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Series & Trilogias Literarias
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Entregas
— E então? — perguntou o presidente Ryan, depois de dispensar seu último grupo de convidados.
— A carta, se é que houve uma, está perdida, senhor — respondeu o inspetor O’Day.
— A informação mais importante obtida até agora é de que o secretário Hanson não era muito escrupuloso em seus procedimentos de segurança de documentos. Quem nos disse isso foi o chefe de segurança do Estado. Ele afirma que aconselhou o secretário a esse respeito em várias ocasiões. Os agentes que levei comigo estão entrevistando várias pessoas para determinar quem entrou e quem saiu do escritório. Trabalharemos a partir daí.
— Quem está dirigindo a investigação? — Ryan lembrou que Hanson, por melhor técnico diplomático que fosse, provavelmente nunca dera tanta atenção a ninguém.
— O Sr. Murray designou a OPR para prosseguir a investigação, independentemente do seu escritório. Isso significa que também estou fora, porque me reportei diretamente ao senhor no passado. Este será meu último envolvimento direto com o caso.
— Estritamente segundo as regras?
— Presidente, é preciso ser dessa forma — disse o inspetor balançando a cabeça.
— Eles terão ajuda adicional da Divisão de Aconselhamento Jurídico. Eles são agentes com formação acadêmica em direito que agem como cães de guarda jurídicos da Casa Branca. Também são bons tiras. — O’Day pensou por um momento. — Quem entrou e saiu do escritório do vice-presidente?
— Aqui, quer dizer?
— Sim, senhor.
Andréa Price respondeu a essa: — Ninguém recentemente. Não está sendo usado desde que ele saiu. Sua secretária foi com ele e...
— Talvez seja melhor alguém checar a máquina de escrever. Se ela usa fita de carbono...
— Isso mesmo! — Ela quase saiu direto do Salão Oval. — Espere, vocês têm pessoas...
— Darei o telefonema — assegurou-lhe O’Day. — Desculpe, presidente.
Devia ter pensado nisso antes. Por favor, pode lacrar o escritório para nós?
— Feito — garantiu Price.
O barulho era insuportável. Os macacos eram animais gregários, que costumavam viver em tropas de até oitenta indivíduos que povoavam principalmente as margens das florestas na fronteira das grandes savanas, para mais facilmente descer das árvores e correr para campo aberto em busca de comida. Nos últimos cem anos tinham aprendido a atacar fazendas, que era mais fácil e seguro do que o que a Natureza programara em seu comportamento, porque os humanos que operavam as fazendas tipicamente controlavam os Predators que comiam os macacos. Um verde africano era um petisco para um leopardo ou uma hiena, mas um bezerro também era, e os fazendeiros precisavam proteger esses. O que resultava era uma curiosa pitada de caos ecológico. Para proteger o rebanho, os fazendeiros, legalmente ou não, eliminavam os Predators. Isso permitira à população de macacos expandir-se rapidamente, e os famintos macacos verdes africanos em seguida atacariam as plantações de cereais e outras colheitas que alimentavam fazendeiros e os animais de criação. Como fator complicador, os macacos comiam os insetos que também comiam as colheitas, levando os ecologistas locais a sugerir que eliminar os macacos prejudicava o ecossistema da região. Para os fazendeiros era muito mais simples. Se algo comia seus animais de criação, eles o matavam.
Se algo comia suas colheitas, eles também o matavam. Os insetos podiam não ser grandes demais para serem vistos, mas os macacos eram, e assim poucos fazendeiros protestavam quando os caçadores de macacos invadiam suas terras.
Da família cercopithecus, o verde africano possuía bigodes amarelos e costas verde-douradas. Ele podia viver até trinta anos — mais provavelmente em cativeiro confortável do que na floresta infestada de Predators — e tinha uma vida social animada. As tropas eram compostas de famílias de fêmeas, com macacos machos juntando-se ao grupo individualmente por períodos de algumas semanas ou meses antes de se desgarrarem. Uma abundância de fêmeas no cio permitia a diversos machos desfrutarem cooperativamente da situação, mas esse não era o caso na aeronave. As gaiolas estavam empilhadas como ficariam num caminhão carregado de engradados com galinhas a caminho do mercado. Algumas fêmeas estavam no cio, mas totalmente inacessíveis, frustrando seus pretendentes. Os machos nas gaiolas ao lado de outros machos chiavam, arranhavam e cuspiam nos seus vizinhos indesejáveis, irritados com o fato de que os captores tinham usado gaiolas de mesmo tamanho para aprisionar macacos de tamanhos diferentes — o macho verde africano media o dobro da fêmea —, e com estarem sentindo o mais agradável dos odores da natureza... tão perto e tão longe. Somada aos odores desconhecidos da aeronave e à ausência de comida e água, a superlotação gerou um conflito símio, e como a questão não podia ser resolvida por combate, tudo que resultou foi um grito coletivo de raiva, emitido por centenas de indivíduos, que superou de longe as turbinas JT-8 que levavam a aeronave para leste sobre o oceano Índico.
Lá na frente, a tripulação estava com a porta da cabine de comando fechada fortemente e com os fones de ouvido apertados sobre as orelhas. Isso atenuava o som, mas não o odor fétido que os sistemas de recondicionamento de ar circulavam para frente e para trás, enraivecendo ainda mais a carga e nauseando a tripulação.
O piloto, um homem dado a proferir imprecações eloquentes, esgotara seu palavreado e estava cansado de rogar a Alá para expurgar aquelas criaturinhas horríveis da face da terra. Num zoológico ele teria apontado para as criaturinhas de rabos compridos, e seus filhos gêmeos teriam sorrido e atirado alguns amendoins para os prisioneiros engraçados. Aqui seu temperamento era outro.
Com a tolerância esgotada, o piloto pegou a máscara de oxigênio e ligou o fluxo de ar, desejando que pudesse em seguida abrir as portas da carga, descomprimindo a aeronave e extinguindo os macacos e seu fedor insuportável. Teria se sentido melhor se soubesse que os macacos pressentiam um mal terrível à sua espera.
Badrayn encontrou-os novamente num bunker de comunicações. O bunker não lhe conferiu a sensação de segurança esperada. A única razão para este ainda estar de pé era que fora construído sob um falso prédio industrial — uma gráfica que, na verdade, realmente imprimia alguns livros. Esta e mais algumas instalações similares tinham sobrevivido à guerra contra os EUA apenas porque o serviço de informação americano cometera um erro. Duas bombas inteligentes haviam atingido um prédio diretamente do outro lado da rua.
Ainda era possível ver a cratera no local onde os americanos tinham acreditado que este bunker ficava. Havia uma lição naquilo, pensou Badrayn, ainda esperando. Era preciso ver para acreditar. Não era o mesmo que olhar numa tela de TV ou ouvir falar a respeito. Havia cinco metros de concreto sólido sobre sua cabeça. Cinco metros. As instalações haviam sido construídas sob a supervisão de engenheiros alemães bem remunerados. Ainda era possível ver a impressão das tábuas de madeira compensada que tinham mantido o concreto úmido no lugar. Não se via uma única rachadura — e provavelmente a única razão para este lugar ainda estar de pé era que os americanos tinham bombardeado o lado errado da rua. O poder das armas modernas era imenso, e embora AH Badrayn tivesse existido no mundo das armas e guerreado durante a maior parte de sua vida, essa era a primeira vez que ele reconhecia esse fato.
Eles eram bons anfitriões. Um coronel fora designado para cuidar dele.
Dois sargentos prepararam salgadinhos e drinques. Ele assistira ao funeral pela TV. Fora tão previsível quanto uma daquelas séries policiais americanas exibidas pelo mundo inteiro. Você sempre sabe como a historia ia terminar. Os iraquianos, como a maioria dos povos da região, eram um povo passional, particularmente quando reunidos em grande número e encorajados a fazer os ruídos apropriados. Comoviam-se com facilidade, e Badrayn sabia que nem sempre importava por quem. Além disso, quanto daquilo fora genuíno? Os informantes ainda estavam lá fora para tomar nota de quem não aplaudia ou lamentava nos momentos certos. O aparato de segurança que fracassara em proteger o presidente morto ainda operava, e todos sabiam disso. E pouco da emoção que fluíra tão livremente na tela e através das praças cheias era real. Ele riu por dentro. Como uma mulher, disse Badrayn a si mesmo, fingindo seu momento de prazer supremo. A questão era, os homens que tão frequentemente desfrutavam de prazer sem concedê-lo notariam a diferença?
Chegaram um a um, para evitar discutir no caminho a questão que todos precisariam decidir em conjunto. Um armário de madeira foi aberto para revelar garrafas e copos, e as leis do Islã foram violadas. Badrayn não se importou.
Tomou um copo de vodca, bebida pela qual adquirira o gosto vinte anos antes em Moscou, então a capital de um mundo hoje desaparecido.
Estavam surpreendentemente quietos para homens tão poderosos, ainda mais para pessoas que tinham chegado do funeral de um homem a quem jamais amaram. Tomaram suas bebidas — principalmente uísque — e novamente limitaram-se a olhar uns para os outros. O televisor ainda estava sintonizado numa estação local retransmitindo o funeral, com o comentarista exaltando as virtudes do líder morto. Os generais olharam as imagens e ouviram as palavras, mas a expressão grave em seus rostos não era de tristeza. Era de medo. Seu mundo chegara ao fim. Não ficaram comovidos com os gritas dos cidadãos ou com as palavras do comentarista. Todos sabiam o que estava acontecendo.
O último deles chegou. Era o chefe de informação que encontrara Badrayn no começo do dia, limpo e refrescado porque passara em seu quartel-general.
Os outros olharam para ele, que respondeu sem a necessidade de ouvir a pergunta.
— Tudo está calmo, amigos.
Por enquanto. Essa observação também não precisou ser exprimida.
Badrayn poderia ter falado, mas não o fez. Ele era eloquente. Com o passar dos anos conseguira motivar muitas pessoas e sabia como, mas este era um momento em que o silêncio era a declaração mais poderosa. Limitaram-se a olhar para ele, sabendo que seus olhos falavam muito mais alto do que qualquer voz.
— Não estou gostando disto — disse um deles finalmente. Nenhum rosto se alterou. E não foi nenhuma surpresa. Nenhum deles estava gostando daquilo. O que falara simplesmente afirmara o pensamento geral e, ao fazê-lo, revelou-se o mais fraco do grupo.
— Como vamos saber que podemos confiar em seu mestre? — perguntou o chefe da guarda.
— Ele lhes dará sua palavra em nome de Deus — replicou Badrayn, pousando o copo na mesa. — Se quiserem, podem mandar uma delegação falar com ele. Nesse caso, permanecerei aqui como seu refém. Mas se quiserem fazer isso, terão de decidir depressa.
Todos sabiam disso também. A coisa que temiam poderia acontecer antes ou depois de sua partida. Seguiu-se outro período de silêncio. Mal bebericavam seus drinques agora. Olhando para seus rostos, Badrayn leu os pensamentos dos homens. Todos queriam que outra pessoa expressasse uma opinião, para depois concordar ou não com ela; no processo, o grupo alcançaria uma posição coletiva que todos provavelmente seguiriam, embora pudesse haver uma facção de dois ou três que considerariam um curso de ação alternativo. Isso dependia de qual deles colocaria sua vida na balança para pesá-la contra um futuro desconhecido. Esperou para ver quem faria isso. Finalmente um deles se manifestou.
— Casei tarde — disse o chefe da Força Aérea, que passara dos vinte aos trinta e poucos anos como piloto de caça. — Tenho filhos pequenos. — Fez uma pausa e olhou em volta. — Acho que todos sabemos do destino possível...provável... de nossas famílias se as coisas transcorrerem desfavoravelmente.
Foi uma jogada digna, pensou Badrayn. Não podiam agir como covardes.
Eram soldados, afinal de contas.
A promessa de Daryaei em nome de Deus não bastava para convencê-los.
Havia muito tempo desde que qualquer um deles tinha visitado a mesquita para qualquer propósito além de ser fotografado em suas devoções simuladas, e embora o caso de seu inimigo fosse bem diferente, uma pessoa só confiaria em outra religião se tivesse fé na sua.
— Presumo que finanças não sejam um problema — disse Badrayn, tanto para certificar-se de que não eram e para fazer com que eles mesmos examinassem essa opção. Algumas cabeças viraram com olhares quase sarcásticos, e a pergunta foi respondida. Embora as contas do Iraque estivessem congeladas havia muito tempo, outras contas não estavam. Era possível fraudar a nacionalidade de uma conta bancária, principalmente considerando o tamanho da conta. Cada um desses homens, pensou Badrayn, tinha acesso a nove dígitos de alguma unidade monetária, provavelmente dólares ou libras, e esta não era hora de se preocupar com a quem esse dinheiro pertencera.
A questão seguinte era: para onde podiam ir, e como chegariam lá em segurança? Badrayn podia ver isso em seus rostos, e mesmo assim, nada pôde fazer no momento. A ironia da situação, que apenas ele estava em posição de apreciar, era que o inimigo não queria nada mais do que aliviar o medo daqueles homens e manter sua palavra. Mas Ali sabia que ele era um homem de paciência extraordinária. Do contrário nem estaria aqui.
— Tem certeza?
— A situação é quase ideal — disse o visitante de Daryaei, prosseguindo sua explicação.
Mesmo para um homem religioso que acreditava na Vontade de Deus, a confluência de eventos era boa demais para ser verdade, e no entanto era mesmo — ou parecia ser.
— E...?
— E estamos procedendo de acordo com o plano.
— Excelente.
Não era. Daryaei teria preferido lidar com cada aspecto por vez, para melhor concentrar seu intelecto formidável nas três situações em desenvolvimento, mas isso nem sempre era possível, e talvez fosse esse o sinal.
Em todo caso, não tinha escolha. Como era estranho que pudesse se sentir encurralado por eventos resultantes de planos que ele mesmo colocara em ação.
A parte mais difícil foi lidar com seu colega da Organização Mundial de Saúde. Isso foi possível apenas porque as notícias até ali eram boas. Benedict Mkusa, o Paciente Index ou Paciente Zero, dependendo da terminologia favorita da pessoa, estava morto, seu corpo destruído. Uma equipe de 15
pessoas vasculhara a vizinhança da família e até agora não encontrara nada. O período crítico ainda não chegara — o Ebola Zaire tinha um período normal de incubação de quatro a dez dias, embora houvesse casos tão breves quanto dois dias e tão longos quanto dezenove — mas o único outro caso estava diante de seus olhos. Foi descoberto que Mkusa era um naturalista nato, que passava a maior parte de seu tempo livre na floresta. Assim, agora estava sendo realizada uma caça a roedores, macacos e morcegos, em mais uma tentativa de descobrir o hospedeiro ou portador do vírus mortal. Mas, acima de tudo, esperavam que, para variar, a sorte lhes tivesse sorrido. O Paciente Index fora tratado imediatamente devido à situação de sua família. Seus pais, cultos e bem-sucedidos, haviam deixado profissionais de saúde tratarem do menino em vez de fazer isso eles mesmos. Graças a essa atitude, provavelmente tinham salvo suas próprias vidas, embora estivessem agora esperando o período de incubação terminar com um terror que superava até mesmo a dor da perda de seu filho.
Todo dia tinham seu sangue extraído para os exames padrão, mas os exames podiam ser imprecisos, como algum médico insensível dissera-lhes. A despeito disso, a equipe da OMS estava se permitindo torcer que esta epidemia parasse com dois pacientes-vítima, e por causa disso estiveram dispostos a considerar a proposta do Dr. Moudi.
Houve objeções, claro. Os médicos zairenses queriam tratá-la aqui. Isso fazia sentido. Eles tinham mais experiência com o Ebola do que qualquer outra pessoa, embora isso tivesse trazido poucos benefícios, e a equipe da OMS relutava, por questões políticas, a insultar seus colegas. Havia acontecido alguns incidentes infelizes antes, envolvendo a arrogância com que os europeus tratavam os médicos locais. Os dois lados estavam certos em alguns pontos. A qualidade dos médicos africanos era desigual. Havia médicos excelentes, péssimos e medianos. O argumento do Dr. Moudi foi de que Rousseau era um herói genuíno da comunidade parisiense, um cientista talentoso e um clínico dedicado que se recusava a aceitar o fato de que as doenças virais não podiam ser tratadas com eficácia. Rousseau, na tradição de Pasteur, estava determinado a quebrar a regra. Ele experimentara o ribavirin e o interferon como tratamentos para o Ebola, sem resultado positivo. Sua última conquista teórica fora dramática e provavelmente ineficaz, mas demonstrara uma certa promessa em estudos com macacos, e ele queria testá-la num paciente humano sob condições cuidadosamente controladas. Embora seu método proposto de tratamento fosse tudo, menos prático para a aplicação clínica, era preciso começar em algum lugar.
O fator decisivo, previsivelmente, foi a identidade da paciente. Muitos integrantes da equipe da ONU conheciam a freira desde a última epidemia de Ebola em Kikwit. A irmã Jean Baptiste voara para aquela cidade a fim de supervisionar as enfermeiras locais e, apesar da crença geral em contrário, os médicos podiam comover-se quando familiarizados com seus pacientes.
Finalmente, ficara acertado que sim, o Dr. Moudi poderia transportar a paciente.
A mecânica da transferência foi complicada. Eles usaram um caminhão em vez de uma ambulância, porque um caminhão seria mais fácil de ser desinfetado depois do transporte. A paciente foi erguida num lençol plástico e depositada numa maça de rodas, na qual foi transportada pelo corredor. O percurso estava desimpedido, e enquanto Moudi e a irmã Maria Magdalena empurravam a paciente na direção da porta, um grupo de técnicos vestidos em roupas espaciais de plástico borrifava o assoalho, as paredes e o próprio ar com desinfetante, levantando uma neblina química que seguiu a procissão como a fumaça do carburador de um calhambeque.
A paciente foi sedada e amarrada. Seu corpo foi enclausurado para prevenir a liberação de sangramentos ricos em vírus. O lençol plástico sob ela fora pulverizado com os mesmos agentes químicos neutralizadores, de modo que quaisquer vazamentos encontrariam imediatamente um ambiente adverso para as partículas de vírus que eles portavam. Enquanto empurrava a maça de rodas, Moudi espantou-se com sua própria loucura, assumindo tamanho risco com algo tão mortal. O rosto de Jean Baptiste, marcado por um número cada vez mais numeroso de petéquias, estava plácido devido a uma dosagem perigosamente alta de narcóticos.
Saíram para a doca de carregamento pela qual os suprimentos chegavam ao hospital. O caminhão estava lá, seu motorista sentado firmemente atrás do volante e nem mesmo olhando para trás em sua direção, exceto talvez pelo espelho. O interior da van fora borrifado da mesma forma, e com a porta fechada e a maça de rodas imobilizada firmemente, o veículo partiu acompanhado de uma escolta policial, jamais excedendo trinta quilômetros por hora em seu trajeto curto até o aeroporto local. O sol ainda estava alto e o calor rapidamente tornou o caminhão um forno móvel, fervendo os produtos químicos protetores. O odor de desinfetante atravessou o sistema de filtração da roupa. Felizmente o médico estava acostumado com o cheiro.
O avião estava esperando. O G-IV chegara apenas duas horas antes depois de um voo direto de Teerã. O interior fora desprovido de tudo, menos dois assentos e uma cama. Moudi sentiu o caminhão e se virou para olhar para trás.
A porta de carga abriu, ofuscando-os com o sol. Ainda uma freira bondosa, a irmã Maria Magdalena protegeu com a mão os olhos da colega.
Havia outros lá dentro, claro. Mais duas freiras e um padre em roupas protetoras observavam a uma certa distância. Todos estavam orando enquanto outras pessoas levantavam a paciente pelo lençol plástico e carregavam-na lentamente para bordo do jato comercial pintado de branco. Levou cinco minutos cuidadosos até a paciente estar amarrada com firmeza no lugar, e a tripulação de solo se afastou. Moudi examinou cuidadosamente a paciente, checando pulso e pressão, o primeiro acelerado, a segunda ainda caindo. Isso o preocupou. Ele precisava que a irmã permanecesse viva o mais tempo possível.
Feito isso, gesticulou para a tripulação e fechou seu próprio cinto de segurança.
Sentando-se, aproveitou o momento para olhar pela janela, e ficou alarmado ao ver uma câmera de TV apontada para a aeronave. Pelo menos eles mantiveram distância, pensou o médico, enquanto ouviu a primeira turbina começar a funcionar. Pela janela externa, viu a equipe de limpeza pulverizar novamente o caminhão. Aquilo era principalmente teatral. O Ebola, mortal como era, parecia um organismo delicado, morto prontamente pelos raios ultravioleta do sol direto e vulnerável ao calor. Esse era o motivo pelo qual a busca pelo hospedeiro era tão frustrante. Alguma coisa portava esse maldito micróbio. O Ebola não podia existir sozinho, mas fosse qual fosse o animal que proporcionava uma casa confortável para o vírus, o Ebola recompensava esse serviço não o matando; assim, havia uma criatura vivente, ainda desconhecida, que assombrava o continente africano como uma sombra. O médico grunhiu.
Eleja desejara descobrir esse hospedeiro para poder usá-lo, mas essa esperança sempre fora em vão. Em vez disso, tinha agora algo quase tão bom. Tinha um paciente vivo cujo corpo estava inoculado com o patógeno, e embora todas as vítimas anteriores do Ebola tivessem sido queimadas, ou enterradas em solo empapado com química, esta teria um destino muito diferente. O avião começou a se mover. Moudi checou seu cinto de segurança novamente e desejou ter alguma coisa para beber.
Na cabine de comando, os dois pilotos vestiam roupas protetoras previamente borrifadas com Nomex. As máscaras abafavam suas palavras, forçando a repetição de seu pedido de desobstrução, mas finalmente a torre entendeu, e o Gulfstream iniciou seu percurso de decolagem. Alçou voo suavemente no límpido céu africano e rumou para o norte. A primeira parte da viagem consistiria em 2.551 milhas, e duraria mais de seis horas.
Outro avião, um G-IV praticamente idêntico, já pousara em Benghazi, e agora sua tripulação estava recebendo instruções sobre procedimentos de emergência.
— Canibais — disse Holbrook, balançando a cabeça em descrença temporária. Ficara acordado até tarde na noite anterior para assistir a todos os comentaristas da C-SPAN discutirem a situação confusa no Congresso em virtude do discurso desse Ryan. Não fora um discurso ruim, tinha de admitir. Já vira coisas piores. Aquilo tudo fora mentira, claro, uma espécie de programa de TV. Ninguém acredita no que acontece nas séries de TV, mesmo naquelas das quais se gosta. Algum homem talentoso escrevera o discurso, com o propósito de convencer o povo de alguma coisa. A habilidade dessa gente era extraordinária. Os Montanheses trabalhavam havia anos para desenvolver um discurso que pudessem usar para mobilizar o povo para seu ponto de vista.
Haviam tentado e tentado, mas eles simplesmente não conseguiam fazer isso direito. Não que houvesse alguma coisa errada com suas crenças, claro que não.
O problema era a forma de apresentar essas crenças, e apenas o governo e seu aliado, Hollywood, podiam pagar os profissionais certos para desenvolver ideias que distorciam as mentes dos cidadãos — essa era a única conclusão possível.
Mas agora havia discórdia no acampamento inimigo.
Ernie Brown, que ao chegar acordara o amigo, emudeceu o som da TV.
— Acho que simplesmente não há espaço para os dois naquela cidade, Pete.
— Acha que um sairá ao pôr do sol? — perguntou Holbrook.
— Espero que sim. — O comentário jurídico que tinham acabado de ouvir na hora política da CNN fora tão confuso quanto uma marcha de pretos em Washington para protestar contra a previdência social. — Bem, a Constituição não diz o que fazer num caso como este. Suponho que eles poderiam resolver isso num duelo ao pôr do sol na Pennsylvania Avenue — acrescentou Ernie com um risinho.
Pete virou a cabeça e fez uma careta. — Não seria uma cena fantástica?
— Americana demais.
Brown poderia ter acrescentado que Ryan tinha realmente estado num tiroteio certa vez, ou pelo menos era isso que os jornais e a TV diziam. Bem, era verdade. Ambos lembravam vagamente da coisa em Londres e, verdade seja dita, tinham ficado orgulhosos em ver um americano mostrando aos europeus como se usa uma pistola — estrangeiros não sabem picas sobre armas, não é mesmo? Os estrangeiros eram tão sujos quanto Hollywood. Era uma pena que Ryan tivesse seguido o mau caminho. O que ele dissera no discurso, o motivo pelo qual entrara no governo, era o que todos diziam. Todos eram patifes e ladrões, mas pelo menos aquela escória do Kealty não era hipócrita a esse respeito. Um cigano de classe alta ou... um coiote? Sim, ele era isso. Kealty fora um bandido político a vida inteira, e estava apenas sendo o que era. Não se pode culpar um coiote por uivar para a lua. Obviamente, coiotes eram pestes.
Os rancheiros podiam matar todos os que quisessem... Brown balançou a cabeça.
— Pete?
— Que é, Ernie? — Holbrook tinha pegado o controle e estava prestes a aumentar o volume.
— Estamos numa crise constitucional, certo? Foi a vez de Holbrook virar-se para olhar.
— Sim, é isso que os especialistas estão dizendo.
— E ela acaba de piorar, certo?
— Com o caso do Kealty? Parece que sim. — Pete pousou o controle. Ernie estava tendo outro surto de ideias.
— E se... humm...
Brown começou e parou, olhando para o televisor silencioso. Holbrook sabia que seus pensamentos levavam tempo para se formar, mas quando isso acontecia, a espera revelava ter valido a pena.
Já passara da meia-noite quando o 707 pousou, finalmente, no Aeroporto Internacional Teerã-Mehrabad. A tripulação parecia composta por zumbis, tendo voado quase continuamente durante as últimas 36 horas, bem acima dos limites de cautela da aviação civil. Os tripulantes estavam ainda mais extenuados pela natureza de sua carga, e com tanto mau humor que tinham trocado palavras ríspidas durante a descida longa. Mas quando a aeronave pousou, veio o alívio e o embaraço, que exprimiram com um suspiro coletivo.
O piloto balançou a cabeça e esfregou o rosto com uma mão cansada, taxiando para o sul, guiando entre as lâmpadas azuis. Este aeroporto também era o sítio dos quartéis-generais do Exército e da Força Aérea iraquiana. A aeronave completou seu voo, revertendo direções e seguindo para a espaçosa área de decolagem da força aérea — embora seus símbolos fossem civis, o 707 pertencia à Força Aérea iraquiana. Havia caminhões à espera, a tripulação viu com alegria. O avião parou. O engenheiro desligou as turbinas. O piloto ajustou os freios de estacionamento. Os três homens olharam para baixo.
— Um dia longo, meus amigos — disse o piloto à guisa de desculpa.
— Com a graça de Deus, teremos um sono longo à nossa espera — replicou o engenheiro, que fora o alvo principal da fúria do comandante, aceitando as desculpas. Estavam cansados demais para sustentar uma discussão, e depois de um descanso apropriado nem lembrariam dos motivos.
Removeram as máscaras de oxigênio, para serem recebidos pelo fedor de sua carga, e se forçaram para não vomitar enquanto a porta da carga era aberta na traseira. Não podiam desembarcar ainda. A porta da aeronave estava obstruída com gaiolas e, a não ser que descessem pelas janelas — o que seria muito indigno — teriam de aguardar sua liberdade como passageiros no terminal de qualquer aeroporto internacional.
Os soldados procederam o descarregamento, um processo dificultado ainda mais pelo fato de que ninguém aconselhara seu comandante a mandá-los usar luvas, como os africanos tinham feito. Cada gaiola tinha um gancho no topo, mas os verdes africanos, tão irritados quanto os tripulantes, investiram para arranhar e morder as mãos que tentavam levantá-los. As reações entre os soldados diferiram. Alguns bateram nas gaiolas para forçar os macacos à passividade. Os mais espertos removeram suas jaquetas e usaram-nas para proteger as mãos enquanto seguravam as gaiolas. Logo foi estabelecida uma fileira de homens, e as gaiolas foram transferidas, uma por vez, para uma série de caminhões.
O procedimento foi barulhento. Fazia cerca de dez graus em Teerã naquela noite, muito abaixo do que os macacos estavam acostumados, e isso perturbou-os mais do que qualquer coisa que lhes acontecera nos últimos dias, piorando ainda mais seu comportamento. Reagiram ao novo trauma com gritos e uivos que ecoaram pela rampa. Até mesmo pessoas que nunca tinham ouvido macacos não confundiriam aqueles ruídos com qualquer outra coisa, mas isso não poderia ser evitado. Finalmente acabou. A porta da cabine de comando foi aberta, e a tripulação teve a chance de olhar para o que antes fora um avião impecável. Tinham certeza que levaria semanas até conseguirem tirar o cheiro, e apenas esfregá-lo seria uma tarefa dolorosa na qual preferiram não pensar no momento. Deixaram juntos o avião e caminharam até seus carros estacionados.
Os macacos seguiram para norte em sua terceira ou quarta — e última — jornada de caminhão. Fizeram um percurso curto ao longo de uma rodovia construída durante o reinado do xá, e dali seguiram para oeste rumo a Hasanbad. Ali havia uma fazenda, dedicada há muito tempo aos mesmos propósitos que haviam ocasionado o transporte dos macacos da África para a Ásia. A fazenda pertencia ao Estado, usada como estação experimental para testar novas colheitas e fertilizantes, e se esperava que ela oferecesse alimentos aos recém-chegados, mas ainda era inverno e nada estava crescendo no momento. Em vez disso, vários caminhões de tâmaras do sudeste do país tinham acabado de chegar. Os macacos sentiram o cheiro das tâmaras ao ser transportados para o prédio de concreto de três andares que seria sua última casa. O aroma apenas deixou-os mais agitados, porque não haviam comido nem bebido nada desde que saíram de seu continente natal, mas pelo menos concedeu-lhes a esperança de uma refeição, e uma refeição saborosa, como era de direito a todos os condenados.
O Gulfstream G-IV pousou em Benghazi precisamente dentro de seu plano de voo. Fora uma jornada agradável, dentro das circunstâncias. Mesmo a atmosfera normalmente turbulenta do centro do Saara estivera calma, permitindo um cruzeiro suave. A irmã Jean Baptiste permanecera inconsciente durante a maior parte do voo, despertando para a semiconsciência apenas algumas vezes, e logo perdendo os sentidos novamente. Na verdade, ela estivera mais confortável do que as outras quatro pessoas a bordo, cujas roupas protetoras impediam-nas sequer de tomar um gole de água.
As portas da aeronave não foram abertas em nenhum momento. Em vez disso, caminhões de combustível tinham se aproximado e seus motoristas haviam conectado mangueiras às aberturas dos tanques de combustível. O Dr.
Moudi estava acordado, devido à tensão. A irmã Maria Magdalena estava cochilando. Ela era tão idosa quanto a paciente, e mal dormira nos últimos dias, devotada como estava à colega. Isso era injusto, pensou Moudi, franzindo a testa ao olhar pela janela. Ele não sentia mais ódio por essas pessoas.
Antigamente, sim, ele sentiria. Ele já considerara todos os ocidentais como inimigos de seu país, mas essas duas não eram. Sua terra natal era essencialmente neutra em relação à dele. Não eram os pagãos animistas da África, que ignoravam os apelos do Deus verdadeiro. Elas haviam dedicado suas vidas ao serviço de Seu nome, e ambas tinham surpreendido Moudi ao demonstrar respeito por suas orações e devoções. Mais do que qualquer outra coisa, respeitava a crença das duas de que a fé era um caminho para o progresso e não a aceitação de um destino pré-ordenado, uma ideia não totalmente congruente com suas crenças islâmicas, mas também não exatamente contrária a elas. Maria Magdalena tinha nas mãos — desinfetadas — um rosário que usava para organizar suas preces a Maria, mãe do profeta Jesus, venerada no Corão e nas escrituras abreviadas da freira, e um modelo de comportamento para as mulheres...
Moudi virou a cabeça, desviando os olhos das duas. Não podia permitir-se esse tipo de pensamento. Tinha uma missão, e elas eram os instrumentos dessa missão. Uma tivera seu destino designado por Alá, a outra escolhera o seu próprio. A missão estava lá fora, não aqui dentro, fato evidenciado quando os caminhões de combustível se afastaram e as turbinas começaram a funcionar de novo. O voo estava sendo realizado às pressas. Ele também estava apressado, porque queria finalizar a parte física da missão imediatamente, para começar logo a parte intelectual. A primeira parte estava acabando, mas não havia motivo para comemorar. Todos aqueles anos entre pagãos, vivendo no calor tropical, sem uma única mesquita a quilômetros de distância, obrigado a comer comida horrorosa, frequentemente maculada, sempre se perguntando se era pura ou impura, e jamais tendo certeza. Isso tudo ficara para trás. O que o futuro lhe reservava era o serviço ao seu Deus e seu país.
Duas aeronaves, não uma, taxiaram até a pista principal norte-sul, sacolejando ao passar por rachaduras no concreto, causadas pelo calor assassino do deserto e pelo frio surpreendente das noites de inverno. A primeira aeronave a partir não foi a de Moudi. Aquele G-IV, externamente idêntico, diferindo em apenas um dígito no código de cauda, ganhou velocidade na pista e decolou rumo ao norte. O avião de Moudi replicou a rotina de decolagem, mas assim que as rodas foram recolhidas, este G-IV virou à direita num percurso para sudeste rumo ao Sudão, um avião solitário numa noite solitária no deserto.
O primeiro virou levemente para oeste e adentrou o corredor normal do espaço aéreo internacional para a costa francesa. Durante o curso, passaria perto da ilha de Malta, onde uma estação de radar existia para atender às necessidades do aeroporto de La Valetta e também para executar deveres de controle de tráfego para o Mediterrâneo central. A tripulação dessa aeronave era inteiramente composta por oficiais da Força Aérea que geralmente transportavam eminências da política e dos negócios de um ponto a outro, o que era seguro, bem remunerado e tedioso. Esta noite seria diferente. O copiloto mantinha os olhos fixos no mapa de voo e no sistema de navegação GPS. A duzentas milhas de Malta, a uma altitude de cruzeiro de 39 mil pés, obedeceu ao aceno de cabeça do piloto e ajustou o transceptor do radar em 7711.
— Estação Valetta. Estação Valetta. Aqui é November-Juliet-Alpha, Mayday, Mayday, Mayday.
O controlador em La Valetta digitou imediatamente a assinatura tripla no radar. O tráfego ali era normalmente esparso, e até agora a noite tinha sido tão rotineira quanto qualquer outra no centro de controle de tráfego aéreo. O controlador segurou seu microfone com uma mão enquanto gesticulava com a outra para seu supervisor.
— Juliet-Alpha, Valetta. Está declarando emergência, senhor?
