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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ORDENS DO EXECUTIVO / Tom Clancy
ORDENS DO EXECUTIVO / Tom Clancy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Deve ser o choque, pensou Jack Ryan. Tinha a impressão de ser duas pessoas ao mesmo tempo. Parte dele estava no refeitório da CNN de Washington, olhando pela janela as chamas que se levantavam dos escombros do Capitólio — pontos amarelos projetando-se de um clarão dourado, formando um buquê de flores sinistro em honra às mais de mil vidas ceifadas há menos de uma hora. Estava estarrecido demais para sofrer, mas sabia que a dor não tardaria, como acontece sempre depois de um golpe súbito. Uma vez mais, a Morte — em toda sua funesta majestade — tentara alcançá-lo, e ele escapara por pouco. Seu único conforto era que os filhos não sabiam o quanto suas vidas estiveram perto de uma conclusão precoce. Para eles aquilo fora apenas um acidente incompreensível. Estavam agora com a mãe, com quem se sentiriam seguros enquanto ele estivesse em outro lugar. Esse tipo de situação não era novidade para a família. Então, John Patrick Ryan fitava o resíduo da Morte, e parte dele não sentia nada.
A outra parte fitava a mesma cena e sabia que ele precisava fazer alguma coisa, e embora estivesse lutando para ser racional, a razão não estava vencendo, porque ela não sabia o que fazer ou por onde começar.
— Sr. Presidente?
Era a voz da agente especial Andréa Price.
— Sim? — respondeu Ryan sem se virar da janela. Atrás dele — via o reflexo no vidro — seis outros agentes do Serviço Secreto estavam parados, empunhando armas. Na sala contígua devia haver um batalhão de funcionários da CNN, reunidos em parte por interesse profissional — eram jornalistas, afinal de contas —, mas principalmente por simples curiosidade humana em estar face a face com um momento histórico. Perguntavam-se como seria estar no lugar de Ryan, e não percebiam que esse tipo de acontecimento atingia a todos da mesma maneira, quer surgisse na forma de um acidente ou de uma enfermidade terminal. Nesses momentos, a despreparada mente humana simplesmente parava e tentava extrair sentido do absurdo — e quanto pior o golpe, mais, difícil a recuperação. Mas pelo menos as pessoas treinadas para enfrentar crise dispunham de procedimentos padrão aos quais recorrer.
Senhor, precisamos levá-lo até...

 


 


— Aonde? A um local seguro? Que local é esse? — perguntou Jack e então reprimiu-se, silenciosamente, pela crueldade da pergunta. Pelo menos vinte agentes faziam parte da pira funerária a um quilômetro e meio dali. Todos, amigos dos homens e mulheres parados no refeitório com o novo presidente.

Não tinha o direito de transtorná-los. — Minha família? — perguntou depois de um momento.

— No Quartel dos Fuzileiros, na esquina da Oitava com I, como o senhor ordenou. Sim, era confortador para eles reportarem que haviam cumprido ordens, pensou Ryan meneando levemente a cabeça. E para ele era confortador saber que suas ordens haviam sido acatadas. Já fizera uma coisa certa. Seria um bom começo?

— Senhor, se isso foi parte de um procedimento...

— Não foi, Andréa. Não é possível cumprir procedimentos à risca num momento como este, concorda? — disse o presidente Ryan. Surpreendeu-se com o quanto sua voz soava cansada, e lembrou a si mesmo que choque e estresse eram mais exaustivos que o exercício mais extenuante. Ele parecia mal ter energia para balançar a cabeça.

— Discordo, senhor. É possível cumprir procedimentos — asseverou a agente especial Price.

“Sim, acho que ela tem razão.”

— Então, qual é o protocolo para esta situação?

— Kneecap — respondeu Price, referindo-se ao National Emergency Airbone Command Post, o posto de comando aéreo de emergências nacionais, um 747

adaptado que era mantido na base aérea de Andrews. Jack considerou a sugestão por um momento e então franziu a testa.

— Não, eu não posso fugir. Acho que preciso ficar aqui — disse o presidente Ryan, apontando para o clarão dourado. Sim, aquele é o lugar ao qual pertenço, não é?

— Não, senhor. É perigoso demais.

— É o meu lugar, Andréa.

“Ele já está raciocinando como um político, pensou Andréa, decepcionada.

Ryan viu a expressão de Andréa e soube que precisava se explicar. Já aprendera uma coisa, talvez a única que se aplicava a esse momento, e o pensamento surgiu em sua mente como uma placa sinalizadora que de repente desponta numa estrada.

— É uma função de liderança. Eles me ensinaram isso em Quântico. As tropas precisam ver que você está fazendo seu trabalho. Eles precisam saber que podem contar com você.

“E eu preciso ter certeza de que isto é real, de que realmente sou o presidente. E ele era?”

O Serviço Secreto achava que sim. Ryan fizera o juramento, pronunciara as palavras e invocara o nome de Deus para abençoar seu trabalho. Mas tudo havia sido brusco e rápido. Não pela primeira vez na vida, John Patrick Ryan fechou os olhos e desejou acordar deste sonho que era simplesmente improvável demais para ser real. Mas ao abrir os olhos, o brilho dourado ainda estava lá, assim como as chamas. Ele sabia que dissera as palavras — e até mesmo fizera um pequeno discurso, embora não conseguisse lembrar uma só palavra.

Vamos começar a trabalhar, dissera um minuto antes. Uma coisa que se diz automaticamente. Isso significava alguma coisa.

Jack Ryan balançou a cabeça — conseguir isso pareceu uma grande conquista —, as costas para a janela e olhou diretamente para os agentes na sala.

— Muito bem. Quem sobrou?

— Os secretários do Comércio e do Interior — respondeu a agente especial Price, que fora informada sobre isso por seu rádio pessoal. — Comércio está em San Francisco. Interior está no Novo México. Já foram convocados. A Força Aérea irá trazê-los. Perdemos o diretor Shaw, do FBI, todos os nove juízes da Suprema Corte e os membros do Estado-Maior. Não temos certeza de quantos congressistas estavam ausentes quando aconteceu.

— E a Sra. Durling?

Price meneou a cabeça. — Ela também estava lá, senhor. As crianças estão na Casa Branca.

Jack assentiu, desanimado com mais essa tragédia. Comprimiu os lábios e fechou os olhos ao pensar em mais uma coisa que precisava fazer pessoalmente.

Para os filhos de Roger e Anne Durling, aquilo não era um evento público. Para eles o acontecimento era imediata e tragicamente simples: mamãe e papai estavam mortos, e agora eles eram órfãos. Jack os vira, falara com eles — realmente nada mais que um sorriso e o oi que se dá aos filhos de outro homem, mas eram crianças de verdade com nomes e rostos que se contorceriam de choque e descrença. Fariam o mesmo que Jack: tentariam futilmente acordar do pesadelo, mas para eles seria ainda mais difícil, por causa de sua idade e vulnerabilidade.

— Já sabem?

— Sim, presidente. Estavam assistindo à TV, e os agentes precisaram contar. Eles ainda têm avós vivos, assim como outros familiares. Também mandamos trazê-los.

Andréa não acrescentou que havia um protocolo para isto. No centro de operações do Serviço Secreto — a alguns quarteirões a oeste da Casa Branca — havia um arquivo de segurança com envelopes selados contendo planos de contingência para todos os tipos de possibilidades obscenas; essa era apenas mais uma delas.

Mas agora havia centenas — não, milhares — de crianças órfãs, não apenas duas. Jack precisava esquecer os filhos dos Durling durante algum tempo. Era difícil, mas também um alívio, deixar essa tarefa de lado por enquanto. Olhou novamente para a agente Price.

— Está me dizendo que sou o governo inteiro agora?

— Podemos encarar dessa forma, presidente. É por causa disso que...


— É por causa disso que eu tenho coisas a fazer.

Jack caminhou até a porta, e seu movimento abrupto colocou os agentes do Serviço Secreto em ação. Havia câmeras no corredor. Ryan passou direto por elas, enquanto dois agentes abriam caminho entre as fileiras de jornalistas.

Chocados demais para fazer outra coisa além de operar suas câmeras, os jornalistas não fizeram uma única pergunta. Este, afinal de contas, é um evento singular, pensou Jack com um sorriso. Um elevador estava à sua espera. Trinta segundos depois, Jack emergiu num saguão espaçoso. O recinto fora evacuado, restando agora apenas os agentes, mais da metade com submetralhadoras apontadas para o teto. Deviam ter sido trazidos de outro lugar —Jack não recordava ter passado por tantos agentes vinte minutos antes. Viu os fuzileiros parados lá fora, a maioria inadequadamente uniformizados, alguns tremendo de frio; usavam apenas camisas de malha vermelha e calças compridas de camuflagem.

— Precisávamos de segurança adicional — explicou Price. — Pedimos assistência ao quartel.

— Sim — assentiu Ryan. Ninguém discutiria a lógica em cercar o presidente dos Estados Unidos com fuzileiros navais num momento como este. Em sua maioria, eram rapazes. Seus rostos jovens e lisos não demonstravam nenhuma emoção — um estado perigoso para pessoas segurando armas —, e seus olhos perscrutavam o estacionamento como cães de guarda. Um capitão estava na porta, falando com um agente. Quando Ryan saiu, o oficial da Marinha colocou-se bruscamente em posição de sentido e bateu continência. Então ele também acha que é verdade. Ryan assentiu com a cabeça e gesticulou na direção do HMMWV mais próximo.

— Capitólio — ordenou o presidente John Patrick Ryan.

O percurso foi mais rápido do que Jack previra. A polícia interditara todas as ruas principais e os caminhões de bombeiros já estavam lá, provavelmente em resposta a um alarme geral. Um furgão do Serviço Secreto abriu caminho pelas ruas — luzes piscando, sirene uivando —, enquanto a equipe de segurança provavelmente praguejava entre seus dentes coletivos, condenando a atitude insensata do novo Patrão, o termo interno para presidente.

A cauda do 747 estava intacta, cravada nos escombros como as penas de uma flecha no couro de um animal morto. O que surpreendeu Ryan foi que o incêndio persistia. O Capitólio era um edifício de pedra, mas em seu interior havia mesas de madeira, vastas quantidades de papel e Deus sabe mais o quê, mantendo a combustão. Como moscas sobre lixo, helicópteros militares sobrevoavam os escombros em círculos, suas hélices refletindo o clarão dourado de volta para o solo. Havia caminhões de bombeiros por toda parte, suas luzes vermelhas e brancas brindando a fumaça com cores adicionais.

Bombeiros corriam para cima e para baixo, e o solo estava coberto por mangueiras serpenteando a partir de cada hidrante da vizinhança, levando água até as bombas. Muitas das conexões com os hidrantes vazavam, lançando para o alto pequenos jorros de água que rapidamente congelavam no ar frio.

A extremidade sul do Capitólio estava devastada. Era possível reconhecer a escadaria, mas as colunas e o teto haviam sumido. O plenário da Câmara era agora uma cratera soterrada por pedras, antes impecavelmente brancas, agora enegrecidas com fuligem. Ao norte, a cúpula, forjada em aço durante a Guerra Civil, ainda tinha partes reconhecíveis, e várias das seções em forma de fatia de torta mantinham seu desenho original. Os bombeiros concentravam a maior parte de sua atividade ali, onde havia sido o centro do prédio. Incontáveis mangueiras — algumas delas no solo, algumas direcionadas a partir das pontas de escadas retrateis, espargiam água na esperança de impedir que o incêndio se espalhasse, embora, do ponto em que Ryan estava, se pudesse perceber que esse esforço dificilmente renderia frutos.

Mas o que mais chamava atenção na cena era uma coleção de ambulâncias, em torno das quais equipes de paramédicos estavam paradas segurando maças vazias. Nada podiam fazer senão olhar para o leme branco do 747, com o desenho de uma cegonha vermelha, também obscurecido pelo fogo mas ainda odiosamente reconhecível. Japan Airlines. Todos pensavam que a guerra com o Japão terminara. Mas teria mesmo? Este havia sido um último e solitário ato de desafio ou vingança? Ou apenas um incidente irônico? Ocorreu a Jack que a cena, ainda que divergente em escala, parecia muito com um acidente de carro, porque a maioria dos profissionais que estavam ali havia chegado tarde demais.

Tarde demais para deter o fogo. Tarde demais para salvar as vidas que haviam jurado proteger. Tarde demais para fazerem diferença.

O HMMWV parou perto da esquina sudeste do prédio, bem em frente à fileira de caminhões de bombeiros. Antes que Ryan pudesse sair, um esquadrão de fuzileiros navais já o cercara. Um deles, o capitão, abriu a porta para o novo presidente.

— Quem dá as ordens aqui? — perguntou Jack à agente Price. Pela primeira vez, notou como a noite estava fria.

— Acho que um dos bombeiros.

— Vamos encontrá-lo.

Começou a caminhar na direção de um aglomerado de bombas d água.

Estava usando apenas um terno de veludo fino e começava a tremer. Os chefes eram aqueles com chapéus brancos, certo? E aqueles carros civis eram seus, lembrou Jack de sua juventude em Baltimore. Chefes não andam em caminhões. Avistou três carros vermelhos e se desviou bruscamente nessa direção.

— Droga, Sr. Presidente! — gritou Andréa Price. Outros agentes correram para chegar na frente, e os fuzileiros não conseguiram decidir qual grupo seguir. Não havia nada a respeito no manual de ninguém, e quaisquer que fossem as regras do Serviço Secreto nesse aspecto, o Patrão acabara de invalidá-las. Então um deles teve uma ideia e saiu correndo até o caminhão de bombeiros mais próximo. Retornou com uma jaqueta de borracha.

— Isso vai deixá-lo aquecido, senhor — prometeu o agente especial Raman, ajudando Ryan a vestir o agasalho, que o disfarçou como um dos cem bombeiros andando ali. A agente especial Price piscou para Raman em sinal de aprovação, o primeiro momento de quase leveza desde que o 747 colidira com o Capitólio. Ainda bem que o presidente Ryan não entendeu a verdadeira função da jaqueta, pensou. Este momento seria lembrado como a primeira vitória do Serviço Secreto em sua batalha contra o presidente dos Estados Unidos, para garantir sua segurança.

O primeiro chefe de bombeiros que Ryan encontrou estava falando num walkie-talkie. Ao seu lado, um homem em roupas civis analisava uma imensa folha de papel desdobrada sobre o capo do carro. Provavelmente a planta do prédio, pensou Jack. Ryan aguardou a alguns metros de distância, enquanto os dois gesticulavam sobre a planta. Em seguida, o chefe falou rapidamente em seu walkie-talkie.

— E, pelo amor de Deus, tomem cuidado com todas aquelas pedras soltas! — disse o chefe de bombeiros Paul Magill, terminando seu comando. Virou-se e esfregou os olhos. — E quem diabos é você?

— Este é o presidente — informou Price.

Magill piscou. Olhou rapidamente para os agentes armados, c em seguida para Ryan.

— A situação está mesmo ruim — foi a primeira coisa que o chefe disse. — Retiraram alguém?

Magill balançou negativamente a cabeça.

— Não por este lado. Três foram retirados no outro lado. Acho que estavam na sala do porta-voz, e provavelmente foram cuspidos pela janela no momento da explosão. Dois serventes e um cara do serviço secreto. Estamos procedendo a uma busca... bem, estamos tentando fazer isso, mas até agora as pessoas que não foram queimadas morreram por asfixia.

Paul Magill era um negro robusto, da altura de Ryan. Em suas mãos, manchas esbranquiçadas testemunhavam uma batalha muito íntima contra o fogo em algum momento de seu passado profissional. Seu rosto enrugado transparecia resignação, pois o fogo não era um inimigo humano, apenas uma coisa irracional que desfigurava os afortunados e matava o resto.

— Ainda podemos ter alguma sorte, senhor — prosseguiu. — Algumas pessoas deviam estar em salas pequenas, com as portas fechadas. Segundo a planta, este lugar tem um milhão de cômodos. Talvez resgatemos alguns com vida. Já vi isso acontecer antes. Mas a maioria... — Magill simplesmente balançou a cabeça por um momento. — A maioria não teve a menor chance.

— Ninguém no plenário da Câmara? — indagou o agente Raman. Na verdade, queria saber o nome do agente que fora cuspido pela explosão, mas não teria sido profissional perguntar isso. De qualquer modo, Magill apenas balançou a cabeça.

— Não. — Desviando os olhos das chamas, acrescentou: — Deve ter sido muito rápido.

— Quero ver — disse Jack, impulsivamente.

— Não — replicou Magill. — É perigoso demais, senhor. No meu incêndio quem dita as regras sou eu.

— Eu preciso ver — disse Ryan, em tom mais calmo.

Os dois pares de olhos encontraram-se, trocando uma comunicação silenciosa. Magill ainda não gostava da ideia. Olhou novamente para os homens armados e decidiu, erroneamente, que eles apoiariam o novo presidente, se ele era mesmo isso. Magill não estava assistindo à TV quando seu telefone tocara.

— Não será nada bonito de ver, senhor.


O sol pusera-se havia pouco no Havaí. O contra-almirante Robert Jackson estava aterrissando na Point Naval Air Station. Com sua visão periférica, reparou nos hotéis bem iluminados na costa de Oahu, e, por um instante, imaginou quanto estaria a diária num deles. Não se hospedava ali desde seus vinte e poucos anos, quando dois ou três aviadores navais costumavam dividir acomodações para economizar dinheiro e assim poder beber nos bares e impressionar as mulheres locais. Apesar da viagem longa e dos três reabastecimentos aéreos, seu Tomcat pousou delicadamente. Não era de admirar, porque Robby ainda via a si mesmo como um piloto de caça e, portanto, uma espécie de artista. O caça reduziu a velocidade e virou para a direita, rumo à pista de manobras.

— Tomcat Cinco-Zero-Zero, prossiga até o fim da...

— Já estive aqui, moça — replicou Jackson com um sorriso, infringindo as regras. Mas ele era um almirante, não era? Piloto de caça e almirante. As regras que se danassem.

— Cinco-Zero-Zero, um carro está à sua espera.

— Obrigado.

Robby pôde ver o veículo, perto do hangar mais distante, juntamente com um marinheiro sinalizando com os usuais bastões iluminados. — Nada mal para um velho — comentou o passageiro enquanto dobrava mapas e outros documentos teoricamente importantes, que haviam sido desnecessários.

— Seu voto de aprovação foi registrado — disse Jackson.

Nunca foi tão difícil fazer isso, admitiu para si mesmo. Mexeu-se no assento. Começava a sentir a bunda quadrada. Como podia estar com as pernas adormecidas e ainda assim sentir dor? Velho demais, respondeu sua mente.

Então sua perna anunciou sua presença. Porra de artrite, pensou Jackson. Tivera de usar de sua patente para obrigar Sanchez a liberar-lhe o caça. Era longe demais para um COD levá-lo do USS Jokn C. Stennis de volta a Pearl, e as ordens haviam sido específicas: Regresse urgentemente. Sob essa condição, conseguira emprestado um Tom cujo sistema de controle de incêndio estava avariado, sendo portanto uma aeronave incapacitada para missões. A Força Aérea abastecera os tanques. Assim, depois de sete horas de silêncio abençoado, voara sobre metade do Pacífico num caça — sem sombra de dúvida, pela última vez. Jackson mexeu-se novamente no assento enquanto conduzia o caça até sua área de estacionamento, e foi recompensado com um espasmo muscular nas costas.

— É um oficial do CINCPAC*? — perguntou Jackson, apontando para a figura vestida de branco ao lado do carro azul da Marinha.

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* Commander-in-Chief Pacific Command — Comandante-em-Chefe do Pacífico. ( N. do T.)

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Era o almirante David Seaton. Não estava parado de pé, e sim encostado no carro examinando mensagens no pager, enquanto Robby desligava o motor e levantava a capota. Um marinheiro empurrou uma escada móvel até a aeronave, para facilitar a descida de Robby. Outro militar — uma mulher — abriu o bagageiro da aeronave e pegou a mala do almirante recém-chegado. Alguém estava com pressa.

— Estamos com problemas — disse Seaton no momento em que Robby pôs as duas botas no chão.

— Pensei que tivéssemos vencido — replicou Jackson. Seu cérebro também estava cansado. Levaria alguns minutos para que seu raciocínio retomasse a velocidade normal, embora os instintos estivessem lhe dizendo que alguma coisa incomum estava acontecendo.

— O presidente está morto... e temos um novo. — Seaton entregou a prancheta. — Um amigo seu. No momento estamos novamente em DEFCON Três.

— Mas que diabos... — disse o almirante Jackson, lendo a primeira página dos despachos. Então levantou os olhos. —Jack é o novo...

— Não sabia que ele ia ser o novo vice? Jackson balançou a cabeça.

— Eu estava enrolado com outras coisas antes de descer do barco hoje de manhã. Santa mãe de Deus! — concluiu Robby, balançando novamente a cabeça.

Seaton assentiu. Ed Kealty renunciara devido a um escândalo sexual, e o presidente persuadira Ryan a assumir a vice-presidência até as eleições do ano seguinte. O Congresso o apoiara, mas antes que Ryan pudesse entrar no plenário da Câmara, acontecera aquilo. Um avião de passageiros colidira com o Capitólio.


— Todos os membros do Estado-Maior estão mortos. Os vices estão sendo trazidos. Mickey Moore — o general do Exército Michael Moore, o vice-chefe do Estado-Maior — ordenou que todos os comandantes-em-chefe viessem à capital imediatamente. Temos um KC-10 esperando por nós em Hickam.

— Qual a condição de risco? — inquiriu Jackson. Seu cargo vitalício, até onde qualquer função uniformizada era vitalícia, era de vice-J-3, o segundo oficial de planejamento do Estado-Maior.

Seaton deu de ombros.

— Teoricamente, zero. As hostilidades cessaram. Os japoneses desistiram da guerra...

Jackson cortou Seaton, concluindo a frase do colega: — Mas a América nunca levou uma porrada dessas antes.

— O avião está esperando — disse Seaton. — Você pode se trocar a bordo. A aparência não conta neste momento, Robby.


Como sempre, o mundo estava dividido por tempo e espaço, especialmente tempo, refletiria a mulher se dispusesse de um momento para pensar. Tinha mais de sessenta anos; seu corpo pequeno estava curvado pelo peso da idade e do trabalho, que ficaria menos árduo se houvesse jovens para auxiliá-la. Não era justo. Em sua juventude, ajudara outras. E essas haviam feito o mesmo quando jovens. Mas agora não havia ninguém para suavizar suas tarefas. A mulher se esforçou para afugentar esses pensamentos. Eram indignos dela, de sua posição no mundo, e, definitivamente, indignos de seus votos, feitos a Deus havia mais de quarenta anos. Agora tinha dúvidas sobre esses votos, mas não admitiria isso a ninguém, nem ao seu padre. A incapacidade em discutir suas dúvidas a preocupava mais que as dúvidas em si; afinal, sabia que o sacerdote falaria gentilmente sobre seu pecado, se é que realmente pecara. Mas será que ele seria gentil? Sim, mesmo achando que ela pecara, o padre falaria gentilmente com ela. Sempre fazia isso, provavelmente porque também tinha esse tipo de dúvida, e ambos estavam na idade na qual as pessoas olham para trás e se perguntam se poderiam ter agido de modo diferente, apesar de todas as conquistas de uma vida frutífera.

Sua irmã — em cada aspecto tão religiosa quanto ela — escolhera a mais comum das vocações, e agora era avó. A irmã M. Jean Baptiste tentou imaginar como seria isso. Fizera sua escolha havia muito tempo, numa juventude que ainda conseguia recordar, e como todas as decisões dessa espécie, fora tomada com pouquíssima reflexão, mas se provara correta. Parecera uma escolha simples naquela época. As mulheres de preto eram respeitadas. Em sua juventude distante, podia recordar os soldados das tropas de ocupação da Alemanha assentindo polidamente para as freiras. Embora todos suspeitassem que as freiras ajudassem os pilotos aliados a escapar, e talvez até judeus, era de conhecimento geral que elas tratavam a todos com igualdade, porque Deus exigia. Além disso, até mesmo os alemães queriam internar-se em seu hospital quando eram feridos, porque ali teriam mais chances do que em qualquer outro lugar. As freiras orgulhavam-se dessa tradição e, embora isso fosse pecado, diziam a si mesmas que Deus talvez não se importasse, porque essa tradição existia em Seu santo nome. E assim, quando a idade certa chegou, ela teve de tomar sua decisão. A escolha foi influenciada pelo momento, crítico, com a condição do país depois da guerra, e a necessidade por suas habilidades.

Quando o peso da idade surgiu, pensou durante algum tempo em abandonar suas atividades, mas o mundo mudara muito pouco. Assim, continuou em seu trabalho.

A irmã Jean Baptiste era uma enfermeira habilidosa e experiente. Viera a este lugar quando ele ainda pertencia ao seu país natal, e permanecera ali depois que isso mudou. Naquela época fizera seu trabalho da mesma forma, com a mesma habilidade, fossem seus pacientes africanos ou europeus, alheia à turbulência política à sua volta. Contudo, quarenta anos, mais de trinta no mesmo lugar, tiveram seu preço.

Não que não se importasse mais. Decerto não era isso. Apenas estava com quase 65 anos, muito velha para ser uma enfermeira com pouquíssimas ajudantes, quase sempre trabalhando 14 horas por dia, com algumas horas de sobra para rezar. Isso fazia-lhe bem à alma, mas não ao corpo. Na juventude, ele fora robusto — quase musculoso — e saudável, e vários médicos apelidaram-na Irmã Rocha. Mas os médicos seguiram seu caminho, e ela ficou e ficou. E mesmo as rochas acabam puídas. E com a fadiga, vieram os erros.

Sabia com o que precisava tomar cuidado. Na África, o profissional de saúde que quiser permanecer vivo não pode ser descuidado. A cristandade tentava estabelecer-se aqui havia séculos, mas só lograra sucessos isolados. Um dos problemas restantes era a promiscuidade sexual, uma propensão local que horrorizara a irmã ao chegar ali há quase duas gerações, mas agora parecia-lhe simplesmente... normal. Porém, essa tendência também costumava ser mortífera. Um terço dos pacientes no hospital sofriam do mal conhecido localmente como doença da magreza, e, no resto do mundo, como AIDS. As precauções para essa mazela eram bem simples, e a irmã Jean Baptiste as ensinara em cursos. Mas a triste verdade era que, como as pragas de outrora, tudo que os profissionais médicos podiam realmente fazer era proteger a si mesmos.

Felizmente não era o caso deste paciente. O menino tinha apenas oito anos, jovem demais para ser sexualmente ativo. Bonito, saudável e brilhante, estudava na escola católica, e, além de estudante primoroso, era coroinha.

Talvez um dia viesse a ouvir o chamado e se tornar padre — o que era bem mais fácil para os africanos do que para os europeus, porque a Igreja, numa rendição silenciosa aos costumes do Continente Negro, permitia que os padres daqui se casassem, segredo ignorado pelo resto do mundo. Mas o menino estava doente.

Chegara apenas algumas horas antes, à meia-noite, trazido pelo pai, um bom homem que era funcionário público e tinha seu próprio carro. O plantonista diagnosticara que o menino estava com malária cerebral, mas o registro em seu prontuário não foi confirmado pelo teste laboratorial costumeiro. Talvez a amostra de sangue tivesse se perdido. Dores de cabeça, vômitos, tremor nos membros, desorientação, febre. Malária cerebral. Ela rezou para que mo não ressurgisse. Era tratável, mas o problema era colocar as pessoas sob tratamento.

O restante da ala estava silencioso. Era tarde — ou melhor, muito cedo. Um horário agradável nessa parte do mundo. Estava tão frio quanto era possível ali, e tudo estava silencioso e parado... assim como os pacientes. O maior problema do garoto no momento era a febre. Assim, a irmã puxou seu lençol para refrescá-lo com uma esponja úmida. Isso pareceu acalmar seu corpo jovem e inquieto, e ela aproveitou para examinar os outros sintomas. Os médicos eram médicos, e ela, apenas uma enfermeira. Mesmo assim, estava aqui havia muito tempo, e sabia pelo que procurar. Não achou muita coisa, apenas um curativo antigo na mão esquerda. Será que isso escapara ao médico? A irmã Jean Baptiste retornou ao posto de enfermagem, onde suas duas auxiliares estavam cochilando. Ela estava prestes a fazer o trabalho de suas auxiliares, mas não havia motivo para acordá-las. Retornou para o paciente com esparadrapo novo e desinfetante. Na África é preciso tomar muito cuidado com infecções.

Cuidadosa e lentamente, desfez o curativo e percebeu que estava piscando de fadiga. O ferimento era uma mordida, como de um cachorrinho... ou um macaco. Isso a fez despertar. Mordidas assim podiam ser perigosas. Ela devia ter retornado ao posto de enfermagem e apanhado luvas de borracha, mas ficava a quarenta metros dali, e suas pernas estavam cansadas. Além disso, o paciente estava descansando, sua mão imóvel. Ela abriu o desinfetante, girou a mão do menino lentamente para expor a ferida. Quando balançou a garrafa com a outra mão, um pouco de líquido escapou por baixo de seu polegar e caiu sobre o rosto do paciente. O menino ergueu a cabeça e, sem acordar, espirrou. A quantidade usual de gotas de catarro saltou no ar. A irmã Jean Baptiste se assustou, mas não parou o que estava fazendo; derramou o desinfetante numa bola de algodão e, cuidadosamente, esfregou o ferimento. Em seguida fechou a garrafa, pousou-a na mesinha de cabeceira, aplicou o novo curativo e só então limpou o rosto com as costas da mão. Fez isso sem perceber que, ao espirrar, o paciente mexera sua mão ferida, deixando cair sangue sobre as suas, e que o sangue ainda estava nas costas de sua mão quando ela o esfregara nos olhos. Luvas, portanto, não teriam feito qualquer diferença, fato que lhe teria sido de pouco conforto, caso ela lembrasse disso, dali a três dias.


Devia ter dado ouvidos ao bombeiro, disse Jack a si mesmo. Dois paramédicos haviam-no guiado por um corredor sem detritos até a escadaria oeste, juntamente com o cortejo de fuzileiros navais e agentes, todos empunhando armas, nenhum sabendo exatamente como proceder. Haviam cruzado com uma fileira de bombeiros trabalhando com suas mangueiras, e boa parte da água, fria de gelar os ossos, pudera-se no ar, caindo sobre o grupo. Ali o fogo fora abrandado pela água; enquanto as mangueiras continuassem molhando tudo, o local estaria seguro para que as equipes de resgate se arrastassem pelas ruínas do plenário da Câmara. Não era preciso ser especialista para entender o que eles encontraram. Nada de cabeças entre os destroços, gestos de desespero ou gritos. Os homens — e mulheres, embora a essa distância não fosse possível discerni-las — percorriam o caminho cuidadosamente, mais preocupados com a própria segurança do que com qualquer coisa. Não havia motivo racional para arriscar a vida pelos mortos.

Deus Todo-Poderoso, pensou. Havia pessoas que ele conhecia ali. Não apenas americanos. Jack viu que uma seção inteira da galeria ruíra sobre o plenário. A galeria diplomática, se não lhe falhava a memória. Vários dignitários e suas famílias, homens que conhecia, que vieram ao Capitólio para vê-lo fazer o juramento. Isso o tornava culpado dessas mortes?

Jack saíra do prédio da CNN porque precisava fazer alguma coisa, ou pelo menos fora isso que dissera a si mesmo. Não tinha certeza agora. Talvez só quisesse uma mudança de cenário. Ou fora atraído à cena pelas mesmas razões pelas quais as pessoas estavam aglomeradas em torno do terreno do Capitólio, paradas silenciosamente, como ele, apenas olhando impotentes, como ele? O entorpecimento devido ao choque ainda não o abandonara. Viera até aqui esperando encontrar alguma coisa para ver e sentir, e depois tentar ajudar de alguma forma. Mas apenas descobrira mais coisas para assombrá-lo à noite.

— Sr. Presidente, está frio aqui — disse Price. — Pelo menos vamos nos afastar dessa maldita água!

— Certo — assentiu Ryan, recuando para os degraus.

Descobrira que a jaqueta não era tão quente quanto pensara. Estava tremendo de novo, e torcia para que a causa fosse apenas o frio.

As câmeras tinham aparecido lentamente, mas agora Jack podia ver muitas delas. Portáteis — todas fabricadas no Japão, lembrou Jack, com um resmungo —, com suas luzes pequenas e poderosas. De algum modo, seus portadores haviam conseguido passar pelas barreiras policiais e pelos chefes dos bombeiros. Diante de cada uma delas havia um repórter — os três que ele viu eram homens — segurando um microfone e tentando parecer que sabiam muito mais do que todos. Jack notou que várias luzes estavam apontadas para ele.

Pessoas do país inteiro e do mundo o observavam, esperando que ele soubesse o que fazer. Como essas pessoas podiam iludir-se com a noção de que os governantes eram mais inteligentes que seu médico, advogado ou contador?

Sua mente recuou para sua segunda semana como tenente dos fuzileiros navais, quando decidiram por Jack que ele sabia comandar e liderar um pelotão, e quando um sargento, dez anos mais velho, o procurara para falar de um problema familiar. O sargento esperara que o jovem oficial — sem mulher ou filhos — tivesse alguma coisa a dizer a um homem com problemas com ambos.

Hoje, recordou Jack, essa situação era chamada desafio de liderança, significando que você não tem a menor ideia do que fará em seguida. Mas ali estavam as câmeras, e ele tinha de fazer alguma coisa.

Só que ele não fazia a menor ideia do quê. Viera até aqui esperando achar um catalisador para ação, e deparara apenas com um profundo sentimento de impotência. E talvez uma pergunta.

— Arnie van Damm?

Se tinha alguma certeza no mundo, era de que precisava de Arnie.

— Na Casa, senhor — replicou Price, referindo-se à Casa Branca.

— Certo, vamos até lá — ordenou Ryan.

— Senhor... — começou Price, depois de um momento de hesitação. — Provavelmente não é seguro ir até lá. Se lá houver...

— Já disse que não posso fugir, droga! Não posso sair voando no Kneecap.

Não posso me esconder em Camp David. Não posso me enfiar num buraco.

Consegue entender isso?

Estava mais frustrado do que zangado. Seu braço direito apontou para o Capitólio.

— Aquelas pessoas estão mortas e, Deus me ajude, eu sou o governo por enquanto — prosseguiu. — E o governo não foge!

— Aquele ali parece o presidente Ryan — disse um âncora de telejornal em seu estúdio seco e aquecido. — Provavelmente está tentando dar uma mãozinha nas operações de salvamento. Como sabem, Ryan é um homem acostumado a situações de crise.

— Conheço Ryan há seis anos — opinou um analista mais velho, sem olhar para a câmera, de modo a dar a impressão de estar instruindo o âncora, muitíssimo mais bem pago, que estava tentando reportar o evento. Ambos tinham sido chamados ao estúdio para comentar o discurso do presidente Durling, e haviam lido todo o material sobre Ryan, a quem o analista realmente não conhecia, embora os dois tivessem se esbarrado em diversos jantares nos últimos anos. — Ele é um cavalheiro discreto, mas sem dúvida alguma uma das pessoas mais brilhantes a serviço do governo.

Uma declaração como essa não podia passar sem ser desafiada. Tom, o âncora, inclinou-se para a frente, meio olhando para o colega, meio olhando para as câmeras.

— Mas John, ele não é um político. Ele não possui nenhum conhecimento ou experiência. É um especialista em segurança nacional numa época em que a segurança nacional não é mais tão importante quanto foi um dia.

A John, o analista, não ocorreu a resposta que essa declaração merecia.

Mas ela ocorreu a outra pessoa, assistindo à TV.

— Está certo — resmungou Chavez. — E aquele avião que se arrebentou no Capitólio era na verdade um caça Delta que se perdeu. Minha Nossa Senhora! — concluiu.

— Servimos a um grande país, Ding, meu garoto. Onde mais as pessoas ganham cinco milhões por ano para ser imbecis?

John Clark decidiu terminar sua cerveja. Não havia motivo em dirigir de volta a Washington antes que Mary Pat telefonasse. Afinal de contas, ele era uma abelha-operária, e apenas os medalhões da CIA agiriam agora. Não conseguiriam muita coisa, mas num momento como esse ninguém espera conseguir algo, apenas parecer atarefado é importante. Só as abelhas-operárias não engoliam isso.


Com pouca coisa para mostrar ao público, a emissora reprisou o discurso do presidente Durling, gravado pelas câmeras da C-SPAN operadas por controle remoto. Agora, os técnicos da sala de controle congelaram nos frames para mostrar a primeira fila de altos oficiais do governo e, novamente, a listagem dos mortos apareceu na tela. Tirando dois, estavam mortos todos os secretários de gabinete, membros do Estado-Maior e diretores de agências governamentais, além do presidente da Junta de Reserva Federal, o diretor do FBI Bill Shaw, o diretor do Departamento de Administração e Orçamento, o administrador da Nasa, todos os nove juízes da Suprema Corte. A voz do âncora listou os nomes e os postos que eles tinham ocupado, e a fita avançou quadro a quadro até o momento em que os agentes do Serviço Secreto entraram correndo no plenário, assustando o presidente Durling e causando um pouco de confusão. Cabeças viraram-se procurando por perigo, e talvez os dotados de raciocínio mais rápido tenham se perguntado se havia um atirador nas galerias.

Então foram exibidos três frames congelados de uma câmera aberta em plano geral, que mostrava a parede do fundo ruindo abruptamente, e depois, escuridão. O âncora e o comentarista apareceram novamente na tela, olhando para seus monitores, e então novamente um para o outro, talvez apenas agora compreendendo afinal a enormidade do evento, como estava começando a acontecer com o novo presidente.

— A principal tarefa do presidente Ryan será reconstituir o governo, se puder — disse John, o analista. Depois de uma longa pausa, acrescentou: — Meu Deus, tantos bons homens e mulheres... mortos...

Também lhe ocorreu que, alguns anos antes, quando ainda não era o comentarista principal da rede, teria estado no plenário da Câmara, junto com muitos de seus colegas. Para John, nesse momento o evento enfim desenredou-se do choque, e suas mãos começaram a estremecer sobre o tampo da mesa. Era profissional experiente, que não se permitiria gaguejar, mas conseguiu controlar sua expressão, e seu rosto desabou sob o peso da dor súbita e imensa. Na tela, seu rosto pareceu pálido, mesmo debaixo de toda a maquiagem.

— É o julgamento de Deus — murmurou Mahmoud Haji Daryaei, a mais de dez mil quilômetros dali, erguendo o controle remoto para emudecer o áudio e se poupar da conversa fiada.

O julgamento de Deus. Fazia sentido, não é mesmo? América. O gigante que a tantos oprimiu, um país sem Deus, de um povo sem Deus, no pináculo de seu poder, cantando as vitórias de mais uma guerra... agora seriamente ferido. O que mais, senão a vontade de Deus, causaria um acontecimento como esse? E o que mais significaria esse ato divino senão um julgamento, e também uma graça? Mas em quem recairia essa graça? Bem, um pouco de reflexão talvez descortinasse o mistério.

Ele conhecia Ryan. Haviam-se encontrado uma vez. Ryan parecera-lhe desprezível e arrogante — um americano típico —, mas sua opinião agora era outra. Por um instante, a lente da câmera fechou-se em zoom, revelando um homem tremendo de frio sob uma jaqueta de bombeiro, a cabeça voltando-se para um lado e para o outro, a boca ligeiramente aberta. Não, ele não parecia arrogante. Parecia desorientado e tão pouco cônscio dos acontecimentos que mal sentia medo. He& uma expressão que Mahmoud conhecia bem. Que interessante.


As mesmas palavras e imagens ecoavam pelo mundo, transmitidas por satélites para mais de um bilhão de pares de olhos atentos à cobertura televisiva da posse do vice, ou que haviam sido alertados para o evento e mudado de canal, deixando de lado programas matutinos, em alguns países, e programas vespertinos, em outros. A História estava sendo escrita, e fazia-se imperativo assistir a ela.

Especialmente para os poderosos, para quem informação era matéria-prima do poder. Outro homem, em outro lugar, olhou para o relógio eletrônico ao lado do televisor em sua escrivaninha, e fez alguns cálculos matemáticos simples.

Um dia horrível chegava ao fim nos EUA, enquanto, ali, uma manhã de sol estava começando. Pela janela atrás de sua mesa, via-se uma enorme praça, calçada com paralelepípedos, que estava sendo cruzada por muitas pessoas de bicicleta, embora o número de carros ao fundo também fosse substancial. O tráfego de veículos motorizados multiplicara-se por dez nos últimos anos, mas as bicicletas ainda eram o principal meio de transporte. Isso não era justo.


Planejara mudar isso — rápida e decisivamente em termos históricos, e era um estudante sério de História — apenas para ter seu plano meticuloso abortado pelos americanos. Não acreditava em Deus — jamais acreditara e jamais iria crer —, mas acreditava na Fatalidade, e Fatalidade era o que estava vendo no televisor japonês à sua frente. Mulher caprichosa, essa Fatalidade, disse a si mesmo enquanto pegava uma caneca de chá de ervas. Havia apenas alguns dias favorecera os americanos com sorte, e agora brindava-os com dor... Então, quais eram os propósitos de Dama Fatalidade? O homem decidiu que suas próprias intenções e vontades eram mais importantes. Esticou a mão até o telefone, e então mudou de ideia. O aparelho tocaria muito em breve, pessoas pediriam sua opinião, e ele teria de responder alguma coisa. Portanto, agora era hora de pensar. Bebericou o chá. A água queimou-lhe o céu da boca, e ele achou isso bom. Teria de permanecer alerta, e a dor iria ajudá-lo a se concentrar. Pensamentos importantes começavam a se formar em sua mente.

Logrado ou não, seu plano não fora ruim. Fora mal executado por agentes desapaixonados, prejudicados pela predileção momentânea de Dona Fatalidade pela América, mas — disse a si mesmo novamente —, fora um bom plano. Ele teria outra chance para provar isso. Graças a Dama Fatalidade. O pensamento provocou um sorriso fino e um olhar distante, enquanto sua mente sondou o futuro e gostou do que viu. Ele torceu para que o telefone demorasse algum tempo para tocar. Precisaria mergulhar ainda mais fundo em sua mente, o que ficaria mais fácil sem interferência. Depois de mais um momento de meditação, ocorreu-lhe que o objetivo real de seu plano fora alcançado. Desejara aleijar a América, e aleijada ela estava. A bem da verdade, não da forma como escolhera, mas ainda assim estava enfraquecida. Mais enfraquecida do que sonhei? perguntou a si próprio.

Sim.

E isso significava que o jogo poderia prosseguir.

Dama Fatalidade brincara com o desenrolar da História. Na verdade, ela não era amiga ou inimiga de nenhum homem. Ou era? O homem bufou. Talvez ela apenas tivesse senso de humor.


Para outra pessoa, a emoção foi de raiva. Dias antes, ela passara pela humilhação, amarga humilhação, de ouvir de um estrangeiro — um simples ex-governador de província! — o que sua nação soberana devia fazer. Ela tomara muito cuidado, obviamente. Tudo fora executado com extrema habilidade. O governo em si não esteve implicado em nada mais do que exercícios navais extensivos em mar aberto, que era, evidentemente, livre para a passagem de todos. Nenhuma carta de ameaça foi remetida, nenhum comentário oficial foi feito, nenhuma posição foi tomada. No que lhe dizia respeito, os americanos fizeram uma tempestade em copo d água ao convocar uma reunião do Conselho de Segurança, no qual nada houve para ser dito, porque nenhuma ação oficial tinha sido realizada, e seu país não fizera qualquer declaração. O Japão não fizera nada mais do que exercícios, certo? Exercícios pacíficos. Obviamente, esses exercícios ajudaram a enfraquecer o poder americano sobre o Japão... mas ela não poderia ter previsto isso, poderia? Claro que não.

Naquele exato momento, tinha o documento sobre sua mesa: o momento requeria restaurar a frota à sua plena capacidade. Mas, não, pensou, balançando a cabeça, isso não seria suficiente. Nem ela, nem seu país, poderiam agir sozinhos agora. Isso lhes custaria tempo e amigos, mas o país tinha necessidades, e seu trabalho era satisfazer essas necessidades. Seu trabalho não era aceitar comandos de outros, certo?

Certo.

Ela também bebeu chá, de um refinada xícara chinesa, com açúcar e um pouco de leite, ao estilo inglês, uma herança de seu berço e educação, que, juntamente com paciência, levaram-na até este cargo. De todas as pessoas em torno do mundo assistindo à mesma imagem, da mesma rede de satélites, ela provavelmente era quem entendia melhor a oportunidade, o quão vasta e atraente podia ser. E como era bem-vinda essa oportunidade, tão pouco depois de ter sido humilhada neste mesmo gabinete. Por um homem que agora estava morto. Era uma oportunidade boa demais para ser desperdiçada, não era?

Era.


— Isto é assustador, Sr. C.

Domingo Chavez esfregou os olhos. Estava acordado fazia mais horas do que seu cérebro, desorientado por diferenças de fuso horário, era capaz de computar. Tentou organizar os pensamentos. Estava deitado no sofá de sua sala, os pés descalços apoiados na mesinha de centro. As mulheres da casa estavam acordadas, uma em antecipação ao trabalho no dia seguinte, a outra estudando para uma prova na escola. A outra não se dera conta de que talvez não houvesse aula no dia seguinte.

— Diga-me o motivo, Ding — comandou John Clark.

O momento de se preocupar com as habilidades relativas de diversas personalidades da televisão passara, e seu jovem parceiro estava, afinal, concluindo seu mestrado em relações internacionais.

Chavez falou sem abrir os olhos.

— Acho que nada assim já aconteceu em tempos de paz. O mundo não está tão diferente do que na semana passada, John. Semana passada, a coisa estava realmente complicada. Nós mais ou menos que vencemos a guerra na qual estávamos, mas o mundo não mudou muito, e não estamos mais fortes do que antes, estamos?

— A natureza abomina o vácuo? — disse John, em tom calmo.

— Algo assim. — Chavez bocejou. — E que o céu caia sobre a minha cabeça se não estamos num vácuo agora.


— Não consegui muita coisa, não é mesmo? — perguntou Jack, num tom de voz a um só tempo calmo e triste.

Os acontecimentos estavam começando a atingi-lo. E com força. Ainda via um fulgor dourado lá fora, embora agora estivesse subindo mais vapor do que fumaça ao céu. A visão mais deprimente eram os objetos que estavam sendo levados para o prédio. Sacos de tecido emborrachado com alças nas extremidades e uma espécie de zíper no meio. Sacos para corpos. Montes deles, e alguns estavam saindo agora, carregados por pares de bombeiros serpeando ao longo da escadaria coalhada de escombros. Acabara de começar, e não terminaria tão cedo. Ele não vira um único corpo em seus poucos minutos lá dentro. Por algum motivo, ver os primeiros sacos era muito pior.

— Não, senhor — respondeu a agente Price, que trazia no rosto o mesmo tipo de expressão de Jack. — Isso não foi bom para o senhor.

— Eu sei. — Ryan assentiu e olhou para outro lado.

“Não sei o que fazer. Onde está o manual e o curso de treinamento para este emprego? Com quem me consulto? Que direção devo tomar?”

“Não quero este emprego, gritou sua mente para si mesma. Ryan repreendeu-se pela venalidade do pensamento, mas viera a este lugar hediondo para realizar uma espécie de demonstração de poder, marchando diante de câmeras de TV como se soubesse o que estava fazendo — o que era uma mentira. Talvez não uma mentira maliciosa. Apenas estúpida. Caminhe até o chefe dos bombeiros e pergunte como as coisas estão indo, como se qualquer pessoa com segundo grau não pudesse adivinhar isso!”

— Estou aberto a sugestões — disse Ryan, finalmente.

A agente especial Andréa Price respirou fundo e satisfez a fantasia de cada agente do Serviço Secreto americano dali até Pinkerton: — Presidente, o senhor precisa deixar de fazer... — ela não podia ir tão longe —... coisas impensadas. Há coisas que pode fazer, e coisas que não pode. O senhor tem pessoas trabalhando ao seu lado. Para começar, senhor, descubra quem são essas pessoas e deixe que façam seu trabalho. Então, talvez, o senhor possa fazer o seu.

— De volta para a Casa?

— É onde ficam os telefones, presidente.

— Quem é o chefe da segurança presidencial?


— Andy Walker.

Price não precisava dizer onde ele estava agora. Ryan baixou os olhos para ela e tomou sua primeira decisão como presidente dos Estados Unidos.

— Acaba de ser promovida. Price assentiu.

— Siga-me, senhor.

Price ficou satisfeita em descobrir que este presidente, como todos os outros, podia aprender a seguir ordens. Ao menos durante parte do tempo.

Haviam andado apenas alguns metros quando Ryan tropeçou num montículo de neve e caiu, para ser levantado por dois agentes. Isso apenas o fez parecer mais vulnerável. Um fotógrafo captou o momento, concedendo à Newsweek sua foto de capa da semana seguinte.


— Estamos vendo o presidente Ryan deixando o Capitólio no que parece um veículo militar, não um carro do Serviço Secreto. O que acha que ele fará agora? — indagou o âncora.

— Com todo respeito para com o homem, duvido que ele saiba no momento — disse John, o comentarista.

Uma fração de segundo mais tarde, aquela opinião atravessou o globo, para a anuência geral de todos os tipos de pessoas. Amigas e inimigas.


Uma coisa precisava ser feita rapidamente. Ele não sabia se era uma coisa direita — bem, ele sabia, e não era —, mas em momentos de emergência as regras ficam um pouco turvas. Descendente de uma família política cujo serviço público remontava a algumas gerações, estava na vida política praticamente desde que deixara a faculdade l — direito, que era outra forma de dizer que não tivera um emprego de verdade a vida i Ia. Talvez tivesse pouca experiência prática em economia, exceto como seu beneficiário os administradores financeiros de sua família trabalhavam com competência suficiente para jamais importuná-lo, exceto na temporada de impostos. Talvez jamais tivesse exercido a advocacia — embora tivesse influenciado literalmente milhares de leis. Talvez jamais tivesse servido ao país num uniforme — embora se considerasse um especialista em segurança nacional. Talvez jamais tivesse feito um monte de coisas, mas conhecia política, porque essa fora sua profissão durante toda sua vida — se o termo profissão era adequado — e, num momento como este, o país precisava de alguém que realmente entendesse de política. O país precisa tratar seus ferimentos, pensou Ed Kealty. E ele Kealty tinha como fazer isso.

Assim, tirou o telefone do gancho e discou um número. — Cliff, aqui é o Ed...


1

Começando Agora

O centro de emergência do FBI, no quinto andar do edifício Hoover, é uma sala de forma estranha, ligeiramente triangular e surpreendentemente pequena, com espaço apenas para cerca de 15 pessoas. A 16 a chegar, sem gravata e usando roupas de passeio, foi Daniel E. Murray, o vice-diretor assistente. O oficial superior era seu velho amigo, o inspetor Pat O’Day. Homem grande e enrugado, cujo hobby era a criação de gado de corte em sua casa no norte da Virgínia, este cowboy nascera e fora educado em New Hampshire. O’Day tinha um telefone no ouvido, e a sala estava incrivelmente quieta para uma sala de crise durante uma crise legítima. Um leve meneio de cabeça e um gesto com a mão permitiram a entrada de Murray. O agente esperou que O’Day concluísse o telefonema.

— O que está acontecendo, Pat?

— Estava falando ao telefone com a Base Aérea de Andrews. Eles têm fitas gravadas do radar e coisas do tipo. Mandei vir agentes do Escritório de Campo de Washington para entrevistar o pessoal da torre. A NTSB também mandará pessoas para ajudar. Nossa primeira impressão é de que um 747 da Japan Airlines deu uma de kamikase. Os homens da base aérea de Andrews disseram que o piloto declarou uma emergência e passou direto sobre a pista de pouso, desviou um pouco para a esquerda e... bem... — O’Day deu de ombros. — Tem gente do ECW agora no Capitólio, dando início às investigações. Pressuponho que isto irá para os registros como um incidente terrorista, o que nos concede jurisdição.

— Onde está o diretor? — perguntou Murray, referindo-se ao diretor-assistente do gabinete do FBI em Washington, situado em Buzzard’s Point, no rio Potomac.

— Em férias. Está com Angie, em Santa Lúcia. Tony Caruso teve um puto azar— resmungou o inspetor. Tony Caruso retornara de férias apenas três dias antes do acidente. — Um monte de gente teve azar. A contagem de corpos vai ser grande, Dan. Muito pior que a de Oklahoma. Emiti um alerta geral para todos os legistas. A coisa foi tão feia que teremos de identificar muita gente pelo DNA. E os malditos jornalistas estão perguntando como a Força Aérea deixou uma coisa dessas acontecer.

Um meneio de cabeça acompanhou a conclusão. O’Day precisava de alguém sobre quem descarregar sua raiva, e os comentaristas de TV eram o alvo mais atraente no momento.

National Transpotation Safety Board — Junta Nacional de Segurança no Transporte. (N, do T.) — Mais alguém que conhecemos? Pat balançou a cabeça.

— Não. Isso vai demorar, Dan.

— E Ryan?

— Esteve no Capitólio enquanto devia estar a caminho da Casa Branca. Foi captado pelas câmeras de TV. Ele parece um pouco abalado. Nossos irmãos e irmãs no Serviço Secreto também estão tendo uma noite daquelas. O sujeito com quem falei há dez minutos quase saiu do sério. Acabaremos entrando em conflito sobre quem deve conduzir a investigação.

— Fantástico — grunhiu Murray. — Vamos deixar o procurador-geral decidir isso... — Mas não havia um procurador-geral, assim como também não havia um secretário do Tesouro para quem pudesse telefonar.

O inspetor O’Day esperava não entrar em conflito com o Serviço Secreto.

Um estatuto federal conferia ao Serviço Secreto a autoridade de agência líder na investigação de qualquer ataque ao presidente. Mas outro estatuto federal conferia ao FBI a jurisdição sobre atividades terroristas. E, é claro, o estatuto local para assassinatos também conferia jurisdição à Polícia Metropolitana de Washington. Por enquanto a responsabilidade principal caberia à NTSB — até prova em contrário, aquilo havia sido um acidente aéreo horrível, e isso era apenas o começo. Cada agência tinha autoridade e perícia. O Serviço Secreto — menor que o FBI e dispondo de menos recursos — contava com alguns investigadores soberbos e alguns dos melhores técnicos. A NTSB sabia mais sobre acidentes aéreos que qualquer outra organização no mundo. Mas o FBI precisava ser a agência líder desta investigação, certo? — pensou Murray.

Exceto que o diretor Shaw estava morto, e sem ele para mexer os pauzinhos... Deus, pensou Murray. Ele e Bill cursaram juntos a Academia. Trabalharam no mesmo esquadrão como agentes de rua novatos na Filadélfia, caçando assaltantes de banco...

Pat leu a expressão de Murray e assentiu.

— Sim, Dan. Não temos tempo para nos recuperar. Estamos com o anzol na garganta.

Ele estendeu uma folha de bloco com uma lista escrita à mão. Ela trazia as baixas confirmadas até o momento.

Um ataque nuclear não teria nos atingido tanto, apercebeu-se Murray enquanto lia os nomes. Uma crise em desenvolvimento teria possibilitado um alerta estratégico; lenta e silenciosamente, figuras-chave teriam sido retiradas de Washington para vários locais seguros. Muitos teriam sobrevivido, e depois do ataque haveria algum tipo de governo para juntar os pedaços. Mas agora não.

 

Ryan viera à Casa Branca mil vezes, para visitar o presidente, entregar relatórios e participar de reuniões importantes. Mais recentemente, viera à Casa Branca para trabalhar em seu próprio gabinete como conselheiro de Segurança Nacional. Esta era a primeira vez que ele não precisava mostrar sua identificação e caminhar através de detectores de metal. Na verdade, ele passou direto por um, por força do hábito, mas desta vez, quando a campainha foi acionada, ele continuou andando, sem sequer colocar a mão no bolso para tirar as chaves. A diferença em comportamento dos agentes do Serviço Secreto era impressionante. Como todos, sentiam-se aliviados por estar num ambiente familiar, e embora o país inteiro tivesse acabado de aprender uma lição sobre o quão ilusória pode será segurança, a ilusão era suficientemente real para que profissionais treinados se sentissem mais à vontade dentro da substância de uma mentira. Quando o cortejo passou pela entrada principal, armas foram alojadas em seus coldres, casacos foram abotoados, e foram ouvidos longos suspiros de alívio.

Uma voz interior disse a Jack que esta agora era sua casa, mas ele não tinha nenhum ânimo para acreditar nisso. Os presidentes gostavam de chamá-la de Casa do Povo — descrevendo, com falsa modéstia, um lugar pelo qual alguns teriam pisoteado os próprios filhos —, insinuando que estar aqui, afinal de contas, não era uma grande conquista. Se mentiras pudessem manchar as paredes, este prédio teria um nome muito diferente. Mas também havia grandeza aqui, e isso intimidava mais que a mesquinhez dos políticos. Aqui, James Monroe promulgara a Doutrina Monroe e impulsionara seu país rumo ao mundo estratégico. Aqui, Lincoln mantivera a pátria coesa puramente através de sua força de vontade. Aqui, Teddy Roosevelt concedera à América influência no jogo global, e mandou sua Grande Frota Branca ao redor do mundo para proclamar o sonho americano. Aqui, o primo distante de Teddy salvara o país do caos e do desespero interno, falando com sua voz anasalada enquanto segurava uma cigarreira. Aqui, Eisenhower exercera poder com tamanha habilidade que dificilmente alguém teria notado que ele não estava fazendo nada. Aqui, Kennedy saíra vitorioso em suas negociações com Krushchev, o que acobertou uma série de erros crassos. Aqui, Reagan tramara a destruição do inimigo mais perigoso da América, apenas para ser acusado de passar a maior parte do tempo dormindo. No fim, o que contava mais — as conquistas ou os segredinhos sujos de homens imperfeitos que deram passos efêmeros para além de sua fraquezas? Os pequenos passos constituíram a História americana, enquanto o resto foi, em sua maior parte, esquecido — exceto por historiadores revisionistas que não entendem que as pessoas não foram feitas para ser perfeitas.

Ainda assim, esta não era a sua casa.

 

A entrada era uma espécie de túnel, que se estendia sob a Ala Leste, onde a primeira-dama — até noventa minutos atrás, Anne Durling — mantinha seu escritório. Por lei, a primeira-dama era uma civil — denominação estranha para a chefe de uma equipe paga pelo governo —, mas suas funções costumavam ser imensamente importantes, ainda que oficiosas. Aqui, as paredes são de museu, não de casa, refletiu Ryan enquanto o cortejo passava diante do pequeno cinema da Casa Branca, onde o presidente podia assistir a filmes com mais de uma centena de amigos íntimos. Havia diversas esculturas, muitas de Frederic Remington, e o tema geral era puramente americano. As pinturas eram retratos de presidentes. Seus olhos sem vida pareciam fitar Ryan diretamente, com suspeita e dúvida. Todos os homens que moraram nesta casa, bons e maus, julgados positiva ou negativamente pelos historiadores, estavam olhando para ele...

Sou um historiador, disse Ryan a si mesmo. Escrevi alguns livros. Julguei as ações de outros a uma distância segura em termos de tempo e espaço. Por que não viu isso? Por que ele não fez aquilo? De súbito, Ryan se arrependeu dessa postura. Agora ele estava no cerne da História e vê-la por dentro era bem diferente. Olhando por fora, podem-se analisar todos os lados de cada questão, demorar o tempo necessário em cada gota de informação, e até mesmo recuar no tempo para melhor entender o quadro geral. Olhando por fora, o tempo farto permite decidir pelas opções certas.

Mas isso não era possível quando se olha por dentro. Aqui tudo investe em sua direção como se você estivesse no cruzamento de uma ferrovia, com uma série de trens vindo de todas as direções ao mesmo tempo, movendo-se segundo seus próprios horários, deixando-lhe pouco espaço para manobras ou reflexões. Ryan já podia sentir isso. E as pessoas nas pinturas chegaram a este lugar com o luxo do tempo para pensar sobre sua ascensão, com o luxo de contar com conselheiros de confiança, com o luxo de estar aqui por opção do povo. Ryan não tinha nenhum desses benefícios. Contudo, para os historiadores, bastaria o esforço de traçar uma página ou um breve parágrafo para proceder a uma análise impiedosa.

Jack sabia que todas as suas palavras e ações seriam submetidas a um escrutínio profundo — e não apenas deste momento em diante. As pessoas agora olhariam para o passado em busca de informações sobre sua personalidade, suas crenças, suas ações boas e más. Desde o momento que aquele avião colidiu com o Capitólio, ele era presidente, e cada respiração que dera seria examinada a uma luz nova e inclemente pelas futuras gerações. Em sua vida diária, não conheceria a privacidade, e mesmo em morte não estaria salvo do escrutínio de pessoas que não faziam ideia do que era caminhar nesta imensa casa-escritório-museu e saber que ela seria sua prisão pela eternidade. As grades talvez fossem invisíveis, mas era exatamente isso que as tornava mais reais.

Muitos homens sonharam com este emprego, apenas para descobrir quão horrível e frustrante ele era. Jack sabia disso, graças aos seus estudos e ao relacionamento pessoal com três homens que ocuparam o Salão Oval. Eles, pelo menos, vieram para cá com os olhos supostamente abertos, e talvez pudessem ser culpados por ter mentes menores que seus egos. O quanto seria pior para alguém que jamais desejara essa posição? E a História julgaria Ryan com mais clemência por isso? Esse pensamento mereceu um risinho cínico.

Não. Ryan viera a esta Casa numa época em que seu país precisava, se não satisfizesse suas necessidades, todas as gerações futuras o condenariam como um fracassado, ainda que tivesse chegado a esta posição por acidente condenado por um homem, agora morto, a fazer o trabalho com o qual outro homem sonhara.

Para o Serviço Secreto, era hora para relaxar um pouco. Não sabem a sorte que têm, — pensou Ryan, permitindo-se um pouco de amargura, justa ou não. O trabalho dos agentes era proteger o presidente e sua família. O trabalho de Ryan era proteger os agentes e suas famílias, assim como milhões de outras.

— Siga-me, presidente — disse Price.

Ela dobrou à esquerda, entrando no corredor do térreo. Aqui, Ryan viu pela primeira vez o corpo de empregados da Casa Branca, parados para conhecer seu novo patrão, o homem a quem deveriam servir com o máximo de dedicação.

Como todos os outros, simplesmente ficaram parados sem saber o que dizer, avaliando o homem sem revelar o que pensavam, embora decerto logo fossem trocar opiniões na privacidade de seus aposentos ou refeitórios. A gravata de Jack ainda estava torta. E ele ainda usava a jaqueta de bombeiro. O jorro de água que congelara em seus cabelos dera a eles uma aparência injustamente grisalha, e estava derretendo. Um dos membros do corpo de empregados sumiu de vista enquanto o cortejo prosseguia rumo a oeste. Reapareceu um minuto depois, correndo através da equipe de segurança, e deu uma toalha a Ryan.

— Obrigado — disse Ryan, surpreso.

Permaneceu imóvel por um momento antes de começar a enxugar o cabelo.

Foi quando viu um fotógrafo apontando a câmera para ele, batendo fotos com toda tranquilidade. O Serviço Secreto não o impediu. Isso, pensou Ryan, fazia dele um membro do quadro de funcionários, o fotógrafo oficial da Casa Branca, cujo trabalho era registrar tudo. Maravilha, minha própria gente me espiona!

Mas não era hora de tentar mudar nada, era?

— Para onde vamos, Andréa? — perguntou Jack enquanto passavam por mais retratos de presidentes e primeiras-damas, todos olhando para ele.

— O Salão Oval. Eu pensei...

— Sala de Situação — disse Ryan, parando de repente, ainda enxugando o cabelo. — Não estou preparado para essa sala ainda, certo?

— Claro, Sr. Presidente.

No final do corredor largo, dobraram à esquerda e entraram num vestíbulo revestido com madeira de aparência barata. Dali dobraram à direita, saindo novamente da Casa. Não havia um corredor da Casa Branca até a Ala Oeste.

Foi por causa disso que ninguém tirou os casacos, pensou Ryan.

— Café — pediu Jack.

Pelo menos a comida aqui seria boa. O refeitório da Casa Branca era dirigido l r serviçais da Marinha; seu primeiro café presidencial veio numa chaleira de prata foi servido numa xícara belíssima, por um marinheiro cujo sorriso era a um só tem (profissional e genuíno). Como todos os outros, o marinheiro estava curioso com o novo Patrão. Ocorreu a Ryan que ele era como um animal no zoológico. Interessante, até fascinante... e será que se adaptaria à sua nova jaula?

Mesma sala, poltrona diferente. O presidente sentava-se centralizado à mesa, de modo que auxiliares pudessem juntar-se a ele em ambos os lados.

Ryan escolheu seu lugar e o ocupou com naturalidade. Afinal de contas, era apenas uma poltrona. Os adornos do poder eram simplesmente coisas, e o poder em si era apenas uma ilusão, porque era sempre acompanhado por obrigações ainda maiores. Os adornos podiam ser vistos. O poder, apenas sentido. Essas obrigações vinham com o ar, que subitamente pareceu pesado na sala sem janelas. Jack bebericou seu café, olhando em torno. O relógio da parede marcava 23:14. Era presidente havia... o quê? Noventa minutos?

Aproximadamente o mesmo tempo que demorava para ir de sua casa para... sua nova casa... dependendo do tráfego.

— Onde está Arnie?

— Bem aqui, presidente — disse Arnold van Damm ao passar pela porta.

Chefe de gabinete de dois presidentes, Arnie agora estabeleceria um recorde, auxiliando um terceiro. Seu primeiro presidente renunciara em desgraça. O segundo estava morto. O terceiro seria o da sorte... ou coisas ruins vêm em trios? Dois adágios, mutuamente exclusivos. Os olhos de Ryan cruzaram com os de Arnie, exprimindo a pergunta que ele não podia expressar: Que faço agora?

— Boa a sua declaração à TV. Acima da média.

O chefe de gabinete sentou-se do outro lado da mesa. Parecia calmo e competente, como sempre, e Ryan não refletiu sobre o esforço que isso exigia de um homem que perdera mais amigos do que ele.

— Nem tenho certeza do que disse — replicou Jack, vasculhando em sua mente lembranças já desvanecidas.

— Isso é normal em discursos de improviso — condescendeu van Damm. — Foi muito bom. Sempre considerei seus instintos ótimos. Vai precisar deles.

— Primeira coisa?

— Os bancos, a bolsa de valores e todas as repartições públicas estão fechadas. Devem ficar assim até o final da semana, talvez mais. Precisamos planejar um funeral de Estado para Roger e Anne. Uma semana de luto nacional, provavelmente um mês com as bandeiras a meio pau. Tínhamos também alguns embaixadores no plenário. Isso significa que uma tonelada de atividade diplomática nos aguarda.

— Quem...

— Temos uma equipe de cerimonial, Jack — disse van Damm. — Eles já estão em seus cubículos trabalhando nisso para você. Temos uma equipe de redatores de discursos que prepararão as suas declarações oficiais. Nossos assessores de imprensa irão querer vê-lo... o que quero dizer com isso é que terá de aparecer em público. Você terá de reconfortar as pessoas. Terá de instilar confiança...

— Quando?

— O mais tardar, durante a programação matutina da CNN e de todas as redes. Eu preferiria gravarmos no máximo daqui a uma hora, mas não precisamos disso. Podemos nos desculpar dizendo que está atarefado. E isso será verdade — prometeu Arnie. — Terá de receber instruções sobre o que poderá e o que não poderá dizer diante das câmeras. Instruiremos os jornalistas sobre o que podem e o que não podem perguntar e, numa situação como esta, eles provavelmente irão cooperar. Conte com uma semana de tratamento gentil.

Essa será a sua lua de mel com a imprensa, e só durará isso.

— E depois?

— Depois será o presidente Que caiu do Céu e terá de agir como tal, Jack — disse Damm, com aspereza. — Você não precisava fazer o juramento, lembra disso?

Essas palavras fizeram a cabeça de Ryan balançar enquanto sua visão periférica captava as expressões pétreas das outras pessoas no recinto — todas do Serviço Secreto. Ele era o novo Patrão, e, no momento, seus olhos não diferiam daqueles nos retratos dos presidentes. Eles contavam com ele para fazer a coisa certa. Iriam apoiá-lo e protegê-lo de outros e de si mesmo, mas linha de fazer seu serviço. Também não o deixariam fugir de suas responsabilidades. O Serviço Secreto tinha o dever para protegê-lo de risco físico, Arnie van Damm tentaria protegê-lo de perigos políticos. Outros funcionários da Casa Branca também iriam protegê-lo e servi-lo. Os serviçais iriam alimentá-lo, passariam suas camisas, fariam seu café. Mas nenhum deles permitiria que Ryan fugisse, nem de seu lugar, nem de suas responsabilidades.

Era realmente uma prisão.

Mas o que Arnie acabara de dizer era verdade. Ele poderia ter recusado fazer o juramento, poderia... Não, pensou Ryan, olhando o tampo polido da mesa de carvalho. Se tivesse se negado a fazer o juramento, teria passado à História como um covarde. Ou pior: para o resto da vida, teria considerado a si mesmo um covarde, por ter na consciência um inimigo mais implacável que qualquer estrangeiro. Era de sua natureza olhar no espelho e jamais sentir-se completamente orgulhoso. Ainda que fosse um homem bom — e sabia que era —, jamais se consideraria bom o bastante. Afinal, ele usava ou era usado pelos valores que aprendera com seus pais, professores, instrutores da Marinha, pessoas que conhecera e perigos que enfrentara? Que o trouxera até aqui? Que fizera dele o que era — e quem era, de fato, John Patrick Ryan? Olhou para cima. Correu os olhos pela sala, perguntando-se quem eles pensavam que ele era. Mas eles também não sabiam. Agora era o presidente. O líder com quem contavam, o homem que faria discursos cujas implicações seriam meticulosamente analisadas; o homem que decidiria o que os Estados Unidos da América iriam fazer, e depois seria julgado por outros que não sabiam realmente do que estavam falando. Mas essa não era a definição de uma pessoa.

Era uma descrição das funções de um cargo. Era preciso haver, dentro desse cargo, um homem — ou, num dia não muito distante, uma mulher — que pensasse cuidadosamente e tentasse fazer a coisa certa. E no caso de Ryan, menos de uma hora e meia atrás, a coisa certa fora fazer o juramento. E tentar dar o melhor de si. O julgamento da História seria menos importante que o julgamento de si próprio; menos importante do que a imagem que veria no espelho até o fim da vida. A prisão verdadeira era, e sempre seria, ele mesmo.

Droga.

 

O incêndio finalmente estava extinto, analisou o chefe Magill. Seus homens teriam de ser cuidadosos. Sempre haveria locais quentes, onde o fogo morrera não pela ação da água, mas pela ausência de oxigênio, e aguardaria pela chance de inflamar novamente, para surpresa e morte dos incautos. Mas seus homens eram cuidadosos, e aquelas pequenas chamas de vida malévola não seriam importantes no quadro geral. As mangueiras já estavam sendo enroladas, e alguns de seus homens levavam os caminhões de volta aos quartéis do Corpo de Bombeiros. Para esta ocorrência, Magill privara a cidade inteira de seus recursos contra incêndios, e precisava devolver a maior parte. Assim, no caso de outras ocorrências, o fogo não se espalharia por falta de aparatos de incêndio, e não haveria mais mortes desnecessárias.

Agora estava cercado por outras pessoas, todas usando jaquetas de vinil com grandes letras amarelas proclamando quem eram. Havia um contingente do FBI, e outros do Serviço Secreto, da Polícia Metropolitana de Washington, do NTSB e da Secretaria do Álcool, Tabaco e Armas de Fogo do Departamento do Tesouro, além de seus próprios investigadores de incêndios; todos procuravam alguém que ficasse no comando, de modo que pudessem alegar estar comandando a si próprios. Em vez de realizar uma reunião informal e estabelecer sua própria cadeia de comando, permaneciam em pequenos círculos homogêneos, provavelmente esperando por alguém que lhes dissesse como dirigir as coisas. Magill balançou a cabeça. Já vira isso acontecer antes.

Os corpos estavam saindo mais rápido agora. No momento estavam sendo levados para o arsenal militar de Washington, a cerca de um quilômetro e meio ao norte do Capitólio, logo depois da ferrovia. Magill não invejava as equipes de identificação, embora ainda não tivesse descido até a cratera — era como denominava o plenário no momento — para aferir a gravidade da situação lá embaixo.

— Chefe? — disse uma voz às suas costas. Magill virou-se.

— Sim?

— NTSB. Podemos começar a procurar pelo gravador do avião? — O homem apontou para a cauda do aparelho.

Embora o estabilizador vertical da aeronave não estivesse intacto, era possível discerni-lo e o gravador, conhecido como caixa preta — na verdade pintada de cor de abóbora —, estaria em alguma parte ali. A área estava bastante limpa. A maior parte do estabilizador vertical fora arremessada na direção oeste e havia uma chance de recuperá-lo rapidamente.

— Certo — disse Magill, gesticulando para que dois bombeiros acompanhassem a equipe de averiguação de acidentes.

— Você pode mandar seu pessoal não mover as partes da aeronave a não ser quando extremamente necessário? Precisamos reconstituir o evento, e isso fica muito mais fácil se as peças estiverem no local.

— As vítimas... os corpos vêm em primeiro lugar — frisou Magill. O agente federal assentiu com expressão pesarosa. Aquilo não estava sendo divertido para ninguém.

— Compreendo. Mas se encontrarem a tripulação, por favor, não toquem nos corpos. Ligue para a gente e cuidaremos disso, certo?

— Como iremos distingui-los?

— Camisas brancas, casacos com ombreiras e faixas. E provavelmente são japoneses.

Isso poderia ter soado absurdo, mas não soou. Magill sabia que corpos frequentemente sobreviviam a quedas de avião nas condições mais surpreendentes, tão intactos que apenas um olho treinado podia ver os sinais de ferimentos fatais na primeira inspeção. Isso frequentemente perturbava os civis que geralmente eram os primeiros a chegar na cena. Era muito estranho que o corpo humano parecesse mais robusto que a vida que ele continha. Mas também havia uma certa clemência nisso, pois seus parentes eram poupados da provação de identificar um pedaço de carne cortada e queimada; porém, essa clemência era contrabalançada pela crueldade de ter de reconhecer alguém que não podia falar com você. Magill balançou a cabeça e fez um de seus homens de confiança passar a ordem especial.

Os bombeiros lá embaixo já tinham muitas ordens especiais para seguir. A primeira, claro, fora localizar e remover o corpo do presidente Roger Durling.

Tudo era secundário a isso, e uma ambulância especial estava parada, esperando apenas pelo corpo do presidente. Até mesmo a primeira-dama, Anne Durling, precisaria, pela última vez, esperar um pouco mais para estar com seu marido. Na extremidade mais distante do prédio, um guindaste de construção manobrava para erguer os blocos de pedra que soterravam a área do pódio como cubos alfanuméricos largados por uma criança em sua caixa de brinquedos; àquela luz enganadora, para a ilusão ficar perfeita só faltavam números e letras pintados nas faces dos cubos.

 

Havia gente afluindo em bandos para todos os departamentos governamentais, especialmente oficiais de alto escalão. Era raríssimo as vagas de estacionamento VIP ficarem ocupadas à meia-noite, mas hoje estavam, e o Departamento de Estado não era exceção. Os funcionários de segurança também foram convocados, porque um ataque a uma agência governamental era um ataque a todas, e não importava que a natureza do ataque anulasse a vantagem de convocar pessoas armadas com pistolas. Quando A acontecia, B resultava, porque estava escrito em algum lugar que B era o que você tinha de fazer. Os homens armados olhavam uns para os outros e balançavam a cabeça, sabendo que receberiam hora extra, vantagem que tinham sobre os figurões que chegavam correndo de suas casas em Chevy Chase e nos subúrbios da Virgínia, entravam no prédio e lá ficavam simplesmente jogando conversa fora.

Uma dessas pessoas encontrou sua vaga de estacionamento no porão e usou um cartão magnético para ativar o elevador VIP até o sétimo andar. O que tornava esse homem diferente era que ele tinha uma missão naquela noite, embora viesse questionando-a desde que saíra de sua casa em Great Falls. Seria uma prova de coragem, embora o uso desse termo fosse discutível. Mas que opção ele tinha? Devia tudo a Ed Kealty: nua posição na sociedade de Washington, sua carreira no Estado, tantas outras coisas importantes. Naquele momento, o país precisava de alguém como Ed. Era isso que Ed dissera-lhe, enfatizando a proposta, e o que ele estava fazendo era... quê? No carro, uma voz em sua mente dissera que aquilo era traição. Mas não, aquilo não podia ser chamado de traição. Traição era o único crime definido na Constituição, citado nela como o ato de conferir auxílio e conforto a inimigos do país, e fosse o que fosse que Ed Kealty estivesse fazendo não era isso. Era?

Depois de muita reflexão, a lealdade acabara falando mais forte. Ele, como muitos outros, era um seguidor de Ed Kealty. O relacionamento começara em Harvard, em meio a cervejas, encontros duplos e fins de semana no iate da família dele, os bons tempos de uma juventude animada. Ele tinha sido o convidado proletário de uma das maiores famílias do país... por quê? Porque chamara a atenção de Ed. Mas, ainda assim, por qual motivo? Não sabia, nunca perguntara, e provavelmente jamais descobriria. Amizade era isso.

Simplesmente acontecia, e apenas nos EUA um rapaz da classe proletária conseguiria uma bolsa em Harvard e ficaria amigo do primogênito de uma família importante. Mas provavelmente também teria se saído bem sozinho; devia a Deus sua inteligência, e aos pais o estímulo para desenvolver seus dons, assim como o aprendizado de boas maneiras e... valores. O pensamento fez seus olhos fecharem quando as portas do elevador abriram. Valores. Bem, lealdade era um desses valores, certo? Sem o apoio de Ed, ele seria, no máximo, o vice do secretário de Estado assistente. A palavra vice fora, havia muito, extirpada de seu título pintado em letras douradas na porta do escritório. Num mundo justo, ainda estaria trabalhando duro para remover também a palavra assistente do título, afinal de contas, era tão bom em política externa quanto qualquer outro no sétimo andar. Não conseguiria isso se não fosse um seguidor de Ed Kealty, ou se não tivesse frequentado as festas nas quais conhecera outras figuras influentes. Graças a Ed, chegara ao topo. E ganhara dinheiro. Ele jamais aceitara qualquer tipo de suborno, mas seu amigo instruíra-o a fazer os investimentos certos (os conselhos tinham vindo, na verdade, dos consultores de Ed, mas isso não importava), o que lhe permitira alcançar sua independência econômica e, a propósito, comprar uma casa de 464 m2 em Great Falls, e colocar seu próprio filho em Harvard, sem bolsa, pois Clifton Rutledge III era agora o herdeiro de alguém, não um rapaz brilhante de uma família proletária.

Sem Ed, ele teria de fazer esse trabalho todo sozinho. Portanto, devia sua lealdade a Ed.

Isso suavizou um pouco o dilema de Clifton Rutledge II (na verdade, sua certidão de nascimento dizia Clifton Rutledge Júnior, mas JR não era um sufixo adequado para um homem de sua posição), subsecretário de Estado da pasta política.

