Eliseu e este que escreve, pudemos entrar naquele pátio a céu aberto. Um pátio comum, típico em Nahum, para onde convergiam as diferentes estâncias que integravam a casa. Era longo e relativamente estreito. Calculei que tinha quinze por seis metros. No fundo, alegrando a cor negra das paredes, abria-se uma romãzeira nova carregada de frutas. Embora estivéssemos no final do verão, a copa verde e arredondada ainda tinha alguns brotos de flores vermelhas, muito vivas. Eu diria que essa era a característica que distinguia aquela casa: as flores. Elas estavam em toda parte. Nos muros, nos terraços e nos jardins junto às paredes. Lembro sobretudo dos lírios negros, das rosas afogueadas de Sharon (na realidade, um tipo de tulipas), das delicadas coroas de Salomão, das voluntariosas margaridas brancas e amarelas, da tulipa da montanha cantada por Isaías, dos narcisos do mar; precursores da chuva, com as flores brancas como a neve, e da menta, com suas variedades de hortelá-pimenta e "pimentinha", suavizando os aromas desagradáveis dos fogões.
Só ao chegar ao umbral reparamos na terceira mulher. Permanecia imóvel, à nossa direita, quase pregada a uma daquelas portas baixas e
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incómodas. Estava grávida. Ao seu lado, agarrada à túnica marrom, uma menina de uns quatro anos, com a cabeça raspada, assistia curiosa à cena de Ruth e da Senhora
abraçando aquele homem de 1,81 m de altura. Era Esta, a esposa de Tiago, irmão do Mestre. Achei que a menina, Raquel, a filha mais velha do casal, que conheci em Nazaré, não se parecia com seu tio. E estranhei a atitude de Esta. Parecia esquivar-se. Por que não tinha corrido ao encontro de Jesus?
O Mestre também percebeu a presença da tímida (?) cunhada e, libertandose delicadamente do abraço da Senhora, foi em direção à grávida. Ruth não permitiu que seu irmão mais velho a soltasse, e assim, pendurada a seu pescoço, acompanhou-o até Esta. Só ali concordou em descer do seu colo. Os pés descalços ostentavam vários aros de um material negro e brilhante.
Jesus, sorridente, esperou uma saudação ou uma palavra de cortesia. Contudo, Esta, perturbada, só respondeu com um sorriso amarelo. Ruth salvou a situação. Com sua natural espontaneidade, pegou a mão esquerda do recém-chegado e a colocou sobre o ventre da mulher.
- Presta atenção! - comentou a "esquilinha". - Já se mexe! Nascerá no adar
Isso queria dizer fevereiro, mais ou menos. Portanto, Esta devia estar no quinto mês de gestação.
O Mestre, com a mão estendida sobre a túnica, aguardava impaciente. E, em pouco tempo, o assombro e outro sorriso vieram confirmar as palavras da ruivinha. O feto tinha se mexido. E o Galileu passou da emoção ao riso.
- Está se mexendo! - gritou.
Não conseguia me acostumar. Aquela imagem de Jesus de Nazaré aguardando o chute de um bebé no ventre materno era absolutamente nova para mim... E a cena seguinte foi igualmente desconcertante.
Depois de acariciar as bochechas da menina de cabeça raspada, o Mestre se deu conta da nossa presença e, aproximando-se de sua mãe, cochichou
lhe alguma coisa. A Senhora pôs a criança que segurava no colo no pavimento escuro de pedra, veio até nós e, depois de nos desejar
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paz, pediu que ficássemos à vontade na casa. Estremeci. Maria não tinha me reconhecido. Nem podia. Agradecemos a hospitalidade e, sem saber muito bem o que fazer, demos alguns passos...
Foi tudo muito rápido. A uma ordem da Senhora, Ruth e Esta a seguiram e sumiram no interior de um dos aposentos. A menina, com os olhos fixos naqueles três homens, aos tropeções, sempre agarrada à túnica da mãe, também se perdeu na escuridão da estância.
E então Jesus, feliz, pegou no colo o menino que brincava perto da bacia, ergueu-o e perguntou:
- Quem és tu?
O bebé, que também tinha o crânio raspado (uma medida sábia contra as epidemias de piolhos que martirizavam todas as populações), observou Jesus, com seus enormes olhos azuis.
- Tu deves ser Amos!
A voz do Galileu, terna e suave, tremeu ligeiramente. Imaginei que o nome lhe trazia lembranças longínquas. Há muito tempo, quando tinha dezoito anos, seu irmão Amos faleceu em Nazaré aos seis anos de idade. Provavelmente, foi levado por uma epiglotite aguda. Conforme pude averiguar depois, Tiago e Esta decidiram homenagear o infeliz Amos dando seu nome ao primeiro de seus varões.
O Filho do Homem, absorto em suas viagens, conhecia pouco seus sobrinhos. E o bebé reagiu como era de se esperar. Primeiro fez beicinho. Em seguida, apesar das tentativas do Mestre de fazer amizade com a criatura, vieram as lágrimas. De nada serviram as palavras carinhosas. Amos, agitado no ar por aquele estranho, chorou mais ainda. O Galileu, sem saber como agir, levantou-o um pouco mais, acima da cabeça. E aconteceu. O menino, assustado, urinou e molhou o rosto e a barba do inexperiente tio.
Tive de me segurar para não soltar uma gargalhada. Eliseu, ao contrário, não conseguiu se conter, e os risos encheram o pátio. O próprio Jesus acabou se unindo ao deleite de meu irmão e também soltou boas risadas. Assim era aquele Homem...
Esta e Ruth retornaram em meio ao alvoroço. Foi Jesus, ainda com o menino entre as mãos, que confessou o ocorrido. E a "esquilinha" largou as
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esteiras que estava carregando e se incumbiu de Amos, enchendo a criança de mimos. Esta enfileirou as esteirinhas de esparto ao pé da romázeira e limitouse a apontar para elas, sugerindo que nos sentássemos. Depois, sem palavras, pegou o bebê e voltou a se perder no interior de uma das estâncias.
Eliseu e eu obedecemos. E durante alguns instantes permaneci ensimesmado, acariciando com as pontas dos dedos o curioso trançado das cordas. Era como um barrote redondo, similar ao utilizado nas cobertas dos barcos. Alguém as tinha trabalhado com grande paciência e habilidade. O desenho me pareceu familiar - três círculos concêntricos -, mas, nesse momento, eu não entendi por quê. Naturalmente, não perguntei. Só alguns meses mais tarde descobri a identidade do artesanato das estranhas
esferas e a razão dos desenhos...
Creio que o que se segue ocorreu quase que simultaneamente. A ruivinha, com as mãos na cintura, desafiou o irmão com o olhar. E o Mestre, dando um passo para trás, negou com a cabeça.
Eliseu, sentado à minha esquerda, se mexeu inquieto. Eu não sabia o que estava acontecendo. Meu irmão examinou a túnica e ficou apalpando o cordão.
-Já disse para tirares a roupa! - ameaçou Ruth sem contemplações. - Não vou repetir!
Jesus voltou a negar e continuou andando para trás...
Eliseu, então, pálido, ergueu-se de um salto e, sem dizer nada, continuou examinando a roupa. Pensei em algum inseto...
Foi tudo muito rápido. Ao recuar, o Galileu tropeçou na bacia em que, aparentemente, a Senhora lavava quando ele chegou em casa. E o Mestre caiu na água espumosa estrepitosamente, provocando uma gargalhada fulminante de sua irmã.
Não sabia para onde olhar.
O engenheiro levantou as esteiras. Que diabos estava procurando? Depois, sem responder às minhas perguntas, dirigiu-se para o pórtico com a cabeça baixa. Fiquei de pé. Eliseu caminhava lentamente, passo a passo. Parecia perscrutar cada pedra do pavimento. Foi até os jardins e o vi revolvendo entre as flores.
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Dei uma olhada para Jesus. Ele continuava sentado num canto da bacia, ensopado e com um sorriso de orelha a orelha. Ruth correu até ele e se apressou em ajudá-lo.
Mas o Mestre, a julgar por sua tranqüilidade, só tinha levado um susto. E o deixei ali, com as longas pernas sobressaindo acima do enorme recipiente. Achei que tinha de dar prioridade ao meu irmão. Mas o que se passava?
Encontrei-o na soleira da porta. Perguntei-lhe de novo, mas não me ouviu. Estava pálido. Abaixou-se, revistando os degraus. E, diante de minha perplexidade, voltou a entrar no pátio, examinando o que já tinha explorado. A "esquilinha", no fundo, tinha começado a desnudar um Jesus de Nazaré totalmente submisso.
Ao retornar ao pórtico, Eliseu, resmungando palavras irreproduzíveis, passou por mim apressadamente. Foi até o meio da rua e ficou um tempo examinando as pedras do pavimento. Os transeuntes, curiosos, aproximavam-se e por fim lhe perguntaram. Foi então que, para sanar minha dúvida e evitar um mal maior, arrastei-o para longe do pequeno grupo e o obriguei a falar.
- A bolsa! - lamentou com um fio de voz. - Desapareceu!
E apontando para o cordão onde normalmente amarrava sua bolsa de lona com o dinheiro desculpou-se:
- Sinto muito!... Não sei o que aconteceu...
Procurei animá-lo. Aquilo fazia parte do dia-a-dia. Será que não tinha perdido? Meu irmão negou categoricamente essa possibilidade. Fiquei em dúvida. Embora Eliseu fosse extremamente cuidadoso, ela poderia muito bem ter se soltado no caminho. Talvez isso tenha ocorrido no incidente diante da pousada de Sitio.
Continuou negando. Afirmou que estava com a bolsa ao entrar em Nahum. Lembrava bem porque, no labirinto do bairro oriental, em uma das vezes em que saímos para o lado, para dar passagem a um jumento, ele a tinha protegido com as duas mãos. Será que perdeu no caminho até a casa onde morava a família de
Jesus? Será que roubaram?
O engenheiro não desistia, e interrogou os empregados e os proprietários dos pontos de comércio mais próximos. Eles não sabiam de
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nada. E se sabiam, ninguém quis se comprometer. Consideramos a possibilidade de um roubo durante aqueles minutos em que ficamos imobilizados, quase presos, no pórtico. Concordamos que talvez esse fosse um momento-chave. Na confusão, o ladrão, ou ladrões, podia ter aproveitado para fazer o butim. No total, eram uns quinze denários. Sobraram dez. Dinheiro mais do que suficiente para chegar ao alto do Ravid, desde que retornássemos dentro de poucos dias. Esse era o problema. Na verdade, não sabíamos nada sobre os planos do Mestre. Será que ele ficaria em Nahum? E, nesse caso, ficaria por quanto tempo?
O consolo é que se tivesse perdido a outra bolsa de lona, a situação ficaria muito mais comprometida. Além de uma parte do dinheiro, este que escreve, como se recordam, costumava levar as lentes de contato - os "crótalos" -, fundamentais para a visão noturna e na aplicação de alguns dos sistemas localizados na "vara de Moisés", em particular os defensivos.
Foi então que, refazendo o caminho até a casa, fui assaltado por aquela idéia. Contudo, preferi afastá-la e me mantive em silêncio. O que eu ganhava atormentando meu companheiro? Mas a imagem não me saía da cabeça... eu não estava enganado. Nem Eliseu nem eu fizemos comentário algum. Voltamos a sentar debaixo da romãzeira e ficamos esperando. Nós dois já tínhamos aprendido que não adiantava se rebelar contra o Destino...
Ruth obrigou o irmão mais velho a abaixar a cabeça e, decidida, esfregou
os cabelos com um pó branco e espesso. Depois os enxaguou com a ajuda de uma gamela de madeira. O Mestre, com as barbas revoltas coladas no tórax robusto, não resistia. Pela espuma e pela cor, deduzia-se que a jovem o estava lavando e desinfetando com natrão, uma espécie de sabão, muito utilizado naquele tempo, que era extraído das raízes da barrilha e da salicórnia ricas em sais alcalinos. Depois de trituradas, essas raízes eram reduzidas a cinzas e transformadas em detergente em pedra ou em pó. O carbonato de sódio era implacável com a sujeira e com os parasitas, em especial os da incómoda família dos pediculus, os piolhos, também combatidos com o vinagre e a babosa púrpura. Quase todas as crianças tinham as cabeças raspadas e eram besuntadas diariamente com
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esses produtos. O odor, ácido e desagradável, era sentido a distância. Para os mais rigoristas com a Lei mosaica, o natráo tinha toda uma simbologia, cantada pelo profeta Jeremias (2, 22), insuficiente para dirimir o pecado dos infiéis. Como confirmaríamos nas visitas posteriores a Nahum, e também a outros povoados, aquele "sabão" fabricado no Egito e na Síria era um excelente negócio.
Jesus, obediente, jogou a cabeça para trás, e a ruivinha, com suavidade e doçura, foi penteando os longos cabelos. O sol, tão atento como nós, contribuiu com sua luz. E o Mestre, relaxado, deixou que o fizesse. Pouco depois, dirigiu-se à mesma porta pela qual as mulheres haviam entrado e saído.
Ruth, incansável, tentou remover a bacia de pedra. Não conseguiu nem mexê-la do lugar. Por causa da água e das dimensões, era pesada demais para a frágil "esquilinha". Acho que não tinha mais que 1,60 metro de altura; mais ou menos como a Senhora.
Não perdemos tempo. Meu irmão e este que escreve, ao percebermos isso, erguemos o recipiente, prontos a transportá-lo. E Ruth, agradecida, apressou-se a nos abrir caminho até o curral existente a alguns passos da romãzeira, na extremidade norte da propriedade. Empurrou uma portinha de madeira e entramos em um retângulo não pavimentado, forrado de cinza basáltica, tão abundante em Nahum. Apontou para o canto esquerdo, junto a um alpendre. Algumas galinhas pretas, de pequeno porte e com o pescoço e o peito depenados, fugiram precipitadamente, protestando pela súbita interrupção. A moça puxou uma segunda porta e mostrou o buraco onde devíamos esvaziar a bacia. Era o chamado "quarto secreto". Um estrado, duas bacias de metal e várias esponjas, penduradas em pregos na parede, a um metro do tablado, eram toda a mobília do banheiro da família.
Percebi que a menina estava ficando vermelha. Despejamos a água e, discretamente, a seguimos de volta ao pátio. É claro que aproveitei para fixar referências. Naquele momento eu ainda não sabia, mas a casa em que nos encontrávamos seria de particular importância durante uma longa temporada...
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No curral, do mesmo modo que na habitação da Senhora em Nazaré, além dos animais e do mencionado "quarto secreto", armazenava-se todo tipo de utensílios, geralmente de pouca utilidade, entre os quais distingui ferramentas, sacolas de folha de palmeira penduradas nas paredes, panos de redes e vários sacos de juta, sob o alpendre de bambu, supostamente cheios de cereal. No canto direito, encostado à parede, reconheci o forno típico onde assavam o pão.
Ruth se desculpou e desapareceu momentaneamente. Eliseu foi se sentar nas esteiras dos três círculos, e eu, sem poder ajudá-lo, dei asas à minha
curiosidade, que é meu passatempo favorito...
Eu estava errado. O pátio a céu aberto não era de fato um retângulo, como tinha imaginado, ao observá-lo do pórtico. Ainda há pouco, quando estávamos indo para o curral, constatei que tinha a forma de "L". Esse pátio dividia a propriedade em quatro blocos ou unidades familiares (para descrevê-lo, tomarei sempre como referência principal o pórtico citado). À direita, erguiam-se as duas dependências. A primeira era habitada por Tiago e sua família. Era o único edifício de duas plantas. Uma escada de pedra, ligada à fachada, permitia o acesso ao terraço. Foi na porta dessa residência que vimos pela primeira vez a grávida e sua filha, Raquel, agarrada à túnica.
A unidade seguinte, ligada à anterior, era a casa propriamente dita da Senhora. Ela vivia com Ruth. Dispunha de outra escada externa, que conduzia igualmente ao terraço. Foi por essa porta, sempre aberta, que vimos as mulheres entrarem e saírem, e também Jesus desaparecer coberto com o lençol e, agora, a "esquilinha". Ali, bem defronte a essa porta, a três metros, via-se a jovem romãzeira. Era o lugar onde a família costumava se reunir quando o tempo estava bom. Ali, à sombra da árvore, trocavam-se impressões, fazia-se o desjejum e se recebiam os amigos.
A curta distância da romãzeira, o pátio se abria em ângulo reto, formando o tal "L". Nessa mesma mão, à direita, junto à casa da Senhora e de Ruth, ficava o curral. Era fechado por uma portinha barulhenta de tábuas que fazia esquina com o terceiro edifício, também de pedra escura, e com uns quatro metros de altura. Quando tivemos acesso a ele, ficamos
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sabendo que ali funcionavam a cozinha e o refeitório, que se costumava utilizar no inverno quando as condições meteorológicas não permitiam ficar o tempo todo no pátio. A sala, com dois níveis, era muito parecida com a da residência de Nazaré.
No final deste braço mais curto do "L", no muro de três metros de altura que circundava a propriedade, descobri outra porta, mais modesta que o pórtico, quase sempre fechada, que se comunicava com o exterior. Era uma espécie de "saída de emergência", utilizada em circunstâncias muito especiais.
Em frente à cozinha "de inverno", completando o desenho, o pátio aberto, erguia-se a quarta unidade familiar: outro edifício, parecido com os anteriores, que ocupava o lado esquerdo do pátio. Era celeiro e despensa. Ali foi aberta uma cisterna, na qual se armazenava água da chuva. O terraço dispunha de um engenhoso sistema de coleta, projetado porTiago, o irmão do Mestre, e sobre o qual falarei, espero, no momento oportuno. Para chegar a esse terraço era preciso utilizar uma escada portátil.
A "casa das flores" - como a batizamos Eliseu e eu - tinha, portanto, quatro dependências e um curral. Todas as portas, pelo que sei, davam para o pátio. Contei quatro (sem mencionar a do curral e as duas externas), largas e baixas, que obrigavam a pessoa a se inclinar. Cada uma tinha sua cortina, formada por uma rede embreada que protegia o interior dos insetos e dos olhares indiscretos. Aquele tipo de pátio, em última análise, era comum em Nahum e em muitos outros povoados das margens do yam. Era ali, à sombra das árvores, sobre as lajes de pedra escura e entre as flores, que transcorria boa parte da vida dos galileus e, naturalmente, onde viveu também o Filho do Homem.
Jesus reapareceu no pátio. Eliseu e eu nos olhamos. Tinha trocado sua indumentária habitual por uma túnica também de linho, mas de um
vermeIho-fogo, muito chamativo. Era a primeira vez que o via vestido de uma cor que não fosse o branco. Teríamos de nos acostumar a isso também.
Segunda surpresa: trazia nas mãos o ramo de oliveira que tínhamos dado de presente a ele algumas semanas antes, no Hermon. Não disse nada. Observou o pátio e caminhou em direção ao jardim situado perto da porta da despensa, à esquerda do pórtico. Achamos que tinha a inten
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cão de plantá-lo entre as flores. Examinou o buraco deixado por um dos vivíssimos círculos de anémonas coronárias encarnadas e, de fato, ajoelhou-se, disposto a salvar o broto.
Mas logo se levantou, deixando o galho no solo cinzento do estreito jardim. E voltou para trás. Passou por estes intrigados exploradores, foi até a esquina direita do pátio e parou em frente à porta do curral. Vacilou uns instantes, depois abriu e se perdeu no alçapão. Eliseu encolheu os ombros.
Assaltado mais uma vez por aquele pensamento em que eu "via" o responsável pelo roubo da bolsa de meu companheiro, não prestei muita atenção e fiquei esperando, quase que mecanicamente, que o Galileu voltasse. Mas quem apareceu não foi o Mestre. Subitamente, irromperam no pátio as galinhas de "pescoço pelado". Eram dez ou doze. Ao abrir a portinhola, Jesus não teve o cuidado de fechá-la novamente. E, aproveitando a circunstância, em poucos segundos a inquieta família se espalhou e ficou ciscando naquele canto do pátio. Não demos maior importância ao fato...
Jesus voltou e, ao constatar a fuga das galinhas, ergueu os braços, dirigindo-se com suas largas passadas às mais próximas. Na mão esquerda
agitava um almocafre, uma pequena enxada com dois dentes curvados que se costumava utilizar na agricultura (em geral na limpeza e no replante de flores e arbustos). Evidentemente, era a ferramenta que precisava para plantar o galho, e que ele tinha ido buscar no curral.
Atónitos, ficamos de pé.
O Mestre, correndo, abaixando-se e usando os dois braços, tentava sufocar a "rebelião", levando-as de volta até a porta de tábuas. Contudo, a sorte não parecia estar do seu lado...
- Coco..., coco!
Quando uma das aves, protestando contra a perseguição, estava sendo levada para o curral, as outras cruzavam o seu caminho, frustrando os esforços do Galileu. E começava tudo de novo...
Eliseu foi contagiado e uniu-se à inútil perseguição. Não só não conseguiram levar as espertas galinhas de volta ao seu recinto, como também, mais de uma vez, tropeçaram um no outro. E foi em um desses tropeços que ambos acabaram caindo por terra. Assim terminou a perseguição.
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O alvoroço chamou a atenção das mulheres, e as três vieram para o celeiro, onde presenciaram o desastre. Foram elas que, habilmente, dominaram as intrusas e as devolveram ao curral.
Jesus voltou ao jardim sob o olhar acusador das mulheres. Ao passar por mim, deu-me uma piscada maliciosa, e cochichou:
- As rebeliões não são o meu forte...
Pouco depois, lá estava ele atarefado em uma cuidadosa operação, plantando e molhando o eb ou broto de oliveira. O galho permaneceu ali, até que o Destino resolveu mudá-lo de lugar.
As mulheres falaram sobre a ceia. Onde a preparariam? Ainda faltavam três horas para o crepúsculo e o vento continuava forte e incómodo. Esta achava que o fogão no pátio não era uma boa idéia. O maarabit poderia transformar a ceia em uma tortura. Ruth concordou. O mais sensato era a cozinha de inverno. Trabalhariam ali. E, puxando a Senhora, a ruivinha seguiu em direção ao imóvel que se erguia no fundo do pátio. A grávida, por sua vez, com a menina agarrada em sua túnica, foi em direção oposta, para sua casa.
Eu não sabia como explicar. O mutismo de Maria, a mãe de Jesus - a Senhora - me deixara desconcertado. No ano 30, quando a conheci, era agitadíssima. Ela comandava tudo e andava de um lado para outro cem cessar. Agora, ao contrário, ficava em segundo plano e, na maior parte das vezes, ausente. O que estava acontecendo?
Concluída a plantação do ramo, o Mestre foi se sentar ao nosso lado, nas esteiras. Foram alguns segundos densos e intermináveis em que ninguém abriu a boca. Nós acabaríamos nos acostumando a essas situações, aparentemente incómodas, dominadas pelo silêncio. Foi preciso algum tempo para que entendêssemos por que o Filho do Homem amava o silêncio. Era sua cor preferida no arco-íris. "Por que falar - dizia - se o silêncio fala por nós?... O silêncio é o idioma nato do amor."
E assim permaneceu, pensativo, percorrendo os círculos de junco com a ponta do dedo indicador direito. E eu, pobre de mim, não me dei conta do significado daquele gesto, aparentemente trivial. Três círculos concêntricos!
Eliseu, menos diplomático, rompeu o silêncio e o jogo misterioso de Jesus para fazer uma pergunta que - admito - também me deixara in
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trigado. De quem era aquela casa? Por que tinham se mudado de Nazaré para Cafarnaum ou Nahum?
O Mestre interrompeu o traçado sobre os círculos e nos contemplou com doçura. Compreendia perfeitamente nossa curiosidade. Jogou para trás os cabelos úmidos e deixou que o maarabit nos envolvesse. Depois, com os olhos fechados, foi recordando...
Aconteceu há quatro anos, no mês de tébet (dezembro-janeiro). Nesse ano 21 de nossa era, em uma manhã chuvosa de domingo, Jesus deixou Nazaré. Queria conhecer o mundo. Queria saber sobre as criaturas. Jamais voltaria à pequena aldeia, pelo menos para ficar de vez. Sua mãe e seus irmãos não conseguiam entender...
Estava prestes a iniciar a magnífica e secreta etapa das viagens pelo Mediterrâneo e pelo Oriente. Porém, o Destino, como não poderia deixar de ser, veio ao seu encontro...
Foi no yam, no povoado vizinho de Saidan. Ali vivia uma família com quem José, seu pai terreno, sempre manteve uma relação estreita e afetuosa. Jesus sorriu e pronunciou um nome bastante conhecido:
- Zebedeu...
O velho pescador e construtor de barcos, de fato, era sócio e amigo de José, carpinteiro de exteriores e empreiteiro de obras, falecido, como todos se recordam, no dia 25 de setembro do ano 8, quando o Galileu tinha catorze anos de
idade. O velho Zebedeu e José trabalharam e fizeram negócios juntos. Toda a família de Saidan o conhecia e o estimava. Por isso, quando Jesus chegou ao casarão da praia, foi recebido de braços abertos. Foi nesse mês de janeiro que o Mestre iniciou sua amizade com a família. Embora já tivesse encontrado com eles em outras ocasiões, foi nesse começo do ano 21 que ficou íntimo dos filhos do patriarca, especialmente João.
Os Zebedeu necessitavam de mão-de-obra no pequeno estaleiro existente na foz do rio Korazain e, conhecendo a habilidade de Jesus como carpinteiro e forjador, propuseram-lhe que trabalhasse para eles.
- ...O Pai decidiu que sim - disse o Mestre, encantado diante da possibilidade de recordar.
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- O pai? - interrompeu Eliseu sem compreender. - Por que o velho Zebedeu decidiu?
O Mestre negou com um leve movimento da cabeça. Depois, erguendo o rosto para o azul do céu, ponderou:
-Teu Chefe... O "Barbudo", como o chamais...
Meu irmão, satisfeito, animou-o a prosseguir.
Jesus viveu no casarão de Saidan por treze meses. Todos gostavam dele. Especialmente as quatro filhas, irmãs de Tiago, João e Davi (que mais tarde se tornaria chefe dos "correios").
E, por um instante, pensei: será que uma das filhas do velho Zebedeu e de Salomé se apaixonou pelo belo Galileu? Afastei a idéia estúpida, porém...
Durante esses meses, como havia prometido, Jesus enviou dinheiro para sua família em Nazaré. Só no marjesván (outubro-novembro) visitou novamente a mãe, e assistiu ao casamento de Marta, a segunda irmã12. Depois desapareceu outra vez. A Senhora não o veria de novo nos dois anos seguintes.
O Mestre inscreveu-se no censo de Nahum. Ali pagou seus impostos. O povoado acabou se tornando "sua cidade", como afirmam Mateus e Marcos, desta vez acertadamente. Jesus figurava simplesmente como "artesão especializado".
E no mês de março do ano seguinte (22 da nossa era), o Galileu, desde essa data "cidadão de Nahum", seguiu seu Destino. Para tristeza dos Zebedeu - especialmente das filhas - despediu-se e partiu rumo ao sul, iniciando a primeira de suas longas e apaixonantes viagens. (Ainda me pergunto se devo incluir essa informação neste diário. Quem sabe?...)
12 Embora as religiões não aceitem isso, o Mestre teve mais irmãos. Jesus foi o primogénito. Depois nasceram Tiago (madrugada de 2 de abril do ano 3 a.C.), Míriam (noite de 11 de julho do ano 2 a.C.), José (manhã de quarta-feira, 16 de março do ano l de nossa era), Simão (noite de 14 de abril do ano 2), Marta (15 de setembro do ano 3), Judá (24 de junho do ano 5), Amos (nascido na noite de domingo, 9 de janeiro do ano 7, e falecido no dia 3 de dezembro do ano 12) e Ruth (noite de quarta-feira, 17 de abril do ano 9). Os teólogos e exegetas, absurdamente preocupados com a virgindade da Senhora, consideram o termo ah (irmão) e ahot (irmã) como "parente". No ano 4, após um áspero debate, a Igreja católica concedeulhe o título de "Mãe de Deus". (N. do M.)
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Antes de seguir caminho, o Mestre pediu um favor ao seu amigo João
Zebedeu. Durante sua ausência, ele deveria enviar uma certa quantia de dinheiro à sua mãe em Nazaré. Jesus tinha optado por receber uma pequena soma mensal - por conta do salário estabelecido -, e guardar o resto para o futuro. Agora era o momento de abrir mão desses denários para ajudar sua gente. O Zebedeu concordou, comprometendo-se a fazer isso "e tudo o que fosse necessário". Quando João perguntou sobre o destino da viagem e o tempo em que permaneceria longe do yam, Jesus respondeu: "Isso quem decide é meu Pai. Voltarei quando chegar o momento".
Nem é preciso dizer que o Zebedeu ficou sem entender. Também não era o momento...
Porém, como estava dizendo, cumpriu sua palavra. E com o dinheiro acumulado respeitou o pacto e fez algo mais. Durante dois anos enviou mil e duzentos denários de prata para a Senhora, e com o resto - outros mil - aventurou-se a comprar uma casa em Nahum. Justamente aquela em que descansávamos agora. Pagou a hipoteca e procedeu à liquidação da dívida, estendendo o título de propriedade ao nome de seu amigo, "Jesus de Nahum". Dessa forma, enquanto se encontrava ausente, o Mestre tornou-se proprietário. Foi sua única propriedade durante toda a vida.
Como já disse, somente uma pessoa teve conhecimento dos lugares que o Galileu visitou nesses anos. Porém, o velho Zebedeu não revelou nada até a morte do Filho do Homem...
E, no final do ano 23, ao retornar a Nahum, o Mestre teve uma dupla e grata surpresa. Primeiro, a titularidade da casa, muito próxima do cais13, e, além disso, a presença de Tiago, seu irmão, no estaleiro dos Zebe
Antes do início da operação "Cavalo de Tróia", tive a oportunidade de visitar as escavações arqueológicas comandadas pelos franciscanos Virgílio Corbo e Estanislao Loffreda, do Instituto Bíblico de Jerusalém, nas atuais ruínas de
Cafarnaum (Nahum). Era o ano de 1968. Pois bem, lamento náo concordar com as apreciações desses honoráveis pesquisadores. A autêntica casa de Jesus ficava um pouco mais ao sul e era menos espaçosa que a chamada insula sacra. Segundo uma tradição cristã, Pedro dispunha de casa própria em Nahum, e sobre ela, ao que parece, foi edificada uma igreja octogonal no século V. A suposta casa de Pedro, segundo a arqueologia, reunia um total de doze habitações. A que eu considero como a de Jesus tinha quatro quartos ou módulos, sem contar o curral. (N, do M.)
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deu. A pedido da família de Saidan, o segundo dos varões tinha ocupado a vaga deixada por Jesus. A moradia, como disse, era suficientemente grande para acolher várias pessoas. Assim, generosamente, o Galileu convidou Tiago e Esta para se mudarem para a "casa das flores". E eles continuavam ali, ocupando a primeira das dependências (a de duas alturas).
Jesus voltou a Nazaré e visitou os seus. Alguns já o imaginavam morto. Outros achavam que ele estava em terras do Egito, estudando nas prestigiadas escolas rabínicas. Ninguém acertou.
E no mês de nisán (março-abril) do ano 24, o Mestre assistiu a um duplo casamento: o de Simáo e Judá, seus irmãos, com 22 e 19 anos, respectivamente. Apenas Ruth continuava solteira. Era a única que vivia com Maria, a Senhora.
E o Destino bateu novamente à porta do Galileu...
Estava prestes a iniciar uma segunda viagem. Uma viagem que se prolongaria por mais um ano. Mas, antes de partir, o primogénito, prudentemente, reuniu a família
e sugeriu a possibilidade de uma mudança; a Senhora e a "esquilinha" podiam ir morar na "casa das flores", em Nahum, em companhia de Tiago. A idéia foi discutida e acabou sendo aceita. Além disso, a situação em Nazaré, em razão das venenosas intrigas de Ismael, o saduceu14, que era o hazan ou responsável pela sinagoga, complicava-se cada dia mais.
E, em abril desse ano de 24 de nossa era, pouco antes da partida do Filho do Homem para o leste, sua mãe a sua irmã foram para Nahum e se instalaram no edifício contíguo ao de Tiago e Esta. Salvo raras ocasiões - algumas de triste memória - a Senhora não retornou a Nazaré. Viveu em Nahum e, ao que parece, ali morreu, por volta do ano da crucificação de Jesus (abril de 30). E suponho que seus restos mortais continuem ali, felizmente no anonimato. Ruth completou seu décimo sexto aniversário na nova casa, às margens do yam.
14 Há mais informações em Saidan. Cavalo de Tróia 3, Nazaré. Cavalo de Tróia 4, Cesáría. Cavalo de Tróia 5. (N. do A.)
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No ano 25, o Mestre deu por encerrada essa segunda viagem, retornando a Israel. Mas foi por pouco tempo. Depois de uma visita rápida à família, partiu novamente e desapareceu. Nós o encontramos em agosto, na cadeia montanhosa do Hermon, ao norte. Hoje, 18 de setembro, Jesus estava retornando a Nahum, à sua casa, depois de cinco meses de ausência. E então compreendi o alvoroço da irmãzinha. Em compensação, a atitude da Senhora, fria e distante, era inexplicável para mim. Nessa mesma noite, durante a ceia, creio que entendi a razão do comportamento estranho da mãe...
As explicações do Galileu foram interrompidas pela chegada da bela Ruth.
Ela vinha trazendo três gamelas de madeira com um refresco típico da costa do yam; a abattíab, uma deliciosa mistura de suco de melancia, romã e um vinho negro e doce que não consegui identificar, mas que me agradou. O primeiro a receber a bebida foi este explorador. Assim o exigiam as leis da hospitalidade.
De joelhos sobre as pedras, a jovenzinha pegou uma das rações e, em silêncio, ofereceu a mim. Como esquecer aquele olhar? Irradiava a doçura do Mestre e a beleza e a espontaneidade da Senhora. Não sei o que aconteceu. Simplesmente, não conseguia desgrudar daqueles olhos verdes... A moça, timidamente, baixou os olhos.
Eliseu agradeceu a abattíah. Ainda bem; eu não consegui, ou não fui capaz, de articular uma só palavra... Jesus foi o último a receber o "aperitivo". Segurou a gamela entre as mãos, e como era seu costume, ergueu-a um pouco, fazendo um brinde:
- Lehaiml
- Pela vida! - retribuiu meu companheiro.
Eu continuei mudo, como já disse, sem entender o que se passava comigo.
E Jesus, percebendo meu silêncio, repetiu o brinde, incitando-me a participar do nobre desejo.
- Pela vida! - respondi, finalmente, com a voz tolhida por aquele súbito sentimento. - Lehaim
E meus olhos, sem que eu pudesse impedir, acompanharam a rápi
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da e delicada silhueta da moça. Desde então, as coisas nunca mais foram
as mesmas para este perplexo explorador...
Meu irmão elogiou o bom gosto das cozinheiras, e o Mestre, sem desviar seus olhos penetrantes dos meus, esclareceu as dúvidas do engenheiro sobre os ingredientes da abattíah.
Desta vez fui eu quem baixou os olhos sentindo-me observado. Não sei como explicar. Ele lia nos corações...
- Tu te lembras da esperança? - perguntou o Galileu, sustentando o olhar intenso -. Tu te recordas de Sitio?
Acho que respondi afirmativamente. Meu coração estava em outro lugar.
- Pois bem - respondeu Jesus, mostrando um de seus melhores sorrisos -, a tua acabou de despertar...
Agora estou entendendo suas palavras.
- Esperança? - interveio Eliseu sem entender. - Que esperança? A que tu te referes?
O Mestre permaneceu em silêncio. Em parte, imagino, pela repentina aparição no pátio de Esta com a menina, como sempre, agarrada à sua túnica. Seja como for, eu lhe agradeci do fundo do coração...
A grávida carregava o bebê e também uma réstia de alhos e cebolas, pacientemente trançados. A mulher não tinha dado três passos ainda quando Jesus, levantando-se, foi ao encontro dela e, sem dizer nada, ajudou-a, encarregando-se de Amos. Esta e Raquel passaram por nós e viraram à esquerda, em direção à cozinha.
A criança, profundamente adormecida, estava envolvida em um pano branco quadrado - um saco de algodão - que fazia as vezes de fralda. A julgar pelo aroma de romã e pelos cabelos ruivos cuidadosamente penteados, ele acabara de tomar
banho. Aqueles foram outros tantos momentos intensos e inesquecíveis. Jesus, segurando o bebé entre seus braços robustos, voltou a se sentar junto a estes exploradores. Nem sequer olhou para nós. Permaneceu embevecido por um tempo, examinando as delicadas feições da criatura. Parecia estudá-la e admirá-la.
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E este que escreve também desfrutava da imagem respeitosamente. Se aquele Homem era um Deus, se Amos era uma de suas criaturas, eu podia me aproximar um pouco - não muito - dos sentimentos do Mestre. Assim como ocorrera com Aru, o negro "tatuado", o olhar do Galileu emanava uma mistura de piedade, admiração e amor. Era um Deus, com a vida nas mãos...
Lehaim.
Mas, como posso ser tão estúpido e presunçoso? Eu, uma pessoa totalmente inútil, querendo compreender os sentimentos do Mestre?