— Valetta, Juliet-Alpha. Afirmativo. Somos o voo de evacuação vindo do Zaire para Paris. Acabamos de perder a turbina número dois e tivemos problemas elétricos, aguarde...
— Juliet-Alpha, Valetta. Em prontidão, senhor.
A tela mostrou a altitude da aeronave como 390, depois 380, depois 370.
— Juliet-Alpha, Valetta. Vejo que está perdendo altitude. O tom da voz em seus fones de ouvido mudou.
— Mayday, Mayday, Mayday! Estamos sem as duas turbinas, estamos sem as duas turbinas! Tentando religar. Aqui é Juliet-Alpha.
— Juliet-Alpha, Valetta. O seu curso de penetração direta é três-quatro-três, repito, vetor direcional três-quatro-três. Em prontidão, senhor.
Um câmbio rápido e tenso foi tudo que o controlador replicou. A leitura de altitude agora estava em 330.
— Que está acontecendo? — perguntou o supervisor.
— Ele disse que está sem as duas turbinas. Está caindo rapidamente.
Uma tela de computador mostrou que o avião era um Gulfstream, e o plano de voo foi confirmado.
— Está planando bem — comentou otimista o supervisor; 310, disseram ambos. Mas o G-IV não estava planando tão bem assim.
— Juliet-Alpha, Valetta. Nada.
— Juliet-Alpha, aqui é Estação Valetta.
— Quem mais está... — disse o supervisor, checando a tela pessoalmente.
Não havia outras aeronaves na área, e tudo que eles podiam fazer era observar.
Para simular melhor A emergência de voo, o piloto colocou suas turbinas novamente em ponto morto. Em geral o pessoal da torre diria alguma gracinha para acalmá-lo, mas não fizeram isso. Na verdade, não falaram nada. Empurrou o manche mais para a frente de modo a aumentar seu ritmo de descida. Então virou para bombordo, como se estivesse angulando na direção de Malta. Isso vai fazer com que as pessoas na torre se sintam melhor, pensou, passando pelos 25 mil pés. Foi uma sensação muito boa. Eleja fora piloto de caça para seu país, e sentia falta da sensação maravilhosa de fizer piruetas com um avião através do céu. Uma descida nesta velocidade teria deixado seus passageiros pálidos e em pânico. Para o piloto aquilo era a essência do ato de voar.
— Ele deve estar muito pesado — disse o supervisor.
— O percurso para o De Gaulle em Paris está desobstruído. — O controlador encolheu os ombros e fez uma careta. — O avião está sobre Benghazi.
— Combustível ruim?
A resposta foi outro dar de ombros.
Era como assistir à morte pela televisão, ou pior ainda, porque os dígitos alfanuméricos de altitude continuavam descendo na velocidade das figuras de um caça-níqueis.
O supervisor levantou um telefone.
— Ligue para os líbios. Pergunte se eles podem resgatar um avião. Temos uma aeronave prestes a cair no golfo de Sidra.
— Estação Valetta, aqui é o USS Radford, me copia?
— Radford, Valetta.
— Temos seu contato no radar. Está caindo em alta velocidade. — A voz foi de um tenente em plantão noturno. O Radford era um velho destróier classe Spruance em rumo para Nápoles depois de um exercício com a Marinha egípcia. Durante o percurso recebera ordens de entrar no golfo de Sidra para proclamar direitos de liberdade de navegação, um exercício quase tão antigo quanto a própria nau. Já tendo sido fonte de emoções consideráveis, e duas batalhas aeronavais acirradas na década de 1980, essa missão agora era uma rotina tediosa, senão o Radford não estaria indo sozinho. Era tão chato que os marinheiros estavam monitorando frequências de rádio para aliviar o torpor.
— O contato está a oito-zero milhas a oeste de nós. Estamos vasculhando.
— Pode responder a um pedido de resgate?
— Valetta, acabei de acordar o comandante. Dê-nos algum tempo para nos organizarmos e vamos tentar, desligo.
— Está caindo como uma pedra — comentou o oficial no posto de comunicações do Radford. — Melhor andarmos depressa.
— O alvo é um jato comercial Gulf-Four. Nós o captamos em um-seis-mil e descendo rápido — aconselhou Valetta.
— Obrigado, confere com nossos dados. Estamos em prontidão.
— Que está acontecendo? — perguntou o comandante, aparecendo vestido com calças caqui e camiseta. O relatório não demorou muito. — Certo, ponha o motor para funcionar. — Em seguida, o comandante pegou um microfone de comunicação interna. — Passadiço, aqui é o comandante. Toda velocidade para frente, entrando em curso...
— Dois-sete-cinco, senhor — instruiu o oficial de radar. — Alvo está em dois-sete-cinco e oito-três milhas.
— Novo curso é dois-sete-cinco.
— Certo, senhor. Entrando em dois-sete-cinco, toda velocidade para a frente — confirmou o oficial no tombadilho. No passadiço, o contramestre da vigília empurrou a maçaneta de controle direto dos motores, bombeando combustível adicional para as imensas turbinas GE. O Radford estremeceu um pouco, corrigiu a popa e começou a acelerar a partir de oitenta nós. O comandante olhou em volta para o vasto centro de informações de combate. Os tripulantes estavam alertas, alguns balançando a cabeça para acordar por completo. Os oficiais de radar estavam ajustando seus instrumentos. No posto de comunicações principal, a tela mudou para rastrear melhor a aeronave em queda — Ponha todos em alerta — ordenou o comandante.
A situação serviria como um bom treino. Em trinta segundos, todos a bordo estavam acordados e correndo para suas estações.
É preciso ser cuidadoso ao descer no oceano à noite. O piloto do G-IV
ficou atento para sua altitude e ritmo de descida. A carência de boas referências visuais facilitava demais chocar-se contra a superfície, e embora isso pudesse servir perfeitamente aos propósitos da missão, ele não queria que fosse tão perfeito assim. Em mais alguns segundos sairiam do alcance do radar de La Valetta, e poderiam começar a interromper o mergulho. A única coisa que o preocupava era a possibilidade de haver uma embarcação lá embaixo, mas ele não via nenhuma silhueta à luz da lua minguante.
— Conseguimos — anunciou quando a aeronave passou da marca de cinco mil pés. Puxou o manche. La Valetta notaria a mudança no ritmo de descida em seu transceptor, se ainda estavam recebendo algum sinal, mas mesmo nesse caso eles considerariam que, depois de mergulhar para obter fluxo de ar nas turbinas — o melhor que podia fazer para acionar novamente os motores —, estava agora tentando nivelar para fazer um pouso controlado no oceano plácido.
— Nós o estamos perdendo — disse o controlador de voo. O mostrador na tela piscou algumas vezes, retornou, e finalmente apagou.
O supervisor assentiu e ligou o microfone.
— Radford, aqui é Valetta. Juliet-Alpha saiu de nosso alcance. A última leitura de altitude foi seis mil pés e descendo, curso três-quatro-três.
— Valetta, entendido, ainda o temos. Agora está em quatro mil, quinhentos, o ritmo de descida desacelerou um pouco, curso três-quatro-três — replicou o oficial de comunicações. Apenas a três metros dele, o comandante estava conversando com o comandante do destacamento aéreo do Radford. Levaria mais de vinte minutos para que o único helicóptero Seahawk SH-60B do destróier alcançasse a área da queda. A aeronave estava agora sendo ajustada antes de poder alçar voo do convés. O piloto do helicóptero olhou desanimado para o radar.
— O mar está calmo. Se tiver um pouco de miolo, o piloto poderá sair andando dessa. O ideal é tentar se chocar com a água em paralelo com o solo e manter o avião na superfície. Certo, cuidaremos disso, senhor. — Dito isso, deixou a sala de comunicações.
— Nós o estamos perdendo sob o horizonte — reportou o oficial de radar. — Acaba de passar por quinhentos. Parece que vai mergulhar.
— Fale com Valetta — ordenou o comandante. .4
O G-IV nivelou em quinhentos pés, segundo o altímetro do radar. Era o mais baixo que o piloto podia arriscar. Feito isso, acionou novamente as turbinas até força de cruzeiro e virou para a esquerda, o sul, de volta para a Líbia. Estava inteiramente alerta agora. Voar baixo era muito arriscado em qualquer circunstância, e ainda mais sobre a água à noite, mas suas ordens eram claras, embora o propósito não fosse. Em todo caso, seria rápido. Depois de alcançar trezentos nós, levaria quarenta minutos até o aeroporto militar, no qual reabasteceria mais uma vez para sair voando da área.
Cinco minutos depois o Radford estava preparado para a decolagem do helicóptero, tendo alterado levemente o curso para colocar o vento na direção apropriada sobre o convés. O sistema tático de navegação do Seahawk copiava os dados necessários do centro de comunicações do destróier. Ele vasculharia um círculo de água de 24 quilômetros de raio num procedimento que seria tedioso, demorado e frenético. Havia gente na água, e socorrer náufragos era a primeira e mais antiga lei do mar. Assim que o helicóptero decolou, o destróier manobrou novamente para a esquerda e partiu com todos os quatro motores principais na potência máxima, levando a embarcação até uma velocidade de 34
nós. Mas desta vez o comandante tinha comunicado sua situação a Nápoles, requerendo assistência adicional de qualquer tipo de navio de qualquer frota — havia embarcações americanas na vizinhança, mas uma fragata italiana estava rumando para sul em sua direção, e até a Força Aérea líbia pediu informações.
O G-IV perdido aterrissou no instante que o helicóptero da Marinha americana alcançou a área de resgate. A tripulação desembarcou e procurou o que beber enquanto seu jato comercial era reabastecido. Enquanto observavam, um Cub AN-10, um pequeno transporte russo de quatro turbinas, levantou voo para participar da missão de busca e resgate. A Líbia estava cooperando agora com coisas assim, tentando reingressar na comunidade mundial, e até mesmo seus comandantes não sabiam muito — na verdade, não sabiam nada — sobre o que estava acontecendo. Uns poucos telefonemas tinham bastado para providenciar os arranjos, e todos que tinham recebido as ordens sabiam apenas que duas aeronaves aterrissariam para reabastecer e seguir viagem. Uma hora depois, decolaram novamente para o voo de três horas para Damasco, na Síria.
Originalmente tinham pensado que voariam de volta para sua base na Suíça, mas o piloto alertara que duas aeronaves do mesmo proprietário voando sobre o mesmo ponto quase ao mesmo tempo pareceria suspeito. Ele mudou de rumo durante a decolagem.
Lá embaixo, à sua esquerda, no golfo de Sidra, viram as luzes de aeronaves; uma delas era um helicóptero, ficaram surpresos em notar. As pessoas estavam desperdiçando tempo e combustível a troco de nada. Esse pensamento divertiu o piloto enquanto alcançava sua altitude de cruzeiro e relaxava, deixando o piloto automático fazer o trabalho durante o restante de um longo dia de voo.
— Já chegamos?
Moudi virou a cabeça. Acabara de trocar a garrafa de soro de sua paciente.
Dentro de seu capacete plástico, sentia o rosto cocar por causa da barba por fazer. Viu que a irmã Maria Magdalena estava tão incomodada quanto ele. Sua primeira ação ao caminhar foi mover as mãos na direção do rosto da freira.
Seus dedos bateram no plástico transparente.
— Não, irmã. Mas chegaremos logo. Por favor, descanse. Posso cuidar disso.
— Não, não, você deve estar muito cansado, Dr. Moudi. Ela começou a se levantar.
— Sou mais jovem e estou mais descansado — replicou o médico com a mão erguida. Em seguida, substituiu a garrafa de morfina por uma nova. Felizmente a irmã Jean Baptiste estava drogada demais para representar um problema.
— Que horas são?
— Hora de a senhora descansar. A senhora ficará cuidando da sua amiga quando chegarmos, mas haverá outros médicos lá que poderão me substituir.
Por favor, conserve suas energias. A senhora precisará delas.
O que era a mais pura verdade.
A freira não precisou responder. Acostumada a seguir ordens de médicos, provavelmente murmurou uma prece e permitiu que seus olhos se fechassem.
Quando estava certo de que a freira havia adormecido, Moudi caminhou até a cabine de comando.
— Falta muito?
— Quarenta minutos. Pousaremos um pouco mais cedo. Os ventos foram caridosos — respondeu o copiloto.
— Então será antes do amanhecer?
— Sim.
— Qual é o problema dela? — perguntou o piloto sem se virar. Estava tão entediado que qualquer novidade seria interessante.
— Você não gostaria de saber — assegurou Moudi.
— A mulher vai morrer?
— Sim, e o avião precisará ser desinfetado completamente antes de ser usado de novo.
— Foi o que nos disseram.
O piloto deu de ombros, sem ter noção do quanto ficaria assustado se soubesse o que estava transportando. Moudi tinha. O lençol plástico sob sua paciente agora continha uma poça de sangue infectado. Teriam de ser extremamente cuidadosos ao desembarcá-la.
Badrayn estava grato por ter evitado beber álcool. Ele era o mais cônscio na sala. Dez horas, pensou, olhando o relógio. Há dez horas conversavam e discutiam como um bando de velhas na feira.
— Ele concordará conosco a respeito disso? — perguntou o comandante da guarda.
— Não é um pedido irracional — replicou Ali. Cinco mulás voariam para Bagdá, oferecendo-se como reféns em troca da boa vontade ou, pelo menos, da palavra de seu líder. Com isso acertado, os generais entreolharam-se e, um a um, assentiram.
— Aceitamos — disse o mesmo general, falando pelo grupo.
O fato de que centenas de oficiais menores seriam deixados para dançar ao som da próxima música, fosse ela qual fosse, revelara-se, afinal de contas, irrelevante. A longa discussão não tinha tocado muito nesse assunto.
— Preciso de um telefone — disse-lhes Badrayn em seguida. O chefe de informação levou-o até uma sala lateral. Sempre havia uma linha direta para Teerã. Mesmo durante as hostilidades tinha havido um elo de comunicações — aquele através da torre de micro-ondas. O seguinte era um cabo de fibra ótica cujas transmissões não podiam ser interceptadas. Sob os olhos vigilantes dos oficiais iraquianos, ele apertou os números que decorara muitos anos antes.
— Aqui é Yousif Tenho novidades — disse à voz que atendeu.
— Aguarde por favor, foi a resposta.
Assim como qualquer outra pessoa, Daryaei não gostava de ser acordado cedo, ainda mais considerando o pouco que dormira nos últimos dias. Quando o telefone em sua mesa de cabeceira tocou, ele piscou durante alguns minutos antes de finalmente atender.
— Alô.
— Aqui é Yousif. Está acertado. Estão requerendo cinco amigos!
Louvado seja Alá, porque Ele é misericordioso, pensou Daryaei. Todos os anos de guerra e paz foram justificados naquele momento. Não, isso era prematuro. Havia ainda muito a ser feito. Mas o mais difícil tinha sido terminado.
— Quando começaremos?
— O mais rápido possível.
— Obrigado. Não esquecerei o que fez.
Agora o aiatolá estava completamente acordado. Nesta manhã, a primeira em muitos anos, ele esqueceu suas preces matutinas. Deus entenderia que a obra Dele precisava ser realizada rapidamente.
O quanto ela deve estar cansada, pensou Moudi. As duas freiras começaram a acordar quando o avião tocou o solo. Houve o estremecimento usual quando o avião desacelerou, e um som aquoso anunciou o fato de que Jean Baptiste realmente sangrara, conforme Moudi previra. Mas pelo menos ele a entregaria viva. Seus olhos estavam abertos, apesar de confusos como os de uma criança enquanto fitava o teto curvo da aeronave. Maria Magdalena dedicou um momento para olhar pelas janelas, mas tudo que viu foi um aeroporto, e eles parecem iguais em todas as partes do mundo, particularmente à noite. No devido tempo, o avião parou e a porta foi aberta.
Eles viajariam novamente de caminhão. Quatro pessoas aproximaram-se da porta do avião, todos usando roupas protetoras. Moudi afrouxou as correias que prendiam sua paciente, fazendo um sinal para que a outra freira continuasse onde estava. Cuidadosamente, os quatro médicos do Exército levantaram o lençol plástico pelas bordas e caminharam até a porta. Ao fazerem isso, Moudi viu alguma coisa pingar no assento dobrável que servira de cama à paciente.
Fez que não viu. A tripulação recebera ordens, repetidas à exaustão. Quando a paciente estava a salvo no caminhão, Moudi e Maria Magdalena desceram a escada. Ambos removeram seus capacetes, permitindo-se respirar ar fresco e frio. Ele aceitou um cantil de um dos soldados armados posicionados em volta do avião e o ofereceu à freira, enquanto pegava outro para si. Ambos beberam um litro inteiro de água antes de entrarem no caminhão. Ambos estavam desorientados pelo voo longo, ela ainda mais por não saber onde estava. Moudi viu o 707 que chegara um pouco antes com os macacos, embora não soubesse que fora ele que trouxera a carga.
— Em todos esses anos, sobrevoei Paris algumas vezes... mas nunca a conheci — disse a freira, olhando em volta antes do flap traseiro ser baixado, obstruindo sua visão.
É uma pena, mas nunca conhecerá.
16
A Transferência Iraquiana
— Tem um monte de coisa nenhuma aqui — observou o piloto. O Seahawk estava circulando a uma altura de mil pés, vasculhando a superfície com um radar de busca sensível o bastante para detectar destroços — fora planejado para localizar periscópios de submarino —, mas até agora achara apenas uma garrafa flutuante de Perrier. Ambos também usavam óculos de visão noturna, e deveriam ter percebido qualquer vazamento de óleo pelo seu brilho, mas isso também não aconteceu.
— Deve ter batido com muita força para não sobrar nada — replicou o copiloto pelo intercomunicador.
— A não ser que estejamos procurando no lugar errado.
O piloto olhou para seu sistema tático de navegação. Estavam no lugar certo. Tinham pouco mais de uma hora de combustível. Era hora de começar a pensar sobre pousar no Radford, que também estava passando um pente fino na área. Em meio à escuridão que precedia a alvorada, os holofotes pareciam teatrais, compondo uma cena que lembrava filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Um Cub líbio também estava circulando, tentando ser útil, mas apenas enchendo o saco.
— Alguma coisa? — perguntou o controlador de voo no Radford.
— Negativo. Nada, pelo menos nada que possamos ver. E só temos mais uma hora de combustível.
— Certo, só mais uma hora de combustível — disse o Radford.
— Senhor, o último curso do alvo foi três-quatro-três, velocidade de dois-nove-zero nós, ritmo de descida de três mil pés por minuto. Se ele não está aqui, não faço a menor ideia de onde esteja, senhor — disse um chefe de operações, dando um tapinha no mapa.
O comandante tomou um gole de seu café e deu de ombros. No convés, a equipe de incêndio-e-resgate estava de prontidão. Dois marinheiros trajavam roupas de mergulho e tinham uma lancha preparada para navegar. Havia um par de olhos a postos em cada binóculo do navio, procurando luzes estroboscópicas ou qualquer outra coisa, e o sonar estava ajustado para o pingue de alta frequência do localizador de emergência da aeronave. Esses instrumentos, desenhados para sobreviver a um impacto severo, eram ativados automaticamente quando expostos à água do mar, e tinham carga de bateria suficiente para vários dias. O sonar do Radford era sensível o bastante para detectar o maldito avião a cinquenta quilômetros de distância, e o navio estava precisamente em cima da zona de impacto prevista pela equipe de radar. A embarcação e seus tripulantes jamais tinham feito um resgate desse tipo, mas eram treinados regularmente para situações como essa, e cada procedimento foi executado com o máximo de perfeição que o comandante poderia exigir.
— USS Radford, USS Radford, aqui é Estação Valetta, câmbio. O comandante levantou o microfone.
— Valetta, aqui é o Radford.
— Já localizaram alguma coisa, câmbio?
— Negativo, Valetta. Vasculhamos a área inteira, e não temos nada a reportar ainda. Eles já tinham requerido a Malta dados corrigidos sobre a velocidade e a direção da aeronave, mas ela saíra do alcance do radar civil antes mesmo da cobertura mais precisa do destróier. Nas duas extremidades da ligação de rádio, homens suspiraram. Todos sabiam como esse jogo iria terminar. A busca prosseguiria por mais um dia — não mais, não menos — e nada seria achado. Um telex já fora passado para o fabricante, informando-o que um de seus aviões estava perdido no mar. Os representantes da Gulfstream viriam para Berna analisar registros de manutenção e outros relatórios sobre a aeronave, na esperança de encontrar uma pista. Provavelmente não achariam nenhuma, e este caso iria para a coluna causa ignorada no livro-razão de alguém. Mas o jogo precisava ser jogado e, na pior das hipóteses, a situação valia como um bom treinamento para a tripulação do USS Radford. A tripulação não se deixaria abater pelo resultado. Afinal, por mais que desejassem realizar um resgate bem-sucedido, eles não conheciam as vítimas.
Provavelmente foi o cheiro que lhe disse que alguma coisa estava errada. O percurso desde o aeroporto foi curto. Ainda estava escuro lá fora e, quando o caminhão parou, médico e enfermeira estavam atordoados devido ao tempo excessivo em movimento. Quando chegaram, sua primeira tarefa foi levar a irmã Jean Baptiste para dentro. Apenas então os dois removeram a roupa plástica pela última vez. Maria Magdalena penteou com os dedos o cabelo curto e respirou fundo, finalmente se dando ao luxo de olhar em volta. Ficou surpresa com o que viu. Moudi percebeu que estava aturdida, e levou-a para dentro antes que ela pudesse fazer qualquer comentário.
Foi quando o cheiro os atingiu. Um cheiro familiar, africano, causado pela entrada dos macacos algumas horas antes, não era o tipo de coisa que alguém pudesse associar a Paris ou a um lugar limpo e organizado como o Instituto Pasteur deveria ser. Em seguida Maria Magdalena olhou em volta e percebeu que as placas nas paredes não estavam em francês. Ela não tinha como entender o que estava acontecendo; tinha apenas como sentir-se mais confusa. Então, bem no momento em que começaria a formular perguntas, um soldado apareceu, segurou seu braço e levou-a dali, aturdida demais para dizer qualquer coisa. Com uma expressão tristonha no rosto conferindo mais substância ao seu estado de confusão, a freira simplesmente olhou sobre o ombro para um homem com barba por fazer.
— Que é isso? Quem é essa mulher? — inquiriu o diretor do projeto.
— Sua religião dita que elas não podem viajar sozinhas. Para proteger sua castidade — explicou Moudi. — Se ela não tivesse vindo, eu não estaria aqui com nossa paciente.
— Ainda está viva? — Ele não estivera presente na chegada. Moudi assentiu.
— Sim, devemos conseguir mantê-la viva por mais três dias, talvez quatro — avaliou.
— E a outra? Moudi se esquivou: — Não cabe a mim decidir.
— Sempre podemos usar outra...
— Não! Isso seria um ato de selvageria — protestou Moudi. — Deus abomina essas coisas.
— E o que planejamos fazer também não é abominável? — perguntou o diretor. Moudi evidentemente estivera fora de sua cultura por muito tempo. Mas não valia a pena brigar. Um paciente completamente infectado com Ebola era tudo que eles precisavam. — Vá se lavar. Precisamos subir para vê-la.
Moudi seguiu até as acomodações dos médicos no segundo andar. Como as pessoas dessa parte eram muito mais reservadas em relação aos seus corpos, as instalações dali conferiam mais privacidade do que no Ocidente. A roupa plástica, Moudi viu com alguma surpresa, sobrevivera à viagem sem um único rasgo. Descartou-a num grande receptáculo plástico antes de seguir para o chuveiro e banhar-se com água quente suplementada por produtos químicos — com os quais estava tão acostumado que nem percebia mais seu odor. Ali desfrutou de cinco minutos de conforto sanitário. Durante o voo, Moudi se perguntara se um dia se banharia de novo. Emergiu para vestir roupas limpas — incluindo um avental cirúrgico. Em frente ao seu quarto, vestido quase da mesma forma, o diretor o aguardava; juntos caminharam até o setor das salas de tratamento.
Ali havia apenas quatro salas de tratamento, por detrás de portas lacradas e bem guardadas. As instalações eram dirigidas pelo Exército iraquiano. Os doutores eram médicos militares, e todos os serventes eram homens com experiência no campo de batalha. A segurança era intensa, como seria de esperar. Moudi e o diretor foram autorizados a prosseguir, e o guarda no posto tocou os botões para abrir as portas a prova de ar. Elas abriram com um chiado de mecanismos hidráulicos para revelar um segundo par, e os dois médicos puderam ver que a fumaça do cigarro de um soldado estava sendo sugada para a área de segurança. Isso era um bom sinal. O sistema de ar estava funcionando apropriadamente. Os dois homens nutriam um preconceito estranho contra seus próprios conterrâneos. Eles teriam preferido que o complexo inteiro tivesse sido construído por engenheiros estrangeiros. No Oriente Médio, costumava-se contratar engenheiros alemães, mas o Iraque já se arrependera disso. Os alemães, muito organizados, guardavam os planos de tudo que construíam, e como resultado, muitos de seus projetos tinham sido bombardeados até virarem pó. Dessa forma, embora a maior parte dos componentes do prédio tivessem sido comprados no exterior, ele fora construído por engenheiros da terra. Suas próprias vidas dependiam do funcionamento preciso de cada subsistema do complexo. O diretor ativou as portas internas, e eles prosseguiram.
A irmã Jean Baptiste estava no último quarto à direita. Três serventes estavam com ela. Eles já tinham cortado as roupas da paciente, revelando sua morte em progresso. Os soldados sentiram nojo do que viram; o estado da mulher era mais terrível que qualquer ferimento em combate. Lavaram rapidamente seu corpo, com o devido respeito pela intimidade feminina, conforme sua cultura insistia. O diretor olhou para a garrafa de morfina e imediatamente reduziu em um terço o ritmo da queda da gota.
— Queremos mantê-la viva o maior tempo possível — explicou.
— A dor que ela está sentindo...
— ...não pode ser muito atenuada — completou friamente. Ele pensou em reprimir Moudi, mas se conteve. Também era médico, e sabia o quanto era difícil tratar uma paciente com severidade. Viu que era um fêmea caucasiana idosa, entorpecida por morfina, respiração lenta demais para seu gosto. Os enfermeiros puseram-lhe sensores para o eletrocardiograma, e ele ficou surpreso em ver como o coração da mulher estava funcionando bem. Isso era bom. Pressão sanguínea baixa, conforme o esperado, e ele pediu que duas unidades de sangue integral fossem penduradas no mastro do tubo intravenoso.
Quanto mais sangue melhor.
Os enfermeiros tinham sido bem instruídos. Tudo que viera com a paciente já fora empacotado, e então empacotado duplamente. Um deles tinha carregado o pacote para fora da sala e levado até o incinerador que não deixava nada a não ser cinzas esterilizadas. A principal preocupação deles era o cuidado com o vírus. A paciente era seu tubo de ensaio. Nos casos anteriores, tinham-se extraído alguns mililitros de sangue para análise, e depois das mortes dos pacientes, os corpos haviam sido queimados ou enterrados em solo quimicamente tratado. Mas não desta vez. No devido tempo, ele teria em seu poder a maior quantidade já vista do vírus do Ebola, uma quantidade que poderia ser expandida. Virou-se.
— Moudi, como ela contraiu?
— Estava tratando do Paciente Index.
— O menino negro? — perguntou o diretor.
— Sim.
— O que ela fez errado?
— Não descobrimos. Perguntei-lhe quando ela ainda estava lúcida. Ela não chegou nem mesmo a aplicar uma injeção no garoto, e a irmã sempre foi cuidadosa com as agulhas. Ela é uma enfermeira experiente — reportou Moudi.
Ele também estava cansado demais para contar tudo com detalhes e isso, pensou o diretor, era compreensível. — Ela trabalhou com o Ebola antes, em Kikwit e outros lugares. Ela ensinava procedimentos à equipe.
— Transmissão aérea? — perguntou o diretor. Isso era querer demais.
— O CDC acredita que este é o subtipo Ebola Mayinga. Você deve lembrar que esta cepa recebeu seu nome em homenagem à enfermeira que contraiu a doença por meios desconhecidos.
Essa declaração fez o diretor fitar duramente os olhos de Moudi.
— Tem certeza absoluta do que disse?
— Não tenho certeza de nada no momento, mas entrevistei pessoas no hospital, e constatei que todas as injeções que o Paciente Index recebeu foram aplicadas por outras pessoas, não pela irmã. Portanto, sim, este pode ser um caso de transmissão aérea.
Era um exemplo clássico de boa e má notícia. Sabia-se muito pouco sobre o Ebola Zaire. Acreditava-se que a doença podia ser transmitida pelo sangue e por outros fluidos corporais, e mesmo por contato sexual — isso era quase inteiramente teórico, considerando que as vítimas do Ebola dificilmente poderiam dedicar-se a esse tipo de atividade. Acreditava-se também que o vírus era incapaz de sobreviver fora de um hospedeiro vivo, morrendo rapidamente no ar. Por esses motivos, não se acreditava que a doença pudesse ser transmitida pelo ar na forma de pneumonia ou outras mazelas comuns. Mas ao mesmo tempo cada epidemia gerava casos que não poderiam ser explicados. A infeliz enfermeira Mayinga dera seu nome a uma cepa da doença que reclamara sua vida através de um meio ignorado. Teria ela mentido sobre alguma coisa, ou esquecido algum detalhe a respeito da forma como fora contaminada? Ou teria sido infectada por um subtipo do Ebola capaz de sobreviver no ar tempo suficiente para ser transmitido através de um simples espirro? A segunda alternativa significaria que a paciente à frente deles era a portadora de uma arma biológica de poder suficiente para abalar o mundo.
Essa possibilidade significava também que estavam literalmente jogando dados com a Morte. O menor engano seria fatal. Sem pensar conscientemente, o diretor levantou os olhos para a saída do ar-condicionado. O prédio fora desenhado com essa contingência em mente. O ar que entrava era completamente limpo, sugado para dentro através de um respiradouro localizado na extremidade de um encanamento de centenas de metros de comprimento. O ar saindo pelas áreas quentes passava através de uma única câmara pressurizada antes de deixar o prédio. Ali era submetido a lâmpadas ultravioleta fortíssimas, porque sua frequência de radiação destruía vírus com total confiabilidade. Os filtros de ar eram embebidos com compostos químicos — entre eles, fenol — que tinham o mesmo objetivo. Apenas então era expelido para o exterior, onde outros fatores ambientais também poderiam ajudar a negar à doença uma chance de sobreviver. Os filtros — três bancos distintos — eram trocados com precisão religiosa a cada doze horas. As lâmpadas ultravioleta, cinco vezes o número requerido para a função, eram monitoradas constantemente. A pressão do ar no Laboratório Quente era mantida intencionalmente baixa para impedir vazamentos, o que ajudava também a manter a integridade estrutural do prédio. Quanto ao restante, pensou o diretor, bem, era para isso que eles tinham sido treinados com tanto cuidado para operar com roupas de segurança.
O diretor também era médico, treinado em Paris e Londres, mas fazia anos desde que tratara seu último paciente humano. Dedicara a maior parte da última década à biologia molecular, mais particularmente ao estudo de vírus. Sabia tanto quanto qualquer outra pessoa sobre vírus, o que era muito pouco. Sabia, por exemplo, como fazê-los proliferar, e diante dele havia agora um meio perfeito, um ser humano convertido pela fatalidade numa fábrica para o organismo mais mortal conhecido pelo homem. O diretor nunca a vira saudável, jamais falara com ela, nem a vira trabalhar. Isso era bom. Provavelmente tinha sido uma enfermeira eficiente, como disse Moudi, mas isso pertencia ao passado; não havia muito motivo em se envolver emocionalmente com alguém que estaria morto dali a três dias, quatro no máximo. Entretanto, quanto mais tempo a mulher sobrevivesse, melhor. Assim, a fábrica teria mais tempo para fazer seu trabalho: usar este corpo humano como matéria-prima para seu produto, transformando a maior criação de Alá em Sua maldição mais letal.
Quanto à outra questão, ele já dera a ordem enquanto Moudi estivera se banhando. A irmã Maria Magdalena foi levada para outras acomodações, recebeu roupas novas e foi deixada sozinha. Ali banhou-se em privacidade, tentando adivinhar o que estava acontecendo... onde estava? Ainda estava confusa demais para sentir realmente medo, e desorientada demais para entender. Como Moudi, desfrutou de um banho longo, e o procedimento limpou um pouco sua mente enquanto tentava formar as perguntas certas. Procuraria o doutor dali a poucos minutos para perguntar o que estava acontecendo. Sim, era isso que faria, pensou Maria Magdalena enquanto se vestia. As roupas médicas concederam-lhe conforto pela familiaridade, e ainda tinha seu rosário, que levara consigo para o banho. Era de metal, e não o rosário comum que ganhara com seu hábito religioso ao fazer os votos finais, havia mais de quarenta anos.
Mas o rosário de metal era mais fácil de ser desinfetado, e ela dedicou algum tempo para limpá-lo no chuveiro. Lá fora, vestida, decidiu que a prece era a melhor preparação para sua cruzada por informações. Assim, ajoelhou-se, benzeu-se e começou a orar. Não ouviu a porta abrir às suas costas.
O soldado da força de segurança tinha suas ordens. Poderia tê-las cumprido alguns minutos antes, mas invadir a privacidade de uma mulher era um ato hediondo, e ela não tinha para onde ir. Agradou-lhe ver que ela estava rezando, de costas para ele, inteiramente confortável. Isso era adequado. Um criminoso condenado invariavelmente tinha a chance de falar com Alá; negar essa chance era um pecado grave. Melhor assim, pensou, levantando sua automática de nove milímetros. Num momento ela estava falando com seu Deus... e no outro fazia isso diretamente. O soldado reposicionou o cão da arma, guardou-a no coldre e chamou dois serventes para limpar a sujeira. Ele já matara antes e participara de pelotões de fuzilamento na execução de inimigos do Estado; esse era seu dever, ocasionalmente desagradável, mas, não obstante, seu dever. Esse pensamento o fez balançar a cabeça. Desta vez, tinha certeza, mandara uma alma para Alá. Que coisa estranha sentir-se bem depois de uma execução.
Tony Bretano chegara num jatinho da TRW. Ryan descobrira, para seu prazer, que a informação de George Winston era incorreta: Bretano ainda não aceitara a oferta da diretoria da Lockheed-Martin. Isso demonstrava que mesmo ele não podia ter certeza sobre esse tipo de informação interna.
— Eu já disse não antes, presidente.
— Duas vezes — assentiu Ryan. — Para o diretor da Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas e secretário de Tecnologia suplente. O seu nome também foi aventado para diretor do Conselho Nacional de Pesquisas, mas eles nunca chegaram a consultá-lo.
— Foi o que ouvi — reconheceu Bretano. Era um homem baixo, evidentemente complexado com sua altura, a julgar por sua impetuosidade.