O resto era apenas senso de oportunidade. O sétimo andar era sempre vigiado, ainda mais num momento como esse. Mas todos os guardas o conheciam, e era apenas uma questão de fazer parecer que ele sabia o que estava fazendo. Droga, disse Rutledge a si mesmo, ele poderia simplesmente fracassar, e esse talvez fosse o melhor resultado possível. Diria a Ed: Desculpe, mas o documento não estava lá... Perguntando-se se esse era um pensamento indigno, Rutledge parou diante da porta de seu escritório; ali ficou prestando atenção em passos cujo ritmo assemelhava-se ao das batidas de seu coração.

Haveria dois guardas no andar agora, em rondas separadas. A segurança não precisava ser muito rígida num lugar assim. Ninguém entrava no Estado sem um motivo. Mesmo durante o dia, quando os visitantes chegavam, eram escoltados para toda parte. A esta hora da noite, era ainda mais difícil entrar aqui. O número de elevadores em serviço era reduzido. Para chegar ao último andar, era necessário usar um cartão magnético, e um terceiro guarda ficava sempre na saída dos elevadores. Portanto, era apenas uma questão de senso de oportunidade. Rutledge olhou o relógio enquanto ouvia diversos ciclos regulares de passos, e aferiu que os intervalos eram regulares e duravam até dez segundos. Bom. Ele precisava apenas esperar o próximo intervalo.

 

— Oi, Wally.

— Boa noite, senhor — disse o guarda, que se retificou imediatamente: — Má noite.

— Faz um favor para a gente?

— Diga, senhor.

— Café. As secretárias não estão aqui para mexer nas máquinas. Será que você pode dar um pulinho no refeitório e pedir a um dos serventes que traga um bule? Diga pura deixarem na sala de conferências. Começaremos a reunião daqui a pouco.

— Perfeitamente justo. O senhor quer neste instante?

— Se for possível, Wally.

— Volto em cinco minutos, Sr. Rutledge.

O guarda afastou-se com passos determinados, dobrou à direita no fundo do corredor c sumiu de vista.

Rutledge contou até dez e caminhou na outra direção. As portas duplas para o escritório do secretário de Estado não estavam trancadas. Rutledge atravessou o primeiro e; depois o segundo, acendendo as luzes no percurso.

Tinha três minutos. Metade ! Ele torcia para o documento estar trancado no cofre do escritório de Brett Hanson. Nesse caso ele fracassaria, porque apenas Brett, dois de seus assistentes e o chefe de segurança tinham a combinação, e o cofre disparava um alarme quando se tentava abri-la com a combinação errada.

Mas Brett havia sido um cavalheiro, um homem que confiava no próximo, o tipo de pessoa que jamais trancava seu carro ou mesmo sua casa, a não ser que sua esposa lhe pedisse. E se o documento estivesse fora do cofre, só poderia estar em dois lugares. Rutledge abriu a gaveta central da escrivaninha e encontrou o estojo usual de lápis, canetas baratas (Brett sempre as perdia) e clipes de papel. Um minuto se passou enquanto Rutledge vasculhava cuidadosamente a escrivaninha. Nada. quase aliviado, até examinar o tampo da mesa, quando quase soltou uma gargalhada. Bem ali, preso pela ponta sob a capa de couro de uma agenda, havia um envelope pardo sem selo, endereçado ao secretário de Estado. Rutledge puxou-o da agenda, segurando o envelope pelas bordas. Estava aberto. Levantou a aba do envelope e extraiu o conteúdo.

Uma única folha de papel com dois parágrafos datilografados. Nesse momento, Cliff Rutledge sentiu um arrepio. Até esse momento, o exercício havia sido inocente. Ele poderia simplesmente colocá-lo em seu lugar, esquecer que estivera aqui, exercer o telefonema, esquecer tudo. Dois minutos.

Será que Brett teria chegado a remeter o envelope? Possivelmente não. Ele fora um cavalheiro sob todos os aspectos. Jamais teria humilhado Ed daquela maneira. Ed tomou a atitude honrada de se demitir, e Brett reagiria honrosamente, apertando sua mão em um olhar decepcionado. Teria sido apenas isso. Dois minutos e quinze segundos.

Rutledge enfiou a carta no bolso de seu terno, caminhou até a porta, desligou as luzes e retornou ao corredor, parando diante da porta de seu próprio escritório. Aguardou meio minuto.

— Oi, George. — Olá, Sr. Rutledge.

— Acabei de pedir a Wally para nos trazer café.

— Boa ideia, senhor. Noite ruim, esta. É verdade que...

— Temo que sim. Brett provavelmente morreu junto com todos os outros.., — Droga.

— Talvez seja uma boa ideia trancar o escritório dele. Acabei de verificar a porta e...

— Sim, senhor. — George Armitage tirou seu chaveiro e encontrou a chave.

— Ele era sempre tão...

— Eu sei — assentiu Rutledge.

— Há duas semanas encontrei o cofre do Sr. Brett aberto. Imagine que ele fechou a porta mas esqueceu de girar a combinação. — Balançou a cabeça. — Acho que ninguém nunca roubou nada dele, não é mesmo?

— Esse é um problema com o qual vocês da equipe de segurança precisam conviver — disse o subsecretário de Estado da pasta política. — Os figurões sempre são descuidados.

 

Que trabalho bonito. Quem foi o autor? A pergunta tinha uma resposta provisória. Os repórteres de TV, tendo pouco mais o que fazer, continuavam mandando seus câmeras focalizarem a cauda do avião. Ele lembrava bem da logomarca, tendo há muito participado de uma operação que explodira uma aeronave com a cegonha vermelha no leme. A única coisa que o impedia de apreciar inteiramente a cena era a inveja. Era uma questão de orgulho. Sendo um dos maiores terroristas do mundo — usava o título em sua própria mente, e se orgulhava dele, embora não pudesse dizê-lo em voz alta —, um evento como esse devia ter sido realizado por ele, não por algum amador. E só podia ter sido trabalho de um amador. Um amador cujo nome descobriria no devido tempo, pela televisão, juntamente com todas as outras pessoas da terra. A ironia era sufocante. Desde a puberdade dedicava-se ao estudo e à prática da violência política, aprendendo, pensando, planejando — e executando esses atos, primeiro como participante, depois como líder. E agora, quê? Um amador ofuscara-o, um amador ofuscara todo o mundo clandestino ao qual pertencia. Seria embaraçoso, não fosse a beleza da cena.

Sua mente treinada examinava as possibilidades, e as conclusões chegaram depressa. Um único homem. Talvez dois. Contudo, era mais provável que fosse um. Como sempre, pensou balançando a cabeça, um homem disposto a morrer, a sacrificar-se pela Causa — qualquer que fosse —, podia ser mais formidável do que qualquer exército. No caso em questão, esse homem possuía habilidades especiais e acesso a recursos, e as duas coisas serviram-no bem.

Havia também a sorte e o fato de que um só homem levara a missão a cabo.

Era fácil para um único homem manter um segredo. Ele resmungou. Esse era o problema que sempre enfrentava. A parte realmente difícil era encontrar as pessoas certas, pessoas em quem podia confiar, que não se gabariam de seus feitos nem confiariam seus segredos a outros, pessoas que compartilhavam sua visão do que era uma missão, que tinham o mesmo tipo de disciplina que ele e que realmente estavam dispostas a arriscar a vida. O último critério era o preço do ingresso, algo que podia ser reconhecido com facilidade, mas que se tornava cada vez mais raro neste mundo em mudança. O poço secava, não havia por que negar. Tornava-se difícil achar pessoas realmente devotadas.

Sempre mais esperto e perceptivo que seus contemporâneos, eleja fora obrigado a participar de três operações reais, e embora tivesse na alma o aço necessário para fazer o que precisava ser feito, não sentia o impulso de repetir isso. Afinal de contas, era muito perigoso. Não que temesse as consequências de seus atos, mas terroristas mortos não podem desempenhar mais missões. O martírio era um risco para o qual estava sempre preparado, mas algo que realmente não procurava. Queria vencer, para tolher os benefícios de seus atos, para ser reconhecido como vitorioso, libertador, conquistador, para estar nos livros de História como algo mais que uma nota de rodapé. A missão bem-sucedida que aparecia na TV de seu quarto seria lembrada pela maioria das pessoas como uma coisa terrível, não como o ato de um homem, mas como algo semelhante a um desastre natural, porque, por mais elegante que fosse, não sei via a qualquer propósito político. Sorte não bastava. Era preciso ter um motivo, um resultado. Um ato bem-sucedido como esse só era válido se conduzisse a alguma outra coisa. Este, evidentemente, não conduzia a coisa alguma. E isso era lamentável. Não era sempre que...

Não, pensou o homem enquanto pegava o copo de suco de laranja e o bebericava tintes de permitir que sua mente prosseguisse. O que ele queria dizer com não era sempre? Isto jamais havia acontecido. Relembrando a História, podia dizer que assassinos já haviam conseguido derrubar ou pelo menos aleijar governos, mas isso sempre fora conseguido mediante a eliminação de um único homem, e apesar da bravura demonstrada pelo autor dessa missão, o mundo moderno era complexo demais. Mate um presidente ou um primeiro-ministro — mesmo um dos reis aos quais algumas nações tanto respeitavam — e haverá outro para ocupar a vaga. Como acontecera neste caso. Mas desta vez a situação era diferente. Não havia um gabinete para apoiar o novo homem, pura mostrar solidariedade, determinação e continuidade em seus rostos zangados. Se houvesse alguma coisa por trás desse ato, algo mais amplo e importante do que apenas destruir o Capitólio e os homens em seu interior, essa obra de arte teria sido ainda mais bela. A intenção da obra não podia ser mudada, mas como sempre acontece nos eventos desse tipo, havia muito que aprender com seu sucesso e fracasso, e as consequências, planejadas ou não, seriam muito, muito reais.

Nesse sentido, era trágico. Uma oportunidade fora desperdiçada. Se ao menos ele soubesse que isso aconteceria. Se ao menos o homem que conduzira o avião ao seu destino final tivesse deixado alguém saber o que estava planejando. Mas não era assim que os mártires agiam. Os imbecis precisavam pensar sozinhos, agir sozinhos, morrer sozinhos; e seu sucesso pessoal sempre redundava em fracasso no quadro geral. Ou talvez não. As consequências ainda estavam para acontecer...

 

— Sr. Presidente? — Um agente do Serviço Secreto atendera o telefone.

Geralmente teria sido um recruta da Marinha, mas os membros da equipe de segurança ainda estavam abalados demais para deixar alguém de fora entrar na Sala de Situação. — FBI, senhor.

Ryan pegou o telefone no aparelho sob o tampo da mesa.

— Alô?

— Aqui é Dan Murray.

Jack quase sorriu ao ouvir uma voz familiar, a voz de um amigo. Ele e Murray tinham uma longa história juntos. Do outro lado, Murray deve ter querido dizer Oi, Jack, mas não deve ter conseguido falar de modo tão íntimo com o novo presidente. Mesmo que Jack o encorajasse, Murray iria se sentir desconfortável com isso, preocupado com o risco de começar a ser visto como um puxa-saco. Mais um obstáculo para uma vida normal, refletiu Jack. Até os seus amigos agora estavam se distanciando dele.

— O que é, Dan?

— Desculpe incomodá-lo, mas precisamos de orientação sobre quem está conduzindo a investigação. Tem um monte de gente dando ordens aqui na colina do Capitólio e...

— Unidade de comando — observou Jack, azedo. Ele não precisava perguntar por que Murray estava telefonando. Todas as pessoas de cargos subalternos que podiam decidir essa questão estavam mortas. — O que a lei diz a respeito?

— Na verdade, nada — replicou Murray. O desconforto em sua voz era evidente. Não queria incomodar o homem que já fora seu amigo; e ainda seria, em circunstâncias menos oficiais. Mas agora o que importava eram os negócios.

— Jurisdições múltiplas?

— Você nem imagina — confirmou Murray, assentindo com a cabeça do outro lado da linha.

— Acho que vamos classificar o caso como um incidente terrorista. Você e eu temos uma tradição nisso, não é mesmo?

 

— E como, senhor!

Senhor, pensou Ryan. Merda. Mas ele tinha outra decisão para tomar. Jack correu os olhos pela sala antes de responder.

— O FBI é a agência líder nesta investigação. Todos se reportarão a vocês.

Escolha um homem para conduzir as coisas.

— Sim, senhor.

— Dan?

— Sim, presidente?

— Quem é o encarregado do FBI agora?

— O diretor-associado é Chuck Floyd. Está em Atlanta para fazer um discurso e...

Depois dele haveria os diretores-assistentes, todos acima de Murray. Ryan interrompeu o amigo.

— Não o conheço. Conheço você. Até ordem em contrário, você é o diretor interino.

Jack sentiu que a pessoa no outro lado da linha ficou abalada.

— Eu... Jack, eu... — Eu também gostava de Shaw. O emprego é seu, Dan. — Sim, presidente.

Ryan recolocou o telefone no gancho e explicou o que acabara de fazer.

Price foi a primeira a objetar: — Senhor, qualquer ataque ao presidente está sob a jurisdição do... Ryan cortou-a.

— Eles têm mais recursos, e alguém precisa estar no comando. Quero resolver tudo o mais depressa possível.

— Precisamos de uma comissão especial — disse Arnie van Damm.

— Encabeçada por quem? — inquiriu o presidente Ryan. — Um membro da Suprema Corte? Alguns senadores e congressistas? Murray é um profissional muito experiente. Escolheremos um bom... escolheremos quem for o membro mais experiente da Divisão Criminal do Departamento de Justiça para supervisionar a investigação. Andréa, encontre o melhor investigador no Serviço Secreto para ser o assistente-chefe de Murray. Não temos gente de fora para usar. Vamos dirigir isto por dentro. Escolhêramos as melhores pessoas e deixaremos que elas conduzam as coisas. Vamos demonstrar nossa confiança nas agências e em seu trabalho. — Fez uma pausa. — Quero que a investigação acabe o mais rápido possível, entenderam?

— Sim, Sr. Presidente.

A agente Price balançou a cabeça. Com o canto do olho, Ryan percebeu Arnie van Damm assentir em sinal de apreciação. Talvez estivesse fazendo alguma coisa direito, permitiu-se pensar. A satisfação durou pouco. Na parede à sua frente havia uma estante com vários televisores. Todos mostravam agora essencialmente a mesma imagem. O locar ao flash de uma máquina fotográfica, esbranquiçado todos os monitores ao mesmo tempo, chamou a atenção de Jack.

 

Virou-se para ver quatro ângulos de um corpo Rendo carregado num saco pelos degraus da Ala Oeste do Capitólio. Era mais um cadáver para identificar — pequeno ou grande, homem ou mulher, importante ou não, um que não podia ser reconhecido por trás do tecido emborrachado. As únicas coisas que podiam ser lidas eram as expressões tensas, frias e cansadas dos bombeiros carregando a coisa, e foram elas que atraíram a atenção do anônimo fotógrafo de jornal e sua câmera — e, consequentemente, a do presidente, trazendo-o de volta à triste realidade. As câmeras de TV seguiram o trio, dois vivos, um morto, descendo os degraus até uma ambulância cujas portas abertas revelavam uma pilha de sacos semelhantes. Aquele que estavam carregando foi colocado gentilmente na ambulância, em sinal de respeito e piedade pelo corpo que não mais caminharia no mundo dos vivos. Em seguida, os dois voltaram a subir os degraus para pegar o próximo. A Sala de Situação foi tomada por um silêncio profundo enquanto todos os olhos fitavam a mesma imagem. Algumas pessoas suspiraram, mas todos ainda estavam chocados demais para deixar escapar alguma lágrima enquanto baixavam os olhos para o tampo da mesa de carvalho polida. O líquido quente numa xícara de café estava fumegando. A colherzinha escorregou, tilintando contra a porcelana. O leve ruído apenas tornou o silêncio mais funesto, porque ninguém tinha palavras para preencher o vácuo.

— Que mais precisa ser feito agora? — perguntou Jack.

Aquilo o atingira com força, aumentando a sensação de fadiga. Toda a tensão que sentira algumas horas atrás — quando seu coração batera apressado diante da possibilidade de morte e do temor por sua família —, e a agonia da perda, cobrava seu preço agora. O peito parecia-lhe vazio, os braços pesados, como se as mangas de seu terno fossem feitas de chumbo, e subitamente precisou esforçar-se para simplesmente manter a cabeça erguida. Eram 23:35, depois de um dia que começara antes do sol raiar, às 4:10, cheio de entrevistas sobre um cargo que assumira apenas oito minutos antes de sua promoção abrupta. O fluxo de adrenalina que o sustentara tinha chegado ao fim, e sua duração de duas horas deixara-o ainda mais exaurido. Olhou em torno, fazendo uma pergunta que lhe parecia importante: — Onde dormirei esta noite?

Aqui não, decidiu Ryan instantaneamente. Não na cama de um morto, coberto por seus lençóis e a alguns metros de seus órfãos. Ele precisava estar com a própria família. Precisava olhar para os próprios filhos, que provavelmente estavam dormindo agora, porque as crianças dormiam apesar dos piores acontecimentos; precisava sentir os braços da esposa ao seu redor, porque essa era a única constante no mundo de Ryan, a única coisa que jamais permitira que mudasse, a despeito dos eventos ciclônicos que atribularam sua vida.

Os agentes do Serviço Secreto compartilharam um olhar de espanto coletivo, antes que Andréa Price falasse, assumindo o comando, como era de sua natureza e, agora, apropriado ao seu trabalho.

— Quartel dos Fuzileiros? Ryan assentiu.

— Por enquanto serve.

Price falou em seu microfone de rádio, alfinetado ao colarinho de sua jaqueta.

— ESPADACHIM em movimento. Traga os carros para a Entrada Oeste.

Os agentes da segurança presidencial se levantaram. Como uma só pessoa, desabotoaram os casacos e, enquanto passavam pela porta, levaram as mãos às pistolas.

— Acordaremos o senhor exatamente às cinco — prometeu van Damm, acrescentando: — Procure tirar o cochilo de que necessita.

A resposta de Ryan foi um olhar breve e vazio, enquanto saía da sala. O mordomo da Casa Branca deu-lhe um casaco — de quem era ou de onde viera, Jack não pensou em perguntar. Lá fora, acomodou-se no banco de trás de um Chevy Suburban, e o carro moveu-se imediatamente, com um veículo idêntico na frente, e mais três atrás. Jack poderia evitar a visão do Capitólio, mas não os sons, porque sirenes já uivavam por trás do vidro à prova de balas. Mas Jack olhou para o Capitólio — teria sido covardia não fazer isso. O brilho do fogo sumira, substituído pelas luzes piscantes de uma miríade de veículos de emergência, alguns em movimento, a maioria parada, cercando o Capitólio. A polícia mantinha interditadas as ruas do centro da cidade; o cortejo presidencial passou rapidamente rumo leste, chegando dez minutos depois no Quartel dos Fuzileiros. Aqui, todos estavam acordados, adequadamente uniformizados, e cada fuzileiro naval à vista empunhava um fuzil ou tinha um revólver no coldre.

As continências foram rápidas.

A casa do comandante dos fuzileiros fora construída no começo do século XIX, um dos poucos prédios oficiais não incendiados pelos ingleses em sua visita de 1814. Mas o comandante estava morto. Viúvo com filhos crescidos, vivera sozinho aqui até esta última noite. Agora um coronel com uma pistola no coldre estava parado no portão, liderando o pelotão completo que cercava a casa.

— Sr. Presidente, sua família está acomodada e segura — reportou prontamente o coronel Mark Porter. — Temos uma companhia de atiradores espalhada pelo perímetro, e outra está a caminho.

— E a imprensa? — perguntou Price.

— Não recebi nenhuma ordem nesse sentido, Minhas ordens foram de proteger nossos convidados. As únicas pessoas num raio de duzentos metros são as que moram aqui. — Obrigado, coronel — disse Ryan.

Sem precisar se preocupar com a imprensa, Ryan caminhou direto até a porta. Um sargento a abriu, saudando-o como a um oficial dos fuzileiros; sem refletir, Ryan retribuiu a continência. Dentro, mais um oficial apontou-lhe a escadaria — este também bateu continência. Ficou claro para Ryan que ele não conseguiria ir a parte alguma sozinho. Price, outro agente e os fuzileiros seguiram-no escada acima. O corredor do segundo andar tinha dois agentes do Serviço Secreto e mais cinco fuzileiros navais. Finalmente, às 23:54, Jack entrou num quarto para encontrar sua esposa, sentada à espera.

— Oi.

— Jack — disse, virando a cabeça para vê-lo. — E tudo verdade? Ele assentiu, e então hesitou, antes de sentar-se ao lado de Cathy.

— As crianças...?

— Dormindo. — Uma pausa. — Elas não sabem realmente o que está acontecendo. Acho que somos quatro — acrescentou.

— Cinco.

— O presidente está morto? — Cathy virou-se para ver o marido assentir. — Mal o conheci.

— Era um bom sujeito. Seus filhos estão na Casa Branca. Dormindo. Não sabia e eu devia fazer alguma coisa. Assim, vim para cá.

Ryan levou a mão ao colarinho e afrouxou a gravata. Precisou de um esforço considerável para fazer isso. É melhor não perturbar as crianças, decidiu. Além disso, seria exaustivo caminhar até o quarto onde estavam.

— E agora?

— Preciso dormir. Vão me acordar às cinco. ?

— Que vamos fazer?

— Não sei.

Jack conseguiu tirar as roupas. Torceu para que o novo dia trouxesse algumas respostas para as perguntas que aquela noite deixara no ar.


2

Antes do alvorecer

Já era de esperar que eles fossem tão pontuais quanto seus relógios eletrônicos. Ryan teve a impressão de que mal fechara os olhos quando uma batida muito gentil na porta arrancou-o do travesseiro. Seguiu-se o breve momento de confusão, normal no momento em que se acorda em qualquer lugar que não seja sua própria cama: Onde estou? O primeiro pensamento organizado disse-lhe que sonhara um monte de coisas, e talvez... Mas logo depois desse pensamento veio a declaração interna de que o pior sonho ainda era real. Estava num lugar estranho, e não havia outra explicação para isso. O tornado arrebatara-o numa massa rodopiante de terror e confusão, e trouxera-o até aqui, e aqui não era Kansas nem Oz. A melhor notícia — depois de cinco ou dez segundos de tentativa de se orientar — foi que não sentia a dor de cabeça característica da privação de sono, e que não estava muito cansado. Despiu o lençol e se levantou da cama. Seus pés encontraram o chão; começou a caminhar até a porta.

— Muito bem, estou de pé — disse à porta de madeira.

Percebeu que seu quarto não dispunha de banheiro, e que teria de abrir a porta. Foi o que fez.

— Bom dia, Sr. Presidente.

Um agente jovem, de aparência honesta, entregou-lhe um roupão de banho.

Novamente, esse deveria ser o trabalho de uma arrumadeira, mas o único fuzileiro naval no corredor estava armado. Jack imaginou se na noite anterior teria havido outra briga de gangues entre os fuzileiros navais e o Serviço Secreto, para decidir quem tinha a primazia na proteção ao seu novo presidente.

Para sua surpresa, percebeu que o roupão era o seu.

— Ontem à noite pegamos algumas de suas coisas — explicou o agente num sussurro.

Um segundo agente entregou-lhe o agasalho esfarrapado que Cathy usava dentro de casa. Portanto, alguém invadira sua casa na noite anterior —só poderia ter sido isso, porque não dera as chaves a ninguém — e desativara o alarme contra ladrões. Caminhou de volta até a cama e pousou nela o agasalho de Cathy. Um terceiro agente apontou um quarto desocupado no fundo do corredor. Havia ternos sobre a cama, juntamente com quatro camisas — todas recém-passadas —juntamente com uma fileira de gravatas e todo tipo de aparatos. Não há nada mais estimulante que o desespero, concluiu Jack. O corpo de funcionários sabia pelo que ele iria passar, ou pelo menos tinha uma noção, e estavam fazendo com perfeição frenética cada pequena coisa que pudesse facilitar-lhe a vida. Alguém até mesmo engraxara seus três sapatos até deixá-los brilhando. Eles nunca pareceram tão bonitos antes, pensou Ryan, enquanto caminhava até o banheiro — onde, obviamente, encontrou todas as suas coisas, até mesmo seu costumeiro sabonete Zest. Ao lado estava o material de tratamento de pele usado por Cathy. Ninguém achava que a vida de presidente fosse fácil, mas ele agora estava cercado por pessoas determinadas a eliminar cada pequena preocupação que pudesse ter.

Um banho quente ajudou-o a relaxar os músculos e enevoou o espelho, o que ajudou a tornar a situação mais familiar quando se barbeou. A rotina matinal costumeira terminou por volta das 5:20 e Ryan desceu as escadas. Lá fora — viu através de uma janela — uma falange de fuzileiros com roupas de camuflagem marchava em guarda ao quartel, suas respirações pontuadas pela expiração de pequenas nuvens brancas. As pessoas no interior do quartel batiam continência para Ryan à medida que passava. Talvez ele e sua família tivessem desfrutado de pouquíssimas horas de sono, mas o mesmo acontecera a todos.

Essa era uma coisa de que precisava lembrar, disse Jack a si mesmo enquanto o aroma o atraía até a cozinha.

— Sentido! — ordenou o primeiro-sargento.

Os fuzileiros empertigaram-se silenciosamente, em respeito às crianças adormecida, no andar de cima; pela primeira vez, desde o jantar na noite anterior, Ryan permitiu-se um sorriso.

— À vontade, fuzileiros.

O presidente Ryan caminhou até o bule de café, mas uma recruta chegou antes dele. As proporções corretas de creme e açúcar foram acrescidas ao café — novamente, alguém fizera algum trabalho de casa — antes que ela lhe passasse a caneca.

— A equipe está na sala de jantar, senhor — comunicou-lhe o primeiro-sargento.

— Obrigado — disse o presidente Ryan, seguindo para o lugar indicado.

Os fuzileiros estavam com uma péssima aparência, o que fez Ryan sentir-se brevemente culpado por haver tomado banho e se barbeado. Então viu a pilha de documento que tinham preparado.

— Bom dia, presidente — disse Andréa Price.

As pessoas começaram a se levantar das cadeiras. Ryan gesticulou para que se sentassem e apontou para Murray.

— Dan, o que sabemos? — perguntou o presidente.

— Há duas horas encontramos o corpo do piloto. Boa identificação. Seu nome era Sato, como esperávamos. Um piloto muito experiente. Ainda estamos procurando pelo copiloto. — Murray fez uma breve pausa. — O corpo do piloto foi examinado pura aferir se ele tomara drogas, mas descobrir algo assim seria uma surpresa. A NTSB anda checando o gravador de voo neste exato momento.

O gravador foi achado por volta das quatro da manhã. Até agora recuperamos duzentos corpos...

— Presidente Durling?

Price respondeu a essa pergunta balançando a cabeça.

— Ainda não. Aquela parte do edifício está... bem, está uma zona completa.

Decidiram esperar a luz do dia para intensificar as buscas.

— Sobreviventes?

— Até agora apenas as três pessoas que estavam naquela parte do prédio na hora da colisão.

— Certo. — Ryan também balançou a cabeça. Essas informações eram importantes, mas irrelevantes. — Alguma coisa realmente importante?

Murray consultou suas anotações.

— A aeronave partiu do aeroporto internacional de Vancouver. Eles arquivaram um plano de voo falso para Heathrow, em Londres, rumaram para o leste, deixaram o espaço aéreo canadense às 7:51, hora local. Tudo muito rotineiro. Concluímos que ele seguiu em frente durante algum tempo, reverteu o curso e seguiu para sudeste na direção de Washington. Depois disso, blefou para enganar nosso controle de tráfego aéreo.

Como?

Murray fez um sinal para alguém que Ryan não conhecia.

— Sr. Presidente, sou Ed Hutchins, da NTSB. Não foi difícil. Ele afirmou ser um voo charter da KLM, em rota para Orlando. Em seguida, declarou uma emergência. Sempre que há um voo em estado de emergência, nosso pessoal é treinado para fazer o avião pousar imediatamente. Estávamos lidando com um sujeito que sabia apertar os botões certos. Ninguém teria como prever o que aconteceu — concluiu, defensivamente.

— Há apenas uma voz nas fitas — comentou Murray. Hutchins prosseguiu: — De qualquer modo, temos fitas do rastreamento do radar. Ele simulou uma aeronave com dificuldades de controle, requisitou um vetor de emergência para a base aérea de Andrews e conseguiu o que queria. De Andrews para o Capitólio leva menos de um minuto de voo.

— Um dos nossos disparou um míssil Stinger — disse Price, com certo orgulho triste.

Hutchins simplesmente sacudiu a cabeça. Era o gesto da moda nesta manhã em Washington.

— Mas contra uma coisa daquele tamanho, foi o mesmo que lançar uma cusparada.

— O Japão se manifestou?

— Estão em estado nacional de choque — quem falou foi Scott Adler, o oficial de carreira mais longa no Departamento de Estado e um amigo de Ryan.

— Logo depois que você assumiu, recebemos um telefonema do primeiro-ministro. Ele também teve, claro, uma semana muito ruim, mas pareceu feliz por estar de volta ao poder. Ele quer vir até os Estados Unidos para se desculpar pessoalmente. Eu lhe disse que iríamos pensar...

— Diga-lhe que sim.

— Tem certeza, Jack? — perguntou van Damm.

— Alguém acha que foi um ato premeditado? — inquiriu Ryan.

— Não sabemos — respondeu Price.

— Não havia explosivos a bordo da aeronave — informou Dan Murray. — Se houvesse...

— Eu não estaria aqui — disse Ryan, antes de terminar seu café. O recruta reencheu a xícara.

Hutchins assentiu.

— Explosivos são muito leves. Mesmo algumas toneladas, considerando a capacidade do 747-400, não teriam comprometido a missão como um todo, e teriam gerado danos imensos. O que aconteceu aqui foi um acidente aéreo completamente comum. Os danos residuais foram causados por cerca de meia capacidade de combustível de jato, que chega até a oitenta toneladas. Isso é muita coisa — concluiu. Hutchins investigava acidentes aéreos havia quase trinta anos. — É cedo demais para tirarmos conclusões — alertou Price.

— Scott?

— Se isto fosse... droga! — Adler balançou a cabeça. — Isso não foi um ato de agressão da parte do governo japonês. Eles estão frenéticos lá no Japão. Os jornais estão colocando nas manchetes os nomes das pessoas que tinham subornado o governo, e o primeiro-ministro Koga quase chorou pelo telefone.

Se alguém lá planejou isto, eles descobrirão para nós.

— A noção que eles têm de um processo justo não é tão severa quanto a nossa — acrescentou Murray. — Andréa está certa. É cedo demais para tirarmos conclusões, mas até aqui tudo indica que foi um incidente aleatório, não uma agressão planejada.

— Murray fez uma pausa por um momento. — A propósito, soubemos que o outro lado desenvolveu armas nucleares, lembram? Com esse comentário, até o café ficou frio.

 

Este ele achou debaixo de um arbusto enquanto movia uma escada de uma parte da face oeste para outra. O bombeiro estava de serviço havia sete horas.

Seus nervos agora estavam anestesiados. Uma pessoa pode sentir apenas uma quantidade determinada de horror antes que sua mente comece a considerar os cadáveres e peças corporais como simples coisas. Os restos de uma criança poderiam tê-lo perturbado, ou os de uma mulher particularmente bonita, porque este bombeiro ainda era Jovem e solteiro, mas o cadáver que encontrou acidentalmente não pertencia a nenhum desses dois tipos. O tronco não tinha mais cabeça, e partes de ambas as pernas estavam faltando; contudo, era claramente um corpo de homem, vestindo os farrapos de uma camisa branca, com dragonas nos ombros. Havia três faixas em cada uma das dragonas.

Exausto demais para pensar, perguntou-se o que aquilo significaria. O bombeiro virou-se e acenou para seu tenente, que por sua vez cutucou o braço de uma mulher usando um boné do FBI.

A agente caminhou até o local, bebericando café numa xícara de plástico e morrendo de pena por não poder acender um cigarro — ainda havia risco de incêndio.

— Acabo de achar este aqui. Está num lugar engraçado, mas...

— Sim, engraçado...

A agente levantou sua câmera e bateu uma série de fotos que teriam a hora exata em que foram feitas preservada eletronicamente. Em seguida, tirou um bloco de seu bolso e anotou a localização do corpo número quatro em sua lista pessoal. Sua área de responsabilidade não lhe exigia fazer muita coisa. Algumas estacas de plástico e fitas amarelas marcariam o sítio; ela começou a escrever a etiqueta para colocar nele.

— Pode virar o corpo.

Debaixo do corpo, viram um fragmento de vidro — ou plástico transparente — de forma irregular. A agente bateu mais uma foto, e através do visor, as coisas pareceram mais interessantes. Olhando para cima, viu uma fenda na balaustrada de mármore. Outro olhar em torno revelou diversos objetos metálicos que, uma hora antes, concluíra ser partes da aeronave, e que haviam atraído a atenção de um investigador da NTSB. O investigador agora estava conferenciando com o mesmo oficial do corpo de bombeiros com quem ela conversara um minuto antes. A agente precisou gesticular três vezes para chamar sua atenção.

— Que é?

O investigador da NTSB limpava seus óculos com um lenço. A agente apontou para o corpo.

— Dê uma olhada na camisa dele.

— E do quadro de funcionários. Talvez um motorista — disse o homem, depois de um momento. Agora foi sua vez de apontar. — Que é isto?

Havia uma delicadeza estranha naquilo. A camisa do uniforme branco tinha um buraco exatamente à direita do bolso. O buraco estava cercado por uma mancha vermelho-ferrugem. O agente do FBI aproximou a lanterna, o que revelou que a mancha estava seca. A temperatura corrente estava um pouco abaixo de seis graus negativos. O corpo fora arremessado neste clima cruel virtualmente no momento do impacto; o sangue sobre o pescoço decepado estava congelado e sua coloração assumira um tom funesto de púrpura. A agente percebeu que o sangue na camisa secara antes de ter uma chance de congelar.

 

— Não mova mais o corpo — disse ela ao bombeiro. Como a maioria dos agentes do FBI, ela havia sido policial da localidade antes de ingressar na agência federal. O frio deixara seu rosto pálido.

— Primeira investigação de acidente aéreo? — indagou o homem da NTSB, considerando erroneamente a causa de sua palidez.

Ela assentiu.

— Sim, mas não é o meu primeiro crime de assassinato.

Dito isso, a agente ligou seu walkie-talkie para convocar seu supervisor.

Para este corpo, ela queria uma equipe de investigação criminal e legislas.

 

OS telegramas chegavam de cada governo do mundo. A maioria deles eram longos, e todos foram lidos — bem, pelo menos aqueles dos países mais importantes. Togo podia esperar.

— Interior e Comércio estão na cidade à espera de uma reunião do gabinete, junta mente com todos os vices — disse van Damm enquanto Ryan folheava as mensagens, tentando ler e ouvir ao mesmo tempo.

— Todos os vices do Estado-Maior estão reunidos, juntamente com os comandantes-em-chefe das Forças Armadas para discutir a segurança nacional...

— Condição de risco? — inquiriu Jack sem erguer os olhos.

Até o dia anterior, ele fora o conselheiro de Segurança Nacional do presidente Durling, e quase não conseguia acreditar que o mundo tivesse mudado tanto em apenas 24 horas.

Scott Adler deu a resposta: — Controlada.

— Washington está completamente paralisada — acresceu Murray. — A TV e o rádio estão veiculando pedidos para que as pessoas permaneçam em casa, exceto para serviços essenciais. A Guarda Nacional de Washington está de prontidão. Precisamos substituir o pessoal em serviço nos escombros do Capitólio, e a Guarda Metropolitana de Washington é uma brigada de polícia militar. Podemos vir a usá-la. Além disso, os bombeiros provavelmente já estão exaustos.

— Quanto tempo devemos esperar pelas conclusões da investigação? — perguntou o presidente.

— Não há como prever isso já... senhor...

Ryan levantou os olhos do telegrama do governo belga.

— Há quanto tempo nos conhecemos, Dan? Não sou Deus, entendeu?

Ninguém vai fuzilar você se usar meu nome de vez em quando.

Foi a vez de Murray sorrir.

— Tá certo. Não é possível prever quando teremos algum resultado das investigações principais. Mas eles vão chegar. Cedo ou tarde, vão chegar — prometeu Dan. — Temos uma ótima equipe de investigação trabalhando lá fora.

— O que eu digo à imprensa?

Jack esfregou os olhos, já cansados da leitura. Talvez Cathy estivesse certa.

Talvez finalmente estivesse precisando de óculos. A sua frente havia uma relação impressa com suas aparições televisivas naquela manhã, que seriam realizadas uma depois da outra. CNN às 7:08, CBS às 7:20, NBC às 7:37, ABC

às 7:50, Fox às 8:08, todas transmitidas da Sala Roosevelt na Casa Branca, onde já havia câmeras montadas. Alguém decidira que um discurso formal exigiria muito de Ryan neste momento, e não seria realmente apropriado à situação até que ele tivesse alguma informação substancial para transmitir.

Apenas uma apresentação calma, digna e — acima de tudo — íntima de si mesmo às pessoas que estariam lendo seus jornais e bebendo seus cafés.

— Perguntas leves. Já acertamos tudo — assegurou-lhe van Damm. — Responda a tudo. Fale lenta e claramente. Pareça o mais relaxado que puder.

Evite qualquer coisa dramática. As pessoas não estão esperando isso. Elas querem saber que tem alguém no comando, atendendo telefonemas, fazendo o que é preciso. Sabem que é cedo demais para que diga ou faça qualquer coisa decisiva.

— E os filhos de Roger?

— Ainda dormindo, espero. Trouxemos membros da família para a cidade.

Estão agora na Casa Branca.

O presidente Ryan assentiu sem olhar para cima. Era difícil fitar os olhos das pessoas sentadas à mesa de café, especialmente quando falava de tais assuntos. Também havia um plano para isso. Logo, novos moradores se mudariam para a Casa. A família Durling — o que restara — teria de ser retirada da Casa Branca com gentileza, mas rapidez. Eles não podiam mais morar ali. O país precisava ver outra pessoa na Casa Branca, e essa pessoa precisava estar o mais confortável possível, e isso significava eliminar todas as lembranças visíveis do morador anterior. Não era brutal, concluiu Jack. Era simplesmente uma questão de negócios. Sem dúvida, eles haviam escalado um psicólogo para ajudar os membros da família a lidar com a dor da perda, a processá-los através do sofrimento com a ajuda dos melhores recursos da ciência médica. Mas a pátria vinha em primeiro lugar. No inclemente cálculo da vida, mesmo uma nação tão sentimental quanto os Estados Unidos da América precisava seguirem frente. Quando chegasse a hora de Ryan deixar a Casa Branca — qualquer que fosse a forma como isso acontecesse —, a mesma coisa precisaria ser feita. Houve um tempo em que um ex-presidente assistiria à posse de seu sucessor e desceria a colina do Capitólio até a Union Station a fim de pegar um trem para casa. Agora usavam veículos especiais de segurança, e provavelmente a família seria transportada numa aeronave cedida pela Força Aérea. As crianças retornariam para a Califórnia com familiares, deixando para trás a escola e os amigos que fizeram aqui. Questão de negócios ou não, era inclemente, pensou Ryan enquanto fitava distraído o telegrama belga. Como teria sido melhor para todos se aquele avião não tivesse caído sobre o Capitólio...

E se não fosse por tudo isso, Jack dificilmente seria chamado para consolar os filhos de um homem que conhecera, e com toda certeza não precisaria ocupar sua casa. Balançou a cabeça. Não era sua culpa, mas era seu trabalho.

O telegrama comentava que, num espaço de menos de trinta anos, a América ajudara duas vezes a salvar o pequeno país, protegendo-o depois através da aliança da OTAN. Havia um elo de sangue e amizade entre os EUA e uma nação que a maioria dos cidadãos americanos teria dificuldade de apontar num globo. Isso era verdade. Quaisquer que tivessem sido seus erros, quaisquer que fossem suas imperfeições e sentimentos despertados por alguns de seus atos, os Estados Unidos da América na maioria das vezes fizeram a coisa certa. Graças aos EUA, o mundo era um lugar melhor para se viver, e era por causa disso que os negócios não podiam parar.

 

O inspetor Patrick O'Day ficou feliz por estar frio. Sua carreira como investigador já durava quase trinta anos, e não era a primeira vez que se via na presença de diversos cadáveres e suas partes decepadas. A primeira vez que estivera nesse tipo de situação fora no Mississippi, num mês de maio. A Ku Klux Klan plantara uma bomba numa escola dominical, deixando onze vítimas. Pelo menos aqui o frio eliminava o odor dos corpos humanos mortos. O’Day jamais quisera realmente chegar a um posto elevado no FBI — inspetor era um título com importância relativa. Em seu caiu, tomo no de Dan Murray, O’Day trabalhava como solucionador de problemas, sendo frequentemente enviado para fora de Washington para lidar com as situações mais delicadas.

Reconhecido como um agente de rua extraordinário, O’Day conseguira manter-se com a mão na massa, em vez de trabalhar simplesmente como supervisor de alto nível, o que considerava tedioso.

O diretor-assistente Tony Caruso seguira outro caminho. Ele fora agente especial no comando de dois departamentos de investigação de campo, subira para chefe da Divisão l — Treinamento do FBI, e em seguida assumira o Departamento de Investigação de i impo de Washington. Caruso gostava do poder, prestígio, salário alto e vaga especial li estacionamento que seu cargo lhe concedia, mas parte dele invejava seu velho amigo, Pat, por lidar diretamente com os casos.

— Que você acha? — perguntou Caruso, olhando para o corpo. Eles ainda precisam de luz artificial. O sol estava se levantando, mas no lado mais distante do prédio — Ainda não dá para jurar isso perante um tribunal, mas este cara estava morto horas antes do pássaro cair.

Os dois homens observavam um especialista grisalho da Divisão Laboratorial do Quartel-General olhar o corpo. Havia toda sorte de testes a realizar. Temperatura do corpo era um deles. Embora esses exames conferissem dados pouco precisos já ficariam satisfeitos se acusassem a morte da vítima para qualquer momento antes das 21h45 da noite anterior.

— Esfaqueado no coração — disse Caruso, estremecendo ao pensar nisso.

Sempre era difícil aceitar a brutalidade de um assassinato. Fosse de uma única pessoa ou de milhares, uma morte errada é uma morte errada, e o número indicava apenas quantos registros individuais deveriam ser arquivados. Ele acrescentou: — Achamos o piloto O’Day assentiu.

— Certo. Três faixas, o que faz dele o copiloto, e foi assassinado. Então talvez tenha sido apenas um sujeito.

— Quantos tripulantes são necessários para um avião desses? — perguntou Caruso ao supervisor da NTSB.

— Dois. Antigamente usava-se um engenheiro de voo, mas hoje em dia ele é dispensável. Para voos realmente longos, pode-se usar um piloto de reserva, mas esses pássaros são completamente automáticos hoje em dia, e os motores raramente enguiçam.

O técnico levantou-se e acenou para as pessoas com o saco de corpo antes de se Juntar aos outros.

— Querem ouvir a primeira versão?

— Claro que sim — replicou Caruso.

— Definitivamente, estava morto antes da queda. Não sofreu nenhum ferimento I r colisão. O ferimento no peito é relativamente antigo. Deveria haver contusões causadas pelos cintos de segurança, mas não há. Ele tem apenas arranhões e manchas,com n mito pouco sangue. Não há sangue suficiente na cabeça decepada. Na verdade, não há sangue suficiente em nenhuma parte dos restos aqui. Digamos que ele foi assassinado enquanto estava em seu assento na aeronave. Os cintos mantiveram-no ereto. A post mortem drena todo o sangue para as extremidades inferiores, e as pernas foram arrancadas quando o pássaro atingiu o prédio... por isso há tão pouco sangue.

Tenho muito trabalho a fazer, mas será sujo e rápido. Ele estava morto havia pelo menos três horas quando o avião chegou. — Will Gettys estendeu a carteira.

— Aqui está a identificação do homem. Pobre coitado. Acho que ele não fez parte disto. O’Day foi obrigado a perguntar: — Quais são as chances de você estar errado em alguma dessas coisas?

— Eu ficaria muito surpreso, Pat. Uma diferença de uma ou duas horas no tempo da morte... é possível, principalmente para mais cedo do que para mais tarde. Mas não há sangue suficiente neste cara para que ele estivesse vivo no momento do impacto. O homem estava morto antes da queda. — Embora soubesse que sua carreira estaria em risco caso ele estivesse enganado, Gettys concluiu, confiante: — Eu poderia jurar sobre a Bíblia.

— Graças a Deus — disse Caruso, com um suspiro.

Isso facilitaria as coisas para a investigação. Durante os próximos vinte anos haveria toda sorte de teorias conspiratórias, e o FBI prosseguiria em seu serviço, checando cada possibilidade, auxiliado, com certeza, pela polícia japonesa. Mas um homem sozinho levara esta aeronave até o solo. O que aumentava a possibilidade de um assassinato sem motivo político, como muitos outros, e de que tivesse sido trabalho de um só homem, demente ou não, habilitado ou não, mas, em todo caso, solitário. Não que todos pudessem acreditar nisso.

— Passe a informação para Murray — ordenou Caruso. — Ele está com o presidente.

— Sim, senhor.

O’Day caminhou até onde sua caminhonete a diesel estava estacionada.

Provavelmente sou a única pessoa na cidade que tem uma dessas com um farol de polícia ligado na saída do isqueiro elétrico, costumava pensar o inspetor.

Entrou na caminhonete. Uma notícia dessas não se transmitia por rádio, fosse ou não em frequência codificada.

 

O contra-almirante Jackson colocou sua jaqueta azul a cerca de noventa minutos da base aérea de Andrews, tendo desfrutado de seis horas de sono necessário depois de ter participado de uma reunião na qual foram discutidas coisas que realmente não importavam muito. O uniforme estava amassado porque fora enfiado em sua mala de viagem, mas, felizmente, o tecido azul-marinho escondia bem as rugas. Além disso, suas cinco fileiras de laços e asas de ouro atraíam o olhar. O KC-10 estava adentrando Washington quando alguém murmurou Deus, vejam só aquilo!, algumas fileiras à sua frente; quase todos se ergueram das poltronas para olhar pelas janelas, como se fossem turistas. A luz do começo do alvorecer deixava evidente que o Capitólio — o âmago da capital deste país — não era mais o mesmo. De algum modo, era mais imediato e real que as imagens vistas por muitos deles na TV antes de subir a bordo no Havaí. Cinco minutos depois, o avião pousou na base aérea militar de Andrews. Os oficiais mais graduados encontraram um helicóptero do Primeiro Comando da Força Aérea à sua espera para levá-los ao Pentágono. Este voo, muito mais lento, brindou-os com uma visão ainda melhor dos danos sofridos pelo prédio.

— Deus! — exclamou Dave Seaton pelo comunicador interno. — Será que alguém sobreviveu?

Robby demorou algum tempo para responder.

— Queria saber onde Jack estava quando aconteceu... — Ele lembrou um brinde do exército inglês, Às guerras sangrentas e aos períodos doentios!, que se referia às duas formas certas para um oficial ser promovido. Decerto algumas pessoas sairiam beneficiadas por esse incidente, mas ninguém realmente queria ser promovido dessa maneira, especialmente seu amigo mais íntimo, que estava lá embaixo na cidade ferida, t

 

Os fuzileiros pareciam tensos, percebeu o inspetor O’Day. Ele estacionou sua caminhonete na rua 8. O Quartel dos Fuzileiros achava-se completamente barricado. As calçadas estavam bloqueadas por carros estacionados. Saltou de sua caminhonete e caminhou até um sargento. O’Day usava boné do FBI e segurava sua identificação na mão direita.

— Tenho coisas a resolver lá dentro, sargento.

— Com quem, senhor? — perguntou o fuzileiro, comparando a foto ao rosto.

— Com o Sr. Murray.

— Importa-se de deixar sua arma conosco, senhor? Ordens — explicou o sargento.

— Claro que não.

O’Day entregou o coldre com sua Smith & Wesson 1076 e dois pentes de munição.

— Quantos homens estão patrulhando o quartel? — perguntou.

— Quase duas companhias. Há outra de prontidão na Casa Branca.

Nada como trocar a fechadura depois da casa arrombada, pensou Pat. O mais irônico era: estava trazendo a notícia de que tudo aquilo era desnecessário. O sargento acenou para um tenente que tinha como única função conduzir visitantes através do quartel. O tenente bateu continência para Pat.

— Estou aqui para ver Daniel Murray. Ele está à minha espera. — Por favor, me acompanhe, senhor.

Dentro dos prédios do quartel havia mais um batalhão de fuzileiros, todos portando metralhadoras pesadas. Sim, o presidente Ryan estava muito seguro aqui, a não ser surgisse algum outro maníaco pilotando um avião. Ao longo do caminho, um capitão comparou novamente a foto na identidade com seu rosto.

Alguém precisava dizer-lhes que estavam exagerando antes que começassem a colocar tanques nas ruas.

Murray encontrou-o na porta.

— Boa notícia?

— Muito boa — replicou o inspetor.

— Venha — disse Murray com um aceno. Conduziu o amigo até a sala do café. — t li é o inspetor O’Day. Pat, acho que você sabe quem são essas pessoas.

— Bom dia. Estive no Capitólio e acabamos de descobrir uma coisa que vocês precisam saber — começou.

 

A explicação prosseguiu por mais alguns minutos. — O quanto isso é sólido? — indagou Andréa Price.

— Você sabe como esse tipo de coisa funciona — respondeu O’Day. — É preliminar, mas me parece bastante sólido, e depois do almoço teremos resultados dos testes. Já estamos checando a identidade do copiloto. Isso pode ser um pouco problemático porque não temos uma cabeça com a qual trabalhar, e as mãos também foram arrancadas. Não estamos dizendo que vamos arquivar o caso. Estamos dizendo apenas que temos uma indicação preliminar que sustenta outros dados.

— Posso mencionar isso na TV? — indagou Ryan a todos à mesa.

— Definitivamente não — disse van Damm. — Em primeiro lugar, não está confirmado. Em segundo, é cedo demais para qualquer um acreditar nisso.

Murray e O’Day trocaram um olhar. Nenhum deles era político. Arnie van Damm era. Para eles, controle de informações dizia respeito a proteger provas de modo que um júri as visse em primeira mão. Para Arnie, controle de informação dizia respeito a proteger pessoas de alguma coisa que elas provavelmente não entenderiam, até que essa coisa estivesse mastigada e pudesse ser-lhes dada na boca, uma pequena porção por vez. Ambos pensaram se Arnie era pai e se seu filho já ficara morrendo de fome à espera de sua papa de cenoura. Em seguida, ambos notaram que Ryan deitou um longo olhar em seu chefe de gabinete.

A famosíssima caixa preta era na verdade apenas um gravador que registrava o que acontecia em diversos pontos da aeronave. Coletava dados da turbina e de outros controles de voo e, neste caso, também registrava o que era dito nos microfones dos pilotos. A Japan Airlines era uma companhia de propriedade do governo e, como tal, dotada de todas as inovações tecnológicas.

O gravador de dados de voo era inteiramente digitalizado. Isso possibilitava uma transcrição de dados rápida e clara. Antes de mais nada, um técnico fazia uma cópia em alta velocidade da fita metálica original, que em seguida era guardada num cofre enquanto ele trabalhava na cópia.

— A primeira inspeção dos dados de voo mostrou que a aeronave estava na mais perfeita ordem. Nada estava defeituoso — reportou um analista, examinando os dados numa tela de computador. — Curvas bem delineadas, turbinas estáveis. Um comportamento de voo exemplar... até aqui. — Deu um tapinha na tela. — Neste ponto o avião fez uma curva radical de zero-seis-sete para um-nove-seis... e se manteve nesse curso até sua queda.

— Não ouvimos ainda nada sendo dito na cabine de comando — comunicou outro técnico, que estava correndo o segmento de som da fita para frente e para trás, encontrando apenas comunicações de rotina entre a aeronave e diversas estações de controle. — Vou começar a ouvir tudo desde o começo.

A fita não tinha realmente um começo. Ela corria num ciclo contínuo nesta máquina, porque o 747 geralmente realizava longos voos sobre a água, por quatro horas. Ele levou alguns minutos para localizar o final do voo imediatamente anterior, e aqui encontrou a troca normal de comandos e informações entre dois tripulantes, e também entre a aeronave e o solo, a primeira em japonês e a segunda em inglês, a linguagem da aviação internacional.

Os diálogos foram interrompidos logo depois que a aeronave parou na pista que lhe fora designada para a decolagem. Houve dois minutos inteiros de silêncio, e então o ciclo de gravação recomeçou quando os instrumentos da cabine de comando foram ligados durante os procedimentos para a decolagem.

O tradutor de japonês — um oficial do exército em roupas civis — era da NSA, a agência de segurança nacional.

O som gravado era excelente. Eles podiam ouvir todos os cliques dos botões sendo ligados e o chiado de fundo de diversos instrumentos, mas o som mais alto era o da respiração do copiloto, cuja identidade era especificada pela trilha na fita de gravação.

— Pare — disse o oficial do Exército. — Recue um pouco. Essa é outra voz, não entendo exatamente... Ah, entendi. Tudo pronto, interrogação. Deve ser o piloto. Sim, isso foi uma porta fechando; o piloto acabou de entrar. Checagem de procedimentos de decolagem completa... aguardando a checagem final... Oh... oh, Deus. Ele o matou. Retroceda novamente. O oficial, um major, não viu o agente do FBI colocar um segundo par de fones de ouvido.

Foi uma experiência nova para os dois. O agente do FBI já vira um assassinato gravado por uma câmera de banco, mas nem ele nem o agente do Serviço Secreto tinham ouvido um. O ruído do impacto, um arfar que transmitia surpresa e dor, um gemido, talvez uma tentativa de fala. E outra voz.

— Que foi isso? — perguntou o agente.

— Rode de novo. — O oficial fitou a parede vazia.

— Sinto muito por fazer isso. — A essa fala seguiram-se mais algumas respirações difíceis, e então um suspiro longo.

— Meu Deus.

A segunda voz veio num canal de voz diferente menos de um minuto depois, para notificar à torre que o 747 estava acionando as turbinas.

— Esse é o piloto, Sato — disse o analista da NTSB. — A outra voz deve ser a do copiloto.

— Não mais.

O único ruído restante no canal do copiloto foram sons de fundo.

— Ele o matou — concordou o agente do FBI.

Teriam de tocar a fita mais uma centena de vezes, para si mesmos e para os outros, mas a conclusão seria a mesma. Embora a investigação formal fosse durar ainda vários meses, o caso estava efetivamente solucionado menos de nove horas depois de ser aberto.

 

As ruas de Washington estavam estranhamente vazias. A esta hora do dia — Ryan sabia por experiência própria —, a capital da nação ficava entupida por automóveis c funcionários do governo, lobistas, membros do Congresso e seus auxiliares, cinquenta mil advogados e seus secretários, e os trabalhadores da indústria privada que atendia a todos eles. Mas não hoje. Com cada cruzamento fechado por um carro da Polícia Metropolitana ou um veículo da Guarda Nacional com pintura de camuflagem. O cenário lembrava um fim de semana prolongado, e havia realmente mais tráfego afastando-se do Capitólio do que fluindo em sua direção; os curiosos eram obrigados a retornar a dez quarteirões de seu objeto de interesse.

A procissão presidencial seguiu pela Pennsylvania Avenue. Jack estava no banco de trás do Chevy Suburban, e ainda havia outros fuzileiros acompanhando o cortejo de veículos do Serviço Secreto. O sol estava a pino agora. O céu estava quase todo claro, e Jack levou um momento para perceber que o horizonte estava diferente.

O 747 nem machucou as árvores, pensou Ryan. Ele não havia desperdiçado sua energia em nada senão o alvo. Meia dúzia de guindastes estavam em funcionamento agora, erguendo blocos de pedra da cratera que fora o plenário da Câmara, depositando-os em caminhões que os levariam para outro lugar.

Restavam apenas alguns caminhões. A parte dramática acabara. A parte funesta perdurava.

O resto da cidade parecia intacto às 6:40. Ryan dirigiu um último olhar para o Capitólio quando o veículo dobrou na Constitution Avenue. Embora a passagem de carros estivesse obstruída, o mesmo não ocorria com as pessoas que faziam seu cooper matutino. Era parte de seu ritual correr até o shopping center, mas agora estavam parados, vendo o cortejo passar. Ryan observou seus rostos, alguns dos quais viraram-se para ver seu veículo passar antes de voltar o olhar para leste, conversando em pequenos grupos, apontando e balançando a cabeça. Jack reparou que os agentes do Serviço Secreto ao seu lado no Chevy Suburban também se viraram para observá-los, talvez esperando que algum deles sacasse uma bazuca de seu calção de corrida.

Para Ryan, era novidade cruzar Washington tão depressa. Em parte, estavam indo rápido porque um alvo em movimento era mais difícil de ser atingido, e em parte porque o tempo de Ryan era agora muito mais valioso, e não devia ser desperdiçado. Mais do que qualquer outra coisa, significava que Ryan chegaria mais depressa a alguma coisa que ele teria preferido evitar.

Apenas alguns dias antes, Jack aceitara o convite que Roger Durling fizera-lhe para assumir a vice-presidência, mas fizera isso apenas como uma forma de se liberar do serviço ao governo de uma vez por todas. Jack estava com os olhos fechados, e esse pensamento ocasionou uma expressão de dor em seu rosto. Por que ele jamais conseguia escapar de nada? Decerto não era por ser movido por coragem. Na verdade, era exatamente o oposto. Temia dizer não e que as pessoas achassem que era covarde. Receava fazer qualquer coisa além daquilo que sua consciência ditava. E, muitas vezes, precisava fazer alguma coisa que odiava ou que não queria porque não encontrava uma alternativa honrada à qual recorrer.

— Tudo vai dar certo — assegurou-lhe van Damm, ao ver sua expressão e adivinhar o que o presidente estava pensando.

Não, não vai — foi a resposta que Jack não pôde dar.


3

Sondagem

A Sala Roosevelt tem esse nome em homenagem a Teddy; a parede leste ostenta o Prêmio Nobel por sua mediação na guerra russo-japonesa. Hoje os historiadores diriam que essa atitude apenas encorajou as ambições imperiais do Japão, e feriu tanto a alma russa que Stalin — nem em sonho um amigo da dinastia Romanov! — sentiu a necessidade de vingar a humilhação de seu país.

Contudo, o prêmio instituído por Alfred Nobel sempre foi mais político do que verdadeiro. A Sala Roosevelt era usada para reuniões e almoços de porte médio, ficando convenientemente próxima ao Salão Oval. Chegar ali revelou-se mais difícil do que Jack previra. Para um prédio tão importante, a Casa Branca tinha corredores muito estreitos, ao longo dos quais dispunham-se agora inúmeros agentes do Serviço Secreto. Ryan sentiu-se aliviado ao perceber que os agentes não estavam com armas à mostra, mas ao passar por dez agentes que ainda não conhecera, o ESPADACHIM deixou escapar um suspiro tenso. Tudo era novo e diferente, e a guarda presidencial, que antes ele considerara simplesmente profissional, era agora mais um lembrete de que sua vida mudara de forma traumática.

— E agora? — perguntou Jack.

— Acompanhe-me, senhor.

Um agente abriu uma porta, e Ryan encontrou a maquiadora presidencial, uma mulher na casa dos cinquenta. Para um compromisso informal como aquele, a maquiadora tinha tudo que precisava numa maleta de couro falso. Por maior que fosse sua experiência em aparecer na TV — fizera muito isso em seu cargo anterior como conselheiro de Segurança Nacional — isso era algo de que Jack jamais gostaria. Precisou reunir todo seu autocontrole para não se cocar enquanto a base líquida era aplicada em seu rosto com uma esponja, seguida por pó de arroz e fixador de cabelo. A mulher passou por todas as etapas de seu trabalho sem dizer uma palavra, o rosto parecendo capaz de explodir em lágrimas a qualquer momento.

— Eu também gostava dele — disse Jack.

As mãos da mulher pararam, e seus olhos encontraram os de Jack.

— Ele era sempre tão gentil! Odiava isto, exatamente como você, mas nunca reclamava, e sempre tinha uma piada para contar. De vez em quando eu maquiava seus filhos apenas por diversão. Eles gostavam disso, até o garoto.

Eles brincavam na frente das câmeras de TV, e depois as equipes de gravação davam-lhes as fitas e...

— Está tudo bem. — Ryan segurou a mão da mulher. Finalmente encontrara alguém no corpo de funcionários que não pensava apenas nos negócios, e que não queria fazê-lo sentir-se como um bicho no zoológico. — Qual é o seu nome?

— Mary Abbot.

Seus olhos vertiam lágrimas, e ela quis se desculpar.

— Há quanto tempo trabalha aqui?

— Comecei logo depois da saída do Sr. Carter.

A Sra. Abbot enxugou os olhos e baixou os braços.

— Bem, então eu talvez recorra aos seus conselhos — disse Jack, gentilmente.

— Oh, não, eu não sei nada de política — replicou Mary com um sorriso embaraçado.

— Nem eu. Acho que terei de aprender. — Ryan olhou-se no espelho. — Terminamos?

— Sim, presidente.

— Muito obrigado, Sra. Abbot.

Mandaram-no sentar numa cadeira de madeira com braços. As luzes já estavam acesas. Um técnico prendeu um microfone duplo de lapela em sua gravata com movimentos tão delicados quanto os da Sra. Abbot; afinal, havia um agente do Serviço Secreto colado em cada membro da equipe de gravação, com Andréa Price observando a todos da porta. Andréa estava com os olhos apertados em sinal de desconfiança, apesar do fato de que cada peça eletrônica na sala havia sido inspecionada, e cada visitante estivesse sendo observado continuamente por olhos intensos. Era realmente possível montar um revólver a partir de compostos não metálicos — aquele filme estivera certo nesse aspecto — mas, ainda assim, armas são volumosas. A tensão palpável da segurança presidencial contaminava os integrantes da equipe de TV, que se moviam lenta e cuidadosamente. O escrutínio do Serviço Secreto podia abalar os nervos de qualquer um.

— Dois minutos — disse o produtor, que fora avisado através de seu fone de ouvido. — Os comerciais começaram.

— Conseguiu dormir ontem? — perguntou o correspondente-chefe da CNN na Casa Branca. Como todo mundo, ele queria formar uma opinião rápida e clara sobre o novo presidente.

— Não o bastante — respondeu Jack, subitamente tenso.

Havia duas câmeras. Jack cruzou as pernas e segurou as mãos sobre o colo para evitar movimentos nervosos. Como deveria parecer? Sério? Tenso? Calmo e confiante? Assoberbado? Era um pouco tarde para pensar nisso. Por que não perguntara a Arnie?

— Trinta segundos — avisou o produtor.

Jack tentou compor-se. Sua postura física manteria seu corpo parado.

 

Apenas responda às perguntas. Você já fez isso várias vezes.

— Sete horas e oito minutos — disse o repórter para a câmera atrás de Jack. — Estamos na Casa Branca com o presidente John Ryan.

— Presidente, foi uma noite longa, não é verdade?

— Infelizmente sim — concordou Ryan. O que o senhor pode nos dizer?

Basicamente o que vocês já sabem. Ainda estamos realizando as operações e o corpo do presidente Durling ainda não foi encontrado. A investigação está sendo conduzida sob a coordenação do FBI.

— Eles descobriram alguma coisa?

— Provavelmente teremos algumas coisas para dizer ainda hoje, mas agora é muito cedo.

Embora o correspondente soubesse de antemão tudo que o presidente tinha a dizer, Jack viu decepção em seus olhos.

— Por que o FBI? Não é o Serviço Secreto que detém a jurisdição sobre...

— Não é hora para disputa de territórios. Uma investigação como essa precisa ser concluída imediatamente. Sendo assim, decidi que o FBI seria a agência líder... sob as ordens do Departamento de Justiça, e com a assistência das outras agências federais. Queremos respostas, queremos rápido, e essa pareceu a melhor forma de consegui-las.

— Foi reportado que o senhor nomeou um novo diretor para o FBI. Jack assentiu.

— Sim, Barry. Provisoriamente, pedi a Daniel E. Murray para trabalhar como diretor interino. Dan é um agente do FBI veterano cujo último trabalho foi como assistente do Mor Shaw. Conhecemo-nos há muitos anos. O Sr.

Murray é um dos melhores policiais a serviço do governo.

— Murray?

— Um policial, aparentemente especialista em terrorismo e espionagem — esclareceu o agente.

— Humm...

Ele retornou bebericando seu café agridoce.

— O que o senhor pode nos dizer sobre os preparativos para... para os próximos Dias? — foi a pergunta seguinte do repórter.

— Barry, ainda estamos trabalhando nesses planos. Em primeiro lugar, precisamos fixar que o FBI e as outras agências de proteção à lei façam seu trabalho. Receberemos as informações até o fim do dia, mas a noite passada foi longa e difícil para muita gente.

O repórter assentiu em concordância, e decidiu que era o momento certo para uma pergunta de interesse humano.

— Onde o senhor e a sua família dormiram? Sei que não foi aqui.

— No Quartel dos Fuzileiros, na esquina da Oitava com a I.

— Merda, Patrão — murmurou Andréa Price.

Alguns jornalistas haviam descoberto isso, mas o Serviço não confirmara a informação, e a maioria das agências noticiosas reportara que a família Ryan estava num local mantido em segredo. Bem, eles teriam de dormir em outro lugar esta noite. E talvez esse lugar seria mantido em segredo. Droga.

— Por que lá?

— Bem, tinha de ser em algum lugar, e esse pareceu conveniente. Sabe, já fui da Marinha — disse Jack em tom sereno.

 

— Lembra quando os mandamos pelos ares?

— Foi uma ótima noite.

O agente lembrou ter assistido a tudo com seus binóculos do topo do hotel Beirute Holiday. Ele ajudara a realizar aquela missão. A única parte realmente difícil havia sido selecionar o motorista. Havia uma qualidade estranha nos fuzileiros navais americanos, alguma coisa aparentemente mística que despertava a confiança da nação nesse Ryan. Mas eles morriam como qualquer outro infiel. Imaginou, achando graça, se em Washington haveria algum caminhão grande para um dos seus homens comprar ou alugar... Deixou de lado o pensamento divertido. Havia trabalho para fazer. Não era prático, de qualquer modo. Ele já viera a Washington mais de uma vez, e o Quartel dos Fuzileiros fora um dos lugares que examinara. Contava com uma defesa excelente, o que era uma pena. O significado político do alvo tornava-o imensamente atraente.

 

— Não foi muito esperto — observou Ding enquanto tomava seu café.

— Espera que ele se esconda? — perguntou Clark.

— Você o conhece, pai? — perguntou Patrícia.

— Conheço sim. Ding e eu cuidamos dele quando éramos SPO. Estive certa vez com o pai dele... — acrescentou John sem pensar, o que era muito incomum de sua parte.

— Como ele é, Ding? — perguntou Patsy ao noivo, o anel ainda reluzindo de novo em seu dedo.

— Um cara esperto — reconheceu Chavez. — Um pouco na dele. Um bom sujeito, sempre com algo gentil para dizer. Bem, quase sempre.

— Ele é durão quando precisa — observou John com o olho em seu parceiro e futuro genro. Lembrar disso, como sempre, provocou-lhe um arrepio. Então fitou os olhos da filha, e o arrepio ficou ainda mais forte. Merda.

— Esse é um fato — concordou Chavez.

 

As luzes fizeram-no suar sob a maquiagem, e Ryan lutou contra o impulso de cocar o rosto. Conseguiu manter as mãos paradas, mas seus músculos faciais iniciaram uma série de pequenos estremecimentos que, com sorte, a câmera não captaria.

— Temo que não possa dizer, Barry — prosseguiu, mantendo as mãos juntas.

— É cedo demais para responder substancialmente a muitas perguntas. Quando formos capazes de dar respostas definitivas, faremos isso.

— O senhor tem um dia muito longo à sua espera — disse o repórter da CNN, com um ar simpático.

— Todos temos, Barry.

— Muito obrigado, Sr. Presidente. ; Esperou até a luz apagar e ouvir uma voz transmitida da sede em Atlanta, antes de falar novamente.

— Foi muito boa. Muito obrigado.

Van Damm caminhou até Ryan, empurrando Andréa Price para o lado no meio do percurso. Poucos podiam tocar um agente do Serviço Secreto sem consequências graves, muito menos dar um chega-pra-lá numa. Arnie podia.

— Foi mesmo muito bom. Não faça nada diferente. Responda às perguntas.

Dê respostas curtas.

A Sra. Abbot chegou para retocar a maquiagem de Ryan. Uma mão gentil tocou-lhe a fronte enquanto a outra ajustava seu cabelo com uma escovinha.

Desde sua namorada no segundo grau — qual era mesmo o nome dela? — ninguém se preocupara tanto com seus cabelos. Sob outra circunstância, aquilo teria sido motivo de piada.

A âncora da CBS era uma mulher na casa dos trinta, e prova positiva de que cérebro e beleza não são características mutuamente exclusivas.

— Presidente, o que resta do governo? — perguntou depois de algumas questões introdutórias.

— Maria — Ryan fora instruído a se dirigir a cada repórter pelo nome; ele não sabia o motivo, mas parecera-lhe razoável —, por mais terrível que as últimas 12 horas tenham sido para todos nós, quero lembrá-la de um discurso que o presidente Durling fez há algumas semanas: a América ainda é a América. Todas as agências federais executivas estarão operando hoje sob a liderança dos vice-secretários e...

— Mas Washington...

— Por motivos de segurança pública, Washington está em estado de emergência, é verdade...

Ela o cortou novamente, não por falta de educação, mas porque dispunha de apenas quatro minutos, e queria aproveitá-los ao máximo.

— As tropas nas ruas...?

— Maria, a polícia de Washington e os corpos de bombeiros tiveram uma péssima noite. Foi uma noite fria e longa para aquelas pessoas. A Guarda Nacional de Washington foi convocada para auxiliar as agências civis. O mesmo acontece depois de furacões e tornados. Na verdade, isso é uma função municipal. O FBI está trabalhando Com o prefeito nesse aspecto.

Foi a declaração mais longa que Ryan fizera naquela manhã, e quase o deixou sem fôlego. Foi quando ele percebeu que estava apertando tanto as mãos que seus dedos fitavam ficando brancos, e teve de fazer um esforço consciente para esquecê-las.

 

— Olhe os braços dele — observou a primeira-ministra. — O que sabemos desse Ryan?

O chefe do serviço de informações de seu país estava com uma pasta no colo, a qual já decorara, tendo tido o luxo de um dia de trabalho para familiarizar-se com o novo chefe de Estado.

— É um agente secreto. Esteve envolvido num incidente em Londres, e em mais um nos Estados Unidos, há alguns anos...

— Ah, lembro — comentou, bebericando seu chá. — Então é um espião.

— Um espião muito bem conceituado. Nossos amigos russos consideram-no extraordinário. E a Century House também — disse o general do Exército, cujo treinamento remontava à tradição inglesa. Como sua primeira-ministra, fora educado em Oxford, e, em seu caso, Sandhurst — Ele é muito inteligente, temos motivos para acreditar que ele, em sua função como conselheiro de Segurança Nacional, tenha sido vital no controle das operações americanas contra o Japão...

— E nós? — perguntou ela, os olhos fixos na tela.

Como era conveniente a comunicação via satélite e o fato de todas as emissoras americanas transmitirem para o resto do mundo. Agora não era preciso gastar um dia inteiro num avião para ver um chefe de Estado rival.

Agora ela podia ver o homem e avaliar como ele reagiria à pressão. Agente secreto ou não, ele não parecia muito à vontade. Todo homem tem limites.

— Indubitavelmente, primeira-ministra.

— Ele é menos formidável do que suas informações sugerem — disse a primeira-ministra ao conselheiro. Inseguro, desconfortável, tenso... um peixe fora d água.

 

— Quando o senhor espera poder nos dizer mais a respeito do que aconteceu? — perguntou Maria.

— Não posso responder agora, mas poderei em breve. Certas coisas não devem ser apressadas.

Ryan percebia vagamente que perdera o controle da entrevista, por mais curta que fosse, e não tinha certeza do motivo. Nunca lhe ocorrera que os repórteres de TV estavam enfileirados do lado de fora da Sala Roosevelt como consumidores ávidos esperando a abertura de uma liquidação, que cada um pretendia perguntar uma coisa nova e diferente, e que cada um queria passar uma boa impressão, não para o novo presidente, mas para os espectadores, as pessoas invisíveis atrás das câmeras, que assistiam cada programa matutino movidas por uma lealdade que os repórteres queriam reforçar sempre que possível. Por mais que o país estivesse ferido, relatar notícias era o negócio que punha comida na mesa de suas famílias, e Ryan era apenas mais um assunto.

Portanto, os aconselhamentos que Arnie lhe dera no começo da manhã haviam sido imensamente otimistas, mesmo vindos de um experiente consultor político.

A única vantagem era que as entrevistas tinham tempo limitado — neste caso pelas notícias locais transmitidas pelas diversas afiliadas das emissoras, aos 25

minutos depois da hora. Qualquer que fosse a gravidade da tragédia que atingira Washington, as pessoas precisavam saber sobre o clima e o tráfego local para prosseguir suas vidas cotidianas, fato talvez esquecido pelos cidadãos de Washington, mas não pelas estações locais do resto do país. Maria pareceu mais satisfeita do que estava quando o diretor a cortou. Ela sorriu para a câmera...

— Voltamos já.

...e Ryan tinha 12 minutos até seu encontro com a NBC. O café que tomara no desjejum estava surtindo efeito agora, e ele precisava achar um banheiro.

Mas, ao se levantar, quase tropeçou no fio do microfone.

— Por aqui, presidente.

Price mandou-o virar à esquerda, seguir o corredor, e depois dobrar à direita. Percebeu tarde demais que aquele era o caminho para o Salão Oval.

Parou antes de entrar na sala. Em sua mente, aquele lugar ainda pertencia a outra pessoa, mas um banheiro era um banheiro, e neste caso, ele servia a uma sala de espera, e não ao escritório. Aqui, pelo menos, havia alguma privacidade, mesmo de sua guarda pretoriana, que o seguia como um par de collies protegendo uma ovelha valiosa. Jack não sabia que um pequeno buraco na parede permitia ao Serviço Secreto monitorar até mesmo esse aspecto da vida cotidiana de seu presidente.

Lavando as mãos, Ryan olhou para o espelho, sempre um erro em momento como esse. A maquiagem fazia-o parecer mais jovem do que era, mas também falso, conferindo à sua pele uma lisura que ela jamais tivera. Ele teve de se conter para não lavar toda a maquiagem do rosto antes de retornar para encarar a NBC. O âncora da NBC era negro e, ao apertar sua mão, sentiu algum consolo no fato de a maquiagem dele ser ainda mais grotesca que a sua. Jack ignorava o fato de que iluminação televisiva afeta a compleição humana de tal modo que, para parecer normal na tela, a pessoa precisa parecer pintada como um palhaço a olhos não eletrônicos.

— O que o senhor fará hoje, presidente? — foi a quarta pergunta de Nathan.

 

— Tenho outra reunião com Murray, o diretor interino do FBI... na verdade, estaremos nos vendo duas vezes por dia durante algum tempo. Também tenho uma sessão com a junta de segurança nacional, e depois com alguns dos membros sobreviventes do Congresso. Esta tarde teremos uma reunião de gabinete.

— Preparativos para o funeral? — perguntou o repórter, depois de olhar uma lista pousada em seu colo.

Ryan balançou a cabeça.

— Muito em breve. Sei que isso é frustrante para todos nós, mas essas coisas demandam tempo. — Ele não disse que o Departamento de Protocolo da Casa Branca reservara 15 minutos de sua tarde para instruí-lo sobre o que estava sendo planejado.

— Foi um avião japonês; uma aeronave de propriedade do governo japonês.

Temos alguma razão para suspeitar...

Ryan inclinou-se para a frente para responder a essa pergunta.

— Não, Nathan, não temos. Estamos dialogando com o governo japonês. O primeiro-ministro Koga prometeu cooperação plena, e confiamos em sua palavra. Quero enfatizar que as hostilidades com o Japão estão completamente terminadas. O que aconteceu foi um engano horrível. Aquele país está lutando para levar à justiça as pessoas que causaram o conflito. Ainda não sabemos como aconteceu... estou me referindo ao acidente da noite de ontem... mas não saber significa não saber. Até termos certeza de qualquer coisa, tudo será especulação. Especular não ajuda em nada, mas pode magoar, e não precisamos de mais mágoas. Tudo que precisamos agora é de compreensão.

 

— Domo arigato — murmurou o primeiro-ministro japonês. Era a primeira vez que via o rosto de Ryan ou ouvia sua voz. Nos dois aspectos, parecia mais jovem do que esperara, embora tivesse sido informado sobre os dados de Ryan no começo do dia. Koga reparou na tensão e na inquietação do homem, mas quando ele teve alguma coisa a dizer que não fosse uma resposta óbvia a uma pergunta vazia — por que os americanos toleram a insolência da mídia? — a voz mudou um pouco, e os olhos também. A diferença foi sutil, mas Koga era um homem acostumado a notar as nuances mais suaves. Era uma vantagem de ter crescido no Japão, e de ter dedicado à política a maior parte de sua vida adulta.

— Ele foi um inimigo formidável — comentou calmamente o ministro das Relações Exteriores. — E no passado já se revelou um homem de coragem.

Koga pensou nos documentos que lera duas horas antes. Esse tal Ryan já fizera uso de violência, coisa que o primeiro-ministro abominava. Mas aprendera com os americanos que provavelmente lhe salvaram a vida de seus próprios conterrâneos, que a violência tinha seu lugar, assim como a cirurgia, e que Ryan usara-a para proteger a outros, sofrera no processo, e depois tornara a buscar a paz. Mais uma vez ele demonstrara a mesma dicotomia contra o país de Koga. Lutando com habilidade e violência, e em seguida demonstrando piedade e consideração. Um homem de coragem...

— E honra, acredito. — Koga fez uma pausa. Era estranho que já houvesse um fio de amizade entre dois homens que jamais haviam se encontrado, e que havia apenas uma semana tinham guerreado. — Ele é um samurai.

 

A correspondente da ABC era uma loura chamada Joy (alegria), nome que, para Ryan, parecera inadequado para aquele dia. Se Maria da CBS era bonita, Joy era estonteante, e talvez um motivo para a ABC tê-la colocado em seu principal noticiário matutino. Seu aperto de mão foi caloroso e amigável... e mais alguma coisa que quase fez o coração de Jack parar.

— Bom dia, Sr. Presidente — disse candidamente, numa voz mais apropriada a um jantar que a um programa matutino.

— Por favor...

Ryan fez sinal para que ela se sentasse à sua frente.

— Dez para as oito. Estamos na Sala Roosevelt da Casa Branca para conversar com o presidente John Patrick Ryan. Presidente, a noite passada foi longa e difícil para o nosso país. O que o senhor tem a nos dizer?