O Galileu não resistiu à tentação e, radiante, passou o dedo indicador esquerdo pelo narizinho do bebé. Amos não reagiu. E o Mestre continuou acariciando-o, resvalando o dedo pelos lábios e pela covinha que apontava no queixo. A criança, naturalmente, acabou acordando. Abriu os imensos olhos celestes e, quando todos esperávamos a tragédia, sorriu, mostrando seus primeiros dentes. Jesus então se precipitou sobre ojonek15 e encheu-o de beijos.
Eliseu e eu trocamos um olhar. Era a primeira vez que víamos o Filho do Homem entregue a um bebê. E os beijos, sonoros e acompanhados de muitos mimos, multiplicavam-se entre os risos e o movimento de braços do pequeno. Foi num desses movimentos que Amos, tão entusiasmado com o tio, agarrou a barba do Galileu e puxou com força.
E Jesus, dócil, permitiu que o bebé continuasse brincando. Aquela imagem me trouxe outras recordações, não tão ternas, ocorridas durante o traslado do patibulum, a tora transversal da cruz, da fortaleza Antonia para o Gólgota16...
O teimo jonek designava a criança que ainda mamava. O povo judeu era extremamente sensível às crianças (pelo menos às suas), a ponto de diferenciar cada etapa da infância com uma definição respectiva. Jeled, por exemplo, servia para nomear os recém-nascidos (é o caso de Moisés no Êxodo [2, 3] e da profecia de Isaías sobre o próprio Jesus [9, 6]). Jalde, em compensação, aplicava-se aos bebés pagãos, depreciando-os como algo impuro. Oleei era o que precisava de pão. Gamulera a palavra que designava o desmamado (geralmente a partir dos dois anos de idade). Esse momento era celebrado com uma festa. A etapa seguinte - conhecida como taf- prolongava-se até os quatro ou cinco anos. Depois vinha o elem (a criança já demonstrava firmeza e vontade). Por último, o naar e o bachur, que eram os adolescentes. (N. do M.)
Ampla informação em Jerusalém. Cavalo de Tróia 1. (N. do A.)
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Esta chegou trazendo a refeição do bebê e salvou o Mestre daquela situação incómoda. Amos soltou a barba e, agitando os braços, manifestou sua alegria diante da presença da mãe. A mãe quis pegar o bebé de volta, mas seu cunhado, com um gesto, rogou que o deixasse alimentá-lo. E assim foi.
O Mestre, paciente e amoroso, ia levando a colher de madeira à boca da criança. E, aos pouquinhos, Amos devorou a gamela com farinha torrada, leite e pão esmigalhado. Depois, satisfeito, voltou a adormecer nos braços do Galileu, docemente embalado por aquele Homem. Um Homem extraordinário...
Devia ser a hora décima (quatro da tarde) quando, em meio aos preparativos para a ceia, as mulheres notaram da chegada de Tiago, o irmão de Jesus. Deteve-se por alguns instantes sob o pórtico. A presença daqueles homens, desconhecidos para ele, intrigou-o. Porém, logo que reconheceu Jesus, tratou de se aproximar do grupo, abraçando e beijando seu irmão mais velho.
Não tinha mudado praticamente nada desde que eu o "deixara" no ano 30... Alto, corpulento como o Mestre, embora não tão atlético, e com os cabelos e barba prematuramente embranquecidos.
Após as apresentações de praxe - Jesus nos identificou como allup ou "companheiro" (um pouco mais que alliz e oheb, respectivamente "amigo de diversões" e "aliado") - Tiago pediu licença e retirou-se para sua casa. Esta, sua mulher, seguiu-o.
Nesse momento eu náo tive certeza, mas diria que havia algo estranho na atitude de Tiago. Abraçou o Galileu e retribuiu carinhosamente os beijos nas faces, mas, como estava dizendo, alguma coisa me desagradou. E associei esse "algo" ao rosto frio e severo da Senhora. Ambos me pareceram distantes. O que estava acontecendo naquela casa?
Logo depois, no interior do imóvel de planta dupla, ouviram-se vozes. O casal discutia. Só captei uma frase pronunciada pelo homem...
- Por que ele voltou?
Jesus, sério, continuou descascando maçãs. Náo fez nenhum comentário. De fato, algo se passava...
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J.J. BENÍTEZ
A Senhora, atarefada com a pitah, o prato principal, olhou para seu Filho
mais de uma vez. Percebi uma certa desaprovação naqueles olhares fugazes. Era evidente que ela o responsabilizava pela discussão entre Esta e Tiago. Mas por quê? Jesus, no entanto, não levantou os olhos das tappuah, as doces e minúsculas maçãs brancas e vermelhas da Síria. Cortou-as e derramou sobre a sobremesa um fio de mel. Seu rosto permanecia impenetrável.
Ruth, perturbada e sem saber como aliviar a situação incómoda, sugeriu à mãe que voltassem à cozinha para acabar de trazer ao pátio os ingredientes da ceia. O vento, afinal, estava amainando. A Senhora, inflexível, não respondeu e continuou preparando o recheio do pão pitah, um delicioso "bolo", que acabara de sair do forno, no qual se introduzia carne e verduras, ou qualquer coisa que estivesse mais à mão. Nesse caso, as mulheres tinham cozinhado fígados de frango e uma generosa guarnição de cebola igualmente frita. A pitah incluía ainda uma saborosa mistura de pimenta vermelha (picante), a cheirosa cúrcuma, sal e cominho. Quando provei, vi que as hebréias tinham se esmerado ao máximo, limpando até o último resquício de bílis, evitando que o sabor amargo arruinasse todo o prato.
Foi inútil. A argúcia da ruiva, tentando impedir que a atmosfera ficasse ainda mais rarefeita, náo deu resultado. A mãe, cada vez mais aborrecida, manifestou sua irritação no recheio az pitah. Os movimentos secos e violentos me fizeram temer o pior. Eu me lembrava muito bem do génio inflexível da Senhora... Porém, pouco a pouco, a tensão diminuiu. Maria tinha uma personalidade difícil, mas sabia ceder...
Jesus, assim como todos os outros ali presentes, também percebeu. E suas feições se descontraíram.
Tiago e a grávida, com a menina silenciosa agarrada à mãe, não tardaram a se reincorporar ao grupo. O homem se sentou debaixo da romãzeira e Esta foi ajudar no trabalho das mulheres, que concluíam os preparativos para a última refeição do dia.
Deve ter sentido o peso dos olhares porque, refugiando-se entre as vasilhas, enrubesceu como uma amapola. Mas ninguém perguntou nada sobre a discussão anterior.
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E foi esse novo silêncio, alimentado pelo olhar duro de Tiago para o Mestre, que avivou a tensão mais uma vez... Jesus, ao perceber o olhar sério de seu irmão, pareceu surpreso inicialmente. Depois entendeu e, baixando os olhos, voltou ao jogo do dedo sobre os círculos das esteiras. E assim permaneceu por um tempo. Embora ninguém tenha feito qualquer comentário, estávamos todos atentos a ele. Ou melhor, ao seu dedo...
A Senhora foi a primeira a reagir. Parou de moer uma das especiarias - a cúrcuma - e, com a voz firme, mesclada pela tristeza, repreendeu Jesus:
- Será que tu não vais mudar nunca? E o silêncio ficou mais pesado.
Os lábios da Senhora tremeram e seu rosto empalideceu. Tiago balançou a cabeça afirmativamente, apoiando a mãe.
Eu não tinha idéia do que ela queria dizer com isso. Pelo menos
nesse momento...
O dedo do Mestre deteve-se no círculo central, e ele respondeu com a mesma firmeza, ou até mais:
- Isso está nas mãos do Pai, minha querida mãe Maria...
E antes que a mulher conseguisse replicar, o Galileu se levantou e caminhou em direção à casa da Senhora e da "esquilinha". E desapareceu atrás da rede.
-Ab-bá!- exclamou Maria, buscando a aprovação de seus filhos. - Ele sabe que o simples fato de pronunciar o nome do Santo é uma blasfémia...
"Ab-bã", de fato, significa "pai". Era assim que Jesus chamava o Deus dos céus, seu Pai.
Nenhum dos presentes se manifestou. E a Senhora, contrariada, continuou pilando, socando com violência a branca e leitosa cúrcuma.
O coração das pessoas parou, imagino, quando Galileu apareceu à porta. O meu, com certeza... Tinha retornado com o saco de viagem na mão. Eliseu me procurou com o olhar. O que ele pretendia? Estava pensando em deixar a casa? A situação familiar não parecia atravessar seus melhores momentos, porém...
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Procurei localizar o sol. Não faltava muito para o ocaso. Para onde ele queria ir? Tomei uma firme decisão. Não importava para onde e tampouco a que horas. Nós o acompanharíamos.
Ruth, trémula, agarrou-se ao braço da Senhora. E Tiago, consciente do momento delicado, refugiou-se em um de seus gestos típicos, acariciando a barba com a mão esquerda. Todos nos enganamos. Jesus veio em direção à romãzeira e, ajoelhando-se sobre as esteiras, começou a procurar alguma coisa dentro da mochila. Ninguém respirava. Seu rosto havia recuperado a serenidade habitual.
E, cheio de mistério, tirou dois pacotinhos, cada um envolvido em um lenço branco. Esticou o braço e depositou o primeiro nas mãos de Ruth. O segundo foi para sua cunhada.
A ruivinha, muito esperta, passou rapidamente da incerteza à alegria. E,
adivinhando as intenções do Irmão, tratou de desembrulhar o pacotinho. Quando descobriu o que era, atirou-se ao pescoço de Jesus, beijando-o várias vezes, E deixou que os medos e tensões recentes se dissipassem com o abraço. Depois, muito feliz, mostrou o presente: era uma caixinha de madeira, forrada de osso, com um cosmético em pó - o Kohl -, muito apreciado naquela época como embelezador dos olhos.
Não podia acreditar. O Mestre não pretendia abandonar a "casa das flores". Esse não era seu estilo. Quando é que eu aprenderia a conhecê-lo?
Esta, com o pacotinho nas mãos, interrogou Tiago com o olhar. Ele assentiu, e a mulher, muito nervosa, tratou de desembrulhá-lo. Era uma caixinha idêntica à anterior, mas com um pó avermelhado. A grávida aproximou-o do nariz, mas não conseguiu identificá-lo.
- Extrato de múrex e algas das costas da Fenícia - esclareceu o Mestre.
O múrex era, de fato, um molusco muito apreciado, tanto pelo corante que se extraía dele, e que era usado para tingir muitos tecidos na época, quanto por sua qualidade para a fabricação de pintura para unhas e lábios.
Esta, sempre económica nas palavras e nos gestos, limitou-se a agradecer pelo mattenah, ou presente.
E Jesus, tão feliz como seus irmãos, ou até mais, voltou a vasculhar no saco, procurando...
119 "
O outro foi para Tiago. Um cordão ou cíngulo em couro lavrado, belíssimo, com uma interessante peculiaridade: dispunha de uma espécie de "bainha" que servia para guardar moedas. Vinha das montanhas de Ancara (atual Turquia). Mais
precisamente da cidade de Ancira, um importante núcleo de comunicações da Anatólia. Essa foi a explicação do Mestre. E eu pude constatar que a informação do velho Zebedeu sobre as grandes viagens de Jesus era correta... Tiago admirou o cinto e esboçou um meio sorriso de agradecimento. Isso foi tudo.
O último mattenah foi para a Senhora. O Mestre, sorridente, depositou-o diante da mãe. Parecia evidente que tinha esquecido as críticas e a cara feia. E ficou esperando... Maria resistiu. Ao contrário do filho, ela não esquecia tão facilmente. Porém, tratando-se de uma mulher, afinal de contas, acabou cedendo à curiosidade...
As mãos longas e calejadas pousaram sobre o objeto. Apalparamno. Era mais volumoso que os presentes de Ruth e Esta. O Mestre o havia protegido e ocultado com outro lenço. A Senhora ergueu-o e verificou que era bem leve. E os olhares a interrogaram. Maria, no entanto, voltou a colocá-lo no chão e explorou os olhos do Galileu. Foi uma das raras ocasiões, ao longo daqueles meses, em que reconheci o amor que lhe professava. O verde-erva dos olhos rasgados brilhou por alguns segundos, revelando a verdade. Ela o amava profundamente, porém...
E aquela centelha refletiu-se no semblante do Filho do Homem. Qualquer sentimento, por mais insignificante e dissimulado que fosse, chegava a ele como a luz chega à retina. Por alguns instantes, a felicidade esteve ao seu lado...
- Não queres abri-lo de uma vez?
O pedido da ruiva trouxe a mãe de volta à realidade, encerrando o invisível mas intenso abraço... A Senhora o abriu, e todos, admirados, elogiaram o bom gosto de Jesus. O mattenah passou de mão em mão. Quando chegou a minha vez, examinei-o detidamente. Era uma das modas da época: um ovo de avestruz, previamente esvaziado, que servia para guardar líquidos (especialmente unguentos e óleos
perfumados). Diferentemente do barro, esse material, além de impermeável, não absorve os odores,
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e com isso preserva a fragrância do conteúdo. Os artesãos de Cartago, de onde foi exportado para a Antioquia17, acrescentaram um gargalo de bronze, assim como uma alça e quatro barras protetoras, também de bronze. O Mestre - segundo disse - comprou-a então na cidade de Antioquia. Nós não chegamos a vêlo durante nossa estada em Hermon.
Os presentes foram uma bênção. Afastaram momentaneamente o mau humor e a ceia transcorreu em uma discreta tranqüilidade.
A Senhora quase não comeu. Pelo que pude observar, limitou-se a nos servir e, sobretudo, a contemplar seu Filho. Maria, "a das pombas", refletia uma profunda tristeza. Aquela mulher nada tinha a ver com a outra que conheci. A Senhora do ano 30 também era obstinada, mas transbordava atividade e otimismo. Agora, ao contrário, parecia vítima de algum distúrbio emocional (exagero mórbido do estado afetivo no sentido da exaltação ou da frustração). Não estou seguro disso, mas essa foi a primeira impressão. A Senhora apresentava um estado geral de abatimento, próximo à depressão, embora, obviamente, eu não tenha chegado a constatar os sintomas que revelassem um episódio de depressão maior18.
Voltei a me perguntar: o que teria ocorrido?
A primeira luz surgiu quando Ruth, incansável, tentou sondar o irmão sobre as viagens e, particularmente, sobre esta última. Jesus resistiu. Como informou o patriarca dos Zebedeu, o Mestre não desejava que aquela viagem acabasse vazando, pelo menos no momento. E esquivou-se do assédio da ruivinha
respondendo com uma parte da verdade:
Antioquia (atual Antakya, ao sul da Turquia) foi fundada por Seleuco Nicátor no ano 301 antes de Cristo. Foi uma cidade-chave no comércio com a Síria e a Mesopotâmia. Nicátor ergueu-a nos moldes de Alexandria. Após a morte e a ressurreição de Jesus, alguns dos discípulos instalaram-se ali. Foi o caso de Barnabé, de Paulo e, posteriormente, de Pedro. Em Antioquia, os seguidores do Mestre receberiam, pela primeira vez, o título de "cristãos". Chegou a ser a terceira população do Império Romano, depois de Roma e Alexandria. (N. do M.)
A depressão é a manifestação de uma doença psiquiátrica subjacente. Entre os sintomas mais comuns (concomitantes) estão a perda de interesse, alterações do apetite, distúrbios gastrointestinais (prisão de ventre), perturbações do sono e da memória, diminuição da libido, sensação de inutilidade e desejos de morrer. (N. do M.)
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- Limitei-me a estudar os homens...
- Mas por quê? - insistiu a moça sem entender. - Por que abandonar os teus para estudar os estranhos?
- Isto faz parte de minha missão. Para isso vim...
Muito atenta, a Senhora não perdeu a oportunidade e, dirigindo-se a Ruth, proclamou com sarcasmo:
- Vieste para isso?... Abandonas a família durante quase quatro anos para estudar os gentios? Quatro anos sem notícias!
Essa foi a primeira pista. Entendi. Depois, durante nossa permanência em Nahum, fui completando a informação. O que eu soube e o que deduzi foi
que a família, com exceção de Ruth e de Judá, outro dos irmãos de Jesus, não perdoou as prolongadas ausências do Mestre. Melhor dizendo, não aceitou de bom grado os longos silêncios. Primeiro foram dois anos. Jesus não deu sinal de vida. Ninguém sabia se estava morto, se tinha sido aprisionado por bandidos ou escravizado em alguma região remota. E a mãe se consumiu em uma dolorosa agonia. Depois foi mais um ano. E novamente a incerteza. Depois, outros cinco meses...
Tentei imaginar o suplício da Senhora, mas, sinceramente, não fui capaz. Nunca tive filhos e, portanto, é difícil sequer ter uma vaga idéia dessa sensação. E admito que, nesse aspecto, Maria e seus filhos tinham razão. Pelo menos, a sua razão. E essa não era a primeira vez que Jesus agia assim. Aos 12 anos e meio, em uma visita a Jerusalém, aquele jovenzinho se "esqueceu" de seus pais terrenos e ficou três dias vivendo "à sua maneira" nos pátios do Templo. O susto de Maria e José foi de causar infarto...
"Três anos e meio de silêncio foi demais para todos. Jesus voltou, mas isso não justifica a dor que provocou na família." Essa foi a resposta de Tiago quando lhe perguntei sobre esse particular; uma resposta compartilhada por quase todos. O Mestre, naturalmente, via as coisas de outro modo...
Apesar da gravidade desses fatos, eles não constituíam a questão de fundo que determinava a atitude da Senhora e de Tiago, entre outros. Uma atitude que acabaria culminando em um episódio doloroso, particularmente para o Filho do Homem.
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J.J. BENÍTEZ
A origem daquele mal-estar, das críticas e da tristeza da Senhora encontrava-se a grande profundidade, no mais remoto do pensamento da
mãe de Jesus. Tudo obedecia a uma decepção. O velho sonho de Maria praticamente se esvaíra. Não restava quase nada do que imaginara a partir da promessa do anjo. Aquele "ser de luz" que a visitou em Nazaré no ano 8 a.C., em meados do oitavo mês, em pleno marjesván (novembro), foi muito claro: "...esta casa foi escolhida como morada terrestre deste filho do Destino19." Jesus era a "criança da promessa", o Messias por tanto tempo esperado, o Libertador, enfim, de um povo dominado e espancado. Roma receberia seu castigo. Foi essa a idéia que iluminou boa parte da vida da Senhora e também de sua família. Como já registrei em outro trecho deste apressado diário, a mulher fez planos. Compartilhou a revelação com Isabel, sua prima distante, e decidiram quando e como seria a aparição em cena do Libertador e de seu lugartenente João, conhecido posteriormente como o Batista. Estava tudo previsto. Seu Filho, apontado pelos céus, seria o guerreiro de que falavam as profecias. Conduziria Israel ao domínio do mundo e ao estabelecimento definitivo do reino de Deus na Terra. Os "sinais" não deixavam dúvida. Um anjo havia anunciado. Isaías proclamara: "Um galho sairá do tronco de Jessé (pai de Davi), e um rebento de suas raízes brotará. Repousará sobre ele o espírito de Yavé..." (capítulo 11). Ela, a Senhora, era do tron
A mensagem exata do anjo, segundo a Senhora, foi a seguinte: "Venho por ordem daquele que é meu Mestre, ao qual deverás amar e manter. A ti, Maria, trago boas notícias, já que te anuncio que tua concepção foi ordenada pelo céu. No devido tempo, serás mãe de um filho. Tu o chamarás Yesúa" e inaugurará o reino dos céus sobre a Terra e entre os homens. Fala disto táo-somente a José e a Isabel, tua parente, para quem também apareci e que logo dará à luz um menino cujo nome será João. Isabel prepara o caminho para a mensagem de libertação que teu filho proclamará com força e profunda convicção aos homens. Não duvides de minha palavra, Maria, já que esta casa foi escolhida como morada terrestre deste filho do Destino. Tem minha
bênção. O poder do Altíssimo te sustentará. O Senhor de toda a Terra estenderá sobre ti sua proteção..."
Como se pode constatar, essa mensagem não tem nada a ver com o que foi escrito depois por Lucas, o evangelista (l, 26-39). Tudo foi manipulado... (N. do M.)
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co de Davi. Outros garantiam que o Messias seria filho de José. Jesus era. "E se chamará "Emmanuel" ou "Yavé sidqenu" ("Yesúa" ou "Deus conosco")." Esse era seu Filho. Assim rezava em um dos salmos apócrifos de Salomão: "Esse rei, filho de Davi, suscitado por Deus para purificar Jerusalém de pagãos, puro de todo pecado, rico de toda sabedoria, depositário da Onipotência, quebraria o orgulho dos pecadores como louça de barro, enquanto que reuniria o povo santo e o conduziria com justiça, paz e igualdade..."
Mas esse sonho, alimentado durante anos, começou a se desmoronar... Primeiro foram alguns acontecimentos - incompreensíveis para a Senhora - que obscureceram o "projeto brilhante". Exemplos: com 7 anos de idade, Jesus já era um solitário que buscava a solidão do cume do Nebi, em Nazaré (curiosamente, Nebi, em aramaico, significa "profeta"). Aos 11 anos, pediu explicações a José, seu pai, sobre o uso da mezuzah na porta da casa. Jesus o considerava uma superstição. Depois disso, a mezuzah foi retirada. Foi por isso que não a encontramos na "casa das flores", em Nahum. Aos 12 anos e meio, ao atingir a maioridade legal e visitar Jerusalém pela primeira vez, o menino "esqueceu" de seus deveres como filho e, sem avisar, permaneceu três dias na Cidade Santa, supostamente "perdido", segundo a Igreja Católica. Aquele comportamento deixou seus pais assombrados. Maria, principalmente,
ficou arrasada. Aos 13 anos, contra os preceitos religiosos, Jesus se negou a comer o cordeiro da Páscoa. Entendia que aquela carnificina no Templo não tinha relação com seu Pai. Deus não queria isso. E a Senhora, mais uma vez, se sentiu decepcionada. O Messias não era assim. Aos 14 anos, após a morte de José, o adolescente distanciou-se da mãe. Os pensamentos de Jesus sobre Deus (Ab-ba) torturavam Maria. O jovem pretendia falar diretamente com o Santo, sem intermediários. Isso era uma blasfémia, castigada com a pena capital. As tentativas da Senhora de reconduzir o Filho estranho e rebelde foram estéreis. E Jesus, aos olhos da família e seus conterrâneos, na pequena Nazaré, tornou-se um ewil, um atrevido e tolo. No ano 11 de nossa era, quando contava 17 anos, Jesus tomou outra decisão que, naturalmente, esmaeceu ainda mais o velho sonho da mãe, já bastante deteriorado. Contra qualquer prognóstico, recusou o convite dos
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}.}. BENÍTEZ
extremistas que visitaram a aldeia de Nazaré. Ele não faria parte dos zelotes20 que lutavam contra os romanos e que ensangüentavam o país. Maria considerou isso como uma desonra e, sobretudo, como um desafio. Se Jesus era o Messias prometido - o "Filho do Destino" -, por que se negava a participar de uma revolução nacionalista como aquela? Ele deveria estar à frente dos judeus... E a Senhora, pela enésima vez, viu naufragar seu projeto.
A partir daí, as coisas foram de mal a pior. Jesus afastou-se definitivamente da órbita de Maria, negando-se a compartilhar planos e pensamentos. Era inútil. A Senhora não o compreendia. E Jesus, sabiamente, preferiu o silêncio. Não havia chegado a sua hora...
Em janeiro de 21, como disse, Jesus despediu-se de sua mãe e de Nazaré.
Ninguém conseguiu retê-lo. Maria ficou sem argumentos e começou a segunda parte do suplício: as longas ausências já mencionadas. E a mulher se afundou definitivamente...
20 Como já mencionei oportunamente, os zelotes integravam uma seita que pretendia libertar seu povo do jugo romano ou de qualquer outra dependência. Só Yavé era dono de Israel. Os zelotes, ao que parece, eram uma ramificação de outra seita, a dos fariseus ou "santos e separados", formando uma espécie de "braço armado" do fariseísmo. Eram radicais e violentos. Hoje seriam qualificados de terroristas. No ano 6 de nossa era, eles protagonizaram uma primeira e violenta tentativa de sublevação contra Roma. Um Galileu chamado Judas de Gamala e um fariseu de nome Saduc ou Sadoc conseguiram o que parecia impossível: arrastar milhares de judeus contra as legiões. Obviamente, fracassaram. Desde então, os zelotes ou "zelosos" da Lei de Moisés - com o apoio de boa parte da população que os ocultava, alimentava e pagava um secreto "imposto revolucionário" para a aquisição de equipamentos e de armas -, atuaram em guerrilhas, acossando os exércitos e funcionários romanos e cometendo todo tipo de crimes e vilezas "em nome da causa". Isso não é novidade. Eram conhecidos também como "sicários", por causa da sica, um punhal curto e temível que escondiam debaixo da roupa e com o qual davam cabo dos que julgavam traidores, infiéis ou colaboracionistas. O mal é que, como sempre, amparando-se em supostas traições ao povo e ao Deus de Israel, satisfaziam suas vinganças pessoais ou as daqueles que diziam simpatizar com eles. E o homem de bem, no fim das contas, viu-se envolvido em uma atmosfera de medo e de permanente desconfiança. Essa onda ameaçadora de levante nacionalista contra o usurpador de Israel (Roma) foi se encrespando e, com o passar dos anos, desembocaria na grande rebelião de 70 e na destruição de Jerusalém porTito. A destruição do Templo já fora anunciada por Jesus de Nazaré durante sua vida pública. (N. do M.)
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Em suma, foi uma decepção total. "Jesus não podia ser convencido." Não queria falar do Messias esperado. "Esse não era seu objetivo." Só buscava a solidão e a seu Pai dos céus. Era a única coisa que lhe importava. E a Senhora chegou a pensar que a presença do anjo tinha sido apenas um sonho. Um sonho mau...
Muitos cristãos têm uma imagem equivocada de Maria, a mãe de Jesus de Nazaré. Ela foi uma mulher esplêndida, cheia de amor e com um temperamento de ferro. Mas não era uma mulher submissa. Não entendeu o trabalho de seu Filho, e muito menos sua mensagem. Discutiu com Ele. Brigou com o Mestre em várias oportunidades. Tentou convencê-lo e levá-lo pelo caminho que convinha a ela: o da glória política. Foi uma desavença permanente. Só depois da morte do Mestre ela compreendeu, em parte...
Quatro anos sem notícias!... A senhora repetiu o comentário, só que desta vez soou como um pensamento em voz alta. Mais do que um pensamento, um lamento... O Filho observou-a calmamente. A tristeza tomou conta dele novamente. E Jesus abaixou os olhos, acabando de comer sua ração de tappuah.
Ruth, habilmente, tentou mudar o rumo das coisas. Nenhum dos presentes resistiria a outra discussão.
- E falaste com o Pai nas neves do Hermon?
O Galileu agradeceu a ajuda com um sorriso breve, quase forçado.
- Não, minha querida Ruth... O Pai não está aí fora... Então, apontando para o peito robusto, esclareceu:
- ...Deus está aqui dentro: não subi o Hermon para falar com Abbã, embora
também o tenha feito...
- Então, para quê?
Jesus desviou o olhar para o meu companheiro. Depois para mim. Nós entendemos. E meus olhos cruzaram de novo com os de Rudi. Desta vez, ela sustentou o olhar. E uma chama desconhecida percorreu meu corpo...
- Era o momento de recuperar o que sempre foi meu...
A afirmação categórica do Galileu foi seguida de um silêncio significativo. Foi uma resposta clara para nós. Os outros, porém, não enten
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J.J. BENÍTEZ
deram. Não captaram a transcendência do que o Irmão mais velho acabara de dizer. Não podiam sequer imaginar que estavam diante de um Deus. A recuperação de sua divindade - o grande enigma que eu nunca consegui decifrar - foi o objetivo que o impeliu a retirar-se para um dos cumes do Hermon. Nós presenciamos isso passo a passo21.
Na minha humilde opinião, o Mestre agiu corretamente. O que ele ganharia revelando a verdade a eles? Imagino que só aumentaria ainda mais a confusão.
Não era o momento. Não era sua hora...
- Mas, o que tinhas perdido? - reagiu finalmente Tiago. - Que eu saiba, nunca estiveste nesse lugar...
O Mestre deve ter lido meus pensamentos.
- Quando chegar a hora..., todos sabereis.
Assunto encerrado. E a escuridão chegou de repente, como era habitual
naquele clima. Os relógios do módulo marcavam 17 horas e 38 minutos. As mulheres se apressaram a acender as lamparinas e as depositaram no pavimento do pátio.
Era tarde. Todos madrugaríamos. Assim, depois de desejar-nos a paz, a família se retirou. Só Jesus permaneceu adiante destes exaustos exploradores. Contemplou-nos por alguns instantes e disse:
-Agora descansai... Eu estou sempre convosco, mesmo que deixeis de verme. O Pai tem planos aos quais não tendes acesso agora, mas confiai.
O que ele quis dizer? Saberíamos poucos dias depois...
Ele próprio, pegando duas das lamparinas de barro, conduziu-nos até o lugar onde repousaríamos: o terraço que havia sobre a "cozinha de inverno", no extremo sudoeste da casa. Uma escada estreita, também de pedra escura, basáltica, ligada ao muro da fachada, permitia o acesso a esse terraço. Nessa época, na temporada ainda seca e quente, muitos vizinhos de Nahum e do yam geralmente preferiam esses lugares para dormir. Segundo minhas anotações, a temperatura noturna às margens do lago nunca era inferior a 18 graus Celsius, pelo menos durante o verão.
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Ampla informação em Hermon. Cavalo de Tróia 6. (N. do A.)
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OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA ?
Os convidados, naturalmente, compartilhavam esse costume. Além disso, graças à escada externa já mencionada, tinha o hóspede uma certa liberdade, pois ele podia descer ao pátio ou abandonar a residência quando
achasse conveniente.
Os terraços eram a segunda moradia. Ali se colocavam os frutos, as cebolas e o linho para secar, e ali se lavava, se estendia a roupa, se fiava e até se rezava. Era também um local utilizado para a tertúlia, os jogos ou o retiro. Assim proclamava o livro dos Provérbios (21, 9 e 25, 24): "Estar sentado em um canto do desvão era melhor do que estar com a mulher tinhosa em uma casa ampla". O terraço era também a "ala do pássaro" (as fontes): dali se gritava para as casas próximas para anunciar todo tipo de notícia. Era, em suma, um segundo traçado urbano, onde todos se movimentavam com grande agilidade. As crianças, particularmente, saltavam de um terraço a outro, seja brincando, fazendo "correio" ou transportando qualquer espécie de mercadorias. Era o que a tradição chamava de "caminho dos telhados", utilizado para o bem e para outros assuntos menos honestos. Em geral, como já expliquei, esses terraços eram extremamente simples, construídos com vigas calafetadas22, que se estendiam de um muro a outro e sobre as quais se depositava um arcabouço mais leve; tudo isso coberto por várias camadas de juncos, bambus ou ramos e argila amassada. Depois das chuvas, o dono era obrigado a restaurar o piso com o auxílio de
um cilindro de pedra.
O Mestre depositou uma das lamparinas no chão do terraço. Era maior, tinha quatro mechas; era uma dessas lâmpadas comuns de barro vermelho - chamadas de "herodianas" - cuja carga de azeite de oliva podia durar três "vigílias", isto é, quase a noite toda. Então, apontando para o firmamento ainda vazio, despediu-se dizendo:
- Confiai...
E desapareceu pela escada externa.
Os construtores selavam as gretas das vigas com estopa e uma mistura de resina e um "alcatrão" que flutuava nas águas do mar Morto. (N. do M.)
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Momentos depois, espremido por um Eliseu visivelmente inquieto, ajustei os "crótalos", as lentes de visão noturna e observei o cume do Ravid. Fazia um mês que tínhamos abandonado a nave. Era natural que estivéssemos preocupados, embora soubéssemos que Papai Noel, o computador central, era o melhor "vigia".
Ele fora programado para modificar a direção do "olho do ciclope"23, no caso de uma emergência grave (uma séria avaria no "berço"), lançando no céu um gigantesco leque luminoso. Esse seria o sinal de que algo não ia bem no que chamávamos de "porta-aviões". O cume do Ravid, 138 metros acima do nível do mar e a dez quilómetros de Nahum em linha reta, era um excelente sentinela. Enquanto permanecêssemos no yam, meu irmão e eu tínhamos de ajustar os crótalos e inspecionar o alto do monte regularmente, no fim da tarde ou à noite. Essa era a única exigência "imposta" pelo fiel Papai Noel.
E então, perguntou Eliseu impaciente?
- Perfeito...
O engenheiro respirou aliviado. De fato, tudo parecia em ordem na "basemãe-três". Tudo?
E um pouco mais descontraídos, aproveitamos para analisar a situação. Ambos estávamos inquietos diante daqueles problemas com os quais não contávamos ao programar aquele apaixonante terceiro "salto"
O "olho do ciclope" era um dos sistemas de defesa da nave. Partia do ponto mais alto do "berço" e era formado basicamente por uma radiação infravermelha integrada por milhões de lasers. O sistema funcionava graças a trinta pares de
espelhos de arsenito de alumínio e gálio. Em cada centímetro quadrado foram "gravados" dois milhões de lasers, utilizando a combinação de "poços quânticos", a "epitaxia de face molecular" e as técnicas usuais de fotolitografia. Sob o controle do Papai Noel, o "olho" podia fazer uma varredura em toda a superfície do Ravid uma centena de vezes por segundo. O dispositivo emitia em uma longitude de onda de um micrômetro, invisível ao olho humano. Só com os "crótalos", ou com os canais de visão noturna da nave era possível visualizar essa fantástica "cortina de luz". Quando estava conectado, a irrupção de qualquer intruso na "popa" do "porta-aviões" rompia o circuito, alertando o computador. Qualquer ser vivo, com uma temperatura corporal mínima, capaz de emitir IR (radiação infravermelha), era detectado imediatamente. O sistema registrava variações de temperatura de dois décimos de grau Fahrenheit. (N. do M.)
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no tempo. Em primeiro lugar, e mais importante, a falta de informação a curto e a médio prazo sobre a atividade do Mestre. Tínhamos indicações relativamente seguras com relação ao possível batismo de Jesus no rio Jordão. Disseram-nos que era no mês de sebat (talvez janeiro), mas isso não era certo. E depois desse suposto batismo, o que acontecia com o Galileu? Ele não anunciou seus planos e nós também não lhe perguntamos. Eliseu era partidário de acabar com o mistério, inquirindo-o abertamente. Eu tinha minhas dúvidas. E argumentei que não devíamos forçar o Destino (com maiúscula). Era melhor assim. Ficaríamos atentos, obviamente, mas aguardaríamos o desenrolar dos acontecimentos. No fundo, o fato de não
saber era excitante.
Meu irmão aceitou. No fim das contas, ele adorava surpresas... Quanto ao segundo problema, concordamos desde o primeiro instante. Achamos que era melhor deixarmos a "casa das flores", em vista do ambiente tenso que reinava na família - uma coisa impensável durante os preparativos daquela aventura. Eles nos receberam bem, mas, sinceramente, nós nos sentimos incômodos. E a situação podia piorar. Era mais sensato procurarmos outro alojamento. Não estávamos enganados...
Com essa decisão, demos por encerrado aquele 18 de setembro do ano 25, terça-feira. Outro dia difícil de esquecer...
Meu companheiro estava nervoso e demorou a dormir. Ele se mexia muito e virava de um lado para o outro sobre as esteiras preparadas pelas mulheres. Achei que o problema era a dureza da "cama". Errei outra vez. O que atormentava Eliseu era outro "assunto". Mas eu só tomaria conhecimento dele algum tempo depois, quando ocorreu o que ocorreu... E tentei ordenar e apaziguar os sentimentos. Em particular, um sentimento...
Como isso foi acontecer? Eu estava preparado para quase tudo, menos para "isso". O que fazer? Como agir? Se as coisas se precipitassem - como eu temia - será que eu deveria contar a Eliseu? Como ele reagiria? Eu sabia muito bem que isso era terminantemente proibido. No entanto...
E tentei afastar aquele sentimento, refugiando-me na missão. Revisei os planos imediatos e também os futuros. Ou melhor, os supostamente futuros.
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Foi impossível. A imagem ficara gravada no meu pensamento e, o que era mais preocupante, no meu coração. Sinceramente, era mais forte do que eu.
E pelo menos uma vez na minha vida triste e solitária resolvi "confiar", como o Mestre dizia sempre. O efeito foi instantâneo.
Ao permitir que o Destino seguisse seu rumo, uma paz interior tomou conta de mim e tudo à minha volta pareceu diferente. Era a isso que se referia o Filho do Homem quando falava de "deixar tudo nas mãos de Ab-bã"l
"Que seja feita sempre tua vontade..."
Foi uma decisão acertada. Por algum tempo, fui feliz à minha maneira. Imensamente feliz. E fascinado pela "descoberta", desfrutei daquela Nahum noturna, tão nova e promissora...
O calor e a agitação do dia foram se aplacando aos poucos, e instalou-se uma relativa calma, perturbada apenas por alguns latidos ao longe e pelo vozerio dos carregadores do turno da noite vindo do porto e amortecido pela distância.