Falava com o sotaque de alguém que crescera na Little Italy de Manhattan, apesar de muitos anos na Costa Oeste, e isso também disse alguma coisa a Ryan. Ele gostava de proclamar quem e o que era, isso a despeito de um par de graduações do MIT, onde poderia ter adotado facilmente um sotaque de Cambridge.
— E recusou os cargos porque do outro lado do rio é uma grande zona, certo?
— Muito rabo e pouca mordida. Se eu conduzisse meus negócios daquele jeito, os acionistas me linchariam. A burocracia da Defesa...
— Vamos consertar isso — sugeriu Ryan.
— É impossível.
— Não me venha com essa, Bretano. Tudo que o homem pode fazer, ele pode desfazer. Se acha que não tem tutano para o trabalho, tudo bem, me diga isso e volte para a Costa.
— Espere um pouco... Ryan cortou-o novamente.
— Não, espere você um pouco. Ouviu o que eu disse na TV. Não vou repetir. Preciso limpar algumas coisas e quero as pessoas certas para o serviço.
Se não quiser fazer isso, tudo bem, vou procurar quem faça...
— Tutano? — Bretano quase levantou da cadeira. — Tutano? Vou lhe dizer uma coisa, senhor presidente, meu pai vendia frutas numa barraca de rua! O mundo não me deu nada de mão beijada! — Ele parou de repente quando Ryan riu, e pensou um momento antes de prosseguir. — Nada mal — disse mais calmo, no tom do presidente de empresa que era.
— George Winston disse que você é brigão. Não tem um secretário de Defesa decente há dez anos. Quando estou errado, preciso de pessoas que me digam isso. Mas não acho que eu esteja errado a seu respeito.
— O que você quer fazer?
— Quando pego o telefone, quero que as coisas aconteçam. Se eu tiver de mandar rapazes para a boca do leão, quero saber se estão equipados e treinados decentemente. Quero que as pessoas sintam medo do que podemos fazer. Isso facilita muito a vida no Departamento de Estado — explicou o presidente. — Quando era criança no leste de Baltimore e via um tira caminhando pela Monument Street, sabia duas coisas. Sabia que não era boa ideia me meter com ele, mas também sabia que poderia confiar nele caso precisasse.
— Em outras palavras, quer um produto que possamos entregar sempre que houver demanda.
— Correto.
— Isso daria muito trabalho — disse Bretano, cauteloso.
— Quero que trabalhe com uma boa equipe, à sua escolha, para montar uma estrutura que corresponda às nossas necessidades. Depois quero que reconstrua o Pentágono para manter essa estrutura.
— De quanto tempo disponho?
— Vou lhe dar duas semanas para a primeira parte.
— Não é suficiente.
— Não me diga isso. Estudamos tanto antes de fazer cada coisa, que estou surpreso que ainda haja árvores neste país para fazer papel! Droga, eu conheço as ameaças lá fora, lembra? Esse costumava ser o meu ofício. Um mês atrás estávamos em guerra, tendo de fazer mágicas porque não tínhamos recursos para usar. Demos sorte. Não quero mais depender da sorte. Quero extirpar a burocracia, para quando precisarmos fazer alguma coisa, podermos fazê-la. Na verdade, quero que as coisas sejam feitas antes de precisarmos delas. Se fizermos nosso trabalho direito, ninguém será louco de nos desafiar A pergunta é: está disposto a assumir essa responsabilidade, Dr. Bretano?
— Vão querer a nossa pele.
— Tudo bem, minha esposa é médica.
— Metade do trabalho é obter informações confiáveis — comentou Bretano.
— Sei disso. Já começamos na CIA. George deve fazer um bom trabalho no Tesouro. Estou checando uma lista de juízes para encabeçarem a Justiça. Disse tudo isso na TV. Estou montando uma equipe. Quero você nela. Também subi na vida sozinho. Acha que gente como nós chegaria tão alto em algum outro lugar? É hora de pagar nossas dívidas, Bretano. — Ryan recostou-se na poltrona, orgulhoso de suas palavras.
O executivo concordava com cada uma delas.
— Quando começo? Ryan olhou o relógio.
— Que tal amanhã de manhã?
A equipe de manutenção apareceu logo depois do amanhecer. A aeronave estava cercada por uma guarda militar para manter os curiosos afastados, embora esse aeroporto já fosse mais seguro do que a maioria devido à presença da Força Aérea iraniana. A prancheta do capataz da equipe disse-lhe que trabalho ele tinha a fazer, e a longa lista de procedimentos deixou-o curioso, mas pouco mais que isso. Aeronaves desse tipo sempre recebiam tratamento especial, porque as pessoas que voavam nelas consideravam-se eleitas por Deus, ou por alguma autoridade ainda maior. Nada disso importava. Ele tinha seus procedimentos, e os conselhos por cautela extra dificilmente eram necessários. Seu pessoal era sempre cuidadoso. O formulário de manutenção da aeronave dizia-lhe que era hora de substituir dois instrumentos da cabine de comando, e dois estepes já estavam preparados, ainda nas caixas do fabricante; eles teriam de ser calibrados depois da instalação. Dois outros membros de sua equipe reabasteceriam a aeronave e trocariam o óleo do motor. O restante trabalharia na cabine de passageiros sob a supervisão do capataz. Mal tinham começado quando um comandante apareceu com novas ordens, previsivelmente aquelas que contradiziam o primeiro conjunto. Os assentos tinham de ser repostos rapidamente. O G-IV teria de estar preparado para decolar em poucas horas. O oficial não disse para onde o avião iria, e o capataz não se deu ao trabalho de perguntar. Mandou seu mecânico de instrumentos apressar-se em sua tarefa. Isso era fácil no G-IV, devido à sua disposição modular. Um caminhão apareceu com as poltronas que tinham sido retiradas dois dias antes, e a equipe de limpeza ajudou a reposicionar os assentos antes de começar propriamente a trabalhar. O capataz tentou imaginar por que as poltronas tinham sido removidas, mas não lhe cabia perguntar; e, de qualquer modo, a resposta não teria feito muito sentido. Uma pena que tudo estivesse sendo feito às pressas. Teria sido bem mais fácil proceder à limpeza com tanto espaço aberto. Em vez disso, a configuração de 14 assentos foi rapidamente restabelecida, transformando a aeronave novamente num avião comercial de pequeno porte, ainda que muito confortável. As poltronas restituídas tinham sido lavadas a seco como de praxe. Os cinzeiros foram esvaziados e lavados.
Um servente apareceu com comida para a despensa, e logo a aeronave estava abarrotada com trabalhadores, cada um atrapalhando o outro, e, na confusão resultante, o trabalho não foi feito a contento, mas não por culpa do capataz.
Tiveram de trabalhar com pressa crescente. A nova tripulação apareceu com seus mapas e planos de voo. Depararam com um mecânico deitado meio na poltrona do piloto, meio no assoalho da cabine de comando, finalizando seu trabalho nos instrumentos digitais da turbina. Jamais com paciência para mecânicos, o piloto meramente ficou parado e olhou o homem fazer seu trabalho — da sua parte, o mecânico não dava trela para o que os pilotos pensavam. Prendeu o último conector e se contorceu todo para ficar de pé.
Então rodou um programa de teste para certificar-se de que o aparelho estava funcionando adequadamente, não sem antes dirigir um olhar para os aviadores, que o amaldiçoariam se ele não instalasse os instrumentos adequadamente. Ele ainda não tinha saído da área quando o copiloto assumiu seu lugar e rodou novamente o mesmo programa de teste. Ao deixar o avião, o mecânico viu o motivo para toda aquela pressa.
Cinco deles, parados ali na rampa, parecendo impacientes e importantes enquanto olhavam para o jato executivo pintado de branco, todos excitados com alguma coisa. O mecânico e todos os demais componentes da equipe os conheciam pelos nomes. Tinham aparecido muito na TV. Todos fizeram reverências para os mulas e aceleraram seus esforços; como resultado, nem tudo foi feito. A equipe de limpeza foi ordenada a sair da aeronave, tendo se limitado a esfregar as superfícies mais expostas da cabine de comando. A equipe de voo começou os preparativos para a decolagem, e os guardas e os caminhões mal tinham começado a se afastar quando o G-IV começou a taxiar até o fim da pista.
Em Damasco, o segundo membro da pequena frota executiva pisou o solo apenas para descobrir que tinha ordens para retornar imediatamente a Teerã. A tripulação praguejou, mas obedeceu às instruções, limitando seu tempo em terra a escassos quarenta minutos antes de decolar novamente em seu trajeto curto até o Irã.
Havia muito trabalho a fazer em PALM BOWL. Alguma coisa estava acontecendo. Era possível perceber isso vendo o que não estava acontecendo. O tráfego nos canais codificados usados pelos generais iraquianos chegara a um fluxo de pico, caíra para zero, alcançara outro pico e caíra de novo para zero.
Naquele momento estava em zero. Na KKMC, na Arábia Saudita, os computadores estavam buscando soluções para os códigos usados nos rádios táticos do Iraque. Isso demandava tempo. A tecnologia de codificação, que já fora domínio apenas dos países afluentes, havia, com o advento dos microcomputadores, se tornado prontamente disponível para o cidadão mais humilde dos EUA e outros países tecnicamente avançados, e uma decorrência inesperada desse fato era a atual disponibilidade de aparatos de segurança de comunicação sofisticadíssimos às nações humildes. Agora a Malásia possuía códigos tão difíceis de ser decifrados quanto os dos russos — e também do Iraque, cortesia de americanos que não queriam que o FBI lesse seus adultérios fictícios pela Internet. Os sistemas de codificação em rádios táticos eram necessariamente simples, e ainda decifráveis, mas mesmo eles requeriam um computador Cray que fora importado pelos sauditas alguns anos antes. Outro fator era que PALM BOWL ficava no Kuwait, e era inteiramente financiada pelo governo local; em troca dessa cortesia, outra era requerida. Eles tinham de vera arrecadação da estação da Agência de Segurança Nacional. Isso era justo, mas a agência e os oficiais militares e do serviço de informações não tinham sido treinados para considerar o que era justo. Mesmo assim, tinham suas ordens.
— Estão falando sobre suas famílias? — disse para si mesmo, em voz alta, um sargento da USAF Isso era novidade. PALM BOWL já deparara com informações íntimas nessa rede antes, e aprendera muito sobre os hábitos pessoais dos principais generais iraquianos, juntamente com algumas piadas cruéis que alternadamente podiam e não podiam ser bem traduzidas para o inglês, mas conversas sobre suas famílias era novidade.
— Alguma coisa está acontecendo aqui — observou o primeiro-sargento ao lado dele. — Tenente!
A oficial de observação júnior estava trabalhando em outra coisa. O radar no Aeroporto Internacional do Kuwait era poderoso, tendo sido instalado durante a guerra, e era operado em dois modos, um para os controladores de aeronaves e outro para a Força Aérea kuwaitiana. Podia-se ver um longo caminho. Pela segunda vez em muitos dias, havia um jato comercial seguindo para Bagdá a partir do Irã. A trajetória do voo era idêntica à da viagem anterior, e o código do transceptor era o mesmo. A distância entre as duas capitais era de apenas 643 quilômetros, distância suficiente para justificar que um jato comercial subisse até a altitude de cruzeiro para fazer uso eficaz de seu combustível — e, a propósito, tocar a borda de sua cobertura de radar. Havia também alguns E-3B AWACS circulando, mas eles se reportavam diretamente à KKMC, e não a PALM BOWL. Para os espiões uniformizados nas estações de terra, era uma questão de orgulho profissional derrotar o pessoal aéreo em seu próprio jogo, ainda mais porque a maioria deles eram oficiais da USAF A tenente fez uma anotação mental dessa informação, e caminhou até a sala onde estavam os sargentos.
— Que é, chefe? — perguntou ela.
Um sargento deslizou verticalmente em sua tela de computador o conteúdo traduzido de diversas conversas decodificadas, cutucando com o dedo o vidro para atentar para os tópicos mais importantes.
— Temos uma turma debandando, senhora.
Um momento depois, um major kuwaitiano apareceu ao lado dela. Ismael Sabah tinha laços distantes de parentesco com a família real. Fora educado em Dartmouth, e gostava dos americanos. Durante a guerra permanecera para trás e trabalhara com um grupo de resistência — um dos mais espertos. Recolhera informações sobre o movimento e a disposição das unidades militares iraquianas, e as transmitira para fora, principalmente empregando telefones celulares capazes de alcançar uma rede civil saudita logo depois da fronteira, e que os iraquianos eram incapazes de rastrear. Ao longo do caminho, perdera três parentes próximos para o terror iraquiano. A experiência ensinara-lhe toda espécie de lições, sendo a menor delas um ódio profundo pela nação ao norte.
Homem calmo e compenetrado, com cerca de trinta anos, parecia ficar mais inteligente a cada dia. Sabah inclinou-se para ler as traduções na tela.
— Como é mesmo que vocês dizem? Os ratos estão abandonando o navio ?
— Também acha, senhor? — perguntou, antes da tenente, o primeiro-sargento.
— Para o Irã? — perguntou a oficial americana. — Sei que tudo indica isso, mas não parece fazer sentido, certo?
O major Sabah deu de ombros.
— Mandar sua Força Aérea para o Irã também não parecia fazer sentido, mas os iranianos ficaram com os caças e deixaram que os pilotos voltassem para casa. Você precisa aprender mais sobre a cultura local, tenente.
Já aprendi que nada aqui faz muito sentido, ela não pôde dizer.
— Que mais descobrimos? — perguntou Sabah ao sargento.
— Falam, ficam calados, falam mais um pouco e ficam calados. Está havendo tráfego agora, mas a KKMC ainda está tentando decodificar.
— A vigilância por radar reportou um voo de Mehrabad para Bagdá, codificado como jato comercial.
— É mesmo? O mesmo de antes? — perguntou Sabah à tenente americana.
— Sim, major.
— Que mais? Alguma coisa?
O primeiro-sargento deu a resposta.
— Major, os computadores estão provavelmente trabalhando nisso agora.
Talvez tenhamos mais alguma coisa em trinta minutos.
Sabah acendeu um cigarro. PALM BOWL era tecnicamente uma instalação de propriedade do Kuwait, e portanto era permitido fumar ali, para alívio de uns e indignação de outros. O posto relativamente baixo de Sabah não o impedia de ser um membro influente do serviço de informações de seu país. Seus modos eram calmos e controlados, como os de um homem de negócios, o que contrastava com sua experiência de guerra, sobre a qual dera palestras na Inglaterra e nos EUA.
— Opiniões? — pediu, já tendo formado a sua.
— O senhor mesmo disse. Eles estão dando no pé — replicou o primeiro-sargento. O major Sabah completou o pensamento.
— Numa questão de horas ou dias, o Iraque não terá um governo, e o Irã está ajudando sua transição para a anarquia.
— Isso não é bom — comentou o primeiro-sargento com um suspiro.
— A palavra catástrofe me vem à mente — observou Sabah. Balançou a cabeça e sorriu de uma forma triste, ganhando ainda mais a admiração dos espiões americanos.
O ar estava calmo quando o Gulfstream pousou depois de um voo de 65
minutos de Teerã, cronometrado pelo relógio de Badrayn. Pontual como um relógio suíço, percebeu. Bem, isso era o esperado. Assim que parou, a porta foi aberta e os cinco passageiros desembarcaram, sendo recebidos com uma cortesia elaboradamente falsa, que retribuíram da mesma forma. Um pequeno comboio de Mercedes levou-os dali rapidamente para as acomodações regias que os aguardavam no centro da cidade, onde poderiam, obviamente, ser assassinados caso as coisas corressem mal. Os carros mal haviam sumido de vista quando dois generais, suas esposas, suas crianças e um guarda-costas emergiram do terminal VIP e caminharam até o avião. Embarcaram rapidamente no G-IV. O copiloto levantou a porta de volta ao seu lugar e as turbinas foram acionadas, tudo em menos de dez minutos, segundo o Seiko de Badrayn. Com a mesma rapidez, o avião taxiou para fazer o voo de retorno para o aeroporto internacional de Mehrabad. Era uma coisa óbvia demais para não ser notada pela equipe da torre. Esse era o problema com a segurança. Não é possível manter algumas coisas em segredo, pelo menos não uma coisa como esta. Teria sido melhor usar um voo comercial, e tratar os generais em fuga como passageiros normais numa viagem normal, mas não havia voos regulares entre os dois países, e, em todo caso, os generais não aceitariam ser tratados como plebeus. E assim a equipe da torre ficaria sabendo que um voo especial chegara e partira sob condições incomuns, bem como os funcionários de terminal, que tinham ajudado os generais e seus cortejos com as bagagens.
Como fora apenas um voo, o fato não despertaria tanta atenção, mas o próximo, sim.
Talvez isso não tivesse nenhuma relevância no Grande Esquema das Coisas. Não havia como deter os eventos que ele ajudara a colocar em movimento, mas isso ofendia Ali Badrayn num sentido profissional. Preferia manter em segredo tudo que fazia. Deu com os ombros enquanto caminhava de volta para o terminal VIP. Não, isso não importava. Embora tivesse, através de suas ações, conquistado a gratidão de um homem muito poderoso no comando de uma nação muito poderosa, não fizera nada mais do que conversar, dizer a um grupo de pessoas o que elas já sabiam e ajudá-las a tomar uma decisão que não poderiam ter evitado, quaisquer que fossem seus esforços em contrário.
Como a vida é curiosa!
— O mesmo avião. Puxa, ele não ficou no solo durante muito tempo. — Mediante um pouco de esforço, o tráfego de rádio para aquela aeronave em particular estava isolado e tocando nos fones de ouvido de um especialista em linguagem de nível do exército. Embora a linguagem da aviação internacional fosse o inglês, essa aeronave estava falando em farsi, provavelmente mediante uma medida de segurança, mas isso apenas destacava essa aeronave, rastreada por radar e localizadores de ondas de rádio. O tráfego de vozes estava inteiramente normal, com exceção disso. Outra coisa estranha era o fato de que a aeronave não permanecera em terra nem por tempo suficiente para reabastecer. Isso significava que a coisa inteira fora planejada com antecedência, o que dificilmente era surpreendente sob as circunstâncias, mas ainda assim esclarecedor. Lá em cima, sobre a extremidade nordeste do Golfo Pérsico, um AWACS estava também rastreando a aeronave. A curiosidade, despertada por PALM BOWL, fora grande o suficiente para mover o E-3B de sua estação normal de patrulha, agora escoltado por quatro caças Eagle F-15
sauditas. As tropas de coleta de dados iranianas e iraquianas notariam isso e saberiam que alguém estava interessado no que acontecia — e se perguntariam por que afinal eles não sabiam de nada. O jogo sempre era fascinante, sem nenhum dos lados jamais saber tudo que queria, e considerando que o outro lado — no momento havia de fato três lados no jogo — sabia mais, quando, na verdade, nenhum dos três sabia muito a respeito de nada.
A bordo do G-IV A linguagem era arábica. Os dois generais travavam um diálogo tenso no fundo, sua conversa abafada por sons de turbina. Suas esposas permaneciam simplesmente sentadas em seus lugares, ainda mais nervosas, enquanto as muitas crianças liam livros ou cochilavam. Era mais difícil para os guarda-costas, que sabiam que se alguma coisa saísse errado no Irã eles não poderiam fazer nada além de esperar a morte. Um deles estava sentado no meio da cabine e descobriu que seu assento estava molhado. Com o quê não soube dizer, mas era uma coisa grudenta e... vermelha? Suco de tomate ou algo assim.
Irritado, foi ao banheiro e lavou as mãos, pegando uma toalha para limpar o assento. Colocou a toalha de volta no banheiro antes de voltar a se sentar.
Acomodado em sua poltrona, olhou para as montanhas lá embaixo e se perguntou se viveria para ver outro pôr do sol. Mal sabia que tinha acabado de limitar sua existência.
— Lá vamos nós — disse o primeiro-sargento. — Aquele era o vice-comandante da Força Aérea. E o general-comandante da Segunda Tropa do Exército, mais suas famílias — acrescentou. A decodificação requererá pouco mais de duas horas desde o momento que o sinal fora captado.
— Dispensáveis? — perguntou a tenente da USAF. Ela estava aprendendo, pensaram os outros espiões.
— Relativamente — concordou o major Sabah com um aceno de cabeça. — Precisamos ficar de olho para outra decolagem de Mehrabad assim que este avião pousar.
— Onde, senhor?
— Ah, tenente, a pergunta é essa, não é?
— Sudão — teorizou o primeiro-sargento. Ele estava no país havia dois anos, e era sua segunda estada em PALM BOWL.
— Eu não apostaria contra você, sargento — observou Sabah com uma piscadela.
— Devemos confirmar isso através do ciclo dos voos vindos de Bagdá.
E ele realmente não poderia avaliar o exercício inteiro até então, embora já tivesse informado a seus superiores de que alguma coisa incomum estava em andamento. Logo seria hora para os americanos fazerem o mesmo.
Vinte minutos depois, um relatório preliminar estava a caminho da KKMC
para Forte Meade, em Maryland, onde as diferenças de fuso horário fizeram-no chegar ao centro de vigilância logo depois da meia-noite. Da Agência de Segurança Nacional, o relatório foi transmitido por fibra ótica até Langley, Virgínia, e dali para as instalações de vigilância de comunicações da CIA. Em seguida, o relatório subiu para o Centro de Operações da CIA, sala 7-F no velho prédio do quartel-general. A cada parada, a informação era analisada por especialistas locais, de modo que cada oficial de vigilância pudesse procedera suas próprias avaliações, duplicando um trabalho que já fora feito. Em situações de emergência, esse excesso de zelo não fazia sentido. O problema era definir imediatamente quando uma situação era de emergência.
O oficial do Serviço Nacional de Informações encarregado da vigília na CIA era Ben Goodley, que vinha ascendendo rapidamente do Diretório de Informações, e recentemente fora premiado com o seu cartão de oficial do Serviço Nacional de Informações, juntamente com o pior horário de trabalho, devido à sua pouca idade. Como sempre, demonstrou seu bom senso recorrendo ao seu especialista de área e entregando-lhe a matricial o mais rápido que pôde.
— Vai cair — disse o especialista da área ao final da página três, o que não era inesperado, mas também não era agradável.
— Dúvidas?
— Meu amigo, eles não estão indo para Teerã fazer compras — disse o especialista da área, que tinha vinte anos a mais que seu chefe.
— SNIE? — perguntou Goodley. Essa era a sigla para Special National Inteligence Estimate, um importante documento especial para situações incomuns.
— Acho que sim. O governo iraquiano vai cair.
— Três dias?
— Se tanto. Goodley se levantou.
— Muito bem, vamos redigir.
17
O Renascimento
Ninguém espera que coisas importantes aconteçam em momentos convenientes. Fosse o nascimento de um bebê ou uma emergência nacional, todos esses eventos parecem encontrar as pessoas apropriadas adormecidas ou indispostas de alguma forma. Neste caso, não havia nada a ser feito. Ben Goodley determinou que a CIA não tinha recursos para confirmar a veracidade dos sinais recebidos, e por mais interessado que seu país estivesse na região, não havia nenhuma ação que pudesse ser tomada. As agências de notícias não tinham se apercebido ainda deste desenvolvimento, e como frequentemente era o caso, a CIA se faria de boba até que a mídia descobrisse alguma coisa.
Fazendo isso, a CIA conferiria maior substância à crença do público de que as organizações de notícias eram tão eficientes quanto o governo no que dizia respeito a descobrir coisas. Esse nem sempre era o caso, mas era mais frequente do que Goodley gostaria.
Esta SNIE seria curta. Sua substância e urgência não requeriam um texto complexo. Goodley e seu especialista de área levaram meia hora para rascunhá-la. Uma impressora de computador gerou a cópia matriz para uso interno, e um modem transmitiu-a através de linhas seguras para as agências governamentais interessadas. Feito isso, os homens retornaram para o Centro de Operações.
Golovko estava se esforçando para dormir. A Aeroflot acabara de comprar dez novos jatos Boing 777 para uso em serviço internacional para Nova York, Chicago e Washington. Eram muito mais confortáveis e confiáveis do que os jatos soviéticos nos quais voara durante tantos anos, mas estava menos do que encantado com a ideia de viajar até tão longe com duas turbinas, feitas na América ou não, em vez das quatro usuais. Os assentos, pelo menos, eram confortáveis aqui na primeira classe, e a vodca que bebera imediatamente antes da decolagem fora de um excelente selo russo. A combinação concedeu-lhe cinco horas e meia de sono até a desorientação usual da viagem acordá-lo sobre a Groenlândia, enquanto o guarda-costas ao seu lado conseguiu permanecer na terra de sonhos que sua profissão permitia. Em algum lugar mais atrás, as aeromoças provavelmente estavam dormindo o melhor que podiam em suas poltronas reclináveis. Antigamente, pensou Sergey Nikolayevich, não teria sido assim. Estaria voando numa aeronave especial totalmente equipada com aparelhos de comunicação, e se algo acontecesse em alguma parte do mundo, ele seria informado assim que o pessoal da torre em Moscou decifrasse as informações. O mais frustrante era que alguma coisa estava acontecendo. Algo tinha de estar acontecendo. Era sempre assim, pensou em meio à escuridão ruidosa. Você viaja para uma reunião importante porque espera que alguma coisa aconteça, e então ela acontece enquanto você está em movimento, se não completamente fora de alcance, ao menos sem chance de conferenciar com seus principal aliados. Iraque e China. Felizmente havia uma ampla distância geográfica entre os dois pontos quentes. Então Golovko lembrou que havia uma separação ainda maior entre Washington e Moscou, uma que durava cerca de um voo noturno numa aeronave de turbinas gêmeas. Com essa lembrança agradável, virou-se levemente e disse a si mesmo que precisava dormir o máximo que conseguisse.
O mais difícil não foi tirá-los do Iraque. O mais difícil seria transportá-los do Irã para o Sudão. Estava longe o tempo em que os voos do Irã tinham permissão para sobrevoar o Reino da Arábia Saudita, e as únicas exceções eram os voos de peregrinação para Meca durante o hajj anual. O jato comercial precisaria contornar a península Arábica, e então subir pelo mar Vermelho antes de dobrar a oeste para Cartum, triplicando o tempo em relação à distância do processo. Além disso, o próximo voo curto não poderia começar até que o primeiro voo longo tivesse chegado à África, e os VIPs alojados em suas acomodações preparadas apressadamente, mas tendo considerado satisfatórias, e dado um telefonema com a inevitável senha confirmando que tudo estava correndo bem. Teria sido muito mais fácil enfiar todos num único avião para um só ciclo Bagdá-Teerã-Cartum, mas isso era impossível. Também não era possível realizar a rota aérea curta diretamente de Bagdá para Cartum através do expediente simples de sobrevoar a Jordânia. Mas isso significava passar perto de Israel, perspectiva que não agradaria os generais iraquianos. E também havia a questão do segredo, para tornar as coisas ainda mais inconvenientes.
Um homem mais indigno que Daryaei teria perdido a paciência. Em vez disso estava de pé sozinho à janela de uma sala fechada do terminal principal, observando um G-IV parar ao lado de outro. As portas das aeronaves foram abertas, suas escadas desdobradas e carregadores transportaram de um avião para outro os poucos pertences que os passageiros carregavam — indubitavelmente joias e outros objetos de alto valor e grande portabilidade, pensou o santo com um sorriso. Levou apenas alguns minutos, e então o avião que estivera aguardando começou a se mover.
Era uma tolice, de fato, ter vindo até aqui apenas para ver algo tão comum e tedioso, mas aquilo representava duas décadas de esforço; e, homem de Deus como era, Mahmoud Haji Daryaei ainda era humano o bastante para querer ver os frutos de seu trabalho, liste era o resultado de uma vida de labuta, e ainda assim sua missão não chegara nem à metade. E seu tempo estava se esgotando...
O que acontecia a todos os homens, lembrou Daryaei a si mesmo. Um segundo, um minuto, uma hora, um dia por vez: o mesmo para todos. Contudo, o tempo parece correr mais rápido quando se tem mais de setenta anos. Olhou para as mãos. As linhas e cicatrizes de uma vida de trabalho estavam nelas, algumas naturais, outras não. Dois de seus dedos tinham sido quebrados enquanto fora hóspede da Savak, o serviço de segurança do xá, treinado pelos israelenses. Lembrava bem da dor que sentira. Lembrava melhor ainda de sua vingança contra seus dois inquisidores. Daryaei não dissera uma única palavra.
Apenas olhara para eles, imóvel como uma estátua, enquanto eram levados para o pelotão de fuzilamento. Aquilo não lhe dera muita satisfação. Eles tinham sido funcionários, fazendo um serviço sob as ordens de outras pessoas, sem realmente se importarem com quem ele era ou por que deviam odiá-lo. Outro mula sentara-se com cada um deles para conduzir suas orações, porque negar a qualquer pessoa a chance de se reconciliar com Alá era crime — e que mal fazia isso? Eles morreriam com a mesma rapidez, tendo orado ou não. Um pequeno passo na jornada de uma vida, embora, no cômputo final, a deles tivesse sido mais curta que a do aiatolá.
Todos os anos gastos com um único objetivo em mente. Khomeini exilara-se na França, mas Daryaei não. Ele permanecera nos bastidores, coordenando e dirigindo para seu líder. Capturado aquela única vez, tinham-no deixado ir porque mantivera-se calado, assim como todos seus assessores. Esse fora o erro do xá, um entre muitos. O homem acabara sucumbindo à indecisão. Por demais liberal em sua política para satisfazer a Igreja islâmica, por demais reacionário para agradar seus patrocinadores ocidentais, tentando inutilmente encontrar um meio-termo numa parte do mundo onde um homem tinha apenas duas escolhas.
Ou melhor, apenas uma — corrigiu-se Daryaei enquanto o jato Gulfstream decolava. O Iraque experimentara o outro caminho, para longe da Palavra de Deus, e que lucro isso lhe trouxera? Hussein começara a guerra contra o Irã, considerando esse país fraco e desorientado. Nada conseguira. Depois atacara o sul e conseguira ainda menos, tudo em nome de sua busca por poder temporário.
Daryaei era diferente. Ele, como Khomeini, jamais perdia de vista seu objetivo. E embora Khomeini estivesse morto, sua missão vivia. O objetivo do aiatolá falecido estava às costas de Daryaei enquanto ele olhava para o norte, longe demais para ver, mas ainda assim lá, nas cidades santas de Meca, Medina... e Jerusalém. Já estivera nas duas primeiras, mas não na terceira.
Quando criança, jovem e pio, quisera ver a Pedra de Abraão, mas alguma coisa, não lembrava o quê, impedira seu pai, um mercador, de levá-lo. Talvez em tempo. Contudo, vira a cidade em que nasceu o Profeta, e fizera mais de uma vez, é claro, sua peregrinação a Meca, o hajj, a despeito das diferenças políticas e religiosas entre o Irã e a Arábia Saudita. Ele queria fazer essa viagem de novo, para orar diante da Caaba. Mas havia mais coisas do que isso.
Chefe de Estado titular, Daryaei queria mais. Não tanto para si mesmo.
Não, sua vida humilde tinha uma grande missão. O Islã alastrara-se para o extremo oriente da Ásia, sem contar os pequenos bolsões de fé no Ocidente, mas a religião não tinha um único líder e um único propósito havia mais de cem anos. Isso causava dor a Daryaei.
Havia apenas um Deus e uma Palavra, e Alá ficava triste em saber que sua Palavra era tão tragicamente mal compreendida. Só havia uma razão possível para o fracasso de todos os homens em alcançar a Fé Verdadeira, e se ele pudesse corrigir isso, então mudaria O mundo e conduziria toda a Humanidade a Deus. Mas para fazer isso...
O mundo era o mundo, um instrumento imperfeito com regras imperfeitas ou homens imperfeitos, mas Alá fizera-o assim. Pior, havia gente que se oporia a tudo que ele fizesse, Fiéis e Infiéis, e isso era mais um motivo para sentir tristeza em vez de raiva. Daryaei não odiava os sauditas e os outros no ponto mais distante do Golfo Pérsico. Eles não eram maus. Eram Fiéis, e apesar de suas diferenças com ele e com o Irã, eles jamais negaram-lhe acesso a Meca.
Mas o caminho deles não era o Caminho, e isso não podia ser evitado. Tinham se tornado gordos, ricos, corruptos, e isso precisava ser mudado. Daryaei precisava controlar Meca para reformar o Islã. Fazer isso significava adquirir poder mundano. Significava fazer inimigos. Mas isso não era novidade, e ele acabara de vencer sua primeira grande batalha.
Se ao menos não tivesse demorado tanto! Daryaei frequentemente falava sobre paciência, mas sua obra ocupara uma vida, e ele estava com 72 anos, e não queria morrer como seu mentor, com o trabalho incompleto. Quando chegasse sua hora de encontrar Alá, queria falar sobre vitórias, contar como realizara plenamente a mais nobre das tarefas que qualquer homem poderia empreender: a reunificação da Fé Verdadeira. E Daryaei estava disposto a pagar qualquer preço por esse objetivo. Ele mesmo não sabia o quanto estava disposto a sacrificar, porque nem todas as perguntas tinham sido formuladas ainda. E como seu objetivo era puro e brilhante, e seu tempo remanescente tão curto, ele jamais se perguntara quão profundamente cruzaria a escuridão para alcançá-lo.
Muito bem. Deu as costas para a janela e caminhou com seu chofer até o carro. O processo começara.
As pessoas no ramo da informação não são pagas para acreditar em coincidências, e essas em particular dispunham de mapas e instrumentos para prever os acontecimentos. O alcance sem reabastecimento do G-IV era bem conhecido, e a distância a ser coberta era facilmente computada. Durante seu percurso circular, a aeronave AWACS identificara uma trajetória na direção do sul a partir de Teerã. Os transceptores disseram-lhe o tipo de aeronave, juntamente com velocidade, direção e altitude, a última sendo de 45 mil pés para o uso mais eficaz do combustível. As durações foram checadas entre um voo e outro. O curso foi ainda mais esclarecedor.
— Sudão — confirmou o major Sabah.
A aeronave poderia estar indo para outro lugar. Ele quase pensou que Brunei era uma opção possível, mas não. Brunei ficava longe demais da Suíça, e era na Suíça que o dinheiro estava — tinha de ser.
Com esse julgamento, um sinal de satélite foi mandado para os EUA, novamente para a CIA, e esse ocasionou o despertar prematuro de um oficial meramente para dizer sim a uma pergunta curta. A resposta foi encaminhada de volta a PALM BOWL por cortesia aos kuwaitianos. Então era apenas uma questão de tempo e paciência.