Ryan já falara a esse respeito o bastante para a resposta sair desprovida de pensamento consciente. Seu tom de voz foi calmo e ligeiramente mecânico, e seus olhos fixaram-se nos dela, como a haviam instruído. Neste caso não era difícil concentrar-se naqueles olhos castanhos, embora fitá-los tão intensamente a essa hora da manhã fosse desconcertante. Torceu para ninguém perceber.

— Presidente, os últimos meses foram traumáticos para todos nós, e a última noite conseguiu ser ainda pior. Dentro de poucos minutos o senhor terá uma reunião com os dirigentes das agências de segurança nacional. Quais são as suas maiores preocupações?

— Joy, há muito tempo um presidente americano disse que a última coisa a temer é o medo. Nosso país está tão forte quanto sempre...

 

— Sim, isso é verdade.

Daryaei já se encontrara uma vez com Ryan. Naquele dia ele fora arrogante e belicoso, como um cão parado ao lado do dono, rosnando para parecer bravo... Mas agora o dono fora embora e ali estava o cachorro, olhos fixos numa mulher bonita, e Daryaei ficou surpreso por ele não estar de língua para fora e babando.

A imprensa era parcialmente culpada pelo comportamento de Ryan.

 

Qualquer um podia ver que ele estava cansado. O que mais ele estava? Ryan era como seu país, decidiu o aiatolá. Extremamente forte, talvez. Ryan ainda era um homem jovem, de ombro largo e postura ereta. Seus olhos eram brilhantes; a voz, firme, mas quando lhe perguntaram sobre a força de seu país, ele falou sobre medo e o medo do medo. Interessante.

Daryaei sabia muito bem que força e poder eram coisas mais da mente que do conflito verdadeiro no que dizia respeito a nações e homens. A América era um mistério para ele, assim como seus líderes. Mas o quanto ele precisava saber? A América era um país sem Deus. Foi por isso que esse moço falou sobre medo. Sem Deus, o homem é patético, e careciam de direcionamento.

Alguns haviam dito o mesmo sobre o país de Daryaei, e não havia nenhuma verdade nisso, disse a si mesmo.

Como inúmeras pessoas do mundo inteiro, Daryaei concentrou-se no rosto e na vida de Ryan. A resposta à primeira pergunta foi obviamente mecânica. Se a América sabia alguma coisa sobre aquele incidente glorioso, mantinha a boca fechada. Provavelmente não sabiam muita coisa, mas era compreensível. O dia de Daryaei também havia sido longo, mas ele o usara lucrativamente.

Telefonara para seu ministro das Relações interiores e fizera o chefe da Secretaria de Assuntos Americanos (na verdade, um departamento inteiro no prédio oficial de Teerã) providenciar um relatório sobre o funcionamento do governo americano. A situação era ainda melhor do que Daryaei esperava, não podiam fazer novas leis, não podiam taxar novos impostos, não podiam emitir dinheiro até que seu Congresso fosse reconstituído, e isso requereria tempo.

Quase todos os ministérios estavam sem dirigentes. Esse moço — para Daryaei, que tinha 72, Ryan era um garoto — era o governo americano, e ele não ficou impressionado com o que viu.

Os Estados Unidos da América havia anos vinham frustrando seus planos.

Poderio. Mesmo depois de reduzir seu poderio devido à queda da União Soviética — o imundo Satã —, a América podia fazer coisas impossíveis para qualquer outra nação, para tal, precisava apenas de licença política. Vez por outra, esse país perseguia inutilmente um único propósito, como acontecera havia pouco contra o Iraque, com consequências decisivas, se comparadas com o que seu próprio país conseguira numa luta que durara quase uma década. Esse era o perigo representado pela América, mas ...por agora estava frágil, e sua mente, perdida. Apenas um homem, pensou Daryaei, sem ouvir as palavras que saíam agora da tela. No momento não importavam. Ryan não dizia nada de substancial, mas estava revelando, para esse velho a meio mundo de distância, muito a respeito de seu comportamento. O pescoço do novo chefe daquele país tornou-se o foco do olhar de Daryaei. Seu simbolismo era claro. A questão técnica, afinal, era a separação completa da cabeça do corpo, e tudo que ficava entre os dois era o pescoço.

 

— Dez minutos para A próxima — comunicou Arnie depois que Joy saiu para pegar um táxi para o aeroporto. O repórter da Fox já estava maquiado.

— Como estou me saindo?

Desta vez, Jack desconectou o fio do microfone antes de se levantar.

Precisava esticar as pernas.

— Nada mal — julgou van Damm, caridosamente.

Teria dito mais alguma coisa a um político de carreira, mas um político de verdade precisaria lidar com perguntas realmente difíceis. Era como se um jogador de golfe estivesse disputando uma partida contra um novato, em vez de contra um parceiro experiente, e isso era justo, o mais justo que podia ser. Para que tudo desse certo, Ryan precisava adquirir confiança em si mesmo. A presidência já estivera em melhores mãos, e embora cada um dos homens que ocupara esse posto tivesse, em algum momento, desejado livrar-se do Congresso, das agências e dos departamentos, era Ryan quem teria de aprender quão indispensável era o sistema inteiro de governo — e teria de aprender da forma mais difícil.

Já fora da Sala Roosevelt, Jack encostou-se na parede e olhou para os dois lados do corredor.

— Ainda tenho muito chão pela frente, não é verdade?

— Você aprenderá — prometeu o chefe de gabinete.

— Talvez sim — sorriu Jack, sem perceber que a atividade da manhã, a atividade recente, concedera à sua mente alguma coisa para distrair-se das circunstâncias do dia. Então, um agente do Serviço Secreto entregou-lhe uma folha de papel.

 

Por mais injusto que fosse para com as outras famílias, era preciso compreender que a prioridade máxima era encontrar o corpo do presidente Durling. Quatro guindastes móveis estavam enfileirados na face oeste do prédio, operando sob a direção de um capataz experiente. Uma turma de operários trabalhava no pavimento do plenário da Câmara, próximos demais para sua própria segurança, mas nessa manhã a OSHA* não estava por perto.

Os únicos inspetores do governo que importavam eram os agentes do Serviço Secreto — o FBI poderia ter obtido a jurisdição geral, mas ninguém ficaria entre eles e seu senso de dever. Ali também havia um médico e um grupo de enfermeiros, para a vã possibilidade de que houvesse sobreviventes, a despeito de todas as evidências em contrário. O mais difícil era coordenar as ações dos guindastes, que mergulhavam na cratera — não havia nome melhor para descrever o que fora o plenário da Câmara — como um quarteto de girafas bebendo da água do mesmo lago, jamais chocando-se graças à habilidade dos operadores.

==========

*Occupational Safety and Health Administration — Administração da Segurança e Saúde no Trabalho. (N. do T.)

==========

— Vejam só isso! — apontou o capataz.

Num recanto escuro havia uma pistola automática. Só podia ser a arma de Andy Walker, o principal agente da segurança presidencial de Roger Durling. O último frame da transmissão da TV mostrara-o a poucos metros do presidente, correndo para empurrá-lo do pódio, mas tarde demais para conseguir alguma coisa além de morrer em nome do dever.

Um guindaste foi preparado. Um cabo foi preso em torno de um bloco de pedra, que se levantou lentamente, girando um pouco na ponta do cabo de aço.

Os restos do corpo de Walker agora eram visíveis, juntamente com as pernas de outra pessoa. Em cima dos dois viam-se fragmentos esmaecidos do pódio de carvalho, e até mesmo algumas folhas de papel chamuscado. O fogo não chegara a atravessar as pilhas de pedras na parte do prédio arruinado. Queimara rápido demais para isso.

— Espere um pouco! — O capataz segurou o braço do agente do Serviço Secreto, não o deixando se mover. — Eles não vão para parte alguma. Não vale a pena morrer por causa disso. Espere alguns minutos.

O agente aguardou um guindaste limpar a trilha. O capataz meneava os braços, guiando o operador para onde baixar a torre do guindaste. E quando parar. Dois operários envolveram dois cabos em torno do próximo bloco de pedra, e o capataz girou a mão no ar. A pedra foi erguida.

— Encontramos SALTADOR — disse o agente em seu microfone. A junta médica surgiu imediatamente, sob os gritos de aviso de diversos operários, mas logo ficou claro que seu tempo fora desperdiçado. A mão esquerda do presidente segurava a prancheta que continha seu último discurso. As pedras provavelmente haviam-no matado, depois do fogo ter chegado perto o bastante para chamuscar seu cabelo. Boa parte do corpo estava esmagada, mas o terno, a presilha da gravata presidencial e o relógio de seu pulso identificavam positivamente o presidente Roger Durling. Tudo parou, os guindastes ficaram imóveis enquanto os operadores bebiam café ou acendiam cigarros. Uma equipe de peritos chegou para bater fotos de todos os ângulos possíveis.

Num local mais distante no plenário da Câmara, membros da Guarda Nacional moviam corpos e carregavam-nos dali — haviam substituído os bombeiros nessa tarefa há duas horas — mas num raio de quinze metros a partir do ponto onde fora encontrado o presidente, havia apenas agentes do Serviço Secreto, executando seu último serviço oficial ao SALTADOR, como haviam chamado o presidente em honra a seu serviço como tenente da Esquadrilha 82.

 

Já passara muito tempo desde o incidente para verter lágrimas, mas, para todos os agentes reunidos ali, elas acabariam vindo, mais de uma vez. Quando os médicos retiraram-se e os fotógrafos ficam quietos, quatro agentes com bonés do Serviço Secreto desceram até a cratera.

Primeiro ergueram o corpo de Andy Walker, cujo último ato consciente fora proteger o Patrão, e baixaram-no gentilmente no saco emborrachado. Os agentes ergueram o saco com o corpo para entregá-lo a outros dois agentes, que o retiraram dali.

O passo seguinte era fazer o mesmo com o corpo do presidente. Isso se revelou difícil. o corpo estava enrijecido pelo frio. Um braço estava em ângulo reto a partir do resto do corpo, e não cabia no saco. Os agentes olharam um para o outro, sem saber o que fazer. O corpo era uma evidência e, como tal, não podia ser tocado. Além disso, sentiam medo de ferir o presidente, ainda que já estivesse morto. Assim, o presidente Durling foi acomodado no saco de corpo com o braço esticado, como o capitão Ahab. Os quatro agentes levaram-no, saindo da Câmara, contornando todos os blocos de pedra caídos, descendo então até uma ambulância que aguardava por esse único propósito. Isso chamou a atenção dos fotógrafos da imprensa que se aproximaram correndo ou operaram as lentes zoom de suas câmeras de TV para enquadrar a cena.

A cena interrompeu a entrevista de Ryan para a Fox, e ele a viu no monitor pousado na mesa. Para sua mente, aquilo tornava tudo oficial. Durling estava realmente morto, e ele era mesmo o presidente. A câmera na sala capturou as expressões mudando no rosto de Ryan, à medida que ele lembrava como Durling trouxera-o para a Casa Branca, confiara nele, guiara-o... Então era isso, percebeu Jack. Ele sempre tivera antes alguém em quem se apoiar. Obviamente, ele apoiara outros, dera-lhes sua opinião, orientara-os em momentos de crise, mas sempre havia alguém a quem podia recorrer, para dizer que ele fizera a coisa certa. Ryan podia recorrera algumas pessoas agora, mas tudo que receberia seriam opiniões, não julgamentos. Agora cabia apenas a ele fazer julgamentos. Ouviria todo tipo de coisas. Seus conselheiros seriam como advogados, alguns dizendo uma coisa, outros dizendo outra, significando que ele estava certo e errado ao mesmo tempo, mas quando tudo estivesse acabado, a decisão seria apenas sua.

O presidente Ryan esfregou a mão no rosto, manchando a maquiagem. Não sabia que o que a Fox e as outras emissoras estavam transmitindo agora era uma tela dividida com uma imagem sua e outra do presidente morto. Sua cabeça balançava levemente, como era característico de um homem que precisava aceitar uma coisa da qual não gostava, seu rosto cansado demais para exprimir tristeza. Por trás dos degraus do Capitólio, os guindastes voltaram a se mover.

— E agora, presidente? — perguntou o repórter da Fox. Essa pergunta não constava de sua lista. Era apenas uma reação humana a uma cena humana. O corte para a transmissão ao vivo do Capitólio ocupara parte do tempo disponível para a entrevista, e, para prossegui-la devidamente, seria preciso mais um segmento, mas as regras na Casa Branca eram adamantinas.

— Há muito trabalho para ser feito — foi a resposta de Ryan.

— Obrigado, presidente. São oito horas e 14 minutos.

Jack observou a lâmpada-piloto da câmera de TV apagar. O gerente de produção esperou alguns segundos antes de fazer um gesto, e o presidente desconectou o microfone e o cabo. Sua primeira maratona de imprensa chegara ao fim. Antes de sair, olhou mais cuidadosamente para as câmeras. Quando jovem, fora professor de História e, mais recentemente, dera palestras. Mas tudo isso havia sido para plateias restritas, cujos olhos podia ver e ler, a partir de cuja reação podia alterar seu discurso, acelerando-o ou retardando-o, talvez brincando um pouco quando as circunstâncias permitiam, ou repetindo alguma coisa para esclarecer seu ponto de vista. Agora seus discursos seriam dirigidos a uma máquina. Mais uma coisa da qual não gostava. Enquanto Ryan deixava a sala, pessoas do mundo inteiro trocavam impressões sobre o novo presidente dos Estados Unidos. Comentaristas de mais de cinquenta países estariam falando sobre Ryan enquanto ele estivesse novamente no banheiro.

 

— Esta. foi a melhor coisa que aconteceu ao nosso país desde Jefferson.

O mais velho classificava a si mesmo como um estudante muito sério de História. Gostava de Thomas Jefferson por sua declaração de que a melhor forma de governar um país era governá-lo pouco.

— E parece que foi um japona quem fez isso — o comentário foi acompanhado por uma risada curta. Um evento como esse poderia até mesmo invalidar seu racismo arraigado.

Eles haviam passado a noite inteira — eram 5:20 na hora local — assistindo à cobertura pela TV. Repararam que os comentaristas pareciam ainda mais abatidos que o tal Ryan. Fusos horários tinham uma vantagem. Ambos pararam de beber cerveja por volta da meia-noite e passaram a tomar café duas horas mais tarde, quando começaram a cochilar. O que eles viram, trocando de um canal para outro, todos captados por uma grande antena parabólica do lado de fora da cabana, era como uma espécie de maratona televisiva, só que essa não era como aquelas para levantar fundos para crianças aleijadas, vítimas da AIDS ou escolas negras. Esta era divertida. A maioria daqueles babacas de Washington tinha virado fumaça.

— Churrasco de burocratas! — exclamou Peter Holbrook pela 17 vez desde as onze e meia da noite, quando fizera seu comentário sobre o incidente. Ele sempre fora o criativo do movimento.

— Porra, Pete! — disse Ernest Brown, tossindo. Parte de seu café respingou em mim. Ainda era engraçado, mas não o suficiente para fazê-lo levantar subitamente da poltrona, sua perna dormente não deixaria.

— Foi uma noite e tanto — disse Holbrook, rindo da própria piada. Tinham assistido aos discursos do presidente Durling por alguns motivos. Em primeiro lugar, as emissoras haviam interrompido a programação normal, que era habitual nesse tipo de evento; em segundo, sua ligação com satélite dava-lhes acesso a um total de 117 canais, e todos agora comentavam sobre o governo que eles e seus amigos detestavam. O motivo mais profundo era que eles cultivavam raiva do governo americano e geralmente assistiam a esse discursos — os dois ficavam parados pelo menos uma hora por dia diante da TV

sintonizada na C-SPAN 1 e 2 — para intensificar esses sentimentos, semeando comentários cruéis a cada minuto de um discurso presidencial.

— Então, quem esse cara é na verdade? — perguntou Brown, bocejando.

— Outro burocrata, claro.

— Sim — julgou Brown. — E esse aí não tem ninguém para levá-lo nas costas, e Holbrook virou-se e olhou para o amigo.

— E isso é um acontecimento e tanto, não é?

Com esse comentário, levantou-se e caminhou até a estante que cobria a parede sul de sua casa. Seu exemplar da Constituição era uma edição bastante manuseada que ele, lia sempre que podia, para aumentar sua compreensão da intenção de seus redatores.

— Mesmo?

Holbrook assentiu.

— Mesmo.

— Não brinca! ... Isso era mesmo algo sobre o que pensar.

 

— Assassinado? — perguntou o presidente Ryan, ainda limpando a maquiagem do rosto com uma toalha de papel úmida, da mesma marca que usara para limpar bundinhas de bebê. Pelo menos seu rosto pareceu limpo quando acabou.

— Essa foi a conclusão preliminar, tanto de uma autópsia superficial do corpo um exame ligeiro das fitas da cabine de comando.

Murray folheou os relatórios que recebera por fax vinte minutos antes.

Ryan recostou-se em sua cadeira. Como muita coisa no Salão Oval, ela era nova. No bufê atrás dele, todas as fotos da família Durling haviam sido removidas. Os documentos na mesa tinham sido recolhidos para ser examinados pelos assessores presidenciais. Alguns móveis tinham sido substituídos por outros dos depósitos da Casa Branca. A poltrona, desenhada para proteger a coluna de seu ocupante original, em breve seria substituída por uma feita sob medida para a coluna de Ryan por um fabricante que executava o serviço de graça e — notavelmente — sem apregoar isso ao público. Cedo ou tarde teria de trabalhar neste lugar, concluíra Jack alguns minutos antes. As secretárias ficavam aqui, e não seria justo fazê-las viajar através do prédio, subindo e descendo escadas. Mas dormir neste lugar era outra história... pelo menos por enquanto. Ryan também teria de se conformar com isso. Então, pensou olhando para Murray sobre a mesa, — Foi assassinato. Disparo?

Dan balançou a cabeça. — Faca cravada no coração, penetração única.

Nosso agente considerou que o ferimento foi causado por uma lâmina fina, como uma faca de carne. A julgar pelas fitas da cabine de comando, aconteceu antes da decolagem. Provavelmente poderemos definir o momento exato. Nas fitas, desde o aquecimento das turbinas até o momento do impacto, ouve-se apenas a voz do piloto. Seu nome era Sato, um comandante muito experiente. A polícia japonesa conseguiu reunir uma pilha de informações para nós.

Aparentemente, ele perdeu um irmão e um filho na guerra. O irmão comandava um destróier que foi a pique. O filho era um piloto de caça que, depois de uma missão, sofreu um desastre na aterrissagem. Ambos morreram no mesmo dia, ou quase. Portanto, foi uma questão pessoal. Motivo e oportunidade, Jack — Murray permitiu-se dizer, porque estavam quase sozinhos no escritório.

Andréa Price também estava com eles. Ela não aprovou o tratamento; ainda não sabia que os dois eram amigos de longa data.

— A identificação foi muito rápida — observou Price.

— Ainda precisa ser confirmada. Faremos exames de DNA apenas para termos certeza. A qualidade da fita da cabine de comando é boa o bastante para permitir análise de impressão de voz. Pelo menos foi isso que disseram ao nosso agente. Os canadenses têm gravações de radar rastreando a aeronave em seu espaço aéreo, de modo que será fácil confirmar a hora do evento. Temos todo o percurso da aeronave registrado de Guam até o Japão; de lá para Vancouver e até a colisão com o Capitólio. Como dizem, está tudo acabado, menos o falatório. E, acredite em mim, vai haver muito falatório, senhor presidente. — Desta vez, Andréa Price aprovou o tratamento. — Precisaremos de pelo menos dois meses até termos cada pedacinho de informação confirmado, e suponho que podemos estar errados, mas, para todos os propósitos práticos, em minha opinião e de todos os agentes presentes na cena, o caso está fechado.

— O que poderia fazer com que você estivesse errado? — indagou Ryan.

— Potencialmente, pouquíssimas coisas. Estamos considerando que foi o trabalho de um único fanático... não, isso não é justo... de um homem muito zangado. Mas para que isto fosse uma conspiração, teríamos de considerar planejamento detalhado, e é difícil acreditar nisso. Como saberiam que estavam prestes a perder a guerra, como leriam sobre a sessão conjunta? Além disso, não esqueça o que aquele cara da NTSB disse. Se a coisa tivesse sido planejada como uma operação de guerra, teria sido muito fácil colocar dez toneladas de explosivos a bordo do avião.

— Ou uma bomba atômica — completou Jack.

— Ou uma bomba atômica — assentiu Murray. — Isso me lembra de uma coisa: o adido da Força Aérea vai inspecionar a fabrica de armamentos nucleares. Os japoneses levaram alguns dias para descobrir sua localização.

Estamos enviando um especialista para lá neste exato momento. — Murray conferiu suas anotações. — O Dr. Woodrow Owell... oh, eu o conheço. Ele dirige o setor na Lawrence Livermore. O primeiro-ministro Koga disse ao nosso embaixador que quer aquelas malditas coisas fora do seu país imediatamente.

Ryan girou sua poltrona. As janelas atrás dele davam para o monumento de Washington. Aquele obelisco era cercado por um círculo de bandeiras, todas a meio mastro. Jack viu uma fila de pessoas aguardando o elevador que levava até o topo do monumento. Eles tinham vindo a Washington para ver os prédios e monumentos e agora eles, estavam desfrutando de uma paisagem inédita.

Ryan percebeu que os vidros das janelas do Salão Oval eram incrivelmente espessos, apenas para o caso de um daqueles turistas ter um rifle de assalto enfiado sob o casaco...

— Quanto disso podemos divulgar? — perguntou o presidente Ryan.

— Não vejo por que não divulgar algumas coisas — respondeu Murray.

— Tem certeza? — indagou Price.

— Não precisamos proteger provas para um julgamento. O culpado está morto. E verificaremos a fundo todas as possibilidades de coconspiradores, mas as provas que temos hoje não oferecem nenhum indício nesse sentido. Não sou exatamente favorável a divulgar provas criminais, mas as pessoas lá fora querem saber alguma coisa, e num caso como este, devemos informá-las.

E além do mais, pensou Price, isso cairá bem para o FBI. Ela se conteve para não colocar em palavras sua observação silenciosa.

— Quem está conduzindo isto no judiciário? — perguntou Price.

— Pat Martin.

— É? Quem o escolheu?— perguntou Price.

Ryan virou-se para ver Murray responder.

— Acho que eu — respondeu Murray, quase enrubescido. — O presidente disse! para escolher o melhor promotor, e é o Pat. Ele é chefe da Divisão Criminal há nove meses. Antes ele dirigiu o Serviço de Informações é ex-agente do FBI. Ele é um advogado particularmente bom; está nisso há quase trinta anos. Bill Shaw queria fazê-lo juiz. Ele e o promotor público conversaram sobre isso na semana passada.

— Tem certeza que ele é realmente bom? — perguntou Jack. Price decidiu responder.

— Também já trabalhamos com ele. É um verdadeiro profissional, Dan está certo. Com toda certeza do mundo, ele é um juiz adequado. E uma pessoa extremamente justa. Ele lidou com o caso de vingança da Máfia que meu antigo parceiro desbaratou em Nova Orleans.

— Certo. Deixe que ele decida o que divulgar. Ele pode começar a falar com a imprensa logo depois do almoço.

Ryan viu as horas. Era presidente há exatas 12 horas.

 

Pierre Alexandre, coronel desmobilizado do Exército dos Estados Unidos, ainda parecia um soldado. Era alto, magro e bem proporcionado, e isso não incomodou nem um pouco o reitor. Dave James gostou imediatamente do que viu quando seu visitante sentou-se. Gostou ainda mais dele pelo que estava lendo em seu currículo, e mais ainda pelo que descobrira por telefone. O coronel Alexandre — Alex, para os amigos, os quais eram muitos — era um especialista em doenças infecciosas que passara vinte anos produtivos a serviço do governo, dividido principalmente entre o Walter Reed Army Hospital, em Washington, e o Forte Detrick, em Maryland, tendo também realizado 4

numerosos trabalhos de campo em outros países. Formado na West Point e pela University of Chicago Medical School, leu o Dr. James. Bom. Seus olhos correram novamente pela relação de experiências profissionais. A lista de artigos publicados ocupava oito páginas de espaço simples. Fora indicado para dois prêmios importantes, mas ainda não tivera sorte. Bem, talvez a Hopkins pudesse mudar isso. Seus olhos escuros não estavam especialmente intensos no momento. Mas não era um homem arrogante. Alexandre simplesmente sabia quem e o que era — melhor ainda, sabia o que o reitor James sabia.

— Conheço Gus Lorenz — disse o reitor James com um sorriso. — Estudamos juntos em Peter Brent Brigham.

— Homem brilhante — concordou Alexandre com seu sotaque creole. Era de conhecimento geral que o trabalho de Gus na febre Lassa e que tornara-o um dos favoritos para o Prêmio Nobel. — E um grande médico.

— Então, por que não quer trabalhar com ele em Atlanta? Gus me disse que gosta muito de você.

— Reitor James...

— Dave — permitiu o reitor.

— Alex — replicou o coronel.

Havia algo a ser dito pela vida civil, afinal de contas. Alexandre considerou o reitor no um equivalente a um oficial três estrelas, talvez quatro. A Johns Hopkins gerava muito prestígio.

— Dave, trabalhei num laboratório quase a minha vida inteira. Quero cuidar de doentes de novo. O CDC seria apenas a mesma coisa. Por mais que goste de Gus... servimos juntos no Brasil em 1987, e nos afinamos muito bem — assegurou ao reitor estou cansado de olhar apenas para matriciais e slides.

 

E pela mesma razão, ele recusara uma oferta extraordinária da Pfizer Pharmaceuticals de dirigir um de seus novos laboratórios. As doenças infecciosas estavam se alastrando, e todos torciam para não ser tarde demais.

Mas por que esse sujeito não tem posto ...?, pensou James. Talvez por questões políticas. O Exército também tinha esse problema. Assim como a Hopkins. Mas o que eles estavam perdendo...

— Falei a seu respeito com Gus ontem à noite. Mesmo?

Não que isso fosse surpreendente. Na alta esfera da medicina, todo mundo conhece todo mundo.

— Ele disse para não pensar duas vezes antes de contratá-lo...

— Bondade dele — riu Alexandre.

— ... porque senão Harry Tuttle arrastará você para seu laboratório. Conhece Harry? E todo mundo sabia o que todo mundo estava fazendo.

— Fomos colegas de turma aqui — explicou o reitor. — Nós dois namoramos.

Ele venceu. Sabe, Alex, tenho muitas referências a seu respeito.

— Espero que isso seja bom.

— É. Você pode começar como professor associado trabalhando para Ralph Forster. Há muito trabalho laboratorial... e contará com uma excelente equipe.

Ralph montou um ótimo grupo nos últimos dez anos. Porém, estamos começando a nos tornar referência no setor clínico. Ralph está um pouco velho para viajar demais. Assim, esperava que você possa girar pelo mundo um pouco. Também ficará encarregado das atividades clínicas... digamos, daqui a seis meses...?

O coronel desmobilizado assentiu.

— Isso parece perfeito. Preciso reaprender algumas coisas. Diabos, quando é que isso tudo termina?

— Quando você se torna um administrador. Isso acontece se você não for cuidar — Sim. Bem, agora você sabe por que pendurei minha roupa verde. Eles queriam que eu dirigisse um hospital. Droga, sei que sou bom dentro de um laboratório. Sou muito bom dentro de um laboratório. Mas quero cuidar de pessoas para variar... e para ensinar um pouco. Mas, acima de tudo, quero ver pessoas doentes e mandá-las de volta com saúde para casa. Uma vez uma pessoa em Chicago definiu assim o trabalho do médico.

Se este fosse um ramo de vendas, pensou o reitor James, então eu teria de aprender algumas coisas com Oliver. Yale poderia oferecer-lhe praticamente o mesmo posto, mas este manteria Alexandre perto de Forte Detrick, a noventa minutos de avião de Atlanta, e perto da baía de Chesapeake... O reitor James lera no resumo que Alexandre gostava de pescar. Bem, isso não era de admirar para alguém que crescera na Louisiana. No cômputo total, era uma má notícia para Yale. O professor Harold Tuttle era um excelente profissional, talvez um pouquinho melhor que Ralph Forster, porém, em mais ou menos cinco anos, Ralph se aposentaria, e Alexandre tinha a aparência de um astro. Mais do que qualquer outra coisa, o reitor James estava no ramo de recrutar futuros astros.

Em outra realidade, ele seria o dirigente de um time de beisebol campeão.

Então, estava decidido. James fechou a pasta sobre sua mesa.

— Doutor, seja bem-vindo à faculdade de medicina da Universidade Johns Hopkins.

— Muito obrigado, senhor.


4

Estratégias

O resto do dia passou como um borrão diante dos olhos de Jack, com apenas alguns momentos discerníveis. Sua primeira experiência com computador — fora no Boston College. Antes da era dos microcomputadores, usara o mais imbecil! E terminais imbecis — um teletipo — para se comunicar com um computador de grande porte em alguma parte, juntamente com seus colegas do BC e outras escolas. Aquilo era chamado de partilha de tempo, apenas mais um termo de uma era limitada, quando os computadores custavam por volta de um milhão de dólares para o mesmo desempenho que hoje pode ser duplicado no relógio de um cidadão de classe média. Mas Jack logo descobriu que o termo ainda se aplicava ao presidente America! E, para quem o acompanhamento de uma única linha de raciocínio do começo ao fim é o mais raro dos luxos, e o trabalho consistia em diversas conexões intelectuais de uma reunião específica com a seguinte, que era mais ou menos como acompanhar várias telenovelas tentando não confundir uma com outra, e sabendo que evitar esse m era virtualmente impossível.

Começou assim que Murray e Price saíram.

A iniciação de Ryan foi uma palestra proferida por um dos agentes do serviço nacional de informações designado para o gabinete. Durante um período de 26 minutos, Jack aprendeu o que já sabia devido ao cargo que ele ocupara até o dia anterior. Assistiu a tudo em silêncio, se não por outra razão, ao menos para conhecer o homem que seria um dos membros de sua equipe diária de reuniões. Era um grupo :heterogêneo. Cada um tinha uma perspectiva própria e Ryan procurou compreender as nuances peculiares às vozes individuais que escutaria.

Então, nada no horizonte por enquanto? — perguntou Jack.

— Nada que nós do Conselho de Segurança Nacional possamos ver, presidente. Gabinete está tão a par dos focos potenciais de problemas quanto eu, é claro, e eles atualizam dia a dia.

O homem eximia-se de responsabilidades com a graça de alguém que dançava esse jogo havia anos. O rosto de Ryan não mudou, apenas porque ele já vira isso antes. Um bom agente secreto não temia a morte, não temia encontrar sua mulher na cama do melhor amigo, não temia nenhuma das vicissitudes normais da vida. O que um agente temia era cometer um erro numa declaração profissional. Mas evitar isso era fácil. Bastava jamais assumir uma posição verdadeira em nada. Apenas o presidente precisava tomar uma posição, e ele tinha a sorte de contar com especialistas treinados para supri-lo com as informações necessárias, não é verdade?

— Deixe-me dizer-lhe uma coisa — manifestou-se Ryan depois de alguns segundos de reflexão.

— Que é, senhor? — perguntou o agente, cauteloso.

— Não quero ouvir apenas o que você sabe. Quero ouvir também o que você e o seu pessoal acham. Você é responsável pelo que sabe, mas assumirei a responsabilidade de qualquer coisa que eu faça a partir do que você acha. Já estive no seu lugar e agi dessa forma, entendeu?

— Claro, presidente. — O homem permitiu-se um sorriso que mascarou seu terror com a perspectiva. — Comunicarei isso aos meus colegas.

— Muito obrigado. — Ryan dispensou o homem e decidiu que precisava de um conselheiro de Segurança Nacional no qual pudesse confiar. Perguntou-se onde arranjaria um.

Como se por mágica, a porta moveu-se para permitir a saída do agente — um membro do Serviço Secreto assistira a maior parte da reunião através de uma fenda de espionagem e abrira a porta. Em seguida, Ryan recebeu uma junta do Departamento de Defesa.

O chefe, um oficial de duas estrelas, entregou-lhe um cartão plástico.

— Presidente, o senhor precisa colocar isto em sua carteira.

Jack assentiu, sabendo o que era antes mesmo que suas mãos tocassem o plástico laranja. Parecia um cartão de crédito, mas nele havia uma série de grupos de números...

— Qual deles? — perguntou Ryan.

— O senhor decide, presidente.

Ryan fez isso. Leu em voz alta o terceiro grupo duas vezes. Ali estavam dois oficiais comissionados, mais um general, um coronel e um major. Todos anotaram o grupo de números que ele selecionou e também leram-no em voz alta duas vezes. O presidente Ryan agora tinha a habilidade de ordenar a liberação de armas nucleares estratégicas.

— Por que isto é necessário? — indagou. — Ano passado mandamos para o lixo os últimos mísseis balísticos.

— Presidente, ainda temos mísseis intercontinentais que podem ser armados com ogivas W-80, mais bombas de gravidade B-61 designadas para nossa frota de bombardeiros. Precisamos de sua autorização para ativar os PAL*, e a ideia é ativá-los o mais cedo possível, apenas para o caso...

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* Permissible Action Links — Circuitos de Permissão de Ação. (N. do T.)

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Ryan completou a frase:

— ...de eu precisar ser retirado antes.

 

Você é realmente importante agora, Jack disse uma voz sinistra no seu íntimo. Agora você pode iniciar um ataque nuclear.

— Odeio essas coisas. Sempre odiei.

— Não esperamos que goste delas, senhor — disse o general, em tom compreensivo. — Mas, como o senhor sabe, o corpo de fuzileiros possui o esquadrão de helicópteros VMH-1 que está sempre preparado para tirá-lo daqui e transportá-lo para um local seguro no menor tempo possível...

Ryan escutou o resto enquanto sua mente se perguntou se ele deveria fazer o que Jimmy Carter fizera nesse momento: Certo, vamos ver isso. Diga-lhes que quero que venham me pegar AGORA. Esse comando presidencial tornara-se um grande embaraço para muitos fuzileiros. Mas ele não podia fazer isso agora, podia? Isso transpiraria como se Ryan fosse um idiota paranoico, não alguém que queria ver se o sistema realmente funcionava da forma como as pessoas disseram que funcionaria. Além disso, o VMH-1 com certeza operaria à perfeição. Ou não?

O quarto membro da equipe era um oficial de segurança do Exército.

Usava trajes civis e carregava uma maleta de aparência comum conhecida como futebol. Dentro dela havia uma pasta, dentro da qual havia um plano de ataque — na verdade todo um conjunto deles...

— Deixe-me ver — disse Ryan. O oficial de segurança hesitou, em seguida abriu a maleta e entregou a Ryan a pasta azul-marinho. Ryan abriu-a.

— Senhor, não mudamos isso desde...

O primeiro bloco estava rotulado OPÇÃO PRINCIPAL DE ATAQUE.

Mostrava um mapa do Japão, e muitas das cidades estavam marcadas com pontos multicoloridos. A legenda no fundo mostrava o que os pontos significavam em termos de megatonelada liberada; provavelmente outra página quantificaria as mortes previstas. Ryan levantou as abas da pasta e removeu esse bloco inteiro.

— Quero que estas páginas sejam queimadas. Quero esta opção eliminada imediatamente.

Isso apenas significava que elas seriam arquivadas em alguma gaveta nos Planos de Guerra do Pentágono, e também em Omaha. Coisas assim jamais morriam.

— Senhor, ainda não foi confirmado se os japoneses destruíram todas as suas plataformas de lançamento, nem se procederam à neutralização de suas armas nucleares. O senhor deve entender...

— General, isto é uma ordem — disse Ryan em tom calmo. — Posso dá-las; sabe disso.

O homem empertigou-se em posição de sentido.

— Sim, Sr. Presidente.

Ryan folheou os outros documentos na pasta. Apesar de seu cargo anterior, o que encontrou ali foi uma revelação. Jack sempre evitara conhecimento íntimo sobre defesa nuclear. Jamais esperara que isso viesse a ser usado. Depois do incidente terrorista em Denver e de todo o horror que consequentemente varrera o planeta, estadistas de continentes e crenças diferentes haviam chegado às suas próprias conclusões sobre as armas que controlavam. Mesmo durante a guerra com o Japão, Ryan soubera em algum lugar, alguma equipe de especialistas maquinara um plano para um ataque nuclear retaliatório, mas ele concentrara seus esforços em torná-lo desnecessário, e o novo presidente sentia um orgulho considerável por jamais haver sequer aventado a possibilidade de implementar o plano cujo resumo ainda estava em sua mão esquerda, o nome código era FUZIL COMPRIDO. Por que os nomes tinham sempre de termologia, empolgantes e viris, como se dissessem respeito a alguma coisa que fosse motivo dei orgulho?

— E este, que é? COMUTADOR DE LUZ...? O general respondeu: — Sr. Presidente, esse é um método para empregar um ataque atômico eletromagnético. Se uma bomba nuclear for detonada a uma altura muito alta, não haverá nada, nem mesmo ar, para absorver a energia inicial da explosão e convertê-la em energia mecânica. Ou seja, não haverá nenhuma onda de choque. Como consequência, toda a energia será liberada em sua forma eletromagnética original. Isso impede o uso de energia elétrica e linhas telefônicas. Em nossas estimativas de alvos na União Soviética, sempre mantivemos uma série de mísseis diretamente apontados para altitudes elevadas. O sistema telefônico soviético era tão primitivo que seria destruído com facilidade. Essa modalidade de paralisação estratégica não atinge ninguém no solo.

— Entendo.

Ryan fechou a pasta e devolveu-a ao oficial de segurança, que prontamente trancou o documento, agora bem mais leve.

— Segundo sei, não há nada acontecendo que requeira um ataque nuclear de qualquer espécie.

— Correto, presidente.

— Então qual é o sentido em manter aquele homem sentado do lado de fora do seu escritório o tempo todo?

A princípio, o general pareceu chocado. Então perguntou: — O senhor não conseguiria prever todas as contingências políticas, conseguiria, senhor?

Ryan imaginou como teria sido difícil para o general contrariar o presidente dessa forma com uma expressão neutra no rosto.

— Acho que não — replicou o presidente.

 

O Departamento de Protocolo da Casa Branca era dirigido por uma mulher chamada Judy Simmons. Judy fora admitida pelo Departamento de Estado ao quadro de funcionários da Casa Branca há apenas quatro meses. Seu escritório no térreo do prédio estivera ocupado desde os primeiros minutos após a meia-noite, quando chegara de sua casa em Burke, Virgínia. Cabia-lhe a tarefa ingrata de fazer os preparativos para aquele que seria o maior funeral de Estado da história dos EUA, tarefa para a qual Judy já recorrera ao auxílio de mais de uma centena de funcionários, e ainda não era hora do almoço. A lista dos mortos ainda não estava compilada, mas através do exame minucioso das fitas de vídeo, tinha-se certeza da maior parte das pessoas que estavam no plenário da Câmara, e havia informações biográficas sobre todos — casados ou solteiros, religiosos ou não etc. Graças a isso, estavam sendo realizados os planos necessários — ainda que apenas preliminares. Mas qualquer que fosse a decisão final, Jack seria o mestre dessa cerimônia triste e, portanto, precisava ser informado sobre cada passo do seu planejamento. Um funeral para milhares, pensou Ryan. A maioria dessas pessoas ele não conhecera; a maioria dessas pessoas deixava maridos, esposas e filhos.

— Catedral Nacional — disse Ryan, virando a página.

Depois de compilados, os números aproximados das afiliações religiosas determinaram que o clero assumiria as diversas funções no serviço religioso ecumênico.

— É lá que costumam ser realizadas as cerimônias como essa, presidente — confirmou uma funcionária muito tensa. — Não haverá espaço para todos os restos mortais.

Ela não disse que um dos funcionários da Casa Branca sugerira um funeral ao ar livre no estádio RFK para acomodar todas as vítimas. Ela prosseguiu: — Mas haverá espaço para os corpos do presidente e da primeira-dama, a sim como para uma seleção representativa das vítimas do Congresso.

Contatamos onze governos estrangeiros para nos consultarmos sobre os diplomatas presentes. Também temos uma lista preliminar de representantes de governos estrangeiros que comparecerão à cerimônia.

Entregou o papel a Ryan, que correu os olhos pela lista. Isso significava que depois do funeral ele se encontraria informalmente com vários chefes de Estado para conduzir negócios informais . Ryan precisaria ler um relatório sobre cada chefe de Estado antes de se encontrar com ele. Além de tudo que os outros chefes de Estado iriam perguntar-lhe ou pedir-lhe, ele também estaria sendo avaliado por eles. Jack sabia como isso funcionava. No mundo inteiro, presidentes, primeiros-ministros e alguns ditadores vitalícios estariam agora lendo documentos — quem era esse John Patrick Ryan, e o que podia ser esperado dele? Perguntou-se se os outros teriam uma melhor ideia da resposta do que ele mesmo. Provavelmente não. Seus dilemas não deveriam ser muito diferentes. E assim, uma legião de representantes estrangeiros chegaria em jatos governamentais, em parte para ver de perto o novo presidente americano, em parte para satisfazer necessidades políticas internas, e em parte porque simplesmente era seu dever fazer isso. E assim este evento, por mais horrível que fosse para milhares e milhares de pessoas, seria apenas um pouco mais de exercício mecânico no mundo da política. Jack sentiu vontade de gritar de raiva, mas o que mais podia fazer? Os mortos estavam mortos, e toda sua dor não iria trazê-los de volta. E os Estados Unidos e os outros países precisavam seguir seus rumos.

— Por favor, peça a Scott Adler para trabalhar nisso.

Alguém teria de determinar quanto tempo ele deveria passar com os políticos visitantes, e Ryan não era qualificado para essa tarefa.

— Sim, Sr. Presidente.

—— Que tipo de discursos terei de fazer? — perguntou Jack.

— Temos gente trabalhando nisso agora. O senhor deverá receber os primeiros tratamentos dos discursos amanhã à tarde — replicou a Sra. Simmons.

O presidente Ryan assentiu e pôs os papéis em sua pilha de saída. Quando a chefe de cerimonial saiu, uma secretária entrou — ele não sabia o nome desta mulher — com uma pilha de telegramas, os que ele deixara de ler no Quartel dos Fuzileiros, mais outra folha de papel que mostrava suas atividades para o dia, preparada sem sua supervisão ou assistência. Estava prestes a reclamar disso quando ela falou.

— Recebemos mais de dez mil telegramas e e-mails de... bem, de cidadãos.

— Dizendo o quê?

— A maioria diz que eles estão rezando por você.

— Oh...

Por algum motivo, isso foi uma surpresa para Jack, e fê-lo sentir-se humilde. Mas Deus ouviria? Jack voltou a ler as mensagens oficiais, e o primeiro dia prosseguiu.

 

Embora o novo presidente dos Estados Unidos estivesse cheio de trabalho e compromissos, o país estava essencialmente paralisado. Bancos e bolsas de valores estavam fechados; as escolas e muitas empresas também. Todas as emissoras de televisão haviam enviado seus principais jornalistas e técnicos para os diversos departamentos da capital. Uma horda de operadores de câmera sentados em torno do Capitólio cobria continuamente as operações de resgate, enquanto repórteres tinham de continuar falando, para que as imagens não entrassem no ar em silêncio. Por volta das 11 da manhã, um guindaste removeu os restos da cauda do 747, que foi depositado numa enorme carreta para ser transportado até um hangar na base Andrews da Força Aérea. Esse seria o local do processo que estava sendo chamado, por falta de nome melhor, de a investigação do acidente . As câmeras seguiram o veículo enquanto ele serpenteava pelas ruas. Logo depois, duas das turbinas do avião foram retiradas mediante uma rotina muito parecida. Vários peritos ajudaram a preencher o silêncio, especulando o que havia acontecido e como. Foi difícil para todos os envolvidos, porque até então haviam sido liberadas pouquíssimas informações — as pessoas tentando descobrir as causas do acidente estavam ocupadas demais para conversar com repórteres, oficialmente ou não, e embora os jornalistas não pudessem dizer isso, sua maior fonte de informação jazia nas ruínas diante das 34 câmeras. Isso conferia aos peritos pouco que dizer. Testemunhas foram entrevistadas e, para a surpresa geral, não foi descoberta nenhuma gravação da queda da aeronave. O número do avião era conhecido — não havia como não vê-lo, pintado na fuselagem do avião —, e jornalistas e autoridades tiveram a mesma facilidade em checá-lo. Logo foi confirmado que a aeronave pertencia à Japan Airlines. Descobriu-se também a data em que o aparelho saíra da fábrica da Boeing, perto de Seattle. Executivos da Boeing concederam entrevistas e, ao longo do caminho, determinou-se que o 747-400 (PIP) pesava, vazio, mais de duzentas toneladas, número duplicado pela massa de combustível, passageiros e bagagem levada ao ar. Um piloto da United Airlines, familiarizado com a aeronave, explicou a duas das emissoras como um piloto poderia rumar para Washington e executar o mergulho mortal, enquanto um colega da Delta fez o mesmo para as outras redes. Ambos os pilotos enganaram-se em alguns aspectos, nenhum deles importante.

— Mas o Serviço Secreto não está armado com mísseis terra-ar? — perguntou um âncora.

— Se uma carreta de dezesseis rodas está vindo na sua direção a cem quilômetros por hora, e você dá um tiro num dos pneus, isso não detém o veículo, detém? — respondeu o piloto, reparando no olhar compenetrado no rosto de um jornalista muitíssimo bem pago que compreendia pouco mais do que aparecia em um teleprompter. — Um avião de trezentas toneladas não pode simplesmente parar. Certo?

— Então não havia como deter o avião? — indagou o âncora com uma expressão intrigada.

— Não, não havia.

O piloto percebeu que o repórter não entendera nada, mas ele não conseguiu divisar outra analogia para esclarecer ainda mais o que estava dizendo.

Nesse momento, o diretor de TV, em sua sala de controles na Nebraska Avenue, colocou no ar dois membros da Guarda Nacional descendo com outro corpo pelos degraus do Capitólio. Um diretor-assistente estava parado diante dos monitores conectados às diversas câmeras, tentando manter um registro do número de corpos removidos. Sabia-se agora que os corpos do presidente e da primeira-dama haviam sido encontrados e estavam no Walter Reed Army Medicai Center para a autópsia — exigida por lei em todos os casos de morte não natural. Na central da emissora, em Nova York, cada minuto de videoteipe sobre Durling estava sendo depurado para ser veiculado durante o dia. Amigos e colegas políticos de Durling estavam sendo procurados e entrevistados.

Psicólogos eram chamados ao estúdio para explicar como os filhos de Durling poderiam ser instruídos a lidar com o trauma, e em seguida falar sobre o impacto do evento sobre a nação como um todo e como os cidadãos poderiam lidar com isso. A única coisa que não estava sendo examinada profundamente na televisão era o aspecto espiritual. O fato de que muitas das vítimas haviam acreditado em Deus e frequentado ocasionalmente a igreja só foi julgado merecedor de cobertura por uma emissora, que dedicou três minutos no ar a esse tópico. Como todas as redes estavam monitorando constantemente umas às outras em busca de ideias, o segmento foi imitado por várias outras emissoras nas horas seguintes.

 

Jack sabia que, no fim das contas, tudo se reduzia a isso. Os números eram meramente um acréscimo aos casos individuais, idênticos a este em magnitude e horror. Evitara esse encontro o dia inteiro, mas finalmente conseguiu vencer sua covardia.

Os filhos dos Durling pairavam entre uma atitude de negação e um sentimento de horror profundo por um mundo destruído diante de seus olhos enquanto assistiam a seu pai falar na TV. Jamais veriam papai e mamãe novamente. Os corpos estavam danificados demais para ser expostos em caixões abertos. Não haveria despedidas finais. Apenas a remoção traumática da fundação que sustentava suas vidas jovens. E como as crianças deveriam compreender que mamãe e papai não eram apenas mamãe e papai, mas eram — tinham sido — outra coisa para outras pessoas, e que, por essa razão, suas mortes haviam sido necessárias para alguém que não conhecia ou se importava com as crianças?

Vários familiares haviam chegado a Washington, a maioria trazidos da Califórnia pela Força Aérea. Embora igualmente chocados, precisavam, na presença das crianças, munir-se da força necessária para amenizar a dor da profunda perda dos pequenos. Isso, ao menos, dava-lhes alguma coisa para fazer. De todos do Serviço Secreto, agentes do Serviço Secreto designados para JUNÍPERO e JÚNIOR eram os mais abalados. Treinados para defendera qualquer custo quem quer que fosse o protegido, os agentes que cuidavam dos filhos dos Durling carregavam o fardo adicional do carinho normal que qualquer pessoa com sentimentos tinha por qualquer criança, e nenhum deles teria hesitado um milésimo de segundo para protegê-los com suas vidas, embora, ao contrário dos outros agentes da segurança presidencial, não portassem armas. Os homens e mulheres desta subdivisão da segurança haviam brincado com as crianças, comprado presentes de Natal e aniversário para eles e ajudado com seu trabalho de casa... Agora estavam dizendo adeus, para seus pais e para os colegas. Ryan notou as expressões em seus agentes e anotou um lembrete mental para perguntar a Andréa se o Serviço poderia designar-lhes um outro posto — Não, não doeu — Jack estava sentado, de modo quem o menino o fitava nos olhos. — Não doeu nem um pouco.

— Certo — disse Mark Durling.

As crianças estavam imaculadamente vestidas. Um dos membros da família considerara importante que as crianças estivessem apropriadamente vestidos para ser apresentadas ao sucessor de seu pai. Jack ouviu um arfar, e sua visão periférica captou o rosto de um agente — este, um homem —, que estava prestes a perder o controle. Price segurou-o pelo braço e o conduziu até a porta, antes que as criança pudessem notar.

— Vamos ficar aqui?

— Sim — assegurou-lhe Jack. Era mentira, mas não do tipo que — o magoaria. — E se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, pode vir me ver, entendeu?

O menino assentiu, esforçando-se ao máximo para ser corajoso. I r.i hora de deixá-lo com a família. Ryan apertou a mão do menino com força, tratando como o homem que ele só viria a se tornar dali a muitos anos, mas para quem os deveres da maturidade estavam chegando cedo demais. O menino precisava chorar, e Ryan considerou que ele precisava fazer isso sozinho, por enquanto.

Jack dirigiu-se até a porta para o saguão amplo no pavimento dos dormitórios. O agente que Price retirara da sala, um negro alto, de feições rudes, estava chorando a três metros dali. Ryan caminhou até ele.

— Você está bem?

— Porra... perdão, quero dizer... merda!

O agente balançou a cabeça, envergonhado com sua demonstração de emoções. Price sabia que o pai dele morrera num acidente de treinamento em Forte Rucker, quando ele tinha 12 anos, e o agente especial Tony Wills possuía uma habilidade extraordinária para lidar com crianças. Em momentos como esse, pontos fortes tornavam-se fraquezas.

— Não se desculpe por ser humano. Também perdi minha mãe e meu pai.

Os dois ao mesmo tempo. — Ryan fez uma pausa e então prosseguiu, a voz arrastando-se com a fadiga. — O 737 caiu no Aeroporto Midway durante uma tempestade de neve. Mas eu já era crescido quando aconteceu.

— Eu sei, senhor. — O agente enxugou os olhos e se empertigou. — Ficarei bem. Ryan deu-lhe um tapinha no ombro e caminhou até o elevador. Para Andréa Price: — Tire-me deste maldito lugar!

O Suburban rumou para norte, dobrando à esquerda na Massachusetts Avenue, que conduzia até o Observatório Naval e a pequena mansão em estilo vitoriano que a nação oferecia ao vice-presidente. Como antes, estava guardada pelos fuzileiros, que permitiram a entrada do comboio. Jack entrou na casa.

Cathy esperava-o na entrada. Só precisou olhar para Jack.

— Dia difícil?

Tudo que Ryan pôde fazer foi assentir. Abraçou-a com força, sabendo que não conteria as lágrimas por muito tempo. Então, levantou os olhos e viu o cordão de agentes parados ao longo das paredes do saguão de entrada da casa, e ocorreu-lhe que teria de se acostumar a eles, imóveis como estátuas, onipresentes nos momentos mais íntimos.

Odeio este emprego.

 

Mas o general de brigada Marion Diggs amava o dele. A rotina não mudara radicalmente para todos. Enquanto o nível de atividade nos quartéis dos fuzileiros em Washington e em Quântico, Virgínia, subira imensamente, em outras organizações a rotina simplesmente permanecera árdua ou ficara ainda mais árdua; nesses lugares, as pessoas jamais tinham permissão para dormir — pelo menos não todas ao mesmo tempo. Uma dessas organizações era o Forte Irwin, na Califórnia. Localizada no deserto de Mojave, a base estendia-se por uma área maior que o estado de Rhode Island. A paisagem era morta o bastante para que os ecologistas tivessem de suar muito para achar alguma coisa viva entre a vegetação rasteira, e mesmo os praticantes mais ardorosos da profissão confessariam achar a superfície da Lua muito mais interessante. Não que os ecologistas não infernizassem sua vida, pensou Diggs, ajustando o foco de seus binóculos. Havia ali uma espécie de tartaruga do deserto, que possuía alguma coisa que a distinguia das outras tartarugas (o general não fazia a menor ideia do que seria), e os soldados precisavam protegê-la. Para resolver isso, seus soldados haviam coletado todas as tartarugas que puderam encontrar e levaram-nas para um cercado grande o bastante para que os répteis nem mesmo notassem a cerca. Localmente, aquilo era conhecido como o maior bordel de tartarugas do mundo. Com esse problema resolvido, as outras formas de vida que porventura existissem no Forte Irwin seriam capazes de cuidar de si mesmas. Ocasionalmente um coiote aparecia e desaparecia, e era só. Além disso, coiotes não eram uma espécie ameaçada.

Visitantes eram. Forte Irwin abrigava o Centro Nacional de Treinamento do Exército dos Estados Unidos. Os residentes permanentes desse estabelecimento constituíam uma Força de Resistência. Originalmente composta por dois batalhões, um de blindados e outro da infantaria motorizada, a Força de Resistência um dia se autodenominara 32° Regimento de Carabineiros Motorizado, uma designação soviética. Ao ser inaugurado na década de 1980, o Centro Nacional de Treinamento recebera a missão de instruir o Exército americano como lutar, sobreviver e sair vitorioso numa batalha contra o Exército Vermelho nas pradarias europeias. Os soldados do U32M tinham uniformes russos, dirigiam imitações de veículos soviéticos (a manutenção dos carros soviético revelou-se difícil, e equipamentos americanos foram modificados para unidades que empregavam táticas russas, e se orgulhavam por sempre dar uma boa sova em unidades que vinham jogarem seu campo. Mas isso era uma covardia. A Força de Resistência vivia e treinava aqui, e recebia outras unidades até 14 vezes por ano, enquanto a equipe visitante, se tivesse sorte, viria ao Centro Nacional de Treinamento de quatro em quatro anos. Mas quem disse que a guerra era justa?

Os tempos mudaram com a queda da União Soviética, mas o motivo do Centro Nacional de Treinamento não. A Força de Resistência recentemente fora aumentada para três batalhões — agora chamados esquadrões, porque a unidade assumira a identidade de 11ª Divisão Blindada, o Regimento Corcel Negro — emulava brigadas ou outras formações inimigas de maior porte. A única concessão autêntica ao novo mundo político fora que eles não chamavam mais a si mesmos de russos. Agora eram krasnovianos, palavra que, entretanto, era derivada de krasny, russo para vermelho.

O tenente-general Gennady Iosefovich Bondarenko sabia quase tudo isso — o bordel das tartarugas fora uma das poucas coisas sobre as quais não fora instruído antes de sair de seu país, mas a turnê de apresentação pela base corrigira isso — e citava empolgado, como era de seu feitio.

— Então você começou no Corpo de Sinaleiros? — perguntou Diggs.

O comandante da base era homem de poucas palavras mas de muito movimento. Vestia uma roupa de camuflagem para deserto — chamada sorvete de flocos devido à sua estampa. Ele, também, fora totalmente instruído sobre seu colega, embora, como seu visitante, precisasse fingir que não.

— Isso mesmo — assentiu Bondarenko. — Mas depois envolvi-me em muita confusão. Primeiro, o Afeganistão, depois, quando a guerrilha mujaheddin invadiu a União Soviética. Eles atacaram uma instalação de pesquisa de defesa no Tadjiquistão quando eu estava lá como visitante. Guerreiros corajosos, mas indisciplinados. Conseguimos . mantê-los coesos — respondeu o militar russo, num tom monótono. Diggs podia ver as condecorações que Bondarenko recebera em decorrência disso. Diggs comandara o regimento que lutara ao lado da 241 Divisão Blindada de Infantaria durante a operação Tempestade no Deserto; depois comandara a divisão Búfalo, ainda baseada no deserto de Neguev, como parte do compromisso americano com a segurança israelense.

Os dois homens tinham 49 anos. Ambos haviam visto a morte de perto. E ambos tinham um futuro brilhante.

— Vocês têm um campo como esse em casa? — perguntou Diggs.

— Temos todos os tipos de terreno que você pode imaginar. Isso torna qualquer treinamento um desafio, especialmente hoje. Veja — disse. — Começou.

 

O primeiro grupo de tanques estava em movimento agora, atravessando uma passagem em forma de U, chamada Vale da Morte. O sol se punha atrás das montanhas acastanhadas, e a escuridão chegava rápido nessa região.

Também já estavam em funcionamento as câmaras do sistema de observação, o Deus do Centro Nacional de Treina mento, que observava tudo e qualificava o que via com a mesma imparcialidade da morte. O Centro Nacional de Treinamento era a escola mais empolgante do mundo. Os dois generais poderiam ter observado a batalha no quartel-general da base, num lugar chamado Sala Guerra nas Estrelas. Cada veículo era conectado por rádio, transmitindo assim sua localização, rumo e — quando era o caso — se um disparo acertara-o ou não. A partir desses dados, os computadores na Sala Guerra nas Estrelas enviavam sinais, dizendo às pessoas quando elas tinham morrido, embora raramente o motivo. Ficavam sabendo disso depois, através das análises fornecidas pelo sistema. Entretanto, os generais não queriam observar telas de computador. Os oficiais de Bonderenko estavam fazendo isso, mas o lugar do general era aqui. Todo campo de batalha tinha um cheiro, e os generais precisavam desenvolver seu olfato. — Seus instrumentos parecem saídos de um livro de ficção científica. Diggs deu de ombros.

— Não mudou muita coisa de 15 anos para cá. Mas hoje temos mais câmeras de TV nas colinas.

Os EUA estavam vendendo boa parte dessa tecnologia para os russos.

Diggs tinha uma certa dificuldade em aceitar esse tipo de coisa. Ele tinha sido jovem demais para lutar no Vietnã. Pertencia à primeira geração de altos oficiais que não havia participado desse conflito. Mas Diggs crescera com uma realidade em sua vida: a luta contra os russos na Alemanha. Oficial de divisão blindada durante toda sua carreira, treinara para comandar um dos regimentos — na verdade, brigadas aumentadas — que faria o primeiro contato. Diggs lembrava de algumas vezes quando parecera terrivelmente provável que ele encontraria a morte nas cercanias de Fulda, enfrentando alguém como o homem ao seu lado, com quem, na noite anterior, entornara seis garrafas de cerveja contando histórias sobre como as tartarugas se reproduziam.

— Dentro — disse Bondarenko com um sorriso matreiro. Por algum motivo, os americanos pensavam que os russos não tinham humor. Ele precisava corrigir esse preconceito antes de partir.

Diggs contou até dez antes de replicar: — Fora.

Mais dez segundos.

— Dentro.

Então ambos começaram a rir. Quando fora apresentado à piada favorita da base, Bondarenko levara meio minuto para entendê-la. Mas a risada resultante acabara causando dor abdominal. Como agora. Ele recobrou o controle e comentou:

— A guerra devia ser assim.

— Depois fica um bocado tensa. Espere e verá.

— Você usa as nossas táticas!

Isso estava evidente pela forma como os veículos de reconhecimento estavam espalhados pelo vale.

Diggs virou-se para o colega russo. russo, — Porque não? Elas me serviram bem no Iraque.

O roteiro para essa noite — o primeiro compromisso da tripulação era bem difícil: a Força Vermelha devia atacar, avançar — até o contato e eliminar os veículos de reconhecimento da Força Azul. A Força Azul neste caso era a Infantaria da Divisão Motorizada, procedendo a defesa rápida. A ideia geral era que deveria ser uma situação tática muito fluida. O 11º Regimento Blindado de Infantaria simulando um ataque de divisão contra uma força recém-chegada com cerca de um inimigo, de tamanho hipotético. Essa era, na verdade, a melhor maneira de receber inimigos no deserto. Que comam poeira.

— Vamos nos mover — Diggs saltou de volta para seu HMMWV. O motorista guiou o veículo até uma pequena colina chamada Triângulo de ferro.

Uma mensagem curta de rádio de seu comandante superior fez o general americano xingar.

— Puta merda!

— Algum problema?

O general Diggs abriu um mapa.

— Aquela colina é o pedaço de terreno mais importante no vale, mas eles não a viram. Bem, eles pagarão por esse pequeno erro. Acontece sempre.

Naquele momento, soldados da Força de Resistência já corriam até a colina desocupada.

— É prudente para a Azul avançar tão rápido?

— General, posso garantir que o senhor logo verá se essa é uma atitude prudente ou não.

 

— Por que ele não falou mais, por que não apareceu mais em público?

O chefe do serviço de informações poderia ter respondido muitas coisas. O presidente Ryan estava ocupado demais. Tinha muitas coisas para fazer. O governo de seu país estava em ruínas, e organizá-lo era mais importante que falar ao público. Ryan precisava entrar em contato com numerosos dirigentes de países estrangeiros, precisava aplacar suas preocupações. Ele mesmo tinha várias preocupações imediatas, entre sua segurança pessoal. O gabinete americano e os principais conselheiros do presidente estavam mortos e precisavam ser reconstituídos... mas não era isso que seu líder queria ouvir.

— Estivemos pesquisando esse Ryan — foi a resposta. — Nossa fonte principal foram as matérias publicadas pelos jornais, que a comissão de seu governo nas Nações Unidas enviou-nos por fax. Ryan tinha feito pouquíssimos pronunciamentos até hoje, e sempre para apresentar a visão de seus mestres. Ele foi agente do serviço de informações... na verdade, um burocrata, um analista.

Um profissional muitíssimo competente, mas, ainda assim, um burocrata.

— Então, por que Durling o promoveu?

— Os jornais americanos comentaram isso ontem. O governo americano precisava de um vice com presença. Durling também queria firmar seu gabinete de política externa, e nisso esse Ryan tinha alguma experiência. Lembre-se que ele foi muito competente no conflito com o Japão.

— Mas então era apenas um assistente, não um líder.

— Exatamente. Ele nunca aspirou a um posto elevado. Nossa informação é de que concordou assumir como vice apenas para ser um testa de ferro, por menos de um ano.

— Não estou surpreso.

Daryaei olhou as anotações: assistente do vice-almirante James Greer, diretor da CIA; temporariamente diretor interino; depois vice-diretor da contrainformação; depois conselheiro de Segurança Nacional para o presidente Durling; finalmente, aceitara o posto temporário de vice-presidente. Suas impressões sobre esse tal Ryan estavam corretas desde o início: um ajudante.

Provavelmente um ajudante muito habilidoso. Ele mesmo possuía vários ajudantes habilidosos, nenhum dos quais, contudo, poderia assumir seus próprios deveres. Ele não estava lidando com um igual. Isso era bom. — Que mais?

— Como perito em informação, ele será muito mais bem informado sobre questões internacionais do que a maioria dos presidentes. Na verdade, poderá ser o presidente com mais conhecimento sobre esses assuntos que os EUA tiveram nos últimos anos, mas ao custo da quase ignorância em questões internas.

Essa informação viera do New York Times.

— Ah... — exprimiu o aiatolá.

E com essa pequena informação, o plano começou a se formar. Nesse ponto era apenas um exercício mental. Isso mudaria em breve.

 

— E então, como vão as coisas no seu exército? — perguntou Diggs.

Os dois generais estavam sozinhos no topo da colina mais alta do terreno, observando, com óculos de visão noturna, a batalha que se travava lá embaixo.

Conforme previsto, o 32º — Bondarenko precisava pensar neles dessa forma — tomara os veículos de reconhecimento da Força Azul, manobrara para a esquerda e agora estava cercando a brigada inimiga . Com a ausência de baixas reais, era delicioso ver as lâmpadas amarelas que indicavam morte acenderem uma a uma. Então, respondeu à pergunta.

— Terrível. Temos em nossas mãos a tarefa de reconstruir tudo do começo.

Diggs virou-se para ele.

— Bem, senhor, é aí que eu entro. — Pelo menos vocês não têm problemas com drogas, frisou o americano. Ele podia lembrar de quando era um subtenente e tinha medo de entrar no quartel desarmado. Se os russos tivessem atacado na década de setenta... — Você realmente quer usar nosso modelo?

— Talvez. — Ao emular o sistema estratégico soviético, a única coisa que os americanos tinham feito de errado, e certo, fora permitir iniciativa tática aos comandantes de subunidades, algo que o Exército soviético jamais teria feito.

Mas, combinado com a doutrina desenvolvida pela Academia Voroshilov, os resultados eram evidentes. Isso era algo para não esquecer. O próprio Bondarenko quebrara regras em seus conflitos táticos, e esse era um dos motivos pelos quais era um oficial de três estrelas vivo e não um Coronel morto. Ele também era tido como o próximo chefe de operações do Exército russo.

— O problema é dinheiro, claro.

— Já ouvi essa canção antes, general — disse Diggs, permitindo-se uma risadinha.

Bondarenko tinha um plano para contornar esse problema. Queria reduzir o exército a 50% de seu tamanho, e investir o dinheiro economizado no treinamento da metade restante. Os resultados desse plano estavam bem diante de seus olhos. Tradicionalmente, o Exército soviético dependia da massa, mas os americanos provaram aqui e no Iraque que o segredo da vitória era o treinamento. Por melhor que fossem os equipamentos americanos — iria vê-los no dia seguinte —, o que mais invejava em Diggs eram seus soldados. A prova disso chegou no momento em que esse pensamento se formou em sua cabeça.

— General? — saudou o recém-chegado. — Cortei Negro! Nós os pegamos de calças arriadas.

— Este é o coronel Al Hamm, comandante do 11º. Está nesse posto há relativamente pouco tempo. Antes era agente de operações do OpFor. Não jogue cartas com ele — alertou Diggs.

— O general é muito gentil. Bem-vindo ao deserto, general Bondarenko.

Hamm estendeu sua mão. Bondarenko apertou-a.

— O seu ataque foi muito bem executado, coronel. — O russo o examinou.

— Obrigado, senhor. Tenho meninos fantásticos trabalhando para mim. A Força Azul hesitou muito. Fomos rápidos e os encurralamos — explicou Hamm.

Ele até parece russo, pensou Bondarenko. Hamm era alto e corpulento, com uma pele extremamente pálida cercando os olhos azuis. Especialmente para a ocasião, Hamm estava vestido com seu velho uniforme em estilo russo, completo com uma estrela vermelha na boina, e o cinto da pistola fechado sobre a blusa longa. Isso não fez o russo sentir-se exatamente em casa, mas apreciou o respeito que os americanos mostravam por ele.

— Diggs, você estava certo — admitiu Bondarenko. — A Força Azul devia ter feito tudo para chegar aqui primeiro. Mas você os manteve recuados por muito tempo para que essa opção parecesse atraente.

Hamm respondeu por seu chefe: — Esse é o problema com os campos de batalha; na maioria das vezes eles escolhem você, e não o contrário. Essa é a lição número um para os rapazes da 5ª Divisão. Se você deixar o outro lado decidir os termos da batalha... bem, você não irá se divertir muito.


5

Preparativos

Descobriu-se que Sato e seu copiloto haviam doado sangue para ajudar as vítimas da guerra abortada contra os EUA. O número de feridos, felizmente, fora muito reduzido, e o sangue dos aeronautas não tinha sido necessário.

Localizadas mediante uma busca de computador realizada pela Cruz Vermelha Japonesa, as amostras chegaram à polícia e foram enviadas para Washington, através de Vancouver — as aeronaves comerciais japonesas ainda não tinham permissão de voar para os Estados Unidos, nem mesmo para o Alasca —, e dali levadas num CV-20 da Força Aérea para Washington. O portador, um oficial da polícia, desembarcou com a valise de alumínio algemada ao pulso esquerdo.

Um trio de agentes do FBI encontrou-o em Andrews e levou-o até o Prédio Hoover na rua 10 com a Pennsylvania Avenue. O laboratório de DNA do FBI assumiu a responsabilidade sob as amostras e levou-as para comparação com sangue e outros tecidos dos corpos. Os tipos sanguíneos das amostras já haviam conferido com os dos corpos, e os resultados dos exames eram fáceis de ser previstos. Ainda assim, os exames foram tratados como a única pista tênue num caso mirabolante. Dan Murray, diretor interino do FBI, não era exatamente um escravo das regras em investigações criminais, mas para os propósitos desse caso, o regulamento foi seguido ao pé da letra. Em sua tarefa, foi auxiliado por Tony Caruso — de volta das férias e trabalhando sem parar no comando da investigação do FBI —, Pat O’Day, em caráter de inspetor temporário, mais um elenco de centenas, se não milhares, de agentes. Murray encontrou-se com o representante japonês na sala de conferências. Como Ryan, ele sentia dificuldade em mudar-se imediatamente para o gabinete de Bill Shaw.

— Estamos realizando nossos próprios exames — disse o inspetor-chefe Tisaburo Tanaka, olhando seus relógios. Ele decidira usar dois, um ajustado para Washington e o outro para Tóquio. — Eles serão enviados por fax para vocês assim que forem completados. — Abriu novamente sua valise. — Esta é nossa reconstrução do cronograma do comandante Sato na última semana.

— Trabalho rápido. Muito obrigado.

Murray pegou as fichas, sem ter muita certeza do que faria em seguida.

Estava claro que seu visitante queria dizer mais alguma coisa. Murray e Tanaka jamais haviam se encontrado, mas a fama de seu convidado o precedia.

Investigador habilidoso e experiente, Tanaka especializara-se em corrupção política, atividade que o mantinha muito ocupado. A perspicácia desenvolvida em sua vida profissional tornava-o perfeito para o caso.

— Vocês terão nossa colaboração total — disse Tanaka. — Na verdade, se quiserem enviar um representante de sua agência para supervisionar nossa investigação, estou autorizado a dizer que ele será bem recebido. — Fez uma pausa de alguns segundos, olhando para baixo antes de prosseguir. — O que aconteceu foi uma desgraça para o nosso país. A forma como aquelas pessoas usaram a todos nós...

Para um representante de um país incorretamente conhecido por sua incapacidade de manifestar emoções, Tanaka era uma surpresa. Seus punhos se fecharam; os olhos arderam de ódio. Da sala de conferências, os dois desfrutavam de uma vista da Pennsylvania Avenue, na qual se destacava o Capitólio semidestruído pela colisão. Como o sol não nascera, as ruínas ainda estavam iluminadas por centenas de lâmpadas de trabalhadores.

— O copiloto foi assassinado — disse Murray. Talvez isso pudesse ajudar um pouco.

— Mesmo? Dan assentiu.

— Esfaqueado. Aparentemente, isso aconteceu antes da decolagem. Até o momento, tudo indica que Sato agiu sozinho... pelo menos no que diz respeito a pilotar o avião.

O laboratório já determinara que a arma usada havia sido uma faca fina de cortar carne, com ponta serrilhada, do tipo usado pela linha aérea. Apesar de todos os anos em que estava nesse trabalho, Murray sempre ficava admirado com o que os técnicos de laboratório podiam descobrir.

— Entendo. Isso faz sentido — observou Tanaka. — A mulher do copiloto está grávida. De gêmeos. Está no hospital sob observação rigorosa. Pelo que descobrimos até agora, ele parece um marido dedicado e um homem sem nenhum interesse político em particular. Meus homens consideraram improvável que tivesse tirado a própria vida dessa forma.

— Sato tinha alguma conexão com...? Um menear de cabeça.

— Nada que tenhamos descoberto. Ele levou um dos conspiradores de avião até a Espanha, e os dois conversaram rapidamente. Além disso, Sato era um piloto internacional. Seus amigos eram os seus colegas. Ele vivia numa casa modesta perto do Aeroporto Internacional de Narita. Mas seu irmão era oficial da Força Marítima de Autodefesa, e seu filho era piloto de caça. Ambos morreram durante as hostilidades.

Murray já sabia disso. Motivo e oportunidade. Ele rabiscou um bilhete para o adido legal em Tóquio, instruindo-o a participar da investigação japonesa... mas antes teria de obter aprovação da Justiça e ou do Estado. A oferta de Tanaka parecera-lhe sincera. Isso era bom.

 

— Estou adorando o tráfego — observou Chavez. Estavam atravessando a I-95, passando pelo Springfield Mall. Normalmente a esta hora do dia — ainda estava escuro —, a pista estaria entupida por burocratas e lobistas. Hoje não, embora John e Ding tivessem sido convocados, confirmando seu status de essenciais a qualquer um que duvidasse disso. Como Clark não respondeu, o oficial júnior prosseguiu: — Como acha que o Dr. Ryan está se saindo? John resmungou e deu de ombros.

— Deve estar nadando para não se afogar. Antes ele que eu.

— Concordo em gênero, número e grau, Sr. C. Todos os meus amigos na George Mason vão ter de suar um bocado.

— Acha?

— John, ele tem um governo para reconstruir. Este será um daqueles casos hipotéticos tenebrosos... só que na vida real. Ninguém jamais precisou fazer isso antes, hermano. Sabe o que vamos descobrir?

— Sim, se este lugar funciona de verdade ou não — respondeu John. Antes ele quem, pensou novamente. Tinham sido convocados devido à sua missão no Japão. Clark estava neste ramo havia muito tempo, mas não por tempo suficiente para sentir-se à vontade ao contar as coisas que fizera. Ele e Ding haviam matado — não pela primeira vez — e agora descreveriam isso detalhadamente a pessoas, a maioria das quais jamais segurara uma arma, muito menos disparara uma num momento de raiva. Juramentos de segredo ou não, algumas dessas pessoas acabariam falando um dia, e a menor das consequências seriam as revelações constrangedoras na imprensa. Pior ainda seria prestar testemunho perante uma comissão do Congresso, quando teria de responder, sob juramento, a perguntas de pessoas que não o entenderiam melhor que aqueles almofadinhas da CIA que ficavam sentados em seus escritórios julgando o trabalho das pessoas que agiam em campo. O pior caso seria um processo, porque, embora as coisas que fizera não fossem exatamente ilegais, também não eram exatamente legais. A Constituição tios Estados Unidos não justificava inteiramente as atividades que o governo realizava, mas não admitia ao público. Embora sua consciência estivesse limpa em relação a isso e muitas outras coisas, a maioria das pessoas não concordaria com sua moralidade. Ryan talvez entendesse. Isso, pelo menos, era reconfortante.

 

— Quais são as novidades desta manhã? — perguntou Jack.

— Esperamos que as operações de resgate sejam completadas até a noite, senhor. Quem respondeu foi Pat O’Day. Geralmente seria o próprio Murray quem faria o relatório do FBI, mas, conforme O’Day explicara, Murray estava muito ocupado. O Inspetor passou uma pasta com os números dos corpos encontrados. Ryan correu os olhos por ela. Como diabos esperava que ele fizesse seu desjejum com esses fatos à sua fronte? Para sua sorte, naquele momento estava apenas tomando café.

— O que mais?

— As coisas começam a se encaixar. Recuperamos o que pensamos ser o corpo do copiloto. Ele foi assassinado horas antes da queda, o que nos leva a crer que o piloto agiu sozinho. Faremos testes de DNA nos restos para confirmar identidades. — O inspetor folheou suas anotações, porque preferia não confiar na memória. — Os testes de drogas e álcool em ambos os corpos deram negativo. A análise do gravador de voo, as fitai de comunicações por rádio, as fitas de radar, tudo que conseguimos reunir leva ao mesmo quadro: um homem agindo só. Neste momento Dan está em reunião com um oficial da polícia japonesa.

— Próximo passo?

— Será um processo investigativo convencional. Reconstituiremos tudo que Sato... esse era o nome do piloto... fez no último mês, e recuaremos a partir daí.

Gravações telefônicas, para onde foi, quem viu, amigos e associados, diário pessoal, tudo que possamos conseguir. A ideia é reconstituir o homem completamente e determinar se fez parte de qualquer tipo possível de conspiração. Isso demandará tempo. É um processo exaustivo.

— Qual é o melhor palpite até agora? — perguntou Jack.

— Um homem agindo só — repetiu O’Day, mais positivamente desta vez.

— É cedo demais para qualquer tipo de conclusão — interveio Andréa Price.

O’Day virou-se para ela.

— Isso não é uma conclusão. O Sr. Ryan perguntou qual era o melhor palpite. Trabalho com investigações há um bom tempo. Esta situação tem todas as características de um impulso criminoso elaborado. O método do assassinato do copiloto, por exemplo. Ele nem moveu o corpo para fora da cabine. Segundo as fitas, ele pediu desculpas ao cara imediatamente depois de esfaqueá-lo.

— Impulso criminoso elaborado — objetou Andréa.

— Tripulantes de avião são pessoas altamente organizadas — replicou O’Day. — Para eles, coisas que seriam altamente complexas para um leigo são simples como puxar um zíper. Infelizmente, estamos lidando com um indivíduo extremamente capaz. Em todo caso, isso é tudo que temos no momento.

— O que você precisaria descobrir para concluir que foi conspiração? — indagou Jack.

— Senhor, as conspirações criminosas bem-sucedidas são difíceis de ser levadas a cabo, mesmo nas circunstâncias mais apropriadas. — Price resmungou novamente, mas o inspetor O’Day prosseguiu: — O problema é a natureza humana. Os mais normais de nós gostam de se gabar; gostamos de compartilhar segredos para mostrar o quanto somos brilhantes. A maioria dos criminosos acaba dando com a língua nos dentes. Certo, num caso como este não estamos falando sobre um simples gatuno, mas o princípio ainda assim se aplica.

 

Qualquer tipo de conspiração demanda tempo e muita conversa; como resultado, informações vazam. Além disso, há também o problema da seleção de um... digamos, na falta de termo melhor, um atirador . Não havia tempo para nada disso. A sessão conjunta foi marcada muito em cima da hora para que possíveis conspiradores tivessem se encontrado e travado debate. A natureza do assassinato do copiloto é muito sugestiva de um método improvisado. Uma faca é uma arma bem menos confiável que um revólver, e uma faca de churrasco não é uma boa arma; é muito fácil de entortar ou quebrar numa costela.

— Com quantos casos de assassinato você já lidou? — indagou Price.

— O bastante. Já colaborei em vários casos da polícia local. De qualquer modo, para Sato ter sido o atirador numa conspiração, ele deveria ter se encontrado com pessoas. Podemos descobrir o que ele fez em seu tempo livre, e procederemos a essa investigação em conjunto com os japoneses. Mas até aqui não temos nada que aponte nessa direção. Muito pelo contrário. Todas as circunstâncias indicam alguém que percebeu uma oportunidade única e agiu por impulso.

— E se não foi o piloto...