De vez em quando, os cascos das cavalgaduras batendo nas pedras do cardo davam ritmo à escuridão. As arreatas, provavelmente carregando peixe fresco do yam, iam em direção ao norte e, com elas, os gritos ininteligíveis dos condutores sempre descontentes e apressados, e as chicotadas secas e sibilantes nos maltratados jumentos. Eram praticamente os únicos transeuntes.
Ao meu redor, em outros terraços, as lamparinas denunciavam a presença de muitas famílias. Todas buscavam o frescor das varandas. E as pequenas lamparinas amarelas comunicavam-se umas com as outras em tom de cumplicidade, sempre por sinais, sempre oscilando. No lago, ao sul, uma dezena de embarcações flutuava na primeira desembocadura do Jordão, muito próximo de Saidan, a aldeia dos Zebedeu. A tochas na popa e na proa visavam atrair as tilápias. Consegui distinguir uma canção. Falava de um amor não correspondido...
Ergui os olhos e, na negritude do firmamento, as estrelas Veja e Altair leram meus pensamentos e responderam com seus clarões.
"É verdade - foi como traduzi -, a esperança acaba de despertar."
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DE 19 A 22 DE SETEMBRO
Ao amanhecer, conforme o planejado, partimos de Nahum. Jesus, que não gostava de despedidas, estava sorridente e nos desejou paz, repetindo, mais uma vez, algo que não soubemos interpretar adequadamente naquele momento:
- Confiai...
Em seguida deixamos a "casa das flores", sem olhar para trás, em direção ao cume do Ravid, nosso "lar". Mas meu coração relutava. Com passos firmes, animados pelo promissor azul do céu, contornamos a costa norte do yam para atingir o nahal (rio) Zalmon, o caminho "habitual" para o alto do "porta-aviões".
Foi tudo perfeito, sem incidentes dignos de nota. Em umas duas horas, percorremos os nove quilômetros que separavam Nahum da base do promontório. E ao avistar o que chamávamos de "zona morta", entramos na pista que levava ao povoado de Migdal, na costa oeste do yam. Antes de ingressar no módulo, tínhamos de pensar nas provisões necessárias para aqueles dias. Em princípio, se tudo caminhasse bem, o tempo de permanência no "berço" seria mínimo. Apenas o necessário para revisar os sistemas, descansar e nos reorganizar, embora, insisto, não soubéssemos muito bem o que o Destino nos reservava. O retorno a Nahum foi marcado para o sábado, 22. Contudo, o Destino tinha outros planos...
Gamar, o velho beduíno, atendeu aos nossos pedidos com sua proverbial hospitalidade. Desfizemos as pegadas "até a zona morta" e,
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depois de ter certeza de que náo estávamos sendo observados, subimos pelo trecho mais desprotegido no caminho para o alto do Ravid, aproximando-nos da macieira de Sodoma. Dali até a "proa" do "porta-avióes" (o vértice sobre o qual repousava a nave) a distância era de aproximadamente 2.300 metros. E nos preparamos para o momento-chave: a desativação dos cinturões de segurança que protegiam o "berço". Um deles, em particular, o gravitacional1, era vital para chegar à máquina que nos transportara ao ano 25 e que deveria restituir-nos ao nosso "agora". Se algo falhasse, uma espécie de "vento com a força de um furacão" nos impediria a passagem. Essa era outra de minhas obsessões. O que seria de nós se esquecêssemos a "senha"?
O cinturão gravitacional era desativado quando chegávamos ao cume do penhasco e restabelecido quando o abandonávamos, graças a uma "chave" projetada pelo engenheiro. A conexão auditiva transmitia a chave ao computador e este - se o sinal fosse correto - agia em conseqüência. Ato contínuo,
1 Uma poderosa emissão de ondas gravitacionais (algo que os cientistas apenas intuem hoje) partia da complexa membrana externa da nave, sendo projetada à vontade tanto em distância como em intensidade. Dessa forma, o cinturão gravitacional envolvia e protegia o "berço" como um semicírculo invisível. Nem pessoas nem objetos tinham condições de penetrar nessa barreira.
O segundo cinturão de segurança formava uma densa IR (radiação infravermelha), já explicada anteriormente. Detectava a presença de qualquer corpo vivo e a uma distância previamente estabelecida. O sistema se baseava na propriedade da pele humana, capaz de comportar-se como um emissor natural de IR. A alta velocidade de varredura permitia analisar a totalidade de um corpo até cinqüenta vezes por
segundo. Foi igualmente útil ao longo de toda nossa estadia nos chamados montes das Oliveiras, das Bem-aventuranças e, por último, no Ravid.
O terceiro sistema de proteção da nave consistia na projeção de grandes hologramas, dotados de som e movimento, projetados por Eliseu ao descobrir uma colónia de "ratazanas-toupeiras" sob nossos pés (Hatero-cephalus glaber, peritas escavadoras "de cabeça diferente e sem pêlos", da família dos batiergídeos, de aspecto horripilante). Se alguém conseguia se aproximar da muralha romana existente a 173 metros do "berço", o computador central ativava os mencionados hologramas, provocando uma "visão" de infarto dos "bebês-morsa" a que nos referimos ou "salsichas com dentes de areia", como também são chamados. Esse cinturão só era eficaz à noite. (N. do M.)
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os demais cinturões de segurança, em efeito dominó, eram igualmente desativados ou ativados. A senha que abria o gravitacional era "Base-mãetrês". E a que fechava era "Ravid" (em inglês). Se tivéssemos a infelicidade de perder a memória, como retornaríamos ao nosso verdadeiro tempo? Como "abrir" aquele muro intransponível? Como reter a "senha secreta"?
Naturalmente, quando era assaltado por esses pensamentos, eu mesmo me recriminava pela suposição absurda contrapondo uma realidade muito mais trágica: se o mal de que padecíamos culminasse em uma amnésia, o que importava a "senha"? O mais provável é que não soubéssemos o que era o "berço" nem onde encontrá-lo. Mesmo assim, não sei por que, continuei envolvido naquele conflito...
Nada falhou. Eu me censurei pela perda de energia. O Destino, no entanto, estava avisando... Papai Noel desconectou os sistemas e, em trinta
minutos, chegamos ao interior do módulo. Tudo parecia em ordem. Lembrei do conselho do Mestre na manhã em que nos preparávamos para deixar o Hermon: "Confia... Se tens esperança, tens tudo".
Era incrível. Ali estávamos, no "berço", sãos e salvos. E eu ri do meu desassossego quando naquela segunda-feira, na montanha, constatei que náo havia mais antioxidantes. Tinha passado apenas um dia sem as necessárias doses de dimetilglicina...
Checamos os parâmetros, embora, na verdade, nem fosse preciso. O fiel Papai Noel era infinitamente melhor do que nós. Eliseu estava preocupado com o estado do combustível2 e, obviamente, com a remota probabilidade de um escapamento. Os propulsores hipergólicos (que se queimam espontaneamente ao se combinarem, sem necessidade de ignição) foram projetados para uma conservação indefinida, desde que armazenados em local adequado e nas condições mínimas exigidas. Como já mencionei, ao aterrissar no Ravid, a nave dispunha de pouco mais de sete toneladas de
Ao proceder a esta nova aventura, por uma precaução elementar, desconectamos as mangueiras que forneciam oxidante e combustível ao motor J 85 e aos motores auxiliares. Um escapamento acidental do tetróxido de nitrogénio e a mistura de hidracina e dimetil-hidracina assimétrica (propulsores hipergólicos do "berço") teriam provocado uma catástrofe, deixando-nos para sempre naquele "agora". (N. do M.)
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combustível (sem contar a reserva). Não houve uma redução significativa no nível dos taques. Ainda tínhamos 44 por cento de nossa capacidade (vale recordar que o vôo de regresso e a descida em Masada necessitariam de um pouco mais de seis mil e oitocentos quilos de combustível).
O engenheiro e piloto respirou aliviado. Estava tudo OK, tudo perfeito. Pelo menos essa foi a primeira impressão. Mas não...
O objetivo seguinte era a pilha atómica - o SNAP3. Tudo dependia do seu perfeito funcionamento. A resposta foi impecável. E, mais tranquilos, dedicamos aqueles dias ao descanso, à revisão dos demais equipamentos, à atualização do meu diário e aos planos (?) imediatos. Acho que foi um descuido de minha parte. Ao retornar ao Ravid e tentar prosseguir o registro minucioso de minhas recordações, constatei, estarrecido, que não havia mais papiros. Os últimos suportes vegetais - do tipo amphitheatrica - foram levados ao Hermon e eu os usei todos. Foi uma chateação e, ao mesmo tempo, uma sorte. Por causa dessa imprevisão, não tive outro remédio a não ser seguir os conselhos de meu companheiro e usar o computador central para fazer os meus registros. Foi assim que modifiquei meu procedimento. A mudança seria vital. Quem poderia imaginar, naquele mês de setembro, que a missão terminaria como terminou?
Outro assunto que nos manteve ocupados durante boa parte daqueles quatro dias foi o laser a gás, um dos sistemas de defesa, alojado na "vara de Moisés"4. Na dura subida do monte de Hermon, em busca do
3 SNAP: Systems for Nuclear Auxiliary Powers (Sistema de Energia Nuclear Auxiliar). Esse tipo de bateria era capaz de transformar a energia calorífica do plutônio radiativo em corrente elétrica (50 W). Como medida de precaução, o "Cavalo de Tróia" incluiu uma bateria de espelhos metálicos - doze no total - que foram acoplados na parte externa da nave. A radiação solar gerava até 500 W, o que era mais do que suficiente para atender às necessidades técnicas do módulo. O invento do professor israelita Tabo foi decisivo para o nosso trabalho. (N. do M.)
4 Este laser de gás - baseado no dióxido de carbono - foi disposto na "vara
de Moisés" como um sistema de defesa puramente dissuasório. Dada sua periculosidade, só devia ser utilizado em animais ou objetos. A potência oscilava entre frações de watts e várias centenas de quilowatts. O "jorro de fogo", irradiado em IR, perfurava o titânio a uma razão de dez centímetros por segundo, com uma potência de vinte mil watts. (N. do M.)
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mahaneh ou acampamento onde se encontrava o Mestre, estes exploradores, em companhia do jovem Tiglat e de Ot, o curioso cachorro basenji, foram assaltados, como todos se recordam, por um grupo de hetep ou bandidos montanheses, a mando de um certo Al5. Pois bem, depois de ter sido utilizado em quatro oportunidades, o laser falhou na quinta, o que possibilitou que um dos ladroes alcançasse o cachorro com a espada e o decapitasse. O que teria ocorrido? Por que o laser não funcionou? Nunca soubemos. Quando o revisamos, tudo estava em perfeitas condições. De fato, ele nunca mais nos traiu. Suponho que tenha sido o Destino, como sempre. Agora, no fim de meus dias, depois de ter testemunhado o que testemunhei, não tenho a menor dúvida: tudo está escrito, até a coisa menor e aparentemente mais insignificante. Talvez me decida a escrever sobre isso. Talvez...
Aconteceu ao meio-dia da sexta-feira. Estava tudo pronto para o retorno a Nahum. A partida foi programada para as 13 horas. Se tudo transcorresse sem contratempos, entraríamos no povoado por volta das 15 (hora nona). Portanto, dispúnhamos de duas horas e meia para encontrar um primeiro alojamento. Talvez uma das pousadas...
O plano era simples. Depois de instalados, estes exploradores voltariam à "casa das flores" para se encontrarem com o Mestre. A partir daí, seríamos uma espécie
de sombra dele.
O Destino, porém, não pensava assim...
Checamos o equipamento e a indumentária. Pouca coisa mudou em relação à nossa visita anterior, na procura do Filho do Homem pelo Hermon. Decidimos levar cinqüenta denários. Deixamos no "berço" os vinte restantes, a valiosa opala branca e a maior parte dos diamantes, providencialmente fabricados por Eliseu6. Calculamos que era dinheiro mais
Ampla informação em Hermon. Cavalo de Tróia 6. (N. do A.)
Para a elaboração dessas falsas gemas, o engenheiro arranjou uma "câmara de deposição" em miniatura, na qual gerou várias lâminas de diamantes. Para isso, utilizou filamentos de tungsténio, mantendo pressões inferiores à atmosférica. Ele testou também o oxiacetileno, rico em combustível. As chamas acabaram produzindo hidrocarboneto de baixo peso molecular, assim como hidrogênio atômico, e se
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do que suficiente para as duas ou três semanas em que, em princípio, deveríamos estar ausentes. Como já disse, o ideal era retornar ao Ravid a cada sete dias. Mas nem sempre foi assim...
Tão logo puséssemos os pés em Nahum, resolvido o problema do alojamento, um dos objetivos era adquirir roupa, calçado e, sobretudo, um par de cordões ou cintos - do tipo que era chamado de ezor - com bolsinhos internos, como aquele que Jesus havia dado ao seu irmão Tiago. Esses "cinturões", geralmente de couro, eram mais
úteis que as bolsas de lona, e evitavam as tentações. Nem Eliseu nem eu estávamos dispostos a ser roubados pela segunda vez...
Quanto aos "crótalos", fundamentais no manejo dos sistemas de defesa e em tudo o que estivesse relacionado à radiação infravermelha, também tiveram uma pequena mudança. A partir dessa saída do "berço", deveriam ser transportados em um saquinho, igualmente impermeabilizado, que eu traria sempre pendurado no pescoço. Quem visse, imaginaria tratar-se de um "amuleto", como tantos outros, semelhante, por exemplo, àquele que ganhei do jovem João Marcos em Jerusalém e que, certamente, permaneceu na nave durante o resto da missão7. O risco de transportar as lentes de visão noturna na bolsa de linho, junto com o dinheiro, era muito grande.
A parte dos medicamentos não mudou. Incluí os indispensáveis antioxidantes e as pequenas ampolas de barro com os antibióticos, fármacos antiinflamatórios etc. A cloroquina - especialmente recomendada contra a malária - era obrigatória duas vezes por semana (reforçamos a barreira quimioprofilática com uma associação de pirimetamina-dapsona em vista das fortes suspeitas de que algumas das cepas - como era o caso da P. falciparum - haviam se tornado resistentes à cloroquina).
condensaram em diamantes. Algumas descargas de microondas fizeram o resto, possibilitando o crescimento de gemas "sintéticas". No total, vinte "diamantes". A maioria com alguns milímetros, e três ou quatro - esplêndidos - com dois centímetros e meio. Foi a nossa salvação (N. do M.) 1 Ver Masada. Cavalo de Tróia 2. (N. do M.)
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Finalmente, houve uma alteração quanto à segurança pessoal. As "tatuagens" ficaram na nave8. A proteção foi bastante reduzida, mas, dado que o trabalho programado de início consistia em acompanhar permanentemente Jesus de Nazaré, não
achamos oportuno ostentá-las. Era uma questão de respeito... Mantivemos a "pele de serpente", de extrema utilidade. Essa foi outra das chaves. E, naturalmente, o cajado de augure: a inseparável "vara de Moisés" com os dispositivos eletrônicos já mencionados e os dois sistemas de defesa (ultrassons e laseres, gás).
Ficamos aguardando ansiosos...
Mas foi então que tudo aconteceu, por volta da hora sexta (meiodia), destruindo nossos planos. Como já se sabe: o Homem propõe...
Ainda dispúnhamos uma certa margem de tempo, e Eliseu, incapaz de permanecer inativo, foi se sentar diante do computador central, trazendo à tona um assunto desagradável. Um mês antes - no dia 16 de agosto, para ser exato -, ao tentar entrar no diretório dos DNA, Papai Noel, para nossa surpresa, negou o acesso. Os informes elaborados sobre as amostras do Galileu, de sua mãe, de José e do pequeno Amos, irmão de Jesus, foram inexplicavelmente classificados como confidenciais, tornando inúteis as tentativas de abri-los. No total, se não me falha a memória, foram cinco tentativas. E meu companheiro, suspeitando de Curtiss e de seus homens, prometeu encontrar uma "porta de saída" ou uma chave que nos permitisse recuperar a valiosa informação sobre a paternidade de José. Aquela "manobra", como já mencionei, tinha algo de obscuro. Por que os militares tinham tanto interesse nos DNA do Mestre e de sua família?
Em mais uma tentativa, ao solicitar o CD-GMA ("acesso a material genético"), a resposta do computador foi a mesma: "O usuário não tem permissão para executar esta ordem". E aconteceu mais uma coisa...
No mesmo instante os alarmes acústicos e luminosos dispararam, o que provocou o caos. O som do paneipanic tornou o recinto enlouquecedor. O engenheiro, pálido, permaneceu imóvel. Eu corri para junto dele e examinei os sistemas. O que estava
acontecendo?
Ampla informação sobre as tatuagens em Cesaréia. Cavalo de Tróia 5. (N. do A.)
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Durante alguns segundos fiquei sem saber para onde olhar. Os alarmes acendiam e apagavam, avisando com os apitos de que algo grave estava ocorrendo. Nunca tínhamos vivido momentos tão difíceis e angustiantes como nesse dia. Nem mesmo quando Eliseu perdeu a consciência na aterrissagem no monte das Oliveiras...
Não tinha mãos suficientes. Quando retificava um dos sistemas, outro disparava ao lado, igualmente alucinado. Aquilo não tinha sentido. A máquina não podia falhar em cadeia. Ou podia? E, de forma tão súbita como tinha começado, o "desastre" parou ali. Acho que não durou mais de um minuto. Quando tudo silenciou, meu companheiro e eu - ainda mudos - fomos atraídos por uma luz solitária. Era o único alarme que continuava ativo. Corremos até ela, tentando resolver o mistério.
Era o ECS (Sistema de Controle Ambiental), responsável, dentre outras coisas, pela pressão e pela temperatura na cabine, pela pressurizaçáo das roupas e pela absorção do dióxido de carbono. Dele dependia, sobretudo, a manutenção da temperatura adequada dos vários circuitos elétricos e eletrônicos. Algo essencial para a sobrevivência e o bom rendimento do "berço". Se algum dos intercambiadores de calor, radiadores ou evaporizadores falhasse, o equilíbrio térmico no conjunto dos cabos podia romper-se e provocar um curto-circuito. Isso significava, em outras palavras, um sério risco de incêndio.
Estremecemos. Ambos conhecíamos as conseqüências de um tal sinistro,
tanto em terra como em vôo. E a sombra do Apoio 204 pairou sobre nossos corações9.
Foi inútil. Não conseguimos desconectá-lo. E o ECS continuou piscando, varrendo os ânimos como o pior dos maarabit. Papai Noel também
9 Embora o major não esclareça, suponho que, ao mencionar o Apoio 204, estava se referindo ao incêndio sofrido pela cápsula ocupada por Grissom, White e Chaffee, astronautas da NASA, no dia 27 de janeiro de 1967. Nesse dia, essa cápsula espacial, situada a 60 metros de altura, no extremo de um foguete Saturno I-B, em Cabo Canaveral, sofreu um incêndio de enormes proporções durante uma das provas. A causa do acidente pode ter sido um curto-circuito nos sistemas elétricos. Os astronautas norte-americanos acabaram morrendo. (N. do A.)
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não soube (?) afastar a ameaça. E estava acontecendo uma coisa que não conseguíamos entender nesse momento crítico. O Sistema de Controle Ambiental estava falhando. Isso parecia claro. Contudo, os indicadores internos de temperatura - independentes do ECS - apresentavam leituras normais. A contradição aumentou a angústia. Por que todos os alarmes dispararam? Por que de forma simultânea? Por que foram interrompidos da mesma forma? Por que o aviso de avaria no ECS continuava, embora a temperatura no conjunto dos cabos nave estivesse correta?
Eliseu e eu estávamos de acordo: aquilo não era normal. Algum tempo depois entendi...
Passada uma hora, sem que nenhum dos três soubesse como (Papai Noeleia. como um terceiro tripulante), o paneipanic voltou à normalidade. O ECS apagou, mas as dúvidas permaneceram intactas, obrigandonos a uma seqüência de revisões.
A tensão era tamanha que a descida a Nahum foi adiada. Mais ainda: Eliseu colocou claramente a possibilidade de suspender a missão e regressar de imediato a Massada, ao nosso verdadeiro "agora". Pedi calma. A situação, tal como aparecia no painel, era realmente perigosa. É justamente nessas horas que temos de agir com frieza.
E decidi esperar. Pedi um prazo de 24 horas. Se o aviso se repetisse, nós retornaríamos. O engenheiro concordou.
Foram horas terríveis, com os olhos grudados nos instrumentos e em alguns relógios idiotas. Quase não trocamos palavras. Não era necessário. Suponho que nós dois estávamos pensando a mesma coisa. Projetos, vida e ilusões se desvanecem em menos de um segundo. Ao longo desse dia difícil achei que não voltaria a Nahum...
E o Destino continuava zombando de nós, fazendo e desfazendo.
Acho que não dormi nem uma hora. E por volta da nona do sábado, 22, encerrado o prazo, tomei a decisão de prosseguir o que estava estabelecido. As "avarias" não se repetiram.
Eliseu aceitou a ordem a contragosto. Pelo menos essa foi a minha impressão. Ele tinha razão. Nenhum de nós estava seguro do bom funcionamento do "berço". Não naquelas circunstâncias...
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Entretanto, "algo" que não consigo explicar, "algo" belo e ao mesmo tempo insensato, me colocou na galeria dos heróis. Heróis quase à força, impelido por ele e pelo sentimento novo...
Eram quase 16 horas. O ocaso ocorreria às 17h37. Não dispúnhamos de
tempo para seguir caminho ainda com luz. Além disso, estávamos esgotados. Necessitávamos de um mínimo de descanso e de paz interior. E, prudentemente (?), o retorno a Nahum foi adiado para o dia seguinte. Na primeira hora, se não surgissem outros inconvenientes, deixaríamos o "porta-avióes".
Agora, revendo os fatos à distância, náo posso deixar de me surpreender. "Alguém" tinha - e tem - tudo calculado. Insisto: até o mínimo "detalhe"...
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23 DE SETEMBRO, DOMINGO
Os relógios marcaram o surgimento do sol às 5 horas, 20 minutos e 17 segundos de um suposto tempo universal.
E, absurdamente obcecado pelo hipotético problema da amnésia, mesmo diante do ceticismo de Eliseu, fui gravar a "senha" no tronco da macieira de Sodoma, na "popa" do Ravid. Com aquelas letras à vista pensei -, a desativação do cinturão gravitacional não ofereceria qualquer dificuldade no futuro... Pobre imbecil!
"B M 3" (Base Mãe 3).
O laser a gás fez seu trabalho, e as siglas ficaram ali, perdidas no alto de um penhasco. Se alguém por acaso as descobrisse, náo saberia "traduzir" o significado.
E empreendemos a caminhada até o povoado de Nahum. Os alarmes ainda soavam na minha cabeça... Agora, mais do que nunca, tínhamos de vigiar o "leque luminoso" do "ciclope". Ou melhor, para que ele não se projetasse no céu. Se isso ocorresse, se a avaria se repetisse, teríamos de dar adeus "Cavalo de Tróia" e, sobretudo, a Ele.
E por falar em "casualidade", o que devo pensar sobre o ocorrido naquela
manhã de domingo, tão logo pusemos os pés na rua principal de Nahum? Causalidade ou "tudo previsto". Foi o Mestre quem disse. O pobre mortal não ofende a Deus, mesmo que essa seja sua intenção. Pois bem, talvez a palavra "causalidade" fosse a única injúria que poderíamos
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lançar contra o Pai (ou nem isso). O que vivemos foi fruto do acaso? O eventual leitor destas memórias saberá julgar...
O fato ocorreu, como eu disse, ao entrar no cardo maximus ou principal artéria do povoado. Devia ser umas oito da manhã. Já fazia algum tempo que as pessoas andavam às voltas com seus afazeres. Estávamos no primeiro dia da semana para os judeus, e isso era sempre muito perceptível. De um lado e de outro da rua, sob os pórticos, os vendedores exibiam seu produto, tentando atrair os transeuntes com seus gritos. Cestos, tecidos, recipientes de barro e de vidro de todas as formas e tamanhos, sacos de especiarias, verduras, móveis, roupas e artigos cosméticos, entre outros, dificultavam a passagem pela calçada escura. Em um e em outro sentido - em direção ao yam ou à porta tripla, ao norte, por onde acabáramos de passar - cruzavam intermináveis reatas de jumentos, carregadas com todo tipo de fardos. E entre os jumentos e as mulas, os indispensáveis condutores, seminus, com os bordões no alto, ameaçando e abrindo passagem entre os distraídos. Mais um dia, pensei...
E a mais ou menos uma centena de metros do cruzamento com o decumani, a segunda rua principal, à nossa direita, à medida que caminhávamos tive a impressão de reconhecer a taberna onde eu estivera - no "passado" - com Jonas, ofelah, que foi quem me conduziu até o estaleiro dos Zebedeu.
Aquele era um bom lugar para pedir indicações sobre um primeiro alojamento. Essas tendas de bebida, onde também se serviam refeições, eram os mais destacados "centros de informação" sobre a vida em Nahum. Ali se sabia tudo sobre todos e, se fosse necessário, inventavam. Tudo para não perder o possível cliente...
Expus minha idéia e entramos no lugar. Eu me lembrava que o dono era um tal Nabú, um sírio estabelecido no lago fazia muitos anos.
O antro, pouco iluminado por várias lâmpadas de azeite penduradas nas vigas, estava quase vazio. No centro da sala, dois indivíduos completamente bêbados cantarolavam. Estavam meio mal acomodados em tamboretes e em uma mesa de pinho, mais escura que as paredes de pedra na frente da porta, o típico balcão, formado por uma fileira de barris
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bojudos. Uma prancha de madeira, tão ensebada como as outras mesas, servia de tabuleiro. Sete orifícios permitiam o acesso aos barris.
Num dos extremos da "barra", curvado e com ar aborrecido, estava Nabú, inchado como um odre de vinho, suado e sonolento, que esperava pacientemente que os clientes pedissem outra jarra de schechar, a cerveja quente destilada com milho, uma especialidade da casa. Na parede atrás dele estavam pendurados dois grossos remos, o único adorno, que eu já havia observado em minha visita anterior. Gravado a fogo, em grego, liase em uma das palas: "Ai do país que perde seu líder! Ai do barco que não tem capitão!" Nada parecia ter mudado...
Quando nos viu, o taberneiro se aproximou sem vontade, com um passo cambaleante, e sem perguntar nada, encheu duas jarras de barro com o líquido amarelo e espumante de um dos recipientes.
Foi meu amigo quem perguntou por algum alojamento próximo, se possível no cardo. Nabú nos olhou de cima a baixo, e compreendendo o que queríamos, apontou para os que cantavam, e disse com voz de trovão:
- Sobre isso é melhor perguntar ao Kuteo...
Kuteo era um apelido com que se designavam os samaritanos. Os judeus o empregavam como um insulto, assim como a própria palavra: "samaritano" ou samareís (habitantes de Samaria, uma das regiões de Israel). Kut ou Kuta, na Pérsia, era a região da qual os samaritanos procediam inicialmente. Ao que parece, eram colonos que chegaram no século VIII a.C. E aí que nasce o ódio dos judeus ortodoxos, que não os consideravam de origem pura. As alusões de Moisés no Deuteronômio (32, 21) - quando fala em "não povo" e da "gente insensata" -, e as do Eclesiástico (50, 27), todas supostamente dirigidas aos samaritanos, acabaram por envenenar as relações. Kuteos e judeus se odiavam.
Qual dos dois era o kuteo? Estávamos quase desistindo. O estado dos indivíduos não parecia dos melhores para que pudessem dar qualquer tipo de informação. Mas Eliseu foi até a mesa. Eu permaneci junto ao balcão e, por mera curiosidade, peguei uma das jarras e cheirei a suposta cerveja quente. E digo bem: suposta schechar... Examinei mais uma vez e, ao verificar o conteúdo, empalideci. Nabú sorriu maldosamente e me deu
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uma piscada em tom de cumplicidade. Obviamente, as jarras continuaram ali, com a "especialidade" da casa: cerveja de milho e urina...
Os bêbados, ao perceberem o forasteiro, interromperam a monótona e insuportável cantilena, oferecendo as jarras e convidando meu amigo a
unir-se ao coro. Um deles, ao se levantar, oscilou e foi cair nos braços do engenheiro. Acudi em seu auxílio e o sentamos de novo como pudemos, deixando que o beberráo dormisse sobre a mesa.
Nesse momento, Eliseu chamou-me a atenção, apontando para o segundo sujeito. O tipo, turvado pela cerveja - ou o que fosse -, não nos reconheceu. Nós, ao contrário, não tardamos a identificá-lo... e a compreender.
Bastardo!
A ira de Eliseu era justificada, porém em voz baixa, procurando não chamar a atenção do taberneiro. Pedi que ficasse calmo. Tínhamos de agir com eficácia e discrição. Dei uma olhada para Nabú. Ele seguia nossos movimentos, passo a passo, do mesmo lugar onde o havia deixado.
Conversei rapidamente com o bêbado. Disse chamar-se exatamente como o sírio identificou-o - Kuteo - e ser originário de Siquém ou Sichem, ao norte da Samaria. Não tive dúvida. Tratava-se do tal "cambista" que veio ao nosso encontro quando íamos entrando na casa de Jesus. A barba longa, pintada de vermelho-sangue, a estatura baixa e o semblante magro e amarelo-esverdeado eram inconfundíveis. Mas o que tinha acontecido com o tapa-olho de couro preto que cobria o olho esquerdo? Talvez fosse outra artimanha para enganar os incautos. Aquele pilantra era tão caolho como nós...
E Eliseu, esquecendo minha recomendação, agarrou a bolsa pendurada no pescoço do samaritano e arrancou-a sem qualquer cerimónia.
Bastardo!
De fato, o tal Kuteo estava com a bolsinha que desaparecera do cinto de meu irmão naquela terça-feira, dia 18. Não era difícil imaginar o que tinha acontecido. No empurra-empurra debaixo do portal da "casa das flores", Kuteo resvalou
entre os curiosos e acabou soltando o cordão que unia a bolsa ao cinto. A "encenação" anterior, oferecendo
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se para cambiar moeda, foi apenas uma "inspeção da mercadoria"... O instinto nunca falha.
Mas o ladrão não estava tão ébrio como parecia. Ou, pelo menos, ao ver que o dinheiro "escapava", recuperou-se com incrível rapidez. E de pé, erguendo os braços e grunhindo como um porco, exigia a bolsa de volta, chamando-nos de ladrões.
A partir daí, as coisas se sucederam com grande velocidade. Meu companheiro se negou a devolver o que era seu, e Nabú, alertado por aquele bate-boca, pegou um enorme facão, deu a volta no balcão e avançou em direção a nós, brandindo a arma acima da cabeça.
- Vou cortar tua mão, miserável!
E antes que pudéssemos reagir, o sírio se aproximou do perplexo Eliseu e o jogou contra a parede. Meu irmão caiu e o taberneiro avançou sobre ele, disposto a cumprir a ameaça. Meus dedos deslizaram rapidamente pela "vara de Moisés", procurando o cravo de cobre que ativava os ultrassons. Porém, quando o acionei, o berrante Kuteo, obcecado pelo dinheiro, passou à frente de Nabú, e a descarga destinada a este atingiu o samaritano em plenas costas. O disparo não serviu para nada. Ele só funcionava na cabeça1. Entretanto, a irrupção do falso caolho evitou o pior e me deu alguns segundos, suficientes para eu me recompor...
Kuteo, ennlouquecido, acabou se chocando com o sírio e os dois rolaram pelo chão. Eliseu, consciente de minhas intenções, saiu de
O complexo sistema defensivo dos ultrassons, que já descrevemos antes, consiste essencialmente da emissão de ondas com uma freqüência que oscila entre dezesseis mil e 1010hertz. Os ultrassons, protegidos do ar por um "cilindro" IR, agem como o aparelho vestibular, bloqueando o canal semicircular membranoso (ouvido interno) e causando a consequente, mas transitória, perda da posição da cabeça e do corpo no espaço. Associado às impressões visuais e táteis, esse aparelho vestibular proporciona as variações de situação experimentadas pelo corpo, desencadeando reações automáticas que tendem à manutenção do equilíbrio, em colaboração com a contração sinérgica dos músculos antagonistas. Na verdade, isso não é importante, embora seja de grande utilidade para imobilizar temporariamente um suposto agressor. A arma está em fase de experimentação pelo exército dos EUA. (N. do M.)
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perto. Um instante depois, uma segunda descarga bloqueou o ouvido interno de Nabú e o deixou imobilizado. O sujeito ficou inconsciente por alguns minutos. O samaritano não entendeu nada. Não sabia o que tinha acontecido ao taberneiro e tampouco porque tinha perdido a consciência alguns segundos depois de Nabú. Mas nós sabíamos. A terceira descarga de ultrassom pegou-o em cheio e o deixou desacordado. Mesmo não tendo tempo de apoiar a açáo com as lentes de contato, o resultado, felizmente, foi bom. Aquele facão e o maldito vendedor de urina não estavam brincando...
E registramos bem isso. O "aviso" não foi ignorado. Estávamos em um "agora" apaixonante e perigoso ao mesmo tempo. Era preciso ter o máximo de precaução.
Abandonamos a taberna o mais rápido possível. Lá fora, todos
continuavam com seus afazeres. Ninguém ficou sabendo do que ocorrera no estabelecimento de Nabú. Pelo menos naquele momento... E, procurando não levantar suspeitas, afastamo-nos com passos firmes daquele setor do cardo.
Eliseu examinou o conteúdo da bolsa de lona. Só restavam cinco denários de prata e algumas moedas de bronze (ases e leptas). O Kuteo se apressara em dilapidar os outros cinco denários...
Ao distinguir o muro de pedra que protegia a "casa das flores", meu coração se agitou. Mas por quê? Melhor dizendo, por quem? A essas alturas, eu sabia muito bem... Atravessamos o pórtico com certa timidez. Os encontros com o Mestre e sua família sempre foram assim, um pouco inseguros de nossa parte...
O pátio comum estava quase deserto. Fomos andando devagar. No fundo, debaixo da romãzeira, sentada nas esteiras, estava Raquel, filha de Esta e Santiago, segurando o nené nos braços. Tinha os olhos baixos pousados sobre o menino. Ouvimos sons. No início não consegui distinguir. Achei que era alguém cantando ou rezando muito baixinho. Depois foram suspiros. Vinham da casa da Senhora.
Não foi preciso chamar. A menina notou nossa presença e, rapidamente, carregando Amos, perdeu-se atrás da cortina de rede da primeira
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habitação. No mesmo instante surgiu Esta. Atrás estava a menina, como sempre, agarrada à saia da grávida.
Eu não sabia bem o que dizer. Estávamos procurando Jesus... A mulher não respondeu. Dirigiu-se à porta ao lado - a da sogra - e se perdeu na escuridão do recinto. Eliseu e eu achamos estranho e trocamos um olhar fugaz. O que estava acontecendo? Onde estava o Galileu?
Os suspiros logo arrefeceram. E também o que eu tinha interpretado como uma reza ou um cântico. Eram lamentos. Era a voz da Senhora... Ficamos assustados. Por pouco não rompemos as normas da hospitalidade e penetramos na casa. Mas soubemos esperar...
Esta retornou e, com sua linguagem lacónica, perguntou qual a razão do nosso interesse por Jesus. Fiquei sem entender. Lembrei-lhe que éramos amigos e que apenas queríamos encontrar com ele. A mulher, imperturbável, entrou novamente.
O instinto, como um relâmpago, me advertiu...
- Ele não está em casa - informou a grávida, surgindo entre os panos de rede. - Foi embora...
Esta esperou uma resposta. Porém, ao notar nossa incredulidade, mudou de opinião e nos deu as costas pela terceira vez, voltando junto com os lamentos.
Tentei juntar os pensamentos, mas não consegui. A surpresa me causou um branco. Meu irmão, atónito, nem piscava. Onde estava Jesus? O que ela quis dizer?
A presença daquela mulher seca mais uma vez na soleira da porta me fez reagir, e, antes de abrir a boca, formulei a questão-chave:
- Ele está no povoado? Ela negou com a cabeça.
- Para onde ele foi? - interveio Eliseu sem conseguir se conter. - Quando?...
- Não é possível...
Meu comentário deixou-a confusa. Não sabia para onde olhar e nem a quem responder. Finalmente, respondendo ao meu companheiro, disse laconicamente:
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- Não sei...
Era preciso controlar os nervos. Precisávamos averiguar o que tinha acontecido e, sobretudo, onde se encontrava o Mestre. E, esboçando um sorriso, tentei tranqüilizar-me e tranqüilizá-la. A cada pergunta, Esta entrava de novo na casa, suponho que para indagar à Senhora. O esforço foi quase em vão...
As mulheres o viram partir com as primeiras luzes do alvorecer daquele domingo, 23 de setembro. Provavelmente na mesma hora em que estes torpes exploradores deixavam o Ravid. Pendurou o saco de viagem no ombro e desapareceu. A Senhora perguntou ao Filho sobre seus planos. Jesus deu-lhe apenas uma pista: queria estar sozinho com seu Pai, na Cidade Santa... Isso foi tudo. O resto era fácil de imaginar. A mãe, surpresa e desolada por essa nova partida, caiu em outro estado de profunda tristeza. Ruth e Esta tentavam consolá-la...
Como eu dizia, o interrogatório parou aí. O Filho do Homem deixara Nahum com destino a Jerusalém. Lembrei-me de suas palavras, pouco antes de conduzir-nos ao terraço: "O Pai tem planos aos quais não tendes acesso agora... Confiai".