A CIA tinha uma pequena presença em Cartum, realmente apenas um chefe de estação, mais um punhado de agentes de campo e uma secretária que compartilhava com a seção de sinais dirigida pela Agência de Segurança Nacional. Contudo, o chefe de estação era um bom profissional, e recrutara alguns cidadãos locais para atuarem como agentes. Facilitava o fato de que o governo sudanês, a maior parte do tempo, tinha pouco a esconder, sendo pobre demais para ser muito interessante. Em outros tempos, o governo usara sua localização geográfica como uma ferramenta para colocar Ocidente contra Oriente, arrecadando dinheiro, armas e favores em barganhas. Mas a URSS caíra e com ela o jogo do Grande Poder que sustentara o Terceiro Mundo por duas gerações. Agora os sudaneses precisavam depender de seus próprios recursos, que eram tênues, e das poucas migalhas que lhes eram jogadas por qualquer país que nutrisse um interesse transitório no pouco que tinham. Os líderes do país eram islâmicos, e proclamando isso o mais alto que podiam mentir — não eram mais devotos que seus colegas do Ocidente —, conseguiam obter auxílio da Líbia, Irã e outros países. Em troca, faziam o que podiam para dificultar a vida dos animistas pagãos no sul do país. Com essa atitude, corriam risco de um levante islâmico em sua própria capital, liderado por pessoas que conheciam o verdadeiro nível de devoção dos líderes do país, e queriam substituí-los por religiosos de verdade. Em suma, os líderes políticos dessa nação empobrecida achavam que era mais fácil ser religioso e rico do que religioso e pobre.
O que isso significava para a embaixada americana era um fator elevado de imprevisibilidade. Ocasionalmente, Cartum era segura, quando os arruaceiros fundamentalistas estavam sob controle. Outras vezes não era, quando eles não estavam. No momento, a situação parecia ser a primeira, e tudo com que os funcionários do serviço diplomático americano tinham de se preocupar eram as condições ambientais, ruins o bastante para colocar este posto diplomático entre os dez piores, mesmo sem uma ameaça terrorista. Para o chefe de estação a situação significara uma promoção prematura, embora sua esposa e seus dois filhos ainda estivessem em casa, na Virgínia; ele, como a maioria dos residentes americanos, não se sentia seguro o bastante para mandar trazer a família. Quase tão ruim quanto a situação política vinha sendo a proliferação da AIDS, que começava a se tornar suficientemente ameaçadora para negar uma vida noturna a muitos americanos, para não mencionar a problemática da obtenção de sangue seguro em caso de acidentes. A embaixada tinha um médico do exército para lidar com esses casos. O chefe de estação se preocupava muito com isso.
O chefe de estação balançou a cabeça, afastando esses pensamentos. Ao assumir esta v função, saltara um nível inteiro de faixa salarial. Vinha desempenhando seu papel com 0 competência, graças principalmente a um agente bem posicionado no Ministério das Relações Exteriores do Sudão, que mantinha os EUA informados de tudo que o governo fazia. O fato de que o país não fizesse muita coisa não importava para os burocratas em Langley. Melhor saber tudo sobre nada do que nada sobre tudo. ! Resolveu cuidar deste serviço pessoalmente. Depois de checar tempo e distância com seus mapas, almoçou cedo e dirigiu até o aeroporto, a apenas alguns quilômetros da cidade. A segurança estava normal para os padrões africanos, e ele achou um local à sombra. Era mais fácil vigiar o terminal privado que o público, especialmente com uma câmera com teleobjetiva de 500 mm. Houve até mesmo tempo para conferir se o diafragma estava certo. Um zumbido em seu telefone celular, transmitido pelo pessoal da Agência de Segurança Nacional, comunicou que o avião estava no fim de sua trajetória, fato logo confirmado pela chegada de alguns carros de aparência oficial. Ele já tinha decorado duas fotografias que recebera por fax de Langley. Dois generais iraquianos, hein? — pensou. Bem, com a morte do patrão, isso não era tão surpreendente. O problema no ramo da ditadura era que não havia planos de aposentadoria para quem chegava ao topo.
O jato comercial branco pousou, o atrito da borracha com o asfalto levantando as habituais nuvens de fumaça. Enquadrou o avião e bateu algumas fotos de alta velocidade em preto e branco para se certificar de que o filme estava rodando na câmera. A única preocupação agora era se o pássaro pararia de uma forma que lhe permitisse registrar a saída dos passageiros — os babacas sempre estragavam tudo olhando para o lado errado. Nisso ele tinha pouca escolha. O Gulfstream parou. A porta abriu, e o chefe de estação começou a bater fotos. Havia ali um oficial de nível médio para proceder à saudação semioficial. Sempre podia se dizer quais eram as figuras importantes vendo quem recebia os beijos e abraços — e observando a forma como olhavam o ambiente ao seu redor. Clique. Clique. Reconheceu um rosto com segurança absoluta, e o outro valia um bom palpite. A transferência demorou apenas um ou dois minutos. Os carros oficiais se afastaram, e o chefe de estação não deu muita importância para onde estavam indo no momento. Seu agente no Ministério das Relações Exteriores cuidaria disso. Gastou as oito fotos restantes no avião, já sendo reabastecido, e decidiu esperar para ver o que ele faria. Trinta minutos mais tarde, a aeronave decolou de novo e ele retornou à embaixada. Enquanto um de seus assessores cuidava da revelação do filme, o chefe de estação telefonou para Langley.
— Confirmação — disse Goodley, já próximo do final de sua vigília. — Dois generais iraquianos saltaram em Cartum há cinquenta minutos. É uma fuga.
— Então a SNIE estava correta. Bem — observou o especialista de área, levantando uma sobrancelha. — Espero que eles prestem atenção no selo de horário nela.
O agente do serviço de informações sorriu.
— Sim, bem, a próxima tem de dizer o que isso significa. — Essa tarefa ficaria para os analistas diurnos, que estavam começando a chegar ao trabalho.
— A coisa está preta. — Mas não era preciso ser um espião para descobrir isso.
— As fotos estão chegando — anunciou um oficial de comunicações.
O primeiro telefonema tinha sido para Teerã. Daryaei dissera ao seu embaixador para deixar as coisas bem claras. O Irã assumiria a responsabilidade por todos os gastos. Seriam providenciadas as melhores acomodações, com cada nível de conforto que o país poderia providenciar. No todo, a operação não custaria muito dinheiro, mas os selvagens daquele país ficavam impressionados com pequenas quantias, e dez milhões de dólares — uma mixaria — já tinham sido transferidos eletronicamente para garantir que tudo correria bem. Um telefonema do embaixador iraniano confirmou que o primeiro desembarque transcorrera dentro dos conformes e que o jato já estava em seu caminho de volta.
Bom. Agora talvez os iraquianos começassem a confiar nele. O aiatolá ficaria pessoalmente satisfeito em eliminar esses suínos, o que não seria difícil de providenciar sob as circunstâncias, mas, além de ter dado sua palavra, o propósito desta operação não era sua satisfação pessoal. Enquanto desligava o telefone, seu ministro da Força Aérea estava requisitando uma aeronave adicional para realizar a transferência. Era melhor que isso fosse feito com rapidez.
E era o que Badrayn estava dizendo àqueles homens. As notícias acabariam se espalhando, provavelmente em um dia, decerto em não mais de dois. Eles estavam deixando para trás pessoas importantes demais para sobreviver ao levante, e insignificantes demais para merecer a solicitude que os iranianos estavam demonstrando aos generais. Esses oficiais, coronéis e brigadeiros, não ficariam eufóricos com a perspectiva de serem oferecidos ao povo como bodes expiatórios. Este fato estava ficando claro, mas, em vez de aumentar a disposição daqueles homens em partir, emergiu como um temor não específico que agigantou todos os seus outros medos. Estavam parados no tombadilho de um navio em chamas às margens de um litoral inimigo, e não sabiam nadar tão bem, afinal de contas. Mas o navio ainda estava em chamas. Era isso que eles precisavam entender.
Ryan já estava começando a achar aquilo rotineiro. Já se sentia à vontade com a batida discreta na porta de seu quarto, de certo modo mais estridente que o toque do rádio-despertador que anunciara o começo de seu dia por vinte anos.
Abriu os olhos, levantou, vestiu o robe, caminhou os seis metros da cama até a porta e pegou o jornal, juntamente com algumas folhas de sua agenda diária.
Em seguida, seguiu até o banheiro e depois até a sala de estar adjacente ao quarto presidencial, enquanto sua esposa, alguns minutos atrasada em relação a ele, iniciou sua rotina matinal.
Jack sentia falta da normalidade de simplesmente ler o jornal. Embora não fosse — geralmente — tão bom quanto os documentos do serviço nacional de informações que o aguardavam na mesa, o Washington Post também cobria coisas que não eram de interesse estritamente governamental, e que também satisfaziam sua sede de informações. Mas sua prioridade hoje era um SNIE, um documento oficial urgente dentro de uma pasta de cartolina. Ryan esfregou os olhos antes de lê-lo.
Merda. Bem, podia ser pior, disse o presidente para si mesmo. Pelo menos desta vez não o tinham acordado para avisá-lo de algo que ele não podia mudar.
Checou seu cronograma. Certo, Scott Adler viria discutir aquele caso, juntamente com o tal Vasco. Bom. Vasco parecia entender do riscado. Quem mais hoje? Correu os olhos até o fundo da página. Sergey Golovko? Era hoje?
Uma boa notícia, para variar. Abaixo havia o lembrete da breve entrevista coletiva para anunciar a escolha de Tony Bretano como secretário de Defesa, com uma lista de possíveis perguntas para se preocupar, e instruções de Arnie para ignorar o máximo possível às perguntas sobre Kealty. Deixe Kealty e suas alegações morrerem de apatia — ora, falar era fácil! Jack tossiu enquanto servia-se de café. Dera ordens diretas para que o deixassem servir-se sozinho; esperava que os taifeiros da Marinha não considerassem isso um insulto pessoal, mas estava acostumado a fazer algumas coisas sozinho. Agora os taifeiros colocavam o café na sala e deixavam que os Ryan se servissem, enquanto outros mantinham-se de guarda no corredor.
— Bom dia, Jack.
O rosto de Cathy apareceu à sua frente. Ele beijou-a nos lábios e sorriu.
— Bom dia, querida.
— O mundo ainda está lá fora? — perguntou, pegando seu próprio café.
Isso revelou ao presidente que a primeira-dama não operaria hoje. Ela jamais tocava em café em dia de cirurgia, dizendo que não podia correr o risco da cafeína causar-lhe um tremor levíssimo nas mãos enquanto estivesse cavoucando o olho de alguém. A imagem sempre o fazia estremecer, embora ela agora trabalhasse especialmente com lasers.
— Parece que o governo iraquiano está ruindo. Um grunhido feminino.
— Isso não aconteceu na semana passada?
— Aquele foi o primeiro ato. Este é o terceiro ato. — Ou talvez o quarto. Ele se perguntou como seria o quinto ato.
— Importante? —Jack também ouviu a torrada descer.
— Talvez. Como Vai ser o seu dia?
— Clínica e revisões, reunião de orçamento com Bernie.
— Hum.
Jack começou a olhar para o Early Bird, uma coleção de recortes de notícias editada pelo governo a partir dos principais jornais. Cathy apareceu novamente em sua visão periférica, enquanto olhava para a agenda dele.
— Golovko...? Eu não o conheci em Moscou?... Foi ele quem disse aquela piada sobre ter uma arma apontada para você!
— Não foi uma piada — disse Ryan à mulher. — Aconteceu mesmo.
— Que é isso?!
— Depois ele me disse que a arma não estava carregada.
Jack se perguntou se aquilo era verdade. Provavelmente, pensou.
— Mas ele estava dizendo a verdade? — perguntou Cathy, incrédula.
O presidente levantou os olhos de sua leitura e sorriu. Que coisa incrível, pensou. Aquilo estava parecendo divertido agora.
— Ele estava muito puto comigo naquela época. Foi quando colaborei com a deserção do diretor da KGB.
Ela levantou seu jornal matutino.
— Jack, nunca sei quando você está brincando.
Jack pensou a respeito. A primeira-dama era, tecnicamente, uma cidadã civil. Isso era ainda mais certo no caso de Cathy, que não era uma esposa política, mas uma médica que nutria pela política tanto interesse quanto por sexo grupai. Ela não poderia ter, tecnicamente, acesso a assuntos confidenciais.
Contudo, era de esperar que o presidente confiasse assuntos sigilosos à esposa, assim como qualquer pessoa normal faria. Além disso, o senso de julgamento de Cathy era tão bom quanto o dele, e por menos instruída que fosse em relações internacionais, todos os dias ela tomava decisões que afetavam diretamente as vidas de pessoas reais da forma mais imediata. O governo perdoaria se ela cometesse algum deslize.
— Cathy, acho que já é hora de lhe contar algumas das coisas em que estive metido nos últimos anos, mas, por enquanto... Sim, Golovko apontou uma pistola para a minha cabeça no aeroporto de Moscou. Isso foi quando ajudei dois russos muito importantes a fugir do país. Um deles era o chefe dele na KGB.
A revelação fez Cathy levantar os olhos na direção de Jack, lembrando dos pesadelos que tinham assombrado seu marido durante meses, anos atrás.
— E onde ele está agora?
— Nas cercanias de Washington. Esqueci exatamente onde.
Jack lembrava vagamente de ter ouvido que a filha, Katryn Gerasimov, estava noiva de algum ricaço matador de raposas de Winchester, tendo mudado de uma forma de nobreza para outra. Bem, a pensão paga pela CIA à família era consideravelmente alta para que pudessem manter um estilo de vida muito confortável.
Cathy estava acostumada com as piadas do marido. Como a maioria dos homens, ele costumava contar casos divertidos nos quais o humor residia no exagero — e, além disso, sua ascendência era irlandesa —, mas ela percebeu que sua revelação saiu tão casual quanto um comentário sobre pontos de beisebol.
Ele não a viu fitar-lhe a nuca. Sim, decidiu Cathy enquanto as crianças entravam na sala, eu gostaria de ouvir as histórias.
— Papai! — disse Katie, vendo Jack primeiro. — Mamãe! — Com isso a rotina da manhã foi interrompida, ou melhor, mudada para uma coisa mais imediatamente importante que as notícias e eventos internacionais. Katie já estava com seu uniforme escolar. Como a maioria das crianças pequenas, ela costumava acordar de bom humor.
— Oi — disse Sally, chegando em seguida, evidentemente aborrecida.
— Qual é o problema? — perguntou Cathy à filha mais velha.
— Aquela gente toda lá fora! Não posso nem passear aqui dentro sem ter alguém no meu calcanhar! — resmungou, pegando um copo de suco na bandeja.
E hoje ela não estava com vontade de comer flocos de milho açucarados. Ela preferiria flocos sem açúcar, mas aquela caixa estava no andar térreo, na imensa cozinha da Casa Branca. — É como viver num hotel, só que com muito menos intimidade.
— Qual é a prova de hoje? — perguntou Cathy, interpretando os sinais.
— Matemática — admitiu Sally.
— Estudou?
— Sim, mãe.
Jack ignorou esse problema, e em vez disso serviu os cereais para Katie, que gostava dos açucarados. O pequeno Jack chegou em seguida, ligando a TV
na Cartoon Network para sua ração matinal de Papaléguas e Coiote, que Katie também aprovava.
Lá fora, o dia estava começando para todo mundo. O agente do serviço nacional de informações designado para Ryan estava terminando seu relatório matutino. Este presidente era difícil demais de agradar. O chefe dos criados chegou mais cedo para supervisionar uma obra de manutenção no Pavimento do Estado. No quarto do presidente, o criado estava arrumando as roupas de POTUS e FLOTUS. Carros aguardavam para levar as crianças para a escola.
Agentes da Polícia Estadual de Maryland já estavam checando a rota para Annapolis. Os fuzileiros estavam aquecendo o helicóptero para a viagem para Baltimore — esse problema ainda não tinha sido resolvido. A máquina inteira já estava em movimento.
Guy Lorenz chegou cedo ao escritório para receber um telefonema da África retribuindo seu telefonema de Atlanta. Onde estão os meus macacos? — exigiu saber. Seu agente de compras explicou, a oito fusos horários de distância, que, como o CDC não enviara o dinheiro a tempo, alguma outra instituição comprara o carregamento, e que agora era preciso caçar novos animais. Uma semana, talvez, disse ele ao doutor americano. Lorenz resmungou. Suas intenções tinham sido começar seus novos estudos nesta semana. Fez uma anotação em seu bloco de mesa, perguntando-se quem diabos teria comprado tantos verdes africanos. Será que Rousseau estava começando alguma coisa nova em Paris? Ele telefonaria para o sujeito mais tarde, depois de sua conferência matinal diária. As boas notícias, ele viu, eram que... oh, isso era muito ruim. O segundo paciente tinha morrido numa queda de avião, dizia o telex da Organização Mundial de Saúde. Mas não haviam sido reportados novos casos, e considerando o tempo que o Número Dois fora infectado, essa microepidemia estava acabada. Tomara, acrescentou Lorenz em seus pensamentos. Essas eram boas notícias. Aparentemente, a cepa do Ebola que ele tinha sob o microscópio era o Zaire Mayinga, que era a pior das subespécies do vírus. Havia ainda a possibilidade do portador estar lá fora, esperando para infectar outra pessoa, mas o portador do Ebola era a presa mais difícil de agarrar desde a malária — ar ruim, em italiano, que era o que as pessoas tinham pensado ser o causador. Talvez, ele pensou, o portador fosse algum roedor que morrera atropelado por um caminhão. Ele deu com os ombros. Era possível.
Com a redução do fluxo de morfina, a Paciente Dois estava semiconsciente em Hasanabad. Estava consciente o bastante para sentir a dor, mas não para entender o que de fato acontecia. A dor acabaria tomando todo seu corpo, o que era terrível para Jean Baptiste, que sabia o que significava cada pontada. A dor abdominal era a pior, aumentando à medida que a doença se alastrava pelos dez metros de seu sistema gastrintestinal, literalmente comendo os tecidos delicados que convertiam alimentos em nutrientes e despejando sangue infectado através de seu reto.
A sensação era de que seu corpo inteiro estava sendo torcido, esmagado e queimado ao mesmo tempo. Ela precisava se mover, fazer alguma coisa para que ao menos a dor viesse de outra direção, aliviando seu tormento, mas quando tentou se mover descobriu cada membro amarrado por correias de velcro. O ultraje daquilo pareceu-lhe ainda pior que a dor, mas ao tentar reclamar, sentiu uma náusea violenta que começou a fazê-la tossir. O astronauta de roupa azul reagiu a isso inclinando a cama — que tipo de cama era essa? —, permitindo-a vomitar num balde, e o que ela viu foi sangue preto e morto. Isso distraiu-a da dor por um segundo, mas tudo que a distração fez foi dizer-lhe que ela não sobreviveria, que a doença chegara longe demais, que seu corpo estava morrendo. A irmã Jean Baptiste começou a orar pela morte, porque isto poderia ter apenas um fim, e a dor era tamanha que o fim precisava vir depressa, ou ela perderia sua fé no processo. A perspectiva saltou em sua consciência como um boneco de uma caixa de surpresa. Mas esse boneco tinha chifre e cascos. Ela precisava de um padre. Ela precisava... onde estava Maria Magdalena? Estava condenada a morrer sozinha? A enfermeira moribunda olhou para as vestes espaciais, esperando encontrar olhos familiares detrás dos escudos de plástico, mas embora os olhos que viu fossem simpáticos, não eram familiares. Assim como a língua que essas pessoas falavam, conforme percebeu quando duas delas se aproximaram.
O médico estava retirando sangue com muito cuidado. Verificou se o braço da paciente estava completamente contido, incapaz de se mover mais de um centímetro, e pediu a um colega que o segurasse com suas mãos fortes, mantendo cuidadosamente essas mãos afastadas da agulha. Assentindo com a cabeça, o primeiro médico selecionou a veia adequada e espetou a agulha. Deu sorte desta vez. A agulha entrou na primeira tentativa. A parte posterior da seringa conectou um tubo de sucção que começou a coletar um sangue mais escuro que o púrpura usual. Quando encheu o tubo, retirou-o e colocou-o cuidadosamente numa caixa plástica, ao lado de outros três tubos idênticos. Em seguida, retirou a agulha e colocou gaze na perfuração, o que não deteve o sangramento. O médico liberou o braço, notando que o pouco que o tinham segurado deixara a pele descolorada. Uma tampa foi colocada sobre a caixa, e o primeiro médico saiu com ela da sala, enquanto o segundo ia para um canto borrifar suas luvas e braços com solução de iodo. Haviam sido instruídos sobre os riscos deste trabalho, mas não o levaram realmente a sério apesar de todas as repetições, filmes e slides. Os dois acreditavam agora em cada maldita palavra, e rezaram que a Morte viesse logo para levar a paciente para o lugar que Alá lhe reservara. Observar seu corpo desintegrar-se já era muito ruim. O pensamento de segui-la nessa jornada macabra era suficiente para aterrorizar o coração mais pétreo. Nunca tinham visto nada assim. A mulher derretia por dentro. Quando o médico terminou de limpar a parte externa de sua roupa, virou-se assustado ao ouvir um grito de dor, que mais parecia o de uma criança torturada pelas mãos do próprio demônio. Olhos arregalados, boca aberta, a paciente deixou um grito agudo e líquido escapar de sua boca, cruzar o ar e penetrar o plástico da roupa do médico.
No Laboratório Aquecido no fim do corredor, as amostras de sangue foram manuseadas rapidamente, sob o máximo de cuidado. Moudi e o diretor do projeto estavam em seus escritórios. Não era estritamente necessário que estivessem no laboratório para fazer este trabalho, e era muito mais fácil analisar os testes sem o incômodo das roupas protetoras.
— Tão rápido... incrível como é tão rápido — disse o diretor, balançando a cabeça, pasmado.
Moudi assentiu.
— Sim, ele invade o sistema imunológico como um maremoto.
A imagem na tela do computador vinha de um microscópio eletrônico, que mostrava o campo repleto de vírus na forma de cajados de pastor. Alguns anticorpos estavam visíveis na tela, mas, considerando o bem que podiam fazer, não eram nada mais que algumas ovelhas em meio a um bando de leões. As células sanguíneas estavam sendo atacadas e destruídas. Se tivessem sido capazes de retirar amostras dos órgãos principais, os médicos teriam descoberto que o baço estava se tornando uma coisa dura como uma bola de borracha, cheio de pequenos cristais que funcionavam como cápsulas de transporte para as partículas do vírus Ebola. Teria sido de fato interessante, e talvez até cientificamente útil, proceder a uma laparoscopia do abdômen, para ver exatamente o que a doença fazia com um paciente humano durante intervalos de tempo, mas isso acarretava a possibilidade de acelerar a morte da paciente, risco que não queriam correr.
As amostras de vômito apresentavam tecidos de seu sistema gastrintestinal, e eles eram interessantes porque não estavam apenas soltos, mas também mortos. Partes maiores do corpo ainda vivo da paciente já tinham morrido, tendo se soltado do restante vivo e ejetadas num esforço de sobrevivência do organismo conjunto. O sangue infectado seria centrifugado e congelado para uso posterior. Cada gota dele era útil, e por causa disso, mais sangue estava sendo inserido nela através dos tubos intravenosos. Um exame rotineiro de enzima cardíaca mostrava que seu coração, ao contrário do órgão do Paciente Index, ainda estava normal e saudável.
— É estranho como a doença varia suas formas de ataque — observou o diretor, lendo as folhas impressas pelo computador.
Moudi simplesmente olhou para outro lado, imaginando que podia ouvir seus gritos de angústia através das múltiplas paredes de concreto do prédio.
Seria um ato de misericórdia suprema entrar na sala e injetar 20cc de potássio, ou simplesmente aumentar o fluxo de morfina para provocar parada respiratória e consequente morte.
— Acha que o menino africano tinha um problema cardiovascular anterior?
— perguntou seu chefe.
— Talvez. Mas isso não foi diagnosticado.
— As funções do fígado estão falhando rapidamente, conforme esperado.
O diretor leu vagarosamente os dados da química sanguínea. Todos os números estavam fora de seus níveis normais, exceto os do indicador cardíaco.
— É um caso clássico, Moudi.
— Com toda certeza.
— Esta cepa do vírus é ainda mais robusta do que imaginei. — Ele olhou para Moudi.
— Você agiu muito bem.
— Ah, sim...
— Anthony Bretano obteve dois doutorados no MIT: matemática e medicina ótica. Possui um currículo impressionante na indústria e na engenharia, e espero que se torne um secretário de Defesa de uma competência sem par. Perguntas?
— Senhor, o vice-presidente Kealty...
— O ex-vice-presidente — interrompeu Ryan. — Ele renunciou. Vamos deixar isso claro.
— Mas ele diz que não renunciou — replicou o jornalista do Chicago Tribune.
— Se ele dissesse que falou com Elvis, você acreditaria? — perguntou Ryan, torcendo para que tivesse dito sua fala no tom certo. Fitou os rostos, atento para suas reações. Mais uma vez, todas as 48 poltronas estavam ocupadas, com mais vinte repórteres de pé. O comentário escarninho de Jack fez todos piscarem e alguns até mesmo se permitiram sorrir. — Vá em frente, faça sua pergunta.
— O Sr. Kealty requereu uma comissão judicial para julgar os fatos da questão. O que o senhor acha disso?
— A questão está sendo investigada pelo FBI, que é a principal agência investigadora do governo. Quaisquer que sejam os fatos, eles precisam ser estabelecidos antes de ir a julgamento. Mas acredito que todos sabemos o que acontecerá. Ed Kealty renunciou, e vocês sabem o motivo. Por respeito ao processo constitucional, instruí o FBI a examinar a questão, mas meu próprio conselho legal é absolutamente claro. O Sr. Kealty pode falar o que quiser Eu tenho um trabalho a fazer. Próxima pergunta? — indagou Jack, confiante.
— Presidente... — Ryan assentiu levemente ao ouvir o Miami Herald dizer isso — ...em seu discurso da outra noite, o senhor disse que não é político, mas está fazendo um trabalho político. O povo americano quer conhecer sua visão sobre uma série de assuntos.
— Isso faz muito sentido. Como quê? — perguntou Jack.
— Aborto, por exemplo — replicou a repórter do Herald, uma mulher muito liberada. — Qual é exatamente a sua posição?
— Não gosto — respondeu Ryan, dizendo a verdade antes de refletir. — Sou católico, como a senhorita deve saber, e nessa questão moral acho que minha Igreja está correta. Entretanto, a decisão do caso Roe contra Wade está em vigor até a Suprema Corte reconsiderar a lei, e o presidente não pode ignorar as decisões das cortes federais. Isso me coloca numa posição um pouco desconfortável, mas como presidente preciso exercer meu cargo de acordo com a lei. Fiz um juramento a respeito disso.
Nada mau, Jack, pensou Ryan.
— Então o senhor não aprova o direito de uma mulher à escolha? — inquiriu o Herald sentindo cheiro de sangue.
— Escolher o quê? — respondeu Ryan, ainda à vontade. — Sabe, certa vez alguém tentou matar minha esposa quando ela estava grávida de nosso filho, e logo depois vi minha filha mais velha à beira da morte numa cama de hospital.
Considero a vida um bem muito precioso. Aprendi essa lição da pior maneira.
Gostaria que as pessoas pensassem nisso antes de decidir fazer um aborto.
— Isso não responde à pergunta, senhor.
— Não posso impedir que as pessoas façam isso. Goste dela ou não, a lei é a lei. O presidente não pode quebrar a lei. — Isso não era óbvio?
— Mas ao escolher os juízes que indicará à Suprema Corte, o senhor usará a questão do aborto como um teste de tornassol? Gostaria de contornar a Roe contra Wade.
Ryan notou as câmeras mudando o foco, e os repórteres se concentrando em suas anotações.
— Não gosto da Roe contra Wade, conforme disse. Acho que foi um erro.
Vou dizer por quê. A Suprema Corte tomou para si o que deveria ter sido uma questão legislativa. A Constituição não aborda esse assunto, e nas questões em que a Constituição é omissa, possuímos legislaturas estaduais e federais para escrever leis. — Esta lição de civismo estava correndo bem. — Agora, quanto às indicações que eu fizer à Suprema Corte, procurarei os melhores juízes que puder encontrar. Falarei com vocês sobre isso em breve. A Constituição é uma espécie de Bíblia para os Estados Unidos da América, e os juízes da Suprema Corte são os... teólogos, acho, que decidem o que ela significa. Não é trabalho deles escrever um novo livro. O trabalho deles é descobrir o que o livro existente significa. Quando uma mudança na Constituição se faz necessária, temos mecanismos para alterá-la, que já usamos mais de vinte vezes.
— Então o senhor selecionará apenas juízes que sigam a Constituição ao pé da letra e que, portanto, derrubarão a Roe.
Era como socar uma parede. Ryan fez uma pausa antes de responder.
— Espero escolher os melhores juízes que puder encontrar. Não irei interrogá-los sobre questões específicas.
De repente, o Boston Globe ficou de pé.
— Presidente, e se a vida da mãe estiver em perigo? A Igreja católica...
— A resposta a isso é óbvia. A vida da mãe é a principal consideração.
— Mas a Igreja diz...
— Não falo pela Igreja católica. Como disse antes, não posso violar a lei.
— Mas quer mudar a lei — assinalou o Globe.
— Sim, acho que seria melhor para todos se a questão fosse devolvida às legislaturas estaduais. Dessa forma, os representantes eleitos pelo povo poderiam escrever leis de acordo com a vontade de seus eleitores.
Foi a vez do San Francisco Examiner se manifestar: — Mas assim teremos uma mixórdia de leis contraditórias no país, e em algumas regiões o aborto será ilegal.
— Apenas se o eleitorado assim quiser. É assim que a democracia funciona.
— Mas e quanto às mulheres pobres?
— Não cabe a mim decidir isso — replicou Ryan, começando a sentir raiva e se perguntando como se livraria dessa confusão.
— Então o senhor apoia a emenda constitucional contra o aborto? — exigiu saber o Atlanta Constitution.
— Não, não acho que seja uma questão constitucional. Acho que provavelmente se trata de uma questão legislativa.
O New York Times resumiu: — Então o senhor é pessoalmente contra o aborto segundo bases morais e religiosas, mas não interferirá nos direitos da mulher; o seu plano é indicar para a Suprema Corte juízes conservadores que provavelmente derrubarão a Roe, mas não apoia uma emenda constitucional que contrarie a liberdade de escolha.
— O jornalista sorriu. — Exatamente em que o senhor acredita nesta questão, senhor?
Ryan balançou a cabeça, comprimiu os lábios e expôs sua primeira versão de uma resposta à impertinência: — Achei que tinha deixado isso bem claro. Podemos seguir para outro assunto?
— Obrigado, Sr. Presidente! — disse um repórter em voz alta, assim aconselhado pelos gestos frenéticos de Arnold van Damm. Ryan desceu do pódio intrigado, dobrou uma esquina, mais uma e ficou fora de vista. O chefe de gabinete segurou o presidente pelo braço e quase o empurrou contra a parede, e desta vez o Serviço Secreto não moveu um músculo.
— Hora de ir, Jack, você acaba de deixar o país inteiro puto!
— Que quer dizer? — replicou o presidente, pensando: hein?
— Estou dizendo que você bombeou gasolina no seu carro enquanto estava fumando um cigarro, diabo! Meu Deus! Não sabe o que acaba de fazer? — Arnie pôde perceber que ele não sabia. — As pessoas pró-escolha agora acham que você irá tirar os direitos delas. As pessoas pró-vida acham que você não liga para a causa delas. Foi perfeito, Jack. Você alienou a porra toda do país em cinco minutos! — esbravejou Van Damm, deixando o presidente do lado de fora da Sala do Gabinete, temendo perder realmente a paciência se falasse mais qualquer coisa.
— Por que todo esse auê? — indagou Ryan.
Os agentes do Serviço Secreto não responderam nada. Política não era seu campo e, além disso, tinham opiniões divergentes, como todo o país.
Foi como tirar doce de criança. E depois do choque inicial, o bebê chorou bem alto.
— BÚFALO SEIS, aqui é BANDEIRA SEIS, câmbio. — O tenente-coronel Herber Masterman, Duke para seus pares, estava de pé sobre Mad Max II, seu tanque de comando M1A2 Abrams, microfone numa mão, binóculos na outra.
Diante dele, espalhados por 15 quilômetros quadrados na Área de Treinamento do Deserto de Neguev, estavam os tanques Merkava e os caminhões de infantaria da Sétima Divisão Blindada do Exército israelense, todos com luzes amarelas piscando e fumaça púrpura se erguendo de suas torretas. A fumaça era uma inovação israelense. Quando atingidos em batalha, os tanques queimavam; assim, quando os aparelhos receptores registravam um impacto de laser, emanavam essa fumaça púrpura. Mas a intenção dos israelenses tinha sido realçar sua vitória no OpFour, não o contrário. Apenas quatro dos tanques de Masterman e seis de seus veículos de radar estavam mortos daquela forma.
— BANDEIRA, BÚFALO — foi o comunicado de resposta do coronel Sean Magruder, comandante do 10° Regimento Blindado Búfalo .
— Acho que o jogo acabou, coronel, câmbio. A cota de impactos foi completada.
— Entendido, Duke. Desça para a avaliação. Receberemos um israelense puto da vida daqui a alguns minutos — felizmente, a conexão por rádio era codificada.
— A caminho, senhor — disse Masterman.
Saltou da torre de seu HMMVW. A tripulação do tanque começou a conduzir o veículo até o local de reunião do esquadrão.
A vida não podia ser muito melhor do que isto. Masterman sentia-se um jogador de futebol que podia entrar todos os dias no campo. Ele comandava o primeiro Esquadrão Bandeira da 10ª Divisão Blindada. A julgar pelo fundo amarelo de seus galões e pelas bandeiras vermelhas e brancas de suas unidades, eles deveriam se autodenominar Batalhão, mas quando não se faz parte de uma Divisão Blindada, não se faz parte de nada.
— Chutando mais alguns traseiros, senhor? — perguntou seu motorista quando o chefe acendeu um charuto cubano.
— Ovelhas para o matadouro, Perkins. — Masterman bebeu um pouco de água numa garrafa plástica. Trinta metros acima de sua cabeça, alguns caças F-16 israelenses passaram rugindo, demonstrando ultraje com o que acontecera no solo.
A Sala Guerra nas Estrelas do lugar era uma gêmea virtual da original em Forte Irwin. A tela principal era um pouco menor, as poltronas mais confortáveis, e ali era permitido fumar. Perkins entrou no prédio, espanando a poeira da camisa, marchando como Patton ao chegar a Bastogne. Os israelenses estavam esperando.
Intelectualmente, eles tinham de saber o quão útil fora-lhes o exercício.
Emocionalmente, a história era outra. A Sétima Divisão Blindada Israelense era tão orgulhosa quanto qualquer outra. Praticamente sozinha, detivera uma tropa inteira de tanques sírios nas colinas de Golan em 1973, e seu comandante atual fora o tenente que aceitara o comando de uma companhia acéfala e lutara com brilhantismo. Não acostumado com fracassos, acabara de ver a brigada na qual praticamente crescera ser aniquilada em trinta minutos brutais.