— Srta. Price, a gravação nas fitas da cabine de comando começam antes do avião decolar de Vancouver. Tiramos a impressão vocal de todas as vozes. A fita é digital e sua qualidade excelente. O mesmo homem que decolou de Narita conduziu o avião até a colisão com o Capitólio. Agora, se o piloto era um impostor, como foi que o copiloto não notou? Eles trabalhavam em equipe.

Seguindo esse raciocínio, se o piloto e o copiloto eram cúmplices, ambos faziam parte da conspiração desde o começo. Então, por que o copiloto foi assassinado antes da decolagem de Vancouver? Os canadenses estão nos ajudando, entrevistando os funcionários do aeroporto, e todos garantem que os tripulantes que subiram no avião eram autênticos. O processo de identificação por DNA não deixará nenhuma dúvida a esse respeito.

— O senhor é muito persuasivo, inspetor — observou Ryan.

— Senhor, esta investigação ainda tem muito chão pela frente. Afinal, há muitos fatos a ser checados. Mas o xis da questão é muito simples. É extremamente difícil fraudar uma cena de crime. Há muita coisa que nós, investigadores, podemos fazer. E teoricamente possível arranjar os fatos de modo a enganar os investigadores? — perguntou retoricamente O’Day. — Sim, talvez seja, mas isso requereria meses de preparação, e eles não dispunham desse tempo. E um fato é inquestionável: a decisão de convocar a sessão conjunta foi tomada enquanto o avião estava sobrevoando o meio do Pacífico.

Por mais que quisesse, Price não podia refutar esse argumento. Ela fizera sua própria investigação ligeira sobre Patrick O’Day. Anos atrás, Emil Jacobs reinstituiu o posto de inspetor itinerante, e reuniu pessoas que preferiam investigação a serviço burocrático. O’Day era um agente para quem gerir uma divisão de campo tinha pouco pelo. Fazia parte de uma pequena equipe de investigadores experientes que trabalhavam fora da alçada do gabinete do diretor, um setor oficioso que entrava em campo para lidar com casos delicados. Era um bom tira que odiava papelada, e Price precisava admitir que ele sabia como dirigir uma investigação e, melhor ainda, que era uma pessoa fora da cadeia de comando que não procuraria aparecer para obter uma promoção. O inspetor chegara à Casa Branca dirigindo uma pick-up com tração nas quatro rodas — usava botas de cowboy — e provavelmente queria publicidade tanto quanto pegar malária. Assim, o diretor-assistente Tony Caruso, no comando da investigação, estava respondendo ao Departamento de Justiça, mas Patrick O’Day estava se reportando diretamente a Murray — que, por sua vez, emprestara O’Day ao presidente como favor pessoal. Price considerara O’Day um investigador arguto. Bill Shaw, afinal de contas, usara-o como seu solucionador de problemas. E a lealdade de Murray seria para com a instituição do FBI. Um homem poderia ter antecedentes piores, admitiu Price para si mesma. O’Day era uma pessoa simples, que tinha como ganha-pão investigar crimes, e embora parecesse tomar conclusões apressadas, este cowboy transplantado estava fazendo seu trabalho direitinho.

Era preciso observar os veteranos. Eles eram muito bons em ocultar sua sagacidade. Mas O’Day jamais seria um bom profissional da segurança presidencial, consolou-se Price.

 

— Gostou da viagem? — Mary Pat Foley estava muito adiantada ou muito atrasada em relação ao fuso horário, observou Clark. Ocorreu-lhe novamente que, de todos os figurões do governo, o presidente Ryan provavelmente fora o que dormira mais. A pressa era uma inimiga terrível das situações de crise. As pessoas simplesmente não trabalham bem quando não podem descansar por um período de tempo adequado. Ele aprendera isso da forma mais difícil nas operações de campo. Porém, coloque uma pessoa num posto elevado e ela imediatamente esquece disso — questões mundanas como necessidades do corpo simplesmente perdem-se na neblina. Um mês depois essas pessoas se perguntavam por que estavam errando tanto. E isso costumava ser depois que algum pobre idiota morria em ação.

— MP, quando foi a última vez que você dormiu?

Não havia muita gente que pudesse falar com ela daquele jeito, mas John já fora seu oficial de treinamento. Um sorriso caloroso.

— John, você não é judeu. E definitivamente não é a minha mãe — Clark olhou em torno.

— Onde está Ed?

— Voltando para o Golfo. Uma conferência com os sauditas — explicou.

Embora a Sra. Foley tecnicamente ocupasse cargo superior ao do Sr. Foley, a cultura saudita não estava preparada para lidar com uma mulher com tanta autoridade. Em todo caso, Ed provavelmente saía-se melhor em conferências.

— Alguma coisa que eu precise saber?

Ela balançou a cabeça.

— Apenas rotina. Domingo, é melhor ir direto ao assunto.

— Você está jogando duro esta manhã — observou Clark antes que seu parceiro pudesse falar.

Chavez simplesmente sorriu. O país podia estar de pernas para o ar, mas algumas coisas eram mais importantes.

— Poderia ser pior, Sr. Clark — disse Chavez. — Não sou advogado, sou?

— Começou a baixaria — resmungou John. Mas era hora de parar com rodeios.

— Como Jack está se saindo?

— Tenho hora marcada para vê-lo depois do almoço, mas não ficaria surpresa se eles cancelassem — respondeu Foley. — O pobre coitado deve estar enterrado vivo.

— É verdade o que li nos jornais sobre a forma como ele se meteu nessa?

— É sim. Isso significa que temos como presidente uma Garota Kelly — disse, como uma piada interna multifacetada, a vice-diretora (operações). — Teremos de procedera uma avaliação de ameaça. Quero que vocês dois façam isso.

— Por que nós? — perguntou Chavez.

— Porque estou cansada de mandar o diretório de informações fazer tudo.

Vou lhes dizer uma coisa: temos agora um presidente que entende o que fazemos aqui. Teremos de azeitar a Operações até um ponto em que eu possa pegar um telefone, fazer uma pergunta e obter uma resposta. Entenderam?

— Plano Azul? — perguntou Clark e Mary Pat assentiu.

Azul, como são chamados os policiais, fora a última função de Clark antes de deixar as instalações de treinamento da CIA, conhecida como Fazenda, perto do depósito de armas nucleares perto de Yorktown, Virgínia. Clark propusera à agência que, cm vez de contratar intelectuais saídos das universidades — pelo menos eles não fumavam mais cachimbo —, fossem recrutados tiras com experiência nas ruas. Seu argumento fora de que os tiras sabiam como usar informantes, não precisavam ser ensinados a forma como as coisas funcionavam no submundo, e sabiam sobreviver em áreas perigosas. A proposta fora arquivada por dois diretores sucessivos, mas Mary Pat sabia a respeito desde o começo, e aprovava o conceito.

— Você consegue vender o projeto? — perguntou Clark.

— John, você vai me ajudar a vendê-lo. Veja só como o Domingo se saiu bem.

— Está dizendo que sou bom de ação? — perguntou Chavez.

— Bem, Ding, só a filha do Clark pode dizer isso — brincou a Sra. Foley. — Ryan provavelmente concordará. De qualquer modo, por enquanto quero que vocês dois fizeram o relatório sobre a operação SÂNDALO.

— E quanto à nossa cobertura? — perguntou Clark. Ele não precisava explicar o que estava querendo dizer. Mary Pat jamais sujara as mãos no campo — ela era da inteligência, não do ramo paramilitar do Diretório de Operações —, mas ela o compreendia bem.

— John, vocês agiram sob ordens presidenciais. Tudo está devidamente registrado, Ninguém vai tirar conclusões pessoais sobre qualquer coisa que tenham feito, especialmente em relação ao salvamento de Koga. Vocês dois estão na lista de comendas por causa disso. O presidente Durling queria ofertar-lhes as medalhas pessoalmente em Camp David. Suponho que Jack também desejará fazer isso.

Maravilha, pensou Chavez por trás de olhos imóveis. Contudo, por mais agradável que fosse esse pensamento, ele pensara em outro problema durante o percurso de três horas desde Yorktown.

— Quando será iniciada a análise de ameaça?

— Nossa parte começa amanhã. Por quê? — perguntou MP.

— Madame, acho que estaremos ocupados.

— Espero que você esteja enganado — replicou MP

 

Tenho duas cirurgias marcadas para hoje — disse Cathy, examinando o bufê do desjejum.

Como não sabiam do que os Ryan gostavam de comer pela manhã, os serviçais tinham preparado um pouco — na verdade, muito — de cada coisa. Sally e o pequeno Jack adoraram; e gostaram mais ainda do fato de as escolas estarem fechadas. Katie, uma recém-formada em comida de verdade, segurava um pedaço de bacon enquanto contemplava uma torrada com manteiga. Para as crianças, o futuro imediato era tudo que importava. Sally, agora com 15 anos (rumando para os trinta, lamentava ocasionalmente o pai), era, dos três, quem melhor compreendia as consequências da situação, mas agora estava preocupada apenas em como aquilo afetaria sua vida social. Para todos eles, papai ainda era papai, qualquer que fosse seu emprego no momento. Jack sabia que acabariam descobrindo que não era bem assim, mas cada coisa em seu tempo.

— Ainda não combinamos nada a esse respeito — replicou Jack, selecionando ovos mexidos e bacon para seu prato. Hoje ele precisaria de toda energia que pudesse reunir.

— Jack, o acordo era de que eu ainda poderia fazer meu trabalho, lembra?

— Sra. Ryan? — Era Andréa Price, ainda pairando por perto como um anjo da guarda com uma pistola automática. — Ainda estamos estabelecendo as questões de segurança...

— Meus pacientes precisam de mim. Jack, Bernie Katz e Hal Marsh podem substituir-me em muitas coisas, mas um dos pacientes de hoje precisa de mim.

Além disso, preciso fazer os preparativos para algumas aulas. — Ela olhou as horas. — Daqui a quatro horas.

Ryan sabia que tudo aquilo era verdade. A Dra. Caroline Ryan era uma grande autoridade em operação de retinas por laser. Pessoas vinham do mundo inteiro para vê-la trabalhar.

— Mas as faculdades estão... — começou Price, calando-se ao lembrar que ela evidentemente sabia disso.

— As aulas às quais me refiro serão em salas de cirurgia. Desculpe. Não podemos mandar os pacientes para casa. Sei que estou complicando as coisas para todo mundo, mas também tenho pessoas que dependem de mim, e preciso cumprir minha obrigação para com elas.

Cathy olhou para os rostos adultos na cozinha, aguardando uma decisão que a favorecesse. Os serviçais da cozinha — todos marinheiros — entravam e saíam como estátuas móveis, fingindo não estar ouvindo nada. Os agentes do Serviço Secreto adotaram um tipo diferente de expressão vazia, que transparecia mais desconforto.

A primeira-dama devia ser uma adjunta sem salário ao marido. Essa era uma regra que precisava ser mudada em algum ponto. Afinal de contas, cedo ou tarde haveria uma presidenta, e isso iria realmente virar toda a situação, fato bem sabido mas, até agora, propositalmente ignorado na história americana. A mulher de político usual era uma fêmea que aparecia ao lado do marido com um sorriso encantador e algumas palavras cuidadosamente escolhidas, que suportava o tédio da campanha e os apertos de mão surpreendentemente brutais — decerto Cathy Ryan não submeteria suas mãos de cirurgia a isso, percebeu subitamente Price. Mas esta primeira-dama tinha um trabalho de verdade. Mais do que isso, era uma médica que em breve receberia um Prêmio Memorial Lasker por Serviço Público (a cerimônia fora adiada). Se aprendera alguma coisa sobre Cathy Ryan, Price sabia que ela era dedicada à profissão, não apenas ao esposo. Por mais admirável que isso fosse, Cathy seria uma tremenda dor de cabeça para o Serviço. Pior ainda, o agente principal designado para a Dra. Ryan era Roy Altman, um ex-paraquedista alto e forte, a quem ela ainda não conhecera. Essa decisão fora tomada devido à aparência e ao tamanho de Roy. Nunca era demais ter um guarda-costas óbvio bem na cola do protegido, e como a primeira-dama pareceria um alvo fácil, uma das funções de Roy seria simplesmente fazer os arruaceiros casuais pensarem duas vezes antes de arrumarem problemas. Os outros membros da segurança presidencial da primeira-dama seriam virtualmente invisíveis. Uma das outras funções de Altman era também usar seu corpanzil para bloquear balas, algo para o qual os agentes eram treinados, mas com que não sonhavam fazer.

 

Cada um dos filhos dos Ryan também teria de ser protegido. O guardião de Katie fora o mais difícil de ser escolhido — porque os agentes brigaram pelo trabalho. O vencedor da disputa foi o membro mais velho da equipe, um avô chamado Don Russell. O pequeno Jack receberia um agente jovem que era fanático por esportes, enquanto Sally Ryan seria protegida por uma agente ligeiramente acima dos trinta anos, solteira, bonita e experiente com rapazes e compras. A ideia era deixar os membros da Primeira Família confortáveis com a necessidade de ser seguidos para toda parte, exceto aos banheiros, por pessoas com armas carregadas e walkie-talkies. Obviamente, era quase impossível conseguir isso. O presidente Ryan tinha os antecedentes para aceitar a necessidade desse tipo de proteção. Sua família teria de aprender a suportá-la.

— Dra. Ryan, quando a senhora terá de sair?

— Daqui a cerca de quarenta minutos. Depende do tráfego.

— Não mais — corrigiu Price.

O dia seria muito ruim. O plano original havia sido usar o dia anterior para instruir a família do vice-presidente em todas as coisas que precisavam ser feitas, mas esse plano fora mandado para o inferno, juntamente com muitas outras coisas. Altman estava em outra sala, debruçado sobre mapas. Havia três rotas por terra viáveis até Baltimore: Interstate-95, a Baltimore-Washington Parkway, e a US Route 1. As três ficavam entupidas todas as manhãs com um tráfego que um comboio do Serviço Secreto precisaria romper. Pior ainda, para qualquer assassino potencial, as rotas eram previsíveis demais, estreitando à medida que eles se aproximavam de Baltimore. O Johns Hopkins Hospital contava com um heliporto no terraço do prédio pediátrico, mas ninguém ainda considerara as implicações políticas de levar a primeira-dama ao trabalho todos os dias num Marine Corps VH-60. Talvez essa fosse uma opção viável no momento, decidiu Price. Deixou a sala para conferenciar com Altman, e repentinamente a família Ryan estava a sós, tomando café da manhã como qualquer família normal.

— Deus, Ryan — disse Cathy com um suspiro.

— Eu sei.

Em vez de falarem, desfrutaram o silêncio durante um minuto inteiro, ambos com 08 olhos concentrados em suas refeições, espetando os alimentos com os garfos em vez de comê-los.

— As crianças precisam de roupas para o funeral — disse Cathy finalmente.

— Pode dizer à Andréa?

— Tudo bem.

— Sabe quando será?

— Descobrirei hoje. Ainda poderei trabalhar, certo?

— Agora que Price saíra, ela podia evidenciar a sua preocupação. Jack levantou os olhos do prato.

— Sim. Farei de tudo para manter a nossa rotina o mais normal possível. Sei o quanto seu trabalho é importante para você. Aliás, não tive muita chance de lhe dizer o que acho do prêmio que acaba de ganhar. — Ele sorriu. — Estou tremendamente orgulhoso de você, querida.

Price retornou.

— Sra. ... Dra. Ryan? — disse Price. As questões mais básicas ainda não tinham sido discutidas. Ela deveria ser tratada como Dra. Ryan ou como Sra. Ryan?

— Facilite as coisas para todos nós, certo? Chame-me Cathy.

Price não podia fazer isso, mas não discutiria por enquanto.

— Até tomarmos outras providências, nós a levaremos num helicóptero da Marinha.

— Isso não sai muito caro? — perguntou Cathy.

— Sim, mas por enquanto essa será a forma mais fácil. Mais uma coisa... — Um homem muito alto entrou na sala. — Este é Roy Altman. Ele será seu agente principal por algum tempo.

— Oh... — foi tudo que Cathy conseguiu dizer ao ver Roy, com seu l,89m e 99 quilos. Tinha cabelos louros escassos, pele pálida e uma expressão servil, como se ele se sentisse embaraçado com seu tamanho. Como todos os agentes do Serviço Secreto, seu terno era ligeiramente largo para ocultar uma automática e, no seu caso, esconder uma metralhadora teria sido fácil. Altman aproximou-se para apertar a mão de Cathy, o que fez com delicadeza considerável.

— Madame, a senhora sabe qual é o meu trabalho. Tentarei ficar fora do caminho o máximo que puder.

Mais duas pessoas entraram na sala. Altman apresentou-as como o restante da segurança de Cathy para aquele dia, todos temporários. Eles teriam de se afinar com sua protegida, e coisas assim não eram fáceis de prever.

Cathy ficou tentada a perguntar se aquilo era necessário, mas acabou ficando calada. Por outro lado, como iria desfilar com essa gangue pelo Prédio Maumenee? Ela trocou um olhar com o marido e recordou que não estariam nessa situação infeliz se ela não tivesse concordado com Jack em aceitar o cargo de vice-presidente, que durara... quanto tempo? Cinco minutos? Talvez nem tanto. Então ouviu o rugido do helicóptero Silkorsky Black Hawk, chegando da Casa Branca. A aeronave criou uma pequena tempestade de neve ao aterrissar na pista onde já fora um pequeno observatório. Seu marido olhou o relógio e percebeu que os fuzileiros estavam agindo com extrema rapidez.

Quanto tempo levaria para que toda essa atenção enlouquecesse a ele e a sua família?

 

— Estas são imagens ao vivo do observatório Naval na Massachusetts Avenue — disse o repórter da NBC, repetindo palavras ditadas pelo diretor. — Parece um dos helicópteros da Marinha. Suponho que o presidente está indo para algum lugar. — As lentes zoom da câmera aproximaram a imagem enquanto a nuvem de neve assentava um pouco.

— Um American Black Hawk, muito modificado — disse o agente do serviço nacional de informações. — Estão vendo? Aquele é um sistema Buraco Negro de supressão infravermelha. Serve para proteger o helicóptero de mísseis terra-ar programados para rastrear o calor da turbina.

— Eficaz?

— Muito, mas não contra armas guiadas por laser — acrescentou. — Também não é útil contra metralhadoras. — Assim que as hélices pararam de girar, um esquadrão de fuzileiros cercou a aeronave. — Preciso de um mapa da área. De onde aquela câmera está, uma bazuca seria eficaz. O mesmo vale também para o terreno da Casa Branca, claro.

E qualquer um, eles sabiam, podia usar uma bazuca, quanto mais uma pistola guiada por laser, criada pelos ingleses e depois copiada pelo resto do mundo. De certo modo, haviam sido os americanos que mostraram o caminho.

Afinal, era deles o aforismo: se você pode ver alguma coisa, pode atingi-la. Se pode atingi-la, pode matá-la. E todos dentro dessa coisa, é claro. Começou a tecer um raciocínio. Verificou seu relógio, que tinha um botão de cronometragem. Pressionou-o com o dedo e esperou.

O diretor de TV, a nove quilômetros e meio de distância, não tinha nada melhor a fazer senão manter fechada a lente zoom da câmera. Nesse momento, um veículo se aproximou do helicóptero e quatro pessoas saltaram.

Caminharam direto até a aeronave, cuja tripulação manteve a porta aberta.

— É a Sra. Ryan — disse o comentarista. — Ela é cirurgiã no Johns Hopkins Hospital, em Baltimore.

— Acha que irá para o trabalho de helicóptero? — indagou o repórter.

— Saberemos num minuto.

Foi mais ou menos o tempo que se passou. O agente zerou a função cronômetro de seu relógio no momento em que as portas se fecharam. As hélices começaram a girar alguns segundos depois e o helicóptero decolou, nariz apontado para baixo, como todos faziam, ganhando altitude enquanto seguia para o norte. Ele checou o relógio para ver o tempo decorrido entre o momento em que as portas tinham sido fechadas e a decolagem. A aeronave possuía uma tripulação militar, e eles se orgulhavam em fazer tudo da mesma forma todas as vezes. Tempo mais que suficiente para um projétil de bazuca viajar três vezes a distância necessária, julgou o agente.

 

Era a primeira vez que Cathy andava de helicóptero. Os militares fizeram Cathy sentar-se na frente, entre os dois pilotos. Não lhe disseram o motivo. A fuselagem do Black Hawk era desenhada para absorver 14 gravidades inteiras numa queda, e esse assento em estatisticamente o mais seguro do pássaro. As quatro hélices proporcionavam um voo suave, e Cathy só poderia se queixar do frio. Ninguém ainda projetara uma aeronave militar com um sistema de aquecimento funcional. Mas o passeio teria sido divertido, não fosse o constrangimento e o fato de que os agentes do Serviço Secreto passaram o tempo inteiro olhando pelas janelas, obviamente em busca de algum tipo de perigo. Começava a ficar claro que essa gente podia acabar com o prazer de qualquer coisa.

 

— Acho que ela está sendo levada para o trabalho — decidiu o repórter.

A câmera acompanhara o VH-60 até o helicóptero desaparecer atrás das árvores. Foi um momento raro de leveza. Todas as redes estavam fazendo o mesmo que tinham feito depois do assassinato de John Kennedy. Todos os programas regulares estavam fora do ar, enquanto cada hora do funcionamento das emissoras — hoje 24, muito mais do que em 1963 — era dedicado à cobertura do desastre e suas consequências. O que isso realmente significava era festa para os canais a cabo, como haviam provado vários institutos de pesquisa de audiência, mas as redes tinham de ser responsáveis, e fazer este tipo de cobertura era jornalismo responsável.

— Bem, ela é médica, não é? É fácil esquecer que, apesar do desastre que tomou nosso governo, ainda há gente trabalhando de verdade lá fora. Bebês estão nascendo. A vida continua — observou com otimismo o comentarista.

— E o país também — emendou o repórter, olhando direto para a câmera na transição para o intervalo comercial. Ele não ouviu o que uma voz disse, muito longe dali: — Por enquanto.

 

As crianças foram conduzidas para outros lugares por seus guarda-costas, e o trabalho do dia começou de fato. Arnie van Damm estava com uma aparência lastimável. Jack decidiu que ele estava a ponto de explodir; uma combinação de trabalho insano e sentimento de perda estava prestes a destruir o homem. Tildo bem que o presidente precisava ser poupado o máximo possível, mas não ao custo de arruinar aqueles de quem ele mais dependia.

— Fale o que tem a dizer, Arnie. Depois desapareça um pouco e vá descansar.

— Você sabe que não posso fazer isso?

— Andréa?

— Sim, presidente?

— Depois que terminarmos aqui, mande alguém levar Arnie para casa. Não permita que ele volte para a Casa Branca até a tarde. — Ryan voltou a olhar para o amigo. — Arnie, não vou deixar que se mate. Preciso demais de você.

O chefe de gabinete estava cansado demais para demonstrar qualquer gratidão. Ele estendeu um documento encadernado.

— Estes são os planos para o funeral. Será depois de amanhã.

Ryan folheou o documento, seu ânimo esvaziado tão pouco depois de ter exercido mais um pouquinho de sua autoridade presidencial.

A pessoa que fizera o plano fora inteligente e sensível. Talvez em alguma parte houvesse um plano de contingência para esse tipo de coisa, dúvida que Ryan jamais esclareceria, mas qualquer que fosse a verdade, alguém organizara tudo com afinco. Os caixões de Roger e Anne Durling ficariam expostos na Casa Branca, porque a capela do Capitólio não estava mais disponível. Durante 24 horas, o povo poderia atravessar a Casa Branca, entrando através do portão frontal e saindo pela Ala Leste. A tristeza do evento seria anuviada pelos retratos dos presidentes. Na manhã seguinte, os Durling seriam conduzidos num carro fúnebre até a Catedral Nacional, juntamente com três membros do Congresso — um judeu, um protestante, e um católico — para a missa ecumênica.

Ryan faria dois discursos principais. Os textos de ambos estavam no fim do documento encadernado.

 

— Para que é isso?

Cathy estava usando um capacete de segurança com conexão total com o intercomunicador do helicóptero. Ela apontou para outra aeronave a 45 metros atrás deles.

— Sempre voamos com uma aeronave de reserva, senhora. Para o caso de alguma coisa dar defeito e precisarmos pousar — explicou o piloto. — Não queremos atrasá-la desnecessariamente.

Ele não disse que no helicóptero de reserva havia mais agentes do Serviço Secreto com armas ainda mais pesadas.

— Isso acontece com frequência, coronel?

— Nunca aconteceu comigo, senhora.

Ele também não disse que um dos Black Hawks da Marinha caíra no rio Potomac em 1993, sem deixar sobreviventes. Bem, isso acontecera havia muito tempo. Os olhos do piloto estavam averiguando o ar constantemente. Da memória institucional da VMH-I constava o que parecera uma tentativa de colisão contra a casa de Ronald Reagan. Na Verdade, aquilo fora um erro da parte de um piloto particular. Depois de ser interrogado pelo Serviço Secreto, o infeliz provavelmente desistiu de voar. O coronel Hank Goodman sabia, por longa experiência, que os agentes do Serviço Secreto eram os tipos mais amargos a serviço do governo. O ar estava limpo e frio, mas bastante calmo.

Estava controlando o manche com as pontas dos dedos enquanto seguiam a I-95

rumo ao sudeste. Já era possível ver Baltimore. O coronel conhecia bem o caminho até o Johns Hoppins porque trabalhara anteriormente no Aeroporto Naval do rio Patuxent, cujas naves ocasionalmente ajudavam vítimas de acidentes de voo. O Hopkins, ele lembrou, atendia a casos de traumas pediátricos.

Um pensamento sombrio atingiu Cathy quando sobrevoaram o prédio do Departamento de Choques e Traumas da Universidade de Maryland. Esta, afinal, não era a primeira vez que ela voava num helicóptero. Só que da outra vez ela o fizera inconsciente haviam tentando matar a ela e a Sally, e todas as pessoas ao redor das duas também haviam corrido risco. Por quê? Por causa de quem seu marido era.

— Sr. Altman? — ouviu Cathy pelo intercomunicador.

— Sim, coronel?

— Você os avisou, certo?

— Sim, eles sabem que estamos chegando, coronel — assegurou-lhe Altman.

— Não é isso que quero dizer. Eles checaram o telhado para um 60, certo? — O que o senhor quer dizer?

— Estou querendo dizer que este é mais pesado que aquele usado pelas tropas estaduais. O heliporto tem capacidade para nos receber? — O silêncio proporcionou a resposta. O coronel Goodman olhou para o copiloto com uma expressão tensa. — Certo, podemos lidar com isso desta vez.

— Livre à esquerda.

— Livre à direita — replicou Goodman. Ele circulou uma vez, checando a biruta no teto do prédio abaixo. Soprava apenas um pouco de vento do noroeste.

A descida foi delicada. Tocou a pista com suavidade, mantendo as hélices em funcionamento para impedir que o peso total da aeronave forçasse o teto de concreto reforçado. Isso provavelmente não era necessário, claro. Os engenheiros civis sempre fazem os prédios mais resistentes do que é preciso.

Mas Goodman não chegara ao posto de coronel correndo riscos desnecessários.

O chefe de sua tripulação levantou-se para abrira porta. Os agentes do Serviço Secreto saíram primeiro, averiguando o prédio enquanto Goodman continuava segurando o manche, pronto para decolar a qualquer sinal de perigo. Quando os agentes ajudaram a Sra. Ryan a descer, Goodman decidiu que podia prosseguir com as suas tarefas.

— Quando voltarmos, ligue pessoalmente para cá e peça a resistência do teto. E peça as plantas, para nossos arquivos.

— Sim, senhor. É que foi tudo rápido demais, senhor.

— Como se eu não soubesse. — Ligou o rádio. — Marine Três para Marine Dois.

 

— Dois — respondeu prontamente a aeronave de reserva.

— Estamos indo. — Goodman puxou o manche e ganhou altura. — Ela me pareceu simpática.

— Ficou um pouco nervosa um pouco antes de pousarmos — comentou o chefe de tripulação.

— Eu também — disse Goodman. — Pensando melhor, eu telefonarei para cá quando voltarmos.

 

Mas o serviço secreto havia realmente telefonado antes para o Dr. Katz, que estava esperando no interior do prédio, juntamente com três dos seguranças do Hopkins. Cumprimentos foram trocados. Crachás foram entregues, integrando os três agentes ao quadro de funcionários da faculdade de medicina.

A professora-adjunta Caroline M. Ryan começou o seu dia de trabalho.

— Como a Sra. Hart está passando?

— Eu a vi há vinte minutos, Cathy. Ela está muito satisfeita por saber que a primeira-dama irá operá-la.

O professor Katz ficou surpreso com a reação da professora Ryan.


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Avaliação

— Era muito difícil congestionar a base da Força Aérea de Andrews, cujas pistas de concreto pareciam vastas como o estado de Nebraska. Porém, a força de segurança da base agora estava empenhada no patrulhamento de uma coleção de aeronaves tão densa e diversificada que o local mais parecia o depósito de aviões fora de uso que havia no Arizona. Como se fosse pouco, cada pássaro tinha seu próprio pelotão de seguranças, os quais eram obrigados a interagir com os colegas americanos. Como todo segurança é treinado para não confiar em ninguém, reinava uma atmosfera de desconfiança absoluta. Dois Concordes — um inglês e um francês — disputavam na categoria charme. Os outros eram em sua maioria aeronaves imensas, a maioria ostentando as cores de seu país de origem. As companhias Sabena, KLM e Lufthansa lideravam o grupo da OTAN. A SAS era a empresa de um entre cada três países escandinavos, cada qual com seu próprio 747. Os chefes de Estado gostavam de viajar com estilo, e nenhuma das aeronaves, grandes ou pequenas, alcançava um terço de sua lotação. Receber todas as comitivas estava sendo uma provação para a habilidade e a paciência dos departamentos de cerimonial da Casa Branca e do Estado, e, entre as embaixadas, já corria a notícia de que o presidente Ryan simplesmente não tinha tempo de conceder a todos os representantes a atenção merecida. Mas a guarda de honra da Força Aérea foi incumbida de receber a todos, e assim seus oficiais entravam e saíam de formação mais de uma vez por hora enquanto o tapete vermelho permanecia num só lugar para dar passagem a um líder mundial atrás do outro — ocasionalmente tão rápido quanto o necessário para uma aeronave ser conduzida até seu local de estacionamento e outra pudesse taxiar até sua vaga.

Discursos eram proferidos com sobriedade e rapidez pura o batalhão de câmeras e em seguida os representantes eram conduzidos rapidamente até as fileiras de carros à espera.

Levá-los até Washington foi outra dor de cabeça. Cada carro do Serviço de Proteção Diplomática foi utilizado, formando quatro grupos de escoltas que corriam da cidade para o aeroporto e vice-versa, conduzindo as limusines das embaixadas e fechando a Suitland Parkway e a Interstate 395. O mais difícil, talvez, fosse fazer com que cada presidente, primeiro-ministro e princesas serenas fossem deixados nas embaixadas certas, a maioria delas, felizmente, ficava na Massachusetts Avenue. A operação acabou 10 revelando um triunfo de organização.

As próprias embaixadas encarregaram-se de promover recepções discretas.

Estando todos num só lugar, os estadistas, obviamente, precisavam encontrar-se para fazer negócios ou simplesmente jogar conversa fora. O embaixador inglês, o mais velho representante presente — tantos dos países quanto da OTAN —, ofereceria naquela noite um jantar informal para 22 chefes de Estado.

— Certo, desta vez o aparelho deles está pousando — comentou o comandante da Força Aérea, enquanto a base começava a ficar escura.

Ironicamente, a equipe da torre da Base Aérea de Andrews era a mesma que trabalhara Naquela Noite, como os funcionários estavam chamando a ocasião do acidente. Eles observaram o 747 da JAL descer suavemente na pista Zero-Um-Direita. A tripulação provavelmente notou os restos de uma aeronave irmã armazenados num hangar imenso no lado leste da base — nesse momento um caminhão estava chegando com os destroços de uma turbina de jato, recém extraída das ruínas do Capitólio —, mas o avião completou o percurso, seguindo instruções de virar à esquerda e taxiar por trás de um veículo até o local adequado para desembarcar os passageiros. O piloto notou as câmeras e os repórteres que estavam deixando um prédio relativamente aquecido para correr até seus equipamentos e cobrir o último desembarque, e também o mais interessante. Pensou em dizer alguma coisa ao copiloto, mas mudou de ideia. O comandante Torajuro Sato fora, bem, se não um amigo íntimo, ao menos um colega cordial; seria doloroso lidar com a desonra que ele causara à sua pátria, linha aérea e profissão. A situação apenas seria pior se Sato houvesse transportado passageiros, pois protegê-los era a regra número um de suas vidas.

Embora a cultura japonesa respeitasse o suicídio com um propósito ou como um exercício honroso — e recompensasse com honras os soldados com baixas mais dramáticas —, esse caso chocara a nação mais do que qualquer outro nas últimas décadas. O piloto sempre envergara seu uniforme com orgulho. Agora ele o trocaria por trajes civis sempre que tivesse oportunidade, em seu país ou no exterior. O piloto balançou a cabeça para afugentar esse pensamento e parou a aeronave de modo que a porta do Boeing ficasse nivelada com a antiquada escada móvel. Nesse momento, piloto e copiloto viraram-se para trocar um comentário silencioso sobre a ironia e a vergonha de terem feito seu serviço com tanta perícia. E naquela noite, em vez de dormirem, como de hábito, em quartos no Washington Hotel, provavelmente seriam mantidos em acomodações para oficiais na base, e talvez sob a vigilância atenta de alguém.

Alguém com uma arma.

A porta do avião foi aberta gentilmente pela chefe das aeromoças. Depois que teve seu terno abotoado e a gravata endireitada no colarinho por um adido afobado, o primeiro-ministro Mogataru Koga dirigiu-se à porta, onde ficou parado por um instante, banhado por uma brisa fria de fevereiro, antes de descer os degraus. A Banda da Força Aérea começou a tocar Pompa e circunstância.

 

Scott Adler, o secretário de Estado interino, estava à sua espera na pista. Os dois não se conheciam, mas ambos tinham sido instruídos um sobre o outro, Adler mais superficialmente. Afinal esta era sua quarta e mais importante recepção do dia. Koga parecia exatamente como nas fotos. Era um homem de aparência comum, de meia-idade, medindo cerca de l,64m, com o couro cabeludo completamente coberto por pelos negros. Seus olhos escuros estavam neutros — ou assim procuravam manter-se, percebeu Adler depois de examiná-lo atentamente. Havia tristeza neles. Isso não era surpresa, pensou o diplomata ao estender a mão.

— Seja bem-vindo, primeiro-ministro.

— Obrigado, Sr. Adler.

Os dois caminharam até o pódio. Adler pronunciou algumas palavras cálidas de boas-vindas — este discurso, redigido em Foggy Bottom, demandara uma hora de revisão, mas demorou apenas um minuto para ser lido para o mundo. Então, Koga aproximou-se do microfone.

— Em primeiro lugar, devo agradecer ao Sr. Adler, e ao seu país, por permitir minha presença no dia de hoje. Por mais surpreendente que seja esse gesto, compreendo que essa é uma atitude tradicional de seu país vasto e generoso. Venho hoje representar meu país numa missão triste, mas necessária.

Espero que ela ajude a sarar as feridas de nossas nações. Rogo para que seus cidadãos e os nossos possam ver esta tragédia como uma ponte rumo a um futuro pacífico.

Koga recuou um passo e Adler conduziu-o ao longo do tapete vermelho, enquanto a banda tocava Kimagayo, o breve hino japonês que fora escrito havia cem anos por um compositor inglês. No percurso até o carro à sua espera, o primeiro-ministro olhou para a guarda de honra e tentou ler os rostos jovens, procurando neles ódio ou rancor, mas encontrando apenas impassividade. Adler caminhava logo atrás dele. O sol estava baixando no horizonte e nuvens eram trazidas pelo vento nordeste. O pôr do sol seria curto.

— Como está se sentindo, senhor? — indagou o secretário de Estado.

— Bem, obrigado. Dormi durante o voo.

Inicialmente, Koga achou que a pergunta fora um simples gesto de cortesia, mas logo percebeu que não.

— Se o senhor quiser, podemos nos encontrar com o presidente Ryan no caminho até a sua embaixada. O presidente instruiu-me a dizer-lhe que sabe que o senhor provavelmente está cansado devido à viagem longa, e que não ficará ofendido se não quiser encontrá-lo agora.

Scott ficou surpreso: o primeiro-ministro não hesitou um segundo.

— Aceitarei com satisfação esta honra.

O secretário de Estado tirou um walkie-talkie portátil do bolso de seu terno.

— ÁGUIA para CABO DA ESPADA. Afirmativo. — Adler rira alguns dias atrás, 10 ficar sabendo de seu nome de código no Serviço Secreto. ÁGUIA era a tradução de seu sobrenome de judeu alemão.

— CABO DA ESPADA copia afirmativo — emitiu o walkie-talkie de frequência codificada.

— ÁGUIA desliga.

O cortejo acelerou, subindo a Suitland Parkway. Sob outras circunstâncias, um helicóptero teria acompanhado o comboio com uma câmera ao vivo, mas o espaço aéreo de Washington estava momentaneamente proibido. Até mesmo o National Airport estava fechado, e seus voos vinham sendo desviados para Dulles ou para o Baltimore-Washington International. O carro virou à direita e seguiu um quarteirão até a rampa para a I-295, que quase prontamente tornou-se a I-395, uma estrada mal conservada que atravessava o rio Anacosta até o centro de Washington. Quando a estrada convergiu na rodovia principal, o veículo dobrou bruscamente à direita. Outro carro idêntico tomou seu lugar enquanto o do primeiro-ministro entrou em formação com três Suburbans do Serviço Secreto numa manobra que levou meros cinco segundos. As ruas vazias facilitaram o resto da viagem. Numa questão de minutos, seu carro entrou na West Executive Drive.

— Estão chegando, senhor — disse Price, que acabara de ser notificada pelo guarda uniformizado na casamata.

Jack passou pela porta da frente no momento exato em que o carro parou, inseguro sobre o protocolo para um momento como aquele — mais uma coisa que ele teria de aprender sobre seu emprego. Quase abriu pessoalmente a porta, mas um recruta da Marinha conseguiu fazer isso primeiro e bateu continência como um robô.

— Sr. Presidente — saudou Koga ao sair do carro.

— Sr. Primeiro-Ministro. Por favor, acompanhe-me — disse Ryan, apontando a direção.

Koga nunca estivera antes na Casa Branca, e ocorreu-lhe que se tivesse estado lá três meses antes, para discutir os problemas comerciais que haviam redundado num conflito armado — mais outro fracasso vergonhoso. E então o comportamento de Ryan começou a transparecer. Koga lera certa vez que os americanos não davam extrema importância às cerimônias de recepção a um chefe de Estado — de qualquer modo, isso não seria possível ou apropriado neste caso. Mas Ryan fora recebê-lo sozinho e isso devia significar alguma coisa, disse a si mesmo o primeiro-ministro japonês enquanto caminhava até as escadas. Um minuto depois, ele e Ryan estavam a sós no Salão Oval, separados um do outro apenas por uma mesa baixa e uma bandeja de café.

— Obrigado por tudo isto — disse Koga com simplicidade.

— Precisávamos conversar — disse o presidente Ryan. — E em qualquer outro momento haveria pessoas nos vigiando e tentando ler nossos lábios.

Ele serviu café ao seu convidado e em seguida a si mesmo.

— Hai, a imprensa de Tóquio tem sido muito mais solícita nos últimos dias — disse Koga, começando a levar a xícara aos lábios, mas parou. — A quem devo agradecer por ter sido resgatado de Yamata?

Jack fitou-o.

— A decisão foi tomada aqui. Os dois oficiais estão disponíveis, caso o senhor queira encontrá-los novamente.

— Se for conveniente.

Koga bebeu de sua xícara. Teria preferido chá, mas Ryan estava se esforçando ao máximo para ser um bom anfitrião, e a qualidade do gesto deixou-o impressionado. — Obrigado por ter-me deixado vir, presidente Ryan. ., 1{

— Tentei conversar com Roger sobre o problema comercial, mas... não fui persuasivo o bastante. Depois fiquei preocupado com alguma coisa estar acontecendo com Goto, mas não agi suficientemente rápido. Foi tudo um grande acidente, mas suponho que a guerra geralmente é. Em todo caso, cabe a nós dois curarmos essa ferida. Quero que isso seja feito o mais rápido possível.

— Todos os conspiradores estão presos. Serão levados a julgamento por traição — prometeu Koga.

— Isso é assunto de vocês — replicou o presidente.

O que não era realmente verdade. O sistema jurídico japonês era curioso.

As cortes frequentemente violavam a constituição em favor de posturas culturais mais amplas que não constavam das leis. Ryan e a América esperavam que os julgamentos seguissem rigidamente as leis, sem essas variações. Koga sabia que uma reconciliação entre os listados Unidos e o Japão dependia do respeito aos valores de cada pátria. Da sua parte, Koga já providenciara para que os juízes selecionados para os diversos julgamentos compreendessem as regras do jogo.

— Nunca considerei possível que uma coisa como essa acontecesse, e então, Sato, esse louco... Meu país e meu povo estão envergonhados. Tenho muito a fazer, Sr. Ryan.

Jack assentiu.

— Somos dois. Mas conseguiremos. — Fez uma pausa. — As questões técnicas podem ser resolvidas entre os ministérios. Entre nós, quero apenas ter certeza de que compreendemos um ao outro. Confiarei em sua boa vontade.

— Obrigado, Sr. Presidente.

Koga pousou sua xícara para examinar o homem no sofá à sua frente. Era jovem para sua posição, embora não fosse o presidente mais jovem dos Estados Unidos. Esse recorde provavelmente caberia pela eternidade a Theodore Roosevelt. Na longa viagem desde Tóquio, lera a respeito de John Patrick Ryan. O homem matara com as próprias mãos mais de uma vez, fora ameaçado com sua própria morte e com as mortes de seus familiares, e fizera outras coisas sobre as quais os conselheiros japoneses de informação podiam apenas especular. Examinando seu rosto durante poucos segundos, tentou compreender como uma pessoa como ele podia ser um homem de paz, mas as pistas não estavam ali para ser vistas, é Koga imaginou se havia alguma coisa na personalidade americana que ele jamais compreendera completamente. Via inteligência e curiosidade, uma para medir e outra para sondar. Via fadiga e tristeza. Koga tinha certeza de que, pura aquele homem, os últimos dias tinham sido um inferno em sua forma mais pura. Km algum lugar neste prédio, provavelmente estavam os filhos de Roger e Anne Durling, que deviam ser um peso físico que esse homem teria de carregar. Ocorreu ao primeiro-ministro que Ryan, como a maioria dos ocidentais, não era muito apto a ocultar seus pensamentos profundos, mas devia haver outras coisas acontecendo por trás daqueles olhos azuis, coisas que não estavam sendo expostas. Elas não eram ameaçadoras, mas estavam lá. Ryan era realmente um samurai, como Koga concluíra em seu escritório alguns dias antes. Contudo, havia nele também uma camada adicional de complexidade. Koga preferiu deixar essas considerações de lado. Isso não era tão importante assim e havia uma coisa que ele tinha de pedir, uma decisão pessoal que tomara sobrevoando o Pacífico.

— Tenho um pedido, se o senhor não se opuser.

— E que pedido é esse, senhor?

 

— Sr. presidente, não sei se isso é sensato — objetou Price alguns minutos depois.

— Sensato ou não, vamos fazer. Providencie — ordenou Ryan.

— Sim, senhor — respondeu Andréa Price antes de sair da sala.

Koga observou a ação e aprendeu mais uma coisa. Ryan era um homem capaz de tomar decisões e dar ordens sem deixar transparecer o menor indício de histeria.

Os carros ainda estavam na Entrada Leste. Assim, foi uma simples questão de colocar os casacos e entrar neles. Um total de quatro Suburbans contornou o estacionamento e rumou para sul, e depois na direção do Capitólio. Desta vez, o comboio dispensou sirenes e luzes, procedendo quase de acordo com as leis de trânsito — mas não completamente. As ruas vazias facilitaram ao comboio atravessar sinais fechados, e logo os carros dobraram à esquerda na Capital Street, e então novamente à direita, na direção do prédio, agora bem menos iluminado. Os degraus tinham sido limpos, o que permitiu ao grupo galgá-los com facilidade depois que os carros foram estacionados e os agentes do Serviço Secreto assumiram suas posições. Ryan conduziu Koga até o alto da concha, agora vazia, que fora o plenário da Câmara.

Durante alguns instantes, o primeiro-ministro japonês permaneceu imóvel.

Subitamente, bateu palmas vigorosamente, para atrair a atenção dos espíritos que, segundo sua crença, ainda estavam lá. Em seguida curvou-se formalmente e fez suas preces. Ryan sentiu-se compelido a fazer o mesmo. Não havia câmeras de TV para registrar o momento — na verdade, ainda havia câmeras de algumas emissoras nas imediações, mas as transmissões noturnas haviam acabado e os instrumentos estavam abandonados enquanto os técnicos bebiam café em seus furgões, a cem metros dali. De qualquer modo, levaria apenas um ou dois minutos. Quando terminou, uma mão americana foi estendida, outra mão japonesa apertou-a e dois pares de olhos alcançaram um entendimento mútuo que ministros e negociadores jamais igualariam. Em meio aos ventos inclementes de fevereiro, a paz foi afinal firmada completamente entre os dois países. Parada a três metros dos dois homens, Andréa Price ficou satisfeita pelo fotógrafo da Casa Branca ter acompanhado o grupo, e as lágrimas que enxugou não foram causadas pelo vento. Então, Andréa conduziu os dois homens de volta até seus respectivos carros.

 

— Por que reagiram com tanto exagero? — perguntou a primeira-ministra, antes de beber seu conhaque.

— Bem, como você sabe, ainda não fui instruído completamente acerca dos fatos — replicou o príncipe de Gales, tendo primeiro frisado que suas opiniões seriam absolutamente pessoais, porque não falava de fato pelo governo de Sua Majestade. — Mas os seus exercícios navais realmente tiveram a aparência de um ato de ameaça.

— O Sri Lanka precisa chegar a um acordo com os tâmils. Eles têm demonstrado uma relutância lamentável em iniciar negociações substanciais e estamos tentando influenciá-los. Afinal de contas, empregamos nossas tropas como uma força de paz, e não queremos ser prejudicados pela situação geral.

— Perfeito, mas por que não retiraram sua força de paz como o governo requereu? A primeira-ministra indiana suspirou. Para ela, também, a luta fora longa, e, sob as circunstâncias, era admissível um pouco de irritação.

— Alteza, se retirarmos nossas tropas e as hostilidades retornarem, teremos dificuldades com nossos próprios cidadãos tâmils. Esta é realmente uma situação muito infeliz. Por iniciativa absolutamente altruísta, tentamos ajudar a decidir um impasse político sério, mas então o governo cingalês não conseguiu tomar as medidas necessárias para prevenir um constrangimento ao nosso país.

E então os americanos interferiram sem nenhum motivo real, e apenas intensificaram a intransigência dos cingaleses.

— Quando chegará o primeiro-ministro do Sri Lanka? — perguntou o príncipe. A resposta, muito significativa, foi um dar de ombros, seguida por verborragia.

— Propusemos viajar juntos de modo a discutirmos a situação, mas ele, lamentavelmente, declinou. Chega amanhã, acho. Se seu avião não enguiçar — acrescentou. A aeronave capitania do governo cingalês costumava apresentar toda sorte de problemas técnicos, para não mencionar uma ameaça perene à segurança de seus passageiros.

— Se quiser, o embaixador provavelmente poderá providenciar um encontro sigiloso.

— Talvez isso não seja completamente inútil — reconheceu a primeira-ministra. — Também gostaria que os americanos mudassem seu ponto de vista.

Eles sempre fórum muito injustos em relação à nossa parte do mundo.

Tal opinião era o motivo de todas essas manobras políticas, refletiu o príncipe. Ele c o presidente Ryan eram amigos havia anos, e a índia queria-o como intermediário. Não seria a primeira vez que o príncipe se empenharia numa missão dessa natureza, mas, como sempre, o herdeiro legitimário era obrigado a buscar a orientação do governo inglês que, neste caso, significava o embaixador. Alguém em Whitehall decidira que a amizade de Sua Alteza Real com o novo presidente dos Estados Unidos era mais importante que um contato governo a governo; ademais, isso recairia bem para a monarquia, numa época em que tais aparências eram úteis e necessárias. Isso também conferia a Sua Alteza uma desculpa para visitar uma certa extensão de terra em Wyoming, corretamente de propriedade da Família Real, ou da Firma, como era chamada por algumas pessoas do meio.

— Entendo — foi a resposta mais concreta que o príncipe pôde oferecer, mas a Inglaterra precisava encarar seriamente uma requisição do governo indiano.

Nação que já fora uma das joias mais brilhantes numa coroa de alcance global, a índia ainda era um parceiro comercial importantíssimo, embora muitas vezes também se revelasse uma grande fonte de aborrecimentos. Um contato direto entre os dois chefes de Estado poderia ser embaraçoso. Tendo ocorrido no final das hostilidades entre EUA e Japão, a agressão americana à frota indiana não fora amplamente divulgada, e era de interesse de todos que permanecesse assim. O príncipe sabia que o presidente Ryan já tinha muita coisa com que se preocupar. Torcia para que Jack estivesse descansando um pouco. Para as pessoas na sala de recepções, o sono funcionaria como um ajuste para as diferenças de fuso horário. Para Ryan, seria combustível vital, e nos próximos dois dias ele precisaria de toda energia que pudesse reunir.

 

A fila era interminável, o típico clichê. Estendia-se até muito além do prédio do Tesouro, e a extremidade final era como a ponta desfiada de uma corda, com novas pessoas aglomerando-se constantemente, de modo que parecia materializar-se do nada enquanto movia-se para a frente em meio ao ar frio. As pessoas entravam no prédio em grupos de aproximadamente cinquenta.

O ciclo de portas se abrindo e fechando era regulado por alguém com um relógio, ou talvez apenas contando lentamente. Havia uma guarda de honra com um membro uniformizado de cada força armada. Naquele momento, a segurança presidencial era chefiada por um comandante da Força Aérea. A guarda de honra, a segurança presidencial e os caixões permaneciam absolutamente imóveis, em agudo contraste com a velocidade com que as pessoas eram obrigadas a passar.

Ao examinar os rostos nos monitores de TV de seu escritório, logo depois de chegar, novamente antes do nascer do sol, Ryan perguntou-se o que pensavam aquelas pessoas e por que tinham vindo. Poucos eram realmente eleitores de Roger Durling, que fora, afinal de contas, o segundo colocado nas eleições e só assumira o cargo depois da renúncia de Bob Fowler. Mas a América adotava todos os seus presidentes e, em morte, Roger Durling recebia amor e respeito em doses que jamais conhecera em vida. Algumas pessoas afastaram-se dos caixões para olhar em volta no saguão de entrada de um prédio que muitos provavelmente nunca tinham visto, usando seus poucos segundos de tempo ali para, estranhamente, desviar seus olhares do motivo de sua vinda, para depois descer os degraus da Entrada Leste, não mais em fila, mas em grupos de amigos ou familiares, ou mesmo sós, para deixar a cidade e retornar aos seus afazeres. Então chegou a hora de Ryan fazer o mesmo — mais propriamente, retornar até sua família e estudar as tarefas do dia seguinte.

 

Por que não? Haviam decidido ao chegar em Dulles. Tendo, por sorte, encontrado um motel barato no final da Yellow Line, seguiram de metrô até o centro da cidade, saltando na estação Farragut Square, a poucos quarteirões da Casa Branca. Seria a primeira vez para ambos. A primeira vez de muitas coisas, de fato, porque ainda não conheciam Washington, a cidade que — como os Montanheses adoram dizer — poluía o maldito país do qual sugava sangue e riquezas. Encontrar o final da fila demandara tempo, e os dois permaneceram de pé durante várias horas. A única boa notícia foi que sabiam vestir-se para o frio, mais do que podiam dizer sobre os débeis mentais da Costa Leste com seus casacos finos e cabeças desprotegidas. Durante a espera interminável, Pete Holbrook e Ernest Brown precisaram conter-se para não desfiar suas piadas sobre o que acontecera. Em vez disso, dedicaram-se a ouvir o que diziam as outras pessoas na fila. Isso se revelou uma decepção. Talvez a maioria seja de funcionários do governo, pensaram os dois homens. Houve alguns sussurros sobre o quanto a situação era triste, por Roger Durling ter sido um bom homem, sobre sua mulher ter sido muito atraente, sobre seus filhos serem fofinhos e sobre o quanto aquilo tudo devia estar sendo horrível para eles.

Bom, os dois representantes dos Montanheses tinham de concordar que devia estar muito realmente difícil para as crianças — e quem não gostava de crianças? Além disso.

— Galinha não gostava de ver ovos mexidos, certo? Mas e quanto ao sofrimento que o pai causara em cidadãos honestos que queriam apenas exercer seu direito constitucional de ser deixados em paz por esses panacas de Washington? Mas os dois não disseram nada disso. Eles se mantiveram de boca fechada enquanto a fila serpenteava ao lado da rua. Ambos conheciam a história do Prédio do Tesouro, que os protegera do frio durante algum tempo, como Andy Jackson decidira mudá-lo de modo a não poder ver o Capitólio da Casa Branca (ainda estava muito escuro para os dois poderem ver muita coisa, causando os engarrafamentos, famosos e incômodos, da Pennsylvania Avenue não que isso importasse agora, porque a rua fora fechada em frente à Casa Branca. E por quê? Para proteger o presidente dos cidadãos Eles não confiavam nos cidadãos o suficiente para deixá-los chegar perto do bundão. Os dois haviam conversado sobre isso no avião. Não havia como saber quantos espiões do governo havia à sua volta, especialmente na fila até a Casa Branca, nome que eles aceitavam apenas porque fora alegadamente sugerido por Davy Crockett. Holbrook recordava disso de um filme a que assistira na TV, embora não conseguisse lembrar qual, e o velho Davy fora, sem dúvida, seu tipo típico de americano, um homem que dera um nome ao seu rifle favorito. Sim. Não era uma casa feia, e alguns homens bons haviam vivido ali. Andy Jackson, que disse a Suprema Corte onde tomar. Lincoln, um filho da puta durão. Uma lástima ele ter sido morto antes de implementar seu plano de embarcar os pretos de volta para a África ou para a América Latina... (Ambos gostavam de James Monroe por ter iniciativa ideia, ajudando a estabelecer a Libéria como um lugar para onde mandar os macacos de volta; pena que ninguém tenha dado prosseguimento a isso. Teddy Roosevelt, tivera muitas coisas boas a seu favor, um caçador, homem do campo e soldado que fora um pouco longe na reforma do governo. Contudo, na opinião dos dois Montanheses, desde então não havia homens assim. Mas o prédio não tinha culpa de ter sido ocupado nos tempos recentes apenas por homens dos quais eles não gostavam. Esse era a maioria dos prédios de Washington. O Capitólio já fora lar de Henry Clay e Dan Winter, afinal de contas. Patriotas, ao contrário do bando que fora torrado pelo piloto.

As coisas começaram a ficar tensas quando adentraram o terreno da Casa Branca, era como se estivessem penetrando em território inimigo. Havia guardas na casamata do portão, uniformizada do Serviço Secreto, e dentro dela havia fuzileiros. Que vergonha! Fuzileiros. Americanos de verdade, mesmo os de cor, provavelmente, porque passavam pelo mesmo treinamento árduo que os brancos, e talvez alguns até fossem patriotas. Era uma pena que fossem negros, mas isso não podia ser consertado. E todos os fuzileiros faziam o que os burocratas mandavam. Isso era uma lástima. Contudo, eram apenas garotos, e talvez um dia aprendessem. Afinal de contas, os Montanheses tinham alguns ex-militares entre eles. Os fuzileiros estavam tremendo em seus uniformes brancos. Finalmente um deles — sargento, a julgar pelas faixas — abriu a porta.

Bela casa, pensaram Holbrook e Brown, olhando em volta enquanto passavam pelo vestíbulo imenso. Estava claro por que qualquer um que vivia ali se considerava o rei da cocada preta. Era só ver as coisas para as quais os presidentes tinham de ficar olhando. Lincoln crescera numa cabana de troncos e Teddy conhecera a vida numa tenda, caçando nas montanhas, mas hoje qualquer um que vivesse ali seria apenas outro maldito burocrata. No interior da casa havia mais fuzileiros e a guarda de honra em torno dos dois caixões e, o mais inquietante de tudo, pessoas em roupas civis com fios espirais de plástico saindo de suas golas e subindo até as orelhas. Serviço Secreto. Tiras federais. A face do inimigo, membros do mesmo departamento governamental que abrigava o Departamento de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo. A primeira postura do governo contra a qual o povo protestara fora a proibição ao álcool, a Rebelião do Uísque — que era o motivo pelo qual os Montanheses estavam equivocados em sua admiração por George Washington. O mais liberal deles comentou que mesmo um homem bom podia ter um dia ruim, e George não era de levar desaforo para casa. Brown e Holbrook não olharam diretamente para os merdinhas do Serviço Secreto. Era preciso tomar cuidado com esses tipos.

 

A agente especial Price entrou no vestíbulo. O presidente estava seguro em seu gabinete, e suas responsabilidades como comandante da segurança presidencial estendiam-se por todo o prédio. A procissão não era uma ameaça à segurança da Casa. Em termos de segurança, era apenas um aborrecimento.

Mesmo se uma gangue de pistoleiros tivesse se imiscuído na fila, esta área inteira era guardada por vinte agentes armados, muitos com Uzis guardadas em suas maletas de armamentos. Um detector de metal oculto no portal indicava a uma equipe da Divisão de Técnica de Segurança em quem ficar de olho, e outros agentes vigiavam de perto arruaceiros conhecidos ou suspeitos. Para o restante, dependiam de instintos e treinamento, e isso significava ficar atento para pessoas que pareciam estranhas, o eufemismo para indivíduos com comportamento impróprio. O problema era que, como estava frio lá fora, a maioria das pessoas pareciam estranhas. Algumas batiam os pés um pouco.

Outros andavam com as mãos enfiadas nos bolsos, ou ajustavam casacos ou apenas pareciam esquisitos — coisas que atraíam a atenção da segurança presidencial. Quando os gestos eram feitos por alguém que, segundo o detector, portava algum tipo de metal, um agente levantava a mão como se estivesse cocando o nariz e falava ao microfone. Casaco azul, homem, um e oitenta, por exemplo, fizeram quatro ou cinco cabeças virarem-se para olhar melhor para um dentista de Richmond que acabara de enfiar uma mão num bolso e retirar a outra, já aquecida. Suas dimensões físicas foram checadas com fotos de outros suspeitos semelhantes, mas não houve conferência. Mesmo assim, continuaram vigiando o dentista, e uma câmera oculta enquadrou o rosto do homem para registro. Em alguns casos mais extremos, um agente se juntaria aos visitantes durante a saída para seguir um sujeito até um carro e anotar a placa. O Comando Aéreo Estratégico, há muito extinto, costumava justificar esse tipo de procedimento com o lema PAZ É A NOSSA PROFISSÃO. Para o Serviço Secreto aquilo era paranoia pura. E tanta paranoia era justificada? A resposta estava dentro dos dois caixões no saguão da Casa Branca.

 

Brown e Holbrook tiveram seus cinco segundos de visão direta. Dois caixões caríssimos, indubitavelmente comprados com dinheiro do governo e — blasfêmia das blasfêmias — cobertos com a bandeira americana. Bem, talvez não fosse tão blasfemo no caso da esposa. Afinal de contas, as mulheres devem ser leais aos homens, e ela, portanto, não tinha culpa de nada. O fluxo da multidão levou-os para a esquerda, e cordas de veludo guiaram-nos enquanto desciam os degraus. Fez-se ouvir um suspiro coletivo, acompanhado por alguns fungados de pessoas limpando as lágrimas — mulheres em sua maioria. Os dois Montanheses permaneceram impassíveis, como a maioria dos homens. As esculturas de Remington do lado de fora fizeram com que ambos parassem para admirá-las rapidamente, e então voltaram para céu aberto e o ar fresco foi bem recebido depois dos poucos minutos de sauna governamental. Não falaram até estarem fora do terreno da Casa Branca e distantes dos outros.

— Compramos caixões bonitos, não acha? — conseguiu dizer primeiro Holbrook. Pena que não eram abertos. — Brown olhou ao redor. Ninguém estava perto o bastante para ouvir sua indiscrição. Acrescentou enquanto se virava para o sul, de modo a ver a Pennsylvania Avenue: — Eles têm filhos.

— É, é, é. E eles também serão burocratas. — Caminharam mais alguns metros. Merda!

Não havia mais nada a ser dito, exceto, talvez, Porra!, pensou Holbrook, e ele não gostava de repetir coisas que Ernie já dissera.

O sol despontava, e a ausência de prédios altos a leste do Capitólio significava que o prédio branco estava lindamente silhuetado. Embora essa fosse a primeira viagem a Washington que ambos faziam, os dois poderiam traçar de memória um esboço razoável do prédio, e o fato de que o horizonte estava errado não poderia ser menos óbvio. Holbrook estava satisfeito por Ernie tê-lo convencido a vir. Aquela visão fazia valer todo o transtorno da viagem.

— Ernie... — disse Holbrook, com pasmo. — Isso é inspirador!

— É mesmo.

 

O problema da doença era os enganadores sinais de aviso, e a principal preocuparão da mulher se concentrava em um de seus pacientes. Ele era um menino bonzinho, mas... estava gravemente doente. A irmã Jean Baptiste via agora que sua febre chegara aos 40.4 graus; isso significava risco de vida, mas os outros indícios eram piores. A desorientação estava cada vez pior. Os vômitos haviam aumentado, e agora havia sangue neles. Havia indícios de hemorragia interna. Tudo isso poderia significar muitas coisas mas a que mais a preocupava chamava-se Ebola Zaire. Havia muitas doenças da selva neste país — ela ainda pensava nele ocasionalmente como o Congo Belga — e embora a competição pelo pior absoluto fosse mais acirrada do que qualquer um podia imaginar, o Ebola vinha na posição mais baixa do pódio. Ela precisava extrair sangue para outro exame, e este teria de ser realizado com muito cuidado A primeira amostra fora perdida por alguma razão. Os jovens da equipe médica não eram tão cuidadosos quanto deveriam... Os pais do garoto estavam segurando seu braço enquanto ela extraía o sangue, suas mãos inteiramente protegidas com luvas de látex tudo correu tranquilamente — no momento, o menino não estava nem mesmo semiconsciente. Ela puxou a agulha e colocou-a imediatamente numa caixa plástica para ser eliminada. O frasco de sangue era seguro, mas ele também foi colado em outra embalagem. Sua preocupação imediata era com a agulha. Muita gente na equipe tentava economizar dinheiro para o hospital reutilizando instrumentos, isso a despeito da AIDS e outras doenças transmitidas por produtos do sangue. Ela lidou com isso sozinha, apenas para ter certeza.

Não teve tempo de olhar mais para o paciente. Saindo da ala, caminhou direto até o próximo prédio. O hospital tinha uma história longa e honrosa, e fora construído para resistir às condições climáticas do local. Os vários prédios baixos eram conectados por passagens cobertas. O prédio do laboratório ficava apenas a cinquenta metros de distância. As instalações eram abençoadas; recentemente, a Organização Mundial de Saúde estabelecera presença aqui, e junto com eles haviam chegado equipamentos modernos e seis médicos jovens... mas nenhuma enfermeira. Todos tinham sido treinados nos Estados Unidos ou na Inglaterra.

O Dr. Mohammed Moudi estava na bancada do laboratório. Alto, magro, era um tanto frio em comportamento, mas eficiente. Virou-se para vê-la se aproximar, e reparou na forma como ela descartou a agulha.

— Que é, irmã?

— Paciente Mkusa. Benedict Mkusa, sexo masculino, africano, oito anos.

A freira estendeu o prontuário para o médico. Moudi pegou-o e correu os olhos por ele. Para a enfermeira — cristã ou não, era uma santa mulher, e uma ótima enfermeira — os sintomas haviam ocorrido um por vez. A apresentação do papel ao médico foi muito mais eficiente. Dores de cabeça, calafrios, febre, desorientação, agitação, e agora, sinais de sangramento interno. Quando levantou o rosto, trazia preocupação no olhar. Se o próximo sintoma fosse impetigo na pele...

— Está na ala geral?

— Sim, doutor.

— Mude-o imediatamente para o prédio de isolamento. Estarei lá em meia hora.

— Sim, doutor.

No caminho, ela esfregou a testa. Devia ser o calor. Nunca é possível acostumar-se a ele, não se você tivesse vindo do nordeste da Europa. Talvez devesse tomar uma aspirina antes de ver o paciente.


7

Imagem Pública

Começou cedo. Dois aviões Sentry E-3B — que haviam sido transferidos da base da força aérea de Tinker, em Oklahoma, para a base da força aérea de Boone, na Carolina do Norte — decolaram da última às oito da manhã, hora local, e rumaram para norte. As autoridades haviam decidido que seria exagero fechar todos os aeroportos locais. O Aeroporto Nacional de Washington permaneceu fechado — sem nenhum congressista correndo até ele a fim de voar para seus distritos (suas vagas especiais de estacionamento eram famosas), a instalação poderia permanecer inoperante e os controladores dos outros dois, Dulles e Baltimore-Washington Internacional, estaria trabalhando sob instruções muito precisas. Os voos que chegavam e saíam deviam evitar uma bolha, com mais de 32 quilômetros de diâmetro, que tinha por centro a Casa Branca. Qualquer aeronave que rumasse na direção da bolha seria ordenada a alterar o curso imediatamente. Se a aeronave ignorasse a ordem, logo descobriria um caça grudado em sua cauda. E se isso não funcionasse, o terceiro estágio seria óbvio e espetacular. Duas esquadrilhas, cada uma composta de quatro caças F-16, estariam circulando a cidade a cinco e seis quilômetros de altura, respectivamente. Graças à altitude, seu ruído passaria despercebido (isso também os capacitaria a subir e levantar os aviões e alcançar velocidade supersônica quase imediatamente), mas suas turbinas desenhariam no céu padrões brancos tão evidentes quanto os delineados pela Oitava Força Aérea sobre a Alemanha.

Mais ou menos ao mesmo tempo, a 260ª Brigada Policial de Washington e a Guarda Nacional encarregavam-se de manter controle de tráfego . Mais de uma centena de veículos HMMWV estavam nas ruas laterais, cada um perto de um carro da polícia era do FBI, bloqueando as ruas. Uma guarda de honra — composta de membros de todas as forças armadas — enfileirava-se ao longo das ruas que seriam usadas. Não havia como saber quais rifles estavam equipados com um pente de balas cheio.

Como foi dispensado o uso de tanques, as precauções de segurança puderam ser realizadas em silêncio relativo.

Havia um total de 61 chefes de Estado na cidade; o dia seria um inferno para todos os envolvidos na segurança, e a mídia estava disposta a permitir que essa experiência tosse compartilhada pelo grande público.

Para o último funeral desse porte, Jacqueline Kennedy decidira por roupas matutinas, mas agora, 35 anos depois, ternos escuros seriam mais apropriados, exceto para os oficiais de governos estrangeiros que usavam uniformes de vários tipos (o príncipe de Gales era um oficial comissionado), ou visitantes de países tropicais. Alguns usavam trajes típicos de seus países, e sofreriam as consequências em nome da dignidade nacional. O mero ato de conduzi-los pela cidade até a Casa Branca foi um pesadelo. Então ocorreu o problema de como enfileirá-los na procissão. Alfàbeticamente ou por país? Se a norma adotada fosse o tempo de permanência no cargo, isso conferiria uma posição de destaque a alguns ditadores que tinham comparecido para conquistar um pouco de legitimidade perante as principais ligas diplomáticas — ostentando status de países e governos com quem os EUA mantinham ligações amigáveis mas pelos quais nutriam pouco amor. Depois que o último cidadão americano prestou sua homenagem ao presidente e a primeira-dama mortos, os chefes de Estado começaram a marchar pelo saguão no qual estavam os caixões, parando para fazer suas orações antes de seguir para a Sala Leste, onde um pelotão de funcionários do Departamento de Estado suava para organizar o café.

Ryan e sua família subiram as escadas, cercados por membros do quadro de funcionários da Casa Branca, acertando os detalhes finais das roupas escuras do presidente e da primeira-dama. As crianças aceitaram melhor, porque estavam acostumadas a ter os pais ajeitando suas roupas, e se divertiram vendo outros fazendo isso neles. Jack segurava uma cópia de seu primeiro discurso.

Superara o estágio em que fechava os olhos e desejava que tudo aquilo fosse um sonho. Agora sentia-se como um pugilista em desvantagem contra seu oponente, mas recusando-se a beijar a lona, recebendo cada soco da melhor forma que podia e tentando não cair em desgraça. Mary Abbot dava os toques finais no cabelo do presidente, aplicando fixador para garantir que tudo ficaria em seu lugar, algo que Ryan jamais fizera voluntariamente na vida.

— Estão à sua espera, presidente — disse Arnie.

— Certo.

Jack entregou a prancheta com o discurso a um dos agentes do serviço secreto. Dirigiu-se à saída da sala, acompanhado por Cathy, que segurava Katie no colo. Sally pegou a mão do pequeno Jack e seguiu os pais pelo corredor e pela escada em espiral, a qual desceu cuidadosamente. O grupo virou à esquerda para a Sala Leste. Jack entrou na sala e todos voltaram a cabeça em sua direção, mas seus olhares não foram casuais; praticamente cada par de olhos a fitá-lo pertencia a um chefe de Estado ou um embaixador, e poucos fitavam-no com simpatia. A noite, cada um daqueles homens e mulheres escreveria um relatório a respeito do novo presidente americano. Jack considerou-se satisfeito por ser recebido por uma pessoa com quem não teria de se preocupar em impressionar.

— Sr. Presidente — disse o homem com uma jaqueta da Marinha Real. Seu embaixador fora bem direto. No todo, Londres desejava que seu relacionamento especial com o novo presidente fosse estreitado ainda mais. Ryan era cavaleiro (honorário) da Ordem Vitoriana.

— Vossa Alteza — disse Jack, permitindo-se um sorriso ao apertara mão que lhe fora estendida. — Faz tempo desde aquele dia em Londres, companheiro.

— Realmente.

 

Por cortesia do vento, o sol não estava tão quente quanto poderia. A polícia de Washington conduzia o cortejo com batedores de motocicletas, seguida por três tocadores de tambor e por soldados em marcha — um esquadrão composto pelo Terceiro Pelotão, o Primeiro Batalhão, a Companhia Bravo, o 501°

Regimento de Infantaria, a Esquadrilha 82 (à qual Roger Durling pertencera) e a Divisão Blindada, trazendo as carruagens com os caixões do presidente e da primeira-dama. Por fim, vinha a fileira de carros. Os sons brutais dos tambores ecoavam pelos prédios da capital da nação. Enquanto a procissão seguia para nordeste, os homens que a presenciavam tiravam seus chapéus ao verem as carruagens. Contudo, alguns homens esqueceram disso.

Brown e Holbrook estavam entre aqueles que não esqueceram. Durling podia ter sido apenas outro burocrata, mas a Bandeira era a Bandeira, e não podia ser culpada por quem ela embrulhava. Os soldados marcharam pela rua, incongruentemente usando uniformes de batalha com boinas azuis e botas de paraquedismo porque, conforme disse O comentarista de rádio, Roger Durling fora um deles. Diante das carruagens caminhavam mais dois soldados, o primeiro portando a bandeira presidencial, e o segundo uma placa emoldurada, com as condecorações de combate recebidas por Durling. O falecido presidente recebera uma medalha por resgatar um soldado durante um combate. O ex-soldado estava em algum lugar na procissão, e ele já fora entrevistado sobre o incidente uma dúzia de vezes, narrando soberbamente o dia em que um futuro presidente salvou-lhe a vida. Era lamentável que depois disso sua vida tivesse tomado o rumo errado, refletiram os dois Montanheses.

Agora estavam vendo o novo presidente, seu automóvel identificável pelos quatro agentes do Serviço Secreto a flanqueá-lo. Esse novo presidente era um mistério para os dois Montanheses. Eles sabiam apenas o que haviam visto na TV ou lido nos jornais.

Um pistoleiro. Ele realmente matara duas pessoas, uma com uma pistola, e a outra com uma Uzi. Era até mesmo ex-fuzileiro. Isso despertava um pouco de respeito nos dois Montanheses. Outras coberturas televisivas, reprisadas infinitamente, mostravam-no aparecendo a serviço em talk shows dominicais e pronunciamentos. Ele parecera competente nos talk shows, mas pouco à vontade nos pronunciamentos.

 

A maioria das janelas dos carros na procissão possuía uma camada de plástico escuro que impedia as pessoas de ver os passageiros, mas não o carro do presidente, claro. Sentado entre a esposa e os filhos, o presidente Ryan podia ser visto facilmente da calcada.

Que sabemos realmente sobre Ryan?

— Não muito — admitiu o comentarista. — Ele trabalhou para o governo quase que exclusivamente na CIA. Ele tem o respeito do Congresso, nos dois partidos. Trabalhou com Alan Trent e Sam Fellows durante anos... essa é uma das razões para os dois ainda estarem vivos. Sabemos algo sobre os terroristas que o atacaram...

— Como uma coisa do Velho Oeste — cortou o âncora. — O que você acha sobre ler um presidente que...

— Que já matou? — o comentarista retribuiu o favor. Estava estressado devido a vários dias de serviço ininterrupto, e cheio desse babaca embonecado.

— Vejamos. George Washington era um general. Andy Jackson também.

William Henry Harrison foi soldado, assim como Grant, e a maioria dos presidentes eleitos depois da guerra civil. Teddy Roosevelt, claro. Truman foi soldado. Eisenhower. Jack Kennedy serviu à Marinha, e Nixon, e Jimmy Carter, e George Bush... — a lição de história inesperada teve o efeito de um estouro de boiada.

— Mas ele foi escolhido como vice-presidente na posição de um testa de ferro, e como recompensa por seu trabalho no conflito — ninguém realmente chamava aquilo de guerra — desencadeado pelo problema com os interesses comerciais japoneses.

Pronto, pensou o âncora, isso deve colocar esse correspondente estrangeiro decadente em seu devido lugar. Quem disse, afinal, que um presidente tinha direito a uma lua de mel com a imprensa?

 

Ryan queria dar uma lida em seu discurso, mas não conseguiu. Estava muito frio lá fora — o interior do carro também não estava completamente aquecido —, mas milhares de pessoas estavam paradas nas calçadas a uma temperatura de 1,6 grau negativo. O carro presidencial passou perto o suficiente da multidão para que Ryan pudesse ver as expressões das pessoas. Muitos apontavam e diziam coisas como Lá está ele e aquele é o homem. Alguns acenavam; eram pequenos gestos constrangidos de pessoas que não tinham certeza se era apropriado fazer isso, mas querendo demonstrar seus sentimentos, como aquele sorriso que abrimos nas capelas funerárias — espero que você supere isso. Jack perguntou-se se seria apropriado acenar de volta, mas decidiu que estava preso a alguma lei implícita que se aplicava a funerais.

Assim, ficou olhando para eles, seu rosto, achava, numa expressão neutra, sem dizer nada porque não saberia o que dizer. Bem, para resolver isso um discurso fora escrito para ele, pensou Ryan, frustrado consigo mesmo.

 

— Não é um sujeito simpático — sussurrou Brown para Holbrook.

Esperaram alguns minutos para a multidão dispersar um pouco. Nem todos os espectadores estavam interessados na procissão de dignitários estrangeiros.

Afinal de contas, não era possível ver quem estava nos carros, e observar as bandeiras que adejavam nos para-choques dos carros só servia para iniciar diversas versões de comentários como qual é aquela? — geralmente com uma resposta incorreta. Assim, como muitos outros, os dois Montanheses abriram caminho até um parque.

— Ele ainda não se adaptou — replicou Holbrook, finalmente.

— É só um burocrata. Lembra do Princípio de Peter? — era um livro que, na opinião de ambos, fora escrito para explicar o funcionamento do governo. Em qualquer hierarquia, as pessoas tendem a subir proporcionalmente ao seu nível de incompetência. — Acho que gosto disso.

Seu companheiro virou-se para olhar a rua, os carros e as bandeirinhas tremulantes.

— Acho que tem razão.

 

A segurança na Catedral Nacional era rigorosa. Em seus corações, os agentes do Serviço Secreto sabiam que nenhum assassino — a ideia de um assassino profissional era quase totalmente criação de Hollywood — arriscaria sua vida sob essas circunstâncias. Cada prédio com uma linha de visão direta da igreja em estilo gótico tinha em seu topo policiais, soldados ou agentes especiais do governo americano. Muitos desses homens e mulheres estavam armados com fuzis, e sua própria equipe de repressão a franco-atiradores estava armada com o que havia de mais moderno em tecnologia do armamento: instrumentos fabricados à mão no valor de dez mil dólares, capazes de atingir, na cabeça, qualquer alvo até quase oitocentos metros. A equipe, que vencia competições de tiro com a regularidade das marés, era provavelmente a maior coleção de atiradores que o mundo já vira, e praticava diariamente para se manter assim. Qualquer um que quisesse praticar uma má ação saberia todas essas coisas e se manteria afastado ou, no caso de um homicida amador, veria todos aqueles preparativos de defesa e decidiria que esse não era um bom dia para morrer.

Mesmo assim, o ambiente estava tenso. A procissão mal despontou a distância e os agentes começaram a agir. Um deles, exausto de trinta horas de dever contínuo, estava trazendo café quando tropeçou nos degraus de pedra e derramou o líquido. Resmungando, amassou o copo de plástico, enfiou-o no bolso e disse, pelo microfone de lapela de seu rádio, que tudo estava bem em seu posto. O café congelou quase instantaneamente no granito.

Dentro da catedral, agentes de outra equipe checavam mais uma vez cada reentrância mínima antes de assumir seus lugares, permitindo que os oficiais de cerimonial fizessem os últimos preparativos, relativos às instruções de localização enviadas por fax apenas alguns minutos antes, e se perguntassem o que dera errado.

As carruagens pararam diante do prédio e, um de cada vez, os carros desembarcai.mi seus passageiros. Ryan saiu, seguido por sua família, caminhando para juntar-se. Os Durling. As crianças ainda estavam em choque, e talvez isso fosse bom, ou talvez não fosse. Jack não sabia. Em momentos como esse, o que um homem podia fazer? Pousou a mão no ombro do filho enquanto os carros chegavam, deixavam seus passageiros e rapidamente seguiam caminho. Os outros políticos que tinham vindo prestar suas homenagens ao presidente falecido — os mais graduados — formariam uma fila atrás de. Os menos graduados entrariam na igreja pelas entradas laterais, passando por detectores de metal portáteis, enquanto os clérigos e o coro, já tendo feito o mesmo, assumiriam seus lugares.

Roger teria recordado com orgulho seu serviço na Esquadrilha 82, pensou Ryan. Os soldados que conduziriam a procissão apresentaram armas e se prepararam para seu dever sob a supervisão de um jovem capitão, assistido por dois sargentos de aparência séria. Todos pareciam jovens demais, até mesmo os sargentos, todos com o cabelo praticamente raspado sob as boinas. Jack lembrou que, havia mais de cinquenta anos, seu pai servira na esquadrilha rival, a 101, devendo parecer-se com esses meninos, embora provavelmente com um pouco mais de cabelo, porque as cabeças raspadas não estavam em moda na década de 1940. Mas o mesmo vigor, o mesmo orgulho feroz.