E, por um momento, imaginando que Jesus não queria nossa companhia, vim abaixo. O que fazer diante de uma situação como aquela? Retornar ao Ravid? Conformar-nos?
Foi Eliseu quem me fez reagir. Desistir? E claro que não. O objetivo daquele terceiro "salto" era segui-lo sem descanso. E assim seria enquanto pudéssemos...
Tratei de me acalmar e de pensar em alguma coisa o mais rápido possível. Se a informação estivesse correta - Jesus jamais mentia -, só havia uma solução: seguir
viagem para o sul. O Mestre, segundo meus cálculos, estava com umas três horas de vantagem sobre nós. Não era muito. Podíamos alcançá-lo. Outra questão era o caminho que devíamos seguir.
Será que optou por uma das margens do yam, rumo ao rio Jordão, ou tinha em mente uma rota que cruzasse Samaria? Impossível saber. O Mestre era imprevisível... "O mais lógico - disse a mim mesmo numa ten
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tativa inútil de contornar o problema - é que siga pelo atalho do Jordão. Atravessar a região dos kuteos é arriscado..."
Lógico? O que havia de racional em tudo aquilo? Por que o Mestre, que acabara de chegar à sua casa, tinha decidido seguir por outros caminhos? Será que a fria acolhida de Maria e de seu irmão havia influenciado? E por que Jerusalém? Dentro de alguns dias, o povo judeu celebraria a festa do Perdão e da Expiação2. Nesse dia sagrado, a nação hebréia, como se fosse um só homem, abaixava-se diante do temido Yavé e pedia perdão pelos pecados cometidos no ano anterior. Mas vacilei. Não creio que fosse essa a razão que impulsionara o Galileu a se deslocar até Jerusalém. Jesus respeitava as leis e as tradições, mas suas idéias iam em outra direção. Em particular, a relação com o pecado e a divindade. Tinha de haver outra explicação para essa súbita viagem. E prometi que iria averiguar.
Partiríamos imediatamente para Jerusalém. E o faríamos pelo caminho mais curto. Primeiro, navegaríamos pelo Kennereth ou mar de Tiberíades, até a margem sul. Era a rota mais rápida. Chegando lá, tomaríamos o atalho que descia paralelamente à margem direita do Jordão. No "passado" (embora fosse mais apropriado falar do futuro), este que escreve havia percorrido esse caminho, ainda que com a
segurança de uma caravana que vinha de Tiro. Foi depois da morte do Filho do Homem. A marcha de quase três dias até Jerico resultou de grande utilidade para tomar referências e avaliar os perigos da importante estrada.
Assim ficou decidido. O Destino se encarregaria do resto...
O Destino? Do que eu estava falando? Era ele quem governava. Se não fosse a avaria no "berço", nada disso teria acontecido. Ê o Destino que
O Yom Kippur (Dia do Perdão) geralmente é celebrado dez dias depois do Rosh Hashana ou Ano Novo judaico. Naquele ano 25, o Dia da Expiação ocorreu em finais do tísri (outubro). Durante essa festividade, o sumo sacerdote dirigia-se ao "Santo dos Santos" do Templo - a única ocasião durante o ano todo - e fazia oferendas a Yavé, pedindo desculpas pelas ofensas do povo. Era também o único momento em que pronunciava o Nome (YWHW ou Yavé). O sumo sacerdote colocava as mãos sobre a cabeça de um caprino e transferia ao animal as culpas dos homens. Depois, o bode expiatório era levado a vinte quilómetros de Jerusalém, no deserto de Judá, e lançado do penhasco. Dessa forma, os pecados - todos - eram perdoados... (N. do M.)
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dispõe. Nós só cumprimos o "estipulado". Mas não quero desviar do assunto. Ainda haverá tempo de retomar o tema fundamental do Destino...
E, para confirmar minhas palavras, ali estava, mais uma vez... Aconteceu quando caminhava em direção ao pórtico. Como dizia, estava decidido. Foi o que conversamos depois de interrogar Esta. Nós o seguiríamos pelo vale do Jordão. Mas, de súbito, o engenheiro parou e olhou para trás. Não sei como ele adivinhou... Ruth estava atrás da porta da casa da Senhora, meio oculta pela cortina de rede.
Tenho certeza. Nossos olhares se cruzaram mais uma vez. Foram alguns segundos. Eu não poderia descrever ou classificar com exatidão aquele olhar. Só sei que seus olhos me chamaram no mais clamoroso dos silêncios. E eu obedeci. Então, aquele sentimento - desconhecido para mim - elevou-se até o mais alto dos céus.
E Eliseu ergueu a mão em sinal de despedida. Ela, sem deixar de me olhar, respondeu à saudação... Mas agora, sabendo o que sei, eu me pergunto com amargura: a quem ela saudou realmente? O Destino sabia... e antevia também o que nos aguardava do outro lado do pórtico.
Foi quase simultâneo. Mal pusemos os pés na rua e demos alguns passos em direção ao cais, quando ouvimos um vozerio. Comerciantes e transeuntes, e nós, juntamente com ele, dirigimos a atenção ao extremo norte do cardo. Tive um pressentimento. E puxando meu companheiro pela manga, convenci-o de que devíamos nos retirar e alcançar os atracadouros o mais rápido possível. Segundo nossos cálculos, poderíamos embarcar ali e aproar ao sul, na segunda desembocadura do Jordão.
Eliseu protestou. Por que estávamos fugindo? Não havia tempo para explicações. Tampouco lhe falei do estranho pressentimento. Só queria ir embora dali. Mas o engenheiro, teimoso como uma mula, foi mais forte do que eu. Plantou-se no meio da rua e disse que não daria um passo se eu não lhe desse uma boa explicação. Não foi necessário. Os gritos, ao fundo, e os sujeitos que encabeçavam a algazarra falaram por mim. Eliseu começou a entender e arrancou a toda velocidade. Fui atrás dele, o mais rápido que pude...
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Ao chegarmos ao cais, paramos. Se os capatazes e os chefes de quadrilha
dos carregadores vissem dois indivíduos correndo entre os fardos e saltando as fileiras de escravos e de am-ha-arez?, nossa fuga terminaria ali. O cais, como todas as manhãs, estava saturado de homens e mercadorias. O que fazer? Que direção tomar? Devíamos nos esconder ou enfrentálos? Aqueles instantes foram decisivos. Por um lado, meu companheiro reparou em um dos terrenos próximos, perpendicular, como os outros dez ou quinze, ao espigão do cais principal. Uma das embarcações parecia prestes a abandonar o atracadouro. Os marinheiros, na proa, tentavam soltar as amarras. Digamos que essa foi a parte positiva. A negativa estava nos rostos dos tipos que se aproximavam e comandavam o tumulto. Nos reconheceram e, uivando, insuflaram a tropa contra estes exploradores. E se lançaram como chacais. Pensei na "vara de Moisés". Com sorte, eu conseguiria imobilizar meia dúzia, não mais. Os outros nos destroçariam.
Não tínhamos alternativa. Eliseu indicou os degraus de pedra que desciam pelo terreno até a água do lago e deu o sinal:
- Vamos!
Eu nunca havia corrido e saltado com tamanho desempenho. Na corrida, atónitos e indignados, alguns daqueles "am-ha-arez acabaram tropeçando nestes exploradores e rolando pelas pedras úmidas e escorregadias. Nunca soube quantas cântaras se quebraram e quantas maldições recaíram sobre nós e nossas famílias... A única coisa que importava era ultrapassar o cais, descer pelo atracadouro e saltar sobre o barco.
E assim ocorreu. Fui o último a cair sobre a proa do pequeno navio. As caras do patrão, dos tripulantes e dos demais passageiros eram indescritíveis. O susto foi tanto, que, felizmente, não reagiram... E o barco continuou se afastando. Os perseguidores, raivosos, permaneceram no porto.
Nahum e seu porto eram um dos principais redutos dos am-ha-arez ou
"povo da terra". Assim eram chamados os judeus ortodoxos não muito conscientes da Lei. Com o tempo, o termo passou a ser utilizado para designar os mais pobres e deserdados da fortuna. Eram a escória, tão impuros como os pagãos, os bastardos e os filhos ilegítimos de sacerdotes. (N. do M.)
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Os punhos de Nabú e do Kuteo lá no alto disseram tudo. O taberneiro e o ladrão não perdoariam facilmente o engodo...
E antes que a situação piorasse - ainda mais -, Eliseu, rápido nos reflexos, depositou a bolsa de lona nas mãos do patrão. O homem, um fenício que se tornava surdo, cego e mudo diante do dinheiro, examinou o conteúdo e levou um dos cinco denários à boca. Mordeu a prata e, satisfeito, aceitou a proposta do engenheiro, gritando aos marinheiros:
- Rumo à "Lua"!
E uma vela branca, quadrada, abriu-se acima de nossas cabeças. O cargueiro navegou até a lagoa formada pela segunda desembocadura do rio sagrado - o Jordão - e que recebia o nome de "Yeraj", a "Lua". Ali, decidiríamos. Melhor dizendo, ali nosso "acompanhante", o Destino, decidiria...
Depois de ver Nahum desaparecendo na distância, descobrimos a natureza do barco em que tínhamos ido parar. Era o que naquele tempo e naquela paragem chamavam de mot (literalmente, "morte"). Eliseu e eu, cautelosamente, nos retiramos para a proa, contemplando a cena.
O patrão deu as ordens e uma segunda vela, atravessada no mastro da popa, foi içada entre protestos, ajudando a maior. O vento, a essa hora (mais ou menos a tercia
[às 9 horas]), ainda não avançara sobre o yam. E o mot cabeceou lento, mas voluntarioso. A mezena também era branca. Tudo naquele pequeno cargueiro - de apenas doze metros de comprimento - era branco. Obrigatoriamente branco...
O fenício retornou ao remo que funcionava como timão e acertou o rumo. Em seguida, após acariciar novamente a prata que lhe fora entregue por meu companheiro, fez um gesto aos "passageiros" que ocupavam o centro da coberta. E a mulher, toda de branco, envolvida em um longo véu, inclinou-se sobre o corpo que jazia no piso e, sem tocá-lo, começou a se lamentar, gemendo e agitando os braços exageradamente. Aos poucos, os lamentos foram se intensificando e também os choros. Eliseu, ainda agitado pela recente corrida, me inquiriu preocupado. Pedi calma. Até o momento, tudo estava indo bem...
O patrão fez um segundo sinal e o jovenzinho que acompanhava a mulher tirou uma flauta de cana e começou a tocar uma doce e melancó
154 >
liça melodia. Parecia uma adaptação do kaddisch, uma bela oração judia recitada e cantada nos funerais, e na qual se glorificava o Deus da vida... E assim navegamos durante quase três horas.
O mot, propriedade do fenício, era um dos barcos autorizados pela estrita legislação judaica para o transporte regular de cadáveres pelo mar de Tiberíades. Dada a rigorosa proibição de tocar em um defunto ou de aproximarse dele, os fanáticos religiosos optaram por delegar aos pagãos a indispensável tarefa de transportá-los, tanto por terra quanto pelas águas do yam.
Os escrúpulos dos judeus (pelo menos os mais rigorosos) no que se refere a preservar a pureza exigida por Yavé4 chegavam aos extremos
4 As práticas relacionadas ao "náo-contato" com cadáveres remontavam, mais uma
vez, aos textos supostamente escritos por Moisés e, como consequência, ditados
diretamente por Yavé. Eis o que consta em Números (19, 13-14): "Quem tocar um
morto, no cadáver de um homem, e não se purificar, contaminará o tabernáculo de
Yavé, e será eliminado de Israel, porque não se purificou com a água lustral. Esta
é a lei: quando morre alguém em uma tenda, todo aquele que entrar na tenda e
tudo quanto nela houver ficará imundo por sete dias". Porém, a obsessão dos judeus
pelos cadáveres não termina aí. Com o passar dos séculos, surgiram dezenas de outras
normas (o tratado ohalot reúne dezoito capítulos sobre a impureza nas tendas).
Algumas, como as que exponho a seguir, dispensam comentário...
"Se um homem toca em um cadáver - diz o ohalot- ele contrai impureza, e se outro
homem toca neste permanece impuro até o pôr-do-sol."
"Se alguns objetos tocam em um cadáver e esses objetos em outros objetos contraem
impureza por sete dias. O terceiro que tocar nesses objetos, seja uma
pessoa seja um
objeto, contrai impureza até o entardecer."
"Se uma estaca é cravada na tenda (em que se encontra o cadáver), a tenda, a estaca, a
pessoa que tocar na estaca e os objetos em que esse homem tocar contraem impureza
por sete dias..."
"O homem não propaga impureza enquanto não tiver expirado. Mesmo que esteja
mortalmente ferido ou agonizante, ele não contamina... Do mesmo modo, um animal
doméstico ou selvagem não contamina enquanto não expirar. Se tiverem cortado suas
cabeças, mesmo que as extremidades ainda se mexam, são impuros, tal como, por
exemplo, o rabo da lagartixa..."
"No corpo humano há 248 membros. Cada um deles pode contaminar por contato,
transporte e por estar debaixo do mesmo teto."
"Um quarto de log de sangue [um log equivalia a 600 gramas], emanado de uma
pessoa depois de seu falecimento, ou um quarto de log de sangue misturado de um
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de um pesadelo. O Filho do Homem teve muitos problemas com esse assunto delicado...
Por exemplo, assim como os sepulcros, os mot deviam ser identificados à distância. Por isso eram pintados de branco. Era o sinal. Eram barcos "proibidos". Ninguém, entre os fiéis observantes da Lei, aproximava-se deles. A presença de um cadáver no navio significava contaminação, e isso, por sua vez, garantia um dinheiro extra (apenas os sacerdotes - mediante pagamento antecipado - estavam autorizados a "limpar" esse tipo de "impurezas"). E os gentios responsáveis pelo transporte tinham o máximo cuidado em satisfazer às obsessivas normas judaicas. Como já disse, tudo era pintado de branco: casco, coberta, mastro, velas, cordas e até as gamelas e marmitas utilizadas para comer e beber. Os tripulantes, naturalmente, também se vestiam de branco. Quando outros barcos avistavam um mot, alteravam a rota, afastando-se do transporte funerário. Na hora de atracar no porto era a mesma coisa: as pessoas procuravam manter distância, evitando qualquer contato. Daí ao medo e à superstição era um passo...
Na precipitação da fuga, não conseguimos distinguir. A "escolha" (por parte do Destino) foi acertadíssima. Ninguém, em sã consciência, se atreveria a nos perseguir... E ao longo da travessia soubemos que o mot estava trasladando o corpo de um zelote até a aldeia de Ha-on, na
morto, o sangue de um recém-nascido morto, que fluiu totalmente, comunicam
impureza debaixo de uma tenda (entendida como o teto em geral)."
"Uma colherada ou mais de pó de uma tumba é contaminante."
"A terra de um país estrangeiro comunica impureza por transporte e por
contato
[supondo-se que poderia conter restos humanos, ainda que fossem apenas do tamanho
de uma azeitona]. Se um judeu viaja para o exterior - mesmo que não toque a terra -,
contamina-se até o entardecer."
"Se um cachorro que devorou a carne de um morto morre e jaz no umbral da casa, se
seu pescoço tem um palmo de largura, dá passagem à impureza."
"Se uma pessoa toca em um morto e depois em objetos, ou se projeta sua sombra
sobre um cadáver e depois toca objetos, estes se tornam impuros. Se apenas projeta a
sombra sobre um cadáver e depois a projeta sobre objetos, estes permanecem puros.
Mas se sua mão tem a extensão de um palmo (!), os objetos ficam contaminados..."
Como já disse, sem comentários... (N. do M.)
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costa sudeste, relativamente próxima de Kefar-Zemaj. Dali até o nosso destino a distância era de quatro ou cinco quilômetros. O fenício fez um bom negócio...
E ao som da flauta doce e dos soluços e gestos de desespero não tão doces encenados pela carpideira oficial, fomos nos aproximando de Yeraj. Nem
meu companheiro nem eu esqueceríamos facilmente aquela agitada manhã... Tudo parecia ter dado errado. E meus pensamentos se voltaram, mais uma vez, para o Filho do Homem. Conseguiríamos encontrá-lo?
Quando atracamos em Yeraj, o sol estava muito próximo do zénite. Era a hora sexta. Se o Mestre tivesse partido de Nahum por volta das seis da manhã, e seguido até a segunda desembocadura do Jordão por uma das margens, isso significava, no mínimo, quatro horas de caminhada. Jesus poderia ter chegado à "Lua" por volta das dez. Agora eram doze e, se meus cálculos não estivessem errados, talvez tivéssemos diminuído a vantagem. Jesus podia estar a umas duas horas do local onde nos encontrávamos. Mas tudo isso, naturalmente, eram apenas suposições... E eu me consolei. Nós o encontraríamos. A busca nas alturas do Hermon também não fora fácil.
Yeraj era uma lagoa de uns duzentos metros de extensão, situada ao sul dessa segunda desembocadura do rio Jordão. O braço de terra que a separava do yam era resultado do contínuo transporte de sedimentos e do intenso bater das ondas. Os habitantes do local souberam aproveitála como enseada natural, bem protegia dos ventos e das furiosas tormentas invernais. Como comprovamos no "circuito aéreo" - quando nos dirigíamos ao chamado monte das Bem-aventuranças5 -, o Jordão desembocava mais para o oeste do que supomos hoje. Exatamente a um quilômetro e meio6.
Ampla informação em Saidan. Cavalo de Tróia 3. (N. do A.)
No século XX, a antiga desembocadura situa-se no palmeiral conhecido como "Jardim de Raquel", plantado em memória da citada poetisa... O desvio das águas, segundo os geólogos, pode ser decorrência de um forte terremoto registrado por volta do ano 1100. (N. do M.)
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A presença do mot na lagoa nos beneficiou. Quando desembarcamos, ninguém se atreveu a nos seguir, nem mesmo o funcionário da aduana marítima, encarregado de inspecionar as bagagens.
E, decididos, adentramos na "metrópole" em busca do atalho que seguia quase paralelo à margem direita do Jordão7. Visto a partir do "berço", aquele extenso núcleo humano, estabelecido ao sul do mar de Tiberíades - e que reunia a Bet Yeraj, as duas Deganias, Philoteria, Senabris e Kinnereth, entre outros povoados -, seria chamado por nós de "metrópole", se me permitem a expressão. Realmente nos impressionou. As cidades e povoados entrelaçados formavam um conjunto urbano em que era difícil distinguir onde começava um e terminava o outro. Segundo nossos cálculos, a "metrópole" poderia ter uma população da ordem de quarenta mil habitantes8.
Por um instante, vacilei. Deveríamos procurar nesse enorme emaranhado de casas, edifícios públicos, vilas, ruas e passagens? Teria Jesus parado em alguma daquelas localidades?
A estrada do Jordão - a mais importante - ligava Jerusalém ao mar de Tiberíades, acompanhando a margem direita do rio. Outro atalho, menos transitado, transpunha o rio Jordão ao sul, perto de Jerico, e percorria a margem esquerda, atravessando os territórios da Peréia e da Decápolis. No yam, convergia com a calçada que circundava a costa leste desse mar, ou Kennereth, perdendo-se na Gaulanítis, ao norte (a rota que tínhamos feito recentemente, na ida e na volta do Hermon). Outros caminhos cruzavam essas duas artérias - a leste e a oeste -, interligando regiões tão distantes quanto as costas da Fenícia, da Síria, a Nabatéia e o Egito. (N. do M.) 8 Bet Yeraj ou "Casa da Lua" era a cidade mais populosa e antiga daquela
região. Foi fundada pelos cananeus há cinco mil anos. O nome, possivelmente, procede da deusa Lua, que eles adoravam. Era urna localização importante, em pleno entroncamento. Em uma de nossas visitas ao Mestre, conseguimos ver um enorme celeiro, com dez torres de nove metros de diâmetro cada uma. Assim como nos demais povoados do yam, foi construída com pedra escura - basáltica -, que recobria a região. Aos poucos foi crescendo e acabou por "absorver" Senabris (o lugar onde Vespasiano alojou suas legiões durante a última grande revolta judaica) e as Deganias. A maior parte da "metrópole" dedicava-se à agricultura e à indústria derivada da pesca (salgamentos, tonelaria, fabricação de barcos etc.). (N. do M.)
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J.J. BENÍTEZ
Meu irmão, depois da amarga experiência com o facão de Nabú, se recusou. A última coisa que desejava nesse momento era mais complicações. E optamos pelo mais simples e razoável: deixar a "metrópole" para trás. O Destino foi benévolo...
Aos poucos, ao abandonar as ruas abarrotadas, fomos parar no ponto onde nasce o vale do Jordão propriamente dito: o encontro dos rios Yavneel e Jordão, a pouca distância do yam. Ali, em um descampado, judeus e gentios previdentes haviam organizado uma base de aprovisionamento para quem iniciava o caminho para o sul ou para quem, inversamente, procedia de Jerico, de Jerusalém ou do deserto da Judéia, e que pretendia seguir caminho para o norte. Vigaristas e comerciantes ofereciam os mais variados produtos e serviços. Ficamos perplexos ao percorrer o lugar. Os habitantes da "metrópole" vendiam todo tipo de alimentos, água, odres de vinho, cerveja gelada, sandálias com sola de madeira (especialmente recomendadas para os solos abrasadores do Jordão) e de palha prensada, amuletos "por um feliz retorno" (sob a proteção de outros tantos milhares de deuses), "acompanhantes" para a
solidão do caminho (masculinos e femininos) pela "irrisória quantia de um denário de prata por dia", tendas de pele de cabra, mosquiteiros individuais ou coletivos, "almofadas" de pedra vulcânica e, naturalmente, carros de duas rodas (cisum) ou de quatro (redas). O viajante podia alugá-los e assim se deslocar com mais comodidade e rapidez. Um desses "táxis" para a Cidade Santa custava - por pessoa - em torno de quinze denários (sempre negociáveis), incluindo comida e alojamento. O sais, ou proprietário do carro e dos cavalos, garantia absoluta segurança e o máximo de um dia e meio de viagem. Um lenço branco amarrado no carro significava que o "táxi" estava livre.
Chegamos a pensar e a conversar a respeito. O aluguel de um daqueles carros facilitaria a viagem, e, talvez, ajudasse a localizar Jesus mais rapidamente. Infelizmente, não tínhamos dinheiro suficiente para arcar com essa despesa e as outras que teríamos, sem dúvida, enquanto estivéssemos fora do Ravid. Poderíamos trocar um dos diamantes, mas, sinceramente, achamos que aquele não seria o lugar mais adequado.
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Além disso, o sais não aceitava devolver o dinheiro - nem mesmo uma parte - no caso de a viagem ser interrompida. Se estes exploradores encontrassem o Mestre antes do ocaso, o que faríamos com o carro? E, movido pela intuição, ignorei as ofertas. Seguiríamos a pé.
Além de adquirir alguns mantimentos e a água necessária, fizemos uma busca na base de aprovisionamento, mas foi outro fracasso. Jesus não estava ali ou, pelo menos, não conseguimos encontrá-lo. Ninguém parecia conhecê-lo. Era óbvio. Em setembro do ano 25, o Filho do Homem era um perfeito desconhecido. Ninguém soube nos informar
sobre o tal YesúaÁ, seu vizinho de Nahum. YesúaÁ, ou Jesus, havia aos milhares...
Percorremos inclusive a confluência do Jordão com seu afluente, o Yavneel, interrogando os trabalhadores das dez enormes rodas de madeira que extraíam água do rio e a depositavam em outras tantas gigantescas "piscinas" ou cisternas, de onde era distribuída às populações da "metrópole"9. Nem funcionários nem condutores - responsáveis pelos jumentos que mantinham as engrenagens girando dia e noite - sabiam a que Jesus nos referíamos.
Decepcionados, voltamos para junto dos mercadores. Estava decidido, sim, mas como planejaríamos a caminhada? Eliseu, mais impulsivo, sugeriu que deixássemos isso nas mãos de meu "amigo", o Destino. No início, resisti. O caminho até Jerusalém era longo (um pouco mais de cento e trinta quilómetros). Era importante traçarmos um plano. Deveríamos caminhar atentos e com certa pressa. Jesus dava grandes passadas, praticamente devorando as distâncias. Mas o que aconteceria se não topássemos com Ele? Permaneceríamos em Jerusalém? Por quanto tempo?
9 Uma dessas construções - já observada no périplo aéreo - deixou-nos perplexos. Tratava-se de uma "tubulação" a céu aberto que transportava a água até a cidade de Tiberíades, a vinte quilómetros da desembocadura do Yavneel no Jordão. A interessante obra de engenharia, financiada por Bet Yeraj, Senabris e a capital do yam, repousava sobre dezenas de pequenas pontes que se lançavam sobre gargantas e colinas. Numerosos canais e canaletas de menor calibre que saíam da "tubulação" regavam campos e abasteciam granjas e povoados. (N. do M.)
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J.J. BE1MÍTEZ
A decisão era minha e parei para pensar por alguns minutos. Enquanto
esperava, meu irmão dirigiu-se até o centro da base de aprovisionamento.
Eu o vi passar. Dei uma olhada rápida, mas não prestei mais atenção nele. Ali, no coração desse lugar, alçava-se um curioso "monumento", venerado pelos gentios e repudiado pelos judeus mais conservadores. Eliseu, curioso, aproximou-se dele e ficou a observá-lo detidamente.
Contei treze obeliscos. Tratava-se de treze pedras negras, cilíndricas, com uns trinta centímetros de diâmetro e um metro e meio de altura, solidamente ancoradas na terra. Formavam uma fileira. Cada obelisco era delicadamente talhado, com um extremo superior em forma de cone. A dois quartos do vértice, as pedras apresentavam uma característica que as tornava singulares: cada uma tinha um orifício, perfeito, com dezoito centímetros de diâmetro. Todos iguais. Todos trabalhados com grande delicadeza. Todos perfurando a rocha basáltica de ponta a ponta. Eram treze irmãos. Foi assim que batizamos a paragem: "os treze irmãos".
Observei-os em diferentes oportunidades - principalmente quando da "descoberta" pelo engenheiro -, mas nunca soube seu verdadeiro significado10. Alguns associavam o "monumento" ao deus Baal. Outros asseguravam que tinha sido idéia dos construtores da cidade de Ugarit, na costa Síria (ao norte da atual Ras Samra), e que protegia os transeuntes. E por isso fora instalado na segunda foz do rio Jordão. Este era, por assim dizer, o ponto de partida para qualquer destino. Ouvi comentários para todos os gostos. Havia quem afirmasse que fora transportado pelo ar - em uma determinada noite - dos templos de Gebal e Kitión, no Chipre, e
10
Essas pedras foram descobertas nos anos 1950 por Bar-Adon e sua equipe. Seu peso médio oscila entre cento e cinqüenta e duzentos quilos. Na opinião de alguns especialistas - como é o caso de Mendel Nun -, seriam âncoras utilizadas pelos pescadores do yam ou mar de Tiberíades. Outros rechaçam essa
possibilidade, argumentando que o peso era excessivo. Pessoalmente, estou de acordo com aqueles que acreditam tratar-se de "monumentos aos deuses", como Jacó (ver Génese 31, 45). Atualmente, não se sabe por que, essas pedras são conhecidas entre os arqueólogos como "víboras". (N. do M.)
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quem jurasse que eram obra dosjenum, os diabos do deserto vizinho de Judá. Já para os judeus mais rigorosos, estávamos apenas diante de uma demonstração da idolatria "que assolava o país".
Abaixo dos orifícios - em três pedras -, apareciam outras tantas inscrições, gravadas em aramaico e em coiné.
Agora, ao ordenar estas memórias e relembrar o ocorrido, chego a estremecer. Definitivamente, nada é casual. Nada...
Como estava dizendo, foi Eliseu quem fez a "descoberta". Ele me chamou e, ao me aproximar dos "treze irmãos", apontou para o que ficava mais ao sul (a fileira estava perfeitamente direcionada de norte a sul). Encolhi os ombros. Não conseguia entender o súbito interesse de meu companheiro por aquelas pedras.
- O que diz aí?
Examinei a inscrição. Era a letra grega ômega.
Continuava sem entender...
Então, todo enigmático, ele me sugeriu que olhasse pelo "olho" que perfurava aquele primeiro obelisco. Fiz isso, porém, inicialmente, não descobri nada de anormal. Como era lógico, vi apenas parte dos outros, com os correspondentes
orifícios.
- Refere-se ao alinhamento? - perguntei, intrigado. - É perfeito... Eliseu negou com um movimento da cabeça e sorriu malicioso.
- Por favor, olha de novo...
Repeti a observação, desta vez mais atento. Estava claro que a insistência tinha algum motivo...
As pedras eram separadas entre si por pouco mais de um metro. Averiguei minuciosamente, mas, salvo as inscrições no segundo e no terceiro obeliscos, igualmente abaixo dos orifícios, não consegui perceber o que chamara a atenção do engenheiro.
- Não estou entendendo...
- O que está escrito?
Eu conhecia aquele tom, entre divertido e mordaz. Eliseu gostava desses "jogos". Examinei a segunda inscrição. Também não me disse nada. Quanto à terceira e última...
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J.J. BENÍTEZ
-... "O princípio"...
Eliseu me olhava cheio de expectativa.
- Sim, "o princípio" - assinalou satisfeito. - Percebes agora? Olhei de novo pelo orifício e acho que entendi. Comprovei mais
uma vez. Não tinha dúvida.
- É espantoso!
De fato, aquilo parecia ter sentido. Um certo sentido... E, sem conseguir me conter, caminhei entre os "irmãos" para ratificar o que observara pelo primeiro orifício. As três inscrições eram nítidas. Por mais que explorássemos os outros pilares, não encontramos nenhuma outra legenda. Curiosamente, as inscrições podiam ser lidas tanto em um sentido quanto em outro, partindo do primeiro obelisco ou do terceiro, respectivamente. Contudo, seu verdadeiro sentido aparecia quando eram observadas através daqueles orifícios nas pedras.
E o engenheiro, intrigado, perguntou:
- Isso é casual?
Eu não soube o que dizer. Agora, insisto, sabendo o que ocorreria algum tempo depois, acredito que tudo nessa operação foi magicamente planejado. Por quem? Suponho que o eventual leitor deste apressado diário já adivinhou a quem me refiro...
Lembro que acabei encolhendo os ombros, incapaz de decifrar o mistério.
"Ômega é o princípio."
Assim rezavam as três inscrições, lidas de sul a norte. Ou seja, olhando pelo orifício do primeiro obelisco sagrado.
"Ômega" era a primeira inscrição, "é" a segunda e "o princípio" a terceira e última.
"Ô
mega e o principio ?
O que queria dizer o autor da legenda? Ômega é a última letra do alfabeto grego: o fim, de um ponto de vista puramente simbólico. Aqui, entretanto, adquiria um sentido inverso. Por que o "fim" era o "princípio"?
Lido ao contrário - "o princípio é ômega" -, também tinha sentido. Um certo sentido...
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Mas ainda teríamos de esperar para alcançar seu verdadeiro e pleno sentido. Mais uma vez, o Filho do Homem seria protagonista desse singular e inesperado enigma. Mas vamos por partes...
Fiquei absorto por algum tempo, tentando decifrar a "descoberta". As inscrições não eram recentes, embora provavelmente não fossem tão antigas quanto o talhe dos obeliscos. A presença do ômega foi determinante. Como sabem os especialistas, essa letra foi introduzida no ático, a língua da cidade de Atenas, por volta do ano 400 antes de Cristo. A influência ateniense fez desse dialeto do grego antigo a base para o coiné, o grego internacional (uma espécie de "inglês" portuário de grande importância nas relações comerciais em todo o Mediterrâneo). Portanto, a inscrição não tinha mais de quatrocentos anos.
E o que importava isso?
O incrível é que estava ali. Alguém - consciente ou inconscientemente - gravara palavras "proféticas". E nós, por um desses caprichos (?) do Destino, acabávamos de descobri-las. Como já disse, no momento oportuno...
E eis que, também no momento oportuno, surgiu aquele velho nómade. Suponho que estivesse nos observando enquanto examinávamos os "treze irmãos". E, sem rodeios, afirmou:
- É o olho do Destino. Só alguns poucos conseguem saber que está aí... Mas atenção: o homem que o descobre necessita de todas as suas forças
para prosseguir na luta.
Naquele momento, tampouco entendi a sábia mensagem do beduíno. Merece um prémio quem conseguir...
E, pouco depois do meio-dia, partimos em direção ao sul.
O que importavam os malditos planos? Viveríamos o presente. A única coisa que importava era Ele. Precisávamos encontrá-lo, e o quanto antes possível. Essa era nossa missão. Tínhamos assumido o compromisso de ser testemunhos de sua vida, e assim seria.
No momento, dispúnhamos de umas três horas de luz, o suficiente para continuar procurando. Ele tinha de estar em algum lugar... E, animados, seguimos rumo a Jerusalém.
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Minha preocupação, naquele início de caminhada, era a água. A paisagem tinha mudado. As exigências, agora, eram de outro tipo. Das montanhas e da neve da Gaulanítis, passamos à secura do vale do Jordão, com temperaturas diurnas que, no final do verão, nunca eram inferiores a 25 graus Celsius. Mais um suplício.
Nossas reservas eram suficientes. As antigas cabaças utilizadas no caminho para Hermon foram substituídas por um odre de pele de cabra, adquirido na base de aprovisionamento. O que me preocupava era o risco de contrair algum tipo de infecção intestinal, tão freqüente naquele tempo e naquele lugar, e, ao mesmo tempo, tão perigosa. A eschfrichia coli, por exemplo, representava uma grave ameaça. Se a água dos "treze irmãos" estivesse contaminada, poderíamos sofrer um processo diarréico agudo que, sem dúvida, atrasaria nosso trabalho, sem contar, obviamente, outras possíveis doenças, como a disenteria bacilar, as febres tifóides, a amebíase, a cólera etc.
Naturalmente, não foi possível purificar a água mediante o simples procedimento de ebulição, mas tratei de afastar o perigo com as doses adequadas de tintura de iodo e de doxiciclina (200 miligramas no primeiro dia e 100 ao dia nas semanas seguintes). As cinco ou dez gotas de iodo dissolvidas no odre davam à água um sabor nada agradável, mas nos conformamos. Não havia alternativa.
Aquele primeiro trecho foi uma tortura. Não pelo terreno em si, que era plano e em ligeiro aclive. Demoramos algum tempo para nos acostumar ao assédio dos sais e de seus carros. Durante cinco longos quilómetros, os táxis procedentes da base de aprovisionamento nos abordaram sem descanso, repetindo a mesma cantilena: "Jerico?... Jerusalém?... Barato!"
Diante das recusas, os condutores insistiam, rebaixando os preços e interceptando nosso caminho com os cavalos ou jumentos. O final era sempre o mesmo. O sais, irritado, golpeava as ancas da cavalaria e os animais arrancavam com violência, levantando um pó espesso e asfixiante. E o indivíduo seguia em frente em meio a insultos e maldições.
Outras vezes, sempre com os lenços brancos esvoaçando, os sais, entediados, organizavam corridas, tomando conta da via estreita de terra
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batida e pondo em risco a integridade física de todos os que caminhavam em uma ou outra direção. De nada serviam os protestos irados, os bastões erguidos dos caminhantes ou até mesmo as pedras, que acabavam bombardeando os grupos de carros. Aos poucos nos acostumaríamos. Assim era a estrada do Jordão...
A paisagem, como eu dizia, mudou bastante. Agora caminhávamos por um
vale relativamente estreito onde o rio Jordão despontava como senhor absoluto. O que vimos naquela aventura nada tem a ver com o Jordão que conhecemos em nossos dias. Hoje, no século XX, o rio sagrado apresenta-se como uma corrente insignificante, com uma escassa e tímida vegetação brotando das águas. O resto é quase deserto. Naquele tempo, ao contrário, como já constatamos no périplo aéreo já mencionado11, o Jordão era um canal mais apreciável, capaz de alimentar extensas áreas de floresta subtropical fechada, quase impenetrável, habitadas por felinos (especialmente leopardos e linces), crocodilos, perigosas manadas de porcos selvagens, chacais, serpentes de todo tipo (entre as quais, dez altamente venenosas), behemoth ou leviatãs (hipopótamos), raposas e uma imensa colônia de aves.
Era o Gor, a terceira grande região de Israel, para além das montanhas e da costa. Uma enorme falha que percorre o país de norte a sul e que os arqueólogos chamam de graben, com seu maior desnível no mar Morto (menos quatrocentos metros).
O Jordão era um lugar próspero, densamente povoado - especialmente na sua porção sul -, onde judeus e pagãos das mais variadas origens conviviam em paz, assim como na Galiléia. O rio descia à nossa esquerda (tomarei sempre o sentido da corrente como principal referência), mais ou menos a meio quilômetro. Salvo em alguns casos raros, o caminho que descia em direção a Jerico mantinha-se a uma distância prudente da cúpula vegetal - agora verde e amarela -, que recordava a presença do canal. Um canal de 101 quilômetros em linha reta (do
11 Ver Saidan. Cavalo de Tróia 3 (N. do A.)
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sul do yam até o mar Morto) e 222 quilômetros de rio propriamente dito12. Essa proporção fazia do Jordão um rio tortuoso, com centenas de meandros, alguns quase circulares, e gargantas profundas de paredes verticais de até sessenta ou cem metros de altura. No momento oportuno, adentraríamos naquelas paragens solitárias e perigosas. E também em companhia do Filho do Homem...