— General — disse Masterman, estendendo a mão para o irritado comandante de brigada. O israelense hesitou antes de aceitá-la.
— Nada pessoal, senhor, apenas negócios — disse o tenente-coronel Nick Sarto, que tinha comandado o Segundo Esquadrão Bighorn, e que acabara de ser o martelo na bigorna de Masterman. Com a Sétima Israelense no meio.
— Cavalheiros, podemos começar? — perguntou o observador-controlador sênior. Como cortesia ao Exército israelense, a equipe de observação e controle era uma mistura meio a meio de experientes oficiais americanos e israelenses, e era difícil determinar que grupo estava mais embaraçado.
Primeiro foi exibida uma gravação editada do embate teórico. Os veículos israelenses marcados em azul marcharam para o vale raso para encontrar a brigada de reconhecimento de BANDEIRA, que recuou rapidamente, mas não na direção das posições de defesa do restante do esquadrão. Em vez disso, a brigada de reconhecimento conduziu os veículos israelenses em ângulo.
Acreditando ser uma armadilha, a Sétima Divisão Blindada israelense manobrara para oeste, de modo a contornar e envolver seus inimigos, só para deparar com uma barreira sólida de tanques e então sofrer um ataque de Bighorn pelo leste. Isso acontecera tão rápido que o Terceiro Esquadrão Dakota de Doug Mills, o regimento de reserva, não teve nenhuma chance de entrar no jogo durante a fase de perseguição. Era a mesma lição de sempre. O comandante israelense presumira as posições de seu inimigo em vez de enviar batedores para descobrir.
O comandante de brigada israelense assistiu à gravação e pareceu murchar como um balão. Os americanos não riram. Todos já tinham passado por aquilo, embora fosse muito mais agradável estar do lado vencedor.
— Os seus batedores não estavam suficientemente na retaguarda, Benny — comentou diplomático o principal operador-controlador israelense.
— Os árabes não lutam dessa maneira! — replicou Benjamin Eitan.
— Deveriam, senhor — comentou Masterman. — Essa é a doutrina soviética padrão, e foram eles que os treinaram, lembra? Empurre-os para um beco sem saída e os esmague lá. Diabos, general, foi exatamente isso que o senhor fez com seus Centuriões em 73. Li seu livro sobre o confronto — acrescentou o americano. Isso acalmou os ânimos imediatamente. Uma das outras coisas que os oficiais americanos tinham de exercitar aqui era diplomacia. O general Eitan olhou para os lados e conseguiu esboçar algo que se aproximou de um sorriso.
— Foi o que fiz, não é mesmo?
— Com toda certeza. Você arrasou aquele regimento sírio em quarenta minutos, se não me falha a memória.
— E você copiou muito bem a tática — respondeu Eitan, grato pelo cumprimento, ...embora soubesse que aquilo era um esforço deliberado para acalmá-lo.
Não era por acidente que Magruder, Masterman, Sarto e Mill estavam aqui.
Os quatro tinham participado de uma ação de combate violenta na Guerra do Golfo, onde três tropas da Segunda Divisão Blindada Dragoon tinham deparado com uma brigada de elite iraquiana sob condições climáticas muito adversas — ruins demais para as aeronaves do regimento participarem do combate, ou mesmo poderem avisar da presença do inimigo. Ainda assim, a Dragoon acabara com o inimigo em questão de horas. Os israelenses sabiam disso, e portanto não podiam reclamar dizendo que os americanos eram soldados teóricos brincando com jogos igualmente fictícios.
E o resultado desta batalha não tinha sido incomum. Eitan era novo, apenas um mês no comando, e aprenderia, assim como outros oficiais israelenses haviam aprendido, que o modelo de treinamento americano era mais inclemente que o combate real. Essa era uma lição difícil para os israelenses, tão difícil que ninguém realmente a aprendera até que o coronel Magruder visitara a Área de Treinamento do Deserto de Neguev e os derrotara em sua própria casa. Ele sabia que se os israelenses tinham uma fraqueza, era o orgulho. O trabalho do OpFor aqui, assim como na Califórnia, era acabar com esse sentimento. O orgulho de um comandante podia valer a morte de seus soldados.
— Certo — disse o chefe dos observadores-controladores americanos. — Que podemos aprender com isto?
Não se meta com os Soldados-Búfalo, pensaram todos os três comandantes de esquadrão, embora nenhum deles tenha dito isso. Marion Diggs restabelecera a reputação do regimento em sua turnê de comando antes de assumir o comando de Forte Irwin. Embora todos na Força de Defesa israelense ainda comentassem aquela derrota, os soldados do 10° adotavam um ar confiante quando saíam em excursão, e apesar de toda a vergonha que tinham causado ao Exército israelense nos campos de jogos de guerra do deserto de Neguev, ainda eram imensamente populares. A 10ª Divisão Blindada, juntamente com dois esquadrões de caças F-16, era o compromisso americano para com a segurança israelense, principalmente por ter treinado as forças judaicas de terra até um nível de prontidão que elas não conheciam desde que o Exército israelense perdera praticamente a alma nas colinas e cidades do Líbano. Eitan aprenderia, e aprenderia depressa. No final da rotação de treinamento, ele lhes daria muita dor de cabeça. Talvez, pensaram os três comandantes de esquadrão. Eles não estavam ali para dar moleza a ninguém.
— Não foi o senhor que me disse o quanto a democracia era deliciosa, presidente? — perguntou Golovko ao passar pela porta.
— Deve ter me visto na TV hoje de manhã — conseguiu responder Ryan.
— Ainda lembro dos tempos que jornalistas seriam fuzilados por fazer comentários daquele tipo.
Atrás do russo, Andréa Price ouviu o comentário e se perguntou como esse sujeito tinha peito para censurar o presidente.
— Bem, não fazemos isso aqui — respondeu Jack, sentando. — Pode nos deixar a sós, Andréa? Sergey e eu somos velhos amigos.
Essa seria uma conversa privada. Não haveria nem mesmo uma secretária presente para tomar notas, embora microfones escondidos fossem registrar cada palavra para transcrição posterior. O russo sabia disso. O americano sabia que ele sabia disso, mas o simbolismo de não haver outra pessoa na sala era um cumprimento ao visitante, outro fato que o americano sabia que o russo sabia.
Jack se perguntou quantas verdades escondidas ele precisaria lembrar apenas durante uma conversa informal com um representante estrangeiro.
Quando a porta se fechou atrás da agente, Golovko começou a falar.
— Obrigado.
— Porra, somos velhos amigos ou não somos? Golovko sorriu.
— Que inimigo soberbo você foi.
— E agora...?
— Como a sua família está se adaptando?
— Mais ou menos tão bem quanto eu — admitiu Jack, e então mudou de assunto.
— Você teve três horas na embaixada para se atualizar.
Golovko assentiu; como sempre, Ryan fora bem instruído para esta reunião. A embaixada russa ficava apenas a alguns quarteirões dali, na rua 16, e ele viera caminhando até a Casa Branca, uma forma simples de evitar ser notado numa cidade onde as pessoas públicas trafegavam em carros oficiais.
— Não esperava que o Iraque caísse tão depressa.
— Nem eu. Mas não foi por causa disso que você veio, Sergey Nikolayevich.
China?
— Presumo que as fotos de seus satélites sejam tão reveladoras quanto as nossas. O Exército chinês se encontra num estado de prontidão incomum.
— Nosso pessoal não chegou a uma conclusão a esse respeito — disse Ryan.
— Eles podem estar se preparando para pressionar Taiwan um pouco mais.
— A Marinha chinesa ainda não está pronta para operações de combate.
Mas seu Exército e seus foguetes estão. Eles não vão cruzar o estreito de Formosa, presidente.
Isso explicou a razão para a vinda do representante russo com tanta clareza que Jack se virou para a janela e olhou o Monumento a Washington, cercado por um círculo de bandeiras. Que George dissera sobre evitar alianças complicadas com o exterior? Mas tudo era bem mais simples naquela época: dois meses para cruzar o Atlântico, e não seis ou sete horas...
— Se está perguntando o que acho que está... sim, ou melhor, não.
— Pode ser mais claro?
— A América não veria com bons olhos um ataque da China contra a Rússia. Um conflito dessa natureza geraria efeitos adversos sobre a estabilidade mundial, e também impediria seu progresso para um regime plenamente democrático. Os EUA querem ver a Rússia se tomar uma democracia próspera.
Já fomos inimigos por tempo demais. Devíamos ser amigos, e queremos ver nossos amigos seguros e em paz.
— Eles nos odeiam. Eles invejam o que temos — prosseguiu Golovko, insatisfeito com a declaração do presidente americano.
— Sergey, já se foi o tempo em que as nações roubavam o que não conseguiam ganhar. Isso pertence aos livros de História, e não será repetido.
— E se eles nos atacarem assim mesmo?
— Cruzaremos aquela ponte quando for preciso, Sergey — respondeu o presidente dos Estados Unidos da América. — Nosso propósito é impedir atos como esse. Se ficar claro que eles estão realmente pensando em fazer uma ofensiva, nós os aconselharemos a reconsiderar. Estamos de olho.
— Não sei se você os entende.
Ryan percebeu que o representante russo continuava a pressioná-lo. Eles estavam realmente preocupados.
— Acha que alguém entende? Acha que eles mesmos sabem o que querem?
Os dois espiões — era assim como ambos sempre veriam um ao outro — trocaram um olhar de humor profissional.
— O problema é esse — admitiu Golovko. — Tentei explicar ao meu presidente que é difícil prever o comportamento de pessoas indecisas. Eles têm capacidades, mas nós também, e o cálculo da questão parece diferente para ambos os lados... e é nesse momento que as personalidades fazem diferença.
Ivan Emmetovich, aqueles são homens velhos com ideias velhas. Nossa maior preocupação deve ser com suas personalidades.
— E História, cultura, economia, finanças... Ainda não tive a oportunidade de fitá-los nos olhos. Aquela parte do mundo não é o meu forte — lembrou Jack ao seu convidado. — Passei a maior parte da minha vida tentando entender o povo russo.
— Então, fica do nosso lado? Ryan balançou a cabeça.
— É cedo demais para especularmos sobre isso. Mas, faremos tudo que estiver ao nosso alcance para impedir um possível conflito entre a República Popular da China e a Rússia. Se acontecer um conflito, será nuclear. Sei disso.
Você sabe disso. Acho que eles também sabem.
— Eles não acreditam nisso.
— Sergey, ninguém é tão estúpido. — Ryan fez uma anotação mental de discutir isso com Scott Adler, que conhecia a região muito melhor que ele. Era hora de deixar esse assunto de lado por um momento e iniciar outro. — E quanto ao Iraque? O que seu pessoal está dizendo?
Golovko fez uma careta.
— Tínhamos uma rede lá até três meses atrás. Vinte pessoas, todos fuzilados ou enforcados... depois de serem interrogados, claro. Os homens que ainda temos não estão descobrindo muita coisa, mas parece que alguns generais muito importantes estão se preparando para fazer alguma coisa.
— Dois deles chegaram ao Sudão hoje de manhã — disse Ryan — Não era sempre que ele surpreendia Golovko.
— Tão rápido?
— É — assentiu Ryan, mostrando-lhe as fotografias tiradas no aeroporto de Cartum.
Golovko olhou as fotos sem reconhecer os rostos, embora não fosse preciso. As informações passadas nesse nível raramente eram falsificadas.
Mesmo com inimigos e ex-inimigos, uma nação precisava manter sua palavra em algumas coisas. Devolveu as fotos.
— Irã, então. Temos algumas pessoas lá, mas não ouvimos nada nos últimos dias. É um ambiente perigoso no qual operar, você sabe disso. Esperamos que Daryaei tenha alguma relação com o assassinato, mas não temos nenhum fato que comprove isso. — Fez uma pausa. — As implicações são graves.
— Está me dizendo que não pode fazer nada a respeito?
— Não, Ivan Emmetovich, não podemos. Não temos nenhuma influência lá, e vocês também não.
18
O Último Voo
O avião seguinte decolou cedo. O terceiro e último jato aparentemente comercial veio da Europa, trocou de tripulação e estava pronto três horas mais cedo que o esperado. Isso significava que o primeiro dos G-IV poderia voar para Bagdá, pegar mais dois generais e retornar. Badrayn tinha a impressão de que era um agente de viagens ou despachante, além de diplomata, o que já era um papel muito incomum para ele. Torceu apenas para não demorar muito.
Poderia ser perigoso ser um passageiro do último avião, porque o último... bem, não havia como saber qual seria o último, não é verdade? Os generais ainda não tinham pensado nisso. O último poderia ser abatido, deixando as pessoas em terra para dançar conforme a música, e Badrayn sabia que estaria entre eles... numa região onde a seletividade não era parte integral do sistema jurídico.
Bem, pensou, dando de ombros, a vida tinha seus riscos, e ele estava sendo bem pago. Pelo menos eles disseram que haveria mais um voo dali a menos de três horas e um quarto cinco horas depois desse. Mas a soma total seria dez ou 11, e isso poderia durar até três dias pelo cronograma atual, e três dias podia ser uma vida inteira.
Para além dos limites deste aeroporto, o exército iraquiano ainda estava nas ruas, mas haveria uma mudança agora. Esses recrutas, e até mesmo os soldados de elite, estavam lá fora havia vários dias, executando uma rotina despropositada e tediosa, e isso era uma coisa destrutiva para soldados.
Estavam andando em círculos, fumando cigarros, começando a fazer perguntas entre si: O que exatamente está acontecendo? Inicialmente não haveria respostas. Seus sargentos mandariam que se preocupassem com seus deveres, e fariam a mesma pergunta para seus oficiais de companhia, que fariam a mesma pergunta para as juntas de batalhão, e assim por diante, hierarquia acima... até um momento em que essa pergunta seria repetida e não haveria ninguém mais na instância superior para dizer ao curioso que se sentasse e calasse a boca.
Nesse ponto a pergunta ricochetearia de volta hierarquia abaixo. Era o tipo de coisa que um exército poderia sentir, como um espinho no pé dizia instantaneamente ao cérebro que alguma coisa estava errada. E se o espinho estivesse sujo, então uma infecção se espalharia e mataria o corpo inteiro. Os generais deviam saber dessas coisas... mas não sabiam. Uma coisa muito esquisita acontecia aos generais, especialmente nesta parte do mundo. Eles esqueciam. Simplesmente isso. Eles esqueciam que as propriedades, servos e carros não eram seus por direito divino, e sim uma conveniência temporária que pode ria desaparecer rápido como uma neblina matutina. Eles ainda estavam com mais medo de Daryaei do que de seu próprio povo, o que era uma tolice.
Badrayn acharia graça disso, se sua vida agora não dependesse das vidas desses generais.
A poltrona no lado direito da cabine de passageiros ainda estava molhada.
Desta vez estava ocupada pela filha mais nova do general que, até alguns minutos antes, comandara a Quarta Divisão da Guarda (Motorizada), e que agora estava conferenciando com um colega da Força Aérea. A criança sentiu a umidade embaixo dela e, intrigada, lambeu-a, até sua mãe ver aquilo e mandá-la levantar e lavar as mãos. Em seguida, a mãe se queixou com o comissário iraniano que estava voltando para casa com esse grupo. Ele fez a criança mudar de lugar e prometeu a si mesmo não esquecer de mandar quê a poltrona fosse limpa ou trocada quando chegassem em Mehrabad. O ambiente estava menos tenso agora. O primeiro par de oficiais telefonara de Cartum e reportara que tudo estava bem. Um pelotão do Exército sudanês protegia o casarão que eles estavam compartilhando, e tudo parecia seguro. Os generais já tinham determinado que fariam uma contribuição considerável ao Tesouro daquele país, para garantir sua segurança durante o período — com sorte, breve — que passariam ali antes de prosseguir viagem. O chefe de seu serviço nacional de informações, ainda em Bagdá, estava agora ao telefone, falando com vários contatos em diversos países para garantir moradia permanente para eles. Suíça?
Talvez. Um país frio em termos de clima e cultura, mas um país seguro, e para aqueles com dinheiro para investir, um país que preservava o anonimato.
— Quem possui três G-IVs lá?
— O registro da aeronave é suíço, tenente — reportou o major Sabah, tendo acabado de descobrir isso. Examinando as fotos tiradas em Cartum, obtivera o número da cauda, e isso foi checado facilmente num banco de dados informatizado. Folheou as páginas para determinar quem era o proprietário.
— Um jato empresarial. Eles têm três, além de alguns jatinhos menores para voar pela Europa. Teremos de pesquisar mais um pouco para descobrirmos mais sobre a empresa.
Mas alguém trabalharia nisso, e descobriria o óbvio. Provavelmente alguma empresa de importação exportação cujo principal objetivo era servir de fachada, embora possivelmente, em nome da credibilidade, conduzisse alguns negócios reais, ainda que insignificantes. A empresa teria uma conta de nível médio num banco comercial; contaria com uma firma jurídica para agir escrupulosamente dentro das leis locais e seus funcionários saberiam exatamente como se comportar — o governo suíço não se importava com quem depositava dinheiro em seus bancos, contanto que se mantivesse dentro de suas leis. Os generais que infringissem as regras descobririam que a Suíça podia ser um país tão pouco hospitaleiro quanto aquele do qual desertaram. Mas eles estavam cientes disso.
O mais lamentável, pensou Sabah, era que ele conhecia os dois primeiros rostos, e provavelmente também as pessoas que estavam agora em trânsito.
Seria agradável levá-los à justiça, principalmente a justiça kuwaitiana. A maioria estava em início de carreira quando o Iraque invadira seu país. Haviam participado das pilhagens. O major Sabah lembrou de quando vagueava pelas ruas em busca de informações, tentando parecer completamente inofensivo, enquanto outros kuwaitianos resistiam mais ativamente. Embora os poucos sobreviventes da força de resistência fossem agora famosos e bem recompensados, eles haviam operado a partir de informações que ele colhera. O major não se importava. Sua família era rica o bastante, e ele gostava de ser espião. Além disso, tinha certeza absoluta de que seu país jamais seria surpreendido daquela forma novamente. Ele daria o máximo de si para garantir isso.
Em todo caso, os generais que estavam partindo representavam um motivo de preocupação bem menor que aqueles que iriam substituí-los. Esses eram o maior problema.
— Temo que o Sr. Ryan tenha realizado um desempenho muito fraco, sob todos os aspectos — disse Ed Kealty no programa de entrevistas do meio-dia. — O Dr. Bretano é, antes de mais nada, um industrial que há muito tempo optou por se manter afastado do serviço público. Eu estava lá quando seu nome foi aventado antes, e estava lá quando ele recusou aceitar postos elevados no governo... para que pudesse continuar onde estava e fazer mais dinheiro, presumo. É um homem talentoso, evidentemente um bom engenheiro. — Kealty permitiu-se um sorriso tolerante. — Mas como secretário de Defesa... não sei não. — A opinião foi enfatizada com um meneio de cabeça.
— O que o senhor achou sobre a posição do presidente Ryan sobre o aborto?
— perguntou Barry na CNN.
— Barry, o problema é esse. Ele não é realmente o presidente — repetiu Kealty num tom de homem de negócios. — E precisamos corrigir isso. Sua falta de compreensão do público ficou clara naquela declaração contraditória e impensada na Sala de Imprensa. A Roe contra Wade é a lei em vigor. Era isso o que ele tinha que dizer. Não é necessário que o presidente goste das leis, mas ele precisa defendê-las. Claro, o fato de qualquer homem público não compreender o que o povo americano pensa sobre esse assunto não demonstra apenas insensibilidade para com o direito de escolha das mulheres... demonstra incompetência. Tudo que Ryan precisava fazer era ouvir o que seus conselheiros têm a dizer a respeito, mas ele não seria capaz de fazer isso. Ele é pavio curto — concluiu Kealty. — Não precisamos de um pavio curto na Casa Branca.
— Mas a sua alegação...
Um aceno de mão interrompeu o entrevistador.
— Não é uma alegação, Barry. É um fato. Nunca renunciei ao cargo. Nunca deixei realmente a vice-presidência. Por causa disso, quando Roger Durling morreu, eu me tornei presidente. O que temos a fazer agora, e o que o Sr. Ryan fará, caso se importe realmente com o país, é formar uma comissão judicial para analisar a Constituição e decidir quem é de fato o presidente. Se Ryan não fizer isso... bem, ele estará se colocando na frente do bem-estar do país. Agora, devo acrescentar que acredito plenamente que Jack Ryan está agindo de boa-fé.
Ele é um homem honrado, e no passado se revelou um homem de coragem.
Infelizmente, neste momento, está confuso, conforme vimos na entrevista coletiva desta manhã.
— Olhe só para Kealty: um torrão de manteiga não derreteria em sua boca — observou van Damm, abaixando o som do televisor. — Vê como ele é bom nisso?
Ryan quase se levantou da cadeira.
— Merda, Arnie, foi isso que eu disse! Devo ter dito isso três ou quatro vezes: a lei está aí e não posso quebrar a lei. Foi isso que eu disse!
— Lembra do que falei sobre manter sua tempera sobre controle? — o chefe de gabinete esperou que a tez de Ryan retornasse à cor normal. Ele aumentou de novo o som do televisor.
— O mais perturbador porém foi o que Ryan falou sobre suas indicações para a Suprema Corte — Kealty estava dizendo agora. — Está claríssimo que ele pretende fazer o relógio andar para trás numa série de coisas. Ele pretende fazer testes de tornassol em casos como aborto, indicando apenas juízes conservadores. Isso faz a gente pensar se ele quer derrubar a lei do aborto e Deus sabe mais o quê. Infelizmente, nos encontramos numa situação na qual o presidente em exercício terá um poder imenso, particularmente na Suprema Corte. E Ryan simplesmente não sabe o que fazer, Barry. Ele não sabe, e o que descobrimos hoje sobre o que ele quer fazer... bem, a coisa é assustadora, não acha?
— Estou num planeta diferente, Arnie? — inquiriu Jack. — Eu não disse nada nobre testes de tornassol . Um jornalista disse isso. Eu não disse nada sobre juízes conservadores. Um jornalista disse.
— Jack, o que conta não é o que você diz. É o que as pessoas ouvem.
— Quanto dano você acha que o presidente pode causar, então? — perguntou Barry na TV Arnie balançou a cabeça em sinal de admiração. Kealty seduzira Barry ao vivo pela televisão. O entrevistador formulara a questão de modo a demonstrar que ainda chamava Ryan de presidente, mas em seguida colocara as palavras numa forma tal que abalaria a confiança das pessoas nele. Não era de admirar que Ed se desse tão bem com as mulheres. E o espectador médio jamais captaria a sutileza com a qual o jornalista fora manipulado. Que profissional.
— Numa situação como esta, com o governo decapitado? Poderia levar anos para consertar o que ele quebrar — disse Kealty com o tom de voz preocupado de um médico de família. — Não porque ele seja má pessoa. Certamente não é.
Mas porque ele simplesmente não sabe como exercer o cargo de presidente dos Estados Unidos. Ele simplesmente não sabe, Barry.
— Voltaremos logo depois dos comerciais de nossas retransmissoras — disse Barry à câmera. Arnie ouvira o bastante, e não precisava ver os comerciais.
Levantou o controle remoto e desligou a televisão.
— Presidente, antes eu não estava preocupado, mas agora estou. — Fez uma pausa. — Amanhã lera editoriais em alguns dos maiores jornais concordando que uma comissão judicial é necessária, e não terá opção a não ser seguir em frente.
— Espere um minuto. A lei não diz que...
— A lei não diz nada, lembra? E mesmo que dissesse, não há uma Suprema Corte para decidir. Estamos numa democracia, Jack. A vontade do povo decidirá quem é o presidente. A vontade do povo será guiada pelo que a mídia disser, e você jamais saberá lidar com a imprensa tão bem quanto o Ed.
— Olhe, Arnie, ele renunciou. Eu fui confirmado pelo Congresso como vice-presidente, Roger morreu, eu me tornei presidente, e essa é a lei, porra! E eu tenho de obedecer à lei. Fiz um juramento de que faria isso, e vou fazer.
Nunca desejei esta merda de trabalho, mas nunca fugi de nada na minha vida, e raios me partam se eu fugir agora! — Havia mais uma coisa. Ryan desprezava Edward Kealty. Não gostava de suas posições políticas, não gostava de sua pose de formando de Harvard, não gostava de sua vida particular, com toda certeza do mundo não gostava da forma como ele tratava as mulheres. — Sabe o que ele é, Arnie?
— Sim, eu sei. E um cafetão, um explorador de mulheres, um vigarista. Não acredita em nada. Nunca exerceu como advogado, mas ajudou a escrever milhares de leis. Ele não é médico, mas estabeleceu a política nacional de saúde. Ele foi político profissional a vida inteira, sempre na folha de pagamento do governo. Nunca gerou um produto ou um serviço no setor privado da economia, mas passou a vida decidindo o quanto deveriam custar os impostos, e como esse dinheiro devia ser gasto. Os únicos negros que conheceu quando criança foram as empregadas que arrumavam seu quarto, mas ele se tornou um paladino dos direitos das minorias. É um hipócrita. Um charlatão. E vai vencer se você não se cuidar, presidente — disse Arnie, jogando um balde de água fria na raiva de Ryan. — Porque ele sabe como jogar o jogo, e você não.
O paciente, dizia o prontuário, fizera uma viagem ao Extremo Oriente em outubro, e em Bangkok desfrutara da liberdade sexual pela qual aquele país era bem conhecido. Pierre Alexandre, então um comandante designado para um hospital militar no país tropical, também já desfrutara dessa liberdade. Sua consciência não pesara por causa disso. Ele tinha sido jovem e insensato, como costumavam ser as pessoas nos anos dourados da vida, mas aquilo fora antes da AIDS. Fora ele quem dissera ao paciente, homem, branco, 36 anos, que ele tinha anticorpos de HIV no sangue, que não podia fazer sexo sem preservativo com a esposa, a qual precisava fazer exame de sangue imediatamente. Ah, ela estava grávida? Então quanto mais cedo melhor. Amanhã, se possível.
Alexandre sentia-se um juiz. Não era a primeira vez que dava notícias como essa, e com toda certeza não seria a última, mas pelo menos quando um juiz pronunciava uma sentença de morte era por um crime sério, e sempre havia a possibilidade de apelo. Este pobre infeliz tinha culpa de ser apenas um homem muito distante de seu lar, provavelmente bêbado e solitário. Talvez ele tivesse discutido com a mulher por telefone. Talvez a esposa estivesse grávida na época, e ele não estivesse transando. Talvez tivesse sido apenas o lugar exótico, e Alex lembrava bem como aquelas garotas taitianas de rosto de menina eram sedutoras, mas, que diabo, quem iria adivinhar? Agora ele estava condenado e não podia apelar ao juiz. Mas isso podia mudar, pensou o Dr. Alexandre. Ele tinha acabado de dizer ao seu paciente. Não se deve abandonar as esperanças.
Era isso que os oncologistas diziam aos seus pacientes havia duas gerações. A esperança era real, verdadeira, não era? Havia gente capaz trabalhando nessa doença — Alexandre era um deles — e a cura poderia aparecer amanhã. Ou talvez levasse cem anos. O paciente, segundo o prontuário, tinha dez pela frente.
— Não parece muito feliz.
Ele olhou para cima.
— Dra. Ryan.
— Dr. Alexandre, e acho que você conhece Roy. — Ela apontou para sua mesa com a bandeja. O refeitório estava repleto. — Dá licença?
— Por favor — disse ele, levantando-se.
— Dia ruim?
— Caso de Cepa E — era tudo que teve a dizer.
— HIV, Tailândia? Aqui e agora? Você lê a M&M — disse, conseguindo sorrir.
— Preciso me manter no nível de meus residentes. Cepa E? Tem certeza? — perguntou Cathy.
— Refiz o exame pessoalmente. Ele pegou na Tailândia, numa viagem de negócios. Esposa grávida.
O último comentário entristeceu o rosto da professora Ryan.
— Nada bom.
— AIDS? — perguntou Roy Altman. O resto da segurança presidencial da CIRURGIÃ espalhava-se pelo refeitório. Tinham pedido que ela passasse a almoçar no escritório, mas a Dr. Ryan explicara que essa era uma das formas que os médicos do Hopkins tinham para trocar ideias e para ela fazia parte de uma rotina regular. Hoje o assunto era doenças infecciosas. Amanhã poderia ser pediatria.
— Cepa E — explicou Alexandre, balançando a cabeça. — O mais comum na America é a B. Mesma coisa na África.
— Qual é a diferença? Cathy respondeu: — A Cepa B é muito difícil de contrair. Requer contato direto com derivados do sangue. O contágio ocorre entre usuários de drogas que compartilham agulhas ou através de contato sexual, mas principalmente entre homossexuais com lesões de tecidos causadas pelo atrito ou doenças venéreas.
— Você esqueceu do fator azar, mas ele talvez corresponda a apenas um por cento — acrescentou Alexandre. — No caso da Cepa E, que surgiu na Tailândia, bem, parece que ela é transmitida entre heterossexuais com mais facilidade que a B. É evidentemente uma versão mais robusta de nossa velha amiga.
— O CDC já quantificou isso? — perguntou Cathy.
— Não, eles precisam de mais alguns meses, pelo menos foi o que eu soube há algumas semanas.
— O quanto ela é ruim? — perguntou Altman. Trabalhar com CIRURGIÃ
estava se tornando uma experiência educativa.
— Ralph Forster foi até lá cinco anos atrás para analisar a situação. Já lhe contaram isso, Alex?
— Só conheço a história por alto.
— Ralph voou até lá à custa do governo. Assim que saltou do avião, o representante tailandês o recebeu na alfândega e, enquanto o levava até o carro, perguntou: Quer algumas garotas para esta noite? Foi quando ele percebeu que o problema era mesmo sério.
— Acredito — disse Alex, lembrando da época em que ele teria sorrido e assentido positivamente. Pelo menos conseguiu não estremecer. — Os números são assustadores, Sr. Altman. Neste momento, cerca de um terço dos rapazes alistados no Exército tailandês são HIV positivos. Principalmente Cepa E.
As implicações desse número eram indiscutíveis.
— Um terço? Um terço deles?
— Eram mais de 25 por cento quando Ralph esteve lá. É um número e tanto, certo?
— Mas isso significa...
— Que em cinquenta anos pode não haver mais Tailândia — proclamou Cathy num tom de voz natural que mascarava seu horror. — Quando eu estava na faculdade, achava que a oncologia era o território dos gênios, como Altman e Marty, Bert, Curt e Louise, que são aqueles ali no canto. Como não achei que seria capaz de estudar tanto e ainda suportar o estresse, hoje corto glóbulos oculares e os conserto. Hoje tenho certeza que vamos derrotar o câncer. Mas quanto a esses malditos vírus... não sei.
— A solução, Cathy, é compreender a interação precisa entre os genes no vírus e a célula hospedeira, e isso não deve ser tão difícil. Os vírus são limitados. Eles podem fazer apenas pequenas coisas, não é como a interação do genoma inteiro durante a concepção. Depois que descobrirmos como eles interagem com as células humanas, poderemos derrotar todos esses sacaninhas.
— Alexandre, como a maioria dos médicos no campo da pesquisa, era um otimista.
— Então o caminho é pesquisar as células humanas? — perguntou Altman, interessado em aprender sobre isso. Alexandre balançou a cabeça.
— O caminho é pesquisar algo ainda menor. Estamos estudando o genoma humano. É como desmontar uma máquina estranha, a cada passo tentando descobrir o que as partes individuais fazem, onde elas se encaixam. É isso que estamos fazendo agora.
— Sabe onde essa história vai dar? — sugeriu Cathy com uma pergunta, e então a respondeu: — Matemática.
— E o que o Gus diz lá em Atlanta.
— Matemática? Esperem um pouco! — objetou Altman.
— No nível mais básico, o código genético humano é composto de quatro aminoácidos, rotulados A, C, G e T. Tudo é determinado segundo a forma como essas letras, os ácidos, quero dizer, se combinam — explicou Alex. — Sequencias diferentes de genes significam coisas diferentes e interagem de formas diferentes, e provavelmente Gus está certo: as interações são matematicamente definidas. O código genético humano é um código de fato. E pode ser quebrado, e pode ser entendido. — Provavelmente alguém designará um valor matemático a eles... polinômios complexos... pensou. Isso era importante?
— O único problema é que ainda não apareceu ninguém inteligente o bastante para fazer isso — observou Cathy Ryan. — Essa é a bola que precisa ser enfiada na caçapa, Roy. Um dia alguém vai conseguir dar a tacada certa, e descobrirá a chave para todas as doenças humanas. Todas. Cada uma delas. O pote de ouro no fim do arco-íris que é a busca da medicina pela imortalidade humana.
— Vai tirar o emprego de nós todos, especialmente o seu, Cathy. Uma das primeiras coisas que eles cortarão do genoma humano é a miopia, e depois o diabetes e...
— Você ficará desempregado antes de mim, professor — disse Cathy com um sorriso. — Sou cirurgiã, lembra? Ainda haverá traumas para consertar.
Porém, cedo ou tarde, você vencerá a sua batalha.
Mas isso aconteceria a tempo para salvar esse paciente da Cepa E?, perguntou-se Alex. Provavelmente não. Provavelmente não.
Ela os estava xingando agora, principalmente em francês, mas também em flamengo. Os médicos do Exército não entendiam nenhuma das duas línguas.
Moudi falava flamengo bem o bastante para saber que aquelas imprecações vis não podiam ser o produto de uma mente lúcida. O cérebro estava sendo afetado, incapacitando Jean Baptiste de conversar com seu Deus. Seu coração finalmente estava sendo atacado, e isso concedeu ao doutor a esperança de que a Morte abençoaria a freira com uma misericórdia tardia. Talvez o delírio também fosse uma bênção. Talvez sua alma estivesse se separando do corpo.
Talvez, por não saber quem era, a dor não a tocasse mais, não nos lugares que realmente doíam. O médico precisava nutrir essa ilusão, mas se o que ele estava vendo era misericórdia, era uma forma muito distorcida desse sentimento.
O rosto da paciente agora era uma massa de feridas, quase conferindo-lhe a aparência de ter sido espancada brutalmente. Moudi não conseguia concluir se os olhos da freira ainda funcionavam. Ambos sangravam externa e internamente, e se ela ainda podia enxergar, isso não seria por muito tempo. Os médicos quase a tinham perdido cerca de meia hora antes, o que ocasionara sua corrida até a sala de tratamento para encontrá-la tossindo com vômito aspirado e os dois médicos tentando a um só tempo limpar-lhe as vias nasais e manter suas luvas intactas. As cordas que a mantinham no lugar, revestidas com plástico liso, tinham esfolado sua pele, causando mais sangramento e dor. Com os tecidos do sistema vascular se rompendo, o tubo intravenoso vazava sobre seus braços e pernas, espalhando pela cama fluidos tão mortais quanto o veneno mais tóxico do mundo. Agora, ainda que enluvados e mascarados, os médicos estavam realmente com medo de tocar a paciente. Moudi viu que tinham trazido um balde de plástico e o enchido com solução de iodo. Enquanto observava, um deles mergulhou as mãos enluvadas no líquido, balançando-as em seguida sem enxugá-las, de modo a poder tocar a paciente contando com a proteção de uma barreira química contra os patógenos que podiam saltar de seu corpo.