Aquilo estava demorando uma eternidade. Ryan, como os soldados, não podia virar a cabeça. Teria de permanecer parado em posição de sentido como na época em que servira nos Fuzileiros, embora agora se desse ao luxo de vasculhar o local com os olhos. Seus filhos viraram as cabeças e trocaram os pés para se proteger do frio, enquanto Cathy mantinha os olhos grudados neles, tão preocupada quanto seu marido com o frio que estava fazendo, mas presa a uma situação na qual até mesmo as preocupações maternais estavam subordinadas a outra coisa. E que coisa era essa? Essa coisa chamada dever que fazia até mesmo crianças órfãs ficarem paradas, suportando silenciosamente toda aquela cerimônia?

Finalmente os membros restantes da procissão oficial saíram de seus carros e assumiram seus lugares. Alguém proferiu uma contagem até cinco, e os soldados se moveram até as carruagens, sete para cada. O oficial encarregado delas desenroscou um parafuso, depois outro; os caixões foram erguidos em passos laterais robóticos. Os soldados que seguravam a bandeira presidencial começaram a subir os degraus, seguidos pelos caixões. O presidente estava na frente, liderado pelo capitão e seguido pelo sargento no comando da subsegurança presidencial.

Não foi culpa de ninguém. Ali estavam três soldados de cada lado, marchando na cadência lenta proferida pelo sargento. Estavam com os corpos rígidos devido a ter permanecido em posição de sentido por 15 minutos após uma caminhada matutina saudável ao longo da Massachusetts Avenue. O soldado do meio no lado direito escorregou no café congelado. Deslizou para frente, não para trás, e, ao fazer isso, suas pernas deram uma rasteira no soldado que o seguia. A carga total era de mais de quatrocentos quilos de madeira, metal e cadáver, e tudo isso tombou sobre o soldado que fora o primeiro a escorregar, imprensando suas duas pernas contra os degraus de granito, quebrando-as instantaneamente.

Um arfar coletivo elevou-se dos milhares de pessoas que assistiram à cena.

Os agentes do Serviço Secreto correram para acudir os soldados, temendo que eles tivessem sido atingidos por um tiro. Andréa Price moveu-se na frente de Ryan, a mão dentro do casaco segurando obviamente sua automática de serviço, pronta para sacá-la, enquanto outros agentes se posicionavam para arrastar os Ryan e os Durling para longe da área. Os soldados já estavam retirando o caixão de cima do companheiro caído, seu rosto subitamente branco de dor.

— Gelo — disse ao sargento entre dentes cerrados. — Escorreguei.

O soldado chegou mesmo a reunir autocontrole suficiente para refrear o palavrão que ecoou por sua mente devido à vergonha e o embaraço do momento. Um agente olhou o degrau e viu um montículo marrom-esbranquiçado que refletia luz. Fez um gesto para Price dizendo que ela podia relaxar, comando que foi instantaneamente transmitido por rádio para todos os agentes na região: — Foi só um escorregão, foi só um escorregão.

Ryan estremeceu ao perceber o que acontecera. Roger Durling não sentira aquilo, disse sua mente, mas o incidente insultara-o e a seus filhos, que gemeram e viraram as cabeças ao ver o pai escorregar nos degraus de pedra. O menino foi o primeiro a destampar o rosto, sua parte criança perguntando-se como a queda não acordara o pai. Apenas algumas horas atrás ele acordara à noite e caminhara até a porta de seu quarto, querendo abri-la, esperando cruzar o saguão e bater na porta dos pais para ver se eles tinham voltado.

 

— Meu deus! — gemeu o comentarista.

As câmeras fecharam o quadro nos dois soldados do Terceiro Regimento levantando o paraquedista ferido. O sargento assumiu seu lugar. O esquife foi erguido novamente numa questão de segundos, sua superfície de carvalho nitidamente arranhada devido à queda.

 

Certo, soldados — disse o sargento de sua nova posição. — Pela esquerda!

— Papai — choramingou Mark Durling, de nove anos de idade. — Papai.

Em meio ao silêncio que se seguiu ao acidente, todos perto do menino ouviram seu lamento. Os soldados morderam os lábios. Os agentes do Serviço Secreto, já envergonhados e feridos pela perda de um presidente, dedicaram um segundo a voltar os olhos para baixo ou fitar uns aos outros. Jack instintivamente enlaçou com o braço o ombro do menino, mas ainda sem saber o que poderia dizer. Que mais poderia sair errado?, perguntou-se o novo presidente, enquanto a Sra. Durling seguia seu marido.

— Tudo bem, Mark. — Com o braço em torno do ombro do menino, Ryan guiou-o até a porta, sem pensar que estava tomando o lugar de um tio favorito distante apenas alguns metros. Queria que houvesse pelo menos uma forma de suavizar seu pesar, mesmo que por alguns segundos. Era um desejo impossível, e tudo que fez por Jack foi ceder-lhe mais uma camada de tristeza, e essa dor adicional não fez nada para amenizar aquela sentida pelas crianças.

Estava mais quente lá dentro, o que foi notado pelos menos emocionados com o momento. Os políticos e estadistas assumiram seus lugares. Ryan e sua família ficaram na primeira fila à direita. O grupo dos Durling ficou no lado oposto ao deles. Os esquifes estavam dispostos lado a lado em lajes na sacristia; atrás deles havia mais três, os de um governador e dois congressistas, representando uma última vez. O órgão tocou alguma coisa que Ryan ouvira antes mas que não reconheceu. Ao menos não era a soturna produção maçônica de Mozart, com seu cântico fúnebre repetitivo, tão animador quanto mim filme sobre o Holocausto. Os clérigos estavam alinhados, rostos profissionalmente dispostos. Na frente de Ryan, no suporte geralmente ocupado por hinos, havia outra cópia de seu discurso.

 

A cena na tela de TV deixaria qualquer pessoa de sua profissão enojada ou excitada, a um nível quase sexual. Se ao menos... mas oportunidades desse tipo aconteciam apenas por acidente, jamais permitindo tempo para preparar nada.

Preparação era tudo numa missão. Não que fosse tecnicamente difícil, e ele permitiu que sua mente considerasse o método. Um míssil, talvez. Seria possível montar um lançador de mísseis num daqueles caminhões de entregas que podiam ser vistos em qualquer cidade do mundo conhecido.

 

Ele daria cabo de pelo menos dez, talvez 15 ou vinte, e embora a seleção fosse aleatória, um alvo era um alvo, e terror era terror, e essa era sua profissão.

— Olha só a cara deles — sussurrou.

As câmeras mostraram as pessoas nas fileiras. A maioria homens, algumas mulheres, sentados sem nenhuma ordem que ele pudesse discernir, alguns papeando em sussurros, a maioria mantendo-se em silêncio respeitoso, com expressões neutras enquanto vasculhavam com os olhos o interior da igreja.

Então os filhos do presidente americano morto, um menino e uma menina com a aparência de quem conheceu o lado cruel da vida. As crianças estavam suportando a pressão incrivelmente bem, não estavam? Iriam sobreviver. E como não tinham mais nenhuma importância política, o interesse do homem nelas foi tão clínico quanto impiedoso. Então a câmera estava mais uma vez em Ryan, fechando em seu rosto, permitindo um exame cuidadoso.

 

Ainda não dera seu adeus a Roger Durling. Jack não tivera tempo para compor a mente e se concentrar no pensamento. A semana tinha sido atarefada demais, mas agora ele flagrou seus olhos fitando apenas aquele caixão. Mal conhecera Anne, e os outros três corpos na sacristia eram-lhe estranhos, tendo sido escolhidos aleatoriamente por suas religiões. Mas Roger fora um amigo.

Roger tirara-o da vida civil, dera-lhe um trabalho importante e confiara nele, aceitando seus conselhos na maior parte do tempo. Roger abrira seu coração para ele e ocasionalmente o repreendera, mas sempre como um amigo. Havia sido um trabalho difícil, principalmente com o conflito que fora desenvolvido com o Japão — mesmo para Jack, agora que estava acabado, aquilo não era uma guerra, porque guerra era coisa do passado. Não fazia mais parte do mundo real que agora estava deixando a barbárie. Durling e Ryan haviam ajudado nesse processo, e embora o primeiro tivesse pretendido finalizar o trabalho de outras maneiras, também reconhecera que, para Ryan, a corrida havia acabado.

E assim, como amigo, dera a Jack uma ponte de ouro de volta à vida civil, um pináculo numa carreira que se tornara uma arapuca.

Mas se Roger tivesse oferecido o trabalho a outra pessoa, onde eu teria estado naquela noite?, perguntou Jack a si mesmo. A resposta foi simples. Teria estado na primeira fila no plenário da Câmara, e agora estaria morto. O presidente Ryan piscou para afugentar o pensamento. Roger salvara-lhe a vida.

Provavelmente não apenas a sua. Cathy — e talvez as crianças — teriam estado na galeria, junto com Anne Durling... A vida era tão frágil assim, podendo ser interrompida em decorrência de pequenos eventos? Naquele momento, por toda a cidade, outros corpos jaziam em outros caixões para outras cerimônias, corpos de adultos, mas também de crianças, filhos de políticos que haviam escolhido aquela noite para levar suas famílias à sessão conjunta.

 

Mark Durling estava chorando agora. Sua irmã mais velha, Amy, puxou a cabeça do menino para ela. Jack virou-se um pouco, permitindo ver a cena com sua visão periférica. Bom Deus, são apenas crianças. Por que crianças precisam passar por coisas assim? O pensamento tornou-se familiar no mesmo instante.

Jack mordeu o lábio e olhou para o chão. Não havia nenhum alvo para sua raiva. O perpetrador desse crime também estava morto, seu corpo ocupava outra caixa no necrotério de Washington e, a alguns milhares de quilômetros de distância, a família que o homem deixara para trás precisava conviver não apenas com a dor, mas também com a vergonha e a culpa. Era por causa disso que se dizia que a violência não tem sentido. Esse incidente não deixara nada para ser aprendido, apenas a dor das vidas perdidas e arruinadas — e vidas poupadas por nenhum motivo além do puro acaso. Como o câncer ou outras doenças graves, esse tipo de violência atingia sem nenhum plano discernível, sem defesa real, apenas um homem morto que decidira não entrar sozinho no além. Que lição tudo isso deixava para ser i prendida? Nenhuma. Ryan, há muito um estudante do comportamento humano, franziu o cenho e continuou olhando para baixo, os ouvidos concentrados nos soluços de uma criança órfã ecoando pelas paredes da igreja de pedra.

 

Fraco. Estava escrito em seu rosto. Esse suposto homem, esse presidente, estava lutando para conter as lágrimas. Ele não sabia que a morte fazia parte da vida? Logo ele que causara mortes? Ele não sabia como a morte era? Ou estava aprendendo apenas agora? Os outros rostos sabiam. Era possível ver isso.

Estavam soturnos, porque é assim que se espera que as pessoas fiquem nos funerais, mas conheciam a morte. Toda a vida chega ao fim, e Ryan parecia o único a não saber disso. Ele enfrentara o perigo — mas fora há muito tempo e, com o passar dos anos, os homens esquecem esse tipo de coisa. Ryan tivera todos os motivos para esquecer as vulnerabilidades da vida, tendo ido, como funcionário do governo, protegido numa gaiola de vidro. O homem sempre ficava surpreso com o quanto é fácil aprender sobre uma pessoa apenas examinando seu rosto por alguns segundos.

Isso facilitava em muito as coisas, não?

 

Estava a cinco fileiras atrás, mas na lateral, e embora pudesse ver apenas a nuca do presidente Ryan, a primeira-ministra da índia também era uma estudiosa do comportamento humano. Um chefe de Estado não podia agir dessa forma. Um chefe de Estado era, afinal de contas, um ator no palco mais importante do mundo, e precisava aprender o que fazer e como se comportar.

 

Ela já estivera em todos os tipos de funerais, porque os líderes políticos têm associados — nem sempre amigos —jovens e velhos, e era preciso demonstrar respeito frequentando os funerais, mesmo daqueles a quem mais se detestava.

No último caso, às vezes podia ser divertido. Em seu país, os mortos frequentemente eram incinerados, e isso permitia à ministra fazer de conta que o corpo ainda estava vivo enquanto ardia em chamas. Especialmente aqueles a quem mais detestara. Mas esses enterros exigiam muita prática. Era preciso parecer triste. Sim, tínhamos nossas diferenças, mas ele sempre foi alguém a quem respeitei, alguém com quem podia trabalhar, alguém cujas ideias sempre mereciam consideração. Com o passar dos anos, adquiria-se tanta pratica que os sobreviventes passavam a acreditar nas mentiras. Você aprendia a sorrir quando era preciso, a chorar quando era preciso. Um líder político raramente podia deixar transparecer seus sentimentos verdadeiros. Os sentimentos verdadeiros diziam aos outros quais eram as suas fraquezas, e sempre havia alguém que podia usá-las contra você. Assim, com o passar dos anos você os escondia cada vez mais, até que, finalmente, não lhe restava quase nenhum sentimento. E isso era bom, porque política e sentimentos não se misturam.

Era evidente que esse Ryan não sabia disso, disse a si mesma a primeira-ministra da maior democracia do mundo. Como resultado, ele estava mostrando o que era realmente. E o pior — para ele — era que estava fazendo isso diante de um terço dos maiores líderes do mundo, pessoas que veriam, aprenderiam e arquivariam seus sentimentos para uso futuro. Exatamente como ela estava fazendo. Maravilhoso, pensou, mantendo uma expressão triste em honra de alguém a quem odiara. Quando o organista começou o primeiro hino, ela abriu seu livro, correu as páginas até a indicada e cantou junto com todos os outros.

 

O rabino foi o primeiro. Cada clérigo dispunha de dez minutos, e cada um deles era um especialista — mais propriamente, eram, além de homens de Deus, genuínos catedráticos. O rabino Benjamin Fleischman citou o Talmude e a Torah. Falou sobre honra e fé, e sobre um Deus misericordioso. Em seguida veio o reverendo Frederick Ralston, o capelão do Senado — ele estivera fora da cidade naquela noite e, assim, falou sobre os eventos de uma forma um pouco mais distanciada. Batista do sudeste e reconhecida autoridade no Novo Testamento, Ralston falou sobre a Paixão de Cristo no jardim, sobre seu amigo, senador Richard Eastman, do Oregon, que jazia na sacristia, universalmente respeitado como um membro honrado do Congresso, e em seguida desatou louvores ao presidente morto, um pai de família devotado, como era bem sabido...

Não havia uma forma certa de lidar com essas coisas, pensou Ryan. Talvez fosse mais fácil se o ministro padre rabino tivesse tido tempo de sentar e conversar com os parentes e amigos do falecido, mas isso não fora possível nesse caso, e ele se perguntou...

Não, isto não é certo!, disse Jack a si mesmo. Aquilo era teatro. E não devia ser assim. Havia crianças sentadas a alguns metros à sua esquerda, e para elas o que havia acontecido era bem real. Isto era muito mais simples para eles.

Mamãe e papai tinham tido suas vidas ceifadas por um ato sem sentido, privando-os do que a vida devia garantir-lhes: um futuro feliz, amor e orientação, uma chance de crescer de forma normal como pessoas normais.

Mark e Amy eram as pessoas mais importantes aqui, mas tudo estava voltado para os outros. Este evento inteiro era um exercício político, uma coisa para acalmar a nação, para renovar a fé das pessoas em Deus, no mundo e em seu país, e talvez as pessoas lá fora, por trás das 23 câmeras da igreja, precisassem disso, mas havia pessoas mais necessitadas: as crianças de Roger e Anne Durling, os filhos crescidos de Dick Eastman, a viúva de David Kohn, de Rhode Island, e a família de Marissa Henrick, do Texas. Aquelas eram pessoas reais, e sua dor pessoal estava sendo subordinada às necessidades da nação.

Bem, a nação que se foda!, pensou Jack, subitamente com raiva do que estava acontecendo, e com raiva de si mesmo por não ter percebido isso antes, quando poderia ter feito uma diferença. A nação tinha necessidades, mas elas não podiam ser grandes a ponto de eclipsar o horror que o destino infligira àquelas crianças. Quem falaria por elas? Quem falaria a elas?

Para Ryan, um católico, o pior de tudo era que o cardeal Michael O’Leary, arcebispo de Washington, não foi melhor que os outros. Benditos os pacifistas, porque eles serão chamados... Para Mark e Amy, seu pai não era um pacifista.

Era papai, e papai estava morto, e isso não era uma abstração. Três membros distintos, eruditos e muito decentes do clero estavam pregando para uma nação, mas diante deles havia crianças que tinham ouvido apenas algumas palavras gentis da boca para fora. Alguém precisava falar com eles, para eles, sobre seus pais. Alguém tinha de tentar amenizar o sofrimento das crianças. Isso não era possível, mas, bolas, alguém precisava tentar! Talvez o presidente dos Estados Unidos. Talvez ele tivesse um dever para com os milhões atrás das câmeras, mas Jack lembrou de quando sua esposa e filha haviam ficado em tratamento intensivo num hospital em Baltimore, entre a vida e a morte, e aquilo também não fora uma maldita abstração. Esse era o problema. Esse era o motivo pelo qual sua família fora atacada. Esse era o motivo pelo qual essas pessoas haviam morrido — porque algum fanático vira todos eles como abstrações em vez de seres humanos com vidas, esperanças, sonhos... e filhos. O trabalho de Jack era proteger uma nação. Ele jurara preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos, e daria o melhor de si para conseguir isso. Mas o propósito da Constituição era tremendamente simples: assegurar as bênçãos da liberdade para as pessoas, e isso incluía as crianças. A nação e o governo aos quais ele servia eram nada mais nada menos que um mecanismo para proteger indivíduos. Já dever não era uma abstração. A realidade desse dever estava sentada a alguns metros à sua esquerda, contendo lágrimas da melhor forma que podiam, e provavelmente falhando, porque não havia sentimento mais solitário do que aquele que atormentava o coração das duas crianças enquanto Mike O’Leary falava para um país em vez de para uma família. O teatro já durara tempo demais. Dali a pouco começaria mais um hino, e em seguida seria a vez de Ryan levantar e caminhar até o púlpito.

Os agentes do Serviço Secreto voltaram-se para todos os lados, vasculhando a nave da igreja, porque ESPADACHIM era agora um alvo perfeito. Ao aproximar-se do átrio, Ryan viu que o cardeal O’Leary agira conforme as instruções e prendera a prancheta presidencial ao tampo de madeira. Não, decidiu Jack. Não. Segurou os lados do átrio para se apoiar. Seus olhos percorreram rapidamente a plateia, e em seguida se fixaram nos filhos de Roger e Anne Durling. A dor nos olhos das crianças partiu seu coração Estavam suportando todos os fardos de um compromisso que jamais haviam assumido. Amigos anônimos lhes disseram para ser mais fortes do que qualquer fuzileiro em qualquer época, provavelmente porque Mamãe e papai gostariam disso. Mas suportar dor com dignidade, silenciosa ou não, era pedir demais a crianças. Eram os adultos quem tinham de fazer esse tipo de coisa. Basta, disse Jack a si mesmo. Meu dever está aqui. O primeiro dever do forte sempre era proteger o fraco. Suas mãos apertara m as bordas do átrio de carvalho polido, e a dor autoinfligida ajudou a compor seus pensamentos.

— Mark, Amy, seu pai era meu amigo — disse gentilmente. — Tive a honra de trabalhar para ele e ajudá-lo da melhor forma que pude... mas, vocês sabem, ele provavelmente me ajudou muito mais do que eu a ele. Sei que vocês sempre compreenderam que papai e mamãe realizavam trabalhos importantes, e nem sempre tinham tempo para as coisas realmente importantes, mas posso garantir-lhes que seu pai fez tudo que podia para dedicar tempo a vocês, porque ele os amava mais que qualquer coisa no mundo, mais do que ser presidente, mais do que todas as coisas que vêm junto com isso, mais do que tudo... exceto a mãe de vocês. Ele também a amava muito...

 

Quanta bobagem! Sim, claro que qualquer um se importa com os próprios filhos. Daryaei se importava com os seus, mas as crianças se tornam adultos, goste-se delas ou não. Sua função era aprender, e servir, e um dia assumir os deveres de seus predecessores. Até então seriam crianças, e o mundo lhes diria como agir. O destino lhes diria. Alá lhes diria. Alá era misericordioso, embora a vida fosse dura. Ele tinha de admitir que o judeu falara bem, citando as Escrituras exatamente como na Torah deles e em seu Corão sagrado. Ele teria escolhido uma passagem diferente, mas isso era uma simples questão de gosto.

 

A teologia permitia esse tipo de coisa. Tudo teria sido um exercício fútil, mas esse quase sempre era o caso de ocasiões formais como essa. Esse tal Ryan estava desperdiçando sua chance de se dirigir à nação, de parecer forte e seguro, de modo a consolidar seu poder e governo. Imagine só, numa horas dessas, falar com crianças!

 

Seus consultores políticos devem estar sofrendo um ataque cardíaco coletivo, pensou a primeira-ministra, recorrendo a todo seu autocontrole para manter a expressão imparcial. Então, decidiu alterar sua expressão para simpatia. Afinal, ele poderia estar observando-a, e ela era mulher e mãe, afinal de contas, e iria encontrá-lo mais tarde no mesmo dia. Inclinou a cabeça ligeiramente para a direita, como para usufruir de uma visão melhor da cena e do homem. Ele também deveria gostar disso. Em mais um ou dois minutos, ela abriria a bolsa e tiraria um lenço para enxugar os olhos.

 

— Gostaria de ter tido a chance de conhecer melhor a mãe de vocês. Cathy e eu estávamos aguardando uma oportunidade. Queria que Sally, Jack, Katie e vocês ficassem amigos. O seu pai e eu conversamos um pouco sobre isso. Acho que isso não vai acontecer da forma como queríamos.

Um pensamento repentino fez o estômago de Jack revirar. Eles estavam chorando agora porque Jack dissera-lhes sem palavras que eles podiam fazer isso, se quisessem. Jack não podia se dar ao mesmo luxo. Devia isso aos outros.

Precisava ser forte agora para eles, e assim apertou as bordas do átrio até as mãos doerem, e recebeu de bom grado a dor, porque ela impôs-lhe disciplina.

— Vocês provavelmente querem saber por que isto tinha de acontecer. Não sei, crianças. Queria saber. Queria que alguém soubesse, para que eu pudesse procurar essa pessoa e obter respostas. Mas nunca encontrei essa pessoa — prosseguiu Jack.

 

— Jesus Cristo! — conseguiu dizer Clark na voz rouca que os homens usavam para impedir um choramingo. Em seu escritório na CIA, como todos os altos funcionários públicos, ele tinha um televisor, e todos os canais estavam cobrindo aquilo. — É, meu amigo, também já procurei essa pessoa uma ou duas vezes.

— Sabe de uma coisa, John? — perguntou Chavez. Ele estava mais sob controle. Km momentos como aquele, o homem precisa manter os pés firmes no chão, para poder acalentar as mulheres e crianças. Ou pelo menos era isso que sua cultura lhe ensinara. O Sr. C, por outro lado, revelou-se uma caixinha de surpresas. Como sempre.

— Que é, Domingo?

— Ele entende. Estamos trabalhando para um sujeito que entende.

John refletiu a respeito. Quem acreditaria? Dois oficiais paramilitares da CIA, tendo os mesmos pensamentos que seu presidente. Era bom descobrir que ele analisara Ryan corretamente desde o primeiro instante. Porra, é igualzinho ao pai. Uma lástima que o destino lhe houvesse negado a chance de conhecer aquele Ryan. Em seguida se perguntou se Ryan seria bem-sucedido como presidente. Ele não estava agindo como nenhum dos outros. Estava agindo como uma pessoa de verdade. Mas por que isso era tão ruim?, perguntou Clark retoricamente.

 

Quero que vocês saibam que eu e Cathy estaremos prontos para recebê-los quando quiserem. Vocês não estão sozinhos. Vocês têm a sua família, e agora têm a minha também — prometeu Jack, no púlpito. Aquela era a pior parte. Ele precisara dizer isso as crianças. Roger havia sido um amigo, e um homem decente cuida dos filhos dos amigos quando é preciso. Ele fizera isso pela família de Buck Zimmer, e agora faria pela de Roger.

— Quero que vocês sintam orgulho de sua mamãe e de seu papai. O seu pai era um bom homem, um bom amigo. Ele trabalhou duro para tornar as coisas melhores para as pessoas. É um trabalho difícil, e ele precisou abrir mão de muito tempo ao lado de vocês, mas seu pai era um grande homem, e grandes homens fazem coisas grandes. Sua mãe sempre esteve ao lado deles, e ela também fez coisas grandes. Crianças, vocês sempre irão tê-los em seus corações. Recordem todas as coisas que eles lhes disseram, todas as coisas, pequenas, as brincadeiras, os truques, as piadas. Lembrem-se de todas as formas que os papais e as mamães expressam o amor pelos seus filhos. Vocês jamais perderão isso. Jamais — assegurou-lhes Jack, torcendo para que isso amenizasse o golpe violento que o destino lhes aplicara. Ele não conseguiu pensar em mais nada que pudesse ser dita. Era hora de fechar.

— Mark, Amy, Deus decidiu que queria sua mãe e seu pai de volta. Ele não explicou o motivo de formas fáceis para que possamos entender, e não podemos... não podemos lutar contra essas coisas quando elas acontecem. Simplesmente não podemos...

A voz de Ryan finalmente falhou em sua garganta.

 

Que coragem tem esse homem, permitindo suas emoções aflorarem, pensou Koga. Qualquer um poderia subir lá e desfiar a ladainha política habitual, e a maioria faria isso, mas esse Ryan não era como os outros. Fazer um discurso político dirigindo-se às crianças era brilhante — ou pelo menos foi o que ele pensou no começo. Mas não era nada disso. Dentro do presidente havia um homem. Ele não era um ator. Ele não estava nem aí para mostrar força ou resolução. E Koga sabia o motivo. Mais do que qualquer outra pessoa nessa igreja, Koga sabia do que Ryan era feito. Ele tivera o palpite certo em seu gabinete, alguns dias antes. Ryan era um samurai, e ainda mais que isso. Ele fazia o que fazia, sem se preocupar com que os outros pensassem. O primeiro-ministro japonês torceu para que isso não fosse um erro enquanto observava o presidente dos Estados Unidos da América descer os degraus e se aproximar dos filhos dos Durling. Ele os abraçou, e a plateia viu lágrimas no rosto de Ryan. Koga ouviu chefes de Estado fungando ao redor dele, mas sabia que a maior parte era puro fingimento ou, no máximo, resíduos de humanidade vindo à tona para logo afundarem novamente. Lamentou que não pudesse juntar-se a eles, mas as regras de sua cultura eram duras, ainda mais com toda a vergonha de ter sido um de seus cidadãos o causador dessa tragédia monstruosa. Ele precisava jogar segundo as regras da política, embora preferisse não fazê-lo.

Ryan não jogava segundo essas regras, e o que preocupava o primeiro-ministro do Japão era se a América perceberia sua sorte.

 

— Ele não usou uma palavra do discurso preparado! — objetou o âncora.

O discurso fora distribuído para todas as emissoras, e os principais trechos já haviam sido selecionados para que os repórteres pudessem repetir passagens, de modo a reforçar as coisas importantes que o presidente tinha a dizer aos espectadores. Em vez disso, o âncora foi forçado a tomar notas, o que fez muito mal, porque fazia tempo que não trabalhava como repórter.

— Tem razão — concordou relutante o comentarista. — Nada disso foi planejado. — Em seu monitor, Ryan ainda estava abraçando os filhos dos Durling, e isso já estava demorando. — Acho que o presidente decidiu que este era um momento pessoal para eles...

— E de fato é — interveio o âncora.

— Mas o trabalho do Sr. Ryan é governar uma nação. — O comentarista balançou a cabeça, claramente pensando algo que ainda não podia dizer: não presidencial.

 

Jack finalmente teve de soltar as crianças. Em seus olhos, agora havia apenas dor. A parte objetiva da mente de Ryan considerou que isso provavelmente era bom — eles tinham desabafado — mas não tornava a visão menos dolorosa, porque crianças dessa idade não deviam sofrer desse jeito. Mas essas crianças sofreram, e não havia nada que pudesse ser feito a esse respeito além de tentar, de alguma forma, aliviar sua dor. Jack olhou para os tios e tias que acompanhavam as crianças. Também estavam chorando, mas por detrás de suas lágrimas Jack vislumbrou expressões agradecidas, o que pelo menos lhe dizia que fizera uma coisa boa. Balançando a cabeça, virou-se para caminhar até sua cadeira. Cathy estava olhando para ele e também havia lágrimas em seus olhos. Embora não pudesse falar, ela segurou sua mão. Jack viu mais um exemplo da inteligência da mulher. Ela não estava usando maquiagem para não manchá-la caso chorasse. Por dentro, Jack sorriu. Ele não gostava de maquiagem, e sua esposa não precisava realmente usar.

 

Que sabemos sobre ela?

— E médica. Cirurgia de olhos. Aparentemente, muito boa. — Ele verificou suas anotações. — A imprensa americana diz que continua a exercer a profissão apesar de seus deveres oficiais.

— E os filhos?

— Não temos nada a esse respeito... Devo conseguir descobrir que escola estão frequentando. — Ele notou a expressão intrigada e prosseguiu. — Se a esposa vai continuar seu trabalho, acho que as crianças precisarão continuar frequentando as mesmas escolas.

— Como você vai descobrir isso?

— Mole. Todas as revistas americanas podem ser acessadas por computador. Ryan foi motivo de diversas matérias. Posso descobrir qualquer coisa que quiser.

Na verdade, ele já descobrira muita coisa, mas nada sobre a família. A era moderna facilitara muito a vida de um espião. Ele já sabia a idade, altura, peso, cor do cabelo e dos olhos, e muitos dos hábitos de Ryan, como bebidas prediletas e clubes golfe dos quais era sócio. Sabia todos os tipos de trivialidades sobre Ryan, nenhuma das quais muito trivial para um homem em sua posição. Ele não teve de perguntar ao seu chefe o que estava pensando. A oportunidade que ambos haviam perdido com todos os chefes de estado na Catedral Nacional estava perdida para sempre, mas, não seria a única.

 

Com um último hino, a cerimônia chegou ao fim. Os soldados retornaram para levar os esquifes, e a procissão recomeçou ao contrário. Mark e Amy comportaram-se bem, ajudados por seus parentes, e seguiram os caixões dos pais. Jack liderou sua família atrás deles. Katie estava entediada e ficou feliz em poder andar novamente. O pequeno Jack estava triste pelos filhos dos Durling.

Sally parecia preocupada. Ele teria de conversar com ela. Caminhando pelo corredor, olhou com atenção para vários rostos, surpreso com o fato de que as pessoas nas primeiras quatro ou cinco fileiras não estavam olhando para os caixões, e sim para ele. Eles nunca deixavam de ser políticos, não é mesmo?

Seus colegas chefes de Estado, pensou Jack, imaginando em que tipo havia virado. Alguns rostos eram amigáveis, como o do príncipe de Gales, que não era chefe de Estado e, portanto, fora posto pelo cerimonial atrás dos outros.

Outros rostos pertenciam a patifes notórios, mas mesmo esses cumprimentaram-no com um menear de cabeça amigável. Sim, ele estava entendendo, pensou Jack. O novo presidente quis olhar seu relógio, tão cansado sentia-se com os eventos de um dia ainda no nascedouro, mas haviam-lhe alertado contra olhar as horas. Sempre haveria pessoas para dizer-lhe o que aconteceria cm seguida, assim como agora havia pessoas correndo até os armários para devolver os agasalhos a Ryan e seus familiares antes que saíssem.

Ali estava Andréa Pricer e outros membros da segurança presidencial. Do lado de fora haveria mais gente: um exército não muito pequeno de pessoas com armas e medos, e um carro para levá-lo a seu próximo destino, onde ele executaria mais deveres oficiais, sendo em seguida conduzido às pressas para outro, e outro, e outro.

Não podia deixar tudo isso tomar conta de sua vida. Ryan franziu a testa ao pensar nisso. Ele faria o trabalho, mas não poderia cometer o mesmo erro de Roger e Anne. Pensou nos rostos das crianças saindo da igreja e pensou que aquele era um clube ao qual podia ser forçado a entrar, mas ao qual jamais se afiliaria. Ou pelo menos foi o que disse a si mesmo.


8

Troca de Comando

A parte na base aérea de Andrews foi misericordiosamente curta. Da catedral, os esquifes viajaram em carros funerários, deixando para trás a maior parte do cortejo oficial, que seria dispersado através da Embassy Row. O Força Aérea Um estava aguardando na rampa para conduzir os Durling de volta à Califórnia uma última viagem. Os procedimentos pareceram menos formais.

Havia mais uma guarda de honra para saudar os caixões embrulhados na bandeira, mas a situação foi bem diferente. A multidão era menor, composta principalmente de oficiais da Força Aérea e alguns outros, militares que, de uma forma ou outra, haviam trabalhado diretamente com o presidente. A pedido da família, o funeral em si seria menor, e restrito aos familiares, o que invariavelmente era melhor para todos. E assim, aqui na Base Aérea de Andrews ouviu pela última vez as marchas Ruffles and Flourishes e Hauto the Chief. Mark permaneceu cm posição de sentido, a mão sobre o coração, num gesto que certamente seria capa de todas as revistas. Um menino bom, esforçando-se ao máximo para ser mais homem que todos os garotos de sua idade. Uma empilhadeira levou os caixões até a porta de carga, porque a essa altura os corpos não passavam disso; felizmente, essa parte da transferência foi efetuada fora das vistas de todos. Então chegou a hora. A família subiu os degraus até o VC-25 para seu último passeio. A aeronave fora despida da identificação, porque ela a identificava como o Força Aérea Um, o avião do presidente, e ele não estava a bordo. Ryan observou o avião taxiar, e em seguida correr pela pista. As câmeras de TV acompanharam-no até ser apenas um ponto no céu. Os olhos de Ryan faziam o mesmo. Logo depois, uma esquadrilha de F-16, livre de seu dever de patrulhar os céus de Washington, começou a aterrissar, um avião de cada vez. Depois de tudo terminado, Ryan e sua família subiram a bordo de um helicóptero da Marinha para retornar à Casa Branca. A tripulação brincou com as crianças para animá-las. O clima mudou.

Os fuzileiros do VMH-1 tinham uma nova família para cuidar, e a vida para eles seguia em frente.

A equipe da Casa Branca já estava trabalhando, trazendo as coisas dos Ryan (haviam passado a noite inteira retirando as coisas dos Durling) e mudando algumas peças de mobília. Naquela noite, a nova Primeira Família dormiria na mesma casa ocupada por John Adams. As crianças, sendo crianças, ficaram olhando pela janela enquanto o helicóptero descia. Seus pais, sendo pais, ficaram olhando um para o outro.

As coisas mudaram nesse momento. Num funeral familiar particular, esta seria a vigília. A tristeza deveria ser deixada para trás, os presentes recordariam que grande sujeito Roger era e em seguida conversariam sobre as novidades em suas vidas, como as crianças estavam indo na escola, o desempenho dos times de beisebol no campeonato. E também estava sendo assim neste caso, só que numa escala um tanto maior. O fotógrafo da Casa Branca estava esperando no Gramado Sul quando o helicóptero pousou. As escadas foram abaixadas, e um recruta da Marinha ajudou-os a descer. O presidente Ryan foi o primeiro, recebendo uma continência do recruta, a qual retribuiu prontamente, tão entranhadas em seu ser estavam as lições recebidas em Quântico, na Virgínia, há mais de vinte anos. Cathy desceu em seguida, e depois as crianças. Os agentes do Serviço Secreto formaram um corredor espaçoso, indicando-lhes que direção seguir. Novos cameramen posicionavam-se a oeste, à esquerda deles, mas desta vez não gritaram nenhuma pergunta; isso mudaria dentro em pouco. No interior da Casa Branca, os Ryan foram direcionados aos elevadores para uma viagem expressa até o segundo andar, onde ficavam os quartos. Vam Damm os aguardava.

— Presidente.

— Mudei de cara, Arnie? — perguntou Jack, entregando seu casaco a um criado. Ryan parou de repente, atônito em como aquela atividade parecera simples. Ele era presidente agora e, nos pequenos aspectos, começara a agir automaticamente como um. Sob certo ponto de vista, isso era mais notável do que alguns deveres que já empreendera.

— Não. Veja isto.

O chefe de gabinete entregou a Ryan uma lista dos convidados que já estavam no térreo, na Sala Leste. Parado no meio do corredor, Jack correu os olhos pela lista. Os nomes nem sempre representavam alguma coisa, mas os países associados a eles, sim. Alguns eram amigos, alguns eram meros conhecidos, e outros... Mesmo sendo um ex-conselheiro de Segurança Nacional, não sabia tudo que precisava sobre eles. Enquanto Jack lia, Cathy levava as crianças até o banheiro... ou, pelo menos, foi o que começou a fazer.

Um agente da segurança presidencial precisou ajudá-los a se localizar. Ryan foi até o seu e ajeitou o cabelo no espelho. Conseguiu penteá-lo sozinho, sem as parafernálias da Sra. Abbot, sob o olhar atento de van Damm. Não estou seguro nem aqui dentro, disse o presidente a si mesmo.

— Quanto tempo isso ainda irá durar, Arnie?

— Não temos como prever, senhor. Ryan virou-se.

— Quando estivermos a sós, meu nome ainda é Jack, lembra? Fui nomeado, não canonizado.

— Certo, Jack.

— As crianças também?

 

— Isso seria um toque agradável... Jack, até aqui você tem se saído muito bem.

— Meu redator de discursos está muito puto comigo? — perguntou, ajustando sua gravata e saindo do banheiro.

— Os seus instintos não foram ruins, mas da próxima vez podemos preparar um discurso para isso.

Ryan pensou nisso, devolvendo a lista para van Damm.

— Sabe, só porque sou presidente isso não quer dizer que deixei de ser uma pessoa.

— Jack, procure se acostumar, tá? Você não pode mais ser apenas uma pessoa . Você já teve alguns dias para se acostumar com a ideia. Quando descer e encontrar aqueles homens e mulheres lá embaixo, você será os Estados Unidos da América, não apenas uma pessoa. Isso vale para você, vale para a sua esposa e para os seus filhos. — Por esta revelação, o chefe de gabinete recebeu um olhar venenoso que pode ter durado um ou dois, minutos. Arnie ignorou. Foi apenas pessoal, não era negócios. — Pronto, presidente?

Jack assentiu, perguntando-se se Arnie tinha razão ou não, e se perguntando por que a observação o irritara tanto. E então se perguntou novamente o quanto isso era verdade. Nunca dava para saber com Arnie. Ele era e continuaria sendo professor, e como é o caso com os professores mais habilidosos, ele ocasionalmente diria mentiras como se fossem exemplos duros de uma verdade profunda.

Don Russell apareceu no corredor, de mãos dadas com Katie, que estava usando um laço vermelho no cabelo. A menina soltou-se e correu até a mãe.

— Veja só o que o tio Don fez!

Pelo menos um membro da segurança presidencial já fazia parte da família.

— Por que não leva todos eles ao banheiro agora, Sra. Ryan? Não há banheiros no salão Oval.

— Nenhum?

Russell balançou a cabeça.

— Não, madame. Esqueceram disso ao construir o prédio.

Caroline Ryan tomou as duas crianças menores pelas mãos e se afastou com elas para realizar seu dever maternal. Alguns minutos depois, estava de volta.

— Quer que eu desça com ela para a senhora, madame? — perguntou Russell com um sorriso de vovô. — As escadas podem ser um pouco traiçoeiras para quem usa salto alto a carregarei até lá embaixo.

— Claro.

As pessoas começaram a se dirigir até a escadaria, e Andréa Price prendeu seu microfone na lapela.

— ESPADACHIM e grupo estão descendo da residência até o Pavimento Estatal.

 

— Entendido — respondeu outro agente, lá embaixo.

Puderam ouvir o ruído mesmo antes de dar a última volta nos degraus de mármore. Russell desceu Katie Ryan, colocando-a ao lado da mãe. Os agentes sumiram, tornando-se estranhamente invisíveis enquanto os Ryan, a Primeira Família, adentraram a Sala.

— Senhoras e senhores — anunciou um membro do corpo de empregados da Casa Branca, — o presidente dos Estados Unidos, Dr. Ryan, e família.

Cabeças viraram-se. Houve uma breve onda de aplausos que cessou rapidamente, mas, os olhares prosseguiram. Eles parecem amigáveis, pensou Jack, sabendo que nem todos eram. Ele e Cathy moveram-se um pouco para a esquerda, da fila de cumprimentos foi formada.

Em sua maioria, vieram um a um, embora alguns dos chefes de estado visitantes tivessem trazido suas mulheres. Uma oficial de cerimonial sussurrou o nome de cada um deles no ouvido de Ryan, fazendo-o se perguntar como ela conseguia identificar todas essas pessoas apenas pousando os olhos nelas. A procissão não era tão organizada quanto parecia. Os embaixadores representando os países cujos dirigentes haviam optado por não fazer a viagem, mantiveram-se onde estavam, mas até mesmo eles, parados com pequenos grupos de associados e bebericando suas Perriers-com-um-toque-a-mais, não esconderam sua curiosidade profissional, checando o novo presidentes a forma como cumprimentava os homens e mulheres que iam até ele.

— O primeiro-ministro da Bélgica, M. Arnaud — sussurrou a oficial de cerimonial. O fotógrafo oficial começou a clicar sua câmera para registrar cada saudação oficial, enquanto as câmeras de TV faziam o mesmo, embora de forma mais silenciosa.

— O seu telegrama foi gracioso, Sr. Primeiro-Ministro, e chegou num momento muito sensível — disse Ryan, perguntando-se se a verdade soava bem, e se Arnaud o lera... bem, ele provavelmente lera, embora dificilmente tivesse sido o autor.

— Achei muito comovente o que o senhor disse às crianças. Tenho certeza que todos aqui tiveram a mesma impressão — disse o primeiro-ministro, apertando a mão de Ryan, testando sua firmeza e fitando profundamente seus olhos. Estava satisfeito com sua retribuição ao cumprimento do presidente, e ainda mais feliz com a reação positiva de Ryan ao telegrama. O chefe do serviço militar de informações belga, que trabalhara com Ryan em diversas conferências da OTAN, informara bem o primeiro-ministro a respeito do novo presidente americano. A Bélgica era uma aliada, e Arnaud sempre concordara com a visão que os americanos tinham dos soviéticos e, agora, dos russos.

Segundo o chefe do serviço de informações, a competência de Ryan como político era ignorada, mas, como analista, seu valor era muito reconhecido.

Arnaud fez sua primeira leitura agora. Era o primeiro da fila graças à sorte, mas também à sua experiência de muitos anos nessas coisas. Em seguida, dirigiu-se à primeira dama.

— Dra. Ryan, já ouvi falar muito a seu respeito. — Beijou a mão de Cathy de uma forma bastante graciosa. Não lhe haviam dito o quanto a nova primeira dama era atraente, e o quanto suas mãos eram delicadas. Bem, ela era uma cirurgia, não é verdade? Nova no jogo e pouco à vontade nele, mas jogando o melhor que podia.

— Obrigada, primeiro-ministro Arnaud — replicou Cathy, informada por seu próprio oficial de cerimonial, que estava logo atrás dela, sobre quem era esse cavalheiro. O beija-mão, pensou, era muito teatral... mas encantador.

— Seus filhos são anjos.

— O senhor é muito gentil em dizer isso.

Então seguiu em frente, sendo substituído pelo presidente do México.

Câmeras flutuavam pela sala, juntamente com quinze repórteres, porque aquele era uma espécie de evento oficial. O piano no lado nordeste da sala tocava alguma coisa clássica — não exatamente o que as rádios classificariam como fácil de ouvir, mas quase.

— E há tempo a senhora conhece o presidente?

A pergunta veio do primeiro-ministro do Quênia, satisfeito em encontrar um almirante negro na sala.

— Há um bom tempo, senhor — replicou Robby Jackson.

— Robby! Perdão, Almirante Jackson — corrigiu-se o príncipe de Gales.

— Comandante! —Jackson apertou calorosamente a mão do príncipe. — Faz um bom tempo, senhor.

— Vocês dois se... ah, Claro! — disse o primeiro-ministro do Quênia. Em seguida, avistou seu colega da Tanzânia e seguiu até ele, deixando os dois sozinhos.

— Como ele está se saindo? Realmente, quero dizer... — perguntou o príncipe de Gales.

A pergunta entristeceu um pouco Jackson. Amigo ou não, esse homem estava ali a trabalho, Robby sabia que ele fora enviado como fruto de uma decisão política, e que, ao retornar à embaixada de Sua Majestade, ditaria um relatório de contato. Por outro lado, a pergunta merecia uma resposta. Os três tinham servido juntos brevemente, durante uma certa noite quente de verão.

— Tivemos uma reunião curta com os chefes interinos há alguns dias.

Amanhã haverá uma sessão funcional. Jack vai se sair bem.

Jackson procurou dizer isso com o máximo de convicção. Jack agora era uma autoridade nacional de comando, e a lealdade de Jackson a ele era uma questão de lei e ordem, não apenas de humanidade.

E a sua esposa? — perguntou o príncipe, olhando para onde Sissy Jackson estava conversando com Sally Ryan.

— Ainda suplente na Sinfônica Nacional.

— Quem é o principal?

 

— Miklos Dimitri. Tem mãos maiores — explicou Jackson. Ele decidiu que não muito político fazer ao príncipe perguntas sobre sua família.

Vocês se saíram bem no Pacífico.

Sim, bem, felizmente, e não tivemos de matar muita gente. — Jackson fitou os olhos do quase amigo. — Isso já perdeu a graça, concorda?

Ele pode dar conta do trabalho, Robby. Você sabe disso melhor do que eu.

Comandante, ele precisa dar conta do trabalho — respondeu Jackson, olhando para o presidente, e lembrando o quanto Jack detestava ocasiões formais. Olhando as pessoas na fila, era impossível evitar pensar no passado. — Imagine, majestade, que ele já foi professor de história para alunos de segundo grau — observou o almirante com um sussurro.

Para Cathy Ryan, aquilo tudo era principalmente um exercício em proteger sua mão.

Mais incrível que pudesse parecer, ela conhecia, melhor que o marido, os protocolos de uma ocasião formal. Como uma das médicas principais do Wilmer Ophtalmological do Johns Hopkins Hospital, precisara lidar com diversas campanhas de levantamentos de fundos nos últimos anos — essencialmente uma versão classuda da mendicância, e seu marido, a propósito, não comparecera à maioria delas. Assim, aqui estava ela novamente, encontrando pessoas a quem não conhecia e de quem jamais iria gostar, só que, desta vez, nenhuma delas apoiaria seus programas de pesquisa.

— A primeira-ministra da índia — sussurrou seu oficial de cerimonial.

— Olá — disse a primeira-dama com um sorriso. Abençoadamente, o aperto de mão da ministra era fraco.

— A senhora deve estar muito orgulhosa de seu marido.

— Sempre tive orgulho de Jack.

As duas eram aproximadamente da mesma altura. A primeira-ministra tinha pele morena e, Cathy percebeu, estreitava os olhos por trás dos óculos.

Ela provavelmente precisava consultar o oculista, e sua receita vencida devia causar-lhe dores de cabeça. Estranho. Há muitos bons médicos na índia. Nem todos vêm para a América.

— E seus filhos são lindos! — acrescentou.

— Gentileza sua dizer isso.

Cathy abriu o sorriso automático com o qual se reage a observações como comentários sobre o clima. Ao fitar mais demoradamente os olhos da mulher, encontrou algo de que não gostou. Ela acha que é melhor do que eu. Mas por quê? Porque era uma estadista e Caroline Ryan uma mera cirurgiã? Seria diferente se tivesse escolhido ser advogada? Não, provavelmente não, respondeu sua mente, correndo como fazia quando surgia alguma complicação durante uma cirurgia. Não, não era isso. Cathy lembrava de uma noite, aqui mesmo na Sala Leste, quando se encontrara com Elizabeth Elliot. Ela lera a mesma reação em Elizabeth: Sou melhor do que você pelo que faço e por quem sou. A Cirurgiã — esse era seu nome de código para o Serviço Secreto e Cathy gostava dele — fitou mais profundamente os olhos escuros da oriental. Havia mais algum sentimento oculto neles. Cathy soltou a mão da primeira-ministra, que deu lugar ao figurão seguinte.

A primeira-ministra saiu da fila e caminhou até um garçom, de quem aceitou um copo de suco. Teria sido óbvio demais fazer o que ela realmente queria. Isso ficaria para o dia seguinte, em Nova York. Por enquanto ela olhou para um de seus colegas primeiros-ministros — o representante da República Popular da China. Levantou seu copo mais ou menos um centímetro e meneou a cabeça sem sorrir. Um sorriso seria desnecessário. Seus olhos transmitiram a mensagem essencial.

— É verdade que o chamam de Espadachim? — perguntou, com uma piscadela, o príncipe Ali.

— Sim. E é por causa do que você me deu — disse-lhe Jack. — Obrigado por ter vindo.

— Meu amigo, há um elo entre nós dois.

O príncipe Ali não era realmente um chefe de Estado, mas com a presente doença de seu soberano estava assumindo cada vez mais os deveres do reino.

Estava agora encarregado das relações estrangeiras e do serviço nacional de informações. Para o primeiro cargo, era instruído pelos ingleses; para o segundo, pelo Mossad, o serviço secreto israelense, numa das contradições mais irônicas e menos conhecidas de uma parte do mundo conhecida por seus non sequiturs. No todo, Ryan estava satisfeito com isso. Embora tivesse muito em seu prato, Ali era capaz.

— Você ainda não conhece Cathy, não é?

O príncipe voltou-se para a primeira-dama.

— Não, mas conheço um colega seu, o Dr. Katz. Ele foi o instrutor de meu oculista. O seu marido é mesmo um homem de sorte, Dra. Ryan.

E os árabes eram tidos como frios, mal-humorados e desrespeitosos para com as mulheres?, perguntou-se Cathy. Esse aí não. O príncipe Ali segurou gentilmente a mão da primeira-dama.

— Ah, sim, você deve ter conhecido Bernie quando ele esteve em seu país, em 1994 disse Cathy.

Wilmer ajudara a estabelecer o instituto de olhos em Riad, e ficara lá durante cinco meses para instruir alguns médicos.

— Ele operou um primo meu que sofreu um acidente de avião. Ele já está voando de novo. E aquelas crianças ali, são suas?

— Sim, alteza — disse Cathy. Esse aí ia para seu arquivo pessoal como um bom sujeito.

— Vocês se importam se eu falar com elas?

— Claro que não.

— Obrigado — disse o príncipe, caminhando até as crianças.

 

Caroline Ryan, pensou, fazendo suas próprias notas mentais. Muito inteligente, muito perceptiva. Orgulhosa. Será de grande ajuda para seu marido se ele tiver a sabedoria de consultá-la. É uma lástima, pensou, que sua própria cultura utilizasse as mulheres de forma tão ineficaz — mas ele ainda não era rei, talvez jamais viesse a sê-lo, e mesmo se chegasse ao trono, encontraria limites para as mudanças que poderia fazer sob circunstâncias ideais. Sua nação tinha ainda um longo caminho pela frente, embora muitos esquecem o quanto o reino evoluíra em apenas duas gerações. Mesmo assim, havia um elo entre ele e Ryan, e consequentemente, entre os EUA e o reino. Mesmo antes de chegar aos filhos dos Ryan, o príncipe descobriu algo sobre eles. As crianças estavam ligeiramente acabrunhadas com o evento. A filha menor era quem estava aproveitando melhor a festa, bebericando um refrigerante sob o olhar atento de um agente do Serviço Secreto, enquanto algumas esposas de diplomatas tentavam falar com ela. A menina estava acostumada a ser o centro de atenções, como frequentemente acontece com os pequenos. O filho era o mais desorientado, mas isso era normal para um garoto de sua idade, muito mais uma criança e ainda não um homem. A mais velha — Olivia, segundo os relatórios que recebera, mas Sally para o pai — estava se saindo bem, embora estivesse na mais delicada das idades. O que surpreendeu o príncipe Ali foi que eles não estavam acostumados com tudo aquilo. Seus pais haviam-nos protegido da vida pública de Ryan. Mimados como indubitavelmente eram em outros aspectos, tinham a aparência entediada e arrogante da maioria dos jovens. Pode-se descobrir muito sobre um homem e uma mulher examinando seus filhos. Um momento depois, ele se abaixou diante de Katie. No começo, ficou assustada por suas roupas — Ali temera o enregelamento apenas duas horas antes — mas logo abriu um sorriso caloroso e esticou a mão para segurar-lhe a mão, enquanto Don Russell permanecia a um metro de distância como uma mamãe ursa em prontidão. O príncipe aproveitou para olhar para o agente, e os dois trocaram um olhar rápido. Ele também sabia que Cathy Ryan estaria olhando.

Havia maneira melhor de fazer amigos do que demonstrando solicitude para com seus filhos? Mas era mais que isso, e em seu relatório por escrito aos seus ministros, ele os alertaria para não julgar Ryan por seu discurso funerário desajeitado. E acrescentaria que, embora não fosse o tipo usual de líder de um país, isso não significava que não fosse apto para o cargo.

Contudo, muitas pessoas discordariam dele.

E várias estavam naquela sala.

 

A irmã Jean Baptiste fizera o máximo para ignorar o calor, trabalhando do nascer ao pôr do sol, tentando negar o desconforto que logo cresceu para uma dor genuína, torcendo para que desaparecesse, como acontecia com as pequenas mazelas... sempre. Ela contraíra malária virtualmente em sua primeira semana nesse país, e essa doença jamais a abandonara. No começo achou que era isso, mas não era. A febre que ela desprezara como o resultado de um dia quente no Congo também não era isso. Ficou surpresa em perceber que estava com medo.

Pois, por mais que houvesse tratado e consolado outros, jamais entendera de fato o medo que eles sentiam. Ela sabia que eles tinham medo e compreendia o fato de que o medo existia, mas sua reação a ele era agir com gentileza e orar.

Agora, pela primeira vez, estava começando a compreender o medo. Porque ela achava que sabia a causa do que estava sentindo. Já vira isso antes. Não com muita frequência. A maioria não chegara tão longe. Mas Benedict Mkusa chegara, embora isso não pudesse ser chamado de uma vitória. Hoje de manhã, depois da missa, a irmã Maria Magdalena dissera-lhe que Mkusa morreria até o fim do dia. Há apenas três dias ela teria suspirado de tristeza, mas se consolado com o pensamento de que haveria outro anjo no céu. Não desta vez. Agora ela temia que fosse haver dois. A irmã Mane Baptiste apoiou-se no vão da porta.

Que fizera de errado? Era uma enfermeira cuidadosa. Ela não cometia erros.

Bem.

Precisava sair da ala. Desceu a escada externa e caminhou até o prédio seguinte, indo direto até o laboratório. O Dr. Moudi estava, como sempre, à sua bancada de trabalho, concentrado como de hábito, e não a ouviu entrar. Quando ele se virou, esfregando os olhos depois de vinte minutos no microscópio, ficou surpreso em ver aquela santa mulher com a manga enrolada, um tira de borracha enrolada no antebraço e uma agulha na veia. Ela estava em seu terceiro tubo de ensaio, e, descartando-o, pegou um quarto.

— Qual é o problema, irmã?

— Doutor, acho que essas amostras devem ser testadas imediatamente. Por favor, coloque um par novo de luvas.

Moudi caminhou até a freira, mantendo-se a um metro de distância enquanto ela retirava a agulha do braço. Ele olhou para o rosto da freira e, sim — como as mulheres de Qom, sua cidade natal, ela se vestia de uma forma muito casta e adequada. Havia muito o que admirar nessas freiras: eram alegres, tenazes e muito devotas ao serviço de seu falso deus — isso não era estritamente verdadeiro. Elas eram Mulheres do Livro Sagrado, respeitadas pelo Profeta, mas o ramo xiita do islamismo respeitava um pouco menos essas pessoas do que... não, ele deixaria esses pensamentos para outro momento. Ele podia ver em seus olhos, ainda mais claramente que seus sentidos treinados começavam a discernir seus sintomas, que ela já sabia.

— Por favor, sente-se, irmã.

— Não... eu devo...

— Irmã — disse o médico com mais insistência. — Você agora é uma paciente. Fará o que eu mandar, certo?

— Doutor, eu...

 

Antes de falar, o médico suavizou a voz. Não havia motivo em ser rude, essa mulher decerto não merecia tal tratamento diante de Deus.

— Irmã, em nome de todo o cuidado e a devoção que demonstrou para com outras pessoas neste hospital, por favor, permita que este humilde visitante a trate da mesma maneira.

Jean Baptiste obedeceu. O Dr. Moudi pegou um novo par de luvas de látex.

Em seguida, checou o pulso da mulher, 88, sua pressão sanguínea, 149, e tomou sua temperatura, 39 — todos esses números eram altos, os dois primeiros devido ao terceiro, e a causa do que ela achava que era o motivo de seu mal-estar. Ele poderia ser causado por um sem-número de mazelas, do trivial ao fatal, mas ela cuidara do pequeno Mkusa, aquela pobre criança estava morrendo. O médico deixou-a lá, pegando cuidadosamente os tubos de ensaio e levando-os até sua bancada de trabalho.

Moudi quisera tornar-se cirurgião. Caçula de quatro irmãos, todos sobrinhos do In ler de seu país, ele esperara impacientemente crescer, observando seus irmãos mais velhos marcharem para a guerra contra o Iraque.

Dois deles morreram e o terceiro retornou aleijado, para depois morrer por suas próprias mãos desesperadas. Quanto a Moudi, ele quis tornar-se um cirurgião, para melhor salvar as vidas dos guerreiros de Alá, de modo que pudessem lutar outro dia em nome de sua Causa Sagrada. Esse desejo mudara e, em vez disso, ele aprendera sobre doenças infecciosas, porque havia mais de uma forma de lutar pela Causa, e depois de anos de paciência, o seu destino finalmente se revelava.

Minutos depois, caminhou para a sala de isolamento. Moudi sabia que ali havia uma aura de morte. Talvez a imagem diante dele fosse um produto da imaginação, mas claro que não era. Assim que a irmã trouxera-lhe as amostras de sangue, ele as dividira em duas, enviando um tubo de ensaio cuidadosamente empacotado por via aérea para o Centro de Controle de Doenças em Atlanta, Geórgia, EUA, a meca da análise de agentes perigosos. O outro tubo manteve sob refrigeração para aguardar desenvolvimentos. O CDC foi eficiente, como sempre. O telex chegara horas mais cedo: a identificação de que se tratava do Ebola Zaire foi seguida por um sem-número de avisos e instruções inteiramente desnecessários. Assim como o diagnóstico. Poucas coisas matavam como isto, e nada tão depressa.

Era como se Benedict Mkusa tivesse sido amaldiçoado pelo próprio Alá, algo que Moudi sabia não ser verdade; Alá era um Deus piedoso, que não afligia os jovens e inocentes. Dizer estava escrito seria mais preciso, mas dificilmente mais confortador para o paciente e seus pais. Eles ficaram sentados ao lado da cama do garoto, observando seu mundo morrer diante de seus olhos.

O menino estava sofrendo dores — uma agonia horrível, na verdade. Partes de seu corpo já estavam mortas e apodrecendo, enquanto seu coração ainda teimava em bombear sangue e raciocínio para seu cérebro. A única outra coisa que poderia fazer isso a um corpo humano seria uma exposição maciça a radiação iônica. Os efeitos eram semelhantes. Os órgãos internos — um a um no começo, depois aos pares, aos grupos, e, finalmente, todos ao mesmo tempo — tornavam-se necróticos. O menino estava agora fraco demais para vomitar, mas sangue vazava da outra extremidade de sua via gastrointestinal. Apenas os olhos pareciam próximos à normalidade, embora também houvesse sangue neles. Olhos jovens e escuros, tristes e inocentes, alheios ao fato de que a vida que começara tão recentemente estava chegando ao fim, olhando para seus pais na esperança de que eles consertassem tudo, como sempre haviam feito em seus oito anos. A sala recendia a sangue, suor e outros fluidos corporais, e o olhar no rosto do menino tornou-se mais distante. Mesmo imóvel na cama, ele parecia estar sendo arrastado por uma correnteza. O Dr. Moudi fechou os olhos e sussurrou uma oração pelo menino, que era apenas um menino, afinal de contas, e embora não fosse muçulmano, era um rapaz religioso, e uma pessoa do Livro a quem injustamente fora negado acesso às palavras do Profeta. Acima de tudo, Alá era misericordioso, e decerto Ele teria piedade deste menino, conduzindo-o em segurança ao Paraíso. E era melhor que isso fosse rápido.

Se uma aura pudesse ser negra, então era assim a desse menino. A morte envolveu o paciente um centímetro por vez. As respirações dolorosas ficaram cada vez mais fracas, os olhos, voltados para os pais, pararam de mexer, e os tremores agonizantes dos membros cessaram gradativamente do centro para as extremidades, até que apenas os dedos moviam-se. E esse movimento ficou cada vez mais suave, até parar completamente.

A irmã Maria Magdalena, parada atrás e entre a mãe e o pai, pousou uma mão no ombro de cada um. O Dr. Moudi aproximou-se e colocou o estetoscópio no peito do menino. Havia algum ruído, murmúrios suaves enquanto a necrose devassava o tecido — um processo abominável mas dinâmico —, mas do coração não se ouvia nada. O médico moveu o velho instrumento para ter certeza e então olhou para cima.

— Ele se foi. Sinto muito.

O doutor podia ter acrescentado que — para o Ebola — essa fora uma morte misericordiosa, ou pelo menos era o que se podia concluir pelos livros e artigos.

Esta era sua primeira experiência direta com o vírus, e já fora assustadora.

Os pais aceitaram bem. Sabiam havia mais de um dia, tempo suficiente para aceitar, pouco tempo para terem superado o choque. Eles saíram para rezar, o que era inteiramente apropriado.

O corpo de Benedict Mkusa seria cremado, e o vírus com ele. O telex de Atlanta fora bem claro a respeito disso. O que era uma pena.

 

Ryan flexionou a mão quando a fila finalmente acabou. Virou-se para ver sua esposa massageando a dela e suspirou.

— Quer beber alguma coisa? — perguntou Jack.

— Algo bem suave. Tenho duas cirurgias amanhã de manhã. — E eles ainda não haviam pensado numa forma eficaz de levar Cathy para o trabalho. — Quantas dessas teremos de fazer?

— Não sei — admitiu o presidente. Sabia que sua agenda seria programada com um mês de antecedência, mas sabia também que ela seria alterada frequentemente sem o seu consentimento. A cada dia que passava, ficava mais e mais surpreso com o fato de várias pessoas batalharem por este emprego — eram tantos os deveres extraordinários que o trabalho principal mal podia ser realizado. Mas os deveres extraordinários, eram — em certo sentido — o trabalho.

Então, a mando de um servente que ouvira o que Cathy dissera, outro apareceu com bebidas suaves para o presidente e a primeira dama. Os guardanapos ostentavam um monograma com a imagem da Casa Branca, e sob ele as palavras A CASA DO PRESIDENTE. Marido e mulher notaram isso ao mesmo tempo e seus olhos se encontraram.

— Lembra da primeira vez que levamos Sally à Disney World? — indagou Cathy.

Jack sabia o que sua esposa queria dizer. Logo depois do terceiro aniversário de sua filha, não muito antes de sua viagem à Inglaterra... e o começo de uma jornada que, interruptamente, jamais terminaria. Sally fixara-se no castelo no centro do Reino Mágico, sempre procurando vê-lo a despeito de onde estivessem na hora. Ela o chamava de casa do Mickey. Bem, eles tinham seu próprio castelo agora. Pelo menos durante algum tempo. Mas o aluguel era muito caro. Cathy caminhou até onde Robby e Sissy Jackson conversavam com o príncipe de Gales. Jack cumprimentou seu chefe de gabinete.

— Como está a mão? — perguntou Arnie.

— Sem queixas.

— Você tem sorte de não estar em campanha. Muita gente acha que um aperto de mão caloroso precisa esmigalhar seus dedos. — Van Damm bebericou sua Perrier e olhou em volta. A recepção estava correndo bem. Vários chefes de Estado, embaixadores e outras pessoas conversavam animadamente. Ouviam-se algumas risadas em sinal de troca de piadas ou brincadeiras. O clima definitivamente havia mudado.

E então? Em quantos testes passei e em quantos fui reprovado? — perguntou Ryan baixinho.

— Quer uma resposta honesta? É impossível dizer. Todos procuram por alguma coisa diferente. Lembre disso. — E alguns deles, na verdade, não davam a mínima, tendo vindo apenas por questões de política interna de seus países.

— Acho que cheguei a essa conclusão sozinho, Arnie. Agora devo circular, certo? Vá até a Índia — aconselhou van Damm. — Adler acha que é importante.

— Entendido.

 

Pelo menos ele lembrava da aparência da primeira-ministra. Muitos rostos eram agora borrões em sua mente, exatamente como acontece em qualquer tipo de festa longa. Isso fazia Ryan sentir-se uma fraude. Os políticos supostamente são dotados de memória fotográfica para nomes e rostos. Ele não, e se perguntou se havia algum tipo de método de treinamento para adquirir um. Jack entregou seu copo a um servente, limpou as mãos com um dos guardanapos especiais e se dirigiu até a índia. Mas a Rússia apareceu em seu caminho.

— Embaixador — disse Jack. Valery Bogdanovich Lermonsov estivera na fila de cumprimentos, mas os dois não haviam tido tempo para conversar.

Apertaram novamente as mãos. Lermonsov era diplomata de carreira, popular na comunidade local de seus pares. Havia anos corriam histórias de que ele fora da KGB, mas Ryan dificilmente poderia condená-lo por isso.

— Meu governo quer saber se o senhor aceitaria um convite para uma visita a Moscou.

— Não faço nenhuma objeção a isso, mas estivemos lá há apenas alguns meses e meu tempo está muito restrito no momento.

— Não duvido, mas meu governo quer discutir várias questões de interesse mútuo. — Essa frase fez Ryan virar-se totalmente para fitar o russo.

— Mesmo?

— Eu temia que sua agenda fosse ser um problema, presidente. Será que poderia então receber um emissário para uma discussão discreta sobre algumas questões?

Jack sabia que esse emissário só poderia ser uma pessoa.

— Sergey Nikolayevitch?

— O senhor o receberia? — persistiu o embaixador.

Ryan sentiu um breve momento, senão de pânico, ao menos de inquietação.

Sergey Golovko era o presidente da RVS — a ressuscitada e reduzida, mas ainda formidável, KGB. Ele também era uma das poucas pessoas no governo russo que tinham cérebro e também a confiança do presidente russo, Eduard Petravich Grushavoy, que era um dos poucos homens no mundo com mais problemas do que Ryan. Além disso, Grushavoy estava mantendo Golovko tão perto quanto Stalin mantivera Beria, porque precisava de um conselheiro com cérebro, inteligência e vigor. A comparação não era exatamente justa, mas Golovko não viera entregar uma receita de borche. Questões de interesse mútuo geralmente significava coisa séria. Procurar diretamente o presidente em vez de conduzir o pedido através do Departamento de Estado era outro indicador disso, e a persistência de Lermonsov fazia as coisas parecerem ainda mais sérias.

— Sergey é um velho amigo — disse Jack com um sorriso amável. Desde a época em que ele apontou uma pistola para a minha cara. — Ele é sempre bem-vindo à minha casa. Pode marcar com Arnie?

— Farei isso, presidente.

Ryan assentiu e continuou andando. O príncipe de Gales estava entretendo a primeira-ministra indiana, aguardando a chegada de Ryan.

— Primeira-ministra, alteza — disse Ryan meneando a cabeça.

— Achamos importante que algumas questões sejam esclarecidas.

— E quais seriam elas? — perguntou o presidente. Ryan sentiu um arrepio e soube que algum problema se aproximava.

— O incidente infeliz no oceano Índico — disse a primeira-ministra. — Foi um mal -entendido.

— Eu... eu estou feliz em ouvir isso...

 

E mesmo o exército tem seus dias de folga, e o funeral de um presidente era um desses dias. Tanto a Força Azul quanto o OpFor haviam tirado um dia de descanso. Isso incluía seus comandantes. A casa do general Diggs ficava num cume de frente para um vale que, mesmo singularmente sombrio, oferecia uma vista magnífica. Devido aos ventos que sopravam do México, o deserto estava quente, o que permitiu um churrasco no quintal.

— Conhece o presidente Ryan? — perguntou Bondarenko, bebendo uma cerveja um pouco mais cedo do que o habitual.

Diggs balançou a cabeça enquanto virava os hambúrgueres e pegava seu molho especial.

— Não. Evidentemente, ele teve uma participação na mobilização do 10°

Regimento Blindado para Israel, mas não nos conhecemos. Mas conheço Robby Jackson. Um almirante agora. Robby fala muito bem dele.

— Este é um costume americano, não é mesmo? — O russo gesticulou na direção churrasqueira.

Diggs levantou os olhos.

— Aprendi com meu pai. Pode me passar a cerveja, Gennady? — O russo deu a cerveja ao seu anfitrião. — Odeio perder dias de treino, mas... — Mas ele gostava de um dia de folga, como todo mundo.

— Você mora num lugar extraordinário, Marion — disse Bondarenko, virando-se para olhar o vale. A área imediata da base parecia tipicamente americana, com uma malha de estradas e estruturas, mas um pouco além era completamente diferente quase nada florescia ali, apenas o que os americanos chamavam de arbustos e cactos, e eles pareciam a vegetação de outro planeta. O terreno aqui era marrom, mesmo as montanhas pareciam sem vida. Ainda assim, havia alguma coisa belíssima no deserto... e que o fazia lembrar de um cume de montanha no Tadjiquistão. Talvez fosse isso.

— E então, como foi exatamente que conseguiu essas marcas, general? — perguntou Diggs, que não sabia toda a história. Seu convidado deu de ombros.

— A guerrilha mujaheddin decidiu visitar meu país, que na época abrigava uma instalação secreta de pesquisas, mas que hoje está fechada... Você sabe, hoje somos um país independente.

Diggs assentiu.

— Sou um soldado, não um físico atômico. Pode me poupar dos dados secretos.

— Defendi um prédio onde moravam os cientistas e suas famílias. Eu tinha um batalhão de guardas da KGB. A guerrilha nos atacou com força total sob a cobertura da noite e de uma tempestade de neve. Foi muito empolgante, durante uma ou duas horas — admitiu Gennady.

Diggs vira algumas das cicatrizes — no dia anterior, surpreendera seu visitante no chuveiro.

— Eram bons?

— Os afegãos? — resmungou Bondarenko. — Você não gostaria de ser capturado por eles. São tremendamente destemidos, mas isso às vezes funciona contra eles. É muito fácil definir quais bandos atuam sob liderança competente e quais não. O líder daquele bando era bom. Eles devastaram o outro lado da usina e se aproximaram de nós pela lateral. — Um encolher de ombros. — Tivemos uma tremenda sorte. Acabamos lutando no térreo do prédio. O comandante inimigo liderou seus homens com bravura... mas as minhas decisões se revelaram melhores.

— Herói da União Soviética — comentou Diggs, checando novamente as carnes de hambúrguer.

O coronel Hamm ouvia tudo em silêncio. Era assim que os membros dessa comunidade avaliavam uns aos outros, não tanto pelo que eles haviam feito, mas principalmente pela forma como contavam a história.

O russo sorriu.

— Marion, não tive escolha. Não havia para onde fugir, e eu sabia que eles capturavam oficiais russos. Assim, deram-me uma medalha e uma promoção, e então meu país... como eu diria? Evaporou?

Havia sido mais que isso, claro. Bondarenko estivera em Moscou durante o golpe, e, pela primeira vez na vida, vira-se diante de uma decisão moral. Sua escolha fora a certa, atraindo a atenção de várias pessoas que agora estavam posicionadas no alto escalão do governo de um país novo e menor.

— Que tal renasceu ? — sugeriu o coronel Hamm. — Hoje podemos ser amigos.

— Da. Você fala tão bem quanto comanda, coronel.

— Obrigado, senhor. O que faço é principalmente ficar sentado enquanto o regimento se comanda a si próprio. — Essa era uma mentira que qualquer oficial realmente bom entenderia como uma categoria especial da verdade.

— Usando a doutrina tática sovi... russa! — Isso subitamente pareceu insultuoso ao general russo.

— Funciona, não é verdade? — disse Hamm, e em seguida terminou sua cerveja. Iria funcionar, prometeu Bondarenko a si mesmo. Funcionaria para o seu exército como funcionara para o americano, assim que ele voltasse e obtivesse o apoio político necessário para reconstruir o Exército russo, tornando-o algo que ele nunca foi. Mesmo em seu melhor momento, ao fazer os alemães recuarem para Berlim, o Exército Vermelho fora um instrumento bruto e pesado, que se apoiava principalmente na superioridade numérica. Ele também sabia o papel que a sorte havia desempenhado. Seu antigo país fabricara o melhor tanque do mundo, o T-34, abençoado com um motor a diesel planejado na França para impulsionar dirigíveis, um sistema de suspensão criado por um americano chamado J. Walter Christie, e um punhado de inovações brilhantes de design feitas por jovens engenheiros russos.

Aquele fora um dos poucos casos na história da República Socialista Soviética em que seus compatriotas conseguiram montar um produto de nível internacional — e, nesse caso, o produto certo na hora certa sem o qual seu país decerto teria morrido. Mas seu país não iria depender mais de sorte e superioridade numérica. No começo da década de 1980 os americanos alcançaram o modelo correto: um Exército pequeno e profissional, selecionado cuidadosamente, treinado com arte e equipado com luxo. O OpFor do coronel Hamm, da 11ª Divisão Blindada, não parecia com nada que ele conhecia.

Graças ao relatório que recebera antes da viagem, Bondarenko soubera o que esperar, mas isso não significava que havia acreditado. É preciso ver para crer.

No terreno correto, aquele regimento poderia, sozinho, enfrentar e destruir uma divisão numa questão de horas. A Força Azul não devia ser classificada como incompetente, embora seu comandante tivesse declinado da honra de se hospedar aqui para aprender como treinar os líderes de suas subunidades, que haviam sido massacradas.

Havia muito o que aprender aqui, mas a lição mais importante de todas era como os americanos encaravam suas lições. Altos oficiais eram humilhados regularmente, tomando atitude de humildade nas batalhas forjadas e, depois, em revisões do conflito, durante as reuniões com os oficiais de observação analisavam tudo que ocorrera, lendo suas anotações em folhas multicoloridos, como se fossem patologistas.

— Vou lhes dizer uma coisa — comentou Bondarenko depois de alguns segundos reflexão. — No meu exército, as pessoas acabariam saindo no braço durante...

— Mas isso quase aconteceu conosco no começo — assegurou-lhe Diggs. — quando este lugar foi inaugurado, os comandantes ficavam arrasados por perder batalhas, até que todos respiraram fundo e entenderam que o propósito desta instalação era dificultar as coisas para todo mundo. Pete Taylor foi o homem que realmente criou o Centro Nacional de Treinamento. Os oficiais comandantes tiveram de aprender diplomacia, e o pessoal da Força Azul teve de aprender que estava aqui para aprender, mas vou lhe dizer uma coisa, Gennady, não há outro exército no mundo que humilhe tanto os comandantes como o nosso.

— Isso é um fato, senhor. Outro dia estava falando com Sean Connolly... o comandante da 10ª Divisão Blindada no Deserto de Neguev — explicou Hamm ao russo. — estávamos conversando sobre como israelitas ainda não se acostumaram a isso. Eles ainda ficam putos com o que ouvem dos comandantes.

Estamos instalando mais câmeras lá! — disse Diggs, rindo enquanto punha algumas carnes de hambúrguer num prato. — E às vezes os israelenses não acreditam no que aconteceu mesmo depois que lhes mostramos as fitas.

— Mas ainda soam cheios de não-me-toques — concordou Hamm. — Ei, vim servir como comandante de esquadrão e me ferrei mais de uma vez.

— Gennady, depois da Guerra do Golfo, a 3ª Divisão Blindada veio para cá fazer uma lotação regular. Agora, se você lembra, eles lideraram a 24ª Divisão Blindada, de Hany McCaffrey...

— Por 354 quilômetros durante quatro dias, botando pra quebrar — confirmou Hamm. Bondarenko assentiu. Ele estudara essa campanha detalhadamente.

— Alguns meses depois, vieram para cá e se deram mal. Pegou o espírito da coisa, general? O treinamento aqui é mais duro que o combate de verdade. No mundo inteiro não há uma unidade tão inteligente e ligeira quanto o Regimento da Divisão Blindada Corcel Negro do ai...

— Com a exceção dos seus antigos Soldados-Búfalo, general — acrescentou Hamm. Diggs sorriu com a referência ao 10°. De qualquer modo, estava acostumado com as interrupções de Hamm.

— É verdade, Al. De qualquer modo, se você puder pelo menos encarar com dignidade o OpFor, enfrentará qualquer exército no mundo, no outro lado das chances de três-para-um, e chutar as bundas deles até o próximo fuso horário.

Bondarenko assentiu com um sorriso. Estava aprendendo rápido. A pequena equipe que viera com ele ainda estava examinando a base, conversando com seus colegas oficiais, e aprendendo, aprendendo, aprendendo.

Estar no outro lado das chances de três-para-um não era uma tradição dos exércitos russos, mas isso poderia mudar em breve. A ameaça ao seu país era a China, e se essa guerra viesse a ser travada, seria num momento de fraqueza contra um exército imenso de voluntários. A única resposta a essa ameaça era duplicar o que os americanos haviam feito. A missão de Bondarenko era alterar toda a política militar de sua nação. Bem, vim aprender como no lugar certo, disse a si mesmo.

 

Deixa de conversa fiada, pensou o presidente por trás de um sorriso compreensivo. Era difícil gostar da índia. Chamavam a si mesmos de a maior democracia do mundo, mas isso não era exatamente verdade. Falavam de princípios orientados para a mente, mas, quando foi adequado, recorreram a vizinhos fortes, desenvolveram armas nucleares e, ao pedir aos EUA que deixassem o oceano Índico — O nome, afinal, é oceano Indico, disse um primeiro-ministro anterior ao embaixador americano — decidiram que a doutrina da Liberdade dos Mares poderia ser aplicada de formas diversas. E, com toda certeza, tinham realizado uma ofensiva no Sri Lanka. Mas agora, depois que essa ofensiva fora anulada, estavam dizendo que ela não fora planejada. Mas não se pode olhar nos olhos de uma chefe de Estado, sorrir, e dizer deixa de conversa fiada.

Assim, isso não foi feito.

Jack escutou pacientemente, bebericando outro copo de Perrier que lhe fora entregue por um ajudante anônimo. A situação no Sri Lanka era complexa e, infelizmente, deixava margem a interpretações dúbias, e a índia aproveitou-se disso. Agora estavam dizendo que não guardavam ressentimentos, que era melhor para os dois lados que o assunto fosse esquecido. A frota indiana estava recuando para suas bases, tendo completado seu treinamento, alguns navios danificados devido à demonstração americana que — como disse a primeira-ministra sem meias-palavras — não fora exatamente uma partida de críquete.