O Filho do Homem?
Até o momento não tivéramos sorte. Percorremos a longa reta do primeiro trecho sem o menor sinal do Galileu. À direita e à esquerda da rota, entre as colinas e a "selva" do Jordão, derramavam-se milhares de vinhas de um metro de altura, minuciosamente escoradas e amarradas umas às outras com cordas longas e escuras. As últimas levas átfelah procediam à coleta de uma uva negra e brilhante acondicionada em grandes cestas.
12 Segundo nossas pesquisas, o Jordão, naqueles anos, dispunha de uma bacia que totalizava 13.600 quilômetros quadrados. Esse vale era dividido em duas grandes regiões: a ocidental (Samaria e Judéia), com dois mil quilômetros quadrados, e a subbacia oriental (a leste do rio: atual Transjordânia). Esta segunda zona, mais rica em precipitações, era cercada por numerosos afluentes do Jordão (contamos nove, com um volume total de água de 616 milhões de metros cúbicos). O Yarmuck era o mais destacado, com 480 milhões de metros cúbicos. No lado ocidental, somamos cinco afluentes, com pouco mais de trinta milhões de metros cúbicos de canal. O Faria era o mais importante, com dezessete milhões de metros cúbicos. Naturalmente, esses fluxos não eram constantes, e por isso o traçado do Jordão nunca era o mesmo. As paredes da marga (rocha sedimentar formada por argila cimentada) sofriam as tensões inevitáveis, desmoronando a cada cheia e modificando o perfil das margens. Durante
milhares de anos, as águas foram escavando um canal ou gaon que se estendia entre grandes planícies de marga. Às vezes, o vale chegava a atingir seis milhas, mas a largura média oscilava em torno de um quilômetro. A velocidade da corrente era alta (1,37 metro por segundo em refluxo, 1,69 em estado médio e 5,1 em nível alto de chuvas). A inclinação do vale - entre 212 metros abaixo do Mediterrâneo no yam e menos quatrocentos no mar Morto - era de l,79%o. A do fluxo supunha 0,8%o. Devido, provavelmente, ao forte empuxo dos afluentes orientais, o Jordão sofria um deslocamento para oeste, o que aumentava a superfície da sub-bacia oriental e reduz ao mínimo o vale ocidental. Em nossos estudos, detectamos também uma alta salinidade nas águas, com um nível variável entre mil e dois mil miligramas de cloro por litro. (N. do M.)
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Os camponeses, em fileiras intermináveis, transportavam o fruto para os carros ou gat, lagares de cerâmica vermelha, estrategicamente instalados entre as plantações.
Perguntamos. Indagamos nas choças de palha e adobe que salpicavam os campos. Negativo. Nenhuma pista sequer. Nada... E prosseguimos. Acho que perdemos tempo nos "treze irmãos". Tínhamos de forçar o passo. Se Jesus estivesse à nossa frente, não devia estar muito longe...
Consultei o sol. Podia ser a hora nona (15 horas). Talvez um pouco menos. E, de súbito, a marcha foi interrompida. Eu tinha esquecido... A cinco quilómetros do yam terminava a Galiléia e começava outra região - a Decápolis -, formando uma bacia que penetrava a oeste. O novo território avançava para o sul, até o rio Yavesh, fazendo fronteira com a Peréia de Herodes Antipas, a velha "raposa".
Ali se erguia a aduana, um mísero edifício de barro e bambu, consumido pelo sol e pela negligência de alguns funcionários a serviço de Roma, cuja única preocupação era enriquecer o mais rápido possível. Esses publicanos da Decápolis13, assim como a maioria dos que conhecemos, eram judeus. Isto é, duplamente odiados por seus conterrâneos.
Uma longa fila de viajantes, com seus carros, jumentos e camelos (na verdade, dromedários), esperava pacientemente sua vez. Os publicanos, à sombra de um alpendre improvisado, se revezavam avidamente na inspeção das mercadorias e dos fardos ou utensílios pessoais. Eram três. Todos com o distintivo de latão na túnica. Atrás, à esquerda do edifício da aduana, sentados na poeira e aproveitando
13 Naqueles anos, a Decápolis estava sob controle romano. Era um conjunto de cidades helenizadas, a maioria delas fundada por Alexandre Magno e os Diádocos. Depois da guerra provocada por Alexandre Janeo, Pompeu libertou o território da opressão judaica. Os núcleos mais importantes eram Scythopolis, Pella, Gadara, Hippos, Dión, Gerasa, Filadélfia (atual Ama) e Rhaphanam. Plínio supunha que Damasco era uma das populações que faziam parte da liga "das dez cidades", ou Decápolis, mas isso não foi provado. Além disso, Damasco não era regida pelo calendário conhecido como "era pompeana", utilizado pelas cidades mencionadas anteriormente, mas sim pela era selêucida. (N. do M.)
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o duvidoso frescor de um talhadinho de juncos e ramas, dormitavam cinco soldados romanos. As roupas, com a tradicional calça vermelha justa até a metade da perna, e as afiadas lanças ou pilum, com bases de ferro, levaram-me a pensar que
estávamos diante de uma patrulha ou pelotão, integrante de uma turma, unidade de cavalaria geralmente formada por trinta e três ginetes. Dado o calor sufocante e a ausência do decurião ou chefe de fila, eles tinham se despojado da pesada e incómoda couraça de malha, assim como dos elmos de couro. Tudo isso repousava ao seu lado, juntamente com as temíveis gladius, as espadas de fio duplo.
Eliseu e eu nos olhamos em silêncio. Eram tropas auxiliares. Sua ferocidade e seus maus modos eram bem conhecidos. Este explorador já tinha passado por uma amarga experiência com um deles no caminho de Nahum a Saidan. Era preciso agir com cautela. E, lentamente, fomos nos aproximando dos funcionários...
À frente destes exploradores, aguardando sua vez, estavam três judeus - galileus, a julgar por seu forte sotaque -, que conduziam um camelo alto de pêlo macio e avermelhado, com duas enormes canastras de cada lado da corcova. No início não prestei muita atenção. Pareciam comerciantes, como tantos outros... Eram jovens. Eu os vi sussurrar entre eles e olhar para os soldados com desconfiança. Imaginei que, como a maioria dos hebreus, se sentiam enojados na presença dos odiosos kittim. De fato, mas não era só isso...
E quando chegou a sua vez, um dos publicanos os interrogou sobre a natureza do carregamento.
- Cebolas...
O funcionário, experiente nesse tipo de contenda, olhou nos olhos do que acabara de responder. Foram só alguns segundos. O galileu vacilou. Piscou e repetiu inseguro:
- Cebolas de Ginnosar para o mercado de Jerusalém.
Isso bastou. O funcionário "sabia" que havia algo estranho. E, apontando para a carga, mandou que a colocassem no chão. O tom autoritário não
dava margem à negociação.
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Osfelah protestaram, recusando-se a cumprir as exigências do publicano. Um deles argumentou, com razão, que náo era bom descarregar o camelo. Essa operação - e o publicano sabia muito bem - só podia ser feita no fim da jornada. Ajoelhar o animal, soltar a carga, voltar a subi-la e colocá-lo de pé novamente representava um enorme esforço, nada recomendável (o camelo poderia se ferir e derramar a carga). E o que parecia mais sensato pediu ao publicano que subisse ao alto do animal e verificasse o conteúdo das cestas.
Suponho que foi uma questão de "manter a autoridade". O publicano rude, com uma visão estreita e obstinada da situação, recusou. Era ele quem mandava, e ordenou que o camelo fosse descarregado imediatamente. Era isso, ou dar meiavolta...
E imaginei que a ordem implicaria outro grande atraso na nossa busca por Jesus de Nazaré. Errei mais uma vez...
De súbito, sem que ninguém dissesse nada, um dos galileus - o que tinha respondido sobre as cebolas de Ginnosar - puxou uma adaga de dentro da túnica, atirou-se contra o publicano e cortou-lhe o pescoço com um talho rápido e certeiro. No mesmo instante, criou-se o caos, com os gritos e o sangue brotando aos borbotões. Eliseu e eu nos retiramos, tropeçando em outros viajantes e caravaneiros. E os galileus, como uma única sombra, saltaram sobre o camelo e empreenderam a fuga. Sobre o pó, em um charco de sangue, jazia o funcionário.
Mas a fuga foi frustrada pelos mercenários romanos. Alertados pelos gritos dos outros dois publicanos, vestiram as armaduras e correram atrás dos
judeus. E náo demorou para que zsptlum atravessassem o ventre do camelo e o derrubassem, e com ele, os galileus e a carga. E antes que os fugitivos fizessem uso de suas sicas ou adagas curvadas, os soldados enterraram as lanças em seus corpos, acabando com a vida dos três jovens. E eles ficaram ali, no meio do caminho, sobre a terra batida e a fossa escura de esterco das cavalarias.
Náo houve mais inspeções, nem pagamento de "pedágio". E o descontrole nos favoreceu.
Meu irmão e este que escreve, assim como os outros caminhantes, deixamos a aduana rumo ao sul. Só ao passar pelos galileus e pelo camelo
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agonizante é que entendemos. Entre as célebres cebolas de Ginnosar, espalhado pelo chão, via-se um arsenal de armas: gladius, adagas, achas de uma e de duas lâminas e clavas metálicas com e sem puas. Tratavam-se de zelotes - inimigos declarados de Roma - com um carregamento secreto...
Devia ser a décima (quatro da tarde) quando avistamos a encruzilhada de Gesher. Eliseu e eu náo fizemos nenhum comentário sobre o ocorrido na aduana. Mas nossos corações estavam apertados. O que poderíamos ter feito em favor dos nacionalistas judeus? Muito pouco ou nada...
Além disso, nosso código proibia esse tipo de intervenção.
Duas balizas cilíndricas de pedra calcária (os utilíssimos miliários), de um lado e de outro da estrada, indicavam os desvios para Scythopolis (atual Bet Shean), a sudeste, e para Gadara, a nordeste. O atalho do Jordão seguia em linha reta, em direção ao sul14.
Ficamos em dúvida. Que caminho teria tomado o Mestre? Escolheu o de Scythopolis ou seguiu pelo "habitual", paralelo ao rio sagrado? A estrada calçada até a importante cidade de Decápolis era mais cómoda que a de terra batida por onde tínhamos vindo. Porém, optar por aquele caminho implicava dar uma enorme volta. Era preferível a poeira e o desconforto do atalho que corria pelo vale. E assim foi. Ficamos com o que já conhecíamos. Além disso, o sol se escondia rapidamente, zombando de nossa incompetência. Restava apenas uma hora e meia de luz...
O que fazer? Não consegui responder à pergunta formulada pelo engenheiro. Até o momento, a procura por Jesus fora um fracasso. E me conformei, confiando náo sei muito bem em quê. Se a figura do Filho do Homem náo aparecesse logo, seríamos forçados a interromper a busca, pelo menos até o dia seguinte.
Onde dormir? Também não pude esclarecer a dúvida pertinente de Eliseu. Deixaríamos nas mãos do Destino. Ele "sabe"... E creio que já sabia...
Os miliários, como já mencionei oportunamente, foram de grande utilidade. O Império Romano encarregou-se de instalá-los em quase todas as rotas importantes, sinalizando direções e distâncias (apareciam a cada milha romana: 1.182 metros). Em todos estava gravado o nome do imperador do momento (nesse caso, Tibério, "filho do divino Augusto"). (N. do M.)
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Ao deixar para trás o segundo grande afluente ocidental do Jordão - o Tabor -, a paisagem mudou novamente. As milhares de vinhas desapareceram, e, à direita e à esquerda, surgiu o jamrá, a terra vermelha - muito fértil - que proporcionava um excelente cereal e pastos não menos cobiçados. Uma densa rede de acéquias e pequenos canais resplandecia por toda parte, transportando a água dos poços e dos
mananciais, muito abundantes no vale. O clima quente e a salinidade do jamrá15 obrigavam à rega permanente. Boa parte dessa água acabava evaporando, o que, por sua vez, provocava um aumento dessa salinidade. Mas os incansáveis felah procuravam restabelecer o equilíbrio com uma intensa adubagem da terra, quase sempre com excrementos de cabra e ovelha.
Apressamos o passo. Se não me falhava a memória, a uns sete ou oito quilómetros da encruzilhada de Gesher, erguiam-se outras duas ou três pequenas aldeias. Podíamos pernoitar num desses humildes povoados de ladrilhos vermelhos e tetos de palha. O ocaso decidiria qual deles...
A primeira dessas aldeias era Neweur. Cruzamos rapidamente entre os dólmens que se projetavam a pouca distância dos casebres de adobe. Meu irmão, espantado diante das dimensões colossais, perguntou como tinham sido erguidos. Ninguém sabe. As lousas que os cobriam - de uma ou duas toneladas de peso - apareciam a mais de três metros de altura sustentadas por grupos de pedras verticais solidamente fincadas na terra. As rochas foram removidas até o terceiro ou quarto milénio antes de Cristo. Talvez muito antes. Supóe-se que eram tumbas. Os supersticiosos habitantes do local chamavam-nos de "casa dos espíritos". Dificilmente entravam neles. Os zelotes, conscientes de sua estratégica localização, à margem da estrada, os tomaram como objetivo de seus grafites ferinos
15 A bacia do Jordão é a fratura mais profunda da Terra. Adotou a forma atual há um milhão de anos, aproximadamente. Nessa época, o mar penetrou nessa bacia pela região de Yizreel e Bet Shean. As águas salgadas permaneceram no local até o ano 17000 antes de nossa era. (N. do M.)
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contra Roma. As pichaçóes a cal faziam referência principalmente ao "velhinho", o imperador Tibério, qualificando-o de "assassino" e de "anãs1 (castigo) do povo judeu. "Poderás com o próximo rei?", dizia outro grafite, provavelmente fazendo alusão ao esperado Messias.
E a palavra Messias me trouxe de novo a imagem do Mestre. Onde estaria?
Messias? Esse era outro conceito que retificaria oportunamente. Mas podemos antecipar: Jesus nunca se considerou o Messias...
A aldeia seguinte era Bet Yosef, tão pobre como a outra. Pelo menos, essa foi a primeira impressão, ao contemplar as cabanas miseráveis e destrambelhadas, entre as quais corria e brincava uma legião de crianças nuas, sujas e sempre acossadas por nuvens de moscas e mutucas de olhos protuberantes e iridescentes. E digo que foi a primeira impressão porque, com o tempo, ao conhecê-las melhor, descobrimos que aquelas pessoas não eram tão pobres como imaginávamos. Viviam em casebres de barro e careciam de muitas das comodidades (?) da cidade, mas dificilmente passavam fome. O cultivo da terra, no vale, era pesado e extenuante, porém muito rentável. As altas temperaturas permitiam a maturação antecipada dos frutos, inclusive na primavera, e o crescimento tardio no outono. Isso se traduzia em várias colheitas e, naturalmente, em suculentos lucros. Por outro lado, a forte radiação solar influía positivamente na qualidade dos produtos. As uvas, os melões, as melancias, as verduras, os frutos e cereais da bacia do Jordão eram excelentes. Todos os requisitavam. E as exportações chegavam às terras distantes da Germânia, de Partia e de Loyana, na China. A zona por onde caminhávamos era célebre, entre outras coisas, pelo cultivo de flores. Os hortos e as plantações, pequenas ou intermináveis, estendiam-se até onde a vista alcançava. Ali floresciam nardos - de especial aplicação em perfumaria e elogiados no Cântico dos Cânticos -, lírios samaritanos, numerosas
espécies de crisântemos, açafrão (cultivado sobretudo com fins curativos), mandrágora de frutos amarelos (requisitada como remédio contra a esterilidade feminina, a única admitida naquele tempo, e como afrodisíaco) e a chamada rosa "fenícia" - a vered-, de grandes pétalas brancas, cobrindo a bacia com uma impossível nevada.
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O comércio das flores no Jordão era igualmente próspero. As coroas de rosas ou lírios, tanto para as cabeças das noivas quanto para os banquetes e demais festas e celebrações, eram encomendadas diariamente. No Dia da Expiação, por exemplo, uma moda imposta pelas escolas rabínicas, elevava as vendas em mais de quarenta mil vered, apenas na cidade de Jerusalém. O "negócio" se sustentava na demonstração do perdão aos inimigos, presenteando-os com uma rosa fenícia, sempre anonimamente. Dessa forma, o judeu que dava a flor ficava redimido das culpas cometidas no ano anterior; e o que a recebia ficava sabendo que tinha um inimigo a menos (pelo menos teoricamente). Qualquer que fosse a razão, o volume de flores colhidas todos os anos passava de sessenta milhões de unidades, dependendo da "associação ou sindicato defelah" que controlava esse mercado, e cuja sede ficava em Jerico. No total, nos mais de cem quilómetros ocupados pelo vale, só na bacia ocidental, somamos mais de trezentas chácaras com uma superfície de cerca de mil e setecentos hectares dedicadas exclusivamente ao cultivo de flores. Para protegê-las dos intensos e abrasadores ventos locais que desciam pelas colinas do oeste durante o verão, os engenhosos camponeses haviam construído barreiras de juncos e carriços16 que permaneciam no chão até o fim da primavera. Quando chegava a estação estival e essas proteções eram erguidas, o vale sofria uma curiosa metamorfose, com centenas de "paredes" verdes e brancas, sempre oscilando ao vento17.
Chegamos à aldeia de Yardena na hora exata. O sol, alaranjado e imenso, já rolava na planície do Esdrelão, no horizonte. A noite não tardaria a cair. A jornada, enfim, parecia condenada ao fracasso. Nosso objetivo - o Mestre - tinha evaporado... E fomos procurar refugio.
Yardena, dedicada quase exclusivamente ao cultivo das flores, era outro punhado de cabanas, a pouco mais de cinqüenta metros da "selva" do Jordão.
16 Carriço: planta gramínea, comum na Espanha. (N. do T.)
17 O rigoroso regime dos ventos, nos meses de verão, também provocava a conseqüente e importante evaporação do rio, de seus afluentes e da água dos canais, a um ritmo de 15 metros por dia. (N. do M.)
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O Destino teve piedade destes exauridos exploradores, e, em pouco tempo, soltávamos as mochilas e o odre em um dos "quartos" do "hotel" local. Achava que a sujeira e a miséria da pousada de Sitio, na encruzilhada do Qazrin, eram insuperáveis. Mas me enganei. Aquela "caravaneira" era muito pior. Inclusive, o título de pousada era um exagero. Uma dezena de casebres de barro e teto de folhas de palmeira, erguidas anarquicamente no interior de um círculo, também de adobe vermelho, supostamente para proteger os clientes de bandidos e assaltantes, formavam o lugar onde passaríamos a noite. Um lugar infecto, com um poço e uma latrina comuns, onde, no entanto, nos aguardava uma surpresa. Coisas do Destino, que escreve certo por linhas tortas.
Um exame do quarto derrubou-nos de vez. Não dispúnhamos sequer de um catre. As "camas" eram o próprio chão. Se desejássemos um par de esteiras
teríamos de pagar por elas. Em um canto estava o único mobiliário, uma lamparina apagada e um recipiente metálico, alto e cilíndrico (semelhante a um urinol) que, suponho, servia de mictório. Todo um "luxo" colonizado, isto sim, por um esquadrão de fétidos e ameaçadores percevejos, os hóspedes permanentes da "inesquecível pousada" de Yardena. Em uma das paredes, alguém - não muito satisfeito - deixara duas frases: "Os clientes veranistas (referia-se aos percevejos) não me deixaram dormir. Paga tu a limpeza da parede".
Saímos do antro em busca de oxigénio. As primeiras estrelas já apareciam no firmamento. Não tínhamos opção. Passaríamos a noite no recinto, mas, naturalmente, ao ar livre. A procura pelo Mestre foi adiada.
Durante alguns minutos me dediquei inutilmente a rastrear o Ravid. Estávamos muito longe. Segundo meus cálculos, a trinta e quatro quilómetros em linha reta. Era uma distância muito grande para distinguir o leque luminoso que o "olho do ciclope" deveria projetar em caso de uma séria avaria no "berço". Além disso, o terreno não nos favorecia. Yardena encontrava-se a 244 metros abaixo do nível do Mediterrâneo, e o monte Arbel - à frente do Ravid -, com seus 181 metros, funcionava como uma cortina, ocultando a nave (o módulo foi estacionado no cume do Ravid, a 138 metros). Não nos restava nem a possibilidade
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de conexão com o Papai Noel mediante o laser de longa distância18. E a lembrança da última avaria me deixou preocupado.
Mas estávamos longe. Era preciso prosseguir. No momento adequado trataríamos desse "problema"...
Foi então que ouvimos vozes. Vinham de um grupo de indivíduos - possíveis clientes do albergue - que ceavam em redor de uma grande panela.
Discutiam. Meu irmão e eu, incapazes de suportar mais um incidente, nos mantivemos afastados. E nos dispusemos a entregar-lhes boa parte das provisões compradas nos "treze irmãos".
Eliseu, atento à discussão, logo me fez um sinal, sugerindo-me que escutasse. E quando escutei, tive um sobressalto. E interroguei o engenheiro com o olhar. Será que eu ouvira ou estava imaginando? Foi isso mesmo... E, então, não desgrudamos mais os ouvidos do vozerio.
Eram pastores. Levavam gado do Hebron, ao sul da Judéia, para os pastos da Batanéia e da baixa Galiléia, menos rigorosos que os do deserto de Judá. Falavam de alguém. Uns diziam que se tratava de um profeta, enviado por Deus. Outros zombavam, argumentando que "ninguém, em pleno juízo, se vestiria como os antigos". E acrescentavam: "Está louco..."
A quem se referiam? Falavam de Jesus de Nazaré? Afastamos a idéia. Segundo nossas informações, o Mestre ainda não iniciara sua vida de pregações. Isso ocorreria mais tarde. Não fazia nem quatro dias que o havíamos deixado em Nahum...
A discussão, cada vez mais inflamada, tomou um rumo inesperado quando um outro judeu mencionou o profeta Elias, tentando explicar aos seus colegas que talvez estivessem diante do "retorno do desaparecido". Elias, como todos se recordam, teve um papel muito importante durante o reinado de Ahab - por volta do ano 869 antes
Um dos dispositivos técnicos, alojado nas sandálias "eletrônicas", permitiala conexão a longa distância com a nave. Um microtransmissor emitia impulsos eletromagnéticos
a um ritmo de 0,0001385 segundos. O sinal era registrado na "vara de Moisés" e, uma vez amplificado, "transportado" em um laser até o módulo. Ali, o computador central o decodificava e procedia à execução da ordem. (N. do M.)
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de Cristo (ver livros dos Reis). Segundo a tradição, foi atraído aos céus por um "carro de fogo" quando acabava de cruzar o rio Jordão em companhia de outro profeta, Eliseu. Para muitos, esse desaparecimento ocorreu nas proximidades da desembocadura do Yaboq, no wadi Zarqal, outro afluente do Jordão pela margem esquerda. Nunca mais se soube de Elias. Como aconteceu com Moisés, seus restos não foram encontrados. Não se sabe que fim levaram...
E os pastores se engalfinharam em outra áspera polêmica. A maioria rechaçava a idéia de um "novo Elias", assegurando que este não fazia prodígios. "Ninguém o viu falar com corvos ou abrir passagem nas águas com a ajuda do manto."
De que diabos estavam falando? Esses supostos "milagres" são atribuídos ao referido Elias...
Para complicar o debate, um dos pastores levantou outra hipótese, que, longe de ser rejeitada, foi motivo de novas especulações e de mais um significativo silêncio. Só depois compreenderíamos.
O indivíduo, baixando a voz, sugeriu a possibilidade de que o homem em questão fosse, na realidade, um espião de Antipas, de Roma, dos zelotes ou dos nabateus.
Ficamos perplexos.
Alguns concordaram. Podia ser. Tudo podia ser - disseram - naqueles tempos ruins em que ninguém confiava em ninguém
Nisso eles tinham razão. Desde a época de Herodes, o Grande, falecido no ano 4 a.C., um exército de "espiões" infiltrou-se na população e informava uns e outros sobre o que pensava e o que fazia o povo. Cidades, portos, aduanas e pousadas eram os "centros de operações" desses informantes. Havia os que trabalhavam para os romanos ou para os tetrarcas - ou para ambos ao mesmo tempo - e também para os terroristas ou, inclusive, para o poderoso rei Aretas IV, da Babatéia, ao sul do mar Morto. Graças a esses informantes camuflados, reis, governadores, castas sacerdotais, zelotes e empresários ficavam a par dos movimentos dos adversários e dos concorrentes. Nós também chegamos a testemunhar as ações infames desses "serviços de inteligência".
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Não pude me conter e, tentando averiguar de quem falavam, aproximei-me do grupo. Pedi desculpas pela intromissão e os interroguei.
Eliseu permaneceu em silêncio, ao meu lado. Examinaram-nos à luz do fogo que aquecia a panela e se negaram a responder. Repeti a pergunta, solicitando o nome do "novo Elias". O silêncio se adensou um pouco mais.
Compreendi. Eu acabara de cometer um erro ao qualificar o protagonista da polémica de "novo Elias". Os judeus, desconfiados, nos tomaram por quem não éramos. Finalmente, um deles, maldizendo nossa condição de estrangeiros, respondeu a contragosto:
- Não sabemos do que está nos falando...
Era inútil insistir. Meu irmão me puxou, e a tentativa com os homens da Judéia morreu ali.
Um enviado de Deus? Um louco? Elias de volta? Um espião a serviço sabe-se lá de que poder?
Eu já ia esquecendo do assunto, mas o instinto - uma vez mais - me levou pela mão. Tinha de desvendar o mistério. Algo me dizia que essa pessoa fazia parte de nossa missão. A intuição estava certa.
Foi o dono da pousada quem, nessa mesma noite, em troca de algumas moedas, nos deu o nome e alguns dados complementares, não menos úteis.
O grupo, como eu dizia, era um reduzido clã de pastores de ovelhas que subia pelo vale, rumo ao norte. Em sua passagem pela zona de Damiya, a mais ou menos um dia do local onde nos encontrávamos, pararam na confluência dos rios Jordão e Yaboq. Ali vivia um homem que estava revolucionando a região. Alguns - como confirmou o dono da "caravaneira"
- asseguravam que era um profeta. Outros, como os pastores, duvidavam, e os outros, finalmente, tomaram o caso a título de "inventário". Mais um iluminado... Entretanto, todo o vale comentava sobre ele. Todos tinham curiosidade. Todos desejavam vê-lo e ouvi-lo. Todos - como os pastores
- acabavam discutindo sobre sua missão.
O nome nos deixou sem fala: "Yohanán" ou "Yehohanan"...,
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24 DE SETEMBRO, SEGUNDA-FEIRA
"Yehohanan"?
A inesperada presença daquele homem em nossa busca pelo Mestre nos deixou confusos. Sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, faria parte de nosso trabalho de reconstrução da vida do Galileu. Contudo, não imaginávamos que aparecesse tão cedo e
nessas circunstâncias. Será que a família de Jesus estava enganada? O Mestre estaria indo para Jerusalém ou desejava visitar Yehohanan, seu primo distante? Será que o velho Zebedeu estava errado quando assegurava que o Filho do Homem foi batizado por Yehohanan em janeiro do ano 26? Porque "Yehohanan", na verdade, era João, também conhecido como Batista, o Anunciador.
Desta vez, Eliseu é que foi cauteloso. Não devíamos confiar em um bando de pastores ou em um dono de pousada. As duas profissões apareciam nas "listas negras" dos rabinos, suspeitos de ser ladrões e mentirosos. Eram ofícios "desprezíveis", conforme os judeus ortodoxos. Os pastores conduziam os rebanhos a propriedades alheias e roubavam parte do leite, do queijo etc. Por isso eram proibidos de vender cabritos ou qualquer produto derivado dos animais que pastoreavam. Os segundos eram tão pouco confiáveis como os primeiros, ou até mais, e eram acusados, na maioria dos casos, de proxenetas e chulos.
Mesmo assim, a coincidência nos deixou desconcertados. Não creio que os pastores e o dono da pousada tivessem combinado.
O que fazer? Prosseguiríamos na busca ao Galileu? Confirmaríamos a informação recém-obtida sobre o Batista? Não nego que o personagem me atraía. Sabia-se muito pouco sobre ele...
A paragem onde se encontrava - segundo o dono da pousada - era conhecida como Damiya, a cerca de cinqüenta quilômetros de Yardena, sempre em direção ao sul. Isso representava um dia de caminhada, se tudo transcorresse dentro da normalidade (?). Para chegar a Jerusalém, a zona de Damiya era uma passagem quase obrigatória. Se não me falhava a memória, a aldeia em questão ficava à esquerda da estrada, não muito distante do rio.
E Eliseu e eu decidimos por uma solução intermediária. A prioridade era Jesus. Tínhamos de encontrá-lo. Se ao chegar em Damiya não tivéssemos conseguido nada, se a busca ao Mestre continuasse um fracasso, então pensaríamos no que fazer. Eu me inclinava por uma "parada no caminho" e por uma primeira investigação em torno de Yehohanan. Se o Galileu estava indo para Jerusalém, o mais provável é que usasse a fazenda de seu amigo Lázaro, em Betânia, como "quartel general". Ali, talvez o encontrássemos. Eliseu não se manifestou, deixando o futuro nas mãos do Pai. Dito isso...
E, ao amanhecer, mais do que partir, fugimos de Yardena.
Absorvidos pela notícia sobre João, o Batista, em plena açáo, seguimos em um bom ritmo, deixando para trás a aldeia de Hasida. Tudo à nossa volta era luz e verdor. Dezenas de felah movimentavamse entre os hortos, aproveitando a suavidade do alvorecer. Em breve, o vale do Jordão se transformaria em um forno, com temperaturas superiores a 30 graus Celsius.
A pergunta era desde quando. Há quanto tempo Yehohanan percorria o Jordão, chamando a atenção de judeus e gentios? Fizemos um esforço de memória. Durante a estadia nas neves do Hermon, o Filho do Homem não se pronunciou a respeito. Em nenhum momento surgiu o nome de João Batista. Era agosto. E admitimos a possibilidade de que o Mestre - que empreendera sua última viagem em abril desse ano de 25 de nossa era - não soubesse da atividade de seu parente até o retorno a Nahum. E mais: já o sabia naquele momento?
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Meu irmão acreditava que sim. As notícias corriam como pólvora na pequena província romana da Judéia. Segundo os pastores, aquele
indivíduo "era uma revolução".
Eu manifestei minhas dúvidas. Se o Mestre pretendia visitar Batista, por que anunciou que desejava viajar à Cidade Santa? A não ser, é claro, que tivesse um duplo interesse: ver seu primo e, posteriormente, seguir para Jerusalém. Jesus, afastado de sua família, não tinha por que dar muitas explicações sobre a nova viagem. E a Senhora, mesmo tendo perguntado, também não podia suspeitar dessas supostas intenções.
Eliseu concordou com a idéia. Fazia treze anos da última conversa de Jesus com Yehohanan. Em setembro do ano 12 de nossa era, quando o Galileu estava com 18 anos completos, João e sua mãe, Isabel, visitaram Nazaré. As mulheres, como já mencionei anteriormente1, influenciadas pelas respectivas aparições do anjo ou "ser de luz", traçaram planos, projetando o futuro de seus filhos. Jesus - o "filho da Promessa" - seria o Messias libertador de Israel. Ele conduziria os exércitos vitoriosos, lançando ao mar os kittim e proclamando o novo reino: a hegemonia judaica sobre o mundo. João seria seu braço direito.
Talvez tenha chegado sua hora - acrescentou o engenheiro. Talvez fosse o momento de retomar ou ressuscitar os "planos" interrompidos treze anos antes. Talvez o principal objetivo do Mestre naquela viagem fosse justamente o Anunciador. Estaríamos diante do iminente batismo de Jesus no Jordão? Não era estranho que caminhasse bem na direção em que, supostamente, se encontrava seu primo distante?
Rejeitei essas suposições. Em primeiro lugar - e o tempo haveria de confirmar -, Jesus não se considerava um libertador político, como planejava sua mãe. Esse foi sempre um motivo de conflitos. Ele era outra coisa. Ele era algo muito mais importante... Eu não acreditava que
0 Mestre desejasse trazer à tona planos que ele nem sequer considerava. Se procurasse Yehohanan - e isso ainda iríamos ver -, a razão teria de ser
outra. Obviamente, não descartei a hipótese do batismo, embora
1 Ampla informação em Nazaré. Cavalo de Tróia 4. (N. do A.)
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acreditasse que minha fonte de informação - o chefe dos Zebedeu - era consistente.
Havia ainda uma terceira possibilidade: a de que Eliseu e eu estivéssemos equivocados. Talvez Jesus seguisse diretamente para Jerusalém, sem mais.
Obviamente, só havia um meio de responder às perguntas: continuar avançando.
Uma hora e meia depois de nossa partida, sob um céu azul e um sol ameaçador, após atravessar a ponte de pedra que cruzava o rio e o nahal Harod, fomos desembocar em outra importante encruzilhada. Um dos miliários, à nossa direita, anunciava a proximidade de Scythopolis (atual Bet Shean), a populosa cidade dos escitas2, com uma população superior à da "metrópole" (possivelmente, mais de cinqüenta mil habitantes). Era, sem dúvida, o núcleo humano mais representativo de Decápolis. Como teríamos oportunidade de comprovar algum tempo depois, a "porta do Éden" era a mais heterogénea mistura de paganismo de todo o Mediterrâneo. Ali conviviam em paz e harmonia experientes tecedores de linho do Egito, mercadores do "barro milagroso" do mar Morto, domadores de feras de Persépolis, contadores de história de Sião, caldeus ou adivinhos e, sobretudo, milhares de legionários e mercenários romanos. Nysa, como a chamavam popularmente, era uma cidade de passagem para as legiões que se deslocavam rumo ao Oriente ou que retornavam a Roma. E, como tal, um povoado destinado fundamentalmente a oferecer serviços. Os prostíbulos - de todas as
categorias - contavam-se às centenas. Dispunha de
Numerosos estudiosos - baseando-se em Sincello - consideram que Scythopolis ou Bet Shean (para outros Bet San ou Byt sn) foi a cidade onde os escitas se estabeleceram quando invadiram a Palestina no século VII a.C. Outros, como Plínio e Solino, seus discípulos, afirmam que foram esses escitas que acompanharam o deus Dionísio e que protegeram a tumba de sua ama, Nysa. Bet Shean já existia no século XIX antes de Cristo. É mencionada no reinado de Tutmosis III, nas cartas de Amarna, como "Bítsuani" e em monumentos dos faraós Seti I e de seu filho, Ramsés II. Em 107 a.C., caiu sob o domínio do judeu Hircano I. Pompeu, como se disse, libertou-a em 57, e ela foi reconstruída por Gabínio em 54 a.C. Desde então, permaneceu independente, embora sob o controle económico de Roma. (N. do M.)
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circo, teatros, hipódromo, banhos e de uma destacada coleção de estátuas destinada a Nyke, a deusa da prostituição. Seus ginásios eram famosos, como também o gigantesco mercado, "com capacidade para cem mil pessoas", segundo seus orgulhosos habitantes. Alguns a chamavam de "Pompéia do Oeste". A colónia judaica era minoritária (aproximadamente um quinto da população total: em torno de dez mil pessoas). Enfim, Nysa se erguia branca e ruidosa sobre uma pequena montanha, a oitenta metros do Harod, num perímetro de quatro quilómetros. Sua distância do Jordão era de uma hora. Além disso, Nysa ostentava o título de "cidade livre". Qualquer perseguido político podia refugiar-se ali sem o temor de ser entregue às autoridades de seu país3.
À nossa esquerda, um segundo miliário indicava a localização de Galaad, a leste do Jordão, com ramificações em Pela e na Gerasa oriental. Era outro dos numerosos caminhos de terra ligando o Oriente ao Ocidente, agora repleto de
vendedores - a maioria procedente de Nysa -, carretas lentas e ruidosas, abarrotadas de frutos e à&felah, e os inevitáveis carros de duas rodas, com os sais gritando preços e itinerários.
Prudentemente, desviamos do cruzamento, avançando em direção ao sul pelo único atalho que eu conhecia, o "habitual", que seguia mais ou menos paralelo ao rio, e agora a uns dois quilómetros da "selva" do Jordão. E penetramos em outro setor difícil de esquecer...
Deviam ser sete horas da manhã.
Os camponeses - oufelah - chamavam aquilo de "floresta". Na realidade eram palmeirais. Milhares e milhares de palmeiras muito esguias, de até trinta metros de altura, com as copas estiradas, imóveis e brilhantes, submetidas a um sol ao qual sucumbiriam em breve. A partir daquele cruzamento, junto com as flores, convertia-se na rainha do vale (apenas nas terras, ao sul, calculava-se mais de meio milhão de exemplares). Reconheci duas espécies: a tamareira, com meia dúzia de subespécies, e o
3 Desfrutavam desse mesmo privilégio, na Decápolis, Hippos (Susita), Abila e Gadara. Isso aparece em suas moedas e em outros documentos. O direito de asilo, ao que parece, surgiu no ano 246 antes de Cristo, nos tempos de Seleuco II Calínico. (N. do M.)