Precauções como essas não eram necessárias — as luvas eram grossas — mas ele não podia culpar os homens por ter medo. Com a virada da hora, os médicos do turno seguinte chegaram, enquanto os anteriores saíram. Um deles, ao caminhar até a porta, voltou-se para a paciente, orando com lábios silenciosos para Alá levar aquela mulher nas próximas oito horas, antes que eles retornassem. Do lado de fora, um médico do Exército iraniano, similarmente vestido em plástico, levava os homens até a área de desinfecção, onde suas roupas seriam borrifadas antes que as tirassem; em seguida, o mesmo seria feito com seus corpos, enquanto as vestes seriam reduzidas a cinzas no incinerador do andar de baixo. Moudi não tinha dúvidas de que os procedimentos seriam seguidos ao pé da letra — não, eles seriam excedidos em cada detalhe, e mesmo então os médicos sentiriam medo por dias a fio.
Se possuísse uma arma letal naquele momento e lugar, Moudi a teria usado nela, mandando as consequências para o inferno. Uma grande injeção de ar teria funcionado algumas horas antes, provocando uma embolia fatal, mas seu sistema cardiovascular estava tão degradado que ele não poderia nem mesmo ter certeza disso. O que tornava a provação tão terrível era a força da freira.
Ainda que pequena e frágil, trabalhara longas horas durante anos e anos, e isso valera-lhe uma saúde surpreendente. O corpo que sustentava aquela alma corajosa havia tanto tempo não desistiria fácil da batalha, por mais fútil que fosse.
— Vamos, Moudi, você sabe que não adianta ficar assim — disse o diretor atrás dele.
— Do que está falando? — perguntou sem se virar.
— Se ela estivesse de volta no hospital da África, o que seria diferente? Eles não a tratariam da mesma forma, tomando as mesmas medidas para mantê-la viva? O sangue, o soro, tudo seria exatamente a mesma coisa. Sua religião não permite a eutanásia. Além disso, está sendo mais bem tratada aqui — comentou correta, ainda que friamente. Então verificou o prontuário. — Cinco litros.
Excelente.
— Podemos começar...?
— Não. — O diretor balançou a cabeça. — Se o coração parar, iremos drenar todo seu sangue. Removeremos seus rins, e então nosso trabalho começará de fato.
— Alguém deve ao menos rezar por sua alma.
— Você o fará, Moudi. É um bom médico. Importa-se até mesmo com uma infiel. Pode se orgulhar disso. Se houvesse como salvá-la, você o teria feito. Sei disso. Ela sabe disso.
— O que estamos fazendo, infligir esta doença em...
— Em infiéis — lembrou-o o diretor. — Naqueles que odeiam nosso país e nossa fé, que cospem nas palavras do Profeta. Posso até concordar que esta é uma mulher de virtude. Tenho certeza que Alá será misericordioso com ela.
Você não escolheu o destino dessa mulher. Eu também não. — Ele precisava animar Moudi a prosseguir. O jovem era um médico brilhante. Talvez bom demais. O diretor agradeceu a Alá por ter passado a última década em laboratórios, se não, poderia ter sucumbido à mesma fraqueza.
Badrayn insistiu. Desta vez, três generais. Cada assento foi ocupado, um deles com duas crianças pequenas presas juntas pelo mesmo cinto de segurança.
Eles estavam entendendo agora. Era preciso que entendessem. Badrayn explicara-lhes, apontando para a torre, cujos controladores tinham visto cada voo chegar e sair e que, com toda certeza, estavam compreendendo tudo que acontecia. Prender os controladores não adiantaria, porque suas famílias sentiriam falta deles, e se suas famílias também fossem detidas, os vizinhos notariam, não é mesmo?
Bem, sim, concordaram todos.
Mandem um maldito avião de passageiros da próxima vez, quis dizer a Teerã, mas alguém teria objetado. Porque não importava o que você argumentasse, não importava o quanto seu pedido fosse razoável, alguém, do lado iraniano ou iraquiano, acabaria sendo contra. Ele não podia fazer nada agora senão esperar. Esperar e se preocupar. Ele bem que gostaria de beber um pouco, mas decidiu que seria melhor não fazê-lo. Ele tomara álcool mais de uma vez. Passara muitos anos no Líbano, um país onde todas as regras islâmicas podiam ser violadas, e ali desfrutara de vícios ocidentais, exatamente como todos faziam. Mas não agora. Ele poderia estar perto da morte e, pecador ou não, era muçulmano, e enfrentaria a morte da forma certa. Assim, na maior parte das vezes em que tinham lhe perguntado se queria beber alguma coisa, tomara café, olhando pela janela de sua poltrona ao lado do telefone, dizendo a si mesmo que era a cafeína que estava fazendo suas mãos tremerem, a cafeína e nada mais.
— Você é Jackson? — perguntou Tony Bretano. Ele passara a manhã inteira com os chefes interinos. Agora era hora de conhecer as abelhas-operárias.
— Sim, senhor, J-3. Acho que estou em seu escritório de operações — replicou Robby, sentando-se em vez de carregar papéis de um lado para o outro, apressado como o Coelho Branco de Alice.
— Está muito ruim?
— Bem, estamos frágeis. Ainda temos dois grupos de batalha de olho na índia e no Sri Lanka. Estamos enviando alguns batalhões de infantaria leve para as Marianas para reaverem o controle e supervisionar a retirada dos japoneses.
Esse é um ato principalmente político. Não esperamos mais problemas. Nossas aeronaves foram chamadas de volta para CONUS para manutenção. Esse aspecto da operação correu bem contra o Japão.
— Vão querer que eu acelere a produção de F-22 e reiniciar a produção de B-2, então? Foi isso que a Força Aérea disse.
— Acabamos de provar que os aviões Stealth multiplicam imensamente nossas forças, secretário. Precisamos de todos que pudermos conseguir.
— Concordo. E quanto ao resto da estrutura de força? — inquiriu Bretano.
— Estamos enfraquecidos por causa do número de compromissos. Se tivermos, por exemplo, de ir novamente para o Kuwait, como fizemos em 1991, não poderemos. Literalmente não temos mais tanta força para projetar. O senhor sabe qual é o meu trabalho. Tenho de descobrir como fazer as coisas que precisamos fazer. Certo, as operações contra o Japão nos levaram ao nosso limite, mas...
— Mickey Moore disse muita coisa boa sobre o plano que você engendrou e executou — comentou o secretário de Defesa.
— O general Moore é muito gentil. Sim, senhor, funcionou, mas vencemos por um triz todas as vezes, e esse não é o desempenho esperado das forças americanas, secretário. Temos que matar o inimigo de medo quando o primeiro recruta saltar do avião. Eu posso improvisar se quiser, mas o meu trabalho não deve ser esse. Cedo ou tarde posso dar uma mancada, ou outra pessoa pode fazer alguma besteira, e homens nossos podem morrer por conta disso.
— Também concordo. — Bretano deu uma mordida em seu sanduíche. — O presidente me deu carta branca para limpar este departamento e fazer as coisas do meu jeito. Tenho duas semanas para suprir as carências de nossas forças.
— Duas semanas, senhor? — Se Jackson fosse capaz de empalidecer, isso teria acontecido.
— Jackson, há quanto tempo você usa uniforme? — perguntou o secretário de Defesa.
— Contando o tempo na Escola Vocacional? Uns trinta, digamos.
— Se não fizer isso até amanhã, é o sujeito errado. Mas vou lhe dar dez dias — disse Bretano generosamente.
— Secretário, sou da Operações, não do Efetivo, e...
— Exato. Na minha forma de ver as coisas, o Efetivo supre as necessidades definidas por Operações. Num lugar como este, as decisões devem ser tomadas por atiradores, não por contadores. Era isso que estava errado na TRW quando cheguei. Os contadores estavam dizendo aos engenheiros o que eles podiam ter para fazer seu trabalho. Não. — Bretano balançou a cabeça. — Isso não funciona.
Se você constrói coisas, os seus engenheiros decidem como a companhia deve funcionar. Num lugar como este, os atiradores decidem o que precisam, e os contadores descobrem como ajustar o orçamento de acordo com essas necessidades. Sempre haverá um conflito, mas é o profissional que cuida do produto final quem deve tomar as decisões.
Ora, vejam só. Jackson conseguiu não sorrir.
— Parâmetros?
— Imagine a maior ameaça, a crise mais séria que for provável, não possível, e planeje para mim uma estrutura de força que possa cuidar desse problema.
Mesmo isso não seria suficiente, e os dois sabiam disso. Nos velhos tempos se partiria do pressuposto de que a América tinha poder de fogo para mobilizar tropas para duas guerras e meia, mas essa regra sempre fora uma fantasia, desde a presidência de Eisenhower. Hoje, como Jackson acabara de admitir, os EUA careciam dos meios para conduzir uma única operação militar de grande porte.
A esquadra estava reduzida à metade do que fora havia dez anos. O Exército estava enfraquecido. A Força Aérea, como sempre, protegia-se por trás da última palavra em tecnologia, mas ainda assim perdera cerca de metade de sua força total. A Marinha ainda estava firme e forte, mas os fuzileiros eram uma força expedicionária, apta apenas a resistir enquanto não chegassem reforços, e perigosamente carente de armas. No todo, as forças armadas não estavam exatamente frágeis, mas a dieta forçada não fizera bem a ninguém.
— Dez dias?
— Você tem o que preciso numa gaveta na sua frente, não é verdade? — Bretano sabia que os oficiais de planejamento sempre tinham.
— Preciso de alguns dias para dar um polimento mas... sim, nós temos.
— Jackson?
— Sim, secretário?
— Mantive-me a par das operações no Pacífico. Um dos meus homens na TRW, Skip Tyler, costumava entender muito desse tipo de coisa, e analisávamos mapas todos os dias. A operação que vocês realizaram foi impressionante. Não foi apenas física. Foi psicológica também, como tudo na vida. Vocês venceram porque são os melhores. Armas e aviões contam, mas miolos contam mais. Sou um bom administrador, e um puta engenheiro. Não sou um soldado. Darei ouvidos ao que vocês me disserem, porque seus colegas sabem como lutar. Estarei ao lado de vocês sempre que precisarem. Em troca, quero que me peçam aquilo de que realmente necessitam, não o que gostariam de ter. Não temos como pagar sonhos. Podemos cortara burocracia. Isso é trabalho do Efetivo, civil e uniformizado. Aprenderei como este lugar funciona.
Na TRW me livrei de um bando de corpos inúteis. Ela era uma empresa de engenharia, e agora é dirigida por engenheiros, lista é uma empresa que realiza operações, e passará a ser dirigida por operadores, pessoas que já dispararam tiros. Agilidade. Força. Esperteza. É o que queremos. Entendeu?
— Acho que sim, senhor.
— Dez dias. Menos, se você puder. Ligue-me quando estiver pronto.
— Clark — disse John, atendendo à sua linha direta.
— Holtzman — disse a voz. O nome fez John arregalar os olhos.
— Suponho que devia perguntar como conseguiu este número, mas você nunca revelaria sua força.
— Acertou em cheio — concordou o repórter. — Lembra daquele jantar no Esteban’s?
— Vagamente — mentiu Clark. — Faz um bom tempo. — Não tinha sido realmente um jantar, mas o gravador conectado ao telefone não sabia disso.
— Eu te devo uma. Que tal esta noite?
— Pego você.
Clark desligou e baixou os olhos para o tampo de sua mesa. Que diabo estava acontecendo?
— Ora vamos, não foi isso que Jack disse — comentou van Damm para o New York Times.
— Foi isso que ele quis dizer, Arnie — replicou o jornalista. — Você sabe isso. Eu sei disso.
— Gostaria que vocês pegassem leve com o sujeito. Ele não é um político — pediu o chefe de gabinete.
— A culpa não é minha, Arnie. Ele está no ramo e precisa seguir as regras.
Arnold van Damm assentiu em concordância, ocultando a raiva que afluíra no instante do comentário casual do repórter. Por dentro, sabia que o jornalista estava certo. Era assim que se jogava. Mas ele também sabia que o repórter estava errado. Talvez ele tivesse se tornado muito íntimo do presidente Ryan, o suficiente para ser realmente absorvido por algumas de suas ideias excêntricas.
Composta exclusivamente por funciona rios do setor privado, a mídia crescera em poder a ponto de decidir a que as pessoas diziam. Isso era ruim. Mas o pior era que eles gostavam demais do seu trabalho. Podiam levantar ou derrubar qualquer um nesta cidade. Eles faziam as regras. Aquele que as quebrasse também poderia ser quebrado.
Ryan era um amador. Não havia como negar. Em sua defesa podia-se dizer que ele jamais quisera seu trabalho atual. Chegara aqui por acidente, tendo buscado por nada mais do que uma oportunidade final em servir, e depois sair de uma vez por todas, para retornar à vida privada. Ele não fora eleito para seu posto. Mas a mídia também não, e pelo menos os poderes de Ryan eram definidos pela Constituição. A mídia estava cruzando a linha. Eles estavam tomando partido numa questão constitucional, estavam ficando do lado errado.
— Quem faz as regras? — perguntou Arnie.
— Elas simplesmente existem — foi a resposta do Times.
— Bem, o presidente não vai atacar a Roe. Ele nunca disse que iria. E não vai pegar juízes nos bancos dos parques. Ele não vai escolher ativistas liberais, e também não vai escolher ativistas conservadores. E acho que vocês sabem disso.
— Mas o que aconteceu? Ryan disse o que não pensa? — o sorriso do repórter dizia tudo. Ele reportaria essa conversa como uma tentativa, por parte de um alto funcionário do governo, em remediar a situação, esclarecendo, ou seja, corrigindo, o que o presidente dissera.
— Claro que não. Vocês que entenderam errado.
— O que ele disse me pareceu perfeitamente claro, Arnie.
— Isso porque você está acostumado a ouvir políticos profissionais. O presidente que temos agora diz o que pensa de forma direta. Na verdade, eu gosto disso, gosto mesmo — prosseguiu van Damm, mentindo; o jeito de Ryan o estava levando à loucura. —E isso vai facilitar muito a vida de vocês. Não terão mais de ler folhas de chá. Tudo que precisarão fazer é anotar o que ele disser ao pé da letra. Ou talvez simplesmente julgá-lo segundo um conjunto de regras justo. Concordamos que ele não é um político, mas vocês o estão tratando como se fosse. Por que não ouvem o que ele está realmente dizendo? — Ou simplesmente deem uma olhada na gravação em vídeo, ele não acrescentou.
Falar à imprensa era como acariciar um gato. Nunca se sabe quando ele vai resolver arranhar sua mão.
— Ora, vamos, Arnie. Você é o sujeito mais leal que existe nesta cidade.
Teria sido um ótimo médico de família. Todo mundo sabe disso. Mas Ryan está completamente perdido. O discurso na Catedral Nacional, aquele discurso idiota no Salão Oval. Ele é tão presidencial quanto um diretor do Rotary Club no interior do Iowa.
— Mas quem decide o que é presidencial e o que não é?
— Em Nova York, eu decido. — O repórter sorriu novamente. — Quanto a Chicago, você terá de perguntar a outra pessoa.
— Ele é o presidente dos Estados Unidos.
— Não é isso que Ed Kealty diz. E ele, pelo menos, age como um presidente.
— Ed está fora. Ele renunciou. Roger recebeu o telefonema do secretário Hanson me contou isso. Droga, você mesmo noticiou.
— Mas que motivo ele teria para...
— Que motivo ele teria para seguir cada rabo de saia que lhe cruza o caminho? — perguntou o chefe de gabinete. Grande, pensou, agora estou perdendo o controle da imprensa!
— Ed sempre foi um paquera. Ele ficou ainda melhor depois que largou a birita. Isso nunca afetou seus deveres — deixou claro o correspondente da Casa Branca. Como seu jornal, ele era um grande defensor dos direitos das mulheres.
— Essa desculpa não vai colar.
— Que posição o Times vai tomar?
— Eu lhe mandarei uma cópia do editorial — prometeu o repórter.
Ele não podia aguentar mais. Pegou o telefone e discou os seis números enquanto fitava a escuridão. O sol se punha, as nuvens cobriam o céu. Seria uma noite fria e chuvosa, conduzindo a um amanhecer que poderia ou não acontecer diante de seus olhos.
— Sim? — disse uma voz no meio do primeiro toque.
— E Badrayn. Seria conveniente se o próximo avião fosse maior.
— Temos um 737 de prontidão, mas preciso de autorização para mandá-lo.
— Vou tentar providenciar uma.
A televisão fizera-o agir. O noticiário tinha sido ainda mais dissimulado que o usual, em uma só matéria política. Nenhuma, numa nação onde os comentários políticos frequentemente ocupavam o espaço da previsão do tempo. Ainda mais agourenta fora uma matéria sobre uma mesquita, uma velha mesquita xiita, que estava ruindo por ter sido abandonada. A matéria lamentava esse fato, citando a história antiga e honrada do prédio ignorando o fato de que fora abandonada porque já fora o local de reunião de um grupo acusado, talvez justamente, em tramar a morte de seu grande, amado e em breve esquecido líder político. O pior de tudo: as imagens mostraram cinco mulas parados diante da mesquita, sem sequer olhar diretamente para a câmera, meramente gesticulando para os tijolos azuis desbotados nas paredes e provavelmente discutindo o que precisava ser feito. Os cinco eram os mesmos que tinham vindo para cá como reféns. Mas nem um único soldado podia ser visto na tela, e os rostos de pelo menos dois dos mulas eram bem conhecidos do público iraquiano. Alguém fora até a estação, mais precisamente até as pessoas que trabalhavam lá. Se os técnicos e repórteres quisessem ficar com seus empregos e cabeças, era hora de encarar uma nova realidade. Seriam os breves momentos na tela suficientes para o povo ver e reconhecer os rostos dos visitantes... e entender a mensagem?
Descobrir a resposta a essa pergunta poderia ser perigoso.
Mas ele não estava preocupado com o povo, e sim com coronéis e majores.
E com os generais que tinham ficado de fora da lista. Muito em breve eles saberiam de tudo. Deviam estar ao telefone, verificando o que estava acontecendo. Alguns ouviriam mentiras. Alguns não ouviriam nada. Estavam começando a fazer contatos. Durante as próximas 12 horas eles conversariam entre si e teriam de tomar decisões. Esses homens eram identificados com o regime moribundo. Não podiam fugir, não tinham para onde ir e nenhum dinheiro para levar consigo. Eles precisavam permanecer no país. Sua identificação com o regime passado seria sua sentença de morte — para muitos, com toda certeza.
Para outros, havia uma chance. Para sobreviver, teriam de fazer o que os criminosos do mundo inteiro faziam. Teriam de salvar suas próprias vidas oferecendo um peixe maior. Era sempre assim. Coronéis podiam derrubar generais. Finalmente, os generais entenderam.
— Há um 737 de prontidão. Espaço suficiente para todos. Poderá estar aqui em noventa minutos — disse a eles.
— E eles não nos matarão no aeroporto? — inquiriu o chefe de gabinete substituto do exército iraquiano.
— Prefere morrer aqui? — replicou Badrayn.
— E se for uma cilada?
— Esse risco existe. Nesse caso, as cinco personalidades da TV morrerão.
Claro que não morreriam. Esse seria um ato de tropas leais aos generais mortos. Esse tipo de lealdade não existia aqui. Todos sabiam disso. O mero ato de fazer reféns tinha sido um gesto instintivo e já invalidado por alguém, talvez pela mídia, mas provavelmente pelo coronel que comandava os soldados guardando os sacerdotes iranianos. Ele provavelmente era um especialista em informação. Refletindo, Badrayn recordou de um leal oficial sunita, filho de um membro do Partido Baath. Isso podia significar que o Partido Baath já estava sendo subornado. As coisas agora transcorreriam depressa. Os mulas tinham ocultado a natureza de sua missão, não tinham? Mas nada disso importava.
Matar os reféns não seria lucro para ninguém. Os generais estavam condenados se permanecessem aqui, e o martírio não era exatamente ofensivo aos sacerdotes iranianos. Era uma parte integral da tradição xiita.
Não, a decisão já fora tomada, irreversivelmente. Esses comandantes não haviam se apercebido disso. Eles não tinham considerado a situação tão profundamente.
Bem, se eles tivessem sido oficiais realmente competentes, teriam sido mortos há séculos por seu líder amador.
— Sim — respondeu o mais velho. — Obrigado. — Badrayn pegou o telefone e premiu os mesmos botões.
— As dimensões da crise constitucional na qual os EUA se encontram tornaram-se evidentes ontem. Embora a questão possa ter sido técnica, a substância não foi.
John Patrick Ryan é um homem habilidoso, mas se possui ou não o talento necessário para exercer seus deveres presidenciais é uma questão ainda a ser respondida. Os primeiros indícios são menos que promissores. O serviço governamental não é um trabalho para amadores. Nosso país já recorreu frequentemente a esse tipo de pessoa, mas no passado eles sempre tiveram a oportunidade de amadurecer lentamente, em meio a uma situação ordenada.
A situação atual dos Estados Unidos é tudo, menos ordenada. Até este momento, o Sr. Ryan realizou um trabalho adequado e cuidadoso no restabelecimento do governo. Sua indicação para diretor interino do FBI, por exemplo, foi Daniel Murray, uma escolha aceitável. Da mesma forma, George Winston é provavelmente uma escolha justa para secretário interino do Departamento do Tesouro, embora não seja politicamente versado. Scott Adler; um profissional altamente talentoso que dedicou uma vida inteira de trabalho ao governo, pode ser o melhor membro do gabinete atual... Ryan saltou os dois parágrafos seguintes.
O vice-presidente Edward Kealty, apesar de suas falhas pessoais, conhece governo, e sua experiência com a maioria das questões nacionais oferece um curso estável de ação até as eleições selecionarem uma nova administração.
Mas serão verdadeiras suas alegações?
— E você se importa com isso? — perguntou Ryan ao editorial que seria publicado no dia seguinte no Times.
— Eles conhecem Kealty. Eles não conhecem você — respondeu Arnie.
Então o telefone tocou. — Sim?
— É o Sr. Foley, presidente. Ele diz que é importante.
— Certo... Ed? Estou colocando você no viva-voz. —Jack apertou o botão apropriado e colocou o telefone no gancho. — Arnie está ouvindo.
— É definitivo. O Irã fizera uma ofensiva, grande e rápida. Se o senhor tem tempo, estou com algumas imagens de TV — Ponha para tocar.
Jack sabia como fazer isso. Neste escritório e em outros, havia televisores conectados por cabos de fibra ótica até o Pentágono e outros órgãos. Tirou o controle remoto de uma gaveta e o ligou. O espetáculo durou apenas cinquenta segundos, foi reprisado em velocidade normal e depois mais uma vez, quadro a quadro.
— Quem são eles? — indagou Jack.
Foley leu os nomes. Ryan ouvira dois deles antes.
— Consultores de nível médio e alto de Daryaei. Estão em Bagdá, e alguém decidiu espalhar isso. Certo, sabemos que os principais generais estão fugindo.
Agora temos cinco mulas discutindo a reconstrução de uma mesquita importante na emissora governamental. Amanhã estarão falando mais alto — prometeu o diretor da CIA nomeado.
— Alguma notícia das pessoas em terra?
— Negativo — admitiu Ed. — Cheguei a conversar com o chefe de estação Riad sobre a possibilidade de ele ir até lá conversar, mas quando ele chegar lá não haverá com quem conversar.
— É um pouco grande — disse um tenente a bordo do AWACS. Ele leu o código alfanumérico e falou pelo intercomunicador: — Coronel, estou com o que parece ser um 737 vindo de Mehrabad para Bagdá, curso dois-dois-zero-zero, velocidade quatro-zero nós, vinte mil pés. PALM BOWL reporta um tráfego de vozes codificado para Bagdá vindo dessa rota.
A popa, o comandante da aeronave checou a tela. O tenente estava certo. O coronel ligou o rádio para reportar à KKMC.
O resto deles chegou junto. Eles deviam ter esperado mais tempo, pensou Badrayn. Melhor aparecer com a aeronave já pousada, o mais rápido para... mas, não.
Era divertido ver esses homens poderosos daquela forma. Há apenas uma semana desfilavam garbosamente por toda parte, seguros de seu local e poder, suas camisas cáqui decoradas com diversos laços denotando serviços heroicos.
Aquilo era injusto. Alguns tinham realmente liderado homens em batalha, uma ou duas vezes. Talvez um ou dois tivessem realmente matado inimigos.
Inimigos iranianos. As mesmas pessoas a quem confiavam agora sua segurança, porque temiam mais seus compatriotas. Assim, agora eles caminhavam juntos, incapazes de confiar nos próprios guarda-costas. Especialmente neles. Os guarda-costas estavam armados e próximos e, afinal de contas, os generais não estariam nessa enrascada se os guarda-costas fossem dignos de confiança.
Apesar do perigo à sua própria vida, Badrayn não podia evitar achar a situação divertida. Ele dedicara a maior parte da vida adulta a um momento como aquele. Havia muito ele sonhava ver altos oficiais israelenses parados num aeroporto daquele jeito... deixando seu próprio povo à mercê de um destino incerto, derrotados por seu... essa ironia não era divertida, era? Mais de trinta anos, e tudo que ele conseguira fora a destruição de um país árabe. Israel estava protegido. A América ainda garantia sua segurança, e tudo que ele estava fazendo era dispor as cadeiras do poder em torno do golfo Pérsico.
Estava fugindo exatamente como os generais, admitiu Badrayn. Tendo fracassado na missão de sua vida, ele terminaria este trabalho mercenário, e depois o quê? Pelo menos esses generais tinham dinheiro e conforto à sua espera. Ele não tinha nada à espera, e para trás deixava apenas o fracasso. Com esse pensamento, Ali Badrayn praguejou e recostou-se em sua poltrona, exatamente a tempo para ver uma forma escura passar correndo pela pista. Um guarda-costas na porta fez um gesto para as pessoas na sala. Dois minutos depois, o 737 apareceu de novo. A escada começou a ser posicionada enquanto o avião ainda parava. Ela já estava no lugar antes mesmo de as portas se abrirem, e os generais — cada qual com suas famílias, um guarda-costas e, em muitos casos, uma amante — saíram correndo pela porta para o chuvisco frio que acabara de começar. Badrayn foi o último a sair. Ele ainda teria de aguardar. Todos os iraquianos chegaram na base da escada como uma manada assustada, esquecidos de sua importância e dignidade enquanto acotovelavam-se escada acima. No topo havia um tripulante uniformizado, exibindo um sorriso mecânico de saudação para pessoas a quem tinha todos os motivos do mundo para odiar. Ali esperou até a escada ficar vazia antes de subir, chegando na pequena plataforma e se virando para olhar para trás. Não houvera tanto motivo assim para pressa. Ainda não havia caminhões verdes aproximando-se com seus soldados confusos. Aparentemente isso só aconteceria dali a uma hora. E eles chegariam aqui para não encontrar nada além de um aeroporto deserto. Balançou a cabeça e entrou no avião. O tripulante fechou a porta atrás de si.
A tripulação comunicou por rádio o pedido de liberação da pista, o que foi feito automaticamente. Os controladores da torre receberam o comunicado e passaram as informações necessárias, mas com frieza, apenas fazendo seu trabalho. Enquanto observavam, o avião seguiu até o fim da pista, aumentou a força das turbinas e decolou para as trevas que começavam a descer sobre sua nação.
19
Receitas
— Faz um bom tempo, Sr. Clark.
— É mesmo, Sr. Holtzman — concordou John. Estavam na mesma cabine da vez anterior, bem lá no fundo, perto da vitrola automática. O Esteban’s ainda era um bom lugar familiar na Wisconsin Avenue, e ainda sustentado pela proximidade com a Georgetown University. Mas Clark lembrou que não tinha contado seu nome ao jornalista.
— E seu amigo?
— Ocupado esta noite — respondeu Clark. Na verdade Ding saíra mais cedo do trabalho e fora até Yorktown pegar Patsy para jantar, mas o repórter não precisava saber disso. Estava escrito em seu rosto que ele já sabia demais. — E então, que posso fazer por você? — perguntou o agente de campo.
— Lembra que fizemos um pequeno acordo? Clark assentiu.
— Não esqueci. Isso foi há cinco anos. O tempo não acabou ainda. — A resposta não foi surpresa.
— Os tempos mudam. — Holtzman pegou o cardápio e correu os olhos por ele. Gostava de comida mexicana, embora ultimamente essa tipo de comida não estivesse gostando muito dele.
— Trato é trato. — Clark não olhou o cardápio. Permaneceu olhando direto para o outro lado da mesa. Seu olhar frequentemente deixava as pessoas pouco à vontade.
— As notícias estão circulando. Katryn está noiva de um caçador de raposas de Winchester.
— Não sabia — admitiu Clark. Não que ele se importasse realmente.
— Não achei que soubesse. Você não é mais um oficial burocrático. Está gostando de atuar novamente em campo?
— Se está querendo que eu fale sobre isso, sabe que não posso...
— O que é uma pena. Venho pesquisando você há alguns anos — disse o jornalista ao seu convidado. — Você tem uma puta reputação profissional, e todos dizem que seu parceiro seguirá seus passos. Foram vocês que executaram a tal missão no Japão — disse Holtzman com um sorriso. — Foram vocês que resgataram Koga.
Uma expressão escarninha ocultou os sentimentos verdadeiros de John, sentimentos de alarme.
— De onde diabos tirou essa ideia?
— Conversei com Koga quando ele esteve aqui. Uma missão de resgate de dois homens, disse ele. Um grandão e um baixinho. Koga descreveu seus olhos: azuis, duros, intensos, ele disse, mas contou também que você é um homem de discurso racional. O quanto eu preciso ser inteligente para ligar uma coisa com a outra? — Holtzman sorriu. — Da última vez que conversamos, você disse que eu daria um bom espião. — O garçom apareceu com duas cervejas. —Já tomou esta? Pride of Maryland, fabricada por uma pequena empresa da Costa Leste.
O garçom se afastou. Clark inclinou-se sobre a mesa.
— Olhe, respeito sua habilidade, e da última vez que conversamos, você jogou limpo, manteve sua palavra, e respeito isso. Mas gostaria que lembrasse de que quando estou agindo em campo, a minha vida depende...
— Não vou revelar sua identidade. Não faria isso por três razões. E errado, é contra a lei, e não quero emputecer alguém como você. — O repórter bebericou a cerveja. — Um dia eu adoraria escrever um livro a seu respeito. Se metade das histórias for verdade...
— Certo, chame o Val Kilmer para fazer meu papel no cinema.
— Ele é bonito demais. — Holtzman balançou a cabeça. — Nick Cage se parece mais com você. De qualquer modo, o motivo deste encontro... — Ele fez uma pausa. — Foi Ryan quem tirou o pai dela de lá, mas não tenho certeza de como. Você foi até a praia, pegou Katryn e a mãe e levou-as de barco até um submarino. Não sei qual foi, mas sei que foi um de nossos nucleares. Mas a minha matéria não é sobre isso.
— E é sobre o quê?
— Ryan, como você, é o Herói Discreto. — Robert Holtzman gostou de ver a surpresa nos olhos de Clark. — Gosto do cara. Quero ajudá-lo.
— Como? — perguntou John, imaginando se poderia confiar em seu anfitrião.
— Foi minha esposa, Libby, quem expôs a sujeira de Kealty. Publicou cedo demais, e não adianta voltar a esse aspecto agora. Ele é um verme, ainda pior do que a maioria das pessoas de Washington. Nem todo mundo no ramo pensa dessa forma, mas Libby conversou com algumas de suas vítimas. Houve um tempo que um sujeito podia se safar de acusações desse tipo, especialmente se sua política fosse progressista . Não mais. Pelo menos é o que se supõe — corrigiu a si mesmo. — Também não estou tão convicto de que Ryan seja o homem certo. Mas ele tentará fazer a coisa certa, pelas razões certas. Como Roger Durling gostava de dizer, ele é um homem bom numa tempestade.
Preciso vender essa ideia aos meus editores.
— Como fará isso?
— Farei uma matéria sobre como ele fez uma coisa realmente importante para seu país. Algo velho o suficiente para não ser uma questão delicada, e recente o bastante para as pessoas saberem que é o mesmo cara. Deus do céu, Clark, ele salvou os russos! Ele impediu um golpe interno que poderia ter ressuscitado a Guerra Fria por mais uma década. Isso foi uma tremenda façanha... e ele nunca contou nada disso a ninguém. Deixaremos claro que Ryan não vazou a história. Até mesmo iremos consultá-lo antes de divulgar isso, e você sabe o que ele dirá...
— Dirá que você não deve publicar — concordou Clark. Então ele se perguntou com quem Holtzman tinha falado. Com o juiz Arthur Moore? Com Bob Ritter? Será que eles tinham dado com a língua nos dentes? Antes, a resposta de Clark a essa pergunta seria um enfático não, mas agora... agora ele não estava tão certo. Quando chegam a uma determinada posição, as pessoas começam a achar que quebrar as regras pode servir a algum dever maior para o país. John conhecia bem esse papo de dever maior . Eleja tinha lhe causado todo tipo de problemas, mais de uma vez.
— Mas seria uma matéria boa demais para não ser publicada. Levei anos para descobrir tudo. O público tem o direito de saber que tipo de homem está sentado no Salão Oval, especialmente se ele é o homem certo — prosseguiu o repórter. Holtzman era o tipo de homem que convenceria uma freira a despir o hábito.
— Bog, você não sabe da missa a metade. — Clark calou-se um instante depois, irritado por ter falado demais. Essas eram águas profundas, e ele estava tentando nadar usando um cinto pesado. Mas, ora, que diabos... — Certo. Vou lhe contar o que sei sobre Jack.
Ficou acertado que eles usariam o mesmo avião, e — para o alívio de ambos os lados — que não permaneceriam no Irã um minuto além do necessário. Havia outro problema. O 737 não possuía o alcance dos G-IV, que eram bem menores. Assim, concordou-se que o avião aterrissaria no Iêmen para reabastecer. Os iraquianos não desceram do avião em Mehrabad, mas quando a escada móvel foi trazida para a porta, Badrayn saltou sem ouvir uma só palavra de agradecimento das pessoas que salvara. Um carro estava à sua espera. Ele não olhou para trás. Os generais eram agora parte de seu passado, assim como ele era parte do deles.