E o que o Sri Lanka pensa de vocês?, Ryan poderia ter perguntado. Não o fez.

— Se pelo menos a senhora e o embaixador Williams tivessem se expressado mais claramente sobre a questão... — observou Ryan em tom triste.

— Essas coisas acontecem — replicou a primeira-ministra. — Francamente, David é um homem agradável, mas temo que nosso clima seja quente demais para um americano de sua idade.

O que foi como sugerir a Ryan que despedisse o homem.

Declarar o embaixador Williams persona non grata era um passo drástico demais. Ryan tentou não mudar sua expressão, mas fracassou. Ele precisava de Scott Adler ao eu lado, mas o secretário de Estado estava em outro lugar no momento.

— Espero que a senhora considere o fato de que, no momento, não me encontro em posição para realizar alterações drásticas no governo. — Foda-se.

— Por favor, não me entenda mal. Eu não estava sugerindo isso. Entendo completamente a situação. Quis apenas ajudar em pelo menos um problema suposto, de modo a facilitar seu trabalho. — Ou dificultando ainda mais.

— Agradeço imensamente, primeira-ministra. Talvez o seu embaixador aqui possa discutir isso com Scott?

— Não esquecerei de falar com ele a esse respeito.

A primeira-ministra apertou a mão de Ryan e se afastou. Jack esperou vários segundos antes de olhar para o príncipe.

 

— Alteza, que nome se dá quando um chefe de Estado mente na sua cara?

— Diplomacia.


9

Uivos Distantes

Volovko estava lendo o relatório inclemente que o embaixador Lermonsov fizera sobre o novo presidente americano. Ryan parecia tenso e inquieto, assustado e estafado . Bem, isso era óbvio. O consenso geral da comunidade diplomática — e também da mídia americana, que estava se esforçando sobremaneira para ser polida — fora de que o discurso de Ryan no funeral do presidente Durling não tinha sido presidencial. Bem, qualquer um que conhecesse Ryan sabia que ele era sentimental, especialmente quando se tratava do bem-estar de crianças. Golovko podia perdoar isso com facilidade; afinal, os russos não eram muito diferentes. Mas Golovko cumprira sua obrigação lendo o discurso oficial; um bom texto, repleto de palavras de apoio para todos os ouvintes. Contudo, Ryan sempre fora o que os americanos chamam de um espírito indomado. Para o russo, isso tornava sua análise ao mesmo tempo fácil e impossível. Ryan era um americano e, da perspectiva de Golovko, os americanos eram, e sempre tinham sido, enlouquecedoramente imprevisíveis.

Ele tivera uma longa vida profissional, primeiro como agente de campo do serviço de informações, depois como um burocrata em rápida ascensão em Moscou, tentando predizer o que a América faria em todas as espécies de situações, e apenas fugindo ao fracasso porque, nos relatórios aos seus superiores, jamais deixava de apresentar três cursos de ação possíveis.

Mas pelo menos Ivan Emmetovich Ryan era previsivelmente imprevisível, e Golovko gostava de pensar nele como um amigo — isso talvez fosse um pouco de exagero, mas os dois haviam participado do mesmo jogo, na maioria das vezes em lados opostos do campo, e quase sempre com muita habilidade.

Golovko, o profissional mais experiente, Ryan o amador talentoso, abençoado por um sistema mais tolerante para com espíritos indomados. Havia respeito entre eles.

— No que está pensando agora, Jack? — sussurrou Sergey para si mesmo.

Naquele momento o novo presidente americano estava dormindo, claro, porque Washington estava a oito horas redondas de diferença atrás de Moscou, onde o sol começava a se levantar para um curto dia de inverno.

O embaixador Lermonsov não ficara impressionado com Ryan. Golovko teria de acrescentar seus próprios comentários para que seu governo não desse crédito excessivo a essa avaliação. Ryan fora um inimigo habilidoso demais da URSS para ser menosprezado sob quaisquer circunstâncias. Lermonsov esperara que Ryan se enquadrasse mim molde, e Ivan Emmetovich não era tão facilmente classificável. Não que sua personalidade fosse imensamente complexa; ela apenas era complexa de uma forma diferente. A Rússia não tinha um Ryan — ele não teria sobrevivido no ambiente soviético que ainda permeava a República Russa, especialmente em suas burocracias oficiais. Ryan entediava com facilidade, e seu temperamento inflamável, embora mantido sob controle na maioria das vezes, estava presente. Golovko vislumbrara esse lado de Ryan borbulhar algumas vezes, mas apenas tivera notícia dos poucos momentos nos quais viera à tona. Essas histórias tinham vazado da CIA para pessoas que faziam relatórios para a praça Dzerjinsky. Deus o proteja e guarde como chefe de governo.

Mas isso não era problema de Golovko.

Ele já tinha muitos. Ele não reconquistara inteiramente o controle do serviço de informações — o presidente Grushavoy tinha poucos motivos para confiar na agência que — um dia havia sido a Espada e o Escudo do Partido, e queria alguém em quem pudesse confiar para ficar de olho naquele maldito predador — Golovko, obviamente. A mesmo tempo, Sergey era o principal conselheiro de política externa para o atormentado presidente russo. Os problemas internos da Rússia eram tantos que o presidente mal tinha tempo para avaliar os problemas externos; graças a isso, os conselhos do chefe espião ao seu presidente eram invariavelmente seguidos. O fardo sobre os ombros do ministro da Segurança Nacional — era isso que ele era, com ou sem o título — era pesadíssimo. Grushavoy tinha uma hidra doméstica para controlar — como a besta mitológica, cada vez que uma cabeça era cortada, outra surgia em seu lugar. Golovko precisava enfrentar menos monstros, mas eles não eram menores. E parte dele desejava um retorno à velha KGB. Apenas alguns anos antes, esses problemas teriam sido brincadeira de criança. Bastaria pegar um telefone, dizer algumas palavras e os criminosos eram capturados. Bem, talvez não fosse exatamente assim, mas naquela época as coisas eram mais... pacíficas. Mais previsíveis. Mais ordenadas. E seu país precisava de ordem Contudo, o Segundo Diretório Principal, a polícia secreta, tornara-se um birô independente, tivera seus poderes reduzidos e seu respeito junto ao público — o terror que causara nos não-tão-velhos tempos — evaporara. Seu país jamais possuíra o nível de controle que o Ocidente lhe atribuía, mas agora estava pior.

A República Russa bania a anarquia enquanto seus cidadãos clamavam por alguma coisa chamada democracia a anarquia que levara Lenin ao poder, porque os russos ansiavam por governos fortes, praticamente não tendo conhecido outra coisa, e embora Golovko não quisesse isso — como oficial graduado da KGB, conhecia melhor do que qualquer um o dano que o marxismo-leninismo causara à nação — precisava desesperadamente de um país organizado por trás dele, porque problemas internos atraíam problemas externos. A sim, seu posto oficioso como ministro da Segurança Nacional estava vulnerável a toda espécie de dificuldades. Os seus eram os braços de um corpo ferido, tentando bloquear a investida dos lobos.

No entanto, era pouca a pena que sentia por Ryan, cuja nação estava saudável, apesar do golpe violento que recebera na cabeça. Golovko sabia que muitos estranhariam isso, mas ele pretendia pedir ajuda a Ryan.

China. Os americanos derrotaram o Japão, mas o inimigo verdadeiro não foi o Japão. Ele tinha uma mesa coberta de fotografias que um satélite de reconhecimento transmitira pouco antes. Havia muitas divisões do Exército de Libertação do Povo manobrando no campo. Os regimentos de foguetes nucleares chineses ainda estavam em estado de alerta. Seu próprio país descartara suas armas balísticas — poucos meses antes, apesar da ameaça da China, os imensos empréstimos de desenvolvimento recebidos dos bancos europeus e americanos pareceram valer o risco. Além disso, seu país, como os EUA, ainda tinha bombardeiros e mísseis balísticos que podiam ser armados com ogivas nucleares, de modo que a desvantagem era muito mais teórica que real. Ao menos considerando que os japoneses seguissem as mesmas teorias.

Em todo caso, os chineses estavam mantendo suas forças armadas em estado de prontidão, e as forças russas no Extremo Oriente nunca tinham estado mais fracas. Consolou a si mesmo com o pensamento de que, com o Japão fora do jogo, os chineses não iriam se mover. Provavelmente não iriam se mover, corrigiu a si mesmo. Se os americanos eram difíceis de ser entendidos, os chineses poderiam muito bem ser criaturas de outro planeta. Bastava lembrar que um dia os chineses estiveram separados do mundo. Como a maioria dos russos, Golovko tinha um respeito profundo pela História. Ali estava ele, pensou Sergey, deitado na neve, um cajado numa mão para lutar com o lobo enquanto tentava curar as próprias feridas. Seu corpo ainda estava forte, e o cajado ainda era longo o bastante para manter as mandíbulas afastadas. Mas e se aparecesse outro lobo? Um documento à esquerda das fotos do satélite era o primeiro indício disso, como um uivo distante no horizonte, o tipo que gelava o sangue. Golovko ainda não refletira muito sobre o assunto. Quando se estava deitado no chão, o horizonte poderia parecer surpreendentemente perto.

 

O mais surpreendente era ter demorado tanto. Proteger contra assassinato uma pessoa tão importante é, na melhor das hipóteses, um exercício complexo, ainda mais quando essa pessoa desvia-se de seu rumo para criar inimigos. Uma atitude impiedosa ajudava. A disposição em sequestrar pessoas nas ruas, em fazê-las desaparecer, tinha seu valor. A disposição adicional em tirar do caminho não apenas uma pessoa, mas uma família inteira, era ainda mais eficaz. As autoridades precisavam apenas selecionar, através de seus agentes, a pessoa a ser desaparecida, um infeliz pseudoverbo inventado na Argentina.

Agentes era um termo educado para os informantes, pagos em moeda corrente ou em poder, o que era ainda melhor. Eles reportavam conversas de conteúdo insidioso, a ponto de que uma simples piada sobre o bigode de uma autoridade poderia resultar numa sentença de morte. Em breve — afinal, instituições são instituições —, os informantes tinham cotas a cumprir, e como eram seres humanos, seus relatórios quase sempre refletiam preconceito ou inveja, porque o poder de vida e morte era tão tentador para os pequenos quanto era para os grandes. Cedo ou tarde, um sistema corrupto acabava corrompido, e a lógica do horror alcançava sua conclusão lógica: um coelho frágil, encurralado por uma raposa, não tinha nada a perder e, como também tem dentes, o coelho de vez em quando dá sorte em sua luta com a raposa.

Como apenas o terror não era suficiente, havia também outras medidas passivas. A missão de assassinar um homem importante pode ser dificultada pelo mais simples dos procedimentos, especialmente num Estado déspota.

Algumas fileiras de guardas para limitar a aproximação. Diversos carros idênticos — muitas vezes, mais de vinte — que poderiam estar transportando o alvo, impediam eventuais sequestradores de saber qual o carro seguir. Á vida de um alvo potencial era agitada, mesmo com a conveniência de ter um ou dois duplos para aparecer em público, fazer um discurso e assumir o risco em seu lugar.

Em seguida vinha a seleção dos protetores — como seria possível pescar peixes verdadeiramente confiáveis num mar de ódio? A resposta óbvia era escolher pessoas que fossem parentes do alvo e conferir-lhes um estilo de vida que dependesse absolutamente da sobrevivência do líder, de modo que sua morte significasse muito mais que a vida de um alto funcionário do governo.

Fazer as vidas dos guardas dependerem da vida do protegido era um grande incentivo para a eficiência.

Mas, na verdade, tudo se reduzia a uma só coisa. Um homem era invencível apenas porque as pessoas acreditavam nisso; portanto, a segurança dessa pessoa era, como todos aspectos importantes da vida, um fator psicológico.

Mas a motivação também é um fator psicológico, e o medo jamais foi a emoção mais poderosa. Por toda a História, as pessoas arriscaram suas vidas por amor, patriotismo, princípios e Deus, muito mais do que fugiram por medo.

O coronel arriscara sua vida de tantas maneiras diferentes que mal podia lembrar de todas, e fizera isso apenas para ser notado, apenas para que lhe pedissem para ser uma peça pequena numa máquina grande, e então ascender dentro dela. Levara muito tempo para chegar perto do Bigode. Oito anos, para ser exato. Durante esse período tinha torturado homens, mulheres e crianças por detrás de olhos vazios e impiedosos.

Humilhara filhas diante dos olhos dos pais, mães na frente dos filhos.

 

Cometera crimes que poderiam condenar as almas de uma centena de homens, porque não havia outra escolha. Ingerira bebida alcoólica em quantidades suficientes para chocar um infiel, infringindo uma lei de sua religião. Fizera tudo isso em nome de Deus, rezando por perdão, dizendo desesperadamente a si mesmo que não tinha escolha, que não gostava de nada daquilo, que as vidas que tirava eram necessárias para a concretização de um plano maior, que aquelas pessoas teriam morrido de qualquer modo, e que suas mortes serviam a uma Causa Sagrada. Precisava acreditar nisso para não enlouquecer — em todo caso chegara bem perto, até seu propósito passar muito além do significado de obsessão, de possuir apenas um objetivo na vida: aproximar-se do alvo e se tornar seu homem de confiança, e assim realizar um segundo de trabalho, que seria seguido instantaneamente por sua própria morte.

Ele sabia ter se tornado aquilo que ele e todos ao seu redor eram treinados para ignorar todas as coisas. Em todas as palestras e conversas de bar com seus pares sempre batia na mesma tecla: a missão e os riscos envolvidos. E isso sempre chegava um único assunto. O assassino solitário e dedicado, o homem disposto a privar-se de sua vida como uma ficha de jogo, o homem paciente que aguardava sua chance, esse era o inimigo temido por todo agente de segurança do mundo, bêbado ou sóbrio, no dever ou fora dele, e até mesmo em seus sonhos. E esse tinha sido o motivo para todos aqueles testes requeridos para proteger o Bigode. Para chegar aqui, era preciso ser maldito perante Deus e os homens, porque quando você chegava aqui, via o que realmente era.

Bigode — era assim que chamava seu alvo. Não um homem, mas um traidor de Alá que maculou o Islã sem uma gota de remorso, um criminoso de tamanha magnitude que merecia um quarto particular na Perdição. De longe, o Bigode parecia poderoso e invencível; de perto, não. Seus guarda-costas sabiam a verdade porque sabiam tudo. Viam as dúvidas e temores, as crueldades infligidas aos inocentes. Ele vira o Bigode cometer assassinato por diversão, talvez para verificar se sua pistola Browning estava funcionando bem. Vira-o espreitar através das janelas de uma de suas Mercedes brancas, avistar uma mulher jovem, apontá-la, dar uma ordem, e então usar a jovem indefesa por uma noite. As felizardas retornavam para casa com dinheiro e desonra. As infelizes acabavam boiando no Eufrates com as gargantas cortadas, várias delas mortas pelo próprio Bigode, caso protegessem um pouco bem demais sua honra. Mas, poderoso como era, inteligente e arguto como era, impiedoso como era, o Bigode não era invencível. E agora chegara sua vez de encontrar Alá.

O Bigode emergiu do prédio, seus guarda-costas atrás dele, seu braço direito esticado para saudar uma multidão. As pessoas na praça emitiram os brados de adoração que alimentavam o Bigode como o sol alimenta a flor. E então, a três metros de distância, o coronel puxou a pistola automática de seu coldre de couro, apontou-a e disparou um único tiro diretamente na nuca de seu alvo. As pessoas na frente da multidão viram a bala emergir do olho esquerdo do ditador, e o que se seguiu foi um daqueles momentos em que a Terra inteira parece interromper seu giro e os corações param; mesmo as pessoas que haviam proferido brados de lealdade à vítima, recordariam apenas do silêncio.

O coronel não se deu ao trabalho de disparar outro tiro. Era um atirador experiente que praticava com seus comparsas quase todo dia, e seus olhos arregalados e abertos tinham visto o impacto da bala. Ele não se virou, não perdeu tempo com esforços infrutíferos de defesa pessoal. Não havia motivo para matar os companheiros com quem tomara bebidas alcoólicas e currara crianças. Outros dariam cabo disso em breve. Nem mesmo sorriu, embora fosse muito engraçado o fato de que num momento o Bigode estivera olhando para as pessoas a quem desprezava oferecendo-lhe brados de adoração, e no seguinte estava de frente para Alá, perguntando-se o que havia acontecido. Esse pensamento provavelmente teve dois segundos para se formar antes que o coronel sentisse seu corpo tremer com o impacto da primeira bala. Não houve dor. Estava concentrado demais em seu alvo, agora caído no piso de pedra, com uma poça de sangue já se formando em torno de sua cabeça. Mais balas atingiram-no, e pareceu-lhe estranho o fato de que pudesse senti-las, mas não à dor de sua passagem, e em seus últimos segundos implorou a Alá que o perdoasse e compreendesse que todos seus crimes foram cometidos em nome de Deus e de Sua justiça. Por fim, seus ouvidos não reportaram o som dos disparos, mas os gritos das pessoas na multidão que ainda não sabiam que seu líder estava morto.

 

— Quem é? — Ryan olhou as horas. Merda, mais quarenta minutos de sono teriam sido bem-vindos.

— Presidente, meu nome é major Canon, dos Fuzileiros — anunciou a voz desconhecida.

— Prazer, major, mas quem é você? — Jack piscou e esqueceu de ser educado, mas, provavelmente o oficial compreendeu.

— Senhor, sou o oficial de observação em Sinais. Temos um relatório altamente confidencial de que o presidente do Iraque foi assassinado há cerca de dez minutos.

— Fonte? — perguntou Jack.

— Kuwait e Arábia Saudita. Ambos, senhor. Deu ao vivo na TV iraquiana, e temos ir lá para monitorar as transmissões. Neste momento estão enviando uma gravação via satélite. As primeiras informações são de que ele levou um tiro na cabeça à queima-roupa.

O tom da voz do oficial não era exatamente lamurioso. Bem, finalmente alguém deu cabo daquele filho da puta! Claro, não se pode dizer isso ao presidente. E é preciso descobrir quem foi esse alguém.

 

— Certo, major, qual é o procedimento padrão?

A resposta veio imediatamente. Ryan colocou o telefone no gancho.

— Que foi agora? — perguntou Cathy. Jack jogou os pés para fora da cama antes de responder.

— Acabam de matar o presidente do Iraque.

Sua mulher quase disse que bom, mas parou. A morte de uma pessoa dessa posição era mais um conceito distante. Estranho sentir-se dessa forma sobre alguém que tornara melhor o mundo ao deixá-lo.

— Isso é tão importante?

— Vão me dizer daqui a vinte minutos. — Ryan tossiu antes de prosseguir. — Que diabos, já fui competente nessas áreas. Sim, isso é potencialmente muito importante.

Dito isso, Ryan fez o que todo americano fazia de manhã. Foi ao banheiro antes de sua mulher. Da sua parte, Cathy levantou o controle remoto e executou a outra função normalmente masculina, de ligar o televisor do quarto, surpresa em descobrir que a CNN estava apenas comentando quais aeroportos estavam operando com atraso. Jack comentara algumas vezes sobre a competência do Departamento de Sinais.

— Alguma coisa? — perguntou seu marido, retornando.

— Ainda não.

Então foi a vez de Cathy usar o banheiro.

Jack teve de pensar sobre onde estavam suas roupas, perguntando-se como um presidente devia se vestir. Achou seu robe — que fora trazido do Observatório Naval, depois de ter sido levado da rua 8 para lá, depois de ter sido tirado de sua casa... — e abriu a porta do quarto. Um agente no corredor entregou-lhe três jornais matutinos.

— Obrigado.

Cathy viu isso e parou bruscamente, lembrando apenas naquele instante que havia gente que ficava do lado de fora de seu quarto a noite inteira. Virou-se para Jack, seu rosto formando o tipo de sorriso de quem encontra uma bagunça inesperada na cozinha.

— Jack?

— Sim, querida?

— Se uma noite dessas eu o matar na cama, essas pessoas armadas vão entrar e me prender na hora ou vão esperar até de manhã?

 

O trabalho de verdade estava sendo realizado em Forte Meade. O vídeo viajara de uma estação de monitoração na fronteira entre Kuwait e Iraque e outra na Arábia Saudita, conhecidas, respectivamente, como PALM BOWL e STORM TRACK. STORM TRACK tinha a função de gravar todos os sinais emitidos de Bagdá, enquanto PALM BOWL cuidava da parte sudeste do país, nas imediações de Bassorá. Dos dois lugares, a informação viajava por cabos de fibra ótica até o prédio, pequeno e discreto, da NSA em King Khalid Military City (KKMC), sendo dali retransmitida para um satélite de comunicações, e em seguida para o quartel-general da agência. Na sala de vídeo, dez pessoas convocadas por um dos oficiais subalternos assistiam à gravação num monitor de TV, enquanto os oficiais mais graduados, num gabinete separado por uma parede de vidro, sorviam calmamente seus cafés.

— Isso! — observou um sargento da Força Aérea ao ver o disparo. — Bem na mosca!

Várias pessoas trocaram tapas nas palmas das mãos. O oficial de observação mais graduado, que já entrara em contato com o Departamento de Sinais da Casa Branca, assentiu com a cabeça sua aprovação e pediu um aprimoramento digital do sinal, o que levaria alguns minutos — apenas alguns frames eram importantes, e eles dispunham de um enorme supercomputador Cray para fazer isso.

 

Ryan comentou em voz baixa que, enquanto Cathy estava aprontando as crianças para a escola e a si mesma para operar os olhos de seus pacientes, aqui ele estava no Departamento de Sinais da Casa Branca, reassistindo seguidamente à gravação de um assassinato. Seu agente do serviço nacional de informações ainda estava na CIA, terminando sua ingestão matutina de notícias sigilosas, que em seguida regurgitaria para o presidente através do relatório matutino do serviço nacional de informações. O posto do Conselheiro de Segurança Nacional ainda estava vago — mais uma coisa a ser resolvida ainda naquele dia.

— Nossa! — exprimiu o major Canon.

O presidente concordou com um aceno de cabeça, e em seguida regressou à sua vida anterior como agente secreto.

— Certo, conte-me o que sabemos.

— Senhor, sabemos que alguém foi morto, provavelmente o presidente do Iraque.

— Um duble? Cannon assentiu.

— Isso seria possível, mas STORM TRACK agora está reportando que muitos sinais VHF com comunicados policiais e militares começaram de repente, e a atividade está irradiando de Bagdá.

O oficial da Marinha apontou para o monitor de seu computador, que exibia imagem tempo real vindas de muitos postos avançados da NSA.

 

— As traduções vão demorar um pouco, mas a minha especialidade é análise de campo senhor. A coisa parece bem real. Suponho que poderia ser fraudado, mas eu não apostaria... Vejam!

Uma tradução estava chegando, identificada como se emanando de uma rede de comando militar. “Ele está morto, ele está morto, ponha seu regimento em prontidão e esteja prevenido para rumar imediatamente para a cidade” — o receptor é o regimento especial de Operações da Guarda Republicana em Salman Pak — resposta é: “Sim, eu vou, quem está dando ordens, quais são as minhas ordens...”

— Tem alguns erros — comentou Ryan.

— Sim. Nosso pessoal tem dificuldade em traduzir e digitar ao mesmo tempo geralmente revisamos antes de...

— Relaxe, major. Eu também cato milho. Diga o que acha.

— Senhor, sou apenas um oficial subalterno. É por causa disso que estou encarregado do turno da madrugada...

— Se fosse estúpido, não estaria aqui. Canon assentiu.

— Está morto para valer, senhor. O Iraque precisa de um novo ditador.

Registra um tráfego incomum de sinais que se enquadra no padrão de um evento incomum. A minha estimativa é essa. — Fez uma pausa antes de começar a justificar um possível erro, como um bom espião. — A não ser que seja um exercício deliberado para que pessoas desleais dentro do governo se revelarem.

Isso é possível, mas improvável. Não em público, desse jeito.

— Ação suicida?

— Sim, presidente. Algo muito arriscado, e que se pode fazer apenas uma vez.

— Concordo.

Ryan caminhou até a cafeteira — sendo basicamente uma instalação militar, o Departamento de Sinais da Casa Branca fazia seu próprio café. Jack pegou duas xícaras e voltou, oferecendo uma para o major Canon, para horror de todos presentes na sala.

— Trabalho rápido. Mande um valeu para o pessoal envolvido, certo?

— Sim, senhor.

— Como posso fazer para dar algumas ordens daqui?

— Nossos telefones estão à sua disposição, presidente.

— Quem trazer aqui imediatamente. O oficial da pasta do Iraque... quem mais? Representantes do Estado e da CIA para o Iraque. Quero estimativas da situação do Estado e do Exército. Descubra se o príncipe Ali ainda está na cidade. Se está, peça-lhe para ficar disponível. Quero falar com ele ainda esta manhã, se for possível. O que mais eu poderia...? — a voz de Ryan descarrilou.

— O comandante do Centro Nacional de Treinamento, senhor. Ele tem os melhores agentes do serviço nacional de informações em Tampa... quero dizer, os mais familiarizados com a área.

— Traga-o imediatamente... Não. Dê-lhe um pouco de tempo para se informar sobre o assunto.

— Providenciaremos tudo para o senhor.

Ryan deu um tapinha no ombro do oficial e saiu da sala. A porta pesada fechou-se atrás dele antes que o major Charles Canon falasse novamente.

— Presidente, a NCA sabe o que faz.

— E verdade o que ouvi? — perguntou Price, entrando na sala.

— Você costuma dormir? — perguntou Ryan. Então pensou um pouco. — Quero você nisto.

— Por que eu, senhor? Eu não sou...

— Suponho que entenda de assassinatos, certo?

— Certo, presidente.

— Vê? Neste momento você é mais valiosa para mim do que um espião.

 

Podia ter acontecido numa hora melhor. Daryaei ficara surpreso com a informação que acabara de receber. Era uma boa notícia... mas não ficara satisfeito com a demora em recebê-la. Fez uma pausa, sussurrando uma oração de agradecimento a Alá, e em seguida pela alma do assassino desconhecido.

Assassino?, perguntou a si mesmo. Talvez juiz fosse um termo mais adequado para o homem, um dos muitos que haviam se infiltrado no Iraque eras atrás, quando a guerra ainda estava em andamento. A maioria simplesmente desaparecera, provavelmente mortos de uma forma ou de outra. A missão fora ideia sua, não sendo realmente dramática o bastante para os profissionais trabalhando em seu serviço de informações. A maioria deles era do tempo da Savak do xá, treinados pelos israelenses nas décadas de 1960 e 1970. Eram eficazes, mas no fundo mercenários, a despeito do quanto professassem seu fervor religioso e sua lealdade ao novo regime. Costumavam adotar procedimentos convencionais para missões incomuns, oferecendo todos os tipos de suborno ou testando a água para dissidentes, apenas para fracassar sempre. Durante anos, Daryaei imaginou se, ao cercá-lo de auxiliares dessa espécie, Alá não o estaria punindo por alguma coisa. Decerto os americanos haviam tentado com o aiatolá alguma coisa parecida com a que ele acabara de fazer, procurando iniciar um grupo de traidores dentro de seu governo, como fizeram em outras partes do mundo. Mas, não, este alvo era esperto demais para isso, e a cada momento tornava-se mais habilidoso, de modo que os americanos tinham falhado, e os israelenses, e todos os outros. Todos menos eu.

Afinal de contas, era uma tradição que remontava à antiguidade, um homem, operando sozinho, um homem fiel que poderia fazer tudo que fosse necessário para cumprir a sua missão. Onze homens desse tipo haviam sido enviados para o Iraque com esse propósito específico, ordenados a permanecer disfarçados, treinados para esquecer tudo que tinham sido, inteiramente sem agentes de contato ou controle. Todos os registros de sua existência haviam sido destruídos de modo que nenhum espião iraquiano pudesse descobrir seu nome e missão. Na próxima hora, alguns de seus seguidores entrariam em seu escritório, louvando a Deus e elogiando a sabedoria de seu líder. Porém, nem mesmo eles sabiam de todas as coisas que ele tinha feito, ou todas as pessoas que ele havia enviado em missões.

 

A versão digitalizada do evento não acrescentou muita coisa, embora agora ele ouvia uma opinião mais profissional das opções: — Presidente, um homem com um computador Silicon Graphics poderia falsificado — informou-lhe o agente do serviço de informações. —Já se fez isso em filme, a película tem uma resolução bem mais alta que um aparelho de TV.

Hoje é possível falsificar quase qualquer coisa.

— Sim, mas o seu trabalho é me dizer o que aconteceu — asseverou Ryan.

Que já vira os mesmos segundos de fita oito vezes, e estava começando a ficar entediado.

— Não podemos dizer com certeza absoluta.

Talvez fosse a privação de sono da semana. Talvez fosse o estresse do trabalho. Talvez fosse o estresse de precisar enfrentar sua segunda crise. Talvez fosse o fato de que o presidente Ryan era um oficial de informação.

— Olhe, vou dizer isto uma só vez: o seu trabalho não é proteger o seu rabo.

O seu trabalho é proteger o meu rabo!

— Sei disso, presidente. É por causa disso que estou dando todas as informações que disponho... — Ryan não precisava ouvir o resto do discurso.

Ele já ouvira aquilo tudo antes, algumas centenas de vezes. Houve momentos em que ele próprio dissera coisas parecidas, mas no caso de Jack, ele sempre apostara suas fichas numa das opções.

— Scott? — perguntou Jack ao secretário de Estado interino.

— O filho da puta está tão morto quanto o peixe que comi ontem — replicou Adler. Alguém discorda? — perguntou o presidente Ryan aos outros homens na sala.

Ninguém contradisse a declaração, dando-lhe uma espécie de bênção. Até mesmo um iniciante do serviço de informações não discordaria da opinião coletiva. De qualquer modo, ele transmitira os dados de que dispunha. Qualquer engano daqui para a frente seria de responsabilidade do secretário de Estado.

Perfeito. Quem atirou? — perguntou Andréa Price.

A resposta veio do encarregado da pasta do Iraque na CIA.

— Um desconhecido. Tenho homens assistindo a fitas de aparições anteriores apenas terem certeza de que ele estava por perto antes. A julgar pelas fitas, o homem era membro de elite da Guarda presidencial, com o posto de coronel do exército, e...

— E eu conheço muito bem cada pessoa da minha equipe de segurança — disse Price, concluindo a afirmação. — Portanto, quem quer que fosse, era um homem de confiança. Isso significa que quem armou tudo isso conseguiu colocar alguém lá dentro, e esse homem conseguiu subir na hierarquia até chegar perto o bastante para fazer o atentado sem risco de erro. Esse homem era fiel o bastante à causa para pagar o preço. Deve ter levado anos.

A continuação da fita — assistiram a essa parte apenas cinco vezes — mostrava o homem tombando sob uma saraivada de balas à queima-roupa.

Aquilo causou estranheza na agente Price. O ideal seria pegar um sujeito como esse vivo. Homens mortos não contam histórias, e nunca é tarde para uma execução. A não ser que tenha sido morto por outros membros da conspiração.

Mas qual seria a possibilidade de mais de um assassino ter chegado tão longe?

Price refletiu que um dia poderia perguntar isso a Indira Gandhi. Certa tarde, toda a sua segurança voltara-se contra ela num jardim. Para Price, aquela era a infâmia final, matar a pessoa a quem você jurou defender. Mas, pensando melhor, ela não teria jurado defender pessoas como aquele homem. Uma outra coisa na fita chamou sua atenção: — Notaram a linguagem corporal?

— Que quer dizer? — perguntou Ryan.

— O jeito como a pistola se ergueu, como ele disparou o tiro, como ficou simplesmente lá, observando. Como um golfista. Deve ter esperado muito tempo por essa chance. Deve ter sonhado com ela. Ele queria que o momento fosse perfeito. Queria assistir e desfrutar o momento antes de ser abatido. — Price balançou lentamente a cabeça. — Ele foi um assassino muito dedicado.

Price também estava apreciando o momento, por mais sinistro que fosse o motivo da reunião. Mais de um presidente tratara os agentes do Serviço Secreto como se eles fossem mera mobília, ou, pelo menos, animais de estimação. Não era sempre que os figurões pediam sua opinião, além de questões profissionais muito restritas, como onde um sujeito mau poderia estar numa determinada multidão.

— Prossiga — disse o agente da CIA.

— Deve ter sido alguém de fora, um sujeito com uma ficha completamente limpa, sem nenhuma conexão com qualquer um que fizesse barulho em Bagdá.

Esse sujeito não estava se vingando por alguém ter matado sua mãe, entenderam? Ele era alguém que subiu no sistema, lenta e cuidadosamente.

— Irã — disse o agente da CIA. — Pelo menos esse é o melhor palpite.

Motivação religiosa. Como ele sabia que o matariam de qualquer jeito, só pode ter sido alguém que não se importava. Isso também poderia significar vingança direta, mas a Srta. Price está certa: ele não podia ter nenhuma motivação evidente. De qualquer modo, não foram os israelenses, nem os franceses. Os ingleses não fazem mais esse tipo de coisa. Acho que também devamos descartar a possibilidade de um atentado doméstico, porque não é dessa forma que eles agem. Portanto, não foi por dinheiro. Não foi por motivos pessoais ou familiares. Acho que podemos descartar também ideologia política. Resta a religião, e isso aponta para o Irã.

— Não posso dizer que eu seja uma perita em espionagem, mas, olhando a fita, me parece que foi isso mesmo — concordou Andréa Price. — A forma como ele matou o cara é quase como uma prece. Ele deve ter desejado que aquele momento fosse perfeito. Nada mais lhe importava.

— Tem mais alguém com quem possamos checar isso? — perguntou Ryan.

— FBI. Seus peritos em ciências do comportamento são muito bons em ler mentes. Sempre trabalhamos com eles — respondeu Price.

— Boa ideia — concordou o agente da CIA. — Vamos quebrar a cabeça para identificar o matador, mas, mesmo se não pudermos obter nada concreto, isso talvez não signifique nada.

— E quanto ao momento político?

— Se pudermos estipular que o atirador estava na equipe dele havia algum tempo temos gravações suficientes de aparições públicas para fazê-lo... então o momento político pode ser uma preocupação — considerou o agente da CIA.

— Oh, isso é fantástico — comentou o presidente. — Scott, e agora?

— Bert? — disse o secretário de Estado ao seu especialista de área. Bert Vasco era o especialista de área com mais experiência naquele país. Dono de um conhecimento considerável sobre o ramo industrial, Vasco concentrava seus esforços para aprender tudo que podia sobre um determinado país.

— Presidente, como todos sabemos, o Iraque é um país de maioria muçulmana mas, governada por uma minoria sunita através do partido político Baath. Sempre tiveram a preocupação de que se nosso amigo lá fosse eliminado, poderia haver...

— Diga-me uma coisa que eu não saiba — cortou Ryan.

— Presidente, simplesmente não conhecemos a força de nenhum grupo de oposição que possa ou não existir. O regime atual foi muito eficaz em cortar cedo as ervas daninhas. Um punhado de figuras políticas do Iraque desertou para o Irã. Nenhum deles era muito importante, e nenhum jamais teve a chance de desenvolver uma base política firme. Há duas estações de rádio que transmitem do Irã para o Iraque. Sabemos os nomes dos desertores que usam esses transmissores para conversar com seus compatriotas. Mas não há como saber quantas pessoas ouvem ou prestam atenção. O regime não é exatamente popular, sabemos disso. Não conhecemos a situação da oposição. Ou que tipo de organização exista para aproveitar esse tipo oportunidade.

O agente da CIA assentiu.

— Bert tem razão. Nosso amigo era muito competente em identificar inimigos políticos e tirá-los do páreo. Tentamos ajudar durante e depois da Guerra do Golfo, mas, tudo que realmente conseguimos fazer foi provocar a morte de pessoas. Com toda a razão ninguém lá confia em nós.

Ryan bebericou seu café e assentiu. Ele fizera suas próprias recomendações em 1991, e não haviam sido postas em prática. Bem, ele ainda era um executivo júnior naquele tempo.

— Temos alguma opção de procedimento? — perguntou em seguida o presidente.

— Honestamente, não — respondeu Vasco. O homem da CIA concordou: Não temos trunfos lá. As poucas pessoas que temos operando nesse país estão lá para relatar o seu desenvolvimento bélico: nuclear, químico e assim por diante. Ninguém no lado político. Na verdade, temos mais pessoas no Irã observando o lado político. Podemos descobrir alguma coisa no Irã, mas não no Iraque.

Fabuloso, pensou Jack, um país pode ou não pode entrar em ebulição numa das áreas mais sensíveis do mundo, e a nação mais poderosa do mundo não pode fazer nada além de assistir à cobertura do evento pela televisão. E ainda falam do poder do presidente americano.

— Arnie?

— Sim, presidente — replicou o chefe de gabinete.

— Mary Pat está com sua agenda atrasada desde o acidente. Quero ela aqui hoje para ver se podemos colocar a agenda em dia.

— Verei o que posso fazer, senhor, mas...

— Mas quando alguma coisa assim acontece, o presidente dos Estados Unidos não pode ser pego com as calças amadas. — Ryan fez uma pausa. — O Irã vai fazer uma ofensiva?


10

Política

O príncipe Ali bin Sheik estava pronto para voar para casa em sua aeronave pessoal, um velho mas belissimamente conservado Lockheed L-1011, quando recebeu um telefonema da Casa Branca. A embaixada saudita ficava perto do Kennedy Center, de modo que o príncipe realizou um percurso relativamente curto em sua limusine blindada, acompanhado por uma força de segurança quase tão grande quanto a de Ryan, e composta por agentes do Serviço de Proteção Diplomática dos EUA, mais os próprios guarda costas do príncipe, compostos de ex-membros da Força Aérea Especial Britânica e sauditas, como sempre, gastavam uma enorme quantidade de dinheiro em troca da qualidade.

Ali estava familiarizado com a Casa Branca, e com Scott Adler, que o recebeu na porta e o conduziu escada acima até o Salão Oval.

— Presidente — saudou Sua Alteza Real, vindo da sala do secretariado.

— Obrigado por atender a um convite tão repentino.

Jack apertou a mão do príncipe e fez um gesto para que ele se acomodasse em um dos sofás da sala. Alguém prestativo acendera a lareira. O fotógrafo da Casa Branca tirou alguma fotos e foi dispensado.

— Você deve ter visto as notícias desta manhã. — Ali esboçou um sorriso preocupado.

— Que se pode dizer? Não vamos lamentar seu falecimento, mas o reino tem preocupações mais sérias.

— Sabem alguma coisa que não saibamos?

O príncipe balançou a cabeça.

— Fiquei tão surpreso quanto todo mundo. O presidente franziu a testa.

— Sabe, com todo o dinheiro que gastamos... O visitante ergueu a mão cansada.

— Sim, eu sei. Terei a mesma conversa com meus ministros assim que meu avião estiver em casa.

— Com toda certeza. Será que farão uma ofensiva? O Salão Oval mergulhou num silêncio repentino, cortado apenas pelo crepitar do carvalho na lareira enquanto os três homens — Ryan, Ali e Adler — trocavam olhares sobre a mesa de café, na qual permanecia intocada uma bandeja e xícaras. O problema era, obviamente, petróleo. O Golfo Pérsico — ocasionalmente chamado Arábico — era um dedo de água cercado por — e em alguns locais sentado em — um mar de ouro negro. A maior parte do suprimento mundial se encontrava lá, dividido principalmente entre o Reino da Arábia Saudita, Kuwait, Iraque e Irã, juntamente com países menores: Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Catar.

Desses países, o Irã era o maior em termos de população. Em seguida, vinha o Iraque. As nações da península Arábica eram mais ricas, mas a terra sobre sua riqueza líquida nunca fora capaz de acolher uma população numerosa, e havia também o atrito político, exposto pela primeira vez em 1991, quando o Iraque invadiu o Kuwait com toda a graça de um valentão de escola atacando uma criança menor. Ryan costumava dizer que uma agressão militar era pouco mais que um assalto à mão armada, e esse fora o caso da Guerra do Golfo. Usando como desculpa uma disputa territorial insignificante e um punhado de questões econômicas igualmente triviais, Saddam Hussein atacara numa tentativa de duplicar a riqueza inerente de seu país, e em seguida ameaçou dobrar sua aposta atacando a Arábia Saudita — o motivo que o levara a parar na fronteira entre Kuwait e Arábia Saudita agora permaneceria eternamente inexplicado. Numa explicação superficial, tudo se reduzia ao petróleo e a riqueza resultante.

Mas havia mais. Hussein, como um chefão da Máfia, pensara em pouco mais que dinheiro e o poder político resultante do dinheiro. O Irã enxergou um pouco mais longe.

Todas as nações em torno do Golfo eram islâmicas, quase todas muito radicais. Havia as exceções: Bahrein e Iraque. No caso do Bahrein, o petróleo essencialmente se esgotara, e esse país — que, na verdade, era uma cidade-Estado separada do reino por uma ponte — assumira a mesma função que Nevada exercera para o Oeste dos Estados Unidos: um lugar onde as regras normais eram postas de lado, onde beber, jogar e outros prazeres poderiam ser desfrutados a uma distância conveniente dos países moralmente restritivos.

Quanto ao Iraque, o país era um Estado secular que professava a religião oficial da boca para fora, o que provavelmente explicava a morte do presidente depois de uma carreira longa e vigorosa.

Mas a chave para a região era e sempre seria a religião. O Reino da Arábia Saudita era o coração vivo do Islã. O Profeta nascera ali. As cidades sagradas de Meca e Medina ficavam lá, e desse ponto de origem havia crescido um dos maiores movimentos religiosos do mundo. A questão dizia mais respeito a fé do que a petróleo. A Arábia Saudita pertencia ao ramo sunita, enquanto o Irã pertencia ao ramo xiita. Ryan já fora instruído a respeito das diferenças, que na época pareceram tão insignificantes que ele nem se esforçara em decorá-las.

Mas isso fora um erro, como o presidente admitiu agora. As diferenças eram grandes o bastante para tornar inimigos dois países importantes, e nenhuma diferença podia ser maior que essa. Não era apenas uma luta por riquezas. Era sobre uma espécie diferente de poder, a espécie que brota na mente e no coração e floresce para uma outra coisa. O petróleo e o dinheiro simplesmente tornavam o conflito mais interessante aos estrangeiros.

Muito mais interessante. O mundo industrial dependia daquele petróleo.

 

Cada Estado no Golfo temia o Irã por seu tamanho, por sua imensa população e pelo fervor religioso de seus habitantes. Para os religiosos sunitas, o medo dizia respeito a um desvio no ideais do Islã. Para os outros, o medo dizia respeito ao que aconteceria quando os hereges assumissem o controle da região, porque o Islã é um sistema de crenças abrangente, e abarca a lei civil, a política e todas as outras formas de atividade humana. Para os muçulmanos, a Palavra de Deus era lei suprema. Para o Ocidente, era o prosseguimento de sua economia. Para os árabes — o Irã não é um país árabe —, era a questão mais fundamental, o posicionamento de um homem diante de seu Deus.

— Sim, presidente — replicou o príncipe Ali bin Sheik depois de um momento. — Eles farão uma ofensiva.

A voz do príncipe saiu admiravelmente calma, embora Ryan soubesse que, por dentro, de deveria estar tudo, menos isso. Os sauditas nunca quiseram que o presidente do Iraque caísse. Mesmo sendo inimigo, infiel e agressor, tinha sido de uso estratégico para os vizinhos. O Iraque havia muito funcionava como um obstáculo entre os Estados do Golfo e o Irã. Era um caso em que a religião ocupava lugar secundário perante a política, havendo, portanto, a propósitos políticos. Quando a maioria da população xiita do Irã rejeitou a Palavra de Alá, a fronteira entre o Kuwait e o reino tornou-se simplesmente política, e não religiosa. Mas se o partido Baath caísse junto com seu líder, o Iraque iria reverter para uma maioria religiosa. Isso colocaria um país xiita nas duas fronteiras e o líder do ramo islâmico xiita era o Irã.

O Irã realizaria uma ofensiva, porque já a preparava havia anos. A religião sistemática por Maomé espalhara-se da Península Arábica para o Marrocos, no oeste, e para o Filipinas, no leste, e, com a evolução do mundo moderno, estava representada em cada lugar da terra. O Irã usara sua riqueza e sua imensa população para se tornar líder mundial das seitas islâmicas, levando clérigos muçulmanos à sua própria cidade sagrada de Qom, insuflando movimentos políticos por todo o mundo islâmico, e canalizando armas para países islâmicos que precisavam de auxílio — os muçulmanos bósnios eram um exemplo e não o único.

— Anschluss — pensou Scott Adler em voz alta. O príncipe Ali simplesmente as assim.

— Temos algum tipo de plano para ajudar a prevenir isso? — perguntou Jack.

Aguardou a resposta. Não, ninguém tinha. Esse era o motivo pelo qual a Guerra do Golfo fora travada por objetivos militares limitados, e não para anular o agressor. Os sauditas, que, desde o começo haviam mapeado os objetivos estratégicos da guerra, em nenhum momento permitiram que os EUA ou seus aliados considerassem um ataque a Bagdá. Apesar do exército iraquiano ter cercado e invadido o Kuwait, a capital do Iraque ficara tão exposta quanto um nudista numa praia familiar. Ao assistir aos programas realizados por várias emissoras, Ryan percebera que nenhum dos comentaristas havia lembrado que uma campanha clássica teria sido ignorar completamente o Kuwait, tomar o Iraque e em seguida esperar que o exército iraquiano se rendesse. Bem, nem todo mundo subia ler um mapa.

— Alteza, que influência o senhor pode exercer lá? — perguntou Ryan em seguida.

— Em termos práticos? Pouquíssima. Estenderemos a mão da amizade, ofereceremos empréstimos... ao final da semana pediremos aos EUA e às Nações Unidas para suspender o embargo com um olho no aprimoramento das condições econômicas, mas...

— Sim, mas — concordou Ryan. — Por favor, alteza, transmita-nos todas as informações que conseguir. O compromisso de nosso país com a segurança do reino permanece inalterado.

Ali assentiu.

— Transmitirei essa mensagem ao meu governo.

 

— Trabalho bonito, profissional — observou Ding ao ver o replay ampliado.

— Com exceção de uma coisinha.

— Sim. Você precisa descontar o cheque antes de realizar o serviço. — Clark já fora jovem e inteligente o bastante para pensar de modo parecido com o atirador cuja morte acabara de rever, mas a idade brindara-o com circunspecção. Agora Mary Pat queria que ele tentasse propor novamente seu projeto à Casa Branca; para tal, estava lendo alguns documentos. Tentando, pelo menos.

— John, você já leu sobre os Assassinos? — perguntou Chavez, desligando a TV com o controle remoto.

— Vi o filme — replicou Clark sem levantar os olhos.

— Eles eram rapazes sérios. Precisavam ser. Se você usa espadas e facas, bem, precisa se aproximar bastante para fazer o serviço. Precisa ser comprometido, como costumávamos dizer na época da Operação Sétima Luz. — Chavez penara para concluir seu mestrado em relações internacionais, mas abençoava todos os livros que o professor Alpher forçara-o a ler. Gesticulou para a tevê. — Esse cara era como um deles. Uma bomba inteligente com duas pernas... você se autodestrói, mas primeiro dá cabo do seu alvo. Os Assassinos foram o primeiro Estado terrorista. Acho que o mundo não estava pronto para o conceito na época, mas aquela pequena cidade-Estado manipulou uma região inteira porque sempre havia um dos seus perto o bastante para dar cabo de alguém importante.

— Obrigado pela lição de História, Domingo, mas...

— Pense, John. Se eles puderam chegar perto o bastante dele, podem chegar perto de qualquer um. A segurança de um ditador é muito acirrada, mas basta um atirador chegar bem perto para mandá-lo para a próxima dimensão. É de arrepiar os cabelos, Sr. C.

John Clark precisava lembrar-se continuamente que Domingo Chavez não era bobo. Ele ainda falava com sotaque, mas não por incompetência, apenas porque não se importava de falar assim. Chavez, como Clark, tinha um dom para línguas, e Deus sabia que ele era o aprendiz mais rápido que John já encontrara. Estava até mesmo aprendendo a controlar seu temperamento e ardor. Quando isso lhe parecia adequado, corrigiu John a si mesmo.

— E daí? Cultura diferente, motivação diferente...

— John, estou falando sobre um talento, vontade política em usá-lo, e paciência.

— E deve ter demorado anos. Já ouvi falar de agentes ocultos durante muito tempo, mas a primeira vez que ouço falar de um assassino suicida infiltrado.

— Será que não foi um sujeito comum que apenas ficou puto com alguma coisa e...

— E decidiu morrer? Discordo, John. Por que não apagou o presidente, enquanto ele estava indo ao banheiro à meia-noite, e depois caiu fora? Nada disso, Sr. C. O que o cara fez foi uma declaração. Uma declaração que não era apenas dele. Ele estava mandando uma mensagem por seu chefe.

Clark tirou os olhos de seu documento de instrução e pensou um pouco nisso. Ou o funcionário do governo poderia ter desprezado a informação como uma coisa fora de alçada, mas Clark chegara ao governo como resultado de sua incapacidade em ver limites em suas atividades. Além disso, podia lembrar de quando estivera no Irã como parte de uma multidão gritando Morte aos EUA!

para reféns da embaixada americanos de olhos vendados. Lembrava também o que os membros daquela multidão haviam feito depois da fracassada operação Luz Azul, e quão perto o governo Khomeini estivera de lançar sua fúria sobre os americanos e transformar uma disputa já violenta numa guerra generalizada.

Naquela época as digitais iranianas já estavam espalhadas por todos os tipos de ações terroristas, e o fato de os EUA não terem percebido isso apenas piorou a situação.

Bem, Domingo, é por causa disso que precisamos de mais agentes de campo.

 

A CIRURGIÃ tinha mais um motivo para não gostar do cargo de seu marido. Ela quase nunca podia vê-lo. Agora, por exemplo, ele estava com alguém. Bem, deveria ter algo em relação com as notícias da manhã, e aquilo era coisa séria, como eram os chamados as emergências que ocasionalmente a tiravam de casa de madrugada. Mas ela não gostou do precedente.

Ela olhou para o comboio. Não havia outro nome para descrever um total de seis Suburbans. Três estavam designados para levar Sally (cujo nome de código agora era SOMBRA) e o pequeno Jack (BAIXINHO) para a escola. Os outros três veículos levariam Kate (CHOCALHO) para a creche. Em parte, aquilo era culpa sua, admitiu Cathy Ryan. Ela não queria que as vidas das crianças fossem alteradas. Ela não queria que mudassem de escolas e amigos devido ao infortúnio que acometera suas vidas. Nada disso era culpa das crianças. Fora burrice dela concordar com o novo cargo de Jack, e que não durara nem cinco minutos, e, como muitas coisas na vida, era preciso aceitar as consequências. Como, por exemplo, o percurso maior até suas escolas, preço talvez muito alto para se manter amizades. Mas, droga, não havia uma resposta certa.

— Bom dia, Katie!

Era Don Russell, acocorando-se para receber um abraço e um beijo de CHOCALHO. Isso fez Cathy sorrir. Esse agente era uma bênção divina.

Homem com seus pró impostos, ele realmente amava crianças, especialmente as pequeninas. Ele e Katie ha vinham se afinado rapidamente. Cathy deu um beijo de despedida em sua caçula e em seu guarda-costas — que coisa ridícula, uma criança precisar de guarda-costas! Mas Cathy lembrava de suas próprias experiências com terroristas e teve de aceitar isso também. Russell pegou CHOCALHO nos braços e colocou-a em seu lugar no carro, fechou o cinto de segurança da menina e o primeiro conjunto de três veículos entrou em movimento.

— Tchau, mãe! — Sally estava passando por uma fase na qual ela e sua mãe eram amigas, e não trocavam beijos. Cathy aceitava isso, embora não gostasse.

Era o mesmo com o pequeno Jack: Té logo, mãe. Mas John Patrick Ryan Jr.

ainda era criança o bastante para exigir viajar na frente, vontade que lhe foi satisfeita desta vez. As duas equipes de segurança haviam sido aumentadas devido aos motivos que levaram os Ryan para a Casa Branca. Agora havia um total de vinte agentes designados para proteger as crianças. Os agentes tinham dito a Cathy que esse número seria reduzido dali a um ou dois meses, quando as crianças passariam a ser conduzidas em carros normais, em vez de Suburbans blindados. No caso da CIRURGIÃ, seu helicóptero a aguardava.

Merda. Estava acontecendo de novo. Assim que soubera que estava grávida do pequeno Jack, terroristas haviam... por que diabos ela concordara com tudo isso? A maior indignidade de todas era que estava casada com aquele que supostamente era o homem mais poderoso do mundo. Mas ele e a família precisavam aceitar ordens de outras pessoas.

— Eu sei, doutora. — Era a voz de Roy Altman, seu agente principal. — É uma maneira horrível de viver.

Cathy virou-se.

— Lê mentes?

— Faz parte do meu trabalho, madame. Eu sei...

— Por favor, meu nome é Cathy.

Altman quase enrubesceu. Ele vira mais de uma primeira-dama assumir ares de realeza com a ascensão de seu marido a POTUS, e nem sempre era agradável proteger filhos de políticos, mas os membros da segurança presidencial já haviam concordado que a família Ryan era diferente. Eles não pareciam nem um pouco com as pessoas a quem costumavam proteger. Sob certo aspecto, isso era ruim. Mas era difícil não gostar deles.

— Tome. — Ele entregou a Cathy uma pasta de cartolina. Eram os prontuários dos casos de Cathy para aquele dia.

— Duas cirurgias. Depois, revisões — disse-lhe Cathy. Bem, pelo menos ela poderia cuidar da papelada durante o voo. Precisava admitir que era conveniente.

— Eu sei. Combinamos com o professor Katz que ele nos enviaria os prontuários com antecedência. Assim podemos ajudá-la a se manter dentro do seu cronograma — explicou Altman.

— Vocês também analisam os antecedentes dos meus pacientes? — perguntou Cathy, achando que estava fazendo uma piada.

Não estava.

— Sim. Os registros do hospital proporcionam nomes, nascimentos e números de identidade. Verificamos as identidades deles e conferimos com nosso arquivo de... bem, de pessoas em quem ficamos de olho.

O olhar que esse pronunciamento gerou não foi exatamente amigável, mas Altman não levou para o lado pessoal. Caminharam de volta até o prédio e, alguns minutos depois, retornaram para subir no helicóptero. Enquanto o coronel Hank Goodman ligava os motores, Cathy viu câmeras de telejornais posicionadas para registrar o evento.

A alguns quarteirões dali, na sala de operações do Serviço Secreto, o padrão de monitoração foi alterado. Uma lâmpada vermelha num mapa mostrava que POTUS (President of the United States, o presidente dos EUA) estava agora na Casa Branca. A FLOTUS (First Lady of the United States, a primeira dama dos EUA) estava em trânsito. A posição de SOMBRA, BAIXINHO e CHOCALHO estava sendo registrada num painel diferente.

Essas informações eram transmitidas por sinais digitais de rádio codificados para Andréa Price, que estava sentada em frente ao Salão Oval. Outros agentes estavam na St. Mary’s Catholic School e na creche Giants Steps, as duas instituições nas proximidades de Annapolis e no Johns Hopkins Hospital. A Polícia Estadual de Maryland sabia que os filhos dos Ryan estavam sendo transportados ao longo da Rota 11, e colocaram carros adicionais ao longo do percurso. No momento, mais um helicóptero da Marinha estava seguindo o da CIRURGIÃ, e um terceiro, com uma equipe de agentes armados até os dentes, seguia as três crianças. Se houvesse um assassino à espreita, ele veria o que é bom para tosse. Os agentes nos veículos em movimento estavam em seu estado normal de alerta, vigiando cada carro que passava, anotando suas placas na eventualidade de algum aproximar-se novamente. Carros de aparência comum estavam guiados por agentes do Serviço Secreto em trajes civis. Os Ryan jamais saberia realmente o número de agentes que os acompanhavam, a não ser que perguntasse, e era muito raro alguém perguntar isso.

Estava começando um dia como os outros.

 

Não havia mais como negar. Ela não precisava que o Dr. Moudi lhe dissesse. As dores de cabeça haviam piorado, a fadiga estava mais forte.

Exatamente como aconteceu com o jovem Benedict Mkusa, pensou a freira. No começo torceu para que fosse uma reação de sua velha malária, mas quando as dores chegaram, não as sentiu nas juntas, e sim no estômago. Isso tinha sido como ver o tempo fechar, prenunciando uma tempestade lenta e poderosa.

Agora não havia nada a fazer além de esperar e temer o que lhe esperava. Parte de sua mente negava isso, e outra parte tentava abrigar-se na oração na fé, mas, como uma vítima num filme de terror, protegendo o rosto com mãos frágeis, olhando para todos os lados para ver o que se aproximava, o horror se tornava ainda maior devido às suas tentativas patéticas em evitá-lo.

A náusea estava pior, e logo ela não seria mais capaz de controlá-la com sua vontade, por mais forte que fosse.

Ela estava num dos poucos quartos particulares do hospital. Lá fora, o sol ainda brilhava, o céu estava limpo: um belo dia na infindável primavera-verão da África. Havia um frasco de soro ao lado de sua cama, e uma solução salina estéril corria para seu braço, com alguns analgésicos leves e nutrientes para fortalecer seu corpo, mas na verdade só lhe restava esperar. A irmã Jean Baptiste podia fazer muito pouco além de esperar. Seu corpo estava trêmulo de fadiga, e tão dolorido que virará cabeça para olhar as flores na sua janela requeria um minuto de esforço. O primeiro acesso violento de náusea a pegara de surpresa mas, de algum modo, conseguira pegar o vomitório. Era ainda enfermeira e lúcida o bastante para ver o sangue, e depois Maria Magdalena levou o vomitório para esvaziar seu conteúdo num recipiente especial. Colega enfermeira, e colega freira, Magdalena estava vestida com roupas esterilizadas, usando máscara e luvas de borracha, os olhos incapazes de ocultar a tristeza.

— Olá, irmã.

Era o Dr. Moudi, vestido da mesma forma, seus olhos negros mais inescrutáveis sobre a máscara verde. Checou o prontuário pendurado ao lado da cama. A temperatura da freira fora tirada havia apenas dez minutos, e estava subindo. O telex de Atlanta sobre seu sangue chegara ainda mais recentemente, inspirando sua remoção imediata até o prédio de isolamento. A pele lisa da irmã estivera clara havia poucas horas, mas agora parecia seca e levemente avermelhada. Moudi considerou que, para combater a febre, seria preciso esfriar a paciente com álcool, talvez aplicar-lhe uma bolsa de gelo. A situação deveria estar ferindo a dignidade da freira. Elas se vestiam castamente, como todas as mulheres deveriam fazer, e o avental hospitalar que estava usando agora desrespeitava essa virtude. Pior ainda era o que transparecia em seus olhos. Ela sabia. Porém, mesmo assim ele precisaria dizer-lhe.

— Irmã, o seu sangue apresentou resultados positivos para os anticorpos do Ebola.

— Entendo — disse a freira, balançando a cabeça.

— Então a senhora também sabe que vinte por cento dos pacientes sobrevivem à doença — acrescentou gentilmente. — A senhora não está desenganada. Sou um bom médico. A irmã Magdalena é uma enfermeira extraordinária. Iremos ajudá-la o máximo que pudermos. Também estou em contato com alguns dos meus colegas. Não vamos desistir da senhora. Peço que não desista de si mesma. Fale com seu Deus, bondosa dama. Ele ouvirá uma pessoa tão virtuosa.

As palavras saíram com facilidade, porque Moudi era, antes de mais nada, um médico, e um médico muito bom. Ficou surpreso em perceber que parte dele queria que a irmã sobrevivesse.

— Obrigada, doutor.

Antes de sair, Moudi virou-se para a outra freira.

— Mantenha-me informado.

— Claro, doutor.

Moudi saiu da sala. Virou à esquerda na direção da porta. Removeu sua roupa protetora e descartou as peças no recipiente apropriado ao passar por ele.

Fez uma anotação mental de que precisaria reforçar as precauções necessárias.

Ele queria que a freira fosse o último caso de Ebola no hospital. Naquele momento, uma equipe estava a caminho da casa da família Mkusa para entrevistar os pais do menino morto, além d vizinhos e amigos, na esperança de descobrir como Benedict contraíra a infecção. O mais provável era que tivesse sido uma mordida de macaco.

Mas isso era apenas um palpite. Sabia-se pouco sobre o Ebola Zaire, e a maior parte do que não se sabia era vital. Sem dúvida, existia havia séculos, ou talvez mais tempo que isso. Sendo apenas mais uma doença mortal numa área repleta delas, os médicos a conheciam como febre da selva até pouco mais de trinta anos. O centro focal do vírus ainda estava aberto a especulações. Muitos achavam que o portador fosse um macaco, mas qual macaco, ninguém sabia — literalmente milhares de animais tinham sido aprisionados ou mortos num esforço para determinar isso, sem resultado. Não se tinha certeza nem mesmo se o Ebola era realmente uma doença tropical — a primeira epidemia adequadamente documentada dessa classe de febre ocorrera na Alemanha.

Havia uma doença muito parecida nas Filipinas.

 

O Ebola aparecia e desaparecia, como um espírito mau. Parecia seguir uma espécie de periodicidade. As epidemias registradas haviam ocorrido a intervalos de oito a dez anos — mas, novamente, esses números não eram confiáveis; a África ainda era primitiva e havia um sem-número de motivos para acreditar que as vítimas poderiam contrair a doença e morrer dela numa questão de dias, sem tempo para buscar ajuda médica. A estrutura do vírus era mais ou menos compreendida, e os sintomas reconhecidos, mas seu mecanismo ainda era um mistério. Para a comunidade médica isso representava um problema, porque o Ebola Zaire tinha uma taxa de mortalidade de cerca de 80%. Apenas uma em cada cinco vítimas sobrevivia, e por que isso acontecia era apenas mais uma marcação na coluna desconhecido. Tudo isso tornava o vírus do Ebola perfeito.

Tão perfeito que era um dos organismos mais temidos pelo homem. Havia quantidades diminutas do vírus em Atlanta, no Instituto Pasteur em Paris, e em mais algumas instituições, onde ele era estudado sob condições que lembravam um livro de ficção científica: médicos e técnicos usando roupas espaciais. O que se sabia sobre o Ebola não era suficiente nem para que se começasse a desenvolver uma vacina. As quatro cepas conhecidas — a quarta fora descoberta num incidente bizarro nos EUA; mas essa, embora uniformemente letal a macacos, por algum motivo incompreensível não causava efeitos sérios nos humanos — eram diferentes demais. Naquele momento, um grupo de cientistas em Atlanta, alguns deles conhecidos seus, estavam debruçados sobre microscópios para mapear a estrutura desta nova versão e depois compará-la com amostras de outras cepas conhecidas. Esse processo poderia levar semanas e, provavelmente, como ocorrera com todos os esforços anteriores, geraria apenas resultados equivocados.

Até que o verdadeiro centro focal da doença fosse descoberto, o Ebola continuaria endo um vírus alienígena, algo quase de outro planeta, mortal e misterioso. Perfeito.

O Paciente Zero, Benedict Mkusa, estava morto, seu corpo incinerado por gasolina, e o vírus destruído com ele. Moudi tinha uma pequena amostra de sangue, mas não era suficiente. Contudo, a irmã Jean Baptiste era outro caso.

Moudi pensou nela por um momento, e então tirou o telefone do gancho antes de ligar para a embaixada iraniana em Kinshasa. Havia trabalho a fazer, e mais trabalho ainda a preparar. Sua mão hesitou, o telefone a meio caminho entre o gancho e sua orelha. E se Deus tivesse ouvido as preces da freira? Ele poderia, pensou Moudi. Poderia mesmo. Ela era uma mulher de grande virtude que passava a maior parte do dia orando, como qualquer fiel de sua cidade natal, Qom, tinha fé em Deus e devotara sua vida ao serviço dos necessitados. Esses eram três dos Cinco Pilares do Islã, aos quais poderia acrescentar um quarto — a Quaresma cristã não diferia muito do Ramadã islâmico. Esses eram pensamentos perigosos, mas se Alá ouvira as preces da irmã, o que ele pretendia fazer não estava escrito, e, portanto, não aconteceria. Mas e se as preces da freira não tivessem sido ouvidas... ? Moudi aninhou o telefone entre a orelha e o ombro. Discou os números.

 

— Presidente, não podemos mais ignorar a situação.

— Sim, eu sei, Arnie.

Estranhamente, a situação chegara a um impasse técnico. Os corpos precisavam ser identificados positivamente, porque uma pessoa não estava morta até que um pedaço de papel dissesse isso, e até essa pessoa ser declarada morta, se ela tivesse sido senador ou congressista, seu posto não estaria vago e ninguém poderia ser selecionado para ele. Naquele momento, o Congresso era uma concha vazia. Os atestados sairiam hoje, e dentro de uma hora, governadores de vários estados estariam telefonando para Ryan, oferecendo-se aos cargos. Segundo rumores, pelo menos um governador iria renunciar ao cargo para ser nomeado ao Senado dos Estados Unidos por seu sucessor, numa troca de favores elegante, mas evidente.

 

O Volume de informações era atordoante, mesmo para alguém familiarizado com as fontes. As primeiras informações datavam de 14 anos, mas isso era uma boa notícia, porque fora mais ou menos nessa época que os exemplares dos principais jornais e revistas passaram a ser registrados em computadores, o que facilitava sua disponibilidade através da Internet. Assim, mediante uma taxa modesta, os impérios da mídia ofereciam acesso a esse material que, de outro modo, ficaria estocado em porões úmidos ou, na melhor da hipóteses, seria vendido para bibliotecas de faculdades por praticamente nada. Como fonte de renda, a rede mundial de computadores ainda era um terreno pouco explorado, mas a mídia aproveitava-a ao máximo. A Internet era agora uma fonte de informações para 08 próprios jornalistas, estudantes, curiosos e indivíduos com interesses estritamente profissionais. O melhor de tudo era que o número enorme de pessoas fazendo buscas através de palavras-chave impossibilitava a identificação de todos os pesquisadores.

De qualquer modo, ele era cuidadoso. Ou melhor, seus subalternos eram.

As pesquisas pela Internet estavam sendo efetuadas a partir da Europa, principalmente de Londres, através de novas contas de acesso que não durariam mais do que o tempo necessário para baixar os dados, ou de contas acadêmicas às quais diversas pessoas tinham acesso. As palavras-chave RYAN JOHN PATRICK, RYAN JACK, RYAN CAROLINE, RYAN CATHY, RYAN CHILDREN, RYAN FAMILY, e uma miríade de outras, foram digitadas nos programas de busca, resultando literalmente em milhares de documentos.

 

Muitos eram espúrios, porque Ryan não era um nome tão incomum. Mas o processo de seleção não era árduo.

Os primeiros documentos realmente interessantes eram relativos à época em que Ryan tinha 31 anos e se tornara assunto de interesse público em Londres. Havia até mesmo fotos, e embora tivessem demorado a ser carregadas, valera a pena esperá-las. Especialmente a primeira. A que mostrava um jovem sentado numa rua, coberto de sangue. Oh! aquilo não era inspirador? O personagem na foto parecia morto, mas ele sabia que pessoas e lendas frequentemente tinham essa aparência. Logo ele recebeu mais um conjunto de fotos de um automóvel acidentado e um pequeno helicóptero. Nos anos intermediários, os dados sobre Ryan eram surpreendentemente escassos, sendo em sua maioria pequenas notas sobre seus testemunhos ao Congresso americano por trás de portas fechadas. Também foram obtidos alguns textos sobre o fim do governo do presidente Fowler — um imediatamente depois da confusão inicial, fora reportado que Ryan impedira o lançamento de um míssil nuclear, e ele próprio insinuara isso a Daryaei, mas essa história nunca foi confirmada oficialmente, e o próprio Ryan jamais discutira o assunto com ninguém. Isso era importante, porque revelava muito a respeito desse homem.

Sobre a mulher dele. Também havia muita cobertura da imprensa a respeito dela, incluindo um artigo, o número de seu escritório no hospital. Uma cirurgia habilidosa. Isso era interessante: uma notícia recente dizia que ela ainda estava exercendo a profissão. Excelente. Eles saberiam onde encontrá-la.

As crianças. A caçula estava na mesma creche que a mais velha frequentara. Também havia uma foto sua. Um artigo sobre o primeiro trabalho de Ryan na Casa Branca.

Chegara mesmo a identificar a escola frequentada pelas crianças mais velhas... Saber aquilo era surpreendente. Ele iniciara a pesquisa sabendo que haveria um limite para as informações que poderia obter; mesmo assim, à sua frente havia um monte de informações que dez agentes de campo só poderiam ter colhido — a um risco considerável — no espaço de uma semana. Os americanos eram idiotas. Praticamente pediam para ser atacados. Eles não tinham nenhuma noção de sigilo ou segurança. Uma coisa era um líder aparecer ocasionalmente em público com a família. Outra bem diferente era deixar que chegasse a conhecimento público coisas que ninguém realmente precisava saber.

O pacote de documentos — que chegou a mais de 2.500 páginas — seria arquivado pelos seus assessores. Não havia planos para tomar qualquer atitude a partir deles. Eram apenas informações. Mas isso poderia mudar.

 

— Sabe de uma coisa? Acho que gosto de chegar de helicóptero — comentou Cathy para Roy Altman.

— Mesmo?

— É menos estressante do que vir dirigindo até aqui. Mas não acho que isso vá durar — acrescentou, caminhando até a fila da comida.

— Provavelmente não — respondeu Altman. Estava olhando em volta constantemente, mas havia dois outros agentes na sala, fazendo o máximo para parecer invisíveis, Mas, fracassavam deploravelmente. Embora o Johns Hopkins fosse uma instituição de médicos, ainda era uma espécie de vila profissional, onde praticamente todo mundo conhecia todo mundo, e os médicos não carregavam armas. Altman permanecia perto de Cathy para melhor aprender a rotina de sua protegida, e ela não parecia se importar. Ele a acompanhara durante duas operações naquela manhã. E, sendo professora, Cathy explicara cada passo no processo em detalhes minuciosos. A tarde, ela daria aula para meia dúzia de estudantes. Era a primeira experiência educacional de Altman naquele serviço — pelo menos em alguma coisa numa área fora da política, campo que ele aprendera a detestar. Sua observação seguinte foi que CIRURGIÃ não poderia ser mais modesta. Ela entrou no fim da fila e pagou seu almoço e o de Altman, para seu protesto.

— Esta é a minha praia, Roy. — Cathy olhou em volta, avistou o homem com quem queria almoçar e caminhou até ele, com Altman a reboque. — Ei, Dave!

O reitor James e seu convidado se levantaram.

— Oi, Cathy! Deixe-me apresentá-la a um novo membro do corpo docente, Pierre — Alexandre. Alex, esta é Cathy Ryan...

— A mesma Cathy...

— Por favor, ainda sou médica...

— Você é aquela na lista Lasker, certo? — cortou Alexandre, pegando Cathy de surpresa.

O sorriso de Cathy iluminou a sala.

— Sim.

— Parabéns, doutora — disse, estendendo a mão.

Cathy teve de pousar sua bandeja na mesa para apertar a mão de Alexandre. Altman observou com olhos que tentavam parecer neutros, mas transmitiam alguma outra coisa.

— Você deve ser do Serviço.

— Sim senhor. Roy Altman. Excelente. Uma dama tão adorável e brilhante merece proteção adequada — declarou Alexandre. — Acabo de sair do Exército, Sr. Altman. Conheci colegas seus em Walter Reed, na época que a filha do presidente Fowler voltou do Brasil com uma doença tropical e ficou sob meus cuidados.

— Alex está trabalhando com Ralph Forster — explicou o reitor enquanto todos se sentavam.

 

— Doenças infecciosas — esclareceu Cathy ao guarda-costas. j Alexandre assentiu. I No momento, estou em treinamento. Mas como tenho um passe de estacionamento, acho que pertenço ao grupo.

— Espero que o senhor seja um professor tão bom quanto Ralph — disse Cathy.

— Um grande médico — concordou Alexandre. Cathy decidiu que gostava do recém-chegado. Em seguida, refletiu sobre seu sotaque e modos de sulista.

— Ralph voou para Atlanta hoje de manhã — prosseguiu Alexandre.

— Aconteceu alguma coisa especial? j Um possível caso de Ebola no Zaire.

Negro, oito anos de idade. Recebemos o e-mail hoje de manhã.

Os olhos de Cathy se estreitaram. Embora pertencesse a um campo completamente diferente da medicina, recebia, como todos os médicos, o periódico Morindity and Mortality Report, e se mantinha atualizada com tudo que podia. A medicina é um campo no qual o aprendizado não acaba nunca.

— Só um? — perguntou ela.

— Sim — confirmou Alexandre. — Parece que o garoto tem uma mordida de macaco no braço. Já estive lá, a serviço de Detrick, por ocasião da última miniepidemia, em 1990.

— Com Gus Lorenz? — perguntou o reitor James. Alexandre balançou a cabeça.

— Não. Gus estava fazendo outra coisa na época. O líder da equipe era George Westphal.

— Ah, sim, ele...

— Morreu — confirmou Alex. — Nós... acobertamos isso, mas ele contraiu o Ebola. Cuidei dele. Não foi nada agradável de assistir.

— O que ele fez errado? — perguntou James. — Eu não o conhecia bem, mas Gus me disse que ele era uma estrela em ascensão. UCLA, pelo que lembro.

— George era brilhante, o melhor especialista em estruturas que já conheci, e era tão cuidadoso quanto qualquer um de nós. Mesmo assim, pegou a doença, e nunca descobrimos como aconteceu. De qualquer modo, aquela miniepidemia matou dezesseis pessoas. Tivemos dois sobreviventes, ambos mulheres, ambos na casa dos vinte, e sem nada de especial, pelo que pudemos descobrir. Talvez simplesmente tenham tido sorte — disse Alexandre, sem realmente acreditar nisso. Coisas assim aconteciam por alguma o não. Ele apenas não havia descoberto qual, embora esse fosse um dever seu. — Em todo caso, tivemos apenas dezoito vítimas no total e isso foi sorte. Ficamos lá seis ou sete semanas.

Levei uma espingarda para a floresta e atirei em uns cem macacos, tentando encontrar um portador. Não achei. Essa cepa é chamada de Ebola Zaire Myinga. Imagino que neste mesmo momento eles a estão comparando com a cepa contraída pelo garotinho. E uma doença matreira, a desgraçada.

— Só uma vítima? — perguntou Cathy.

— Foi o que nos disseram. Método de exposição desconhecido, como sempre.

— Mordida de macaco?

— Sim, mas não encontraremos o macaco. Nunca encontramos.

— O Ebola é tão mortal assim? — perguntou Altman, não mais resistindo ao impulso de participar da conversa.

— A estimativa oficial é de que o índice de mortalidade é de oitenta por cento. Vamos colocar da seguinte forma: se você sacar o seu revólver e disparar no meu peito, aqui onde estamos, neste momento, minhas chances serão melhores do que se eu contraísse o vírus. — Alexandre passou manteiga num pedaço de pão e lembrou de ter visitado a viúva de Westphal. A recordação abalou seu apetite. — Muito melhores, provavelmente, considerando os cirurgiões que temos em Halstead. As chances com leucemia não muito melhores, e com linfocitose, mais ainda. As chances com a AIDS são um pouco piores, mas é possível sobreviver até dez anos com essa doença. Com o Ebola, ninguém passa de dez dias. Ele abusa do direito de ser mortal.


11

Macacos

Ryan sempre escrevera sem a ajuda de ninguém. Publicara dois livros sobre história naval — que agora pareciam pertencer a uma vida passada conjurada por um hipnotizador — e inúmeros documentos para a CIA. Redigira tudo isso sozinho; no começo, numa máquina de escrever, mais tarde, numa série de computadores pessoais. Jamais gostara de escrever — era sempre um trabalho muito difícil — mas apreciava a solidão que acompanha essa atividade, a imersão em seu próprio mundo intelectual, a salvo de qualquer espécie de interrupção enquanto formava seus pensamentos e ajustava seu método de apresentação até o mais próximo possível da perfeição. Assim, tudo que ele declarava seguia rigorosamente seus próprios pensamentos, e havia integridade no processo.

Não mais.

A chefe dos redatores de discursos era Callie Weston. Essa mulher baixa, magra, de cabelos louro-acinzentados, era uma mágica das palavras que, como muitos dos incontáveis funcionários a serviço na Casa Branca, subira a bordo com o presidente Fowler e não desembarcara mais.

— Não gostou do meu discurso para a igreja? Ela também era irreverente.

— Para ser honesto, apenas decidi que deveria dizer uma coisa diferente — disse Jack, percebendo tarde demais que estava se defendendo de uma pessoa a quem mal conhecia.

— Eu chorei — disse Callie Weston.

Ela fez uma pausa dramática. Durante vários segundos, fitou os olhos do presidente com a expressão imutável de uma cobra venenosa, patentemente analisando-o. Enfim disse: — O senhor é diferente.

— Como assim?

— Quero dizer... procure entender, senhor, o presidente Fowler gostava de mim porque eu o fazia parecer soar compassivo... ele que é frio como um peixe, pobre coitado. O presidente Durling gostava de mim porque não tinha ninguém melhor. Volta e meia bato de frente com os assessores da presidência que alteram meu trabalho. Não gosto de ser censurada por zumbis. Volta e meia brigo com eles. Arnie me protege muito porque fiz faculdade com a sobrinha favorita dele... e sou a melhor no que faço... mas devo ser a maior chata no seu gabinete.

— É bom saber disso. — Era uma boa explicação, mas não respondera à sua pergunta. — Por que sou diferente?

— Porque diz o que pensa em vez do que pensa que as pessoas gostariam de ouvir. Vai ser difícil escrever para o senhor. Não poderei recorrer às inspirações usuais. Predirei aprender a escrever da forma como gostaria de escrever, não da forma como sou paga para escrever, e tenho de aprender a escrever como você fala. Vai ser difícil.

— Entendo. — Como a Sra. Weston não era um membro do círculo interno de assessores, Andréa Price estava encostada na parede (ela teria ficado num canto, mas o Salão Oval não tinha um), observando tudo com uma expressão de jogadora de pôquer. Ryan estava aprendendo a ler a linguagem corporal da agente. Price literalmente não gostava de Weston. Ryan se perguntou por quê. — Bem, o que você pode conseguir num par de horas?

— Presidente, isso depende do que o senhor quiser dizer — comentou a redatora. Ryan contou-lhe em algumas frases curtas. Ela não tomou notas.

Apenas absorveu aquilo que ele disse, sorrindo, e falou de novo.

— Eles vão destruir você. Sabe disso. Talvez Arnie ainda não lhe tenha dito isso, talvez ninguém do gabinete tenha. Talvez nunca digam. Mas vai acontecer.

O comentário fez a agente Price empertigar ligeiramente o corpo, apenas o bastante para estar agora equilibrada nas pernas, em vez de encostada na parede.

— O que faz a senhora pensar que quero ficar aqui? A mulher piscou, atônita.