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dendezeiro, bastante apreciado já naquele tempo e de cujos frutos se extraía uma espécie de gordura muito utilizada na fabricação de "sabão". As sementes de élailon também eram requisitadas por cozinheiros e donas de casa. A manteiga branca que produzia dava um sabor delicioso a muitos pratos locais. Já a
Phoenix dactylifera, tratada com um cuidado muito especial pelos agricultores do Jordão, produzia até cento e cinqüenta quilos de tâmaras por ano. Era um fruto que se utilizava para quase tudo e do qual, inclusive, se destilava uma bebida aromática, tão deliciosa como o vinho. A dactylifera, particularmente resistente aos solos salinos, podia se conservar por muitos anos (chegamos a ver exemplares que, segundo os felah, tinham dois séculos). Para o melhor desenvolvimento da "floresta", e dos cultivos da bacia em geral, os engenhosos camponeses idealizaram um sistema - ao que consta importado do rio Nilo - que evitava, em boa medida, a proliferação de insetos e parasitas, muito prejudiciais às colheitas. O solo era coberto com longas folhas de ravenala, também chamada de "árvores do viajante", que, em questão de horas, elevavam a temperatura da superfície, provocando uma espécie de "desinfecção térmica". E os tais insetos eram "cozidos vivos".
Logo surgiria diante destes exploradores outra importantíssima artéria da Decápolis: a calçada romana que ligava Scythopolis à cidade de Pella, a leste do Jordão. Paramos alguns minutos para examinar a via, tomando as referências necessárias. O trânsito de homens e cavalarias era mais intenso do que no atalho anterior. O calor começou a aumentar, e procuramos novamente a reconfortante penumbra da "floresta". Jesus continuava desaparecido...
Aos poucos, em pleno palmeiral, quando já tínhamos percorrido uns doze quilómetros desde a aldeia de Yardena, meu irmão me chamou a atenção. Ao fundo, entre os troncos, avistava-se um povoado. Supus que se tratasse de Ruppin, outra aldeia de médio porte, silenciosa e aparentemente pacífica.
Seguimos em frente, e, relativamente confiantes, como sempre, nos dispúnhamos a atravessá-la. Imaginei que os homens estariam na "floresta", cuidando das plantações.
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No final de uma curva da estrada, quase nos arredores do povoado, nós o vimos...
Eliseu e eu reagimos simultaneamente. Paramos e observamos com atenção. Um calafrio cobriu-nos dos pés à cabeça. Meu companheiro, mais impulsivo, exclamou:
- Não é possível!
Precisávamos confirmar. E, lentamente, fomos nos aproximando.
Estava de costas. Conversava com algumas mulheres da aldeia.
Não havia dúvidas. A elevada estatura, a forte musculatura, o rabodecavalo, o saco de viagem a tiracolo e a túnica vermelha... Sim, era a túnica que se sobressaía em Nahum...
- E ele! - sussurrou Eliseu, sem conseguir acreditar no que via. - Enfim...
Tinham sido necessários trinta quilômetros, a partir do yam, para localizálo...
E a uns cinqüenta passos, alertado pelas camponesas que nos viram chegar, o homem virou-se um pouco de lado, oferecendo parte do perfil.
E paramos ao mesmo tempo, mais uma vez.
Impossível!
O homem reparou em nós, mas continuou falando.
Não sabíamos o que dizer. Como era possível que o confundíssemos? Supunha-se que estivéssemos habituados à sua pessoa. Mas não...
Aquele caminhante não era o Mestre. À distância, apresentava uma sensível semelhança, mas só à distância...
Era forte, alto como Jesus, tinha o cabelo igualmente castanho, porém, o rosto era bem diferente. Um sinal na testa tornava-o inconfundível. Era a marca de uma queimadura. Possivelmente, um ferro em brasa. Simulava um pequeno sol, de uns três centímetros de diâmetro com quatro raios. No rosto, muito branco e minuciosamente barbeado, destacavam-se olhos negros, profundos e ligeiramente achinesados.
Ao passar por ele, desejamos paz, quase sem tirar os olhos do chão, e seguimos caminho, certamente envergonhados pelo erro e decepcionados. Não era o Galileu!
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As mulheres, sem dar maior importância ao encontro fugaz, aparentemente respondiam a uma pergunta do homem com a cicatriz chamativa na testa.
Ouvimos o nome de Damiya. E aquilo nos deixou em alerta novamente.
- Estais seguras disso? - insistiu o indivíduo com um acentuado sotaque estrangeiro.
- Sim - responderam em coro -, agora está nas "Colunas". Dizem que continua batizando...
Ao ouvir a última palavra - "batizando" -, reagi. Dei meia-volta e, para surpresa de todos, juntei-me ao grupo, manifestando meu interesse pela identidade daquele que estava batizando nas "Colunas". As mulheres, desconfiadas, ficaram em silêncio. Suponho que tinham razões de sobra para isso. Não era muito normal que, na mesma manha, três estrangeiros perguntassem pelo mesmo homem.
Foi o do sol, aberto e sorridente, quem confirmou as suspeitas. Ele também
procurava Yehohanan.
Assim, aparentemente por casualidade (?), conhecemos Belsa (seu verdadeiro nome era Belsassar ou Baltazar). Disse que era nativo de Susa, a leste do rio Tigre, na Pérsia. Portanto, era um parsay. Mais exatamente um susankay, ou natural da cidade mesopotâmica de Susa (no atual Irá). Residia provisoriamente na aldeia de Hayyim, muito próxima de Nysa ou Scythopolis. Trabalhava no momento como chefe de "escaladores" na "floresta" (uma curiosa profissão cujo objetivo era coletar cachos de tâmaras das altas palmeiras, assim como proceder à poda e à polinização destas). Tinha sido caravaneiro por meio mundo. Falava persa, coiné, aramaico, egípcio, beduíno e um pouco de latim. Conhecia bem a região e se ofereceu encantado para nos acompanhar até a zona de Gaón Ha Yardén, na confluência dos rios Jordão e Yaboq. Ali, segundo todas as notícias, em uma paragem conhecida como as "Colunas", encontrava-se naqueles dias o parente do Filho do Homem -João, o Anunciador.
Demorei algum tempo para me recompor do conseqüente assombro. Aquele homem, em curto e médio prazo, seria de grande utilidade em
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nossa missão. E não apenas como um bom guia. Quem poderia imaginar isso naquela luminosa manhã de segunda-feira, 24 de setembro do ano 25? Mas as coisas são assim e é assim que o Destino joga...
Belsa, como eu estava dizendo, era um bom conhecedor do vale do Jordão, e, principalmente, de sua gente tão diversificada. Estava a par de tudo o que interessava. E soube da presença de Yehohanan ao sul do rio, próximo da margem norte do mar Negro, em finais do mês de nisán (março) desse ano 25. Se a informação dada pelo persa estivesse correta, minhas suspeitas se confirmavam: Jesus, ao deixar Israel,
em abril, não sabia que seu primo distante acabara de iniciar sua própria vida pública. É provável que tenha recebido as primeiras notícias ao descer do monte Hermon e regressar à "casa das flores", em Nahum. Naturalmente, tratavase apenas de especulação. Era preciso confirmar.
E prosseguimos a caminhada numa animada conversa. Por precaução, silenciamos sobre nosso verdadeiro objetivo, o Mestre. Quando lhe perguntei sobre o motivo do seu interesse pelo Batista, Belsa, confessou com sinceridade - pelo menos aparentemente - que lhe chamara a atenção a prática de batismo por parte do tal Yehohanan. E se proclamava seguidor do mitraísmo, uma religião importada do Oriente4
O deus Mitra nasceu na índia (século XIV antes de Cristo). Era um génio dos elementos. De lá foi para a Pérsia. Seu nome aparece pela primeira vez no ano 500 a.C., sob o reinado de Ciro I. As legiões romanas o adotaram, e levaram o culto para o Mediterrâneo. Era venerado particularmente nos portos e nas guarnições militares. Ocupava-se de pesar a alma dos mortos no além; um além puramente espiritual onde existia a imortalidade. Durante séculos, foi um forte concorrente do recém-surgido cristianismo. Sua doutrina era dualista: Ormuzd era o deus do bem e Ahriman o do mal. Mitra ocupava uma posição intermediária, era uma espécie de mediador entre o céu e a terra que se identificava com o sol. A lenda diz que Mitra nasceu de uma pedra. Agarrou um touro (um animal divino) e o sacrificou por ordem de Ormuzd. Do sangue nasceram animais e plantas. Esse touro purificador - diziam os seguidores
- era a chave da imortalidade. Foi o grande símbolo do mitraísmo, encontrado em várias escavações arqueológicas. Os fiéis também praticavam o jejum, a flagelação e os banquetes sagrados, nos quais consagravam o pão, a água e o vinho. Com isso
- diziam -, ao comer o pão e beber o vinho sagrado, se convertiam em "homens diferentes", quase deuses. Os segredos de Mitra eram guardados cuidadosamente por
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pelo Império Romano e que causava furor naquela época, em particular nas grandes cidades do Mediterrâneo. Os fiéis do deus Mitra tinham justamente o costume de se batizar, a fim de limpar suas culpas ou máculas. Esse louco ou profeta era um seguidor de Mitra? Por isso se pôs em marcha. Por isso queria vê-lo e conhecer suas intenções. E o antigo caravaneiro, respondendo às perguntas destes exploradores, foi acrescentando mais dados sobre sua paixão: Mitra. Os que se consagravam a esse deus eram organizados em diferentes estágios de iniciação. Ele era um "milles", um "guerreiro". Antes tinha passado pelas etapas de "corax" ("corvo") e "cryphius" ("oculto"). O sol na testa era a confirmação do "guerreiro". Era uma das provas a que se devia submeter: o ferro em brasa. Se demonstrasse o valor necessário, passava ao grau seguinte, de "leão". Depois podia ser "persa","heliodrimus" ou "mensageiro do sol" e, finalmente, "pai" (Tertuliano designa-o como "Sumo Pontífice").
Ele estava no final da fase preparatória. A partir do grau de "leão", era tudo diferente. Começava-se a conhecer os segredos de Mitra e o porquê da própria vida. Nenhuma outra religião era tão atraente para ele. Mitra era um ser em quem ele confiava: justo, leal, perfeito (santo). Foi o que disse. Mitra era a encarnação da verdade. A mentira lhe repugnava. Foi ele também quem disse...
Além das provas a que eram submetidos, os praticantes do mitraísmo tinham de demonstrar - acima de tudo - limpeza de espírito. Belsa enfatizou: "A honradez em primeiro
lugar. Quando alguém morre, Mitra
uma casta sacerdotal (Tertuliano fala de virgines e continentes), muito similar ao que hoje conhecemos como monges. Os ritos eram realizados em grutas escavadas na rocha. Os fiéis se distribuíam em bancos, de um lado e de outro do templum. Por sua estreita relação com o sol, no Ocidente ele recebeu também a designação de Sol invicto. Sua festa era celebrada no dia 25 de dezembro, imediatamente depois do solstício de inverno, quando as horas diurnas começam a se alongar. Os devotos de Mitra animavam o sol com grandes fogueiras, nessa noite, tentando infundir-lhe mana. ou numem. Depois festejavam o "triunfo do sol" com uma ceia e trocavam presentes. A Igreja Católica substituiu essa festa pagã pelo suposto nascimento de Jesus de Nazaré. Como já mencionei oportunamente, o Mestre nasceu no verão, e não em dezembro. (N. elo M.)
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pesa sua alma e sabe se foi uma pessoa limpa, caridosa e sacrificada. Só assim se alcança a felicidade eterna..."
Essa religião, como eu disse, causou furor. Principalmente entre os romanos que a consideravam uma alternativa concreta aos trinta mil deuses que os escravizavam. Os mais humildes e desprezados viram no Mitra um salvador que julgava não pelas riquezas e pelo poder, e sim pela atitude de cada um na vida5. Essa promessa de felicidade assegurava a passagem de um céu a outro, até chegar ao "sétimo", segundo o mitraísmo. Só havia um "problema": as mulheres não faziam parte desse culto...
Uma vez iniciados6, os seguidores de Mitra se reconheciam por uma série de sinais secretos, pelo "sol vitorioso" marcado na testa e pelo tratamento - apenas entre
homens, é claro - de "caríssimos irmãos" (fratres carissimi ou dilectissimi).
O culto a Mitra, em síntese, constituiu uma esperança nos tempos de Jesus. Era outra opção entre as chamadas religiões de mistérios (a maioria oficial), praticadas pelos gentios. Ao lado destas, como já dissemos, apareciam os epicuristas, os estóicos, os cínicos e os céticos, além de uma constelação de crenças pagãs, cada uma mais absurda e estranha que a outra.
5 É muito possível que o mitraísmo tenha chegado a Roma pelas mãos dos escravos, soldados e piratas vindos do Oriente (Plutarco sustenta que ele entrou na Itália muito antes, através dos piratas trazidos da Sicília por Pompeu: 106 a 48 a.C.). Posteriormente, o Exército introduziria o culto em todos os rincões do império. Sabese que sua influência - em uma mistura com o maniqueísmo - prolongou-se até a Idade Média. (N. do M.)
6 Tertuliano - uma de nossas fontes de informação - afirmava que essas provas recebiam o nome de "sacramento". Além do batismo e da "confirmação", o neófito tinha de enfrentar a simulação da morte (às vezes não tão simulada), a fim de expressar seu grau de valor. Outros, como os aspirantes a "guerreiro", eram tentados com a conquista (recebiam uma coroa e, depois de olhá-la fixamente, deviam recusála). Só Mitra estava capacitado para o triunfo. Eram ainda amarrados com tripa de frango e, com vendas nos olhos, jogados em uma cisterna ou depósito de água. Mitra enviava então um salvador que resgatava o aspirante. Era o símbolo do deus. Só Mitra outorgava a salvação eterna. Os sete graus iniciáticos do mitraísmo assemelhavam-se aos "sete céus ou sete moradas existentes depois da morte". Sete passos obrigatórios, segundo essa religião. (N. do M.)
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Quando perguntei a Belsa sobre Jesus de Nazaré, ele encolheu os ombros. Era a primeira vez que ouvia esse nome. Não insisti. Não
era o momento...
E guiados pelo experiente chefe de "escaladores de palmeiras", prosseguimos pela senda que descia até o mar Morto. A temperatura, em elevação, devia estar próxima a trinta graus Celsius. Era outro dia extenuante.
E depois da providencial aldeia de Ruppin, nossos passos se dirigiram ao que Belsa chamou de "onze lagoas". Os palmeirais, hortos e plantações de flores davam lugar agora a um bosque estreito como um punho, verde e amarelo, com belos e desafiadores álamos do Eufrates, alguns com trinta metros de altura. E, aos poucos, entre os troncos cinzas, surgiram as lagoas.
O guia apressou o passo. Sobre as águas esverdeadas passavam nuvens tremulantes de insetos e mosquitos. Era a pior das ameaças, a malária... Uma família de francolinos, assustada diante da intromissão daqueles humanos, voou rápida e escandalosamente, agitando sua plumagem mosqueada e, por sua vez, espantando outra colónia de garças noturnas.
- São tão esquisitos como as perdizes - disse o persa apontando para os francolinos em fuga. - Principalmente os de coleira castanha...
E as branquíssimas garças, lentas e incómodas, alertaram com suas manobras também as passer, as andorinhas do Jordão. Nunca tinha visto tantas. Dos ramos dos alamos pendiam milhares de ninhos em forma de pêra, pacientemente construídos com barro e minúsculas porções de galhos e juncos. Protestaram com seus trinos e perderam-se no bosque, recortando os juncos e os preguiçosos plumeiros que cresciam às margens dos pântanos. Uma barreira de vimes, eretos e ameaçadores, de até dez metros de
altura (possivelmente o salgueiro-branco), fechavam a passagem a qualquer tentativa de aproximação das lagoas. Mas essa não era nossa intenção. Aquelas águas salobras, paradas demais, eram refúgio de ofídios e crocodilos. Algumas se comunicavam com o Jordão. Belsa avisou. Entre os arbustos de salsolas e sempre-vivas, em particular entre os intricados mangues que avançavam sobre as águas, habitava "uma criatura feroz e impiedosa que atacava o passante e o deixava sem sangue". Disse que era
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um demónio, de olhos vermelhos e brilhantes como tochas. Embora pudesse voar, as pegadas que deixava na terra úmida das "onze lagoas" eram semelhantes às de um cachorro. Ninguém que tivesse dois dedos de juízo se aventuraria a atravessar aquele território desacompanhado...
Sorri por dentro. Com certeza, o persa estava falando de uma criatura fantástica, fruto da superstição. Eliseu, a julgar por sua expressão, não compartilhava dessa opinião...
Belsa, naturalmente, acreditava que "Adam-adom" fosse real. Esse era o nome que os nativos do vale do Jordão davam ao sinistro "diabo" dos mangues. Uma espécie de jogo de palavras: Adam (homem) e adom (vermelho), em hebreu. "Homem vermelho", por causa da luz (?) vermelha projetada pelos olhos e que - segundo diziam - permitia que se deslocasse com facilidade na escuridão da noite.
Adam-adom... Tratava-se de uma fantasia popular? Como eu conhecia mal aquela gente!
E por volta da tercia (mais ou menos nove da manhã), avistamos uma chácara. Era o final do trecho que também designaríamos futuramente como o das "onze lagoas".
A modesta construção de adobe e folhas de palmeira nos reservava outra surpresa... Belsa parou na porta e, aos gritos, chamou pelos moradores. Não demorou para que umfelah velho e esquelético viesse ao seu encontro, saudando o persa com uma reverência interminável. Meu irmão e este que escreve tivemos a mesma sensação estranha. Por que o camponês se curvava - e daquela forma - diante do chefe dos "escaladores"? Afinal de contas, ambos eram felah. Aquilo nos deixou intrigados. Mas na hora não demos mais importância ao fato.
Estávamos em um lugar dedicado à criação de crocodilos. O velho conversou um pouquinho com o persa e, logo em seguida, levounos até uma das lagoas, infestada de répteis. Os felah tinham cercado essa lagoa com bambus altos e grossos. Junto à paliçada, imóveis como estátuas e com as impressionantes goelas ligeiramente abertas, dormitavam várias centenas de niloticus, os terríveis crocodilos-do-nilo. Nunca gostei desses animais. Nem Eliseu.
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Alguns eram enormes, com até oito ou dez metros, segundo meu cálculo. Há séculos habitavam o Jordão, provavelmente desde os tempos da 18a dinastia egípcia. Os faraós os transportaram por mar até o golfo de Aqaba e, a partir dali, pelo caminho real, até as águas do rio Jordão. Uma viagem de mil quilómetros, sujeita a todo tipo de peripécias. O investimento era sempre rentável. O niloticus, de focinho mais curto que os jacarés, dispõe de uma pele mais fina e resistente, e também, segundo os entendidos, de uma carne mais saborosa. E os criadouros de crocodilos se tornaram famosos no vale.
Para nossa surpresa, Belsa pediu uma cria. E osfelah, sem vacilar, penetraram no recinto, caminhando com passos firmes pela margem da
lagoa. O velho, o persa e estes exploradores permaneceram à porta, atentos aos espécimes que flutuavam entre duas águas com os focinhos emergindo como pedaços de pau e aparentemente adormecidos. Só aparentemente...
Não dava para confiar naquelas criaturas extremamente rápidas. Ao menor descuido, atacavam a presa e arrastavam a vítima para o fundo do pântano. Depois de afogada, elas a devoravam. Prudentemente, deslizei os dedos pela cabeça da "vara de Moisés", acariciando o laser de gás.
Os camponeses desviavam dos niloticus contornando-os. Um bando de pássaros "lixeiros" abandonou as goelas dos animais, levantando vôo até o alto do bambuzal. E os empregados do criadouro desapareceram em um labirinto de bambus. Um deles carregava um pau comprido com um laço em uma das extremidades. Outro felah estava armado com uma tocha e uma adaga afiada. O velho que nos recebeu continuou conversando com o "guia", e, a cada a frase de Belsa, respondia com uma veemente inclinação de cabeça, chamando-o de "beef ("senhor"). Por que "senhor"?
Os "pluviais" brancos e negros voaram de volta até os impassíveis crocodilos e saltaram sem temor para dentro das goelas. E ali prosseguiram na tarefa de limpeza de dentes e gengivas que haviam interrompido, bicando todo tipo de insetos, sanguessugas e restos do recente "desjejum": frangos e cabras, sempre vivos...
Não demorou para que Belsa recebesse seu crocodilo. Um espécime de um metro, sacrificado no curral destinado às crias. Continuava
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pendurado no laço. O segundo camponês tinha perfurado seu cérebro, introduzindo a faca afiada por um dos olhos.
E o persa, satisfeito, jogou o animal nos ombros. O velho felah se recusou a cobrar. Aquele gesto foi mais estranho ainda. O niloticus devia custar uns dois denários, no mínimo...
E, com uma última e enésima reverência, o homem se despediu do persa. A nós, apenas desejou paz.
As dúvidas aumentaram. Quem era de fato o chefe dos "escaladores de palmeiras"?
A partir da chácara dos crocodilos, o caminho ficou mais fácil. O vale continuava descendo em direção ao mar Morto e, depois de deixar para trás as aldeias de Zevi e Salem, abriu-se diante de nós uma grande planície. Os álamos desapareceram e, em seu lugar, à direita e à esquerda do atalho, surgiram novos hortos e os intermináveis brancos, vermelhos e violetas das plantações de flores.
Belsa, apontando para o edifício da aduna seguinte, procurou encorajar estes exploradores. Estávamos a pouco mais de vinte milhas romanas de nosso destino: Damiya. Isso significava umas cinco horas de viagem. E no meu espírito ergueu-se a imagem do Mestre. Desta vez com mais força. Será que estávamos perto? Será que o encontraríamos junto ao Batista? Ou eram apenas fantasias e o meu enorme desejo de voltar a vê-lo?
De fato, não muito longe de Salem ou Salim, aguardava-nos o edifício que servia de aduana entre os territórios de Decápolis e da Peréia7. Pretendíamos entrar neste último, na época sob o controle administrativo de Herodes Antipas, um dos filhos de Herodes, o Grande. O verdadeiro "dono" não era a "velha raposa", e sim Roma...
O território judeu da Peréia era uma faixa estreita paralela ao rio Jordão. A fronteira ocidental era formada por esse rio e pela costa leste do mar Morto. Ao sul,
estendia-se até Maqueronte, nas proximidades do wadi Mujib (rio Arnón). Ao norte, fazia limite com a cidade pagã de Pella. A porção sul - a partir da desembocadura do rio Yaboq - era a mais povoada. A capital era Gador, a cidade mais conhecida de toda a Peréia. No norte, destacava-se Amatus, uma cidade-fortaleza, sede de uma toparquia e de um dos "pequenos sinédrios". Nós também a visitaríamos oportunamente. (N. do M.)
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Desta vez não houve espera. O persa, decidido, foi passando à frente dos viajantes e das carretas que formavam fila e, com o niloticus sobre os ombros largos, aproximou-se dos publicanos. Eliseu e eu, assustados, tememos o pior. E, de fato, enquanto avançávamos ouvimos vozes de protesto. Belsa, imperturbável, virou-se para os irados judeus e gentios e simplesmente penetrou-os com o olhar. Não abriu a boca.
E, então, aqueles que protestavam silenciaram. Alguns, inclusive, deram um passo atrás, atemorizados. E todos aceitaram que o indivíduo de túnica vermelha e o sol na testa passasse à sua frente. Nós dois, mais perplexos do que se pode imaginar, olhamos para um e para o outro sem saber o que pensar. Quem era Belsa? Por que o temiam e reverenciavam? Os funcionários, quando o viram, nem lembraram de registrar bagagens e mercadorias e todos se voltaram à pessoa de nosso amigo (?) e acompanhante. Eram só atenções: água dos mananciais de Enon, carne salgada da "floresta" vizinha ou vinho negro e forte do Hebron, nas montanhas da Judéia, e, provavelmente, confiscado por bem ou por mal. Belsa aceitou duas tiras de carne defumada de porco selvagem e recolheu em seu saco uma pequena bolsa com moedas. Eu não gostei daquilo. Decididamente, o caravaneiro e fiel seguidor de Mitra não era o que dizia ser...
Como imaginávamos, os publicanos franquearam sua passagem, liberando-o do "pedágio". E nós fomos atrás. Nem Eliseu nem eu nos atrevemos a interrogá-lo. Era melhor assim. Por ora, a companhia do persa - ou suposto parsay - nos beneficiava. Por que mexer com o Destino?
E Belsa, alegre e exuberante, cantando louvores ao "salvador" Mitra, conduziu-nos pela vasta planície.
Deixamos para trás as aldeias de Mehola, Juneidiya, Ghirur, Khiraf e Coraeae, brancas e modorrentas, escondidas sob os palmeirais ou encobertas pelos mares de rosas fenícias que as rodeavam por todos os lados. Aqueles vinte quilómetros entre a aduana e o povoado-fortaleza de El Makhruq - ponto final do trajeto - foram deliciosos. Em todo o percurso, reto e sem obstáculos (descendo de menos 252 metros na zona de Mehola para menos 284 no El Makhruq), com a "selva" do Jordão a oitocentos metros à nossa esquerda, sentia-se o perfume do
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incenso queimado nas encruzilhadas, outra propaganda dos vendedores do vale. Tanto o incenso quanto a mirra, assim como as plantas de bálsamo, cresciam em abundância na bacia (especialmente em Jerico). Osfelah vendiam essas gomas-resina no Templo de Jerusalém, e também aos pagãos do Egito e da Mesopotâmia. Segundo Belsa, a fumaça da mirra e do incenso tinha o poder de afugentar os maus espíritos. Por isso, eram utilizados tanto nos rituais sagrados quanto nas casas modestas do Jordão, conjurando a possível presença de criaturas ignóbeis como Adam-adom. (O cristianismo e outras religiões herdaram esse costume, utilizando o incenso na liturgia. Naquele tempo, como verificamos durante o período de pregação do Filho do Homem, a totalidade dos exorcistas judeus empregava o incenso para espantar os
demónios, eliminando assim o odor nauseabundo das criaturas "infernais". Essa era a crença.)
E digo que a marcha foi uma delícia, embora não seja totalmente sincero. Ela só seria inteiramente, é claro, se o tivéssemos encontrado. Porém, o Mestre não deu sinal de vida. Nem rastro. E, ao pararmos diante da fortaleza de El Makhruq, voltaram as velhas dúvidas... Estávamos a 88 quilómetros de Nahum e a 67 da costa sul do yam. Onde estaria Ele? Aquele era o caminho "habitual" para a Cidade Santa. Ele o fez e o faria em outras oportunidades. O que estava acontecendo? Por que não achávamos o Galileu?
E, inevitavelmente, voltaram a mim as palavras de Jesus: "O Pai tem planos aos quais não tendes acesso agora..."
Mas alguma coisa não encaixava. Por que tínhamos chegado até ali, aparentemente para nada?
E o Destino - tenho certeza - sorriu de novo...
Aparentemente? Nada disso. Tudo estava amarrado, e bem amarrado.
Fortaleza de El Makhruq. Como eu dizia, ponto final do trajeto. Pelo menos daquela etapa.
O sol marcava a décima (quatro da tarde aproximadamente). E, rendidos, nos atiramos contra as pedras cinzas que davam sustentação a uma construção quadrangular em ruínas, que os habitantes do local cha
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mavam de "o queimado". Tratava-se de uma torre com uns vinte metros de largura, erguida pelos antigos cananeus e cuja função era a vigilância da importante rede
de comunicações existente naquela paragem (ali convergiam o caminho "habitual" do Jordão e a calçada romana que ligava Filadélfia, no leste, a Nablus e à costa do Mediterrâneo). Por extensão, o termo "queimado" ou "abrasado" - significado de Makhruq - era usado naquele tempo para designar a barreira rochosa que interrompia a próspera vegetação da bacia do Jordão; uma barreira de calcário branco e cinzaazulado que se prolongava perpendicularmente ao Jordão e que se perdia a oeste, em direção ao monte Sartaba.
Calculei que faltava uma hora e meia para o pôr-do-sol. Belsa tirou nossas dúvidas. Apontou para um povoado modesto e disse-nos que era o destino final. Referia-se a Damiya. Um pouco mais adiante, ao leste, encontrava-se o "vau das Colunas". Ali, segundo todas as informações, Yehohanan fazia batismos.
Experimentei uma sensação agridoce. Talvez Jesus tivesse vindo ao encontro de seu primo distante. Será que testemunharíamos o batismo do Mestre? Nessa suposição, o Galileu estaria perto. Damiya podia ser vista a cerca de três quilómetros do ponto onde nos encontrávamos. Mas e se não fosse isso?
O persa, agradecido pela companhia daqueles inquietos e curiosos gregos - "viajantes em busca da verdade", segundo Eliseu -, tratou de nos brindar, mais uma vez, mostrando a beleza do lugar para onde nos conduzira o enigmático Destino (Mitra, segundo ele). E escolheu a paragem exata; a já mencionada torre do El Makhruq, no alto da cadeia rochosa, a 281 metros acima do nível do mar.
O espetáculo foi inesquecível. Aos nossos pés corria o Jordão, agora livre da cobertura de mata, alimentando com suas águas claras e mansas os costumeiros hortos e plantações. Pelo lado leste, descia um dos afluentes mais importantes: o Yaboq ou Zarqal, que também brilhava como prata. À nossa esquerda, na margem direita do Jordão, abria passagem entre o verde e negro das palmeiras o menos
pretensioso rio Tirza, pai do vale conhecido como Faria. Os dois afluentes desemboca
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vam quase frente a frente, dando nome à rica região de Gaón Ha Yardén (algo como "Garganta do Jordão"). Na junção dos outros três cursos dágua, os sedimentos arrastados pelas águas haviam formado uma ilha de dimensões regulares. Fiquei assombrado. A quase totalidade da ilhota era ocupada por uma singular construção de calcário, com muros e tetos enegrecidos. Um muro alto, de quatro ou cinco metros, circundava os edifícios, embora não creia que a palavra "edifícios" seja a mais adequada. O único com um certo porte era o central, totalmente circular, arrematado por uma cúpula na qual se destacavam cinco estreitas chaminés. De cada uma delas emanava uma coluna de fumaça negra e espessa. No pátio, pegadas à muralha, alinhavam-se numerosas casinhas, igualmente de pedra calcária, tisnadas pela fuligem e suspeitamente iguais. Por uma das portas do bloco circular - que parecia ser o mais importante -, observamos fortes chamas. Imaginei que estávamos diante de umzyesuqah ou fundição de ferro ou cobre.
- Sim e não...
A resposta de Belsa me deixou confuso.
- É o cárcere do cobre. Um lugar maldito...
Era uma.yesuqah e, ao mesmo tempo, uma das mais temíveis prisões da Peréia. Para ali eram levados os assassinos, os estupradores de crianças, os fraudadores de impostos e os que se sublevavam contra Roma ou contra o tetrarca Antipas. A "fina flor"...
Segundo o persa, ali só se entrava para morrer. A população reclusa era de cerca de mil pessoas, a maioria de origem pagã.
Trabalhavam os lingotes de cobre que chegavam regularmente das fundições de Esyón-Guéber, no mar Vermelho, as antigas e autênticas minas do rei Salomão. Longas caravanas desciam pelo Jordão com os carregamentos. Esses eram desembarcados na ilha e ali reelaborados pela técnica do martelo. Os fornos eram alimentados dia e noite com madeira extraída das montanhas de Galaad. A fusão do cobre (a 1.083 graus Celsius) era obtida mediante a utilização de enormes foles de couro, ativados manualmente, e com a ajuda - extremamente eficaz - dos ventos locais, particularmente fortes na desembocadura dos rios citados. As bocas dos fornos
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tinham sido direcionadas estrategicamente para o poente, de modo que os ventos que desciam pelo vale de Faria ativavam a corrente, alcançando-se assim "o laranja do sol no ocaso" (os especialistas fundidores estabeleciam os diferentes graus de fusão segundo as cores do sol. A obtenção do cobre, partindo da cuprita, da azurita e da malaquita, exigia um laranja similar ao do pôr-do-sol. O ferro, por exemplo, requeria uma temperatura de 1.539 graus, que transformava o metal proporcionando uma cor parecida com a do "branco mate do sol entre a névoa", e assim sucessivamente para o bronze, o ouro, a prata ou o estanho).
Logo nos acostumaríamos ao ruído monótono e distante dos martelos batendo nas dúcteis e maleáveis lâminas de cobre. Uma martelagem que não parava nem durante a noite e que recordava, aos nativos e aos estranhos, a natureza do lugar de onde vinha o som ritmado...
Segundo Belsa, o cárcere do cobre era mais um dos "negócios" rentáveis de Antipas, do qual participavam os de sempre: as castas sacerdotais e os
funcionários mais destacados de Roma. Ali, graças ao esforço dos prisioneiros, fabricava-se todo tipo de armas, ferramentas e adornos, tanto masculinos como femininos. Diariamente, com as primeiras luzes do alvorecer, uma ou duas embarcações atracavam às margens da ilhota e embarcavam os produtos manufaturados: lanças, pontas de flechas, espadas de toda natureza, adagas, machados de combate ou para o trabalho, enxadões, enxós, picaretas, cinzéis, freios de cavalo, armaduras, braceletes, ganchos e todo tipo de utensílios de cozinha.
Eu não sabia o que pensar diante dos comentários do chefe dos "escaladorés de palmeiras". Criticava o tetrarca Antipas e os funcionários, mas, ao mesmo tempo, era beneficiado por eles. A atitude não parecia muito honesta...
A média de falecimentos naquele campo de concentração era elevada: dois ou três "operários" por dia. Os corpos acabavam nos fornos, fundidos com o cobre líquido. Segundo diziam, isso proporcionava hitpa ao metal ("o espírito do morto enriquecia a mistura"). Durante o tempo em que permanecemos nas imediações do cárcere do cobre, ficamos sabendo de três caravanas com novos "reforços", entre os quais se destacava
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uma leva de zelotes capturados no sul, no deserto de Judá. Antipas, como seu pai, não permitia qualquer movimento (religioso ou civil) que pudesse ameaçar o poder estabelecido. A temida prisão diante dos nossos olhos foi outro exemplo da crueldade da família de Herodes. Ali perderam a vida muitos judeus cuja única culpa era sonhar com a libertação de Israel.
Damiya, o povoado branco em que pretendíamos descer, vivia em grande
parte dessa prisão. Era uma aldeia a serviço dos fundidores e de seus guardiões. Os cinturões de hortos que a contornavam não eram suficientes para abastecer zyesuqah, e, todos dias, pelo atalho do Jordão, amanheciam numerosas carretas com encomendas de todo tipo, incluídas as célebres "burricas" ou prostitutas de Bet Shean e da cidade de Pella. De Damiya saíam os vendedores de água, os médicos, os adivinhos, os carpinteiros, os pedreiros, os prestamistas ou sacerdotes dos mais diversos deuses, que se ofereciam ao pessoal da ilha. As portas da prisão eram um mercado onde se traficava com tudo e com todos. A corrupção dos guardas era tal que muitos dos vizinhos de Damiya acabavam entrando no recinto para vender seus produtos nos barracões dos condenados. Algum tempo mais tarde, quando o Destino julgou conveniente, este que escreve atravessou o umbral daquele inferno, embora por razões muito diferentes...
Outra referência útil em nossa missão foram os incontáveis caminhos e pontes - perfeitamente visíveis a partir das rochas de El Makhruq - naquele que seria nosso próximo cenário. O lugar constituía uma intricada rede de comunicações. Os hortos eram cortados por uma trama complexa de vias vicinais e pistas de terra que conduziam a dezenas de cabanas localizadas nas plantações. Nas duas margens do Jordão, como também de seus afluentes, não restava um palmo de terra que não fosse cultivado. O verdor, interrompido aqui e ali pelo brilho da água em açudes e pequenos canais, era absoluto.
Apenas na margem esquerda do Jordão, contei mais de dez rodas de madeira que nunca paravam de girar, abastecendo com suas caçambas a água necessária para as frutas e hortaliças que amadureciam na várzea.
Três pontes de pedra ligavam as margens. Uma sobre o Tirza e outras duas sobre as águas do "pai Jordão". Uma delas nos chamou a aten
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cão. Era bem longa (mais de cem metros). Começava quase aos pés da fortaleza onde nos encontrávamos e saltava sem dificuldade sobre o rio sagrado. Ali nascia um atalho menor, de terra vermelha, que ziguezagueava entre os hortos até a aldeia de Damiya, já mencionada. Calculei uns dois quilômetros até o povoado. Mais adiante, por detrás de Damiya, ao leste, o atalho vermelho desaparecia entre bosques. À nossa direita estava a terceira ponte, também sobre o lento Jordão. Era o que chamavam de "segundo vau", em referência a outros tempos, quando não existiam essas construções de pedra. Uma calçada romana, impecável, corria sobre a ponte, de Scythopolis a Filadélfia, convertendo o Gaón Ha Yardén em uma destacada encruzilhada, uma das mais freqüentadas do vale. Por ali passavam as intermináveis caravanas de camelos procedentes do caminho dos Reis, a leste do mar Morto. Aquela terceira ponte era outra "chave" do comércio entre os quatro pontos cardeais. Por ali passavam diariamente centenas de judeus e pagãos transportando tudo o que se possa imaginar e um pouco mais. O setor em questão (em particular as duas pontes sobre o Jordão) era conhecido popularmente como as "passagens ou vaus de Adão". Já no século XIV antes de Cristo, os hicsos atravessam o rio nesse lugar. Por ali, os madianitas fugiram em direção ao leste ao escapar de Gedeáo, como relata o livro dos Salmos (83, 1011). Por ali, enfim, entravam e saíam os exércitos e, o que era mais importante, o dinheiro e as idéias.