O carro levou-o até a cidade. Badrayn viajou acompanhado apenas do motorista. O tráfego, que não estava muito denso àquela hora da noite, permitiu um percurso tranquilo. Quarenta minutos depois, o carro parou diante de um prédio de três andares. Aqui havia segurança. Assim, pensou Badrayn, ele estava vivendo agora em Teerã? Saiu do carro sozinho. Um segurança uniformizado comparou uma fotografia com seu rosto e fez um gesto na direção da porta. Dentro, outro guarda — um capitão, a julgar pelas insígnias triplas em seus ombros — bateu-lhe continência polidamente. Dali foi levado até a sala de conferências no andar de cima. A esta altura eram três da manhã, hora local.
Encontrou Daryaei sentado numa poltrona confortável lendo alguns documentos governamentais típicos em vez do Corão. Bem, a essa altura Daryaei já devia ter decorado o livro sagrado, tanto que o estudara.
— A paz esteja com você — disse Ali.
— E com você, paz — replicou Daryaei, não tão mecanicamente quanto Badrayn esperara.
O homem mais velho se levantou e caminhou até ele para o abraço esperado. O rosto estava muito mais relaxado do que ele esperara. Cansado, decerto, porque o sacerdote tivera um ou dois dias muito longos, mas, velho ou não, o homem estava empolgado com os eventos.
— Você está bem? — perguntou o aiatolá solicitamente, gesticulando para que seu convidado sentasse.
Ali permitiu-se um suspiro longo enquanto ocupava sua poltrona. .,. — Estou agora. Tive dúvidas se a situação em Bagdá permaneceria estável.
— A discórdia não seria lucrativa. Meu amigos me disseram que a velha mesquita está precisando de reparos.
Badrayn podia ter dito que não sabia, mas um dos motivos era que ele não via o interior de uma mesquita havia muito tempo, fato que não agradaria a Daryaei.
— Há muito a ser feito — decidiu responder.
— Há sim. — Mahmoud Haji Daryaei retornou para sua poltrona, colocando os documentos de lado. — Seus serviços foram inestimáveis. Houve alguma dificuldade?
Badrayn balançou a cabeça.
— Na verdade não. É surpreendente como esses homens podem ser medrosos, mas eu estava preparado para isso. A sua proposta foi generosa. Eles não tinham escolha além de aceitá-la. Você não irá...? — permitiu-se perguntar.
O aiatolá meneou a cabeça.
— Não. Eles seguirão em paz.
E isso, se verdade, foi um pouco surpreendente, embora Ali não tenha permitido transparecer em seu rosto. Daryaei tinha poucas razões para amar aqueles homens. Todos tinham desempenhado um papel na guerra Irã-Iraque, e sido responsáveis pelas mortes de milhares de pessoas, uma ferida ainda aberta nesta nação. Muitos homens jovens haviam morrido. A guerra era um dos motivos pelos quais o Irã não desempenhava um papel de destaque no mundo havia anos. Mas isso estava prestes a mudar, não estava?
— Então, posso perguntar o que você fará em seguida?
— O Iraque é um país doente há muito tempo, longe da Fé Verdadeira, perambulando na escuridão.
— E estrangulado pelo embargo — acrescentou Badrayn, perguntando-se que reação essa informação iria provocar.
— Chegou a hora de isso acabar — concordou Daryaei. Alguma coisa em seus olhos congratulou Ali pela observação. Sim, aquele era o plano óbvio, não era? O embargo, uma vantagem para o Ocidente, precisava ser anulado. O país começaria a receber alimentos e a população ficaria deliciada com o novo regime. Ele agradaria a todos prontamente, o tempo todo planejando para agradar a si mesmo. E a Alá, evidentemente. Mas Daryaei era um daqueles que tinha certeza de que seus atos eram inspirados por Alá, ideia que Badrayn havia muito abandonara.
— A América será um problema, assim como outros mais próximos a vocês.
— Estamos examinando essas questões.
Esse comentário foi tecido confortavelmente. Bem, fazia sentido. Daryaei devia estar pensando nisso havia anos, e num momento como este ele devia estar se sentindo invencível. Badrayn sabia que isso também fazia sentido.
Daryaei sempre achava que Alá estava do seu lado — ao seu lado, para ser mais preciso. E talvez Ele estivesse, mas havia muito mais coisas além disso. Era preciso que houvesse, se ele queria alcançar o sucesso. Os milagres costumam aparecer quando invocados pela preparação. Por que não providenciar para que tivesse uma participação no próximo milagre?, pensou Ali.
— Tenho observado o novo líder americano.
— Mesmo? — Daryaei estreitou os olhos.
— Não é difícil colher informações na era moderna. A imprensa americana publica muita coisa, e tudo pode ser acessado com extrema facilidade hoje em dia. Neste exato momento, tenho homens trabalhando num dossiê cuidadoso do presidente. — Badrayn manteve o tom de voz o mais casual possível. Não foi difícil. Estava cansado até os ossos.
— É impressionante como estão vulneráveis neste momento.
— De fato. Conte-me mais.
— A chave para a América é esse tal Ryan. Isso não é óbvio?
— A chave para mudar A América é uma convenção constitucional — disse Ernie Brown, depois de longos dias de contemplação silenciosa.
Bete Holbrook estava operando o controle remoto de seu projetor de slides.
Batera três rolos de filme do Capitólio, e mais alguns de outros prédios como a Casa Branca, completamente incapaz de evitar ser um turista. Resmungou, vendo que um dos slides estava de cabeça para baixo. A ideia fora planejada cuidadosamente, mas o resultado não foi tão impressionante.
— Conversamos sobre isso durante muito tempo — concordou Holbrook enquanto tirava o estojo de slides do projetor. — Mas como vocês...
— Como forçaremos isso? Fácil. Se não houver presidente e não houver uma maneira de selecionar um de acordo com a Constituição, então, alguma coisa tinha de acontecer, não tinha?
— Matar o presidente? — grunhiu Pete. — Qual deles?
Esse era um problema. Não era preciso ser cientista de foguetes para descobrir isso. Mate Ryan e Kealty assumiria. Mate Kealty e Ryan ficaria para valer. Na presente situação seria difícil. Os dois homens lembravam bem da segurança que tinham visto na Casa Branca. Mate um deles e o governo cercará o outro com uma muralha que só poderá ser derrubada por uma bomba atômica.
Os Montanheses não tinham uma bomba dessas. Preferiam armas americanas tradicionais, como fuzis. Até mesmo eles tinham suas limitações. O Jardim Sul da Casa Branca era inteiramente arborizado com árvores e, como eles também tinham notado, protegido por muros cuidadosamente ocultos entre a vegetação.
Simplesmente ver a Casa Branca era possível por uma única avenida visual, alinhando o prédio com o chafariz. Os prédios vizinhos eram de propriedade do governo, e no topo deles sempre havia pessoas com binóculos e fuzis. O Serviço Secreto americano estava determinado a manter as pessoas afastadas de seu presidente, o servo do povo cujos guardas não confiam nas pessoas. Mas se o homem que vivia naquela casa fosse realmente um homem do povo, não haveria necessidade de guardas. Certa vez Teddy Roosevelt abrira as portas para apertar as mãos de pessoas comuns por quatro horas inteiras. Esse era o tipo de coisa que não aconteceria mais!
— Os dois ao mesmo tempo. Da forma que vejo, Ryan será o alvo mais difícil, certo? — indagou Brown. — Ele está á, onde a maior parte da proteção se concentra. Kealty precisa mover-se muito para falar com os pulhas da imprensa, e não estará tão bem protegido.
Holbrook recolocou o estojo de slides no projetor.
— Certo, isso faz sentido.
— Portanto, se descobrirmos uma forma de pegar Ryan, levar Kealty com ele será fácil. — Brown tirou o celular de seu bolso. — Fácil de coordenar.
— Prossiga.
— Isso significa nos mantermos a par de seu cronograma, aprender sua rotina e escolher a hora certa.
— Sai caro — observou Holbrook, projetando o slide seguinte. A foto na tela era agora uma tirada por muitas pessoas, do topo do Monumento de Washington, a janelinha na ala norte da Casa Branca. Ernie Brown também tirara uma, e mandara ampliá-la para tamanho pôster na loja de fotografia do bairro. Então passara horas olhando para a foto. Em seguida, pegara um mapa, checara a escala e fizera alguns cálculos aproximados.
— A parte cara será comprar o caminhão de cimento e alugar um lugar não muito distante da cidade.
— Como?
— Eu conheço a presa, Pete. E sei como tirá-la da toca. É apenas uma questão de escolher o momento certo.
Ela não viveria até o fim da noite, concluiu Moudi. Seus olhos estavam abertos agora. Ninguém podia imaginar o que eles viam. Finalmente, misericordiosamente, ela estava além da dor. Isso acontecia. Eleja vira isso acontecer com pacientes de câncer, e esse estado sempre antecedia a morte. Seu conhecimento de neurologia era insuficiente para compreender o motivo.
Talvez as trilhas eletroquímicas ficassem obstruídas, ou talvez o cérebro tivesse alguma função de censura da dor. O corpo sabia o que estava acontecendo, que a hora da batalha terminara, e como a função do sistema nervoso era principalmente de alerta, quando o tempo para avisos tinha passado não havia mais motivo para dor. Ou talvez fosse tudo imaginação sua. Possivelmente o corpo da freira estivesse simplesmente danificado demais para reagir a qualquer coisa. Decerto o sangramento intraocular a deixara cega. Já não era possível injetar-lhe sangue, tão danificadas estavam suas veias, e ela agora sangrava pela perfuração do tubo, bem como de muitos outros lugares. Apenas o soro de morfina permanecia sendo injetado, mantido em seu lugar por fita adesiva. O coração da mulher, faminto por sangue e tentando bombear o pouco que restara, exauria a si mesmo.
Jean Baptiste ainda emitia ruídos — difíceis de ser ouvidos através da roupa de astronauta — seu ritmo fez o médico imaginar que talvez fossem orações.
Provavelmente eram, decidiu. Destituída não apenas da vida mas também da sanidade, a única coisa que lhe restava eram suas horas infindáveis de oração, a disciplina que regera sua vida, e em sua insanidade ela retornava a essa disciplina porque sua mente não tinha mais para onde ir. A paciente limpou a garganta, tossiu, na verdade, e em seguida murmurou mais claramente. Moudi inclinou a cabeça para ouvir.
— ...perdoai as nossas ofensas...
Oh, essa. Sim, essa devia ter sido sua prece favorita.
— Não lute mais, senhora — disse-lhe Moudi. — Sua hora chegou. Não lute mais. Os olhos mexeram. Embora não pudesse mais ver, a freira virou a cabeça e olhou para Moudi. O médico sabia que aquilo era um reflexo mecânico. Cega ou não, anos de prática diziam aos músculos o que fazer. O rosto tinha se virado instintivamente para uma fonte de ruído e os olhos — os músculos ainda funcionavam — focaram na direção do interesse.
— Dr. Moudi? E o senhor? — As palavras saíram lentamente, não completamente claras, mas inteligíveis.
— Sim, irmã. Estou aqui. — Ele tocou automaticamente a mão da freira, e só depois ficou estarrecido. Ela ainda estava lúcida?
— Obrigada por ter... me ajudado. Rezarei por você.
Ela rezaria. Moudi sabia disso. Acariciou a cabeça da freira com uma das mãos enquanto com a outra aumentava o fluxo de morfina. Já bastava. Eles não podiam injetar mais sangue nela para poluí-lo com vírus. Olhou em volta. Os enfermeiros militares estavam sentados a um canto, felizes por deixá-lo cuidar sozinho da paciente. Caminhou até onde estavam e apontou para um deles.
— Chame o diretor... agora.
— Estou indo.
O homem ficou satisfeito em deixar a sala. Moudi contou até dez antes de falar com a freira.
— Luvas novas, por favor.—Levantou as mãos para mostrar que também não gostava de tocar nela. O outro enfermeiro saiu. Moudi calculou que tinha um ou dois minutos.
A bandeja de medicamentos no canto tinha o que ele precisava. Pegou uma injeção de 20cc e introduziu-a no frasco de morfina, puxando o suficiente para encher o cilindro plástico. Retornou à cabeceira da cama, levantou o lençol plástico e procurou por... ali estava. As costas da mão esquerda da paciente.
Pegou sua mão e espetou-a com a agulha, pressionando imediatamente o embolo.
— Para ajudá-la a dormir — disse a ela, afastando-se novamente. Não esperou para ver se ela responderia. A injeção foi jogada na cesta de agulhas infectadas um segundo antes de o enfermeiro retornar com as luvas novas.
— Aqui estão.
Moudi assentiu. Despiu as sobreluvas, jogou-as na cesta apropriada e substituiu-as por um novo par. Voltando à cabeceira da paciente, viu seus olhos azuis se fecharem pela última vez. A tela do monitor de ECG mostrava seu ritmo cardíaco ligeiramente acima de um-quarenta, os picos das linhas mais irregulares do que deveriam, e espaçados irregularmente. Agora era apenas uma questão de tempo. Ela provavelmente estava orando em seu sono, pensou o médico, sonhando preces. Bem, pelo menos ele podia ter certeza de que ela não estava sentindo dor. A morfina estava circulando por seu reduzido supri mento sanguíneo, as moléculas químicas achando seu caminho até o cérebro, encaixando-se em seus receptores e ali liberando dopamina, que diria ao seu sistema nervoso... sim.
O peito da paciente levantou e desceu com uma respiração difícil. Houve uma pausa. Um pequeno espasmo e então a respiração recomeçou, mas irregular agora, e o fluxo de oxigênio para a corrente sanguínea estava diminuindo. O ritmo cardíaco mudou, tornando-se mais rápido. Então a respiração cessou. O coração, tão forte, tão valente, não parou de imediato, pensou o médico com tristeza, admirando essa parte ainda viva de uma pessoa já morta, mas isso não podia durar muito tempo, e com uns poucos traços finais na tela, também ele cessou de funcionar. A máquina de ECG começou a emitir um tom constante de alarme. Moudi esticou a mão para emudecer o alarme.
Virou-se para ver o enfermeiro exibir uma expressão de alívio.
— Já? — perguntou o diretor, chegando na sala e vendo a linha reta e silenciosa na leitura de ECG.
— Coração. Hemorragia interna. — Moudi não precisava dizer mais nada.
— Entendo. Então estamos prontos?
— Correto, doutor.
O diretor fez um gesto para os enfermeiros, que tinham um último trabalho a fazer. Um deles dobrou o lençol plástico ao meio para impedir que pingasse.
O outro desconectou o último tubo intravenoso e os sensores de ECG. Isso foi feito com rapidez, e quando a falecida estava embrulhada como um pedaço de carne no abatedouro, os freios das rodas da cama foram soltos, e os dois soldados empurraram-na até a porta. Eles retornariam para limpar a sala inteiramente e garantir que nada pudesse sobreviver nas paredes, no assoalho, no teto.
Moudi e o diretor seguiram-nos até o Posto, uma sala na mesma área confinada por trás de portas duplas. Aqui havia uma mesa de autópsia feita de aço inoxidável frio e liso. Alinharam a cama de tratamento com a mesa de autópsia, descobriram o corpo e rolaram-no de modo que ficasse de braços sobre o aço, enquanto os médicos observavam do canto, os dois usando aventais cirúrgicos sobre suas roupas protetoras — mais por hábito do que necessidade. Em seguida, os lençóis plásticos foram levantados, seguros pelas bordas para formar um U que permitiu o sangue acumulado derramar-se num recipiente. Cerca de meio litro, avaliaram os médicos. Os lençóis foram carregados cuidadosamente até uma caixa com rodinhas. Os enfermeiros fecharam a caixa e saíram da sala, empurrando a caixa até o incinerador. Ainda que nervosos, não tinham derramado uma gota sequer em qualquer parte.
— Muito bem — o diretor pressionou um botão e a extremidade da mesa foi elevada. Por força do profissionalismo, tocou com a ponta dos dedos a carótida esquerda para certificar-se de que não havia pulsação, e em seguida a direita, onde também não havia nenhuma. Quando o corpo estava num ângulo de vinte graus, ele pegou um bisturi grande e cortou ambas as artérias, juntamente com as paralelas veias jugulares. Puxado para fora do corpo pela gravidade, o sangue jorrou e foi canalizado através de entalhes na mesa; durante vários minutos quatro litros de sangue foram capturados num recipiente plástico. O sangue ficou pálido rápido demais, percebeu Moudi. Momentos antes, a pele estivera púrpura e cheia de manchas. Essas marcas pareceram desaparecer diante de seus olhos, talvez por pura imaginação. Um técnico de laboratório chegou para coletar o recipiente de sangue, que ele colocou num pequeno carrinho de rodas. Ninguém queria carregar uma coisa como aquela, ainda que por uma distância curta.
— Nunca autopsiei uma vítima de Ebola — observou o diretor. Não que essa fosse ser uma autópsia tradicional, com o devido respeito pela humanidade da falecida, a julgar pela forma como o diretor a sangrara como se estivesse sacrificando um carneiro.
Contudo, ainda teriam de ser cuidadosos. Em casos como esse, apenas um par de mãos trabalhava dentro do campo cirúrgico, e Moudi deixaria o diretor fazer isso, enquanto ele realizaria incisões largas. Retratores de aço inoxidável manteriam puxadas para trás as fraldas de pele e músculos. Moudi cuidou disso, os olhos fixos no escapelo nas mãos enluvadas do diretor. Em mais um minuto, o rim direito foi completamente exposto. Aguardaram que os enfermeiros militares voltassem. Um deles colocou uma bandeja na mesa ao lado do cadáver. Moudi ficou nauseado com o que viu em seguida. Um efeito do vírus Ebola e seu processo de doença era romper os tecidos. O rim exposto estava meio liquefeito, e quando o diretor segurou-o para removê-lo, o órgão literalmente se rompeu dividindo-se em dois nacos de gosma marrom. O diretor riu de seu próprio descuido. Ele deveria ter esperado isso, mas se esquecera.
— Não é notável o que acontece aos órgãos?
— Vai acontecer o mesmo com o fígado, mas o baço...
— Sim, eu sei. O baço estará duro como um tijolo. Cuidado com as mãos, Moudi — alertou o diretor.
Pegou um retratar limpo — o instrumento tinha mais a forma de uma pá — para remover os fragmentos restantes do rim. Eles foram para a bandeja. Fez um sinal com a cabeça e o enfermeiro militar levou-o para o laboratório. O rim direito saiu com mais facilidade. Por insistência do diretor, depois que todos os músculos e vasos sanguíneos tinham sido desconectados, ambos os médicos usaram as mãos para removê-lo, e este permanecera razoavelmente intacto — até ser pousado na bandeja. Então o órgão se deformou e partiu ao meio. A única coisa boa nisso era que a fragilidade do tecido não comprometera a integridade de suas luvas duplas. Esse fato não impediu os dois médicos de sentirem um arrepio.
— Aqui! — o diretor fez um sinal para que os enfermeiros se aproximassem.
— Virem o corpo.
Os enfermeiros fizeram isso, um segurando pelos ombros, o outro pelos joelhos, virando o corpo o mais rápido que conseguiram. Isso fez um pouco de sangue e tecido espalhar-se sobre seus aventais cirúrgicos. Os enfermeiros recuaram e se mantiveram o mais afastados que puderam.
— Quero o fígado, o baço e só — disse o diretor a Moudi, olhando para cima.
Ele se virou para os enfermeiros. — Então vocês irão embrulhar o corpo e removê-lo para o incinerador. Em seguida esta sala será desinfetada inteiramente.
Os olhos da irmã Jean Baptiste estavam abertos, tão cegos agora quanto trinta minutos antes. O médico pegou um pano e cobriu o rosto, murmurando uma oração por sua alma, que o diretor ouviu.
— Sim, Moudi, ela está no Paraíso. Agora, podemos prosseguir? — perguntou bruscamente.
O diretor fez a incisão usual em Y para abrir o tórax, profunda e rudemente como antes, puxando as camadas rapidamente, mais um açougueiro que um médico. O que viram ali chocou até mesmo o diretor.
— Como ela viveu tanto desta...? — disse o diretor.
Moudi pensou em seus dias na faculdade de medicina, lembrando de um modelo de plástico em tamanho natural do corpo humano que vira em sua primeira aula de anatomia. Era como se alguém tivesse pego o modelo e derramado nele um balde de um solvente poderoso. Cada órgão exposto estava desfigurado. A área do abdômen era um mar de sangue preto. Tudo que eles tinham injetado, pensou Moudi... nem a metade vazara. Surpreendente.
— Sucção! — comandou o diretor. Um enfermeiro apareceu ao seu lado com um tubo plástico ligado a um aspirador, e o som gerado foi obsceno. O processo levou dez minutos inteiros, com os médicos parados de pé enquanto o enfermeiro movia o tubo do aspirador, como uma faxineira limpando uma casa.
Mais três litros de sangue contaminado, rico em vírus, para o laboratório.
O Corão sagrado ensinava que o corpo era um templo para a vida. Moudi olhou para o corpo da freira, que fora transformado... no quê? Uma fabrica de morte. O diretor aproximou-se novamente da mesa de dissecação e Moudi observou suas mãos descobrirem o fígado, mais cuidadosamente que antes.
Talvez ele tivesse ficado assustado com o sangue na cavidade abdominal. Mais uma vez, veias foram cortadas e o tecido conectivo separado. O diretor pousou seus instrumentos na mesa e, sem ser tão cerimonioso, Moudi enfiou a mão na cavidade para retirar o órgão e colocá-lo na bandeja, que novamente foi removida por um enfermeiro.
— Queria saber por que o comportamento do baço é tão diferente.
Lá embaixo, outros enfermeiros trabalhavam. Uma por uma, as gaiolas de macacos eram levantadas das pilhas arrumadas no depósito. Os verdes africanos tinham sido alimentados, e ainda estavam se recuperando do choque da viagem.
Isso reduzia um pouco sua capacidade de arranhar e morder as mãos enluvadas que moviam as gaiolas. Mas o pânico dos animais retornou assim que chegaram a outra sala. Essa etapa da operação estava sendo executada com dez por vez.
Quando chegavam à sala da morte e as portas eram fechadas, os macacos entendiam. Os mais desafortunados assistiam enquanto uma gaiola por vez era posta numa mesa. A porta de cada gaiola era aberta, dando passagem para um bastão com um aro de metal na extremidade. O aro envolvia a cabeça do macaco e era apertado com força, geralmente provocando o som débil de um pescoço quebrado. Em todos os casos os animais estremeciam e em seguida ficavam inertes, geralmente com os olhos abertos e ultrajados pelo seu assassinato. O mesmo instrumento puxava o animal morto. E quando o aro afrouxava, o corpo era jogado para um soldado, que o levava para a sala seguinte. Os outros viam quando os soldados se aproximavam deles e guinchavam seus protestos, mas as gaiolas eram pequenas demais para que tivessem espaço para se esquivar. Quando muito, um conseguia interpor um braço no aro, apenas para tê-lo quebrado também. Inteligentes o bastante para compreender o que lhes estava acontecendo, os verdes africanos sentiam uma sensação parecida com a de estar parado numa árvore solitária na savana, vendo um leopardo escalá-la, aproximando-se mais e mais... e nada podiam fazer senão guinchar. O ruído incomodava os soldados, mas não muito.
Na sala seguinte, cinco equipes de enfermeiros militares trabalhavam em cinco mesas separadas. Grampos afixados no pescoço e na base do rabo ajudavam a manter os corpos dos macacos no lugar. Um soldado, usando uma faca curva, fazia um corte ao longo da coluna vertebral, e então o outro fazia um corte perpendicular, abrindo o couro para expor a parte interna das costas. O primeiro removia os rins e os passava para o segundo, e enquanto os pequenos órgãos iam para um recipiente especial, ele soltava o corpo da mesa, jogando-o num barril de plástico para incineração posterior. Enquanto o primeiro pegava novamente sua faca, o segundo afixava o corpo do macaco seguinte no lugar O tempo total do procedimento durava cerca de quatro minutos. Em noventa minutos, todos os verdes africanos estavam mortos. Havia uma certa urgência.
Toda a matéria-prima de sua missão era biológica, e todas estavam sujeitas a procedimentos biológicos. A equipe de matança entregava seu produto através de janelas duplas nas paredes que davam para o Laboratório Aquecido.
Ali os procedimentos eram diferentes. Cada homem na sala maior usava uma roupa de plástico azul. Cada movimento era lento e cuidadoso. Eles tinham sido bem treinados e instruídos, e as poucas lacunas de informação haviam sido recentemente preenchidas — em cada detalhe revoltante — pelos enfermeiros militares selecionados para cuidar da mulher ocidental no andar de cima.
Quando alguma coisa era transportada de uma sala para outra, isso era anunciado, e as pessoas abriam caminho.
O sangue estava num tanque aquecido, com ar borbulhando através dele.
Dois baldes enormes cheios de rins símios foram levados para uma máquina de moer — na verdade não muito diferente do tipo de processador de alimentos encontrado nas cozinhas bem equipadas. A máquina reduzia os rins a uma massa, que em seguida era movida de uma mesa para outra e depositada em bandejas, juntamente com alguns nutrientes líquidos. Ocorreu a várias das pessoas no laboratório que sua atividade ali parecia muito com o trabalho numa padaria. O sangue era despejado generosamente nas bandejas. Cerca de metade dele era usado dessa forma. O restante, dividido em recipientes plásticos, ia para um freezer de baixíssima temperatura resfriado por nitrogênio líquido. O Laboratório Aquecido era mantido quente e úmido, muito parecido com a floresta. A luz das lâmpadas fluorescentes era pouco brilhante e filtrada para restringira emissão de radiação ultravioleta. Os vírus não gostavam de UV.
Precisavam do ambiente certo no qual crescer, e os rins dos macacos verdes africanos eram justamente isso, principalmente quando acrescidos de nutrientes, temperatura adequada, umidade correta e uma pitada de ódio.
— Descobriu muita coisa? — perguntou Daryaei.
— Sim. E através de sua própria imprensa, de seus próprios jornalistas — explicou Badrayn.
— São todos espiões! — objetou o mula.
— Muitos pensam assim — disse Ali com um sorriso. — Mas na verdade não são. Eles são... como é possível explicá-los? São como mensageiros medievais.
Veem o que veem e contam o que veem. Não são leais a ninguém com exceção de si mesmos e sua profissão. Sim, é verdade que são espiões, mas eles espiam todos, principalmente seu próprio povo. É loucura, admito, mas é verdade.
— Acreditam em tudo? — perguntou o anfitrião. Ele tinha dificuldade em aceitar isso.
Mais um sorriso.
— Tudo indica que sim. Oh, sim, os jornalistas americanos são realmente devotados a Israel, mas até mesmo essa fidelidade tem limites. Levei anos para compreender. Como cães, podem atacar qualquer um, morder qualquer mão, por mais gentil que seja. Eles procuram, veem e contam. Graças a isso, pude aprender tudo a respeito desse Ryan: sua casa, sua família, as escolas frequentadas por seus filhos, o número do escritório no qual sua mulher trabalha... tudo.
— E se parte da informação for mentirosa? — perguntou Daryaei, desconfiado. Por mais que lidasse com o Ocidente, a natureza de seus repórteres era simplesmente estrangeira demais para que ele entendesse por completo.
— Tudo pode ser verificado facilmente. O lugar de trabalho da mulher dele, por exemplo. Tenho certeza de que há fiéis na equipe do hospital. É apenas uma questão de abordar um deles e fazer perguntas inofensivas. Sua casa também deve ser muito bem protegida. O mesmo é válido quanto aos seus filhos. É um paradoxo que essas pessoas vivem. Elas precisam de alguma proteção quando estão em trânsito, mas essa proteção pode ser vista, e isso indica onde elas estão, e quem são. Graças às informações que obtive, sabemos até mesmo por onde começar a procurar.
Badrayn estava tentando tecer comentários curtos e simples. Não porque ele fosse idiota — com toda certeza não era —, mas com toda certeza era insular.
Uma vantagem concedida por todos os seus anos no Líbano tinha sido que Ali fora exposto a muita coisa e aprendera mais ainda. Acima de tudo, aprendera que precisaria de um patrocinador, e Mahmoud Haji Daryaei era um ótimo candidato. O aiatolá tinha planos. Precisava de gente. E por um motivo ou por outro, não confiava em seus próprios homens. Badrayn não fazia ideia do motivo, mas qualquer que fosse trouxera-lhe boa sorte. E a sorte não devia ser questionada.
— Qual é o nível de proteção dessas pessoas? — perguntou o mula, sua mão cofiando a barba. O homem não se barbeava havia 24 horas.
— Muito alto — respondeu Badrayn, notando alguma coisa estranha na questão e arquivando esse fato na mente. — As agências policiais americanas são muito eficazes. O problema do crime na América não tem nenhuma relação com sua polícia. Eles simplesmente não sabem o que fazer depois que os criminosos são presos. E quanto à segurança presidencial... — Ali recostou-se para espreguiçar. — Ele estará cercado por um grupo de atiradores muito bem treinado, motivado e fiel. — Badrayn acrescentou essas palavras ao seu discurso ensaiado. — Fora isso, proteção é proteção. Os procedimentos são sempre os mesmos. Não tenho nada a ensinar-lhe sobre isso.
— E quanto à vulnerabilidade dos EUA?
— Intensa. O governo está imerso no caos. Mas você também sabe disso.
— São difíceis de avaliar, esses americanos... — considerou Daryaei.
— Seu poderio militar é formidável. Sua vontade política é imprevisível, como alguém que nós dois... conhecíamos descobriu, para seu azar. Subestimá-los é um erro. Os EUA são como um leão adormecido, que precisa ser tratado com cuidado e respeito.
— Como se derrota um leão? — Essa pergunta deixou Badrayn hesitante por um ou dois segundos. Certa vez, na Tanzânia — onde prestara consultoria ao governo sobre como lidar com insurgentes —, estivera na floresta um dia inteiro, viajando com um coronel do serviço de informações desse país. Ali avistaram um leão velho que conseguira matar sozinho talvez um animal aleijado. Então um bando de hienas apareceu atrás do leão. Vendo isso, o coronel tanzaniano parou o jipe Zil de fabricação soviética, passou um par de binóculos para Badrayn, e lhe disse para observar e aprender uma lição sobre insurgentes e suas capacidades. Foi uma visão que ele jamais esqueceria. O leão era muito grande, e embora velho e mais lento que em seus dias de glória, era ainda uma criatura de inegável majestade. As hienas eram criaturas menores, parecidas com cães, movendo-se num trotar estranho mas ágil, que era muito eficiente. Elas se reuniram primeiro num pequeno grupo, a vinte metros do leão, que estava tentando se alimentar do animal que matara. E então as hienas se moveram, delineando um círculo em torno do leão. Sempre que uma hiena atrás dele avançava para morder-lhe as patas traseiras, o leão virava-se, rugia e avançava alguns metros, apenas para que outra o atacasse por trás.
Individualmente, as hienas não teriam mais chance contra esse rei da floresta do que um homem armado com uma faca contra um soldado com uma metralhadora. Contudo, por mais que tentasse, o leão não conseguia proteger sua caça — e nem a si próprio. Em apenas cinco minutos o leão estava na defensiva, incapaz de avançar contra as hienas, porque sempre havia uma às suas costas, mordendo-lhe os bagos, forçando-o a correr de uma forma pateticamente cômica, arrastando o traseiro na grama enquanto tentava manobrar. E por fim o leão simplesmente fugiu, sem emitir um rugido, sem olhar para trás, enquanto as hienas apoderavam-se da caça, emitindo seus latidos estranhos, escarninhos, como se achando graça do fato de terem usurpado a caça do rei dos animais. E assim o poderoso fora derrotado pelo fraco. O leão ficaria cada vez mais velho e fraco até o dia em que seria incapaz de se defender de um ataque de hienas interessadas em sua própria carne. Cedo ou tarde, seu amigo tanzaniano dissera-lhe, as hienas devoravam todos eles.
Badrayn fitou novamente os olhos do seu anfitrião.
— Pode ser feito.
20
Novas Administrações
Havia trinta deles na Sala Leste — todos homens, para sua surpresa —, acompanhados das esposas. Enquanto entrava na recepção, Jack observou os rostos. Alguns o agradaram. Outros não. Aqueles que agradaram Jack estavam tão assustados quanto ele. Foram os confiantes com sorrisos largos que preocuparam o presidente.
Qual era a forma certa de agir com eles? Nem mesmo Arnie sabia a resposta, embora tivesse aventado diversas estratégias. Ser muito forte e intimidá-los? Claro, pensou Ryan, e amanhã os jornais diriam que ele estava tentando ser o rei Jack I. Demonstrar absoluta tranquilidade? Então ele seria considerado um maricás incapaz de ocupar apropriadamente uma posição de liderança. Ryan estava aprendendo a temer a mídia. Não tinha sido tão ruim antes. Como uma abelha-operária, ele fora largamente ignorado. Mesmo como Consultor da Segurança Nacional de Durling, Jack fora considerado um boneco de ventríloquo. Mas agora a situação era bem diferente, e não havia nada que ele dissesse que não poderia ser distorcido em alguma coisa que o ouvinte quisesse ouvi-lo dizer. Washington havia muito perdera o talento para a objetividade. Aquilo era política, e política era ideologia, e ideologia dizia respeito a preconceitos pessoais e não à busca pela verdade. Onde todas essas pessoas tinham aprendido que a verdade não tinha valor?
O problema de Ryan era que ele realmente não possuía uma filosofia política. Ele acreditava em coisas que funcionavam, que produziam os resultados prometidos e consertavam tudo que estava quebrado. Se essas coisas tendiam para um lado político ou para outro era menos importante que seus efeitos. Boas ideias funcionavam, ainda que algumas delas pudessem parecer malucas. As ideias ruins não funcionavam, ainda que algumas parecessem sensatas. Mas Washington não pensava dessa forma. Ideologias eram fatos nesta cidade, e se as ideologias não funcionassem, as pessoas negariam isso.
Por outro lado, se as filosofias das quais essas pessoas discordassem, elas jamais admitiriam isso, porque, para eles, admitir seus erros era mais humilhante do que ser flagrados em qualquer espécie de má conduta pessoal.
Eles preferiam negar Deus a negar suas ideias. A política era a única arena conhecida pelo homem na qual as pessoas assumiam grandes riscos sem se importar realmente com as consequências no mundo real, e na qual o mundo real era muito menos importante do que qualquer fantasia de direita, esquerda ou centro nutrida pelos habitantes desta cidade de mármore.
Jack olhou para os rostos, imaginando que bagagem política eles trariam com suas maletas. Talvez fosse uma fraqueza sua o fato de não entender como tudo aquilo funcionava, mas, da sua parte, ele vivera uma vida na qual os enganos faziam pessoas de verdade morrer — ou, no caso de Cathy, ficarem cegas. Para Jack, as vítimas eram pessoas com nomes e rostos reais. Para Cathy, eram pessoas cujos rostos ela tocara numa sala de cirurgia. Para as figuras políticas, as pessoas eram abstrações muito mais distantes do que as ideias que defendiam fervorosamente.