— Desculpe — disse ela. — Não estou realmente acostumada com isso.

— Esta poderia ser uma conversa interessante, mas não tenho...

— Li um dos seus livros anteontem. O senhor não é muito bom com palavras. Não muito elegante, quero dizer. Mas vê as coisas com clareza.

Assim, vou precisar recorrer ao meu estilo retórico para soar como o senhor.

Frases curtas. O senhor não ofende a gramática. Aposto que frequentou escolas católicas. O senhor não enrola ninguém; diz tudo de forma direta. — Ela sorriu.

— Quanto tempo de discurso?

— Uns quinze minutos, digamos.

— Voltarei em três horas — prometeu Weston, levantando. Ryan assentiu e a mulher saiu da sala.

O presidente se voltou para a agente Price.

— Desembuche — ordenou.

— Ela é a maior encrenqueira da Casa Branca. Ano passado ela agrediu um funcionário por causa de alguma coisa. Um guarda precisou apartar os dois.

— Qual foi o problema?

— O funcionário fez algumas críticas ferinas a um de seus discursos, e especulou que seus antecedentes familiares eram irregulares. Foi demitido no dia seguinte. Ninguém sentiu falta. Mas é arrogante como uma prima-dona.

Não deveria ter dito aquilo o senhor.

— E se ela estiver certa?

— Senhor, não é da minha conta, mas qualquer...

— Ela está certa?

— O senhor é diferente.

Price não disse se isso era bom ou não, e Ryan preferiu não perguntar.

O presidente tinha outras coisas a fazer. Pegou o telefone de sua mesa e uma secretária atendeu.

— Pode ligar para George Winston, do Columbus Group?

— Sim, Sr. Presidente.

A secretária não tinha o número de cabeça e precisou telefonar para o Departamento de Sinais. Lá embaixo, um oficial da Marinha estava com o número anotado num cartão, e o leu para a secretária. Um momento depois, virou-se com um sorriso zombeteiro para a oficial sentada ao seu lado. Ela abriu a bolsa, pegou quatro moedas de 25 cents e, muito a contragosto, deu-as ao colega.

— Presidente, o Sr. Winston — disse a secretária pelo comunicador interno.

— George?

— Sim, senhor.

— Quanto tempo leva para chegar aqui?

— Jack... presidente, estou tentando colocar meu trabalho em dia e...

— Quanto tempo? — perguntou Ryan com um tom levemente autoritário.

Winston precisou pensar por um segundo. A tripulação de seu Gulfstream não estava de plantão. E ir até o aeroporto de Newark...

— Posso pegar o próximo trem.

— Avise em qual você virá. Mandarei alguém esperá-lo.

— Certo, mas você precisa saber que não posso...

— Sim, você pode. Nos vemos daqui a algumas horas. — Ryan desligou o telefone e olhou para Price. — Andréa, providencie um agente e um carro para pegá-lo na estação.

— Sim, presidente.

Ryan decidiu que era agradável dar ordens e ser obedecido. Um homem poderia ficar acostumado a isso.

 

— Não gosto de armas! — disse a mulher alto o bastante para fazer algumas cabeças virarem, embora as crianças tenham voltado imediatamente sua atenção para os blocos de madeira e lápis-cera. Havia um número incomum de adultos à sua volta, três deles com fones de ouvido conectados por um cabo espiral a um aparelho oculto. Todas essas cabeças viraram-se para ver uma mãe preocupada (essa era a palavra que todos usavam num caso como esse). Como chefe desta unidade da segurança presidencial, Don Russell caminhou até ela.

— Olá — disse, mostrando sua identificação do serviço secreto. — Posso ajudar a senhora?

— Vocês precisam ficar aqui?!

— Sim, senhora. Pode me dar seu nome, por favor?

— Por quê? — inquiriu Sheila Walker.

— Senhora, é agradável saber com quem estamos conversando, não é? — perguntou Russell. Também era agradável checar os antecedentes de pessoas como ela.

— Ela é a Sra. Walker — disse Marlene Daggett, diretora e proprietária da creche Giant Steps.

— E aquele ali é o seu filhinho, Justin, não é mesmo? — comentou Russell com um sorriso. O menino de quatro anos estava montando uma torre com blocos de madeira, que depois ele poderia demolir, para a diversão geral de todos na sala.

— Simplesmente não gosto de armas, e não gosto delas perto de crianças.

— Sra. Walker, em primeiro lugar, somos policiais. Sabemos como portar armas em segurança. Em segundo, nossos regulamentos exigem que andemos armados o tempo inteiro. Em terceiro, gostaria que a senhora visse a situação de uma outra forma: aqui, o seu filho está mais seguro do que em qualquer outro lugar. A senhora jamais se preocupará com uma tentativa de sequestro no playground por exemplo.

— Por que ela precisa ficar aqui? Russell abriu um sorriso compreensivo.

— Sra. Walker, a pequena Katie não se tornou presidente. O pai dela sim.

Ela não tem o direito de ter uma vida normal de criança, exatamente como seu Justin?

— Mas é perigoso e...

— Enquanto estivermos por perto, não será perigoso — assegurou-lhe. A mulher simplesmente deu-lhe as costas.

— Justin! — chamou. O menino virou-se para ver a mãe segurando seu casaco. Ficou imóvel por um segundo, e com um dedo empurrou os blocos uma fração de centímetro, aguardando que a pilha de quase um metro e meio tombasse como uma árvore.

— Engenheira civil — ouviu Russell em seu fone. — Checarei a placa de seu carro. Russell fez um sinal para a agente na porta. Em vinte minutos eles teriam um novo dossiê para examinar. Provavelmente diria apenas que a Sra. Walker era uma dessas chatas, adeptas dos preceitos da Nova Era, mas se tivesse um histórico de problemas mentais(possível), ou ficha na polícia (improvável), a informação não seria esquecida. Olhou em torno automaticamente, e então balançou a cabeça.

 

CHOCALHO era uma criança normal, cercada por crianças normais. No momento estava rabiscando uma folha de papel com um lápis-cera colorido, seu rosto torcido numa expressão de concentração intensa.

Tivera um dia normal, e logo faria uma viagem de volta anormal para um lar definitivamente anormal. Não vira Russell discutindo com a mãe de Justin.

Bem, crianças eram espertas o bastante para ser crianças, o que era mais do que se podia dizer sobre muitos de seus pais.

A Sra. Walker guiou o filho até o carro da família — que, para a surpresa de ninguém, era um Volvo — e, responsavelmente, colocou-o no banco de trás e fechou o cinto de segurança.

A agente memorizou a placa do carro, sabendo que aquilo não daria em nada, mas que, mesmo assim, todos os procedimentos seriam seguidos. Afinal, todo cuidado é pouco... Então lembrou-se dos motivos porque precisavam ser tão cuidadosos. Ali estava, a creche Giant Steps, ao lado da autoestrada “Ritchie”, perto de Anápolis em que SOMBRA fora seguida anos atrás. Os terroristas tinham usado o armazém do outro lado da avenida para fazer a vigilância ao prédio.

Depois, seguiram a Doutora Ryan, que seguia no seu velho Porsche, utilizando um furgão. Depois, na ponte da autoestrada nacional 50, montaram una emboscada e mataram a alguns policiais na fuga. Naquela época a doutora Ryan estava grávida do pequeno Jack. Katie ainda era um futuro distante.

Tudo isto afetou muito a agente especial Marcella Hilton que, vinha de dois casamentos sem filhos e se emocionava ao trabalhar com crianças, embora ainda fosse muito profissional. Atribuía isso aos hormônios e ao instinto maternal. O mais fácil era dizer que gostava das crianças e que gastaria de seus próprios filhos.. Fosse como fosse a menor possibilidade, que alguém pudesse fazer mal as criança lhe gelava o sangue.

Aquele lugar era muito vulnerável. Tinha gente nesse mundo que não se importava em machucar crianças. O problema era aquele armazém ali em frente.

A escolta de CHOCALHO era formada agora por seis agentes, porém em algumas semanas se reduziria a apenas três o quatro. O Serviço Secreto não era tão infalível como muitos imaginavam. Era muito forte e eficaz quando se tratava de investigar; é única das organizações policiais da nação que podia bater na porta de qualquer um, entrar e ter uma “conversa amigável” com qualquer um que pudesse representar uma ameaça (com deduções baseadas em elementos e provas que não seriam totalmente válidas num tribunal). O objetivo dessas conversas era fazer com que a pessoa em questão soubesse que era vigiada, embora nem sempre fosse assim (o Serviço Secreto só dispunha de 1200 agentes em toda o país), em muitos casos só o fato de receber a visita de um agente bastava para dissuadir qualquer um que houvesse cometido uma indiscrição ou agido de modos suspeito.

 

Mas se essas pessoas fossem verdadeiras ameaças os agentes faziam seu trabalho, caso a ameaça não fosse mortal essa pessoas eram interrogadas e os agentes sabiam que medidas adotar.

A verdadeira ameaça vinha de quem não estava nas listas de “prováveis suspeitos” da divisão de inteligência do Serviço Secreto. Havia a possibilidade de dissuadi-los com espetaculares demonstrações de força. Porém, essas demonstrações eram caras, aparatosas e impopulares, além disso... não esqueceu do atentado que aconteceu meses depois que Cathy Ryan se livrassem por puro milagre.

“Toda uma equipe”, pensou Marcella. Foi um caso que passou a ser matéria de estudo na Academia do Serviço Secreto em Beltsville. A casa dos Ryan foi utilizada para uma reconstrução filmada do evento. Chuck Avery (um bom inspetor do Serviço Secreto, com muita experiência) e toda sua equipe foram eliminados. Ela era uma novata e viu a análise filmada do que aconteceu de errado. Estremeceu ao pensar com que facilidade aquela equipe cometeu um pequeno erro, que unido a desgraça e ao acaso...

— Imagino no que você está pensando.

Marcella se voltou e o viu. Don havia saído para tomar um pouco de ar com um copo de café. Outro agente ficou vigiando lá dentro.

— Conhecia o Inspetor Avery?

— Ele fez o curso dois anos antes de mim na academia. Era inteligente, prudente e um atirador fantástico. Abateu um dos terroristas do atentado, na escuridão e a mais de trinta metros de distância. Dos balaços no peito. Não se pode cometer pequenos erros nesse trabalho, Marcella.

A agente sentiu o impulso de segurara a pistola, só para ter certeza que estava armada, de que estava em condições de cumprir com seu dever.

Era difícil não pensar de como era maravilhoso ser criança. E que, acreditava fielmente nisso, o seu último ato consciente nesse planeta seria esvaziar um carregador na cara de agressor.

— CHOCALHO é uma linda menina, Don.

— Poucas vezes vi uma menina que fosse feia — falou Russell.

Num momentos como aquele parecia obrigatório dizer: “Não se preocupe.

Cuidaremos muito bem dela”. Porém não o disseram nem pensaram isso. Em vez disso, olharam ao redor, haviam as árvores e havia o armazém do outro lado da autoestrada “Ritchie”, perguntaram o que poderiam ter esquecido de considerar, e quanto gastariam instalando câmeras de vigilância.

 

George Winston estava acostumado que fossem recebê-lo. Esse era é o maior dos privilégios de todo alto cargo. Descia de um avião (porque viajava sempre de avião) e havia alguém para recebê-lo e acompanhá-lo ao carro. O motorista conhecia sempre o caminho mais curto.

Usando desse privilégio ele não tinha de alugar um carro na locadora, ter que interpretar os pequenos e inúteis mapas de estrada e, sobre tudo, o inconveniente de se perder. Saía muito caro, porém merecia isso. Seu tempo era precioso. Tinha um tempo limitado e muitas coisas para fazer em tão pouco tempo disponível.

O metro parou na linha 6 da estação Union. Havia lido um pouco, e inclusive tirou uma boa soneca entre Trenton e Baltimore. Era uma pena que as ferrovias não ganhassem dinheiro com o transporte de passageiros. Claro que não tinha que comprar espaço aéreo para voar, entretanto para construir as linha férreas é necessário comprar muitos metros quadrados que custava os olhos da cara. Ele pegou o casaco e pasta, deu uma boa gorjeta para o comissário que servia os passageiros da primeira classe e se dirigiu para a porta.

— Senhor Winston? — perguntou um agente do Serviço Secreto.

— Sim.

O agente lhe mostrou uma carteira com a identificação do Serviço Secreto.

Winston reparou que ele tinha um parceiro, que havia ficado a uns passos de distância com o paletó desabotoado.

— Siga-me, por favor, senhor.

Foram os três pela plataforma, parecendo confundindo-se com aqueles grupos de empresários que se dirigiam a reuniões importantes.

 

Havia muitos dossiês como aquele, tão volumosos que tinham que ter os dados resumidos para não excedeu a capacidade dos fichários. O papel continuava sendo o protagonista dos arquivos, porque era difícil conseguir um ordenador que funciona se bem em sua língua. Mas a consulta de arquivos convencionais não era tão lenta nem complicada como parecia.

A cobertura dos próprios meios de comunicação permitiria confirmar ou modificar os dados que tinham. Além disso poderia fazer outras comprovações, com apenas alguns passeios de carro por alguns lugares ou vigiar determinadas ruas. carro passar uma ou duas vezes por alguns lugares, ou observar certas estradas. Isso impunha um risco pequeno. Ainda que cuidadoso e hábil, o Serviço Secreto americano não era onipotente. Esse presidente tinha família, esposa que trabalhava, crianças que iam à escola; e o próprio Ryan tinha uma rotina que precisava manter. Em sua casa oficial eles estariam seguros — razoavelmente seguros, porque não havia nenhum lugar realmente seguro — mas essa segurança não os seguiria para toda parte.

Acima de tudo, era uma questão de financiamento e planejamento. Ele precisava de um patrocinador.

 

— De quantos precisa? — perguntou o comerciante.

— Quantos você tem? — replicou o possível comprador.

— Posso conseguir oito, com toda certeza. Talvez cem — pensou o comerciante em voz alta e tomou um gole de cerveja.

— Para quando?

— Uma semana será suficiente. — Estavam em Nairobi, capital do Quênia, e um centro importante desse tipo específico de negócios. — Pesquisa biológica?

— Sim. Os cientistas do meu cliente estão desenvolvendo um projeto muito interessante.

— E que projeto é esse? — quis saber o comerciante.

— Não estou autorizado a revelar. — Foi uma resposta esperada. Ele também não poderia dizer quem era o cliente. O comerciante não esboçou nenhuma reação. Na verdade, não se importava com quem fazia negócios. Sua curiosidade era humana, não profissional. — Se os seus serviços forem satisfatórios, podemos voltar para adquirir mais.

A promessa usual. O comerciante assentiu e iniciou a barganha.

— Você precisa compreender que terei gastos. Preciso reunir meu pessoal.

Eles precisam encontrar uma população pequena das criaturas que você quer.

Há os problemas de captura e transporte, licenças de exportação, as dificuldades burocráticas de praxe.

Ou seja, subornos. O comércio de macacos verdes africanos florescera nos últimos anos. Algumas companhias usavam-nos para fins experimentais. Isso geralmente era ruim para os macacos, mas havia muitos deles. O macaco verde africano não estava nem de perto ameaçado de extinção, e mesmo se estivesse, não teria feito diferença para o comerciante. Os animais eram um recurso nacional de seu país, assim como o petróleo era para os árabes, e, como tal, podia ser trocado por unidades monetárias. Ele não nutria nenhum sentimento por macacos. Eram geralmente criaturas desagradáveis que mordiam e cuspiam nas pessoas, embora parecessem bonitinhos para os turistas. Eles também comiam as colheitas de diversos pequenos fazendeiros no país e eram odiados por esse motivo.

— Não estamos preocupados com esses problemas. Nossa preocupação é com a rapidez. Verá que estamos dispostos a recompensá-lo regiamente em troca de serviço confiável.

— Ah! — O comerciante terminou sua cerveja e, levantando a mão, estalou os dedos para pedir outra. Ele disse seu preço. A quantia incluiu sua comissão, o pagamento aos caçadores, ao pessoal da alfândega, a um ou dois policiais, e a um burocrata governamental de nível médio, o que em termos da economia local era justo, muito justo.

— Fechado — disse o comprador antes mesmo de tomar um único gole de seu refrigerante.

O comerciante ficou quase decepcionado. Gostava de barganhar, o que era habitual no mercado africano. Ele nem havia começado a expor a dificuldade envolvida nesse tipo de negócio.

— Foi um prazer fazer negócios com o senhor. Ligue-me daqui a... cinco dias?

O comprador assentiu. Tomou seu refrigerante e se levantou. Dez minutos depois, deu um telefonema, a terceira comunicação idêntica que fazia para a embaixada naquele dia. E todas com o mesmo propósito. E embora não soubesse disso, estava havendo outros telefonemas iguais em Uganda, Zaire, Tanzânia e Mali.

 

Jack lembrou a primeira vez que estivera no Salão Oval, a forma como era necessário virar à esquerda para a sala do secretariado e dali para a direita, através de uma porta retorcida numa parede curva, muito no estilo de um palácio do século XVIII, o que a Casa Branca era de fato, ainda que modesto no contexto dos tempos. Os visitantes tendiam a notar primeiro as janelas, principalmente nos dias ensolarados. A espessura do vidro conferia-lhes um tom esverdeado, como as paredes de um aquário fabricado para um peixe muito especial. Em seguida via-se a enorme mesa de madeira. Era sempre intimidante, especialmente quando o presidente estava sentado atrás dela, esperando por você. O que era bom, pensou Ryan. Isso facilitaria ainda mais o que precisava fazer.

— George — cumprimentou Ryan, estendendo a mão.

— Sr. Presidente — respondeu Winston, afável, ignorando os dois agentes do Serviço Secreto parados atrás dele, prontos para imobilizá-lo se fizesse algum movimento brusco. O visitante podia sentir os olhos dos agentes em sua nuca, como se fossem feixes de raio laser. Mesmo assim, apertou a mão de Ryan e abriu um sorriso torto. Winston não conhecia Ryan intimamente. Os dois tinham se afinado ao trabalharem juntos durante o conflito com o Japão. Antes disso, haviam se esbarrado em algumas reuniões sociais, conhecia o trabalho de Ryan no mercado, que considerava discreto mas eficaz. Todo aquele tempo no ramo da inteligência não fora desperdiçado.

— Sente-se — convidou Jack, gesticulando para um dos sofás. — Relaxe.

Como foi a viagem?

— O de sempre.

Um taifeiro da Marinha surgiu aparentemente do nada e serviu duas xícaras de café, porque a hora do dia era propícia. O café, logo descobriu, era excelente, e a xícara era de porcelana requintada, com borda folheada a ouro.

— Preciso de você — disse Ryan.

 

— Senhor, entenda, aconteceram muitos danos à minha...

— Nação.

— Nunca quis trabalhar para o governo, Jack — replicou imediatamente Winston, com palavras apressadas.

Ryan nem chegou a tocar sua xícara.

— Por que acha que eu quero? George, já passei por isso, certo? Mais de uma vez. Preciso organizar uma equipe. Farei um discurso esta noite. Acho que você vai gostar do que direi. Preciso de alguém para cuidar do Tesouro. Está tudo certo com Defesa, por enquanto. Estado está em boas mãos com Adler.

Tesouro encabeça a minha lista de secretarias que preciso preencher com gente nova. Necessito de alguém bom. E você. Está limpo na praça? — perguntou Ryan, abruptamente.

— Quê? Claro que sim! Fiz todo meu dinheiro dentro das regras. Todo mundo sabe disso — disse Winston indignado, até perceber que era exatamente essa a reação esperada dele.

— Bom. Preciso de alguém que tenha a confiança da comunidade financeira.

Você tem. Preciso de alguém que saiba como o sistema realmente funciona.

Você sabe. Preciso de alguém que saiba o que está quebrado e precisa de conserto, e o que não está e não precisa. Você sabe. Preciso de alguém que não seja político. Você não é. Preciso de um profissional imparcial. E, acima de tudo, George, preciso de alguém que irá odiar seu trabalho tanto quanto eu odeio o meu.

— Que quer dizer exatamente com isso, presidente?

Ryan recostou-se na poltrona por um segundo e fechou os olhos antes de prosseguir.

— Comecei a trabalhar no governo aos 31 anos. Saí uma vez, e fiquei em Wall Street durante algum tempo, mas fui sugado de novo e aqui estou. — Abriu os olhos. — Desde que comecei na Agência, tive de observar como as coisas funcionam dentro do governo, e sabe de uma coisa? Jamais gostei. Comecei em Wall Street e fiz meu trabalho muito bem. Achava que me tornaria um acadêmico quando me aposentasse. A História foi meu primeiro amor, e pensei que meu futuro era ensinar, estudar e escrever; descobrir como as coisas funcionam e passar meu conhecimento para frente. Quase fiz isso, e talvez as coisas não tenham funcionado exatamente como eu queria, mas estudei e aprendi muito. Pretendo usar esse conhecimento, George. Quero reunir um time.

— Para fazer o quê?

— Seu trabalho é limpar o Tesouro. Você terá autoridade financeira e fiscal.

— Quer dizer...

— Sim.

— Sem babaquices políticas? — Ele tinha de perguntar.

— Entenda, George, não sei como ser político, e não tenho tempo para aprender. Nunca apreciei o jogo. Jamais gostei da maioria das pessoas nele.

Simplesmente tentava servir ao meu país da melhor forma que podia. Algumas vezes deu certo, outras não. Eu não tinha escolha. Você lembra como começou.

Tentaram matar a mim e à minha família. Eu não quis ser sugado, mas aprendi que alguém precisava tentar fazer o trabalho. Não quero mais trabalhar sozinho, George, e não vou preencher todos os postos vagos com caça-votos que sabem como fazer o sistema funcionar, está entendendo? Quero pessoas com ideias, não políticos com interesses pessoais.

Winston conseguiu pousar a xícara sem fazer o pires repicar. Ficou um pouco surpreso ao perceber que suas mãos não tremiam. O que Ryan propunha era um trabalho bem mais amplo do que aquele que Winston pretendera recusar. Aquilo teria implicações profundas. Ele perderia todos os amigos — bem, não realmente, mas não iria tomar decisões executivas tendo por base as contribuições para campanhas eleitorais que Wall Street daria ao presidente como agradecimento pelas coisas boas que o Tesouro fizesse pela Bolsa. Essa era a forma como o jogo sempre era jogado, e embora nunca tivesse sido um jogador, já conversara muito com aqueles que trabalhavam no governo da mesma velha forma.

— Merda — sussurrou, meio para si mesmo. — Está falando sério, não está?

Como fundador do Columbus Group, Winston assumira uma função tão básica que poucos lembravam que ela existia. Literalmente milhões de pessoas, direta ou indiretamente, confiavam-lhe seu dinheiro, o que lhe conferia o poder teórico de ser um ladrão em escala cósmica. Mas ele não poderia roubar. Em primeiro lugar, era ilegal, e ele correria o risco de acabar numa penitenciária com vizinhos desagradáveis. Mas essa não era a razão que impedia Winston de roubar. A razão era que havia pessoas lá fora, que confiavam que ele seria honesto e esperto. Assim, tratava o dinheiro das pessoas da mesma forma como tratava o seu, ou talvez um pouco melhor, porque elas não podiam correr os mesmos riscos que um milionário. Vez por outra Winston recebia uma carta encantadora de alguma viúva, e isso fortalecia suas intenções, mas o verdadeiro estímulo vinha de dentro. Uma pessoa tem honra ou não tem, e a honra, algum roteirista de cinema dissera certa vez, era o presente de um homem para si mesmo. Não era um aforismo ruim, considerou Winston. E o que fazia também era lucrativo, claro. Quando você faz seu trabalho da forma certa, as chances são de que as pessoas irão recompensá-lo. Mas jogar era realmente o que o deixava realizado. O dinheiro era apenas um resultado de alguma coisa mais importante, porque dinheiro era transitório. A honra não.

— Autoridade sobre os impostos? — perguntou Winston.

— Precisamos primeiro reconstituir o Congresso, lembra? — comentou Ryan.

— Mas, sim, você terá.

Winston suspirou longamente.

— Vai ser um trabalhão, Ryan.

 

— Está dizendo isso pra mim ? — disse o presidente, uma expressão cansada no rosto.

— Não vou ganhar amigos com isso.

— Você também se tornará chefe do Serviço Secreto. Eles irão protegê-lo, não irão, Andréa?

A agente Price não estava acostumada a ser envolvida nessas conversas, mas percebeu que teria de se acostumar.

— É... sim, presidente.

— As coisas estão muito ineficazes — observou Winston.

— Então conserte-as — disse Ryan.

— Vai ser difícil.

— Compre um esfregão. Quero que deixe o Tesouro limpo e funcional.

Quero que o dirija como se quisesse que ele venha a dar lucro algum dia. Para a Defesa, vou querer a mesma coisa. O maior problema da Defesa é administrativo. Preciso de alguém que seja capaz de extirpar a burocracia. Esse é o maior problema, em todas as agências.

— Conhece Tony Bretano?

— O cara da TRW? Ele dirigia a divisão de satélites lá... — Ryan lembrou de seu nome como um ex-candidato para um alto cargo do Pentágono, oferta que recusara. Muita gente boa declinava de ofertas desse tipo. Esse era o paradigma que ele precisava quebrar.

— A Lockheed-Martin vai roubá-lo numa questão de semanas, pelo menos foi isso que minhas fontes disseram. Ele aumentou a renda da TRW em cinquenta por cento em apenas dois anos, o que não é nada mau para um engenheiro que não precisava entender muita coisa de administração. Jogamos golfe de vez em quando. Devia ouvi-lo se queixar sobre os negócios que faz com o governo.

— Diga-lhe que quero vê-lo.

— A diretoria da Lockheed vai dar-lhe carta branca para...

— Minha ideia é justamente essa, George.

— Qual é o meu trabalho? Quero dizer, o que você quer que eu faça? A regra é...

— Eu sei. Você será secretário interino até juntarmos todas as peças de novo. Winston assentiu.

— Certo. Preciso trazer algumas pessoas comigo.

— Não vou dizer a você como deverá trabalhar. Nem mesmo vou lhe dizer todas as coisas que terá de fazer. Apenas quero que seja feito, George. Você só terá de me contar com antecedência. Não quero saber de nada pelos jornais.

— Quando começo?

— O escritório está vazio — disse Ryan. Ainda havia um empecilho.

— Antes preciso conversar com minha família.

— Sabe, George, esses escritórios do governo têm telefones e tudo mais que você precisar. —Jack fez uma pausa. — George, sei o que você é. Entendo o que faz. Eu poderia ter me tornado a mesma coisa, mas nunca achei fazer dinheiro... satisfatório. Reconheço que administrar dinheiro é um trabalho importante. Pessoalmente, não gosto disso, mas também nunca quis ser médico. Cada cabeça, uma sentença, eu sei. Mas sei que quando bebe com amigos você vive falando sobre como esta cidade é um grande monte de merda. Esta é a sua chance. Nunca haverá outra, George. Ninguém mais terá a oportunidade de ser secretário do Tesouro sem estar preso a considerações políticas. Jamais. Você não pode recusar, porque jamais irá perdoar a si mesmo.

 

Winston se perguntou como alguém podia se sentir tão acuado numa sala com paredes curvas.

— Está aprendendo a ser político, Jack.

— Andréa, você tem um novo patrão — disse o presidente à sua agente principal. Da sua parte, a agente especial Andréa Price decidiu que Callie Weston talvez estivesse errada.

 

A notícia de que haveria um pronunciamento do presidente naquela noite perturbou uma agenda planejada com esmero, mas apenas por um dia. Mais preocupante era a coordenação desse evento com outro. Como em qualquer campo, um bom senso de tempo era tudo em política, e eles haviam passado uma semana trabalhando no plano. Ao contrário do que se pensa, a política não é uma ciência exata. A maior parte do que fizeram foi baseada em especulações, mas todos eles tinham feito especulações antes, e eram bons nisso, do contrário Edward J. Kealty não teria chegado até onde estava. Porém, como os jogadores compulsivos, eles nunca confiavam realmente na mesa ou nos outros jogadores, e cada decisão era cercada de dúvidas.

Desta vez tinham até mesmo meditado sobre certo e errado — não o certo e errado de uma decisão política, o cálculo de quem deveria ser agradado ou ofendido, mas se a ação que estavam contemplando era objetivamente correta — honesta, moral!—, e esse foi um momento raro para aqueles consultores políticos veteranos. Claro que o fato de Kealty ter mentido para eles ajudou muito. Eles sabiam que tinham ouvido mentiras. Sabiam que ele sabia que eles sabiam que ele mentira para eles, mas essa era uma parte implícita do exercício. Outra atitude teria violado as regras do jogo. Eles seriam protegidos enquanto não traíssem seu chefe, e ser protegido de conhecimentos adversos fazia parte do pacto.

— Então você nunca renunciou realmente, Ed? — perguntou seu chefe de pessoal. Ele queria que a mentira ficasse clara, para que pudesse dizer a todos que, até onde era de seu conhecimento, aquela era a Verdade Divina.

 

— Ainda tenho a carta — disse o ex-senador e ex-vice-presidente, dando um tapinha no bolso do terno. — Brett e eu conversamos e decidimos como deveria ser o texto da carta, e a que eu tinha comigo não estava completamente certa.

Eu ia voltar no dia seguinte com uma nova carta e entregá-la discretamente.

Mas quem poderia imaginar...?

— Você poderia simplesmente... bem, esquecer isso.

Esta parte da dança tinha de ser realizada de acordo com a música.

— Bem que gostaria de poder — disse Kealty depois de uma pausa sincera, seguida por um tom de voz preocupado e apaixonado. Era bom treinar isso. — Mas, meu Deus, vejam só o estado do nosso país! Ryan não é mau sujeito. Eu o conheço há anos. Mas ele não sabe droga nenhuma sobre como governar um país.

— Não há nenhuma lei sobre isso, Ed. Nenhuma. Nenhuma orientação constitucional, e mesmo se houvesse, nenhuma Corte Suprema para interpretá-la. — O comentário veio do consultor jurídico de Kealty, anteriormente seu adido legislativo sênior. — E estritamente político. Não vai soar bem — precisou dizer em seguida. — Não quero olhar...

— A questão é justamente essa — comentou o chefe de pessoal. — Estamos fazendo isto por motivos apolíticos, para atender aos interesses do país. Ed sabe que está cometendo suicídio político. — Para ser seguido por uma ressurreição instantânea e gloriosa, ao vivo pela CNN.

Kealty levantou e começou a andar pela sala, gesticulando enquanto falava.

— Tire a política desta história, merda! O governo foi destruído Quem irá reconstruí-lo? Ryan é um maldito agente da CIA. Ele não sabe nada sobre operações governamentais. Precisamos indicar uma Corte Suprema e realizar várias manobras políticas. Temos de reconstruir o Congresso. O país precisa de liderança. E ele não tem a menor ideia de como fazer isso. Eu posso estar cavando minha própria sepultura política, mas alguém precisa dar um passo à frente e proteger o país!

Ninguém riu. O estranho é que nenhum deles sentiu vontade. Os dois assessores, que estavam com ele havia vinte anos ou mais, ouviam essas mesmas balelas políticas fazia tanto tempo que passaram a aceitá-las. Esse teatrinho era necessário como a passagem do coro nas peças de Sófocles, ou a invocação da Musa de Homero. A poética da política precisava ser observada.

A parte mais importante de seu argumento seria o país, suas necessidades, e o compromisso de Ed para com a nação há uma geração e meia. Ed estava no governo havia muito tempo e sabia como o sistema funcionava, e quando tudo ruía daquele jeito, só uma pessoa como ele poderia salvá-lo. O governo a o país, afinal de contas. Ele dedicara toda sua vida profissional a essa proposição.

Eles realmente acreditavam em tudo aquilo. Como os dois assessores, Kealty aceitava com naturalidade as balelas que dizia. Era impossível dizer o quanto ele estava reagindo à sua própria ambição, porque a crença se torna fato depois de uma vida inteira de pregação. Vez por outra, o país dava sinais de estar se afastando dessas crenças, mas como um evangelista não tinha escolha senão arrebanhar as pessoas de volta à Fé Verdadeira, Kealty tinha o dever de conduzir o país de volta às suas raízes filosóficas, raízes às quais se devotara durante seus cinco mandatos no Senado e um período curto como vice-presidente. Ele foi chamado de Consciência do Senado durante mais de 15

anos. Esse título lhe foi conferido pela imprensa, que o amava por suas visões, fé e família política.

Ed poderia consultar a imprensa sobre seu plano, como fizera com frequência no passado, expondo-lhes uma lei ou uma emenda, pedindo suas opiniões — a imprensa amava quem pedia sua opinião sobre alguma coisa —, ou simplesmente garantindo que eles comparecessem a todas as festas certas. Mas não neste caso. Não podia fazer isso. Ele tinha planos de agir dentro das normas. Não podia correr o risco de parecer estar negociando favores, enquanto que, evitando deliberadamente essa manobra, estaria conferindo a patina da legitimidade às suas ações. Magnanimidade. Essa era a imagem que precisava projetar. Pela primeira vez na vida esqueceria todo o bordado político e, assim fazendo, começaria a fiar um novo segmento. O único problema agora era encontrar o momento certo para agir. E nisso seus contatos na mídia seriam úteis.

 

— A que horas vai ser? — perguntou Ryan.

— Às vinte e trinta, horário da Costa Leste — respondeu van Damm. — Esta noite haverá alguns programas especiais, e eles nos pediram para perturbar a programação o menos possível.

Ryan poderia ter resmungado alguma coisa, mas não fez. De qualquer modo, os pensamentos transpareciam em seu rosto.

— Isso significa que boa parte das pessoas da Costa Leste irá ouvi-lo nos rádios de seus carros — explicou Arnie. —Temos todas as cinco redes, mais a CNN e a C-SPAN.

Eles não são obrigados, você sabe. É uma cortesia. Eles exibem aquele cartão para discursos políticos...

— Droga, Arnie, isto não é político, é...

— Sr. Presidente, comece a se acostumar com a palavra, certo? Cada vez que abrir a boca, estará sendo político. Não há como fugir disso. Mesmo a ausência de política é um ato político.

Arnie estava dando duro para educar seu patrão. Ryan dava ouvidos ao que ele dizia, mas nem sempre concordava com tudo.

— Certo. O FBI disse que posso falar tudo isto?

— Conversei com Murray há vinte minutos. Por ele, tudo bem. Mandei Callie incorporar aquilo no discurso. Ela deve estar trabalhando neste exato momento.

 

Ela podia ter um escritório melhor. Na condição de principal redatora presidencial, podia pedir um computador de gabinete de ouro numa mesa de mármore Carrara... e conseguir. Em vez disso usava um Apple Macintosh Classic de dez anos de idade, simplesmente porque dava-lhe sorte e ela não se importava com a tela pequena. Seu escritório provavelmente já fora um armário ou uma despensa, na época em que a Sala do Tratado realmente era usada para tratados com índios. A mesa fora fabricada numa prisão federal, e a cadeira, apesar de confortável, tinha trinta anos de idade. A sala possuía teto alto, o que permitia que ela fumasse ali dentro, numa violação às leis federais e ao regulamento interno da Casa Branca. Mas, no seu caso, essas regras não se aplicavam. A última vez que alguém havia tentado peitar Callie Weston, um agente do Serviço Secreto tivera de segurá-la para não arrancar os olhos do infeliz. O fato de não ter sido despedida imediatamente fora um aviso a todos os funcionários do Antigo Prédio Executivo. Algumas pessoas do staff presidencial não podiam ser tocadas. Callie Weston era uma delas. Não havia janelas em sua sala. Ela simplesmente não queria nenhuma. Para Callie, a realidade era seu computador e as fotografias nas paredes. Uma era de seu cão, uma velho cão pastor chamado Holmes (Oliver Wendell, não Sherlock; ela admirava a prosa do Tanque do Olimpo, um título que ela concedia a poucos).

As outras fotos eram de figuras políticas, amigos e inimigos. Ela estudava-os com frequência. Às suas costas havia um pequeno televisor e um videocassete, o primeiro usado para sintonizar na C-SPAN I e 2 ou na CNN, e o segundo para rever fitas de discursos escritos por outros e declamados em todas as espécies de lugares. O discurso político, acreditava, era a forma mais elevada de comunicação. Para transmitir uma ideia, Shakespeare precisava de duas ou três horas. Hollywood usava aproximadamente o mesmo tempo para tentar o mesmo. Ela não. Ela dispunha de 15 minutos no mínimo, 45 no máximo, e as ideias precisavam ser cristalinas. Precisavam ser compreendidas pelo cidadão comum, o político veterano e jornalista mais cínico. Callie estudava o orador, assim como estava estudando Ryan agora, assistindo repetidas vezes as poucas palavras que dissera na noite de sua ascensão, os comunicados na TV na manhã seguinte. Observou seus olhos e gestos, sua tensão e intensidade, postura e linguagem corporal. Gostou do que viu, no sentido abstrato. Ryan era um homem em que ela confiaria como consultor de investimentos, por exemplo.

Mas ele tinha muito a aprender como político, e alguém tinha de ensinar a ele... ou talvez não? Talvez... não sendo um político... Ganhando ou perdendo, seria divertido. Pela primeira vez, diversão sim, trabalho não.

Ninguém gostava de admitir, mas ela era uma das pessoas mais perceptivas trabalhando ali dentro. Fowler soubera disso, e Durling também, e assim tinham suportado suas excentricidades. Os assessores políticos mais antigos odiavam-na, tratavam-na como uma funcionária útil, porém menor, e se mordiam com a forma como ela podia atravessar a rua e subir direto ao Salão Oval, porque o presidente depositava nela uma confiança reservada para poucos.

Ocasionalmente isso gerava uma insinuação de que o presidente tinha uma razão especial para chamá-la e, afinal de contas, as pessoas de sua parte do país eram conhecidas como sendo um pouco liberais no que dizia respeito... Callie se perguntou se ele estava conseguindo levantá-lo ultimamente. O agente puxara suas mãos para longe da cara do merdinha, mas lento demais para conter seu joelho. O incidente nem chegara aos jornais. Arnie explicara-lhe que um retorno ao Centro do Poder seria retardado por uma acusação de conduta sexual imprópria — e então deu-lhe um chute no rabo. Ela gostava de Arnie.

Ela também gostou do discurso. Acabara-o em quatro horas, em vez das três que prometera, esforço demais para um texto que duraria vinte minutos e trinta segundos — ela tendia a escrevê-los um pouco mais curtos porque os presidentes tinham uma forma lenta de falar. A maioria era assim. Ryan teria de aprender isso. Digitou CONTROL P para imprimir o discurso em caracteres Helvética de 14 pontos, três cópias. Alguns merdinhas políticos leriam seu texto e tentariam fazer correções. Ultimamente isso não era mais tão problemático. Quando a impressora parou, ela grampeou as páginas e pegou o telefone. O botão de discagem rápida no topo do teclado fazia conexão direta com a mesa apropriada do outro lado da rua.

— Weston para ver o Patrão — disse à secretária de compromissos.

— Venha imediatamente.

E assim tudo estava correndo como deveria.

 

Deus não ouviu as preces da freira, observou Moudi. Bem, as chances estavam contra ela. Combinar sua fé islâmica com conhecimento científico era um problema que o doutor compartilhava com seus colegas cristãos e pagãos — o Congo vinha sendo exposto ao cristianismo havia mais de cem anos, mas as crenças primitivas ainda prosperavam, e isso facilitava para Moudi desprezá-los. Era a velha questão, se Deus era um Deus de misericórdia, então por que acontecem injustiças? Essa teria sido uma boa pergunta para fazer ao seu imã, mas por enquanto bastava o fato de que coisas assim acontecem, até mesmo para os justos.

Elas se chamavam petéquias, um nome científico para manchas de sangramento subcutâneo, que sobressaíam em sua pele alva. Felizmente, freiras não se olhavam em espelhos — isso era considerado um ato de vaidade em seu universo religioso, e mais uma coisa para Moudi admirar, embora não entendesse completamente essa fixação especial. Era melhor que ela não visse as manchas vermelhas em seu rosto. Eram repugnantes por si mesmas, mas, pior que isso, eram arautos da morte.

Ela estava agora com 40,2 de febre, e a temperatura subiria ainda mais apesar do gelo em suas axilas e nuca. Os olhos estavam letárgicos, o corpo flácido com a fadiga. Aqueles eram sintomas de muitos males, mas as petéquias diziam-lhe que ela estava com hemorragia interna. O Ebola era uma febre hemorrágica que pertencia a uma classe de doenças que rompiam os tecidos a um nível básico, permitindo o sangue escapar para qualquer lugar dentro do corpo, o que poderia conduzir apenas a um colapso cardíaco devido ao volume insuficiente de sangue nas veias; esse era o mecanismo assassino, embora a forma como isso acontecia ainda fosse uma questão a ser respondida pelo mundo médico. Agora não havia como deter o Ebola. Cerca de 20% das vítimas sobreviviam; de algum modo, seus sistemas imunológicos conseguiam derrotar o vírus invasor — como isso acontecia era outra pergunta sem resposta. Se aconteceria neste caso era uma pergunta já formulada e respondida.

Tomou o pulso da freira, e mesmo através das luvas, sentiu a pele quente, seca e... folgada. Estava começando a acontecer. O termo técnico era necrose sistêmica. O corpo á estava começando a morrer. O fígado provavelmente morreria em primeiro lugar. Por algum motivo — não compreendido — o Ebola tinha uma afinidade letal por esse órgão. Mesmo os sobreviventes precisavam conviver com danos aos seus fígados. Mas a mulher não viveria o bastante para morrer disso, porque todos os seus órgãos estavam morrendo, alguns mais rápido que os outros, mas todos ao mesmo tempo.

A dor era tão terrível quanto invisível. Moudi escreveu uma ordem para aumentar a dose de morfina no soro. Pelo menos eles podiam atenuar a dor, o que era bom para o paciente e uma medida de segurança para a equipe. Um paciente torturado poderia se contorcer, e isso seria um risco para todos ao redor de uma vítima com uma doença sanguínea r sofrendo sangramentos múltiplos. A irmã estava com o braço esquerdo amarrado para proteger a agulha intravenosa. Mesmo com essa precaução, a agulha intravenosa não parecia confiável no momento, mas aplicar outra seria perigoso e difícil, tão degradado estava o tecido arterial da paciente.

A irmã Maria Magdalena estava cuidando da amiga, rosto coberto, mas olhos tristes, Moudi olhou para ela e ela para ele, surpresa em ver a simpatia em seu rosto. Moudi tinha a reputação de ser frio.

— Reze com ela, irmã. Tenho assuntos a tratar.

Rápido. Saiu da sala, e, enquanto andava, despiu suas vestes protetoras e depositou-as nos recipientes apropriados. Todas as agulhas usadas neste prédio iam para recipientes especiais para serem destruídas; o descuido dos africanos resultará na primeira grande epidemia de Ebola, em 1976. Essa cepa era chamada de Ebola Mayinga, o nome de uma freira que contraíra o vírus, provavelmente por descuido. Desde então os cuidados foram intensificados, mas a África ainda era a África.

De volta ao seu escritório, ele deu outro telefonema. As coisas começariam a acontecer agora. Ele não sabia com certeza o que aconteceria, embora fosse ajudar a determinar os procedimentos. Para tal, começaria imediatamente um estudo em busca de algo inútil.

 

— Vou Salvar você.

O comentário fez Ryan rir e Price estremecer.

Arnie virou a cabeça para fitá-la. O chefe de gabinete reparou que Callie estava vestida discretamente. Para os agentes do Serviço Secreto — que costumavam chamar os assessores de pavões, nome mais polido do que os outros que lhes atribuíam —, Callie Weston era uma exceção que confirmava a regra. Até mesmo as secretárias gastavam mais do que a redatora em roupas.

Arnie simplesmente levantou a mão e disse: — Lá vem você!

O presidente Ryan estava silenciosamente grato pelas letras grandes. Ele não teria de usar óculos, ou se humilhar pedindo a alguém que aumentasse o corpo das letras. Normalmente um leitor rápido, ele estava lendo com bastante calma esse documento.

— Pode fazer uma mudança? — disse ele depois de um momento.

— Qual é? — perguntou Weston, desconfiada.

— Temos um novo secretário do Tesouro. George Winston.

— O bilionário?

Ryan virou a primeira página.

— Bem, eu poderia ter pegado um mendigo num banco de parque, mas achei que alguém com conhecimento dos mercados financeiros seria uma boa ideia.

— Nós os chamamos de sem-teto, Jack — comentou Arnie.

— Ou poderia ter escolhido um acadêmico, mas Buzz Fiedler teria sido o único em quem eu confiaria — prosseguiu Jack. A lembrança entristeceu-o. Tipo raro de acadêmico, Fiedler, um homem que sabia o que não sabia. Droga. — Está muito bom, Sra. Weston.

Van Damm chegou à página três.

— Callie...

— Arnie, meu querido, não posso escrever sempre para o George C. Scott.

Escrevo Olivier para o Olivier, e Scott para o Scott.

Em seu coração, Callie Weston sabia que poderia entrar num voo para Hollywood, ir à Paramount, e em seis meses teria uma casa em Hollywood Hills, um Porsche com motorista, uma vaga de estacionamento em Melrose Boulevard, e aquele computador com gabinete de ouro. Mas não. O mundo inteiro poderia ser um palco, mas o personagem para o qual ela escrevia era o mais brilhante dos brilhantes. O público poderia não saber quem Callie Weston era, mas ela sabia que suas palavras mudavam o mundo.

— Então, quem sou eu, exatamente? — perguntou o presidente, levantando os olhos do texto.

— Você é diferente. Já lhe disse.


12

Pronunciamento

Poucas coisas na vida eram mais previsíveis, pensou Ryan. No jantar, fizera uma refeição muito leve, para evitar que a preocupação lhe causasse dores no estômago, e ignorara completamente a família enquanto lia e relia seu discurso. Tinha feito algumas mudanças a lápis, quase todas devido a pequenas divergências linguísticas. Callie não apenas não objetara contra as modificações, como também fizera novas alterações por cima das de Ryan. O discurso tinha sido transmitido eletronicamente para a sala do secretariado, perto do Salão Oval. Callie era uma escritora, não uma datilografa, e os secretários e secretárias do presidente podiam datilografar numa velocidade que deixava Ryan de queixo caído. Quando o texto final ficou completo, foi impresso para o presidente, enquanto outra versão foi enviada eletronicamente para o teleprompter. Callie Weston estava lá para garantir que ambas as versões fossem exatamente iguais. Não era raro que alguém trocasse uma pela outra no último minuto, mas Weston sabia disso e guardava seu trabalho como a dedicação de uma leoa para com seus filhotes.

Mas a parte previsivelmente terrível veio de van Damm: Jack, este é o discurso mais importante que você fará em sua vida. Simplesmente relaxe e faça.

Puxa, muito obrigado, Arnie. O chefe de gabinete era um treinador que nunca praticara realmente o jogo e, por mais especializado que fosse, simplesmente não sabia como era sair e enfrentar os lobos.

As câmeras estavam sendo montadas: uma principal e uma de reserva, sendo que a segunda quase nunca era usada, ambas com teleprompters. Os refletores ofuscantes estava m em seus lugares, e durante o período de seu discurso, o presidente ficaria silhuetado em suas janelas como um pato numa galeria de tiro; felizmente, eles tinham confiança absoluta nas janelas, que aparentemente eram capazes de suportar uma rajada de metralhadora calibre 50.

Todos os membros das equipes de TV eram conhecidos pela segurança presidencial, que, mesmo assim, checavam-nos inteiramente, junto com seus equipamentos. Todos sabiam que ia acontecer. Os programas televisivos noturnos tinham anunciado a hora do pronunciamento. Aquilo era exercício de rotina para todos, exceto para o presidente, que estava ligeiramente aterrorizado.

 

Ele estava esperando o telefone tocar, mas não àquela hora. Poucos tinham o número de seu celular. Era perigoso demais ter um número num telefone conectado por fio. O Mossad ainda estava no ramo de fazer pessoas desaparecer. A recém-descoberta paz no Oriente Médio não mudara isso, e eles tinham razões para não gostar dele. Haviam sido particularmente inteligentes quando mataram um colega através de seu telefone celular, primeiro desabilitando-o através de sinal eletrônico, e então entregando-lhe um substituto... com dez gramas de explosivo enfiadas dentro do plástico. A última mensagem que o homem recebera, ou pelo menos era o que dizia a história, fora do chefe do Mossad: Alô, quem está falando é Avi ben Jakob. Ouça com cuidado, amigo. Nesse momento, o judeu apertou a tecla #. Um estratagema inteligente, mas que só funcionava uma vez.

O toque do telefone fez seus olhos se abrirem com uma praga. Deitara havia apenas uma hora.

— Alô.

— Ligue para Yousif E a linha foi desligada. Como medida de segurança adicional, a chamada viera através de diversos intermediários, e a mensagem em si fora curta demais para dar uma chance aos magos da espionagem eletrônica empregados por seus incontáveis inimigos. A média final foi ainda mais inteligente. Ele discou imediatamente outro número de celular e repetiu a mensagem que acabara de receber. Um inimigo que pudesse ter rastreado a mensagem através de frequências de celular provavelmente iria considerá-lo apenas mais um intermediário. Ou talvez não. Os jogos de segurança que um homem precisava realizar neste mundo moderno atrapalhavam tremendamente sua vida, e ele jamais podia saber o que havia funcionado e o que não — até que viesse a morrer de causas naturais, o que dificilmente valia a pena esperar.

Resmungando ainda mais, ele se levantou, vestiu-se e saiu para a rua. Seu carro estava esperando. O terceiro intermediário fora seu motorista.

Acompanhados por dois guardas, seguiram até uma casa segura num lugar seguro. Israel poderia estarem paz, e até mesmo a OLP poderia ter-se tornado parte de um regime eleito por voto direto — o mundo estava totalmente insano?

— mas Beirute ainda era um lugar onde pessoas de todas as espécies podiam operar. A casa estava exibindo o sinal apropriado — um determinado padrão de janelas acesas e apagadas —, comunicando que era seguro para ele sair do carro e entrar no prédio. Ou pelo menos era o que descobriria em mais ou menos trinta segundos. Estava sonolento demais para se importar. O medo se tornava tedioso depois de ser sentido por uma vida inteira.

Lá dentro havia uma xícara de café, forte e levemente adocicado, à sua espera sobre a mesa de madeira lustrosa. Saudações foram trocadas, assentos foram ocupados; a conversa começou.

— Está tarde.

— Meu voo atrasou — explicou o anfitrião. — Requeremos os seus serviços.

— Para que propósito?

— Podemos chamar de diplomacia — foi a resposta surpreendente. Ele começou a explicar.

 

— Dez minutos! — ouviu o presidente.

Mais maquiagem. Eram 20:20. Ryan estava em seu lugar. Mary Abbot aplicou os toques finais em seu cabelo, o que apenas aumentava a sensação de que Ryan era um ator em vez de um... político? Não, isso não. Ele se recusava a aceitar o rótulo, a despeito do que Arnie e os outros pudessem dizer. Através da porta à sua direita, Callie Weston estava parada ao lado da mesa da secretária.

Ela abriu um sorriso e acenou com a cabeça para mascarar sua própria insegurança. Callie escrevera uma obra-prima — sempre tinha essa impressão — que agora seria declamada por um novato. A Sra. Abbot caminhou em torno da mesa, ocultando parte dos refletores de TV para olhar para seu trabalho da perspectiva do espectador, e o achou bom. Ryan meramente ficou sentado e tentou não se mexer, sabendo que logo começaria a suar novamente sob a maquiagem,,e isso faria com que se cocasse, e não podia fazer isso de jeito nenhum, porque presidentes não estremecem nem se cocam. Provavelmente havia gente lá fora que acreditava que presidentes não iam ao banheiro ou talvez nem amarrassem seus sapatos.

— Cinco minutos, senhor. Conte até cinco.

— Um, dois, três, quatro, cinco — disse Ryan obedientemente.

— Obrigado, presidente — agradeceu o diretor, da sala ao lado.

Ryan ocasionalmente pensava sobre esse tipo de coisa. Quando faziam essas declarações oficiais — tradição que remontava até FDR e suas conversas à lareira —, os presidentes sempre pareciam confiantes e à vontade, e ele sempre se perguntava como conseguiam passar essa imagem. Ryan não se sentia confiante nem à vontade. Mais uma camada de tensão para ele. As câmeras provavelmente estavam ligadas agora, de modo que o diretor pudesse ter confiança de que estavam funcionando, e em algum lugar um gravador de vídeo estava registrando a expressão em seu rosto e o modo como suas mãos mexiam com os papéis à sua frente. Ele imaginou se o Serviço Secreto tinha controle sobre essa fita, ou se confiavam que a gente de TV era honrada demais para exibir esse tipo de coisa... decerto seus próprios âncoras ocasionalmente derrubavam xícaras de café, espirravam ou gritavam com algum assistente que fizera alguma merda um pouco antes da hora de entrar no ar... ah, sim, esses segmentos de gravação eram chamados bloopers... Ryan estava disposto a apostar, ali, naquele momento, que o Serviço tinha uma fita com erros de presidentes.

— Dois minutos.

As duas câmeras tinham teleprompters. Eram dispositivos estranhos. Havia um monitor de TV instalado debaixo de cada câmera, mas em sua telinha a imagem era exibida invertida da esquerda para a direita, porque logo acima dela ficava um espelho iluminado. A lente da câmera estava atrás do espelho, gravando através dele, enquanto nela o presidente via o texto de seu discurso refletido. Era uma sensação esquisita falar diante de uma câmera que você não podia realmente ver para milhões de pessoas que estavam realmente lá. Ele estaria, de fato, falando para seu discurso. Balançou a cabeça enquanto o discurso corria verticalmente na tela em alta velocidade, para conferir se o sistema estava funcionando.

— Um minuto. Atenção.

Certo. Ryan ajeitou-se na cadeira. Ficou preocupado com a postura. Devia plantar as palmas no tampo da mesa? Devia segurar as mãos no colo?

Disseram-lhe para não se recostar na cadeira, porque isso lhe conferiria uma aparência desleixada e arrogante, mas Ryan tendia a se mexer muito, e ficar parado fazia suas costas doerem — ou era uma coisa que ele simplesmente imaginava? Era um pouco tarde para pensar nisso agora. Ele sentiu o medo, a ardência no estômago. Tentou arrotar, e então conteve o impulso.

— Quinze segundos.

O medo quase se tornou pânico. Não podia fugir agora. Precisava fazer seu trabalho. Isto era importante. As pessoas dependiam dele. Por trás de cada câmera havia um operador. Três agentes do Serviço Secreto estavam ali, cuidando dele. Havia também um diretor-assistente. Eles eram sua única plateia, mas Ryan mal podia discernir seus rostos, ocultos como estavam pelo brilho das luzes; e, de qualquer modo, eles não reagiriam. Como saber o que sua verdadeira plateia estaria pensando?

Puta merda.

Um minuto antes, âncoras das emissoras haviam aparecido no ar para dizer às pessoas o que elas já sabiam. A programação noturna da TV seria retardada um pouco para que houvesse um pronunciamento presidencial. Por todo o país, um número indeterminado de pessoas levantara seus controles para sintonizar um canal a cabo assim que viram o Grande Selo do presidente dos Estados Unidos da América. Ryan respirou fundo, premiu os lábios e olhou para a mais próxima das duas câmeras. A luz vermelha acendeu. Contou até dois e começou.

— Boa noite. Companheiros americanos, hoje venho falar com vocês sobre o que aconteceu em Washington durante a semana passada, e para contar-lhes sobre o que acontecerá nos próximos dias.

Em primeiro lugar, o FBI e o Departamento de Justiça, assistidos pelo Serviço Secreto, a Junta Nacional de Segurança nos Transportes e outras agências federais conduziram uma investigação sobre as circunstâncias que cercaram as mortes trágicas de tantos amigos nossos, com uma ajuda inestimável da polícia nacional japonesa e da Real Polícia Montada do Canadá.

Divulgaremos informações completas ainda esta noite, e elas estarão nos jornais matutinos. Por enquanto, eu lhes darei os resultados das investigações até agora.

A colisão do 747 da Japan Airlines com o Capitólio foi o ato deliberado de um único homem. Seu nome era Torajiro Sato. Sabemos que ele perdeu um irmão e um filho durante nosso conflito com seu país. Evidentemente estava desequilibrado por isto, e decidiu, sozinho, cometer um ato de vingança.

Depois de voar com sua aeronave até Vancouver, Canadá, o comandante Sato falsificou uma ordem de voo para Londres, pretensamente para substituir uma aeronave inoperante pela sua. Antes da decolagem, o comandante Sato matou a sangue-frio seu copiloto, um homem com quem trabalhava havia anos.

Em seguida, prosseguiu em sua vingança inteiramente sozinho, o tempo todo com um morto amarrado na poltrona ao lado.

Ryan fez uma pausa, os olhos acompanhando as palavras no espelho. Teve a impressão de estar mastigando algodão ao ver uma mensagem no teleprompter para que ele virasse a página.

Certo, como podemos ter certeza disso?

Primeiro, as identidades do comandante Sato e de seu copiloto foram verificadas pelo FBI, através de exames de DNA. Testes separados conduzidos pela polícia nacional japonesa alcançaram resultados idênticos. Um laboratório independente checou esses testes com os seus, e novamente os resultados foram os mesmos. A possibilidade de um erro nesses testes é virtualmente zero.

Os outros membros da tripulação que permaneceram em Vancouver foram entrevistados pelo FBI e pela Real Polícia Montada do Canadá, e estão certos de quão comandante Sato estava a bordo da aeronave. Recebemos relatórios similares dos oficiais do Ministério do Transporte do Canadá e de passageiros americanos no voo — mais de cinquenta pessoas identificaram-no positivamente. Temos as impressões digitais do comandante Sato no plano de voo falsificado. A análise de impressão vocal nas fitas da cabine de comando também confirmou a identidade do piloto. Portanto, não há dúvida sobre a identidade da tripulação na aeronave.

Segundo, as fitas da cabine de comando do avião nos deram o momento exato do primeiro assassinato cometido pelo comandante Sato. Temos até mesmo a voz do comandante Sato gravada, desculpando-se ao homem que matou. Depois desse momento, a única voz nas fitas é a do piloto. As fitas na cabine de comando foram conferidas com outras gravações da voz do comandante Sato, e também estabeleceram positivamente sua identidade.

Terceiro, os testes forenses provaram que o copiloto estava morto pelo menos quatro horas antes da queda. Esse pobre homem foi morto com uma facada no coração. Também lemos motivos para acreditar que ele não teve nenhuma relação com o que aconteceu em seguida. Foi apenas a primeira vítima inocente de um ato monstruoso. Ele deixou uma esposa grávida, e eu gostaria de pedir a todos vocês que pensassem em sua perda e lembrassem dela e de seus filhos em suas orações.

A polícia japonesa cooperou inteiramente com o FBI, permitindo aos agentes acesso pleno à sua investigação e também que entrevistassem pessoalmente testemunhas e outros indivíduos. Temos agora um registro completo de tudo que o comandante Sato, durante as duas últimas semanas de sua vida, onde ele comeu, quando dormiu, com quem falou. Não encontramos nenhum indício de uma conspiração criminosa, ou que os atos desse homem enlouquecido tenham pertencido a um plano maior da parte de seu governo ou de qualquer outra pessoa ou organização. Essas investigações prosseguirão até que cada pedra tenha sido virada, até que cada possibilidade, ainda que remota, tenha sido completamente checada. Porém, as informações que temos neste momento seriam mais do que suficientes para convencer um júri, e é por causa disso que estou podendo apresentá-las a vocês.

Jack fez uma pausa, permitindo-se inclinar alguns centímetros para frente.

— Senhoras e senhores, o conflito entre nosso país e o Japão terminou.

Aqueles que o causaram enfrentarão a justiça. O primeiro-ministro Koga assegurou-me isso pessoalmente.

O Sr. Koga é um homem de honra e coragem. Posso agora dizer a vocês pela primeira vez que ele foi sequestrado e quase assassinado pelos mesmos criminosos que começaram o conflito entre seu país e o nosso. Ele foi resgatado de seus sequestradores por americanos, auxiliados por oficiais japoneses, numa operação especial no centro de Tóquio, e depois de seu resgate ele correu um grande risco pessoal para trazer um fim precoce ao conflito, e para salvar seu país e o nosso de mais danos. Sem o seu trabalho, muitas outras vidas teriam sido perdidas, em ambos os lados, lenho o orgulho de chamar Minoru Koga de amigo.

Há apenas alguns dias, minutos depois de chegar ao nosso país, o primeiro-ministro e eu nos encontramos secretamente, bem aqui no Salão Oval. Daqui fomos até o Capitólio, e lá rezamos juntos. Esse foi um momento que jamais esquecerei.

Eu também estava no Capitólio no momento da queda do avião. Eu estava no túnel entre a Casa Branca e o Capitólio, com minha mulher e filhos. Vi uma parede de chamas correr em nossa direção, parei e recuei. Provavelmente jamais esquecerei dos acontecimentos daquela noite. Gostaria de poder. Mas tenho contido essas lembranças da melhor forma que posso.

A paz entre os EUA e o Japão está completamente restaurada. Não temos, nem jamais tivemos, uma disputa com os cidadãos daquele país. Peço a todos vocês que ponham de lado os sentimentos negativos que possam nutrir pelos japoneses agora e nos tempos por vir.

Fez mais uma pausa e observou o texto parar de correr pela tela. Recorreu novamente à sua página impressa.

— Agora todos teremos uma grande missão à nossa frente.

Senhoras e senhores, um homem, um indivíduo perturbado e enlouquecido, pensou que podia causar um dano fatal ao nosso país. Ele estava errado. Nós enterramos nossos mortos. Lamentaremos sua perda durante muito tempo. Mas o nosso país vive, e os amigos que perdemos naquela noite horrível pensariam do mesmo modo.

Thomas Jefferson disse que a Árvore da Liberdade às vezes precisa de sangue para crescer. Bem, o sangue foi derramado, e agora é hora de essa árvore crescer de novo. A América é um país que olha para o futuro, não para o passado. Nenhum de nós pode mudara História. Mas podemos aprender com ela, construir a partir de nossos sucessos passados e corrigir nossos erros.

Por enquanto, posso garantir que nosso país está salvo e seguro. Nossos militares estão a serviço em todas as partes do mundo, e nossos inimigos potenciais sabem disso. Nossa economia recebeu um choque violento mas sobreviveu, e ainda é a mais forte no mundo. Esta ainda é a América. Ainda somos americanos, e nosso futuro começa com cada novo dia.

Hoje escolhi George Winston como secretário do Tesouro interino. George dirige uma grande companhia nova-iorquina de fundo mútuo que criou. Ele foi fundamental na reparação dos danos causados aos nossos mercados financeiros.

Ele é um homem que se fez a si mesmo — assim como a América é uma nação que se fez a si mesma. Em breve farei outras indicações ao gabinete, e reportarei cada uma a vocês à medida que as escolhas forem feitas.

Porém, George não poderá se tornar um secretário de gabinete pleno até que tenhamos restaurado o Senado dos Estados Unidos, cujos membros são incumbidos pela Constituição a aconselhar e consentir esse tipo de nomeação.

Selecionar novos senadores é o trabalho de governadores de diversos estados. A partir da semana que vem, os governadores escolherão indivíduos para preencher os postos deixados vagos.

Agora vinha a parte mais difícil. Ele se inclinou para a frente de novo.

— Companheiros americanos... espere, essa é uma frase da qual não gosto muito. Jamais gostei.

Jack balançou levemente a cabeça, esperando que isso não parecesse teatral.

— Meu nome é Jack Ryan. Meu pai foi tira. Comecei a servir ao governo como fuzileiro, logo depois que me graduei no Boston College. Isso não durou muito tempo. Fui ferido numa queda de helicóptero, e minhas costas não me deram sossego durante anos. Quando eu tinha 31 anos, meu caminho se cruzou com o de alguns terroristas. Todos já ouviram a história, e como ela acabou.

 

Mas o que vocês não sabem é que esse incidente é o motivo pelo qual voltei a servir ao governo. Apreciei minha vida até esse momento. Fiz um pouco de dinheiro como corretor da bolsa, e depois larguei tudo para me dedicar à História, meu primeiro amor. Ensinei História... eu adorava ensinar... na Academia Naval. Acho que eu teria sido feliz se ficasse lá para sempre, assim como minha esposa, Cathy, não tem paixão maior na vida do que exercer a medicina e cuidar de mim e de nossos filhos. Teríamos permanecido felizes vivendo em nossa casa, fazendo nossos trabalhos e cuidando de nossos filhos.

Sei que teríamos.

Mas não podíamos fazer isso. Quando aqueles terroristas atacaram minha família, decidi que tinha que fazer algo para proteger minha esposa e filhos.

Aprendi logo que não éramos apenas nós a precisar de proteção, e que eu tinha talento para algumas coisas. Assim, comecei a trabalhar para o governo e deixei para trás minha paixão pelo ensino.

Sirvo ao meu país... vocês... há vários anos, mas nunca fui um político, e como falei para George Winston hoje neste escritório, não tenho tempo para aprender a me tornar um. Mas estive dentro do governo a maior parte de minha vida profissional, e aprendi um pouco sobre como o governo deve funcionar.

Senhoras e senhores, este não é o momento para fazermos as coisas habituais do modo habitual. Precisamos melhorar essas coisas. Podemos fazer melhor.

John Kennedy nos disse certa vez: Não pergunte o que seu país pode fazer por você.

Pergunte o que você pode fazer pelo seu país. Essas são palavras boas, mas nós as esquecemos. Precisamos resgatar essas palavras. Nosso país precisa de nós.

Eu preciso da ajuda de vocês para fazer meu trabalho. Vocês estão enganados se pensam que posso fazer isso sozinho. Se pensam que o governo, consertado ou não, pode tomar conta de vocês em todos os aspectos, estão errados. Não é para ser assim. Vocês, os homens e mulheres aí fora, vocês são os Estados Unidos da América. Eu trabalho para todos. Meu trabalho é preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos, e farei isso com o máximo de minhas capacidades, mas cada um de vocês também fará parte do meu gabinete.

Precisamos que nosso governo faça por nós o que não podemos fazer sozinhos, como proporcionar a defesa nacional, impor a lei, reagir aos desastres. É isso o que a Constituição diz. Esse documento, ao qual jurei proteger e defender, é um conjunto de regras escrito por um grupo pequeno de homens bastante comuns. Em sua maioria, não eram nem mesmo advogados, e ainda assim escreveram o documento político mais importante da História humana. Quero que pensem nisso. Eles eram pessoas bastante comuns que fizeram algo extraordinário. Não há nenhuma magia em estar no governo.

 

Preciso de um Congresso novo para trabalhar comigo. O Senado chegará primeiro, porque os governadores designarão interinos para os homens e mulheres que perdemos na semana passada. A Câmara dos Deputados, porém, sempre foi a Casa do Povo, e é dever de vocês escolher essas pessoas numa urna, exercendo seus direitos. Aqui vamos nós, Jack.

Assim, tenho um pedido a fazer a vocês e aos cinquenta governadores. Por favor, não me mandem políticos. Não temos tempo para fazer as coisas que devem ser feitas através do processo habitual. Preciso das pessoas que fazem coisas reais no mundo real. Preciso das pessoas que não querem morar em Washington. Preciso das pessoas que não tentarão manter o sistema. Preciso das pessoas que virão à custa de grande sacrifício pessoal fazer um trabalho importante, e depois retornar para casa e para suas vidas normais.

Quero engenheiros que saibam como os prédios são construídos. Quero médicos que saibam fazer bem às pessoas doentes. Quero policiais que saibam o que significa quando o direito civil de vocês é violado por um criminoso.

Quero fazendeiros que cultivem comida de verdade em fazendas de verdade.

Quero pessoas que saibam o que é sujar as mãos, pagar uma conta de hipoteca, criar crianças e se preocupar com o futuro. Quero as pessoas que saibam que estão trabalhando para vocês e não para si mesmas. É isso que eu quero. E disso que preciso. Acredito que vocês também queiram algo parecido.

Quando uma dessas pessoas chegar aqui, será dever de vocês ficar de olho nela, para garantir que manterá sua palavra, para garantir que não trairá a confiança que depositaram nela. Este é o governo de vocês. Muitas pessoas já lhes disseram isso, mas estou sendo sincero. Digam aos seus governadores o que esperam deles quando fizerem as indicações ao Senado, e depois vocês mesmos selecionem as pessoas certas para a Câmara. Essas são as pessoas que decidem o quanto do seu dinheiro o governo deve recolher, e como ele será gasto. É o dinheiro de vocês, não o meu. É o país de vocês. Todos nós trabalhamos para vocês.

Da minha parte, escolherei as melhores pessoas que puder achar para o gabinete, pessoas que sejam boas no que fazem, pessoas que fizeram trabalho de verdade e obtiveram resultados positivos. Cada uma dessas pessoas receberá as mesmas ordens: cuidar de seu departamento, estabelecer prioridades e fazer cada agência governamental funcionar com eficácia. Essa é uma ordem importante, uma ordem que todos vocês já ouviram. Mas este presidente não concorreu numa campanha de eleição para chegar aqui.

Não tenho dívidas com ninguém, não tenho nenhuma recompensa para entregar, nenhuma promessa secreta para manter. Darei o máximo de mim para executar meus deveres. Nem sempre estarei certo, mas quando não estiver, o trabalho de vocês, e das pessoas que selecionarem para representá-los, é me dizer isso. E ouvirei a eles e a vocês.

Eu os manterei informados regularmente sobre a situação, e sobre como o seu governo está indo.

Quero agradecer-lhes por terem me escutado. Farei meu trabalho. Estou contando com vocês para fazerem o seu.

Obrigado e boa noite.

Jack esperou e contou até dez antes de ter certeza de que as câmeras estavam desligadas. Então, levantou o copo d água à sua frente e tentou beber dele, mas sua mão tremia tanto que quase derramou o líquido. Ryan fitou suas mãos com raiva silenciosa. Por que estavam tremendo agora? A parte tensa tinha acabado, não é mesmo?

— Ei, você não vomitou nem nada assim — disse Callie Weston, levantando bruscamente. Ela caminhou até ele.

— Isso é bom?

— É sim, presidente. Vomitar ao vivo para a nação inteira costuma perturbar as pessoas — respondeu a redatora de discursos com uma risada aguda.

Andréa Price fantasiou sobre puxar sua automática naquele momento.

Arnie van Damm simplesmente olhou para Ryan com um ar preocupado.

Ele sabia que seria incapaz de desviar Ryan de seu curso. A frase que os presidentes sempre respeitavam —se quer ser reeleito, preste atenção! — simplesmente não funcionaria com ele. Como poderia proteger alguém que não se preocupava com a única coisa realmente importante?

 

Isso não pareceu um programa de calouros? — perguntou Ed Kealty.

— Quem escreveu esse bilhete de suicídio? — manifestou-se o conselheiro jurídico de Kealty.

Todos os três homens no quarto voltaram sua atenção para o televisor. A imagem mudou de uma tomada externa da Casa Branca para o estúdio da rede.

— Bem, essa foi uma declaração política muito interessante — observou Tom, o ancora, com a voz inexpressiva de um jogador de pôquer. — Vejo que desta vez o presidente seguiu seu discurso preparado.

— Interessante e dramático — concordou John, o comentarista. — Não é todo dia que ouvimos esse tipo de discurso presidencial.

— John, por que o presidente Ryan insiste tanto em recorrerão auxílio de pessoas inexperientes para que o ajudem a governar? Não precisamos de mãos experimentadas para reconstruir o sistema? — perguntou Tom.

— Essa é uma pergunta que muitos farão, especialmente nesta cidade.

— Pode apostar que sim — observou o chefe de pessoal de Kealty.

— ... e o que é mais interessante é que Ryan deve saber disso. E mesmo que não seja, seu chefe de gabinete, Arnold van Damm, que é o operador político mais sagaz desta cidade já viu, deve ter deixado isso muito claro ao presidente.

— E quanto à primeira indicação de Ryan ao gabinete, o Sr. George Winston?

— Winston é o presidente do Columbus Group, uma companhia de capital mútuo fundada por ele. Winston é imensamente rico e, como o presidente nos disse, um homem que se fez sozinho. Bem, queremos um secretário do Tesouro que entenda de economia e mercados financeiros, e, com toda certeza, o Sr.

Winston se enquadra nesse perfil. Porém, muitos reclamarão, dizendo...

— ...que ele é de dentro — completou Kealty com um sorriso malicioso.

— ...e, portanto, com muitos contatos no sistema — prosseguiu John.

— Como acha que as autoridades de Washington reagirão a esse discurso? — perguntou Tom.

 

— Quais autoridades de Washington? — grunhiu Ryan.

Essa era uma experiência nova para ele. Seus dois livros tinham sido bem aceitos pela crítica, mas ele tivera de aguardar alguns semanas para ler os comentários. Talvez fosse um erro assistir à análise imediata, mas era impossível evitar. O mais difícil era acompanhar o que todas as emissoras estavam dizendo ao mesmo tempo.

— Jack, as autoridades de Washington são os cinquenta mil advogados e lobistas — explicou Arnie. — Eles podem não ter sido eleitos nem designados, mas pode ter certeza de que a palavra deles conta. E a da mídia também.

— Estou vendo — replicou Ryan.

 

— E nós precisamos de profissionais experientes para reconstruir o sistema.

É isso que dirão, e muita gente nesta cidade concordará com eles.

— Que achou sobre as revelações que ele fez sobre a guerra e a queda?

— A que me interessou mais foi a revelação de que o primeiro-ministro Koga foi sequestrado por homens de seu próprio país e resgatado por americanos. Seria interessante descobrir mais a esse respeito. O presidente tem nosso respeito por seu desejo evidente em acertar as coisas entre nosso país e o Japão. Junto com o discurso do presidente, a Casa Branca nos enviou uma fotografia. — A imagem transmitida pela emissora mudou para uma de Ryan e Koga no Capitólio. — Esse foi um momento comovente capturado pelo fotógrafo da Casa Branca...

— Mas o prédio do Capitólio ainda está arruinado, John, e da mesma maneira que precisamos de arquitetos e trabalhadores qualificados para reconstruí-lo, precisamos de pessoas experientes para restabelecer o governo, não de amadores. — Tom virou-se para falar diretamente à câmera. — Assim, esse foi o primeiro discurso oficial do presidente Ryan. Aguardem novas notícias em nossos telejornais ou em edições extraordinárias. Agora voltaremos à programação normal.

— Esse é o nosso tema, Ed. — O chefe de pessoal levantou-se e se espreguiçou. — E isso que precisamos dizer. Esse é o motivo que fez você decidir voltar à arena política, por piores que sejam as consequências à sua reputação.

— Comece a dar seus telefonemas — ordenou Edward J. Kealty.

 

— Sr. presidente — o mordomo ofereceu-lhe uma bandeja prateada com uma bebida. Ryan pegou o cálice de xerez.

— Obrigado.

— Presidente, finalmente...

— Mary Pat, há quanto tempo nos conhecemos? — Ryan tinha a impressão de que falava isso o tempo todo.

— Há pelo menos dez anos — respondeu a Sra. Foley.

— Pois aqui está uma nova regra presidencial, ou melhor, uma ordem executiva: quando nos encontrarmos depois do expediente para beber, chame-me de Jack.

— Muy bien, jefe — observou Chavez, bem-humorado, mas com uma expressão reservada.

— O Iraque? — inquiriu Ryan diretamente.

— Quieto, mas, muito tenso — respondeu Mary Pat. — Não estamos recebendo muitas notícias sobre eles, mas o que recebemos indica que foi decretado estado de sítio. O exército está nas ruas, e as pessoas estão em suas casas assistindo TV. O enterro do nosso amigo será amanhã. Não sabemos o que acontecerá depois disso. Temos um agente muito bem posicionado na arena política do Irã. Segundo ele, o assassinato foi uma surpresa total. A única coisa que está ouvindo são louvações a Alá por ter chamado nosso amigo de volta.

— Considerando que Deus o tenha desejado ao seu lado. Foi um belo trabalho — disse Clark, falando com conhecimento de causa. — Bastante típico num sentido cultural. Um mártir, sacrificando a si mesmo e tudo mais. Colocar o sujeito lá dentro deve ter levado anos, mas nosso amigo Daryaei é um tipo paciente. Bem, você o conheceu. Como ele é Jack?

— Tem os olhos mais bravos que já vi — disse Ryan, bebericando calmamente o xerez. — Aquele homem sabe odiar.

— Ele vai fazer uma ofensiva, tenho certeza. — Clark estava bebendo um Wild Turkey com água. — Os sauditas devem estar um pouco tensos com isso.

— Eufemisticamente falando — disse Mary Pat. — Ed está lá há alguns dias, e disse que eles estão em polvorosa. Eles intensificaram o estado de prontidão do exército.

— E isso é tudo que sabemos — condensou o presidente Ryan.

 

— Para todos os propósitos práticos, sim. O Siglnt está nos enviando um relatório diário do Iraque, e o que estamos recebendo é previsível. A tampa está bem apertada, mas a chaleira está fervendo. Estamos ampliando a varredura dos satélites...

— Certo, Mary Pat, vá direto ao assunto — ordenou Jack. Ele não queria ouvir sobre fotografias de satélites.

— Quero aumentar meu diretório.

— Em quanto? — perguntou Ryan. Então observou a mulher respirar fundo.

Não estava acostumado a ver Mary Patrícia Foley tensa.

— Quero triplicar o contingente. Temos um total de 657 agentes de campo.

Quero aumentar esse número para dois mil durante os próximos três anos — disse Mary apressadamente, fitando o rosto de Ryan à espera de uma reação.

— Aprovado, se puder imaginar uma forma neutra de acomodar isso na folha de pagamento.

— Isso é fácil, Jack — observou Clark com um risinho. — Despeça dois mil burocratas e ainda economizará dinheiro.

— Essas pessoas têm família, John — disse o presidente.

— Os Diretórios de Informação e Administração têm mais funcionários do que precisam. Você já esteve lá e sabe disso. O mínimo que conseguirá com uma reforma como essa será solucionar o problema da falta de vagas nos estacionamentos. A maioria dos casos poderão ser resolvidos com planos de antecipação de aposentadoria.

Ryan pensou sobre isso durante um segundo.

— Preciso de alguém para balançar o machado. MP, será que você aguenta ficar debaixo de Ed novamente?

— E a posição habitual, Jack — replicou a Sra. Foley, com uma piscadela de seus olhos azuis. — Ed é um administrador mais capaz que eu, mas sempre fui melhor nas ruas.

— Plano Azul?

Clark respondeu a essa pergunta.

— Sim, senhor. Quero buscar tiras, detetives jovens, oficiais de uniforme.

Você sabe a razão. Eles possuem um treinamento básico muito bom. E conhecem o submundo.

Ryan assentiu.

— Certo. Mary Pat, semana que vem aceitarei, com pesar, a carta de demissão do diretor da CIA e designarei Ed em seu lugar. Mande-o apresentar-me um plano para aumentar o contingente de oficiais de campo e reduzir a folha de pagamento de funcionários administrativos. Aprovarei o plano no momento apropriado.

— Maravilha! — disse a Sra. Foley, erguendo um brinde.

— Há uma outra coisa. John?

— Sim, senhor?

 

— Quando Roger me pediu para aceitar o cargo de vice, impus uma condição.

— Qual?