Yehohanan, sem dúvida, escolhera bem o lugar de pregação. O fluxo de homens e de mercadorias era contínuo e exaustivo...
A paragem recebia o nome de "passagens de Adão" pela cidade situada mais ao sul, na margem esquerda do Jordão, e que mal se avistava a partir do El Makhruq. Situava-se a uns cinco quilômetros de Damiya e a quase trezentos de Jerico8. Era venerada pelos judeus como o lugar onde
8 Alguns arqueólogos e historiadores identificam - erroneamente - a atual tel EDamiyya (Damiya) com Adam, na Jordânia. Conforme a minha narrativa, tratavamse de duas populações diferentes. (N. do M.)
I
Yavé realizou o milagre de deter as águas, permitindo que Josué e o povo eleito chegassem a Canaá, a terra prometida9. Foi o primeiro prodígio da arca da aliança ou do Testemunho, segundo a Bíblia10.
Finalmente, no horizonte, por detrás de Damiya, divisava-se uma massa verde-negra da qual fluíam o rio Yaboq e outros afluentes de menor importância. Eram os bosques de tamariscos do Nilo, acácias, álamos e salvadoras. Matas fechadas e remotas...
E o instinto me advertiu.
"Algo" importante me aguardava nessa bela e exuberante regiáo. Jesus de Nazaré? Será que o encontraríamos, finalmente, naquele jardim? Quais eram os desígnios do Destino?
Logo saberíamos...
9 O livro de Josué (3, 14-17 e 4, 10-19) diz: "Quando o povo partiu das suas tendas para atravessar o Jordão, os sacerdotes levavam a arca da Aliança à frente do povo. E quando os que levavam a arca chegaram ao Jordão, e os pés dos sacerdotes que levavam a arca tocaram a borda das águas, e como o Jordão desce cheio até as bordas todos os dias da ceifa, as águas que vinham de cima se detiveram e formaram um só bloco a grande distância, em Adão, a cidade que fica ao lado de Sartán,
enquanto as que desciam ao mar da Arabá, o mar do Sal, se separaram por completo, e o povo passou diante de Jerico. Os sacerdotes que levavam a arca da Aliança de Yavé pararam em terra firme, no seco, no meio do Jordão, enquanto todo o Israel passava no seco, até que todo o povo acabou de atravessar o Jordão..."
Para a maior parte dos exegetas e estudiosos da Bíblia, esse milagre de Yavé poderia ser explicado por um sismo que interceptou o curso d"água do Jordão, justamente na zona de Adão. As margens, nessas paragens, são formadas por enormes blocos de marga (argila e carbonato de cal), muito sensíveis aos movimentos sísmicos. Um tremor - segundo dizem - pode romper a marga e impedir a passagem das águas. Há testemunhos históricos que parecem confirmar essa hipótese (anos 31 a.C., 1267, 1546, 1906 e 1927, entre outros). Nesses anos, outros terremotos - relativamente freqüentes no vale do Jordão - desmoronaram as paredes do rio, o que provocou importantes obstruções e, conforme relatam os testemunhos, "secas de dois ou três dias". O Jordão se deteve - como conta Josué - e o canal ficou seco. O professor Stener também ouviu falar disso em Kefar Rufin, em 1956. A queda de uma colina deteve as águas durante horas. Em 1970, vinte soldados judeus morreram em Neot Ha-Kikar, ao sul do mar Morto, como conseqüência de uma dessas quedas. Eu, pessoalmente, não compartilho dessa hipótese. (N. do M.) Ampla informação em Planeta encantado, "Uma caixa de madeira e ouro". (N. do A.)
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Belsa considerou bem empregado o relaxante descanso e julgou aconselhável descer até Damiya. O sol não tardaria a se esconder por detrás de Sartaba.
Perguntei quais eram suas intenções. Foi tão claro quanto veemente: éramos amigos, procurávamos o mesmo "profeta" e Mitra nos protegia. Isso significava que o acompanharíamos. Essa noite iríamos dormir na casa de um "irmão" no pequeno povoado diante de nós (Damiya).
Comecei a tremer. A palavra "ah" ("irmão" ou "companheiro") foi pronunciada em um tom - eu diria - malicioso... E o persa, ao perceber minha inquietação, sorriu irónico.
Creio que Eliseu não se deu conta das segundas intenções do singular "guia". Ele vinha atrás de nós. Fazia horas que estava mudo, um pouco sério e com o olhar perdido. Fiquei preocupado. Nesse momento, não consegui saber o que estava acontecendo. Depois, ao descobrir o que o atormentava, compreendi. Mas essa é uma outra história...
O que podíamos fazer? Até então não sabíamos o que nos aguardava em Damiya. Procurávamos o Batista, sim, mas, sobretudo, o Mestre. Belsa conhecia o terreno e também seus habitantes. E eu ainda pensava que o mais razoável era confiar nele, pelo menos inicialmente. Era preciso aprender a confiar nas pessoas. Ou não?
Não houve um dia, ao longo daquela fascinante aventura em Israel, em que eu não aprendi alguma coisa. Um dia sequer...
Percorremos os dois quilómetros sem novidades.
Damiya, como já disse, era um povoado branco, edificado com o calcário branco do cume do Qeren Sartaba, a montanha existente a oeste, a pouco mais de dez quilómetros do Jordão. Era um povoado pujante, beneficiado pela próspera agricultura, pela proximidade dos "vaus de Adão" e, principalmente, pelo cárcere do cobre. Essas qualidades tinham atraído numerosos felah de toda a bacia, e também pagãos dos territórios vizinhos de Moab, da Nabatéia e até mesmo do Egito e dos
territórios da Cyrenaica. As casinhas de um único cómodo, erguidas na mais absoluta desordem, eram o cenário de um intricado cruzamento de línguas e de um ire-vir constante de atarefados sítones ou compradores de colheitas "verdes",
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caravaneiros de turbantes e túnicas de seda, escravos negros com o lóbulo da orelha direita perfurado, am-ha-arez (a "escória" humana, segundo os judeus ortodoxos), artesãos do mar Vermelho vindos expressamente para trabalhar o cobre (capazes de martelar o metal a uma razão de cinqüenta batidas por minuto e durante dez horas) e uma infinidade das "profissões" mais espantosas, todas à sombra do fluxo de homens e de dinheiro. Em geral, eram boas pessoas, abertas, desejosas de agradar e respeitosas com todas as crenças e as dezenas de deuses que também viajavam nas carretas ou noj sacos de viagem de cada um. Nos dias em que nos mantivemos em contato com os habitantes de Damiya, tudo foi cordialidade e boas intenções. Ou melhor, quase tudo...
E quando o sol se pôs, fomos tomar posse de uma das casas, uma das maiores e mais cômodas. O dono, um nabateu chamado Nakebos, ficou feliz ao reconhecer Belsa, "velho companheiro de venturas e desventuras", segundo suas próprias palavras. E eu, idiota que sou, associei-o à profissão de caravaneiro já mencionada, que o persa exercera tempos atrás, supondo-se que tivesse dito a verdade...
Como exigia a hospitalidade do vale, Nakebos nos recebeu de braços abertos, e pôs à disposição daqueles cansados caminhantes dois quartos espaçosos, água em abundância, perfumes, lenços de algodão e meia dúzia de serviçais.
Uma hora depois, banhados e relaxados, fomos conduzidos pelos serviçais
ao pátio central a céu aberto, onde nos aguardavam o anfitrião e uma suculenta ceia. Suculenta à primeira vista, é claro...
Ali prosseguiu a conversa cordial. E Belsa - mais do que satisfeito - começou a nos falar sobre seu amigo, o nabateu. Era um homem de confiança de Antipas, o tetrarca da Peréia e da Galiléia. Eliseu e eu trocamos um olhar de cumplicidade. Aquilo podia ser muito mais interessante que imaginávamos...
Amigo de Herodes Antipas?
Nakebos confirmou as palavras do persa e acrescentou que tinha sido nomeado al-qdid ou alcaide corregedor da prisão do cobre. Sua verdadeira profissão era capitão da guarda pessoal de Antipas.
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E o instinto voltou a bater à minha porta avisando:
Oficial da guarda "pretoriana" do reizinho que "governava" aquelas terras? Muito interessante...
Ao que parece, Nakebos era tão rico quanto corrupto. Parte das rendas obtidas com a venda dos utensílios de cobre ia parar diretamente na sua bolsa. Todos sabiam, inclusive a "velha raposa". O povo inteiro pagava um "extra" a Nakebos, e ainda agradecia por garantir o trabalho em Damiya. A menor descortesia ou falta de pagamento por parte dos vizinhos, a yesuqah podia romper o negócio, favorecendo qualquer povoado da bacia. Coreae e Adão eram as rivais mais próximas e cobiçosas.
E as suspeitas recrudesceram. O que fazia o chefe dos "escaladores"
- um suposto camponês - na casa do alcaide de um dos cárceres mais
temidos de Israel? Por que o tratava como um amigo íntimo? A que se devia tal acolhida? Aquilo, como eu estava dizendo, não se encaixava...
Porém, meus pensamentos ficaram em suspenso. Os serviçais apresentaram a ceia: o niloticus que Belsa tinha carregado desde as "onze lagoas". Crocodilo na brasa...
Um cheiro azedo e repulsivo me pôs em alerta. Não tive outro remédio a não ser prová-lo. E o sabor áspero - entre frango e peixe
- quase me fez vomitar. Meu companheiro, ao contrário, achou delicioso. E comeu até se fartar. Eu, prudentemente, refugiei-me na abundante variedade de tâmaras, repondo as energias com aquilo que chamavam de rfis, uma pasta de farinha de trigo torrada onde misturavam tâmaras sem caroço e maceradas. O rfis - delicioso - era acompanhado de um único legume: palmito. E tudo isso regado com um xarope muito doce, de reflexos cor de âmbar, também extraído das tâmaras e temperado com vinagre preto. Meus acompanhantes preferiram uma bebida mais forte e popular: o legmi, um licor típico do vale do Jordão, obtido da fermentação da seiva da tamareira: uma bebida perfumada e enganadora, que levava sempre à embriaguez...
E foi isso que me coube viver naquela noite interminável: uma noite de insónia...
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j.j. BENÍTEZ
Como era previsível, entre um bocado e outro de crocodilo, Nakebos e Belsa deram cabo das primeiras jarras de legmi. E os efeitos não tardaram a se manifestar. Eliseu, aparentemente contagiado, uniu-se ao "simpósio", bebendo sem moderação. Não consegui contê-lo. Recusou meus conselhos, acusandome de "estraga prazer" e de "mau amigo". E os beberróes, cada vez mais embriagados, aderiram à sua causa,
acolhendo-o e consolando o engenheiro.
As línguas começaram a travar e então passaram à fase seguinte: as canções e os juramentos de "amizade eterna". O nabateu e o persa tentaram ficar de pé em várias oportunidades, erguendo as jarras e querendo brindar um ao outro. Foi impossível. Os vapores do legmi os fizeram cambalear e rolar sobre a mesa. Os criados, acostumados a essas reuniões, continuavam imperturbáveis, limitando-se a encher as jarras pela enésima vez. E, em uma destas, Eliseu, levantando-se com dificuldade, dirigiu-se aos "colegas" inchados, fazendo um brinde que me deixou atônito. Em inglês (língua proibida durante a missão), com mais disposição do que clareza, exclamou:
- Por ela... Pela mais linda... Por um amor impossível...
E os olhos do engenheiro encheram-se de lágrimas. Depois, sem desviar os olhos de mim, voltou a se sentar, tomando o licor de um gole.
Não sei por quanto tempo permaneci em silêncio contemplando meu companheiro. Não foi o fato de ter falado em inglês, nem tampouco o porre monumental que me gelou o sangue. Nosso anfitrião e o "guia" estavam tão bêbados que não podiam distinguir som nenhum. Quanto aos serviçais, devem ter tomado a língua estranha como aquilo que realmente era: mais uma língua própria de estrangeiros, vindos sabe-se lá de onde.
Foi o conteúdo do brinde que me deixou confuso. Como eu não tinha percebido? Era essa a razão da frieza anormal de Eliseu nas últimas horas de marcha? Estava apaixonado? Por isso tinha bebido?
Deus! O que estava acontecendo?
E a intuição desenhou um rosto...
Recusei-me a aceitar. Esse cansaço me fazia ver coisas que não existiam.
Ou melhor, que não deviam existir. Não... Isso era inviável, absurdo e insano.
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E, subitamente, compreendi que estava dizendo isso para mim mesmo.
A luta interior terminou ali. Pedi ajuda a um dos criados e carregamos meu irmão até o quarto. Nakebos e Belsa, adormecidos, não viram nada.
E este que escreve esperou o dia amanhecer. Foi uma noite interminável e dolorosa. Muito dolorosa...
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25 DE SETEMBRO, TERÇA-FEIRA
Partimos ao amanhecer.
Tive de recorrer à farmácia de campanha para despertar meu companheiro. Os criados, acostumados às tremendas ressacas provocadas pelo legmi, colaboraram de forma eficaz e discreta. A uma generosa dose de ibuprofeno, um analgésico de ação rápida, acrescentei um remédio oferecido por um dos velhos escravos: casca de salgueiro. Eliseu devia mastigá-la para liberar uma forma natural de silicato. Esse calmante orgânico foi providencial.
Não precisamos nos desculpar com Nakebos pela saída precipitada de sua casa. Assim como o "guia" persa, ele dormia um sono pesado que se prolongaria por muitas horas. Os servos se comprometeram a transmitir nossas saudações e nosso agradecimento ao capitão e al-qdid da prisão do cobre.
Minha única obsessão, naquele momento, era sair daquele lugar e
interrogar o engenheiro. A missão não podia correr nenhum risco...
E, como tinha planejado com Belsa, tomei a direção do "vau das Colunas". Era ali que, supostamente, Yehohanan, o Batista, fazia sua pregação e batizava. Ali talvez se encontrasse também o querido e saudoso Jesus de Nazaré...
Eliseu, mudo e pálido, me seguiu cambaleante. Não protestou. E supus que o silêncio fosse conseqüência do lógico mal-estar geral provocado pela bebida. Mas estava enganado...
O caminho para o vau estava bem próximo. As orientações dos criados de Nakebos foram precisas: o "vidente" (era assim que chamavam
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os profetas e os iluminados naquele tempo) acampava às margens do rio Yaboq, ao norte de Damiya.
O Destino foi benevolente.
A trezentos metros do povoado, um pequeno atalho de terra vermelha nos colocou à frente do referido Yaboq, na margem esquerda. A modesta vereda, sempre entre hortos, aproximava-se timidamente das águas transparentes do afluente do Jordão, e depois fugia para os bosques que tínhamos avistado da fortaleza de El Makhruq.
As referências coincidiam. O rio, de apenas vinte metros de largura, sofria uma grande dilatação naquela paragem, formando uma espécie de "lago" de águas pouco profundas, facilmente transponíveis a pé. No canal, destacavam-se quatro bases de pedra, muito deterioradas pelo tempo e pela força da corrente. Eram os restos de outros tantos
pilares, destinados em outras épocas à sustentação das abóbadas de uma ponte. Talvez nunca tenha sido concluída. Mas mesmo assim elas davam nome ao lugar: o "vau das Colunas". Supus que antigamente o rio fosse mais caudaloso, o que recomendava a construção de uma ponte de pedra.
Na outra orla, na margem direita, a pouco mais de cinqüenta metros de onde nos encontrávamos, erguia-se um muro de acácias do Karu, em plena floração, alegrando os verdes e azuis com milhões de flores amarelas e esféricas.
O resto eram colónias de bambus, juncos e Cyperus, os sarmentosos bejucos, tão úteis na fabricação de móveis e cestos. Nas ribeiras, aqui e ali, acompanhando a linha da água, despertavam também para um novo e radiante dia alguns tamariscos do Nilo, altos e desgrenhados, com as flores rosas formando cachos estreitos. Alguns, mais descuidados, tocavam a água, com o risco de serem arrastados.
Observei com atenção. O silêncio era quase completo, perturbado apenas pelo rumor da corrente entre as "Colunas" e pelo confuso trinar das aves nos bosques e bambuzais.
Constatei que, de fato, havia um grupo de umas duzentas pessoas acampadas junto ao Yaboq. Ocupavam boa parte de uma grande "praia" formada por um terreno pedregoso (milhares e milhares de pequenos sei
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xos arredondados de um branco espantoso). Estavam dormindo, era compreensível. Não fazia meia hora do orto solar.
De um lado e de outro da estradinha de terra vermelha erguiam-se algumas tendas de pele de cabra, mas não muitas. As mulheres, sempre madrugadeiras, atiçavam três ou quatro fogueiras, preparando o desjejum e obrigando os exércitos de
mosquitos a procurar territórios sem fumaça. Vários homens, em roupas de baixo, tinham entrado no "lago" para uma duvidosa lavagem do corpo. Pegavam a água com as mãos e jogavam nos cabelos, peito, braços e costas. Rapidamente voltavam à orla, gesticulando e reclamando aos gritos que as águas estavam "frias". Frias? A temperatura do Yaboq nessa época nunca era inferior a 25 ou 30 graus... Um pouco adiante, água abaixo, outros dois indivíduos, também em saq, se ocupavam da limpeza de panelas e pratos.
Por onde começar? Jesus estaria entre os que descansavam sobre os pedregulhos? Podia estar também em alguma das tendas...
À primeira vista, não consegui identificá-lo. Tive de me aproximar e perguntar. Talvez a chave estivesse em Yehohanan...
Eliseu, distante, tinha se sentado à beira do caminho. Continuava pálido e apático. Deixei-o cuidando do odre e das mochilas e falei da minha intenção de explorar o acampamento. Ele não respondeu. Continuou de cabeça baixa, amargando a ressaca. Foi o que imaginei. E, decidido, fui em direção ao grupo.
Yehohanan? Nem sabia que aspecto ele tinha. Não seria melhor perguntar por ele? Aquela gente, sem dúvida, estava ali por causa do Batista...
As reflexões foram subitamente interrompidas. Os bambus e os bejucos que cresciam bem junto à orla o encobriam.
Parei, indeciso.
Junto a uma enorme árvore, escondido pelo bambuzal, como eu estava dizendo, descobri um segundo grupo de indivíduos. Eles também dormiam, alojados ao redor de um tronco grosso e original que, de início, não consegui identificar. As nodosidades eram enormes. Parecia ser o "ancião" do lugar. Algum tempo depois, ao retornar à nave, Papai Noel deu a informação exata: estava diante de uma sófora
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pendente de vinte metros de altura, copa arredondada e centenas de anos de antigüidade1. Lembrou-me um salgueiro-choráo, com a madeira "epilética" e atormentada.
Eu não sabia o que fazer. Dois homens que apareciam debaixo da sófora acabavam de se sentar e se espreguiçavam sem o menor constrangimento.
A árvore em questão estava a pouca distância do atalho e paralela ao rio, sobre uma ligeira elevação do terreno. No início estranhei. Por que aquele segundo grupo estava tão afastado do primeiro? A distância entre ambos era de uma centena de metros.
Optei pelos da sófora. Estavam mais perto.
Eles me viram chegando. De súbito, quando eu estava a trinta passos deles, um se levantou apressadamente. O segundo não tardou a imitálo. Os olhares pareciam fixos neste explorador. Nenhum era o Mestre. E achei que ele poderia estar entre os que dormiam ao pé da árvore.
Quando reparei nos rostos dos que me observavam tão atentamente, "algo" me advertiu. Os olhares não me agradaram: eram sombrios, pouco amigáveis. Mesmo assim segui em frente.
E a uns dez metros da árvore, os indivíduos deram dois passos em direção a este que escreve. Os rostos, queimados de sol, apresentavam barbas longas e negras muito descuidadas. Eu diria que passavam muito tempo ao ar livre.
Quando diminui o passo foi que notei os "frutos" que pendiam da sófora. Acabei parando. E os homens conversaram entre si...
Eram vasilhas. Ou melhor, pedaços de vasilhas. Tinham sido amarradas e suspensas nos galhos retorcidos da árvore. E ficavam balançando.
1 Atualmente, essa árvore estranha é conhecida como Sophora japonica. É muito possível que seja de origem árabe. Chegou à Europa na segunda metade do século XVIII (jardins de Kew). Na nossa viagem ao rio Jordão, conhecemos a variedade pêndula. Subindo o rio, na região do Enon, vimos outros exemplares de sófora, também com nodosidades impressionantes. As flores e frutos eram utilizados como corante amarelo. (N. do M.)
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O que significava aquilo?
Fiz um esforço de memória. Foi inútil. No meu treinamento, nunca ouvi falar de nada parecido entre os judeus. Os pagãos é que tinham o costume de pendurar ossos e vísceras de cabras nas árvores que consideravam sagradas. A sabina alvar, no caminho para o Hermon, foi um exemplo. Um triste exemplo. Aquilo, porém...
Creio ter lido algo em um dos pedaços de argila vermelha: "Ardo em louvor..."
Não consegui distinguir o resto da inscrição. E, curioso e inocente, segui andando em direção ao grupo. A partir daí, tudo ocorreu tão rápido que levei algum tempo para esclarecer o ocorrido...
Os dois homens, ao ver que eu prosseguia, sacaram as espadas que escondiam nas cintas e foram se aproximando deste desconcertado explorador. Parei de novo, naturalmente, buscando em vão encontrar uma explicação. O que estava acontecendo?
E os indivíduos, ameaçadores, continuavam avançando, ao mesmo tempo
em que gritavam:
- Fora do guilgaft... Fora, maldito pagão!
Guilgab Essa palavra significa "círculo". Mas, que círculo? E como sabiam que eu era pagão?
Recuei. Não conseguia entender...
Porém, como caminhasse de costas, tropecei em uma pedra e caí no pasto. Não fui rápido nem certeiro. Na queda, a "vara de Moisés" rolou entre meus dedos deixando-me indefeso. E a ponta fria e afiada de um dos gladius encostou na minha garganta. A "pele de serpente" não contava. A proteção, dessa vez, foi estabelecida a partir das clavículas...
Se aquele energúmeno enfiasse o ferro no meu pescoço, estava perdido. E nesses instantes - quase eternos -, seus olhos, seu olhar, eram a única coisa que me consolavam. Ela, de novo...
Mas o Destino não tinha marcado a minha hora. Não ali, nem naquele tempo.
Uma voz ecoou no silêncio. Por um momento pensei que fosse Eliseu. Talvez estivesse assistindo à cena. Não estava muito longe dali. Mas
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não. A voz doce e suave náo era de meu companheiro. E a ouvi pela segunda vez, exigindo calma. Vinha da sófora.
O sujeito da espada obedeceu. Retirou o gladius e ordenou que eu me levantasse. Ao me recompor, observei que os outros homens, cerca de vinte, que dormiam debaixo da árvore, estavam todos de pé, alertados pelos gritos de seus
companheiros. Náo vi nenhum conhecido.
Um deles - o da voz salvadora - destacou-se do grupo e foi se reunir com os indivíduos armados. Olhou-me de cima a baixo, e, abaixando-se, recolheu o cajado e me entregou.
- Náo viste o guilgal?
O tom afável tranqüilizou-me um pouco. Olhei ao meu redor e, entre as ervas, descobri um círculo de pedras. Eram seixos arredondados, provavelmente da "praia" que via dali, na orla do Yaboq. Tinha sido traçado em redor da sófora, com um raio de oito a dez metros. Para dizer a verdade, preocupado em encontrar o Galileu, não havia reparado na brancura das pedras, meio escondidas pelas moitas.
- Sinto muito - me desculpei, sem saber qual tinha sido o meu erro. - Náo tinha visto...
O homem compreendeu e aceitou as desculpas. Buscando uma saída para a situação embaraçosa, sorriu, mostrando uma dentadura calamitosa, com as gengivas avermelhadas e sangrando e meia dúzia de dentes tortos e separados uns dos outros. O homenzinho - náo creio que tivesse mais de l ,50 metro de altura - padecia de uma grave periodontite (piorreia). A doença estava destruindo o osso que dá sustentação aos dentes, assim como os ligamentos, o que provocava a inevitável mobilidade e a queda deles. Provavelmente, passara por uma primeira fase (gengivite) e, por falta de um tratamento adequado, acabou arruinando a boca. Em breve, caso a infecção bacteriana náo fosse combatida, a destruição do tecido ósseo seria total. Como já informei oportunamente, aquela era uma das doenças mais comuns entre os varões. Ela atingia também mulheres e crianças, mas em menor proporção.
- Estás à procura de alguém?
Desta vez fui eu quem explorou a figura miúda e esquelética de meu interlocutor:
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j.j. BENÍTEZ
Quem era ele? Ao que parecia, tinha uma certa ascendência sobre o grupo que estava alojado debaixo da sófora. Os homens dos gladius, as temidas espadas de fio duplo, permaneciam a seu lado, atentos às suas palavras e, naturalmente, aos meus movimentos.
Dava a impressão de ser mais velho do que realmente era. Talvez tivesse 30 anos. A pele, enrugada pelo sol, e a catástrofe dentária, davamlhe um aspecto de pessoa idosa. O corpo, com as costelas à vista, coberto com um simples fraldelim, não o favorecia. Seu aspecto parecia táo frágil que o menor sopro de vento o deixaria em grande dificuldade. Contudo, aquela imagem delicada não era real. O "homenzinho" era um ari, um leão, na linguagem dos judeus.
Demorei um pouco para responder. Deveria lhe dizer que estava procurando Jesus de Nazaré? Tinha certeza de que esse nome não lhe diria nada.
E o homenzinho, pacientemente, sem abandonar o horrendo sorriso, ficou esperando uma resposta.
- Não sei... - gaguejei.
Minha segunda falha irritou os que me vigiavam. O do fraldelim pediu calma de novo...
- Não convém se precipitar, irmãos... Não tem por que ser um espião...
Irmãos? Um espião? Será que me tomavam por um informante?
E tratei logo de me identificar como um grego que andava pelo mundo em
busca da verdade. Eliseu, também de Tessalônica, era meu acompanhante naquela aventura.
Náo sei se acreditou em mim. Dirigiu o olhar para o lugar indicado, onde se avistava meu companheiro e, coçando a cabeleira negra embaraçada e suja, exclamou quase para si mesmo:
- Buscas a verdade?... Só ele pode satisfazer-te. E apontou para os ramos da árvore.
Náo consegui interpretar suas palavras. A quem se referia? Falava de Deus? Por que apontou para as vasilhas penduradas nos galhos? Ou não foi isso?
- Busco o que batiza com água - me adiantei, suspeitando que me
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encontrava diante do anunciador. - Disseram-me que é um vidente... és tu?
O homenzinho continuou se coçando com fúria, usando as duas mãos. Evidentemente, os piolhos o consumiam. E permaneceu assim por algum tempo, indiferente à pergunta. Por fim, examinando as unhas negras e longas, entreteve-se estripando os pediculus, sorrindo aliviado. Finalmente, olhando-me nos olhos respondeu:
- O "Anunciador", como tu o chamas, é mais que um vidente. Terá de esperar o toque do sofar, como todos...
E, dando meia-volta, foi para junto da base da árvore. Os armados permaneceram do outro lado do guilgal, imóveis como estátuas e, suponho, esperando minha reaçáo.
Aquele não era o meu dia. Também não compreendi o significado das últimas palavras. Eu sabia o que era um sofar. Era um chifre de carneiro utilizado normalmente
para atrair a atenção das pessoas nas solenidades, no início e no final do sábado, e para anunciar outras atividades religiosas. Mas o que tinha a ver com o Batista? E o mais importante: me encontrava na presença de Yehohanan? Aquele homenzinho era o parente do Mestre?
Uma brisa leve balançou os pedaços de vasilhas penduradas na enorme árvore. Então consegui ler algumas das inscrições pintadas no barro: "Ardo em louvor de Yavé", "Yavé, minha rocha e meu baluarte", "Yavé, meu escudo".
Eram manifestações de fervor religioso. Isso saltava à vista, mas por que suspensas nos ramos?
E, tentando não criar mais conflitos, afastei-me do "círculo de pedras" e retomei a caminhada em direção ao objetivo original: o acampamento instalado na orla dos pedregulhos brancos. Era a última chance. Se o Mestre não estivesse entre os acampados, prosseguiríamos até a Cidade Santa. Em um dia estaríamos batendo às portas de Jerusalém. Antes faríamos uma breve parada em Betânia, na fazenda da família de Lázaro. Jesus era amigo deles. Talvez soubessem de algo...
Quanta ingenuidade! Os planos do Destino eram muito diferentes...
Os cálculos estavam corretos. Na "praia", junto à corrente suave do Yaboq, dormiam ou faziam o desjejum umas duzentas pessoas. Estavam em grupos. Imaginei que fossem de amigos ou de membros de uma mes
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ma família. Havia crianças e velhos. A julgar pelas túnicas simples, pelos turbantes ou pelos saq ou encachos de cores vivas, eram todos felah ou camponeses. Gente humilde e pouco culta.
Fui passando devagar entre as tendas e as fogueiras, atento, sobretudo aos que repousavam.
Nada. O Mestre continuava sem aparecer...
Algumas mulheres, gentilmente, me ofereceram leite e pão. Agradeci. Conversando com um e outro, suspeitei que vinham da Judéia, pelo forte acento aramaico; provavelmente da região do Hebron. Outros eram do vale e do leste do Jordão. A maioria estava ali porque tinha ouvido falar do vidente Yehohanan e, para o meu espanto, desejava apenas que os curasse ou simplesmente que olhasse para eles. Diziam que com isso sua sorte mudaria. Foi então, a partir dessas revelações, que me dei conta de um fato que quase passou despercebido. No grupo, observei alguns aleijados - especialmente -, coxos e crianças contaminadas pelo vírus da pólio. Comecei a compreender. Aquela gente na verdade não procurava o consolo espiritual ou a palavra do Batista; isso estava muito longe para o seu baixo grau de discernimento. O que os movia era a possibilidade de um milagre. Algo inerente à natureza de um profeta ou vidente, segundo a mentalidade daquele tempo. Não sei por que razão, esses eram os rumores que corriam em torno de figura de João ou Yehohanan.
Mas minha obsessão era outra. E prossegui a busca, atrevendo-me, inclusive, a penetrar na obscuridade das tendas de peles. Nada. O único resultado foram algumas maldições e várias sandálias atiradas pelos indivíduos que acabei despertando com minhas perguntas inoportunas. E durante alguns minutos fiquei sentado junto a uma das fogueiras, tentando entender nossa situação.
Será que tínhamos errado de novo? Aparentemente, o Galileu não estava ali. O que podíamos ou o que devíamos fazer? Eliseu não estava com um bom aspecto. Precisaria de algumas horas para se recuperar da bebedeira. Talvez minhas perguntas não fossem claras. Eu ia procurar de novo. Reviraria o acampamento mais uma vez. E depois,
se o Filho do Homem não aparecesse mesmo assim, trataria de arrastar o engenheiro até Jerico.
- 215
E, absorvido nessas elucubrações, assisti a chegada à "praia" de outro grupo, não menos importante no conjunto dos acontecimentos que
estavam por ocorrer...
Eram vendedores. Tinham sua "base de operações" em Damiya. De lá, todas as manhas, dirigiam-se ao acampamento do Yaboq. Vendedores e alguma coisa mais... Começaram a se misturar entre os cerca de duzentos acampados, oferecendo mantimentos, pão recém-saído do forno, água, grandes folhas de palma para proteger-se do sol, "loções" contra os mosquitos, "leques" trançados com esparto para as horas mais quentes do dia, quando soprasse o ardente jamsín ou vento do leste, colírios fabricados com antimônio ("refrescantes e milagrosos contra a violenta radiação do vale"), espinhas de acácia para a limpeza dos dentes, e qualquer outro serviço de que a freguesia pudesse necessitar. Era muito simples. Como eu dizia, o povoado encontrava-se a pouco mais de trezentos metros. Tudo dependia do preço ou da urgência.
Era elementar. A presença de João Batista no "vau das Colunas" tinha se tornado um negócio interessante. Todos, em Damiya e arredores, ofereciam algo e procuravam tirar partido dessa situação. Qualquer coisa servia...
Um dos vendedores passou bem perto de mim, apregoando o que chamavam de "água de Dekarim", um suco de raízes de palmeira muito recomendado para combater "as manhãs tristes" (especialmente depois de ter-se embriagado com legmí), e para os freqüentes distúrbios intestinais causados pelas duvidosas águas dos poços e mananciais
da bacia. Pareceume interessante e pedi uma cabaça. Cairia bem para Eliseu. Foi então que, ao me servir, descobri algo que me deixou desconcertado. O homem caminhava com a ajuda de uma perna de pau. Faltava-lhe o pé esquerdo ou, pelo menos, era o que parecia.
Maldito impostor! Observando melhor, percebi o truque. O pé, supostamente mutilado, estava escondido dentro da prótese. Um dos pedaços de pano sujo enrolado na dupla armação que prendia a madeira à perna estava solto, e revelava a fraude. O indivíduo, muito hábil, seguiu a direção do meu olhar e acabou percebendo a falha. Tratou logo de amarrar o pano e, sorrindo maliciosamente, me deu uma piscada de cumplicidade.
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J.}. BENÍTEZ
E não quis me cobrar nada. Estava claro: água "milagrosa" em troca do silêncio. Aceitei. Deduzi que se tratava de um vigarista, um dos muitos que freqüentavam as aglomerações ou as portas da cidade provocando a compaixão do próximo. Mas não era só isso...
Esqueci o rufião e fiz uma última inspeção entre as pessoas ali reunidas. No fundo do coração, algo me dizia que a busca seria tão inútil como as anteriores. Mas não desisti. Jesus de Nazaré tinha de estar em algum lugar...
Dois vendedores dirigiram-se até margem do rio e descarregaram meia dúzia de macas, enfileirando-as cuidadosamente. Os varais foram colocados a um metro da borda e as superfícies de couro escovadas e limpas com todo rigor. E me perguntei: quem poderia necessitar das "camas"? Estavam vendendo ou alugando?
Por fim, acabei me rendendo.
O Mestre não estava no vau. Naturalmente, ninguém soube me dizer nada. Ninguém sabia de quem eu estava falando. Decepcionado, fui passando entre os grupos para retornar ao ponto onde deixara o engenheiro. Não conseguia entender o que se passava. Como era possível que não o encontrássemos? Eliseu e eu tínhamos caminhado sem descanso. O atalho do Jordão, por onde seguíamos, era a rota "habitual" para a Cidade Santa. Onde estava o erro? Poderia ter pego outro caminho? Talvez pela Samaria?
E eis que...
Não tive tempo de me atormentar com mais dúvidas. Um som áspero e cavernoso atraiu meu olhar para a água. Os homens do guilgal estavam na "praia" agora. Um deles soprava um chifre de carneiro, o sofar. E lembrei das palavras do homenzinho quando lhe perguntei sobre Yehohanan: "... Terá de esperar o toque do sofar, como todos".
O grupo foi entrando na água em direção à pilastra mais próxima. Só o sujeito do chifre permanecia na "praia", chamando a atenção de todos com um segundo toque prolongado. Alertas, as pessoas fizeram silêncio. Algumas ficaram de pé e outras, uma minoria, foram até o ponto onde estava o tocador de sofar. Eu continuei imóvel, perto das macas.
A dez metros da orla, junto à tal pilastra (o primeiro pilar da antiga ponte), os homens que estavam alojados na sófora pararam. Rodearam a base
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de pedra e, com a água até a virilha, se colocaram de frente para as pessoas que observavam da "praia". Eu contei. Junto com o do chifre de carneiro e o homenzinho, eram dezoito. Eles permaneceram ali, firmes e silenciosos.
Ato contínuo, diante da expectativa geral, o homem dos piolhos deu um pulo e se empoleirou na pilastra. Um dos acompanhantes estendeu-lhe algo. Era um pedaço de vasilha. Eu diria que era um dos "óstracons" que balouçavam sob a copa da árvore. O homenzinho examinou a inscrição em aramaico na argila e, depois de pigarrear, ergueu os braços, pronto para se dirigir aos acampados.
Uma estranha sensação - incómoda, eu diria - tomou conta deste que escreve e turvou-me os pensamentos. Será que eu estava diante de João Batista? Era esse o homem selvagem a que se refere Flavio Josefo? Para dizer a verdade, as descrições físicas que consegui encontrar durante nosso treinamento - especialmente as feitas pelos evangelistas e por esse escritor judeuromanizado - não diziam grande coisa. A única pista confiável (?) era a da vestimenta: "... peles de animais cobrindo-lhe o corpo". Aquele homem não estava vestido de peles. Envergava um fraldelim de pano...
Naturalmente, em vista dos inúmeros e graves erros cometidos pelos mal chamados "escritores sagrados", a informação fornecida a respeito do Anunciador também poderia estar equivocada. Até esse momento, muito pouco do que observamos sobre a vida e o pensamento de Jesus se ajustava ao que estava escrito nos Evangelhos. Não seria nada estranho.