— Vou emitir um indulto presidencial para um cavalheiro chamado John T.

Kelly. Isso será feito este ano. Você deveria ter-me contado que papai trabalhou em seu caso.

Pela primeira vez em muito tempo, Clark ficou pálido como um fantasma.

— Como você soube?

— Estava nos arquivos pessoais de Jim Greer. Eu meio que herdei seus arquivos, alguns anos atrás. Meu pai trabalhou no caso. Todas aquelas mulheres assassinadas. Lembro como aquilo perturbava meu pai, e como ele ficou feliz quando o caso foi encerrado. Ele nunca me falou realmente sobre o caso, mas eu sabia como se sentia a respeito. — Jack olhou para sua bebida, girando o gelo no copo. — Se quiser um bom palpite, acho que ele concordaria com a minha decisão, e acho que gostaria de saber que você não afundou com o navio.

— Meu Deus, Jack... Quero dizer... Meu Deus!

— Você merece recuperar seu nome. Não posso aprovar as coisas que fez.

Não tenho permissão para pensar desse modo agora. Talvez como cidadão eu achasse... Bem você merece seu nome de volta, Sr. Kelly.

— Obrigado, senhor.

Chavez tentou imaginar sobre o que estavam falando. Ele se lembrou daquele sujeito em Saipan, o chefe da Guarda Costeira aposentado, e algo que dissera sobre matar pessoas. Bem, ele sabia que o Sr. C não desmaiava ao pensar no assunto, mas estava curioso em ouvir essa história.

— Mais alguma coisa? — perguntou Jack. — Gostaria de ver minha família antes que as crianças dormissem.

— Então o Plano Azul está aprovado?

— Está sim, MP Assim que Ed escrever um plano para implementá-lo.

— Mandarei que ele volte assim que seu avião estiver pronto — prometeu MP.

— Bom. —Jack levantou e caminhou até a porta. Seus convidados fizeram o mesmo.

— Sr. Presidente? — Era Ding Chavez. Ryan virou.

— Sim?

— Que vai acontecer com as primárias?

— Que quer dizer?

— Passei na escola hoje, e o Dr. Alpher lembrou que todos os candidatos sérios dos dois partidos foram mortos semana passada, e os prazos finais de inscrição para as primárias passaram. Ninguém mais pode se inscrever.

Estamos num ano de eleição, e ninguém está concorrendo. A imprensa ainda não falou muito sobre isso.

Até mesmo a agente Price piscou ao ouvir isso, mas um instante depois todos sabiam que era verdade.

 

— Paris?

— O professor Rousseau do Instituto Pasteur acredita que desenvolveu um tratamento. É experimental, mas é a única chance que ela tem.

Estavam falando no corredor, em frente ao quarto da irmã Jean Baptiste, ambos usando roupas espaciais de plástico azul e suando dentro delas, apesar de seu sistema de controle ambiental. Sua paciente estava morrendo e, embora isso fosse muito ruim, a maneira como ocorreria sua morte estava além do poder descritivo das palavras. Benedict Mkusa fora um felizardo. Por algum motivo, o Ebola atacara seu coração mais cedo que o usual. Esta paciente não teria a mesma sorte. Os exames de sangue mostravam que seu fígado estava sendo atacado, mas lentamente. As enzimas cardíacas estavam normais. O Ebola estava avançando dentro de seu corpo num ritmo rápido mas uniforme. Seu sistema gastrointestinal estava se desmanchando literalmente. O sangramento resultante, com vômito e diarreia, era sério, e a dor causada por ele era intensa, mas o corpo da mulher estava reagindo valorosamente para se salvar. A única recompensa por esse esforço seria aumentar a dor, e a morfina já estava perdendo sua batalha para impedir o progresso da agonia.

— Mas como nós... — Ela não precisava prosseguir. A Air Afrique tinha o único voo regular para Paris, mas nem aquela aeronave nem nenhuma outra transportaria um paciente do Ebola, por motivos óbvios. Tudo isso era perfeitamente adequado ao Dr. Moudi.

— Posso conseguir transporte. Pertenço a uma família rica. Tenho como mandar vir um jato particular até aqui e levar-nos a Paris. É mais fácil tomar todas as precauções necessárias dessa forma.

— Eu não sei. Eu terei de... — hesitou Maria Magdalena.

— Não mentirei para a senhora, irmã. Ela provavelmente morrerá de qualquer jeito, mas se houver alguma chance, está nas mãos do professor Rousseau. Estudei com ele, e se ele diz que descobriu alguma coisa, é porque descobriu. Deixe-me chamar o avião — insistiu.

— Não posso negar isso, mas devo...

— Entendo.

 

O avião era um Gulfstream G-IV, e acabara de pousar no aeródromo Rashid, localizado a leste de um braço sinuoso do rio Tigre, conhecido localmente como Nahr Dulah. O código perto da cauda da aeronave denotava registro suíço, e era propriedade de uma empresa que realizava diversos empreendimentos e pagava seus impostos nas datas certas, o que era tudo que o governo suíço queria saber. O voo fora curto e sem incidentes, e os únicos desconfortos haviam sido a hora do dia e a rota, Beirute para Teerã e de lá para Bagdá.

Seu nome verdadeiro era Ali Badrayn, e embora tivesse vivido e trabalhado sob diversos nomes, voltara finalmente ao seu porque era iraquiano em origem.

Sua família trocara o Iraque pela oportunidade econômica na Jordânia, mas então fora apanhada, como todo mundo, em meio à turbulência da região, situação que não foi amenizada pela decisão de seu filho em se alistar ao movimento que poria fim a Israel. A ameaça percebida pelo rei da Jordânia, e sua subsequente expulsão dos elementos ameaçadores, arruinara a família de Badrayn, não que ele tivesse se importado muito com isso.

Badrayn se importava agora, um pouco. A vida de um terrorista ficava mais arriscada com o acúmulo dos anos, e embora fosse um dos melhores em sua linha, especialmente no que dizia respeito a coleta de informações, tinha poucas provas de seu trabalho além da inimizade eterna do serviço de informação mais antigo do mundo. Um pouco de conforto e segurança seriam bem-vindos. Talvez esta missão permitisse isso. Sua identidade iraquiana e as atividades de sua vida tinham lhe valido contatos por toda a região. Provera informações para o serviço de informação iraquiano, e ajudara e localizara e eliminara duas pessoas sob suas ordens. Isso lhe dava salvo-conduto na região, e era o motivo para ele ter vindo.

O avião finalizou seu taxiamento, e o copiloto apareceu para abaixar a escadinha. Um carro estacionou em frente à aeronave. Ele entrou no carro, que começou a se mover mediatamente.

— A paz esteja convosco — disse ao outro homem no Mercedes.

— Paz? — rosnou o general. — O mundo grita que já tivemos paz demais.

Badrayn reparou que o homem parecia não ter dormido desde a morte de seu presidente. Suas mãos tremiam devido à ingestão excessiva de café, ou talvez ao álcool que usara para contrabalançar a cafeína. Não devia ser agradável planejar a semana seguinte e se perguntar se conseguiria viver até o seu fim.

Por um lado era preciso ficar acordado. Por outro, era preciso escapar. Este general tinha família e filhos, além de uma amante. Bem, provavelmente todos eles tinham. Bom.

— Não é uma situação feliz, mas as coisas estão sob controle, certo?

O olhar gerado pela pergunta bastou como resposta. A única coisa boa que podia ser dita era que se o presidente tivesse sido apenas ferido, o general agora estaria morto por não ter detectado o assassino. Era um trabalho perigoso ser chefe do serviço nacional de informações de um ditador, e um que fazia muitos inimigos. Ele tinha vendido a alma ao demônio, e dito a si mesmo que jamais pagaria a dívida. Como um homem brilhante podia ser tão ingênuo?

— Por que você está aqui? — indagou o general.

 

— Para oferecer-lhe uma ponte de ouro.


13

Gênio e Figura

Havia tanques nas ruas, e tanques eram considerados sensuais pelos homens que tinham como dever procurá-los e contá-los. Havia três satélites de reconhecimento KH-11 em órbita. Um deles, lançado há 11 anos, morria lentamente. Há muito desprovido de combustível de manobra, e com um dos painéis solares danificados ao ponto de não poder mais captar energia para acender uma lanterna, o satélite ainda podia bater fotografias através de suas câmeras e transmiti-las para a aeronave de comunicações geossincronizada sobre o oceano Índico. Menos de um segundo depois, as fotos foram transmitidas e encaminhadas para diversos departamentos de interpretação, entre eles a CIA.

— Acho que os batedores de carteira vão morrer de fome — disse o analista.

Ele olhou o relógio e acrescentou oito horas. Certo, aproximadamente Lima dez da manhã ou hora local. As pessoas deveriam estar nas ruas, trabalhando, movendo-se, confraternizando nos muitos restaurantes ao ar livre, bebendo a pavorosa versão local do café. Mas não hoje. Não com tanques nas ruas. Alguns indivíduos andavam pelas ruas, principalmente mulheres, a julgar pelas aparências, provavelmente fazendo compras. Havia um grande tanque de batalha estacionado a cada quatro quarteirões nas avenidas principais — e um em cada círculo de tráfego, que eram muitos — acompanhados de veículos mais leves nas ruas laterais. Pequenos cordões de soldados estavam parados em cada cruzamento. As fotos mostravam que todos portavam fuzis, mas não era possível discernir seus postos.

— Faça uma contagem — instruiu o supervisor.

— Sim, senhor — respondeu o analista sem resmungar. Contar tanques era uma coisa que sempre faziam. Ele até mesmo iria classificá-los por tipo, mediante a checagem do canhão principal. Fazendo isso seriam capazes de determinar quantos dos tanques regularmente contados nos acampamentos tinham ligado seus motores e se movido de um lugar para outro. A informação era importante para uma ou outra pessoa, embora nos últimos dez anos em que faziam isso, tivessem constatado que, apesar das fraquezas do exército iraquiano, a manutenção dos tanques era realizada com frequência suficiente para mantê-los funcionando. O país era menos diligente em relação à sua artilharia, o que tinham aprendido na Guerra do Golfo, mas como o analista já comentara, você olha para um tanque e conclui que ele funciona. Era a única atitude prudente. Ele se curvou sobre o visor e notou que um carro branco — a julgar pela forma, provavelmente uma Mercedes — estava se movendo ao longo da Rota Nacional 7. Se tivesse olhado as fotos i ura mais atenção, o analista teria percebido que o veículo se dirigia ao hipódromo de Silbaq ai Mansur, onde havia mais automóveis do mesmo tipo à sua espera. Mas ele tinha recebido apenas ordens de contar os tanques.

 

Em poucos lugares do mundo as variações climáticas são mais surpreendentes do que no Iraque. Nesta manhã de fevereiro, com o sol alto no céu, o frio estava quase enregelante, embora no verão a temperatura pudesse alcançar os 46 graus. Badrayn reparou que os oficiais reunidos vestiam seus uniformes de lã, com colarinhos altos e volumosos festões dourados; a maioria estava fumando, e muitos estavam preocupados. Seu anfitrião apresentou o visitante àqueles que não o conheciam. Eles não estavam dispostos a realizar as saudações islâmicas tradicionais. Esses homens tinham uma aparência surpreendentemente ocidental e eram completamente discretos em aparência e modos. Como seu falecido líder, professavam sua religião apenas da boca para fora, embora no momento todos se perguntassem se os ensinamentos da danação eterna por uma vida criminosa eram verdadeiros, sabendo que alguns deles provavelmente descobririam isso em breve. Essa possibilidade preocupava-os tanto que tinham deixado seus escritórios e ido para o hipódromo ouvi-lo falar.

A mensagem que Badrayn precisava transmitir era simples. Fez isso concisamente.

— Como podemos confiar em você? — perguntou o chefe do exército quando ele terminou.

— Desta forma é melhor para todos, não é verdade?

— Espera que abandonemos nossa terra natal para... — ele inquiriu um general de campo, disfarçando sua frustração como raiva.

— Não é da minha conta o que vocês decidirem, general. Se quiserem permanecer lutar pelo que é seu, a decisão será de vocês. Pediram-me para vir aqui e transmitir a mensagem. Fiz isso — respondeu Badrayn calmamente. Não havia motivo para perder a cabeça com coisas como essa, afinal.

— Com quem negociaremos? — Esta veio do chefe da Força Aérea iraquiana.

— Vocês devem responder a mim, mas como eu lhes disse, não há nada realmente para negociar. A oferta é justa, não é mesmo?

Generosa seria um termo mais adequado. Além de salvar sua pele, e a pele das pessoas próximas a eles, todos emergiriam de seu país ricos. Seu presidente desviara imensas quantidades de dinheiro. Todos tinham acesso a documentos de viagem e passaportes de qualquer país no mundo conhecido. Nessa área particular, o serviço nacional de informações do Iraque, assessorado pelo departamento do Tesouro, provara havia muito sua eficácia.

— Vocês terão a palavra dele diante de Deus de que não serão importunados, para qualquer parte que forem.

E isso era uma coisa que eles precisavam considerar cuidadosamente. O patrocinador de Badrayn era seu inimigo. Ele era tão amargo e desprezível quanto qualquer outro homem na Terra. Mas era também um homem de Deus, que não invocaria o nome Dele em vão.

— Para quando precisa de nossa resposta? — indagou o chefe do exército, mais polidamente que os outros.

— Amanhã será suficiente, ou até mesmo depois de amanhã — disse Badrayn. Depois disso, não posso assegurar nada. Minhas instruções vão apenas até aí.

— E os preparativos?

— Vocês mesmos poderão cuidar disso, dentro dos limites da razão. — Badrayn perguntou-se o quanto mais poderiam esperar dele, ou de seu patrocinador.

Mas a decisão que ele estava exigindo era difícil. Os generais reunidos ali não nutriam o tipo habitual de patriotismo. Amavam seu país, mas principalmente porque o controlavam. Detinham poder, poder genuíno de vida e morte, narcótico muito mais poderoso que dinheiro e uma das coisas pelas quais um homem podia arriscar vida e alma. Um deles poderia assumir com sucesso a presidência do país, e juntos seriam capazes de acalmar a situação e fazer as coisas seguirem seu curso. Claro que seria preciso abrir um pouco a nação para o mundo. Permitiram que as Nações Unidas e outras organizações de inspeção bisbilhotassem tudo, mas com a morte de seu líder, teriam outra chance de recomeçar, mesmo que todos soubessem que nada de novo estava acontecendo. Essas eram as regras do mundo. Uma promessa aqui e acolá, alguns comentários sobre democracia e eleições, e seus ex-inimigos dariam uma chance ao país. Um incentivo adicional era simplesmente a oportunidade.

Havia anos nenhum deles se sentia realmente seguro. Todos sabiam de colegas que tinham morrido, pelas mãos do falecido líder ou sob circunstâncias chamadas eufemisticamente misteriosas — quedas de helicóptero tinham sido uma das artimanhas favoritas do presidente. Agora tinham uma chance de exercer poder com uma confiança maior, e o contrário disso seria uma vida indolente em alguma terra estrangeira. Todos possuíam a vida luxuosa dos sonhos de qualquer homem e mais poder. Quando estalavam seus dedos, as pessoas que surgiam prestativas não eram meros servos, mas soldados...

Com exceção de uma coisa. Permanecer seria apostar suas vidas num jogo de risco sem precedentes. Seu país jamais estivera sob controle tão rigoroso, e havia um motivo para isso. As pessoas que bradavam seu amor e afeição pelo morto... o que elas realmente pensavam? Sua opinião teria sido desprezível uma semana antes, mas era vital agora. Os soldados que eles comandavam vinham do mesmo mar humano. Qual deles tinha o carisma necessário para assumir a liderança do país? Qual deles tinha as chaves para o partido Baath? Qual deles poderia reger pela força da vontade? Porque só então poderiam olhar para o futuro, senão sem medo, ao menos com uma quantidade suficientemente pequena de coragem para, com sua experiência, lidar com as chances que se descortinariam à frente. Cada um daqueles generais, parados no hipódromo, olhava em torno para os irmãos oficiais com a mesma pergunta na mente: Qual deles?

Esse era o problema, porque se houvesse um entre eles capaz de assumir tamanha responsabilidade, já estaria morto, provavelmente num trágico acidente de helicóptero. E uma ditadura não era operada em comitê. Por mais fortes que fossem e se sentissem, cada um olhava para o outro e via fraquezas potenciais. Seriam destruídos por invejas pessoais. As rivalidades internas causariam turbulência e a mão de ferro que controla o povo enfraqueceria. Em alguns meses tudo desmoronaria. Já tinham visto isso acontecer, e o resultado final seria suas mortes, diante de um pelotão de seus próprios soldados, com um paredão às costas.

Para esses homens, não havia outros senão o poder e seu exercício. Isso satisfaria um homem, mas não muitos. Muitos precisavam unir-se em torno de algo que conferisse uma aparência comum, fosse uma regra imposta por um superior ou uma ideia. Individualmente nenhum deles era capaz de impor regras sozinho, e, coletivamente, não conseguiriam perseguir uma mesma ideia. Por mais poderosos que fossem, todos tinham uma fraqueza fundamental e os oficiais ali parados, olhando em volta uns para os outros, sabiam disso. No fundo, não acreditavam em nada. O que forçavam com armas não podiam impor c um vontade. Podiam comandar da retaguarda, mas não liderar pela frente. Pelo menos a maioria era inteligente o bastante para saber disso. Esse fora o motivo que fizera Badrayn vir para Bagdá.

Ele observou os olhos e, embora os rostos permanecessem impassíveis, soube o que s generais estavam pensando. Um homem valoroso falaria com confiança e assumiria a liderança do grupo. Mas os valorosos estavam mortos havia muito, ceifados por um indivíduo mais forte e cruel. E agora esse homem também fora ceifado por mão invisível, mais paciente e cruel, que vinha procurá-los com uma oferta generosa. Badrayn sabia qual seria a resposta, e eles também. O presidente morto do Iraque não deixara ninguém para sucedê-lo, mas essa era a filosofia dos homens que não acreditavam em nada além de si próprios.

 

Esta vez o telefone tocou às 6:05. Ryan não se importava em acordar antes das 00. Esse era seu costume havia muitos anos, mas nessa época ele teria de dirigir até o trabalho. Agora que o trabalho ficava a uma caminhada de distância até um elevador, Ryan esperava aproveitar o tempo que passaria no carro para descansar um pouco mais. Pelo menos, seria capaz de cochilar no banco traseiro do carro oficial.

— Alô.

— Presidente?

Jack ficou surpreso em ouvir a voz de Arnie. Mesmo assim, ficou tentado a perguntar se ele não poderia acordar outra pessoa.

— Que foi?

— Problemas.

 

O vice-presidente Edward J. Kealty não dormira a noite inteira, mas ninguém conseguiria perceber. Rosto bem barbeado, branco dos olhos impecável, coluna ereta, Kealty adentrou a passo de marcha o prédio da CNN com a esposa e seus auxiliares, sendo recebido por um produtor que o conduziu até um elevador. Na viagem até o andar superior foram trocadas as saudações costumeiras, mas o político de carreira simplesmente permaneceu olhando para a frente, como se tentando convencer as portas de aço inoxidável de que tinha certeza do que estava prestes a fazer. E de que seria bem-sucedido.

Os telefonemas preparatórios tinham sido dados durante as três últimas horas, começando com o presidente da rede. Amigo de longa data, o executivo de TV ficara pasmado pela primeira vez em sua carreira. Um homem como ele não se surpreendia com quedas de avião, colisões de trem, crimes violentos — os desastres rotineiros que eram o ganha-pão da mídia — mas algo assim era a ocorrência de uma vida. Duas horas antes, telefonara para Arnie van Damm, outro amigo velho, porque, como repórter, precisava conferir as bases; além disso, havia nele um amor pela pátria que raramente expressava mas que mesmo assim existia, e o presidente da CNN não fazia a menor ideia de que direção tomar. Ele telefonara para o correspondente jurídico da rede, um advogado de defesa fracassado, que, por sua vez, estava agora ao telefone com um catedrático da faculdade de direito da Universidade de Georgetown. E mesmo agora, o presidente da CNN ligou para a sala verde.

— Tem certeza, Ed? — era tudo que tinha a perguntar.

— Não tenho alternativa. Queria ter — foi a resposta esperada.

— O funeral é seu. Vou assistir de camarote.

E o telefone emudeceu. Ao afastar a mão do aparelho, o presidente da CNN flagrou-se eufórico. Seria uma puta matéria, e a função da CNN era reportar notícias, e ponto final.

 

— Arnie, isso é uma loucura completa ou ainda estou sonhando?

Estavam numa sala de estar no andar de cima. Jack vestira roupas caseiras.

Van Damm ainda não estava de gravata e Ryan notou que suas meias não combinavam. O pior de tudo era que van Damm parecia agitado de uma maneira que ele nunca vira antes.

— Acho que tudo que temos a fazer é sentar e esperar. Os dois se viraram quando a porta se abriu.

— Presidente?

Entrou um homem na casa dos cinquenta, apropriadamente vestido em trajes de negócios. Era alto e tinha uma aparência apressada. Andréa o seguiu.

Ela também fora atualizada sobre a situação, até onde era possível.

— Este é Patrick Martin — disse Arnie.

— Divisão Criminal da Secretaria de Justiça, certo? —Jack levantou para apertar a mão do homem e fazer um gesto na direção da bandeja de café.

— Sim, senhor. Estive trabalhando com Dan Murray na investigação do acidente.

— Pat é um de nossos melhores advogados. Ele também ensina lei constitucional na George Washington — explicou o chefe de gabinete.

— E então, o que acha disso tudo? — perguntou o presidente, sua voz ainda entre a descrença e o ultraje.

— Acho que precisamos ver o que ele tem a dizer — respondeu o homem, que era a imagem do advogado.

— Há quanto tempo na Secretaria de Justiça? — foi a pergunta seguinte de Jack, retornando à sua cadeira.

— Vinte e seis anos. Antes passei quatro anos no FBI. Martin serviu uma xícara e de repente se levantou.

— Lá vamos nós — comentou van Damm, tirando o televisor da função mudo .

— Senhoras e senhores, temos conosco em nosso estúdio de Washington o vice-presidente Edward J. Kealty.

O principal correspondente político da CNN também parecia ter sido arrancado da cama e genuinamente abalado. Ryan notou que, de todas as pessoas que vira naquele dia, Kealty parecia o mais normal.

— O senhor tem uma declaração incomum a fazer.

— Tenho sim, Barry. Provavelmente preciso começar dizendo que esta é a atitude política mais difícil que tomei em trinta anos de vida pública. — A voz de Kealty estava calma e contida, falando num tom de um defensor de tese, lenta, pausadamente, com uma seriedade dolorida. — Como todos sabem, o presidente Durling pediu-me para renunciar à vice-presidência. O motivo para isto foi uma questão de conduta pessoal enquanto eu era senador. Barry, não é segredo que minha conduta pessoal nem sempre foi exemplar como deveria.

Isso é comum na vida política, embora não seja desculpa. Quando Roger e eu discutimos a situação, concordamos que seria melhor para mim renunciar ao cargo, o que lhe permitiria selecionar um novo vice para a campanha de reeleição no final deste ano. Em seguida, ele escolheu John Ryan como vice-presidente interino.

Barry, fiquei satisfeito com isso. Estou na vida pública há muito tempo, e a ideia de me aposentar para brincar com meus netos, e talvez dedicar-me um pouco ao ensino, me seduziu. Assim, concordei com o pedido de Roger visando ao bem-estar da nação. Mas nunca cheguei realmente a renunciar.

— Certo — disse o correspondente da CNN, abrindo as palmas como se preparando para pegar uma bola numa partida de beisebol. — Creio que precisamos ser realmente claros nesse aspecto, senhor. Que aconteceu de fato?

— Barry, fui de carro até o Departamento de Estado. Entenda, a Constituição especifica que quando o vice-presidente ou o presidente dos Estados Unidos renunciam, esse pedido deve ser apresentado ao secretário de Estado. Estive secretamente com o secretário Hanson para discutir o assunto.

Eu tinha realmente uma carta de demissão preparada, mas ela estava redigida da forma errada, e Brett e eu a revisamos. Assim, dirigi de volta para minha casa, planejando reescrever a carta e submetê-la no dia seguinte.

Nenhum de nós esperava os eventos daquela noite. Fiquei terrivelmente abalado, como a maioria das pessoas. No meu caso, bem, você sabe, tive muitos companheiros mortos naquele ato brutal e covarde. Mas nunca cheguei realmente a renunciar ao meu cargo.

Kealty baixou os olhos por um momento, mordendo o lábio antes de prosseguir.

— Barry, eu teria ficado satisfeito com minha decisão. Dei minha palavra ao presidente Durling, e tinha todas as intenções de cumpri-la. Mas não posso.

Simplesmente não posso. Deixe-me explicar.

Conheço Jack Ryan há dez anos. Ele é um bom homem, um homem corajoso, e serviu nosso país com honra. Mas, infelizmente, não é o homem ideal para sarar as feridas de nosso país. O que ele disse ontem à noite, tentando falar com o povo americano, prova isso. Como podemos esperar que nosso governo funcione sob essas circunstâncias sem pessoas hábeis para preencher as vagas?

— Mas ele é o presidente... não é? — indagou Barry, mal acreditando no que estava fazendo e no que estava ouvindo.

— Barry, ele nem mesmo sabe como fazer uma investigação apropriada.

Veja o que ele disse ontem à noite sobre a queda do avião. Mal passou uma semana e ele diz que já sabe o que aconteceu. Alguém pode acreditar nisso? — questionou Kealty com um ar preocupado. — Alguém pode realmente acreditar nisso? Quem está supervisionando essa operação? Quem está realmente gerindo-a? A quem estão reportando? E como chegaram a conclusões em uma.semana? Como o povo americano pode confiar nisso? Quando o presidente Kennedy foi assassinado, a investigação durou meses. Ela foi gerida pelo juiz da Suprema Corte. Porquê? Porque ele tinha de ter certeza, simplesmente por causa disso.

— Perdoe-me, vice-presidente, mas isso realmente não responde à minha pergunta.

— Barry, Ryan jamais foi vice-presidente, porque eu não renunciei. O posto nunca esteve vago, e a Constituição permite apenas um vice-presidente. Ele nem sequer chegou a fazer o juramento associado ao cargo.

— Mas...

— Você acha que eu quero isso? Não tive escolha. Como podemos reconstruir o Congresso e o executivo com amadores? O Sr. Ryan pediu ontem aos governadores que lhe mandassem pessoas sem experiência em governo.

Como pessoas que não entendem nada de governo poderão redigir leis?

Barry, nunca cometi suicídio público antes. É como ser um dos senadores no julgamento do impeachment de Andrew Johnson. Estou olhando para minha sepultura política, mas preciso colocar o país em primeiro lugar. Preciso.

A câmera fechou em zoom no rosto de Kealty, e a angústia ali manifestada.

Quase podia-se ver lágrimas em seus olhos enquanto a voz proclamava seu patriotismo altruísta.

— Ele sempre foi bom na TV — julgou van Damm.

— Estou com dificuldade em acreditar nisso tudo — disse Ryan depois de um momento.

— Acredite — disse-lhe Arnie. — Sr. Martin, precisamos de alguma orientação jurídica.

— Antes de mais nada, mande alguém checar o escritório da Secretaria de Estado.

— FBI? — perguntou van Damm.

— Sim — assentiu Martin. — Você não achará nada, mas é assim que começa.

Depois verifique registros telefônicos e anotações. Em seguida começaremos a entrevistar pessoas. Isso será problemático. O secretário Hanson está morto, juntamente com sua esposa, e o presidente e a Sra. Durling, claro. Essas eram as pessoas que mais provavelmente teriam algum conhecimento sobre os fatos.

Espero descobrirmos pouquíssimas evidências, e poucas provas circunstanciais úteis.

— Roger me disse que... Martin cortou-o.

— De ouvir dizer. Você está dizendo que alguém lhe disse que soube por outra pessoa... isso não é muito útil num tribunal.

— Prossiga — disse Arnie.

— Senhor, na verdade não há nenhuma lei constitucional ou estatuto sobre essa questão.

— E não há uma Suprema Corte para julgar a questão — comentou Ryan.

Depois de uma pausa longa, acrescentou: — E se ele estiver dizendo a verdade?

— Presidente, não vem ao caso se ele está dizendo a verdade ou não — replicou Martin. — A não ser que possamos provar que está mentindo, o que é improvável, ele possui um argumento razoável para um caso. A propósito, sobre o problema da Suprema Corte, considerando que o senhor escolha um novo Senado e faça suas nomeações, todos os novos juízes se recusariam a julgar o caso porque foi o senhor quem os selecionou. Isso provavelmente significará um impasse jurídico.

— Mas e se não houver julgamento? — perguntou o presidente (era mesmo?) Ryan.

— Exatamente. Estamos numa enrascada — disse Martin em tom baixo, tentando pensar. — Certo, um presidente ou vice para de exercer o cargo quando renuncia. A renúncia acontece quando a pessoa em exercício do cargo entrega o instrumento de renúncia, basta uma carta, à autoridade apropriada. Mas o homem que aceitou o instrumento está morto, decerto descobriremos que o instrumento está desaparecido. O secretário Hanson provavelmente telefonou para o presidente a fim de informá-lo sobre a renuncia...

— Ele fez isso — confirmou van Damm.

— Mas o presidente Durling também está morto. Seu testemunho teria valor de prova, mas isso também não acontecerá. Tudo nos leva de volta ao ponto de partida.

Martin não gostava do que estava fazendo, e estava tendo dificuldade em tentar falar e pensar na lei ao mesmo tempo. Este era um tabuleiro de xadrez sem quadrados, apenas peças dispostas aleatoriamente.

— Mas...

— Os registros telefônicos mostrarão que houve um telefonema. Mas o secretário Hanson pode ter dito que a carta estava mal escrita e que queria que ela fosse revista até o dia seguinte. Isto é política, não lei. Pensando dessa forma, é bom lembrar que quando Durling era presidente, Kealty teve de renunciar, devido...

— ...à investigação de assédio sexual — Arnie estava entendendo aonde o advogado queria chegar.

— Você entendeu. Ele chegou até mesmo a tocar no assunto em sua declaração, mas neutralizou muito bem o assunto, concordam?

— Estamos de volta onde começamos — observou Ryan.

— Sim, presidente.

— E bom saber que alguém acredita nisso — comentou Ryan com um sorriso matreiro.

 

O inspetor O’Day e os três agentes que o acompanhavam deixaram seu carro em frente ao prédio. Quando um guarda uniformizado apareceu para protestar. O’Day simplesmente mostrou sua identificação e continuou andando.

Ele parou na bancada da segurança e fez o mesmo.

— Quero que o seu chefe encontre comigo no sétimo andar em um minuto — disse ao guarda. — Não quero saber o que ele está fazendo. Diga que suba agora.

Dito isso, O Day e sua equipe caminharam até o hall dos elevadores.

— Pat, mas que diabos...

Os outros três tinham sido selecionados mais ou menos aleatoriamente no Departamento de Responsabilidade Profissional do FBI. Esse era o departamento de questões internas do próprio FBI. Investigadores experientes em postos de supervisão, que tinham como missão manter o Birô limpo. Um deles chegara mesmo a investigar um ex-diretor. A orientação do Departamento de Responsabilidade Profissional era não respeitar qualquer coisa senão a lei. O mais surpreendente era que, ao contrário de organizações semelhantes nas forças da polícia metropolitana, o departamento tinha o respeito da maioria dos agentes de rua.

O guarda no lobby já telefonara para o posto no último andar. Nesta manhã o guarda era George Armitage, trabalhando num turno diferente do da semana anterior.

— FBI — proclamou O’Day quando a porta do elevador abriu. — Onde fica o escritório do secretário de Estado?

— Por aqui, senhor — disse Armitage, conduzindo-os pelo corredor.

— Quem tem usado o escritório? — indagou o inspetor.

— Estamos nos preparando para receber o Sr. Adler. Acabamos de retirar as coisas do Sr. Hanson e...

— Quer dizer que tem entrado e saído gente daqui?

— Sim, senhor.

O’Day não esperava que fosse útil trazer a equipe de peritos, mas isso seria feito de qualquer modo. Se havia um investigador que fazia tudo ao pé da letra, era ele.

— Certo. Precisamos conversar com todo mundo que entrou ou saiu do escritório desde o momento que o secretário Hanson saiu daqui pela última vez.

Secretários, serventes, todo mundo.

— A equipe de secretariado só chegará daqui a mais ou menos meia hora.

— Certo. Quer destrancar a porta?

Armitage obedeceu, deixando-os entrar na sala do secretariado e então passar pelo conjunto seguinte de portas até o escritório. Os agentes do FBI pararam na entrada, e durante algum tempo apenas olharam o local. Então um deles assumiu uma posição na porta para o corredor principal.

— Muito obrigado, Sr. Armitage — disse O’Day, lendo o nome no crachá. — Muito bem, por enquanto trataremos este lugar como uma cena de crime.

Ninguém entra ou sai sem nossa permissão. Precisamos de uma sala onde possamos entrevistar pessoas. Gostaria que fizesse uma lista por escrito de quem você sabe que esteve aqui, com hora e data, se for possível.

— As secretárias deles terão isso.

— Queremos fazer nossa própria lista. — O Day olhou para o corredor e ficou irritado. — Pedimos ao seu chefe de departamento que nos encontrasse aqui. Onde você k ha que ele está?

— Ele geralmente não chega antes das oito e meia, mais ou menos.

— Pode telefonar para ele, por favor? Precisamos conversar com ele imediatamente.

— Pode contar com isso, senhor.

Armitage tentou imaginar o que estava acontecendo. Ele não tinha visto TV de manhã, nem ouvido ainda o que estava acontecendo. Em todo caso, não estava gostando nem um pouco da história. Com 55 anos e tentando se aposentar depois de 32 anos de serviço público, ele queria apenas fazer seu trabalho e ir embora.

 

Boa jogada, Dan — disse Martin ao telefone. Estavam agora no Salão Oval.

— Falo com você depois. — O advogado desligou o telefone e se virou.

 

— Murray mandou para lá o inspetor Pat O’Day. Ele é bom no que faz. Tem faro para problemas. Está sendo auxiliado por três agentes do Departamento de Responsabilidade Profissional do FBI, o que foi outra boa jogada. Eles são apolíticos. Agora, Murray precisa interromper o que está fazendo.

— Por quê? — perguntou Jack, ainda tentando orientar-se.

— Você o nomeou diretor interino. Também não posso me envolver muito com isto. Voe é precisa escolher alguém para gerir a investigação. Ele precisa ser inteligente, honesto e nem um pouco político. Provavelmente um juiz — pensou Martin. — Como um nu de uma Corte de Apelação. Eles têm muitos bons juízes.

— Alguma sugestão? — perguntou Arnie.

— Você precisa obter esse nome com outra pessoa. Não posso enfatizar muito; isto precisa ser limpo em todos os aspectos possíveis. Cavalheiros, estamos falando sobre a instituição dos Estados Unidos. — Martin fez uma pausa. Ele tinha de esclarecer algumas usas. — Para mim, ela é como a Bíblia, certo? Para vocês, também, com certeza, mas comecei minha carreira como agente do FBI. Trabalhei principalmente com casos de direitos civis, investiguei um monte daqueles encapuzados do Sul. Os direitos civis são muito irritantes, aprendi isso olhando para os corpos de pessoas que morreram tentando garantir esses direitos, pessoas que elas nem mesmo conheciam. Certo, deixei o Birô, tornei-me advogado, trabalhei um pouco no setor privado, mas acho que nunca deixei de ser um. Assim, voltei para o serviço público. Na Justiça, trabalhei para a Divisão de Informação, e agora comecei a dirigir a Divisão Criminal. Isso tudo é importante para mim. Vocês precisam agir da forma certa.

— Agiremos — assegurou-lhe Ryan. — Mas seria agradável saber como. Isso provocou uma risadinha.

— Bem que eu queria saber! Na substância do caso, pelo menos. Na forma, ele precisa estar completamente limpo, não deve deixar nenhuma dúvida. Isso é impossível, mas vocês precisam pelo menos tentar. Esse é o lado jurídico. O lado político fica a cargo de ...

— Certo. E quanto à investigação do acidente? — Ryan estava ligeiramente surpreso consigo mesmo. Ele tinha se livrado da investigação e agora estava lidando com outro problema. Que merda.

Desta vez Martin sorriu.

— Aquilo que Kealty disse me deixou furioso, presidente. Não gosto de pessoas me dizendo como conduzir um caso. Se Sato estivesse vivo, eu poderia levá-lo ao tribunal hoje. Isso não surpreenderia ninguém. O que ele falou sobre a investigarão JFK foi absurdo. A forma de tratar esses casos é procedendo a uma investigação completa, não tornando a coisa um circo burocrático. Venho fazendo isso a vida inteira. Este caso é muito simples... grande, mas simples. E, para todos os propósitos práticos, já está encerrado. A ajuda de verdade veio da Polícia Montada. Eles fizeram um belo trabalho para nós, conseguindo uma tonelada de provas, horários, lugares, e impressões digitais, além de interrogar todas as pessoas relacionadas ao avião. E a polícia japonesa... Deus do céu!

Eles estão se revelando prestativos até a raiz dos cabelos, porque estão furiosos com o que aconteceu. Estão falando com todos os conspiradores sobreviventes.

Vocês, e eu, não queremos saber sobre seus métodos de interrogação. Mas isso não é problema nosso. Estou pronto a defender o que o senhor disse ontem à noite. Estou pronto a esclarecer tudo que sabemos.

— Faça esta tarde — disse van Damm. — Providenciarei uma coletiva para você.

— Sim, senhor.

— Então você não pode participar do caso Kealty? — indagou Jack.

— Não, senhor. Vocês não podem permitir que o processo seja poluído de nenhuma forma.

— Mas poderá aconselhar-me a respeito? — prosseguiu o presidente Ryan. — Preciso de uma espécie de aconselhamento jurídico.

— O senhor terá, presidente. Posso fazer isso.

— Sabe, Martin, no final de tudo isso... — começou van Damm.

Ryan cortou seu chefe de gabinete antes mesmo de o advogado poder reagir.

— Não, Arnie, nada disso. Nem pensar! Não vou jogar esse jogo. Sr. Martin, gosto dos seus instintos. Vamos jogar absolutamente limpo. Chamaremos profissionais e confiaremos em que eles agirão como profissionais. Estou de saco cheio de promotores especiais e não-sei-mais-o-quê especiais. Se você não tem gente em quem possa confiar para fazer o trabalho direito, então que diabo eles estão fazendo lá?

Van Damm mexeu-se em sua cadeira.

— Você é um novato, Jack.

— Certo, Arnie, e tivemos pessoas politicamente cônscias no governo desde antes de eu nascer, e vejam só até onde isso nos levou! — Ryan se levantou para caminhar pela sala, o que era uma prerrogativa presidencial. — Estou cansado de tudo isto. Que aconteceu com a honestidade, Arnie? Que aconteceu com dizer a porra da verdade? Tudo aqui é apenas uma merda de jogo, e o objetivo do jogo não é fazer a coisa certa. O objetivo do jogo é permanecer jogando. Não era para ser assim! E prefiro morrer a perpetuar um jogo do qual não gosto! —Jack virou-se para Pat Martin. — Conte-me sobre aquele caso do FBI.

Martin piscou, sem saber por que isso tinha vindo à tona, mas contou assim mesmo.

— Até fizeram um filme sobre isso. Alguns ativistas pelos direitos civis foram mortos por seguidores locais da Klan. Dois deles também eram tiras locais, e o caso não chegou a parte alguma. Assim, o FBI se envolveu através do comércio interestadual e dos estatutos dos direitos civis. Dan Murray e eu éramos calouros na época. Eu estava em Buffalo naquele tempo. Ele estava na Filadélfia. Eles nos juntaram para trabalhar com Big Joe Fitzgerald. Ele era um dos inspetores de campo de Hoover. Eu estava lá quando os corpos foram achados. Coisa horrível de ver — disse Martin, recordando a visão e o odor. — Tudo que eles quiseram fazer foi levar cidadãos registrados para votar, e foram mortos por causa disso, e os tiras locais não estavam fazendo nada a respeito. É engraçado, mas quando você vê esse tipo de coisa, ela deixa de ser abstrata.

Não é um documento, um caso de estudo ou um formulário para preencher.

Mas fica real para valer quando você vê corpos enterrados há duas semanas.

Aqueles malditos seguidores da Klan infringiram a lei e mataram cidadãos que estavam fazendo o que a Constituição diz que não apenas é certo, como também um direito. Assim, fomos atrás dos malditos e pegamos todos.

— Por que, Sr. Martin? — perguntou Jack.

A resposta não foi exatamente a que ele esperava.

— Porque fiz um juramento, presidente. Por causa disso.

— Também fiz um, Sr. Martin. —E não foi para nenhum maldito jogo.

 

A decifração foi um pouco ambígua. Os militares iraquianos usavam centenas de frequências de rádio — principalmente faixas de VHF FM —, e o tráfego, ainda que surpreendente para a situação geral, estava rotineiro em seu conteúdo. Havia centenas de mensagens, até cinquenta ao mesmo tempo, e STORM TRACK ainda não possuía linguistas suficientes para manter registro de todas elas, embora essa fosse precisamente sua função. Os circuitos de comando dos altos oficiais eram bem conhecidos, mas esses eram codificados, significando que os computadores no KKMC tinham de mexer nos sinais para conferir sentido ao que parecia estática. Felizmente, alguns desertores tinham trazido exemplos de equipamentos de codificação, e outros atravessavam diversas fronteiras com chaves de código diárias, sempre sendo recompensados regiamente pelos sauditas.

O uso de rádios estava mais intenso do que de hábito. Os oficiais iraquianos provavelmente estavam menos preocupados com interceptações radiofônicas do que com escutas de telefone. Esse simples fato significou muita coisa para os oficiais de vigilância, c um documento agora estava sendo preparado para ser encaminhado ao diretor da CIA c dali ao presidente.

STORM TRACK parecia com a maioria das estações. Uma enorme antena chamada Gaiola de Elefante, devido à sua configuração circular, captava e localizava sinais, enquanto outras imensas antenas-chicote cuidavam de outras tarefas. A estação de escuta fora construída às pressas durante os preparativos para TEMPESTADE DO DESERTO como um meio de recolher informações táticas para unidades militares aliadas. Depois do conflito, e com o interesse contínuo na região, a estação fora expandida. O Kuwait financiou a estação irmã, PALM BOWL, em troca de uma boa fatia do ganho.

— São três — disse um técnico em PALM BOWL, ao fazer a leitura de sua tela.

— Três altos oficiais dirigindo-se ao hipódromo. É um pouco cedo para apostar em cavalos, não é mesmo?

— Uma reunião? — perguntou sua tenente. Esta era uma estação militar, e o técnico, um sargento de cinquenta anos, sabia muito mais sobre o trabalho do que sua nova chefe. Pelo menos ela era esperta o bastante para fazer perguntas.

— Com toda certeza, senhora.

— Por que ali?

— Centro da cidade sem ser um estabelecimento federal. Quando encontra o namorado não faz isso em casa, não é mesmo? — A tela mudou. — Muito bem, deciframos mais um. O chefe da Força Aérea também está lá... estava, provavelmente. A análise de tráfego parece mostrar que o grupo se dispersou há mais ou menos uma hora. Queria que tivéssemos decifrado o código mais cedo...

— Conteúdo?

— Apenas para onde ir e como, senhora. Nada substancial, nada sobre o motivo da reunião.

— Quando será o funeral, sargento?

— Ao pôr do sol.

 

— Sim? — disse Ryan ao atender ao telefone. Ele podia ter uma noção da importância da chamada olhando para o indicador de ramais. Era o ramal de Sinais que estava aceso.

— Major Canon, senhor. Estamos recebendo informações da Arábia Saudita. O pessoal da Divisão de Informação está tentando extrair sentido da coisa. Fui instruído a informá-lo.

— Obrigado. — Ryan colocou o telefone no gancho. — Alguma coisa está acontecendo no Iraque, mas o pessoal de Sinais ainda não tem certeza do que é — disse o presidente aos convidados. — Acho que terei de começar a ficar de olho nisso. Há mais alguma coisa que eu precise saber?

— Ponha o vice-presidente Kealty sob proteção do Serviço Secreto — sugeriu Martin.

— Mesmo como ex-vice ele tem direito por lei a isso durante... seis meses?

— perguntou o advogado a Price.

— Correto.

Martin pensou a respeito.

— Ele chegou a conversar com vocês sobre isso? — perguntou Martin.

— Não senhor. Pena, pensou Martin.


14

Sangue na Água

O avião executivo de Ed Foley era grande e feio, um cargueiro Lockheed C-141B, conhecido pela comunidade como caminhão de lixo, em cuja área carga havia um trailer enorme. O trailer tinha uma história interessante. Fora construído inicialmente, pela companhia Airstream, como uma instalação de recebimento para os astronautas do Projeto Apoio, embora tivesse sido um reserva que nunca chegara a ser usado. O trailer permitia aos oficiais de alto escalão viajar com todo o conforto do lar, foi usado quase exclusivamente por oficiais graduados da Divisão de Informação. Desta forma, podiam viajar com conforto e anonimato. Havia muitos Starlifters na Força Aérea, visto por fora, o de Foley parecia com qualquer outro: grande, verde, feio.

Aterrissou na Base Aérea de Andrews imediatamente antes do meio-dia, depois de um voo exaustivo de quase sete mil milhas, dezessete horas e dois reabastecimentos aéreos.

Foley embarcara com uma equipe de três pessoas, duas delas oficiais de segurança e proteção denominados SPO. O luxo de poder se banhar levantara o humor de todos, e sua noite de sono não fora interrompida pelos sinais que tinham começado a chegar ininterruptamente algumas horas antes. Quando o avião de carga parou e as portas abriram, Foley estava refrescado e informado.

Isso acontecia com raridade suficiente para considerar-se abençoado por um tipo de milagre. Ainda melhor era o fato de que sua esposa estava lá para recebê-lo com um beijo. A equipe de solo da Força Aérea se perguntou que diabo era aquilo. A equipe de voo estava cansada demais para reparar.

— Oi, querido.

— Precisamos voar juntos uma hora dessas — comentou seu marido com uma piscadela Mudou de assunto abruptamente. — Quais são as notícias do Iraque?

— Está acontecendo alguma coisa. Um grupo de altos oficiais, pelo menos nove e provavelmente mais de vinte, se reuniu discretamente. Não sabemos qual foi o motivo, e não foi pegar amigos do falecido para o velório. — Entraram pela porta traseira do avião e ela lhe entregou uma pasta. — A propósito, você está sendo promovido.

— Como é? — Ed desviou sua atenção do pacote de documentos.

— Para diretor da CIA. Estamos implementando o Plano Azul, e Ryan quer que você o encabece no Capitólio. Continuo no comando do Setor de Operações, e vou dirigi-lo do jeito que eu bem entender, não vou, querido? — Ela abriu um sorriso carinhoso. Em seguida, explicou o outro problema do dia.

 

Em Langley, Clark tinha escritório próprio e sua patente garantia-lhe uma vista do estacionamento e das árvores ao fundo. Até mesmo dividia uma secretária com mais quatro oficiais de campo. Mas, para ele, Langley era, sob muitos aspectos, um país estrangeiro. Seu trabalho oficial era como treinador na Fazenda. Vinha ao quartel-general entregar relatórios e ser instruído sobre novas tarefas, mas não gostava do lugar. Todo quartel general tinha uma atmosfera que o incomodava. Eles não queriam irregularidades. Não sentiam pena se você trabalhasse além do seu expediente e perdesse suas séries de TV

favoritas. Não gostavam muito de surpresas ou dados que os obrigassem a repensar coisas. O quartel-general era o rabo burocrático de uma agência de informação, mas o rabo da CIA ficara tão grande que era ele quem balançava o cachorro, e não o contrário. Esse não era um fenômeno exatamente incomum, mas quando as coisas ficavam pretas, era a sua vida que ele arriscava no campo, e se matasse alguém, ele se tornaria um memorando residual, para ser prontamente arquivado e esquecido pelas pessoas que faziam as estimativas do serviço nacional de informações, quando não fosse parar nas manchetes de jornais, é claro.

— Soube das novidades da manhã, Sr. C? — perguntou Chavez ao entrar na sala.

— Estou aqui desde as cinco.

Estendeu uma pasta com o nome PLANO AZUL impresso na frente.

Odiava burocracia, e quando era obrigado a trabalhar com papelada, fazia-o com uma intensidade extrema, para livrar-se mais rápido do estorvo.

— Então ligue na CNN.

John fez isso, esperando uma nova matéria que complicasse as coisas em sua Agência. E foi isso que ele viu, mas não exatamente o que esperara.

— Senhoras e senhores, o presidente.

Tinha de falar logo ao povo. Todos concordavam com isso. Ryan entrou na sala de imprensa, parou atrás do pódio e conferiu suas anotações. Era mais fácil do que olhar em volta para a sala, que, construída sobre a antiga piscina, era menor e mais apertada que a maioria dos cômodos da Casa Branca. Havia oito fileiras de seis cadeiras. Cada uma, vira ao entrar, estava ocupada.

— Obrigado por terem vindo tão cedo — disse Jack no tom de voz mais relaxado que conseguiu. — Os últimos eventos no Iraque afetaram a segurança de uma região que é de interesse vital para a América e seus aliados. Foi sem pesar que recebemos a notícia da morte do presidente do Iraque. Como sabem, esse indivíduo foi responsável por instigar duas guerras de agressão, a repressão brutal da minoria curda desse país, e a negação dos direitos humanos mais fundamentais aos seus próprios cidadãos.

O Iraque é uma nação que devia ser próspera. O país detém uma parcela considerável das reservas petrolíferas mundiais, uma base industrial respeitável, e uma população substancial. Tudo que falta nesse país é um governo que cuide das necessidades de seus cidadãos. Esperamos que o falecimento do antigo líder ofereça-nos uma oportunidade para consertar isso.

Jack levantou os olhos de suas anotações.

— Assim sendo, a América estende a mão da amizade ao Iraque. Esperamos que seja uma oportunidade de normalizar nossa relação e pôr fim de uma vez por todas às hostilidades entre o Iraque e seus vizinhos do Golfo. Instruí o secretário interino Scott Adler a entrar em contato com o governo do Iraque, e a oferecer a chance de uma reunião para discutir questões de interesse mútuo.

Caso o novo regime esteja disposto a debater a questão dos direitos humanos e a se comprometer em realizar eleições livres e justas, a América está disposta a remover todos os embargos econômicos e a promover a restauração imediata das relações diplomáticas normais.

Já houve inimizade demais. É absurdo que uma região de tamanha riqueza natural seja causa de discórdia, e os EUA estão dispostos a fazer sua parte como intermediário honesto para ajudar a devolver a paz e a estabilidade ao país.

Faremos isso com a aprovação de nossos aliados entre os Estados do Golfo.

Aguardamos uma resposta favorável de Bagdá para que os contatos iniciais sejam estabelecidos.

O presidente Ryan dobrou seu papel.

— Este foi o fim do meu discurso oficial. Perguntas?

Elas demoraram cerca de um microssegundo.

— Senhor, esta manhã — gritou primeiro o New York Times — o vice-presidente Howard Kealty alegou que ele é o presidente e o senhor não. O que tem a dizer a esse respeito?

— A alegação do Sr. Kealty é infundada e desprovida de valor — replicou Jack friamente. — Próxima pergunta.

Tendo recusado participar do jogo, Ryan agora estava condenado a jogá-lo.

Sua negativa não enganara ninguém na sala. O pronunciamento poderia tranquilamente ter sido relatado por seu secretário de imprensa ou pelo porta-voz do Departamento de Estado. Mas, aqui estava ele diante das luzes, olhando para os rostos reunidos, sentindo-se um cristão solitário num Coliseu cheio de leões. Bem, era para isso que o Serviço Secreto servia.

— Uma pergunta complementar: e se ele realmente não renunciou? — insistiu o outro gritando mais alto que os outros.

— Ele renunciou. Se não tivesse feito isso, eu não poderia ter sido nomeado.

Portanto sua pergunta não tem sentido.

— Mas, senhor, e se ele estiver dizendo a verdade?

 

— Ele não está. — Ryan respirou fundo, como Arnie o instruíra a fazer, e então prosseguiu, dizendo o que Arnie o mandara dizer. — O Sr. Kealty renunciou ao cargo a pedido do presidente Durling. Vocês sabem o motivo. Ele estava sendo investigado pelo FBI por má conduta enquanto senador. As investigações foram feitas a partir de acusações de agressão sexual, para não dizer — e Ryan disse — o estupro de uma de suas assessoras do Senado. Sua renúncia foi parte de um acordo para evitar um processo criminal.

Ryan parou nesse instante, um pouco surpreso com os rostos dos jornalistas estarem um pouco pálidos. Ele acabara de chutar o balde, e ele fizera muito barulho ao bater no chão. Sua próxima fala foi ainda mais direta: — Vocês sabem quem é o presidente. Agora podemos tratar dos problemas do país?

— O que o senhor fará a respeito? — perguntou a ABC.

— Está se referindo a Kealty ou ao Iraque? — perguntou Ryan. Seu tom indicou qual deveria ser o assunto.

— Ao caso de Kealty, senhor.

— Pedi ao FBI para investigar. Espero uma resposta para o fim do dia. Mas temos muitos outros problemas para resolver.

— Outra complementar: E sobre o que o senhor disse aos governadores em seu discurso de ontem e o que o vice-presidente Kealty disse esta manhã? O senhor realmente quer pessoas inexperientes para...

— Quero. Em primeiro lugar, de quantas pessoas dispomos com experiência no Congresso? A resposta é: não muitas. Temos alguns sobreviventes, pessoas que tiveram a felicidade de estar em outro lugar naquela noite. Além deles, quem temos? Os derrotados na última eleição? Vocês os querem de volta?

Acho que o país precisa de pessoas que saibam fazer as coisas. A verdade nua é que o governo é ineficaz por natureza. A ideia que os Pais Fundadores tiveram foi de legisladores civis, não uma classe governante permanente. Nesse aspecto, vejo-me de acordo com as intenções dos redatores de nossa constituição.

Seguinte?

— Mas quem decidirá a questão? — perguntou o Los Angeles Times. Não era necessário dizer que questão.

— A questão está decidida. Obrigado por terem vindo. Com sua licença, tenho um dia cheio pela frente.

Ele pegou seu discurso de abertura e caminhou para a direita.

— Sr. Ryan! — O grito foi proferido em uníssono por uma boa dúzia de vozes. Ryan atravessou a porta e dobrou o corredor. Arnie estava à espera.

— Nada mau, considerando as circunstâncias.

— Exceto por uma coisa. Nenhum deles me tratou por presidente.

 

Moudi caminhou até a ala de isolamento. Do lado de fora, vestiu a roupa protetora, checando cuidadosamente o tecido em busca de vazamentos. A roupa foi feita por uma companhia europeia, modelada na American Racal. O plástico grosso era azul-claro, reforçado com fibra Kevlar. A unidade de ventilação ficava presa na parte de trás do cinto. Ela filtrava ar para a roupa, e fazia isso com um pouco de pressão excessiva, de modo que o material não absorvesse atmosfera ambiental. Não se sabia se o Ebola era transmitido por via aérea, e ninguém queria ser o primeiro a provar que era. Moudi abriu a porta para entrar. Vestida da mesma maneira, a irmã Maria Magdalena estava lá, cuidando da amiga. Ambos sabiam muito bem o que significava para um paciente ver seu médico e enfermeira vestidos de uma forma que denotava claramente o medo pelo que ela carregava dentro de si.

— Boa tarde, irmã — disse ele, suas mãos enluvadas pegando o prontuário pendurado no pé da cama. Temperatura em 41,4, apesar do gelo. Pulsação em 115. Respiração em 24 e rasa. Pressão arterial começando a cair devido ao sangramento interno. A paciente recebera quatro unidades adicionais de sangue integral e provavelmente perdera pelo menos essa quantidade, em sua maior parte internamente. Sua química sanguínea estava começando a ficar descontrolada. A morfina estava no máximo que ele poderia prescrever sem o risco de causar parada respiratória. A irmã Jean Baptiste estava semiconsciente — os remédios deviam deixá-la virtualmente comatosa, mas a dor era severa demais para permitir isso.

Maria Magdalena simplesmente olhou para ele através do plástico de sua máscara, os olhos saindo de uma tristeza profunda para o desespero que sua religião condenava. Moudi e ela conheciam vários tipos de morte, da malária ao câncer e à AIDS. Mas não havia nada mais cruel do que o Ebola. Ele atacava tão rápido que o paciente não tinha tempo de se preparar, ajustar a mente, fortalecer a alma com orações e fé. Era como uma espécie de acidente de tráfego, repentino, mas longo o bastante para permitir o sofrimento. Se havia um diabo na criação, este era seu presente ao mundo. Médico ou não, Moudi pôs esse pensamento de lado. Até o diabo tem um uso.

— O avião está a caminho — disse a ela.

— Que vai acontecer?

— O professor Rousseau sugeriu um método de tratamento dramático.

Faremos um procedimento de substituição total do sangue. Primeiro, o suprimento sanguíneo será removido completamente, e o sistema vascular será lavado com solução salina oxigenada. Ele propõe que em seguida o suprimento de sangue seja substituído completamente tom sangue contendo anticorpos do Ebola. Teoricamente, os anticorpos atacarão os vírus sistemática e simultaneamente.

A freira ponderou. Não era tão radical quanto parecia à primeira vista. A substituição absoluta do suprimento de sangue de uma pessoa era um procedimento realizado desde o final dos anos 60, tendo sido usado no tratamento da meningite avançada. Não era um tratamento que pudesse ser empregado rotineiramente. Requeria uma máquina de apoio cardiorrespiratório.

Mas esta mulher, sua amiga, também faria qualquer coisa para salvar um paciente.

Nesse instante, os olhos de Jean Baptiste arregalaram-se. Estavam vazios, fitando o nada, e a inexpressividade do rosto apenas enfatizava sua agonia.

Talvez nem mesmo estivesse inconsciente. A dor terrível simplesmente não permitia que seus olhos se mantivessem abertos. Moudi olhou para o soro de morfina. Se a dor fosse sua única consideração, ele poderia ter aumentado a dose de morfina e assumido o risco de matar a paciente em nome da piedade.

Mas não podia arriscar isso. Precisava entregá-la viva e, embora seu destino fosse cruel, não o escolhera para ela.

— Preciso viajar com ela — disse calmamente Maria Magdalena. Moudi balançou a cabeça.

— Não posso permitir.

— É uma regra de nossa ordem. Não posso permitir que ela viaje sem a companhia de uma de nós.

— Há perigo envolvido, irmã. Removê-la será um risco. No avião estaremos respirando ar recondicionado. Não há necessidade que a senhora também se exponha ao risco. A virtude da irmã não está em questão aqui. — E uma morte era suficiente para seus propósitos.

— Não tenho escolha.

Moudi assentiu. Também não escolhera o destino de Magdalena, não é verdade?

— Como a senhora quiser, irmã.

 

O avião pousou no Aeroporto Internacional Jomo Kenyatta, a dezesseis quilômetros de Nairobi e taxiou até o terminal de carga. Era um velho 707 que já integrara a frota pessoal do xá, e sua mobília interna havia muito fora arrancada para revelar um convés de metal. Os caminhões estavam esperando.

O primeiro deles deu marcha à ré até a porta traseira, localizada no lado direito, que se abriu um minuto depois que as travas imobilizaram as rodas na rampa.

Havia 150 gaiolas, e em cada uma um macaco verde africano. Todos os trabalhadores negros usavam luvas protetoras. Os macacos, como pressentindo o que o destino reservava-lhes, estavam de mau humor, usando cada oportunidade para morder ou arranhar os tratadores. Os animais gritavam, urinavam e defecavam, mas em vão.

No interior, a tripulação observava a uma distância segura. Não queriam participar da transferência. Essas criaturinhas violentas e ruidosas podiam não ter sido designadas como impuras pelo Corão, mas eram evidentemente desagradáveis, e assim que esse trabalho estivesse terminado, o avião seria inteiramente lavado e desinfetado. A transferência demorou cerca de uma hora.

As gaiolas foram amarradas e empilhadas, e os tratadores se retiraram, pagos em dinheiro e felizes por terem acabado o trabalho. Seu veículo foi substituído por um caminhão-tanque.

— Excelente — disse o comprador ao negociante.

— Estamos com sorte. Um amigo tinha um suprimento grande pronto para partir, e o comprador dele estava demorando a chegar com o dinheiro. Em vista disto...

— Entendo. Uma porcentagem extra de dez por cento?

— Será mais do que o suficiente — disse o negociante.

— Estou satisfeito. Você receberá o cheque adicional amanhã de manhã. Ou prefere em dinheiro?

Os dois se viraram quando o 707 acionou suas turbinas. Ele decolaria numa questão de minutos e traçaria um percurso curto até Entebbe, Uganda.

 

— Esta história não está cheirando bem — disse Bert Vasco, devolvendo a pasta.

— Explique — comandou Mary Pat.

— Nasci em Cuba. Certa vez meu pai me contou sobre a noite em que Batista caiu. Os generais se reuniram, subiram a bordo de seus aviões e partiram discretamente para onde estavam suas contas bancárias, deixando a bomba estourar na mão de todo mundo.

Vasco era um dos funcionários do Departamento de Estado que gostavam de trabalhar com a CIA, provavelmente por ser cubano. Ele compreendia que os ramos de diplomacia e espionagem funcionavam melhor trabalhando em conjunto. Nem todos em Foggy Bottom concordavam. Esse era seu problema. Eles nunca precisaram fugir de suas pátrias.

— Acha que é o que está acontecendo lá? — perguntou Mary Pat, chegando na frente de Ed por meio segundo.

— É a impressão que está me dando.

— Está seguro o bastante para contar ao presidente? — perguntou Ed Foley.

— Qual deles? — replicou Vasco. — Deviam ouvir o que estão dizendo lá no escritório. O FBI acaba de tomar o sétimo andar. Isso abalou o pessoal. Mas, de qualquer modo, estou seguro sim. É apenas um palpite, mas um palpite bom. O que precisamos saber é quem, se alguém, esteve falando com eles. Mas vocês não fazem a menor ideia, certo?

Os Foley olharam para baixo, o que respondia à pergunta.

 

— As alegações do Sr. Ryan mostram que ele está aprendendo o lado sujo da política mais rápido que o lado limpo — disse Kealty, num tom de voz mais magoado que zangado. — Honestamente, esperava mais dele.

— Então, nega as alegações? — perguntou a ABC.

— Claro que nego. Não é segredo que já tive problemas com bebida, mas superei isso. E não é segredo que minha conduta pessoal já foi questionável, mas também mudei isso, com a ajuda de minha igreja e o amor de minha mulher — acrescentou, apertando a mão da esposa enquanto ela o olhava com compaixão e apoio irrestrito. — Isso realmente não tem nenhuma relação com o assunto. Precisamos colocar os interesses da pátria em primeiro lugar. Não temos tempo para assuntos particulares, Sam. Precisamos estar acima dessas coisas.

— Filho da puta — sussurrou Ryan.

— Isto não vai ser agradável — predisse van Damm.

— Ele pode vencer, Arnie?

— Depende. Não tenho certeza de qual é o jogo dele.

— ...poderia também dizer coisas a respeito do Sr. Ryan, mas esse não é o tipo de atitude que precisamos adotar agora. O país precisa de estabilidade, não de discórdia. O povo americano está procurando por líderes... líderes experientes e maduros.

— Arnie, o quanto ele deixou...

— Lembro de quando ele foderia uma cobra se alguém segurasse o bicho.

Jack, não podemos pensar nesse tipo de coisa. Não esqueça o que Allen Drury disse: esta é uma cidade na qual lidamos não com o que as pessoas são, mas como é sua reputação. A imprensa gosta de Ed. Sempre gostou. Gostam de sua família. Gostam de sua consciência social...

— O caralho! — quase gritou.

— Preste atenção no que estou dizendo agora. Quer ser o presidente? Você não tem propensão para ser temperamental. Não pode esquecer disso, Jack.

Quando o presidente perde a cabeça, o povo também perde. Você já viu isso acontecer, e as pessoas lá fora querem saber que você está calmo e controlado o tempo todo. Entendeu?

Ryan engoliu em seco e assentiu. De vez em quando uma pessoa precisava perder a calma, e os presidentes também podiam. Mas era preciso saber quando, e essa era uma lição ainda a ser aprendida.

— Então, o que você está dizendo?

— Você é o presidente. Aja como tal. Faça seu trabalho. Pareça presidencial. O que você disse na entrevista coletiva estava certo. A alegação de Kealty é infundada. Você está mandando o FBI checar a alegação, mas ela não importa. Você fez o juramento. Você vive aqui, e é isso que importa. Torne-o irrelevante e ele desistirá. Faça o jogo dele e isso concederá legitimidade a Kealty.

— E a mídia?

— Dê-lhes uma chance e eles acabarão passando para o nosso lado.

 

— Voando para casa hoje, Ralph?

Augustus Lorenz e Ralph Forster pertenciam à mesma geração e profissão.

Os dois começaram a carreira médica no Exército dos Estados Unidos, um como cirurgião; o outro, como clínico. Designados para o MAC-V (Military Assistant Command — Comando de Assistência Militar) no Vietnã, na época do presidente Kennedy, muito antes da guerra eclodir, os dois descobriram to mesmo tempo que havia mais coisas no mundo real do que o que tinham estudado em Princípios da medicina interna. Nas regiões mais remotas do mundo havia doenças que matavam pessoas. Criados na América urbana, tinham idade suficiente para recordar a conquista da pneumonia, tuberculose e poliomielite. Como a maioria dos homens de sua geração, tinham acreditado que as doenças infecciosas eram um inimigo derrotado. Nas selvas de um Vietnã relativamente pacífico, aprenderam que a verdade era outra, vendo ocasionalmente jovens robustos, soldados americanos e vietnamitas, morrerem diante de seus olhos devido a doenças desconhecidas e contra as quais não sabiam combater. Não era para ser dessa maneira, decidiram ambos certa noite no Bar Caravelle, e como os idealistas e cientistas que eram, ambos retornaram para a faculdade e começaram a reaprender a profissão, iniciando outro processo que não terminaria com o fim de suas vidas. Forster acabara no Johns Hopkins, Lorenz em Atlanta, chefe do Setor de Patógenos Especiais do Centro de Controle de Doenças. Ao longo do caminho tinham voado mais milhas que alguns comandantes de linhas aéreas e visitado mais lugares exóticos do que qualquer fotógrafo da National Geographic, quase sempre perseguindo alguma coisa pequena demais para ser vista, mortal demais para ser ignorada.

— Devia fazer isso, antes que o novato tire meu departamento. O candidato ao Nobel deu uma risada.

— Alex é muito bom. Estou feliz que ele tenha saído do Exército. Pescamos juntos lá no Brasil, quando eles tiveram a... — No laboratório, um técnico fez um ajuste final no microscópio. — Aqui — disse Lorenz. — Aqui está nosso amigo.

Alguns chamavam-no de Bastão de Pastor. Lorenz achava-o mais parecido com um ankh, mas isso também não era apropriado. De qualquer modo não era uma coisa bonita de se ver. Para os dois homens, aquilo era o mal encarnado. O feixe vertical e curvado era chamado ácido ribonucleico, ou RNA. Ele continha o código genético do vírus. No topo havia uma série de proteínas cuja função ainda não era entendida, mas que, provavelmente, achavam ambos, determinava como a doença agia. Provavelmente. Eles não sabiam, apesar de seus vinte anos de estudos intensivos.

A maldita coisa nem mesmo estava viva, mas mesmo assim era capaz de matar. Um organismo verdadeiro possuía tanto RNA quanto DNA, mas um vírus apenas um ou outro. De algum modo, vivia num estado adormecido até entrar em contato com uma célula viva. Ali despertava para a vida como algum tipo de monstro alienígena esperando sua chance, capaz de viver, crescer e se reproduzir apenas com a ajuda de alguma outra coisa, que ele destruiria, e da qual tentaria escapar, para então encontrar outra vítima.

O Ebola era elegantemente simples e microscopicamente pequeno.

Enfileirados, uma centena de milhares deles não ocuparia uma polegada numa régua. Teoricamente, um poderia matar, crescer, migrar e matar de novo. E de novo. E de novo.

A memória coletiva da medicina não era tão longa quanto os médicos gostariam. Em 1918, a gripe espanhola, provavelmente uma forma de pneumonia, varrera o globo em nove meses, matando pelo menos vinte milhões de pessoas — talvez muito mais — e alguns tão rapidamente que houve vítimas que dormiram saudáveis e não acordaram no dia seguinte. Mas embora os sintomas da doença tivessem sido inteiramente documentados, o estado da ciência médica não progredira até um estágio em que pudesse compreender a doença em si. Como resultado, ninguém sabia que epidemia fora realmente aquela — ao ponto de, na década de 1970, algumas prováveis vítimas enterradas no gelo permanente do Alasca terem sido exumadas na esperança de prover amostras do organismo para estudo; uma boa ideia que não funcionou. Para a comunidade médica, essa doença estava esquecida, e a maioria das pessoas presumia que, se ela reaparecesse, seria derrotada pelo tratamento moderno.

Os especialistas em doenças infecciosas não tinham tanta certeza. Essa doença, como a AIDS e o Ebola, era provavelmente um vírus, e o sucesso da medicina em lidar com doenças virais era precisamente...

Zero.

As doenças virais podiam ser evitadas com vacinas, mas uma vez infectado, o sistema imunológico de um paciente poderia ganhar ou perder, com os melhores médicos podendo ficar apenas de braços cruzados, observando. Os médicos, como acontecia em todas as profissões, frequentemente preferiam ignorar aquilo que não compreendiam. Essa era a única explicação possível para o reconhecimento inexplicavelmente lento da AIDS e suas implicações letais pela comunidade médica. A AIDS era outro agente patogênico exótico que Lorenz e Forster estudavam, e outro presente das florestas da África.

— Gus, de vez em quando me pergunto se algum dia decifraremos esses malditos.

— Cedo ou tarde, Ralph. — Lorenz recuou do microscópio, na verdade, um monitor de computador, e desejou poder fumar seu cachimbo. Não queria realmente parar de fumar, mas trabalhar num prédio do governo dificultava manter o vício. Penso melhor com um cachimbo, disse Gus a si mesmo. Os dois olharam para a tela, observando as estruturas espiraladas das proteínas. — Esta é do menino.

Eles seguiam as pegadas de um punhado de gigantes. Lorenz escrevera um ensaio sobre Walter Reed e William Gorgas, os dois médicos do Exército que derrotaram a Febre Amarela com uma combinação de investigação sistemática e aplicação impiedosa do que aprenderam. Mas, neste ramo, o aprendizado era lento e doloroso.

— Ponha o outro, Kenny.

— Sim, doutor — replicou a voz no comunicador interno. Um momento depois, uma segunda imagem apareceu ao lado da primeira.

— Isso — disse Forster. — As duas se parecem muito.

— Essa veio da enfermeira. Veja só isto. — Lorenz apertou o botão no telefone. — Certo, Kenny, ative o computador.

Diante dos olhos dos dois surgiu uma imagem computadorizada de ambos os exemplos. O computador superpôs as duas. Combinaram com perfeição.

— Pelo menos não sofreu mutação.

— Não teve muita chance. Dois pacientes. Eles fizeram um bom trabalho de isolamento. Talvez estejamos com sorte. Os pais do menino foram examinados.

Parecem estar limpos, ou pelo menos foi isso que disseram no telex. Não descobriram mais nenhum caso em sua vizinhança. Ainda estão vasculhando a área. Procuram o usual: macacos, morcegos, insetos. Até agora, nada. Pode ter sido apenas uma anomalia. — Isso era mais uma esperança do que um julgamento.

— Vou estudar um pouco este aqui. Encomendei alguns macacos. Quero cultivar este aqui, dar alguns telefonemas e então examinarei o que ele faz minuto a minuto. Vou extrair uma amostra das células infectadas a cada minuto, parti-las, queimá-las com UV, congelá-las em nitrogênio líquido e colocá-las sob o microscópio. Quero ver como o RNA do vírus se desenvolve.

Há uma questão de sequenciamento aqui... mal consigo dizer o que estou pensando. Os pensamentos ficam me escapando. Merda.

Gus abriu a gaveta, pegou seu cachimbo e o acendeu com um fósforo.

Aquele era o seu escritório, afinal de contas, e ele pensava melhor com um cachimbo na boca. No campo, dizia que a fumaça espantava os mosquitos, e além disso, ele não inalava. Por educação, abriu a janela.

A ideia pela qual ele acabara de receber fundos era mais complicada do que sua breve exposição denotava, e ambos sabiam disso. O mesmo procedimento experimental seria repetido mil vezes ou mais para que se obtivesse uma leitura correta de como o processo ocorria, e esse seria apenas o dado básico. Cada amostra isolada teria de ser examinada e mapeada. O processo poderia demorar anos, mas se Lorenz estava certo, no fim dele, pela primeira vez, haveria um gráfico do que um vírus fazia, como sua cadeia de RNA afetava uma célula viva.

— Estamos trabalhando com uma ideia semelhante lá em Baltimore. -É?

— Faz parte do Projeto Genoma. Estamos tentando ler as interações complexas. O processo... como este putinho ataca as células em nível molecular. Como o Ebola se reproduz sem uma função apropriada de reprodução no genoma. Há alguma coisa a ser aprendida ali. Mas a complexidade da questão é que é de matar. Precisaremos descobrir as perguntas antes de começarmos a procurar as respostas. E então precisaremos de um gênio de computador para dizer à máquina como analisar a coisa. Lorenz soergueu as sobrancelhas.

— Em que ponto vocês estão? Forster deu de ombros.

— Quadro-negro e giz.

— Bem, depois que pegar meus macacos, eu o manterei informado do que conseguirmos aqui. Na pior das hipóteses, as amostras de tecido lançarão um pouco de luz no assunto.

 

O funeral foi épico, com um elenco de milhares uivando sua lealdade a um homem morto e ocultando seus pensamentos verdadeiros; quase se podia senti-los olhando em torno e se perguntando o que aconteceria em seguida. Teve carruagem funerária, soldados com rifles, cavalo sem cavaleiro e soldados em marcha, tudo captado da TV iraquiana pelo STORM TRACK e retransmitido para Washington.

— Gostaria que pudéssemos ver mais rostos — disse Vasco.

— Sim — concordou o presidente. Ryan não sorriu, mas quis. Ele nunca deixaria realmente de ser um espião. Tinha certeza disso. Ele queria os dados frescos, não deglutidos e apresentados a ele por outros. Neste caso, foi assistir ao evento ao vivo, com especialistas comentando-o ao seu lado.

Nos EUA, uma geração antes, aquilo seria chamado de um happening. As pessoas apareciam e agiam de acordo com a forma como era esperado que agissem. O mar literal de pessoas encheu a praça — ela tinha um nome, mas ninguém parecia conhecê-lo... ah, mm, uma nova câmera conferiu uma resposta à pergunta. Grandes telas de TV mostravam a todos o que estava acontecendo.

Jack se perguntou se fariam um replay instantâneo. Duas filas de generais marchavam atrás da carruagem e, Ryan viu, estavam marcando passo.

— Acha que irão desertar?

— É difícil dizer, presidente.

— Seu nome é Bert, certo? — perguntou Ryan.

— Sim, senhor.

— Bert, posso ligar para um dos meus filhos para eles me dizerem que não sabem. Vasco piscou, como esperado. Então pensou, que se dane!

— Oito para dez, eles caem fora.

— É uma boa porcentagem de aposta. Me diga por quê.

— O Iraque não tem ninguém a quem recorrer. Não se dirige uma ditadura por comitê, pelo menos não por muito tempo. Nenhum desses tem colhão para assumir o poder. Se eles permanecerem e o governo mudar, não mudará para alguma coisa que lhes seja favorável. Acabarão como a corte do xá, com as costas na parede, olhando para um pelotão de fuzilamento. Talvez tentem resistir, mas duvido muito. Devem ter dinheiro guardado em algum lugar.

Beber daiquiris numa praia pode não ser tão divertido quanto ser general, mas é bem melhor do que admirar flores pela raiz. Eles também têm famílias com que se preocupar.

— Então devemos prever um regime completamente novo no Iraque? — perguntou Jack.!

Vasco assentiu.

— Sim, senhor.

— Irã?

— Não apostaria contra — respondeu Vasco. — Mas não temos informações suficientes para fazer qualquer tipo de estimativa. Gostaria de poder dizer-lhe mais, senhor, mas o senhor não me paga para especular.

— Isso basta por enquanto. — Na verdade, não bastava, mas Vasco dera a Ryan o melhor que podia. — Não há muito que possamos fazer, não é mesmo?

Esta era uma missão para o Sr. e Sra. Foley.

— Na verdade não — replicou Ed. — Suponho que possamos enviar alguém para lá. Talvez possamos mandar um dos nossos voar do reino para o Iraque, mas o problema é: com quem ele tentará se encontrar? Não fazemos a menor ideia de quem está no comando.

— Se é que alguém está — acrescentou Mary Pat, olhando para os soldados em marcha. Nenhum deles ia na frente.

 

— Como é que é? — perguntou o comprador.

— Você não me pagou na época — justificou o negociante com um arroto depois de beber sua primeira cerveja. — Arranjei outro comprador.

— Eu estava apenas dois dias atrasado — protestou o comprador. — Um problema administrativo retardou a transferência de fundos.

— Está com o dinheiro agora?

— Estou!

— Então acharei alguns macacos para você. — O negociante levantou as mãos e estalou os dedos, chamando a atenção do rapaz do bar. Um garçom inglês não teria chegado mais rápido, no mesmo bar, cinquenta anos antes. — Não é tão difícil assim, você sabe. Uma semana? Menos?

— Mas o CDC quer os animais imediatamente. O avião já está a caminho.

— Farei tudo que estiver ao meu alcance. Por favor, explique ao seu cliente que se ele quiser a encomenda na hora combinada, deve estar disposto a pagar na hora combinada. Obrigado. — Acrescentou para o rapaz do bar: — Uma para o meu amigo. — Ele podia pagar por isso, com o dinheiro que acabara de receber.

— Quanto tempo vai levar?

— Eu lhe disse. Uma semana. Talvez menos. — Por que o sujeito estava tão apressado?

O comprador não tinha escolha, pelo menos não no Quênia. Decidiu beber sua cerveja e falar de outras coisas. Depois daria um telefonema para a Tanzânia. Afinal de contas, o macaco verde africano era abundante por toda a África. Não era um artigo que pudesse estar em falta, disse a si mesmo. Duas horas depois, descobriu que estava errado. O macaco verde estava em falta, embora essa situação fosse perdurar apenas dias. Tudo estaria normalizado assim que os caçadores encontrassem mais tropas dessas pestes de rabo comprido.

 

Vasco leu a tradução: — Nosso sábio e amado líder que tanto deu ao nosso país...

— Como uma forma radical de controle populacional — acrescentou Ed Foley. Os soldados, todos da Guarda Nacional, moveram o caixão para a tumba preparada e, com isso, duas décadas de história do Iraque passaram para os livros. Provavelmente livros encadernados em espiral, com folhas fáceis de arrancar, pensou Ryan. A grande pergunta era: quem escreveria o próximo capítulo?

 

 

 

 

C O N T I N U A