E o sentimento de decepção diante da fracassada busca pelo Mestre foi deixado de lado temporariamente. Se aquele era Yehohanan, a caminhada ao longo do Jordão tinha sido inútil.
- Yavé é minha rocha e meu baluarte!... Yavé é meu libertador e a muralha em que me amparo, meu escudo e a força de minha salvação!
O pregador começou bem. A voz, fraca e um pouco afeminada, chegava até o grupo com dificuldade, mas chegava. Às vezes dava uma olhada no pedaço de vasilha tentando
se lembrar. O "óstracon", evidentemente, servia de referência ou para encher lingüiça.
E em tom monocórdio e tedioso - como quem recita de memó
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ria - foi enumerando dezenas de louvores a Yavé, o Deus dos judeus.
- Cidadela, refúgio, salvador de meus inimigos, libertador das massas, lâmpada que ilumina minhas trevas, o Deus que me enche de força, o caminho...
Não demorei a reconhecer o texto. O homenzinho recitava uma das passagens do Livro Segundo de Samuel.
E o discurso se prolongou, o que acabou cansando os ouvintes. O homem estava entregue e dava o melhor de si, mas não era suficiente. E as pessoas, saturadas diante de tanto elogio, voltaram aos seus afazeres. Os vendedores aproveitaram para continuar vagando entre os acampados, oferecendo aos gritos suas mercadorias. O pregador, depois de vacilar alguns instantes, tentou recuperar o controle, elevando a voz e recriminando o desinteresse dos que estavam ali reunidos...
- Yavé me recompensa conforme minha justiça! E quanto a vós?... Mereceis justiça? Ele me paga conforme a pureza de minhas mãos!... E vós? Estais limpos?
Um dos judeus, mordaz e desbocado, respondeu às insinuações:
- Nós nos lavamos!... E tu, piolhento?
O desplante foi coroado por uma gargalhada geral e por outros impropérios menos caridosos. Foi um desastre. Os homens que rodeavam o pregador responderam aos insultos, ameaçando as pessoas com os punhos serrados. E alguns dos acampados,
furiosos, entraram na água, se armaram de seixos e enfrentaram o grupo. Eu só tive tempo de sair para o lado... O sujeito do sofar se meteu no rio e fugiu em meio a uma chuva de pedras. Seus colegas, resgatando o atónito pregador do alto do pilar, também desapareceram rio abaixo, rumo à sófora.
Em pouco tempo, a confusão acabou. As pessoas se acalmaram, e os dezoito permaneceram na água, à distância, feito uma muralha, e, a julgar pelos gestos, discutiam o que fazer. Finalmente, convencidos de que não era o momento para retomar o sermão, deram meia-volta e seguiram em direção à orla onde se perfilava a árvore das vasilhas.
Eu também estava perplexo. Era esse o Anunciador? Aquele homenzinho era a mítica figura do Batista? E da perplexidade passei a uma
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raiva cega e progressiva. Por que fomos nos desviar do objetivo fundamental? Para ser testemunhos de um fanático?
Não fui o único a passar raiva naquela manhã ensolarada junto ao "vau das Colunas". Os encarregados das macas também manifestaram sua ira, pisoteando os varais entre juramentos. Suas razões, no entanto, como eu teria oportunidade de comprovar algum tempo depois, eram diferentes das minhas...
E renegando minha má sorte, segui em direção à estradinha de terra vermelha, disposto a despertar meu companheiro. Iríamos embora daquele lugar o quanto antes possível. Já tinha visto o suficiente. Com Belsa ou sem Belsa, retomaríamos a caminhada. Jesus, sim, valia a pena...
Pobre idiota! Retomar o caminho para Jerusalém? Quando aprenderei a não traçar planos para além de trinta segundos?
Tudo veio abaixo...
Ao chegar ao local onde deixara meu irmão, só encontrei os sacos de viagem e o odre com a água. Eliseu desaparecera.
Achei estranho. O estado físico do engenheiro não era o mais adequado para empreender uma caminhada. Além disso, tínhamos combinado que ele me esperaria ali... ele poderia ter voltado a Damiya? Por quê?
Olhei à minha volta. À frente, no círculo de pedras, ao pé da sófora, o grupo capitaneado pelo pregador continuava envolvido na mesma discussão de antes. Rio acima, acampados e vendedores continuavam como eu os tinha deixado, entregues a seus afazeres. Será que eu passei por ele? Não, eu o teria visto, sem dúvida.
De súbito me pareceu ouvir um lamento. Vinha de uma das tramas de juncos que se erguiam muito perto dali, na beira do caminho. Corri até a vegetação e meu coração deu um pulo. Eliseu jazia sobre a erva feito um novelo. Tremia como uma vara. Tremia e gemia. O que tinha acontecido? Aquela tremedeira não era típica de uma ressaca. Ao lado, no pasto, percebi uma descarga diarréica. Desta vez, eu é que fiquei tremendo.
Comecei a entender o porquê do desaparecimento de meu companheiro. Estava apertado e procurou um lugar para defecar, escondendo-se
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atrás da barreira de juncos. Tratei de erguê-lo. Meus Deus! Estava ardendo em febre. Olhou para mim e com um fio de voz me disse:
- Sinto muito...
Creio que não respondi. Estava tão desconcertado que demorei alguns segundos para reagir. Não podia ser... Agora não.
E meus temores começaram a se confirmar. O pulso estava acelerado. Examinei as fezes. Eram quase líquidas e coleriformes, com o aspecto da água do arroz, e com um cheiro repugnante.
"Não é possível - disse a mim mesmo -, isso não..."
O homem continuava tremendo e gemendo, pálido e, ao mesmo tempo, consumido pela febre. Eu precisava fazer alguma coisa... Tomei-o em meus braços e o levei de volta até a clareira onde havíamos parado. Foi só deitá-lo na grama e um outro jorro diarréico me deixou assustado. Desta vez tinha sangue... Apalpei sua barriga e ele reagiu com novos gemidos. O pulso continuava acelerando. Depois vieram as náuseas e os vómitos...
O engenheiro, fraco e prostrado, respondeu como pôde às minhas perguntas. Sua cabeça parecia que ia estourar. Também sentia uma forte dor de barriga. Dava para ouvir os burburinhos ou ruídos produzidos pelos líquidos e gases.
Fui pegar as pequenas ampolas de barro que tínhamos na farmácia de campanha. Remexi em tudo, sem conseguir encontrar o remédio adequado. Mas como saber a origem do problema? A etiologia podia ser bacteriana, virai, parasitária ou tóxica. Não tinha nem idéia... E decidi esperar. Precisava estudar os sintomas com mais calma e adotar o medicamento certo. Se fosse uma disenteria bacilar - que Deus nos livrasse disso! -, o tratamento tinha de ser mais severo. Esse tipo de infecção intestinal era mortal naquele tempo. Consolei-me dizendo a mim mesmo que devia ser um "problema menor". Talvez tivesse contraído uma gastrenterite. Talvez uma febre tifóide ou paratifóide? Ou quem sabe uma salmonelose? Santo Deus! Qual delas? No banco de dados do Papai Noel estavam registrados mais de mil e quatrocentos tipos. Será
que tinha sido contagiado pela typhi ou pela enteritidesi Ou era uma infestação da Salmonella choleraesuis? Só havia uma forma de averiguar, mas, infelizmente, não estava ao meu
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alcance. Pelo menos nesse momento. O "berço" encontrava-se a dois dias de viagem. Lá eu poderia fazer as análises necessárias e administrar o tratamento adequado ao meu companheiro. Deixei a idéia de lado. Estávamos naquele lugar e eu teria de me arranjar com os meios disponíveis...
A primeira providência era acalmá-lo. Voltei e, como as dores e o malestar que o haviam acometido persistissem, procedi a uma nova e exaustiva exploração, enquanto conversava com ele. Tudo continuava do mesmo jeito. A febre, inclusive, continuava aumentando. Pediu água e, quando lhe dei, notei que tinha uma certa dificuldade de engolir. A respiração também parecia alterada. Os temores aumentaram...
Obriguei-o a responder a várias perguntas - suponho que absurdas -, e verifiquei aliviado que a coordenação de idéias e a dicção estavam boas. A visão parecia correta. Quanto à debilidade muscular, achei que estava dentro dos limites esperados, dadas as circunstâncias.
Era evidente que Eliseu estava sofrendo de uma síndrome infecciosa patológica e, provavelmente, fora contaminado pela água ou pelos alimentos. Também não podia descartar a infestação pelo contato com pessoas, objetos ou moscas. O vale do Jordão era um viveiro de insetos. Qualquer doente ou portador poderia ter transmitido os germes ao manipular ou cozinhar os alimentos. Onde aconteceu? Qual foi a via? Desisti. Poderia ter acontecido em qualquer lugar... Além do mais, isso não tinha muita importância
nesse momento crítico. O que interessava era deter e curar a infecção.
O engenheiro, queimando de febre, pediu mais água. O odre, que havíamos enchido essa manhã na casa de Nakebos, logo estaria vazio. A perigosa desidratação nos rondava. Eu tinha de agir com rapidez e cautela. As bactérias, ao irritar o trato intestinal, provocavam a perda de líquidos. Felizmente, os vômitos não eram tão freqüentes como as diarreias. Ainda assim, a eliminação de eletrólitos (especialmente potássio, sódio e glicose) era considerável. Eu tinha de dar um jeito para que Eliseu se reidratasse. Ele precisava de sal, de algum produto açucarado e de todo líquido possível. O sumo de frutas seria o ideal. Se a desidratação progredisse e vencesse, meu irmão poderia sofrer uma insuficiência renal oligúrica ou um colapso vascular. A perda de líquidos despertava ainda o fantasma da acidose, com a diminui
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cão das reservas alcalinas do sangue. Por sorte, Eliseu não era diabético. Se não uma acidose extrema poderia levá-lo a um coma...
Mas por que eu me atormentava dessa maneira? Agora posso confessar: eu estava com medo... E tudo o mais - Jesus de Nazaré, a missão
- ficou em segundo plano. Se meu irmão morresse... Não, isso não podia acontecer. Eu não ia permitir.
A primeira coisa era instalar Eliseu em um lugar adequado para que ele pudesse repousar e receber o tratamento mais eficaz. Pensei em Damiya, na casa do alcaide da prisão do cobre. Achei que ele não faria objeção. E Belsa poderia me ajudar. Era só contratar os serviços dos responsáveis pelas macas e transportá-lo até o povoado. Depois veríamos...
E foi o que fiz. Ou melhor, foi o que planejei.
Quando corri até a "praia" e pedi para alugar uma das macas a que já me referi, os comerciantes perguntaram qual era o destino. Pois o custo dependia da distância. Eu disse que era a casa de Nakebos e, automaticamente, todos os carregadores recusaram terminantemente. "Nakebos e sua gente, incluídos os servos, eram vítimas de uma maldição. Eles mereciam
- disseram. - Olho por olho..."
O homem de confiança de Antipas fora acometido de uma doença que praticamente o fulminou da noite para o dia. Ninguém queria pisar naquela casa. E, pelas informações recebidas na "praia", comecei a juntar as coisas. Os moradores daquela casa estavam manifestando os mesmo sintomas que Eliseu. A primeira dedução era inevitável: meu companheiro fora contaminado durante a estada na residência do alqaid, talvez na ceia. E lembrei da carne de crocodilo. Fui o único que não a provou. Tratava-se de uma salmonela? E possível que o niloticus, previamente infectado, não tivesse sido preparado com as devidas precauções. Quem sabe...
Não havia outro remédio a não ser ajustar-me às circunstâncias. Permaneceríamos no "vau". Pensei em comprar ou alugar uma tenda, como as dos acampados. Eliseu precisava com urgência de um mínimo de sombra e de proteção. Naquele momento já devia ser a tercia (nove da manhã). Em breve, o Yaboq viraria um forno.
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Eu disse aos vendedores que precisava de um abrigo, de água e de mantimentos, e eles, muitos astutos, começaram a brigar entre si pelo "negócio". Tive de acabar com a discussão. Eu mesmo escolhi dois deles e encomendei-lhes tudo o que precisava. Agradecidos, e quase beijando minhas sandálias,
desapareceram no caminho para Damiya levando um bom punhado de denários. Prometeram voltar
" J "
voando ...
A febre rondava os 40 graus. Procurei a duvidosa proteção de um dos bambuzais e fiquei esperando. Mais uma vez amaldiçoei minha sorte por não ter sequer um lenço para aliviar a queimação. Rasguei minha túnica e preparei uma compressa empapada na água do rio. Aquelas idas e vindas constantes à orla, para tentar refrescar a testa e as têmporas do engenheiro, não passaram despercebidas do grupo que continuava sob a sófora. Mais calmos, agora, eles se perguntavam o motivo de minha atitude estranha. Sinceramente, quase não reparei neles.
Eu estava obcecado com a respiração entrecortada. Não sei que idéias absurdas me vieram à cabeça naquele momento... E o medo, como eu disse, tomou conta de mim. Belisquei o dorso das mãos dele e constatei que a resistência das pregas estava aumentando. A maior tortura era a desidratação, que não parava. A água do odre diminuía assustadoramente. Pensei em me aproximar do guilgal e implorar que me dessem um pouco.
Logo Eliseu parou de suar. O organismo, em alerta, bloqueou os condutos, evitando assim novas perdas de água. Eu o fiz beber quase à força. E ele, semi-inconsciente, entrou em uma fase de delírio. O que eu podia fazer? Talvez se o submergisse no Yaboq, isso ajudasse a equilibrar em parte o excesso de temperatura.
- Sinto muito, major...
Eliseu começou a balbuciar, misturando inglês com o aramaico. Procurei tranqüilizá-lo. Impossível. Ele nem me ouvia.
- ...Eles me obrigaram... Sinto muito, major... Sei que é proibido, mas ela...
E ficou repetindo sem parar...
- Eles me obrigaram...
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Não prestei muita atenção às suas manifestações. Sabia que estava sob o efeito da febre. Contudo, elas ficaram marcadas na minha memória. A quem ele se referia? Quem o obrigou? Do que estava falando? Demoraria algum tempo para que eu entendesse o significado daquelas palavras supostamente absurdas...
Mais de uma vez, parei no meio da estrada de terra vermelha, tentando avistar os indivíduos que eu encarregara das compras. Por pouco não fui até o povoado para obrigá-los a voltar aos pontapés... "Calma - repetia para mim mesmo, tentando controlar os nervos. Eles já vão chegar. Não devo abandoná-lo agora." Mas não foi o que aconteceu. O tempo passou e os pilantras não deram sinal de vida.
Eu não podia esperar nem mais um minuto. Primeiro lhe daria um antibiótico e um analgésico. Depois arriscaria. Minha vontade era ir a Damiya e estrangular aqueles safados... Faria isso com minhas próprias mãos. E fui ficando cego de cólera. Sim, aqueles miseráveis...
Fiquei em dúvida. Será que eu deveria optar por uma combinação de sulfato triplo e estreptomicina ou pelo cloranfenicol. Resolvi arriscar. Supus que estivesse com alguma variável de salmonela e preparei o primeiro fármaco. A dose foi reforçada com extrato de bagas de mirtilo. Repetiria o tratamento no pôrdo-sol. Se ele não reagisse, eu apelaria para um remédio mais agressivo. Para a febre, preferi o salgueiro branco, com uma alta concentração de salicina. Na dissolução
do analgésico, acabou-se o pouco de água que ainda restava. E a irritação - como eu dizia - foi me invadindo...
Prossegui com minhas compressas úmidas, lutando contra a febre. Meu irmão, derrubado, continuava respirando com dificuldade. Os lábios começaram a rachar. O calor denso foi nos aplastando. Em breve, a temperatura no vale ultrapassaria os trinta graus Celsius... Agora eu precisava de água, líquidos, sal. Mas onde andavam aqueles malditos?
Fiquei de pé e, desesperado, decidi pela solução mais rápida: pedir água aos sujeitos da árvore das vasilhas. Se não conseguisse, tentaria com os acampados. E, mal pisei na estrada, uma voz me deteve. Era um dos vendedores a quem eu tinha encomendado as provisões e a tenda. Estava
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chegando do povoado. Vinha apressado com uma cântara na cabeça e uma cesta nas costas. Do segundo vendedor, nem sinal.
Não consegui ou não soube me conter. Admito que errei. Ao vêlo, antes que ele conseguisse dizer qualquer coisa, comecei a gritar com o pobre infeliz, acusando-o de tudo que se possa imaginar e um pouco mais. Foi uma explosão de cólera e, suponho, uma forma de descarregar a tensão. Não agi bem.
O homem ficou aterrorizado, e imaginando que dos gritos eu passaria aos atos, depositou a água e as frutas na estradinha e, dando meia-volta, fugiu correndo. E os gritos o perseguiam...
E ao me abaixar sobre a cântara, uma mão pousou no meu ombro esquerdo. Tive um sobressalto. Era o pregador. Atrás dele, mudos como sempre, vinham vários homens armados.
- Por que tanta violência?
O tom, embora severo, não era ameaçador. E voltou a me sorrir com aquela doçura distante. Foi providencial. A presença e o interesse daquele pequeno-grande homem me aliviaram, devolvendo-me ao estado do qual nunca deveria ter-me afastado.
Contei-lhe meus problemas e ele, em silêncio, aproximou-se de Eliseu e o examinou.
Foi instantâneo. A uma ordem do homenzinho, sua gente se mobilizou. Começaram a cortar os arundos, os bambus gigantes que cresciam à margem do Yaboq, e, num abrir e fechar de olhos, eles construíram habilmente uma "tenda" de duas águas. Transportamos o engenheiro para lá. O abrigo, embora rústico, seria eficaz contra o intenso calor tropical. E, pelo menos, meu companheiro e este que escreve dispúnhamos de um teto.
Curioso Destino... Os mesmos homens que antes me ameaçaram com seus glaáius, agora se desdobravam, com todo empenho e cheios de disposição, para cumprir os desejos de seu chefe. Eles simplesmente o veneravam...
O resto do dia foi menos agitado. Fiquei de prontidão, mantendo a medicação, as compressas molhadas e as doses seguidas de sumo de frutas com sal. O tratamento fez efeito e meu companheiro entrou em uma fase um pouco menos tensa. Porém, as diarreias continuavam, embora não tão
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J.]. BENÍTEZ
coleriformes. Se o diagnóstico não estivesse errado, a crise cederia em um ou dois dias. Oxalá...
E nesse meio-dia, graças aos bons ofícios do pregador, aquele vendedor que eu tinha posto para correr aceitou voltar para me ajudar. Pedi desculpas. E o homem, generosamente, disse que eu esquecesse o ocorrido. Chamavam-no de "Kesil". A palavra tinha um duplo sentido: bobo e Orion (a famosa constelação). Imaginei que a bondade natural daquele felah tinha levado seus conterrâneos a classificá-lo como "bobo". Ele não sabia de nada do outro vendedor, mas apostou por sua vida "que nunca mais o veríamos". E foi o que aconteceu. Com o desertor, também se foi uma parte do dinheiro. Não me importei. Nada disso me preocupava aquele momento: apenas a saúde de Eliseu.
E contratamos os serviços de Kesil a dois denários de prata por dia e a alimentação. Jamais conseguirei pagar minha dívida com ele..., e com o Destino.
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GAULANÍTIS
DECAPOLIS
Scythopdis l .Petla
Rio Jordão nos tempos de
Jesus, com dois dos mais
notáveis afluentes: Yarmuck e
Yaboq, na margem esquerda.
Maqfi|rte 1
VI
l
26 DE SETEMBRO, QUARTA-FEIRA
Foi outra noite longa e em vigília. A segunda.
Kesil, bom conhecedor das plantas da região, colaborou na manutenção do precário equilíbrio orgânico de meu irmão, com doses pontuais de canela e pimenta-do-reino diluídas em água fervente. Recomendou também um preparado de casca de olmo com mel. E as diarréias foram cedendo.
A lua cheia surgiu alaranjada entre os tamariscos do Nilo adormecidos. E me convidou a avaliar a situação. Kesil, do outro lado da pequena fogueira, cozinhava e cantarolava, sem tirar os olhos de Eliseu. No acampamento e na sófora só se distinguiam sombras.
Como eu disse, todo o resto ficara em segundo plano. Quanto a Jesus de Nazaré, eu não tinha alternativa. Meu irmão precisava de mim. A retomada, a viagem à Cidade Santa, teria de esperar. Mas e se ele piorasse? Respirei fundo. Eu precisava de tempo.
O que faria se o processo infeccioso não retrocedesse? A solução se apresentou com toda clareza: retornaríamos ao Ravid. Eu contrataria um carro e os homens necessários. Chegaria até o módulo. Não importava como. Se me visse forçado a revelar nosso segredo, se tivesse de tornar visível o "berço", muito bem... Eu faria isso. Meu companheiro tinha prioridade absoluta.
E se ele não se restabelecesse? Esse foi outro momento duro e penoso... Qual seria minha decisão? Ela também surgiu com muita nitidez em minha mente cansada. Mas desconsiderei a idéia. Isso não aconteceria...
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E desviei os pensamentos para os acampados e para aquele que, no momento, eu chamava de pregador. Não entendia o comportamento daquelas pessoas. Se elas estavam ali no "vau" para ouvir o Batista, por que não prestavam atenção a ele? Por que tanta polémica sobre o possível profeta e, inclusive, sobre o ansiado Messias? Se elas acorriam ao "lago" das "Colunas" para serem curadas ou, simplesmente, como me disseram, para que ele as visse e "mudasse sua sorte", por que o rechaçaram? Por que atacaram a pedradas o Yehohanan? A não ser que...
Não, isso não parecia lógico. O homenzinho tinha o comando do grupo armado. Ele se dirigira aos acampados. Controlava a situação, em maior ou menor medida. Só podia ser o Anunciador... E se não fosse, o que eles estavam fazendo ali, distantes dos seus lares e de seus trabalhos? Aquela gente era ingênua e ignorante, mas não era burra.
"Kése", a lua cheia, despregou-se do bosque. Tudo à nossa volta ficou prateado. As aves, nas copas, estavam em silêncio. Um silêncio cúmplice. Por um instante achei que a lua, agora de branco, me dava razão. Ele era o Batista...
E, enredado nessas reflexões, me surpreendi ao ver duas tochas se aproximando. Eram o pregador e um de seus homens. A coincidência me deixou atónito e reforçou a suspeita. Aquele bom homem só podia ser o precursor do Mestre. Eu já disse muitas vezes: a casualidade só existe na mente dos que não superaram o medo.
Perguntou sobre Eliseu, mais uma vez, e pediu permissão para visitá-lo. Fiquei encantado e agradecido, em especial por sua ternura. O aspecto físico, como creio já ter mencionado, não lhe fazia justiça. E ficou ajoelhado durante alguns minutos junto ao meu companheiro. Então ergueu as mãos e as colocou bem perto do rosto de Eliseu.
Da porta da cabana improvisada, Kesil, o homem da tocha e este que escreve assistimos à cena muito atentos; o criado e eu provavelmente mais interessados do que o sujeito silencioso que fazia a escolta do homenzinho de melenas sujas e desgrenhadas.
Ele ergueu os olhos para os bambus, em seguida cerrou as pálpebras e começou a murmurar. Parecia uma oração ou um cântico. Não consegui de
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j.j. BENÍTEZ
cifrar. As mãos, firmes, sem qualquer tremor, mantinham-se a poucos centímetros do inquieto engenheiro. Em nenhum momento o tocou. Depois, sorridente, exibiu a dentadura arruinada, mas também uma coisa muito mais importante: a esperança. Segurou minhas mãos e disse: "Confia".
Fiquei perplexo. Essas palavras...
Ao se retirar, entregou-me uma gamela de madeira com um punhado de folhas triangulares com um cheiro repulsivo. Eu não precisava me preocupar. Ele as tinha colhido nessa mesma manhã. Chamavam-na de "figueira louca". Quando retornei ao "berço", fiquei sabendo que se tratava do estramônio, uma solanácea da família da beladona, com interessantes princípios ativos (tanino, atropina e escopolamina, entre outros alcalóides). Funcionava muito bem como sedativo. E, de fato, depois que lhe demos a infusão, Eliseu caiu em um sono profundo.
Eu me reprovei por minha inépcia. Por que não o retive? Por que não lhe perguntei? Ele era ou não era Yehohanan, o Anunciador? Por pouco não atravessei os poucos metros que separavam nossa cabana da sófora... Porém, "algo" singular, que não consegui definir nesse momento, me reteve junto ao doente. Eu era um perfeito idiota.
Kesil sabia e eu nem reparei nele...
Nessa quarta-feira, os cronômetros da nave registraram o nascimento do sol às 5 horas, 22 minutos e 23 segundos. E o ocaso lunar ocorreu por volta das 6 horas, 44 minutos e 59 segundos. Assim, o alvorecer brincou de perseguir a lua cheia por um espaço de uma hora e vinte minutos. Durante esse tempo permaneceu visível. Quando a lua fugiu entre as copas, ele também se foi...
Com o tempo compreendi. Mas é melhor ater-me aos fatos, tal como se apresentaram.
Esperei amanhecer. Precisava me lavar e esvaziar a cabeça. Era a segunda noite em vigília... Eliseu, mais tranqüilo, ficou sob os cuidados de Kesil. E este que escreve foi até a "praia" dos seixos brancos. Quase todos dormiam.
Tirei a túnica, o saq e as sandálias e entrei nas águas mornas do Yaboq. O rio, claro e sereno, me acalmou. Fui nadando até o meio do rio tentando alcançar a primeira pilastra da antiga ponte. Ao chegar, por mera curiosidade, contornei os restos do pilar e confirmei o que já tinha intuído. Tratava-se de
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uma base muito antiga de pedra calcária branca que um dia serviu para sustentar as abóbadas da ponte. Só uns trinta ou quarenta centímetros sobressaíam na água. Agarrei-me a um dos blocos e, jogando a cabeça para trás, deixei que a água escorresse em meu corpo e penteasse meus cabelos. O rumor e o odor me invadiram, compensando-me, de certo modo, pelas últimas horas de incerteza e angústia. E me deixei levar por esse instante de paz...
Ao fundo, do lado leste, o círculo solar, amarelo e brilhante, agitouse entre os bosques. Prometia calor. E o "vau", os bambuzais, a sófora e as copas
das árvores daquele lugar encantador despertaram, o novo dia. Foi um despertar dourado, silencioso, sem alarde...
Mas, de súbito, tudo mudou. Não sei como descrever. Ouvi o som do sofar... Levei um susto. Um dos homens do pregador, instalado entre os juncos, muito perto da sófora, soprava com força o chifre de carneiro.
Em poucos segundos, o acampamento se mobilizou. Todos correram para a "praia". O pregador e seus homens lançaram-se diretamente no rio, avançando aos saltos e com grande excitação até o ponto onde se encontrava este perplexo explorador. Os acampados também irromperam no "lago". Aos gritos, apontavam para o norte, para o espesso bosque das acácias situado defronte a "praia dos seixos".
Olhei para trás, tentando entender o motivo de tamanha reação. Talvez algum crocodilo. Observei a superfície das águas e, prudentemente, entrincheirei-me nas pedras.
Foi então que o vi, iluminado pelo sol nascente...
O sofar continuava bramindo. E, subitamente, todos pararam. E assim permaneceram, imóveis, silenciosos e cheios de expectativa. O grupo dos armados também se deteve. E esperaram, com a água até os joelhos.
Era um homem. Caminhava pelo vau a grandes passadas... Tive um sobressalto. Será que era ele? Ia em direção à base de pedra onde eu estava escondido. Porém... Não podia ser. Aquele homem...
E continuou avançando, decidido e seguro, cortando as águas. Levava alguma coisa na mão esquerda. Parecia um tronco ou uma cesta estreita e alongada. E ele também parou. Então, como se aquilo fosse um sinal, o sofar emudeceu.
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j.j. BENÍTEZ
Eu não sabia o que fazer. Estava exatamente no meio, entre o homem e as outras pessoas. Bem no meio, e nu... encostei-me nas pedras, tentando passar despercebido. Talvez não me vissem...
Não, não era o Mestre. Por um instante, ao vê-lo caminhar, eu o confundi. Ou era apenas meu desejo de voltar a encontrá-lo? Aquele homem era mais alto, enorme. Calculei que tivesse dois metros de altura. Estava quase nu, com um cinto preto de couro, muito largo, com uns vinte centímetros, e um saq ou encacho curto, de pele de gazela. Carregava um fardel a tiracolo.
Examinou as pessoas que esperavam na água e em seguida continuou avançando até a pilastra. Era forte, embora não tão musculoso como Jesus. A pele, queimada pelo sol, era elástica como borracha. Mas o que mais me chamou a atenção nesse momento foi a cabeleira vermelha. Nunca tinha visto cabelos tão longos. Estavam amarrados em sete tranças que chegavam até os joelhos. Quando ele andava, agitavam-se como chicotes. Era um vermelho chamativo, quase branco.
Chegando às pedras, saltou sobre os blocos. Creio que não notou minha presença. Lentamente, submerso até o nariz, fui deslizando pelo perímetro do pilar até ficar às costas dele. As pessoas continuavam paralisadas, com os olhos fixos na incrível aparição. Ninguém falava. Todos pareciam hipnotizados por aquele personagem singular. Quem era? De onde saíra? Por que apresentava aquele aspecto tão extravagante? Em toda nossa missão, nunca tinha me deparado com um indivíduo tão fora do comum. E eu disse bem: tão fora do comum...
Inclinou-se sobre as pedras e, depois de afastar a terra e os ramos, acomodou o objeto que trazia na mão esquerda. Fez tudo isso devagar, com um cuidado muito especial.
Do meu esconderijo, reconheci uma espécie de barril, de um metro de altura e uns trinta centímetros de diâmetro. O cilindro era pintado com anéis sucessivos, vermelhos, azuis, amarelos e brancos. E, ao depositar o suposto "barril" na plataforma rochosa, o gigante virou a cabeça e me descobriu.
A impressão que tive ao contemplar aquele rosto foi tamanha que não consegui mover nem um único músculo. Santo Deus! Os la
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dos do nariz, os globos oculares e parte das faces estavam tomados por uma grande "mancha" em forma de borboleta. Na realidade, não era uma mancha, e sim dezenas de cicatrizes deixadas pela ocorrência de um LED1, uma doença inflamatória da pele. As placas eritematosas discóides - vermelhas e com uma depressão no centro - e as escamas correspondentes, ao secar e cair, tinham deixado uma enorme cicatriz que chamava a atenção por um branco manchado e, principalmente, pela forma curiosa. Uma forma que, em um primeiro momento, podia ser confundida com uma tatuagem.
E o homem cravou seus olhos nos meus, tentando saber quem era o sujeito escondido na água. Foi um olhar de falcão, duro, penetrante. Um olhar com uma característica difícil de esquecer. Talvez tenha sido isso o que mais me impressionou... Aquele homem tinha a íris azul-celeste, mas o centro do olho era vermelho-fogo. "Pupilas" vermelhas! Com toda probabilidade, o sinal de um albinismo ocular2.
Fiquei paralisado. Será que ele denunciaria a minha presença? Seus olhos, como eu dizia, me atravessaram. Contemplou-me por alguns segundos, mas logo se recompôs e me deu as costas de novo. Em seu pescoço pendiam longos colares de conchas marinhas.
As pessoas, atentas, pareciam esperar algo conhecido, algo a que estavam acostumadas. E foi o que aconteceu. O homem ergueu os braços
1 O chamado "lúpus eritematoso discóide" (LED) é uma afecção crônica da pele, não tuberosa, que atinge principalmente o tecido conectivo, e que decorre da degeneração fibrinóide das fibras de colágeno dos tecidos mesenquimais. A doença localiza-se preferencialmente nas regiões expostas ao sol.
2 Na realidade, não é que as pupilas fossem vermelhas (a pupila ou menina-dos-olhos é uma abertura dilatável e contráctil por onde entra a luz). O albinismo ocular é provocado por uma falha genética, que altera a pigmentação (melanina), e causa esse efeito ótico.
Na opinião de Fitzpatrick, o albinismo (falta congênita, total ou parcial, da pigmentação da pele, olhos e cabelo) divide-se em seis grandes tipos. Por sua vez, o albinismo ocular (com alteração pigmentar nos olhos) compreende três divisões (duas ligadas ao cromossomo "X" e uma autossômica recessiva). (N. do M.)
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e estendeu os dedos para aquele céu quase dourado. O silêncio aumentou. Eu diria que todos ficaram de pé...
E o homem de dois metros, com os braços no alto, começou a falar:
- Sabeis que o espírito de Deus paira sobre mim...
A voz rouca e quebrada chegou com força, sem nenhuma vacilação. Era um aramaico guerrilheiro, difícil e às vezes obscuro, próprio das montanhas e do deserto da Judéia. Falava rápido.
- ...Ele me ungiu...
E foi baixando os braços, lentamente. O pregador e seu grupo estavam transfigurados.
- ...Ele me enviou para anunciar a boa nova aos pobres. Estou aqui para remendar os corações destroçados...
A voz ia e vinha como uma onda. As pessoas, extasiadas, nem respiravam.
- ...Estou aqui para apregoar a libertação dos cativos. Para dar liberdade aos reclusos...
Fez uma pausa. Da linha da pilastra, eu não podia ver seu rosto, mas imaginei que estava percorrendo os olhos dos acampados. E, de súbito, no fundo daquele breve mas intenso silêncio, ouvi um ruído. Um zumbido, um som surdo e continuado. Levantei os olhos e descobri um bando de abelhas. Voavam inquietas sobre o "barril" de madeira. Algumas foram pousar nas pedras bem perto dele. Eram grandes, tinham o tórax fulvo e os três primeiros segmentos do abdômen amareloavermelhados. Até então, este que escreve não sabia nada sobre os incríveis insetos. E reagi como qualquer pessoa que ignorasse tudo a seu respeito. Submergi e me transferi para a outra quina do pilar...
- ...Estou aqui para anunciar a ira de Deus.
A voz retornou ainda mais impetuosa e com uma segunda mensagem.
- ...é o dia da vingança de nosso Deus. O gume do machado já tocou a raiz da árvore...
E, erguendo os braços novamente, agitou as mãos, repetindo em altos brados e incitando a platéia a gritar mais forte:
- O dia da vingança!
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CONTINUA
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E os presentes, cheios de fervor, clamaram aos céus:
- Vingança!
O pregador começou a chorar. E tentando conquistar o que já estava conquistado, entoou um nome. Então, se fez a luz em minha mente... As pessoas, entregues, o acompanharam em coro:
- Yehohanan!... YehohananL. Yehohanan!
O delírio se prolongou por longos e intermináveis minutos. Era como um trovão. As garças e as outras aves dos bosques e dos bambuzais levantaram vôo, fugindo para o horizonte das acácias.
Eu devia ter imaginado... Aquele gigante, saído não se sabia de onde, era João, o Batista. O Anunciador: "Yehohanan" ("querido por Deus") ou "lochanan" e "lokanán", em hebreu.
- Buscas a verdade?... Só ele pode satisfazer-te.
Agora entendia a resposta daquele que eu confundira com o Batista, ao pé da árvore na qual estavam penduradas as vasilhas quebradas... Pobre imbecil! Quando aprenderei?
- Chegou o fim de uma era... Deus retorna no fogo. Seus carros são como redemoinhos... Sua cólera é minha cólera... Com fogo e espada julgará toda carne... Nada escapará ao juízo... E tu, Roma, onde te esconderás?...
A alusão ao invasor incendiou ainda mais os ânimos exaltados, e aquela gente, dando pulos na água, interrompeu novamente o ardoroso
Yehohanan. E só se ouviu uma palavra no "vau das Colunas":
- Motí... Motí... Motl "Morte!"
Morte a Roma. Morte aos kittim. Aquelas pessoas, com os rostos desfigurados pelo ódio e pelo desejo de vingança, teriam seguido o vidente até o fim do mundo. Jamais esqueceria o que presenciei...
O Anunciador esperou que se acalmassem. Depois, soltando a voz e prolongando-a, arrematou:
- O ano da minha desforra chegou!
E, tendo à frente o pregador, todos uivaram como lobos.
- ...Pisotearei os povos com minha ira... Pisarei com força e farei seu sangue correr por terra... Diante de tua face, as montanhas derreterão... Tu farás coisas terríveis e inesperadas... Para dar a conhecer teu nome aos teus adversários, tu farás tremer as nações diante de ti...
Notei uma certa agitação na "praia", entre os que haviam ficado atrás. Da minha posição forçada, não percebi com clareza o motivo daquele movimento inusitado. Os vendedores interpelavam-se entre si. Os responsáveis pelas macas eram os mais excitados. Levantavam-nas, discutiam uns com os outros e as colocavam de novo sobre os seixos. Eu não estava entendendo...
- Arrependei-vos!
O grito do homem das pupilas vermelhas teve um efeito fulminante. Fez-se o silêncio.
Yehohanan apontou para as pessoas com seu dedo indicador esquerdo e o deslocou lentamente, percorrendo a volúvel platéia. Alguns, assustados, recuaram.
- Arrependei-vos! - voltou à carga em um tom mais ameaçador. -Andai pelo bom caminho!... Preparai-vos para o fim dos tempos! A nova ordem está para chegar!... Lobo e cordeiro pastarão juntos!... O leão comerá palha como o boi, e a serpente se alimentará de pó!... Estais avisados!...
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