— É como estar num zoológico — comentou Caroline Ryan, FLOTUS, CIRURGIÃ, por trás de um sorriso encantador. Ela viera correndo para casa — o helicóptero ajudara — bem em tempo de trocar de roupa para um novo vestido branco de seda e colocar o colar de ouro que Jack dera-lhe no Natal... algumas semanas, lembrou Jack, antes de os terroristas terem tentado matá-la na ponte da Rota 50, em Annapolis.
— Com gaiolas de ouro — replicou seu marido, POTUS, ESPADACHIM, exibindo um sorriso também tão falso quanto uma nota de três dólares.
— E então, o que somos? — perguntou Cathy enquanto os senadores substitutos aplaudiam sua entrada. — Leão e Leoa? Touro e vaca? Pavão e pavoa? Ou dois coelhinhos de laboratório esperando que derramem xampu em seus olhos?
— Depende de quem está vigiando quem, baby — Ryan estava segurando a mão da esposa, e juntos caminharam até o microfone.
— Senhoras e senhores, bem-vindos a Washington. — Ryan precisou fazer uma pausa para mais uma salva de aplausos. Essa era mais uma coisa que teria de aprender. As pessoas aplaudiam o presidente por qualquer bobagem que ele dissesse. Tão certo quanto seu banheiro tinha uma porta. Enfiou a mão no bolso e pegou algumas fichas retangulares, o meio sempre usado pelos presidentes para anotar os tópicos de seus discursos. As fichas tinham sido preparadas por Callie Weston, e a escrita à mão era grande o suficiente para ele dispensar seus óculos de leitura. Mesmo assim ele provavelmente viria a sentir dor de cabeça.
Ele sempre tinha uma depois de um dia em que tinha precisado ler muito.
— Nosso país tem necessidades, e elas não são pequenas. Vocês estão aqui pela mesma razão que eu. Foram nomeados como substitutos. A espera há trabalhos que muitos de vocês jamais esperaram, e que alguns talvez nem quisessem. — Isso era pura bajulação, mas do tipo que eles queriam ouvir; mais precisamente, do tipo que eles queriam que fossem vistos ouvindo diante das câmeras da C-SPAN nos cantos da sala. Talvez houvesse três pessoas ali que não eram políticos de carreira, e uma delas era um governador que fazia a dança do você-eu com seu vice-governador e assim viera a Washington cumprir o mandato de um senador de outro partido. Essa era uma bola de curva sobre a qual os jornais estavam começando a escrever. A polaridade do Senado mudaria como resultado da queda do 747, porque o controle de 32 das câmaras estaduais da América não estava em consonância com a formação do Congresso.
— Isso é bom — disse-lhes Ryan. — Há uma tradição longa e honrada de cidadãos a serviço de sua nação, uma tradição que remonta pelo menos até os tempos de Cincinato, o cidadão romano que mais de uma vez respondeu o chamado de sua nação para depois retornar à sua fazenda, família e trabalho.
Uma de nossas maiores cidades recebeu seu nome em honra desse cavalheiro — acrescentou Jack, assentindo para um novo senador de Ohio que morava em Dayton, perto de Cincinnati.
Os senhores não estariam aqui se não compreendessem quais são muitas dessas necessidades. Mas minha verdadeira mensagem para os senhores hoje é que precisamos trabalhar juntos. Nós e nosso país não temos tempo para rixas e brigas.— Ele teve de fazer outra pausa para os aplausos. Ainda que incomodado com o atraso, Ryan conseguiu olhar para cima com um sorriso de contentamento e balançou a cabeça.
Senadores, os senhores descobrirão em mim um homem fácil com quem trabalhar. Minha porta está sempre aberta, eu sei atender a um telefone, e minhas ruas têm mão dupla. Conversarei a respeito de qualquer assunto. Darei ouvidos a qualquer ponto de vista. Não há regras além da Constituição a qual jurei preservar, proteger e defender.
As pessoas lá de onde vocês vieram, lá de depois da Interestadual 495, esperam que todos nós façamos nossos trabalhos. Eles não esperam que sejamos reeleitos. Eles esperam que trabalhemos para eles com o máximo de nossas habilidades. Nós trabalhamos para eles. Eles não trabalham para nós.
Temos um compromisso para com eles. Robert E. Lee disse certa vez que compromisso é a palavra mais sublime de nossa língua. É ainda mais sublime e importante agora, porque nenhum de nós foi eleito para os nossos cargos.
Representamos as pessoas de uma democracia, mas estamos aqui de uma forma que não deveria ter acontecido. Quão maior, portanto, deve ser o nosso compromisso pessoal em cumprir nossos papéis da melhor maneira possível?
Mais aplausos.
— Não há confiança maior do que a que foi depositada em nós. Não somos nobres medievais abençoados por nascimento com alta posição e grande poder.
Somos os servos, não os mestres, daqueles cujo consentimento conferiu-nos o poder que possuímos. Seguimos os passos de gigantes. Henry Clay, Daniel Webster, John Calhoun e muitos outros congressistas que os senhores devem tomar como modelos. Como está a União? Dizem que Webster perguntou isso de sua sepultura. Vamos responder. A União está em nossas mãos. Lincoln chamou a América de a última e melhor esperança da Humanidade; nos últimos vinte anos a América vem confirmando esse julgamento de nosso 16°
presidente. A América ainda é um experimento, uma ideia coletiva, um conjunto de regras chamado Constituição à qual todos nós, dentro e fora dos limites de Washington, juramos fidelidade. O que nos torna especial é esse pequeno documento. Os Estados Unidos da América não são uma faixa de terra e pedra que separa dois oceanos. A América é uma ideia e um conjunto de regras que todos seguimos. É isso que nos torna diferentes. Nós nesta sala podemos garantir que o país que passaremos para nossos sucessores será o mesmo que nos foi confiado, talvez um pouco melhor. E agora... — Ryan virou-se para o juiz da Suprema Corte de Apelação dos Estados Unidos para o Quarto Circuito, o juiz de apelação mais velho da nação, vindo de Richmond — ... é hora de vocês se juntarem ao time.
O juiz William Staunton caminhou até o microfone. Cada esposa senatorial segurava uma Bíblia, e cada senador nomeado colocou a mão esquerda sobre ela enquanto levantava a outra.
— Eu... diga seu nome...
Enquanto Ryan observava, os novos senadores fizeram seus juramentos solenes. Pelo menos pareceu solene. Alguns dos novos legisladores beijaram as bíblias, por convicção religiosa pessoal ou porque estavam perto das câmeras.
Em seguida beijaram as esposas, e a maioria delas sorriu. Houve uma parada coletiva para respirar, e então todos olharam uns para os outros, e a equipe de empregados da Casa Branca entrou na sala com bebidas assim que as câmeras foram desligadas, porque era agora que o trabalho de verdade começaria. Ryan pegou uma garrafa de Perrier e entrou no meio da sala, sorrindo a despeito de sua fadiga e do incômodo causado por seus deveres políticos.
As fotos chegaram mais uma vez. A segurança no Aeroporto de Cartum aumentara, e desta vez espiões americanos tinham batido fotos das pessoas descendo as escadas. Todos haviam ficado surpresos com o fato de a imprensa não ter estado presente. Uma fileira de carros oficiais — provavelmente a frota inteira dessa nação pobre — conduzira os visitantes para fora do aeroporto. No fim do processo, o 737 seguira novamente para leste e os espiões haviam voltado para a embaixada. Graças a uma informação oferecida pelo principal contato da estação no Ministério das Relações Exteriores do Sudão, dois outros espiões estavam acampados diante da residência designada aos generais iraquianos. Depois que bateram fotos ali, esses agentes também voltaram para a embaixada. No quarto escuro da embaixada, as fotos tinham sido reveladas, ampliadas e transmitidas por fax via satélite. Em Langley, Bert Vasco identificou cada rosto, assistido por um par de agentes da CIA e alguns arquivos de fotos.
— É isso mesmo — pronunciou o oficial do Departamento de Estado. — Essa é a liderança militar inteira do Iraque. Mas no grupo não há nenhum civil do Partido Baath.
— Então sabemos quem são os cordeiros para o sacrifício. — Essa observação veio de Ed Foley.
— Sim — respondeu Mary, assentindo com a cabeça. — E isso confere aos oficiais remanescentes uma oportunidade de prendê-los, julgá-los e mostrar lealdade ao novo regime. Merda — concluiu. — Foi tudo rápido demais.
O chefe de estação em Riad estava todo vestido sem lugar nenhum para ir.
O mesmo podia ser dito de alguns diplomatas sauditas que tinham montado rapidamente um programa de incentivos fiscais para o novo regime iraquiano.
Isso agora seria desnecessário.
Ed Foley, o novo diretor da CIA nomeado, balançou a cabeça demonstrando admiração.
— Não achei que fossem capazes de fazer isso. Matar o nosso amigo, tudo bem, mas evacuar a liderança com tanta rapidez e eficiência, quem imaginaria?
— Tirou as palavras da minha boca, Sr. Foley — concordou Vasco. — Alguém deve ter agenciado o acordo... mas quem?
— Ponha suas abelhas-operárias para zumbir — disse Ed Foley aos seus assessores com um sorriso amargo. — Tudo que puderem descobrir, e rápido.
Parecia um tipo de ensopado tenebroso o sangue humano enegrecido e a massa marrom-avermelhada de rins de macaco, parados ali, marinhando em bandejas rasas de vidro sob a luz débil de lâmpadas envolvidas em filtros para os raios ultravioleta não prejudicarem os vírus. Não havia muito a fazer a essa altura além de monitorar as condições ambientais, e instrumentos análogos simples cuidavam disso. Moudi e o diretor entraram, usando suas roupas de proteção, para checar pessoalmente as câmaras de cultura seladas. Dois terços do sangue de Jean Baptiste estavam agora em congelamento profundo para o caso de alguma coisa sair errado com seu primeiro esforço em reproduzir o vírus Ebola Mayinga. Eles também checaram os sistemas de ventilação de estágios múltiplos da sala, porque agora o prédio era literalmente urna fábrica de morte. As precauções tinham sido duplicadas. Nesta sala lutava-se para conceder ao vírus um lugar saudável para se multiplicar, mas logo depois da porta os enfermeiros militares borrifavam cada milímetro quadrado para garantir que o vírus se multiplicasse apenas nas câmaras. Portanto, o vírus precisava também ser isolado e protegido do desinfetante. O ar injetado nas câmaras de cultura precisava ser filtrado cuidadosamente para que, em seu esforço em permanecer vivas, as pessoas no prédio não matassem aquilo que poderia matá-los caso cometessem algum tipo de erro.
— Então realmente acha que esta cepa pode ser transmitida pelo ar?
— Como você sabe, a cepa Ebola Zaire Mayinga recebeu esse nome em homenagem a uma freira que foi infectada a despeito de todas as medidas protetoras convencionais. A Paciente Dois... — decidira ser mais fácil não falar seu nome —...era uma enfermeira habilidosa com experiência com o Ebola. Ela não aplicou injeções e não sabia como havia contraído o vírus. Portanto, sim, acredito que a contaminação aérea seja possível.
— Isso seria muito útil, Moudi — sussurrou o diretor, tão baixo que o médico mais jovem teve dificuldade em ouvi-lo. Ainda assim, seria impossível não escutar. O pensamento, por si só, já era muito alto. O homem mais velho acrescentou: — Podemos testar isso.
Isso seria mais fácil para ele, pensou Moudi. Pelo menos ele não conhecia aquelas pessoas pelo nome. Ponderou se estava certo sobre o vírus. Seria possível que a Paciente Dois tivesse cometido um erro e depois esquecido? Mas ele examinara seu corpo à procura de perfurações, e a irmã Maria Magdalena também, e não era possível que ela tivesse lambido secreções do jovem Benedict Mkusa, era? Então o que significava isso? Que a cepa Mayinga sobrevivia no ar por um breve período de tempo, e que eles tinham em mãos uma arma potencial mais poderosa que qualquer uma inventada pelo homem, pior que armas nucleares, muito pior que armas químicas. Eles tinham uma arma que poderia se reproduzir e ser disseminada por suas próprias vítimas, uma em uma até que a epidemia acabasse por conta própria. Ela acabaria por conta própria. Isso acontecia com todas as epidemias. Ela acabaria por conta própria, não acabaria?
Não acabaria?
Moudi levantou a mão para cocar o queixo, um gesto contemplativo detido por sua máscara plástica. Ele não sabia a resposta para essa pergunta. No Zaire e em outros países africanos afligidos por essa doença odiosa, todas as epidemias, por mais assustadoras que fossem, acabavam se extinguindo sozinhas — apesar das condições ambientais perfeitas para a proteção e sustentação dos vírus. Mas do outro lado dessa equação estava a natureza primitiva do Zaire, as péssimas estradas e a ausência de meios de transporte eficazes. As pessoas morriam antes de chegar muito longe. O Ebola dizimava aldeias, mas pouco mais que isso. Entretanto, ninguém sabia realmente o que aconteceria num país desenvolvido. Teoricamente, uma pessoa poderia infectar todos os passageiros de um avião, de um voo internacional para Kennedy, por exemplo. Os viajantes deixariam um avião e correriam para outros. Talvez eles fossem capazes de disseminar a doença através de tosses e espirros imediatamente, ou talvez não. Isso não importava, na verdade. Muitos deles voariam de novo em alguns dias, imaginando que estavam gripados, e então estariam capacitados a propagar o vírus e, portanto, a infectar mais pessoas.
O padrão de disseminação de uma epidemia era mais uma questão de tempo e oportunidade do que qualquer outra coisa. Quanto mais rapidamente ela se afastava do centro focal, e quanto mais rápido os instrumentos de sua viagem, mais longe a doença espalhava-se lateralmente através de uma população. Havia modelos matemáticos, mas eram absolutamente teóricos, dependentes de uma miríade de variáveis individuais, cada uma das quais podendo afetar a equação de ameaça inteira em pelo menos uma ordem de magnitude. Era correto afirmar que, com o tempo, a epidemia se extinguiria sozinha. A questão era quanto tempo. Isso determinaria o número de pessoas infectadas antes de as medidas de proteção surtirem efeito. Um por cento de invasão de uma sociedade, ou dez, cinquenta por cento? Os EUA não eram uma sociedade provinciana. Todo mundo interagia com todo mundo. Um vírus transmitido pelo ar com um período de incubação de três dias... Moudi não conhecia um precedente. A epidemia mais mortal de Ebola Zaire em tempos recentes, em Kikwit, ceifara menos de trezentas vidas, mas começara com um lenhador desafortunado, depois sua família, depois seus vizinhos. O truque, então, se você quisesse gerar uma epidemia mais ampla, seria aumentar o número de casos índice. Se isso fosse possível, o desabrochar inicial do Ebola Zaire Mayinga seria tão grande a ponto de invalidar as medidas de controle convencionais. Ele não se espalharia de um homem e uma família, mas de centenas de indivíduos e famílias... ou milhares? Em seguida, o próximo salto de geração poderia envolver centenas ou milhares de pessoas. A essa altura, os americanos perceberiam que alguma coisa ruim estava à solta, mas ainda haveria tempo para mais um salto de geração, e esse seria de uma ordem de magnitude ainda maior, talvez na casa dos milhões. E nesse momento as instalações médicas estariam sobrecarregadas...
... e não haveria como deter a doença. Ninguém sabia quais seriam as consequências possíveis de uma infecção em massa deliberada numa sociedade altamente móvel. As implicações podiam ser de escala global. Mas provavelmente não. Quase certamente não, julgou Moudi, baixando os olhos para as bandejas de vidro com a cultura viral por detrás de uma parede grossa de vidro, através do plástico de sua máscara. A primeira geração desta doença viera de um portador desconhecido e matara um menininho. A segunda geração fizera apenas uma vítima, devido à sua própria competência como médico. A terceira geração cresceria diante de seus olhos. Impossível determinar o quanto ela se disseminaria, mas as gerações Quatro, Cinco, Seis e talvez até mesmo Sete determinariam o destino de um país inteiro — um país inimigo do seu.
Agora estava mais fácil. Jean Baptiste tivera um rosto, voz e vida que tocara a sua. Ele não podia cometer mais esse erro. Ela fora uma infiel, mas uma mulher correta, e estava agora com Alá, porque Alá era misericordioso.
Ele rezaria por sua alma, e decerto Alá escutaria suas preces. Poucos nos EUA ou em outra parte do mundo seriam tão virtuosos quanto aquela mulher, e ele sabia que os americanos odiavam seu país e condenavam sua fé religiosa. Eles tinham nomes e rostos, claro, mas Moudi não os vira e jamais os veria, e estavam todos a milhares de quilômetros de distância. Qualquer sentimento por eles era tão fácil de desligar quanto um televisor.
— Sim — concordou Moudi. — Será fácil testar o vírus.
— Entendam — disse George Winston a um grupo de três novos senadores —, se o governo federal fabricasse carros, uma picape Chevy custaria oitenta mil dólares e teria de parar a cada dez quarteirões para encher o tanque. Vocês entendem de negócios. Eu também. Podemos fazer melhor.
— O governo é realmente tão ineficaz? — perguntou o senador (alfabeticamente) sênior, de Connecticut.
— Posso mostrar-lhes as cifras de produtividade comparativa. Se Detroit procedesse da mesma forma, estaríamos todos dirigindo carros japoneses — replicou Winston, cutucando o peito do homem com o dedo e lembrando a si mesmo que precisava se livrar de seu Mercedes 500SEL, ou pelo menos mantê-lo na garagem por um tempo.
— E o mesmo que querer patrulhar o leste de Los Angeles com apenas um carro policial — estava dizendo Tony Bretano a outros cinco, dois deles da Califórnia. — Eu não disponho de forças para cobrir um grande conflito — explicou aos novatos e suas esposas. — E nós devemos... pelo menos no papel... cobrir dois conflitos ao mesmo tempo, mais uma missão de paz em algum outro lugar. Certo? O que preciso na Defesa é de uma chance para reconfigurar nossas forças de modo que os atiradores componham a parte mais importante, e que o restante do contingente confira-lhes apoio, não o contrário. Contadores e advogados são úteis, mas já temos muitos deles no Tesouro e na Justiça. Meu lado do governo é o lado policial, e não temos tiras suficientes nas ruas.
— Mas como pagaremos isso? — perguntou o senador do Colorado, o mais jovem deles. O senador mais velho do estado das montanhas Rochosas estava em uma campanha de levantamento de fundos.
— O Pentágono não é um cabide de empregos. Precisamos lembrar disso.
Semana que vem terei em mãos uma avaliação completa do que precisamos, e depois irei ao Capitólio, e juntos descobriremos como fazer isso acontecer ao custo mais baixo possível.
— Está vendo o que foi que eu disse? — perguntou calmamente Arnie van Damm, passando por trás de Ryan. — Deixe que façam seu trabalho. Tudo que você tem a fazer é permanecer com uma aparência satisfeita.
— O que o senhor disse estava correto, presidente — garantiu o novo senador de Ohio, bebericando um bourbon com água, agora que as câmeras estavam desligadas. — Sabe, quando eu estava na escola fiz uma pequena pesquisa sobre Cincinato, e...
— Bem, tudo que precisamos é lembrar de colocar o país em primeiro lugar — disse-lhe Jack.
— Como pretende conciliar seu trabalho com... Ainda está operando? — perguntou a esposa do senador de Wisconsin.
— E ensinando, o que é ainda mais importante — disse Cathy, meneando a cabeça e desejando ter ficado no quarto estudando os casos de seus pacientes.
Bem, ela poderia deixar para fazer isso no dia seguinte, durante o trajeto de helicóptero. — Jamais deixarei de fazer meu trabalho. Restituo a visão às pessoas cegas. De vez em quando eu mesma tiro os curativos, e a expressão em seus rostos é a melhor coisa no mundo. A melhor — repetiu.
— Melhor que eu, benzinho? — perguntou Jack, envolvendo o ombro da esposa com seu braço. Parecia estar funcionando, pensou. Seja encantador, Arnie e Callie tinham lhe dito.
O processo já começara. O coronel designado para proteger os mulas seguira-os até a mesquita, onde, comovido com o momento, orara com eles. No final da devoção, o mula mais velho falara com ele, calma e educadamente, comentando uma passagem predileta no Corão, de modo a estabelecer algum terreno comum. O momento despertou no coronel a lembrança de sua juventude com o pai, homem devoto e honrado. Era o procedimento usual dos sacerdotes ao lidar com pessoas, qualquer que fosse sua terra ou cultura. Fazê-las falar, interpretar suas palavras, e escolher o caminho apropriado para prosseguir a conversa. O mula era membro do clero iraniano havia mais de quarenta anos, e vinha aconselhando pessoas sobre sua fé e problemas todo esse tempo; assim, não teve a menor dificuldade em estabelecer uma identificação com seu captor, que hipoteticamente deveria matar a ele e aos seus quatro colegas caso recebesse ordens. Mas, ao optar por um homem comprovadamente fiel, os generais fugitivos tinham escolhido com sabedoria demais, porque homens que demonstram fidelidade verdadeira são homens de princípios e, como tais, os mais vulneráveis a ideias melhores que aquelas às quais aderiram. Eles não seriam um obstáculo real. O Islã era uma religião com uma história longa e honrada, atributos que faltavam ao regime moribundo ao qual o coronel jurara defender: — Deve ter sido muito duro lutar nos pântanos — disse-lhe o mula alguns minutos depois, à medida que a conversa passou a abordar as relações entre os dois países islâmicos.
— A guerra é maligna. Nunca senti prazer em matar — admitiu o coronel.
A situação lembrava muito um católico no confessionário. De repente, os olhos do homem desmancharam-se em lágrimas e ele começou a relatar algumas das coisas que fizera. Podia perceber agora que, embora não lhe desse prazer, a matança empedernira seu coração até ele não poder mais distinguir o inocente do culpado, o justo do corrupto. Ele passara a fazer apenas o que lhe mandavam...porque lhe tinham mandado, não porque fosse a coisa certa.
Percebia isso agora.
— O homem cai muitas vezes, mas através das palavras do profeta sempre podemos encontrar nosso caminho de volta ao Deus misericordioso. Os homens esquecem seus deveres, mas Alá jamais esquece os seus. — O mula tocou o braço do oficial. — Acho que suas preces de hoje ainda não acabaram. Juntos rezaremos a Alá, e juntos encontraremos paz para a sua alma.
Depois disso tudo ficou muito fácil. Ao descobrir que os generais estavam deixando o país, o coronel teve dois bons motivos para cooperar. Ele não tinha vontade de morrer. Estava disposto a seguir a vontade de seu Deus para permanecer vivo e servi-lo. Para demonstrar sua devoção, reuniu duas companhias de soldados para se encontrarem com os mulas e ouvir novas ordens. Foi muito fácil para os soldados. Tildo que tinham a fazer era seguir as ordens de seus oficiais. Fazer qualquer outra coisa era um pensamento que jamais lhes ocorria.
Ao nascer do sol em Bagdá as portas de muitos casarões foram arrombadas. Alguns ocupantes foram encontrados acordados. Outros estavam entorpecidos pelo álcool. Houve quem estivesse fazendo malas para partir e tentar encontrar um lugar para ir e uma forma de chegar lá. Todos estavam um pouco atrasados em sua compreensão do que acontecia ao seu redor, num lugar onde um único erro podia ser a diferença entre vida próspera e morte violenta.
Poucos resistiram, e o homem que chegou mais perto do sucesso foi praticamente cortado ao meio pela rajada de AK-47, juntamente com sua esposa. A maioria foi conduzida com os pés descalços de suas casas para caminhões, cabeças baixas, olhos na calçada. Sabiam perfeitamente qual seria o desfecho de seu drama.
Essas redes táticas de rádio não eram codificadas, e débeis sinais VHF
estavam sendo monitorados, desta vez por STORM TRACK, a estação mais próxima de Bagdá. Nomes eram falados, mais de uma vez em todos os casos, conforme as equipes de escuta reportavam aos seus despachantes, que facilitavam a vida para as equipes ELINT próximas à fronteira na cidade militar Rei Khalid. Os oficiais de observação ligaram para seus superiores, e despachos de prioridade CRITICA foram emitidos via satélite.
Ryan acabara de conduzir o último dos novos senadores até a porta quando Andréa Price se aproximou.
— Meus sapatos estão me matando, e tenho uma operação marcada para... — Cathy parou de falar.
— Tráfego FLASH chegando, senhor.
— Iraque? — questionou Jack.
— Sim, presidente.
O presidente beijou a esposa.
— Voltarei daqui a pouco.
Cathy não teve escolha senão assentir e caminhar até o elevador, onde um dos serventes estava à espera para conduzir o primeiro-casal ao andar de cima.
As crianças já estavam na cama. Elas já tinham feito seu dever de casa, provavelmente em alguns casos com a ajuda de seus guarda-costas. Jack virou-se para a direita, desceu apressadamente as escadas, dobrou à direita novamente, virou à esquerda para sair do prédio e então retornou para o interior, entrando na Ala Leste na Sala de Situação.
— Conte tudo — comandou o presidente.
— Começou — disse o rosto de Ed Foley na parede de monitores. E tudo que eles podiam fazer era sentar e assistir.
A televisão nacional do Iraque saudou um novo dia e uma nova realidade.
Isto ficou claro quando os comentaristas fizeram sua apresentação diária com uma invocação do nome de Alá, não pela primeira vez, mas com um grau de fervor inédito.
— Vinde a mim a velha religião, que ela é muito boa... agora — observou o primeiro-sargento em PALM BOWL. A base estava captando a transmissão por uma repetidora em Bassorá. Ele se virou e gesticulou para o homem ao seu lado. — Concorda, major Sabah? — Sim, sargento — replicou o oficial kuwaitiano com um aceno de cabeça. Ele não duvidara que isso aconteceria. Seus superiores, contudo, haviam expressado reservas. Sempre faziam isso, porque não estavam tão próximos ao pulso do inimigo quanto ele, sempre pensando em termos políticos em vez de ideais. Consultou seu relógio. Eles teriam de estar de volta aos seus escritórios duas horas depois do término de sua rotina matutina normal. A pressa não levaria a lugar algum. A represa tinha rompido, e a água estava vazando. A hora de interromper o fluxo passara, considerando que essa chance existira algum dia.
O exército iraquiano havia assumido o controle do país, disseram os comentaristas de TV. Isso foi anunciado como se a situação fosse especial. Um conselho de justiça revolucionária fora formado. Os culpados por crimes contra o povo (um bom termo genérico que significava muito pouco mas era entendido por todos) estavam sendo presos e enfrentariam o julgamento de seus compatriotas. A nação precisava de calma acima de tudo, disse-lhes a TV. Hoje seria feriado nacional. Apenas as pessoas no serviço público essencial deviam trabalhar. Para o resto dos cidadãos do país, era aconselhado considerar este um dia de oração e reconciliação. Para o restante do mundo, o novo regime prometia a paz. O resto do mundo teria o dia inteiro para pensar nisso.
Daryaei já tinha pensado muito nisso. Ele conseguira tirar três horas de sono antes de acordar para suas preces matutinas. À medida que envelhecia, precisava cada vez menos de sono. Talvez o corpo entendesse que, restando-lhe pouco tempo, não havia mais espaço para descanso, embora houvesse para sonhos, e, nas primeiras horas daquele dia, ele sonhara com leões. Leões mortos. O leão também tinha sido um símbolo do regime do xá, e Badrayn tinha toda razão. Leões podiam ser mortos. Os leões de verdade já tinham sido nativos do Irã — Pérsia, no mundo antigo — e haviam sido caçados até a extinção nos tempos clássicos. Os leões simbólicos, a dinastia Pahlavi, fora erradicada de forma semelhante com uma combinação de paciência e brutalidade. Ele desempenhara um papel nisso. Nem sempre fora uma coisa bonita de ver. Ele ordenara e supervisionara uma atrocidade, a detonação por explosivo de um teatro repleto de pessoas mais interessadas na decadência ocidental do que em sua fé islâmica. Centenas tinham morrido horrivelmente, mas... isso fora necessário, uma parte essencial na campanha para recolocar seu país e seu povo na trilha da Fé Verdadeira. Embora lamentasse as consequências desse incidente, e ainda orasse pelas vidas das pessoas mortas, não sentia remorsos.
Ele fora um instrumento da fé, e o Corão Sagrado falava sobre a necessidade da guerra, a Guerra Santa, na defesa da Fé.
Outra dádiva da Pérsia (segundo alguns, da Índia) ao mundo fora o jogo de xadrez, que ele aprendera na infância. A própria palavra para o final do jogo, xeque-mate, viera do persa shah mat — o rei está morto — feito que Daryaei ajudara a realizar na vida real, e embora tivesse parado de jogar havia muito tempo, lembrava de ter sido um bom jogador, sempre com não apenas um movimento, mas quatro, até mesmo mais, planejados com antecedência. Um problema com o xadrez, assim como com a vida, era que o movimento seguinte ocasionalmente podia ser previsto, especialmente quando o oponente era habilidoso. Mas quem joga com os movimentos planejados com antecedência impede que o oponente perceba o que acontecerá em seguida; no fim, o oponente pode ver com clareza, mas tendo sido encurralado e destituído de suas peças, poder e opções, não tem escolha senão desistir do jogo. Assim fora com o Iraque. O oponente — na verdade, muitos deles — desistira e fugira, e Daryaei ficara satisfeito em permitir. Era ainda mais delicioso quando o oponente não podia fugir, mas o objetivo era vencer o jogo, e não obter satisfação, e vencer significava pensar mais longe e mais rápido do que o outro jogador, de modo que o movimento seguinte fosse de fato uma surpresa, deixando o oponente tenso e confuso, forçado a meditar antes de reagir. E numa partida de xadrez, assim como na vida, o tempo era limitado. Tudo era uma questão de mente, não de corpo.
Assim era com os leões. Mesmo alguém tão poderoso podia ser derrotado por criaturas menores se o tempo e o ambiente fossem adequados, e essa era a lição e a tarefa do dia. Tendo terminado suas preces, Daryaei chamou Badrayn.
O homem mais jovem era um tático e coletor de informações habilidoso. Ele precisava da orientação de um mestre em estratégia, mas devidamente orientado ele seria muitíssimo útil.
Depois de um debate de uma hora com os principais especialistas de seu país, ficou decidido que o presidente não podia fazer absolutamente nada. O movimento seguinte era apenas esperar e ver o que acontecia. Qualquer cidadão podia fazer isso, mas os maiores peritos da América podiam esperar e observar um pouco melhor do que os outros, ou pelo menos era isso que diziam a si próprios. Tudo seria feito para o presidente, obviamente, de modo que Ryan pôde sair da Sala de Situação, subir as escadas e, do lado de fora, ver uma chuva fria caindo no Jardim Sul. O novo dia prometia ser tempestuoso, com março chegando, tipicamente, como um leão, para depois ser substituído por uma ovelha. Ou pelo menos assim dizia o aforismo. No momento o clima parecia apenas melancólico, ainda que a chuva estivesse fornecendo nutrientes ao solo que se recuperava de um inverno frio e amargo.
— Isso vai limpar o que resta da neve — comentou Andréa Price, surpresa consigo mesma por estar falando trivialidades com seu protegido.
Ryan virou-se e sorriu. — Está trabalhando mais do que eu, agente Price, e você é...
— Uma garota? — perguntou, com um sorriso fatigado.
— Meu chauvinismo deve estar aparecendo. Peço seu perdão. Acho que estou com vontade de acender um cigarro. Há alguns anos Cathy me fez parar de fumar. Ela fez isso mais de uma vez — reconheceu Jack com bom humor. — Pode ser difícil ser casado com uma médica.
— Pode ser difícil ser casado. — Price era casada com seu trabalho, com dois relacionamentos fracassados para provar isso. Seu problema, se era possível chamá-lo assim, era possuir a mesma devoção ao dever que, supostamente, era prerrogativa dos homens. Era um fato muito simples, mas que dois homens — um advogado e um publicitário — não tinham conseguido entender.
— Por que você faz isso, Andréa? — perguntou Ryan.
A agente especial Price também não sabia. O presidente necessariamente era uma figura paternal para ela. Era o homem que devia ter as respostas, não ela. Seu pai sempre tivera as respostas certas, ou pelo menos assim parecera em sua juventude. Então ela crescera, terminara sua educação, alistara-se no Serviço, subira rapidamente dentro da organização e, no processo, perdera o controle de sua vida. Agora estava no pináculo da profissão, juntamente com o pai da nação, apenas para aprender que a vida não concedia às pessoas o que elas queriam e precisavam saber. O trabalho de Andréa era muito difícil. O dele era infinitamente pior, e talvez fosse melhor para o presidente ser alguma coisa além do que o cavalheiro decente e honrado que John Patrick Ryan era. Talvez um calhorda tivesse mais condições de sobreviver aqui...
— Nenhuma resposta? — perguntou Ryan, sorrindo na chuva. — Pensei que você ia dizer que alguém precisava fazer isso. Deus do céu, acabei de tentar seduzir trinta novos senadores. Ouviu? Tentei seduzi-los — repetiu Jack. — Como se fossem garotas ou algo assim, e como se eu fosse o tipo de sujeito que... e eu não tenho a menor ideia do que fazer! — Ryan calou-se abruptamente e, surpreso tom o que acabara de dizer, balançou a cabeça. — Perdão, me desculpe.
— Tudo bem, presidente. Já ouvi essas palavras antes, mesmo de outros presidentes.
— Com quem você conversa? — perguntou Jack. —Já tive o hábito de conversar com meu pai, meu padre, com James Greer quando trabalhava para ele, ou com Roger. Até algumas semanas atrás. Agora todo mundo pergunta tudo a mim. Sabe, eles me disseram em Quântico, na Escola Básica de Oficiais, que o comando pode ser uma posição solitária. Não estavam brincando.
— O senhor tem uma esposa maravilhosa, senhor — comentou Price, invejando ambos por isso.
— Sempre deve haver alguém mais esperto que você. A pessoa a quem você recorre quando não tem certeza. Agora as pessoas recorrem a mim. Não sou tão esperto assim. — Ryan fez uma pausa, somente então entendendo o que Price lhe dissera. — Você tem razão, mas ela está muito ocupada, e não gosto de sobrecarregá-la com meus problemas.
Price decidiu rir.
— O senhor é mesmo chauvinista, Patrão.
Isso fez Ryan girar abruptamente a cabeça.
— Como disse, Srta. Price? — perguntou Ryan num tom de voz que pareceu irritado até ser seguido por uma risada presidencial. — Por favor, não diga à imprensa que falei isso!
— Senhor, eu não digo aos repórteres nem onde fica o banheiro. O presidente bocejou.
— Como vai ser amanhã?
— Bem, o senhor passará o dia inteiro no escritório. Imagino que essa questão do Iraque irá arruinar sua manhã. Sairei pela manhã e retornarei à tarde.
Farei uma ronda para checar as providências de segurança para todas as crianças. Temos uma reunião marcada para decidir se há alguma forma de levarmos e trazermos a CIRURGIÃ sem o helicóptero...
— Isso é engraçado, não é? — observou Ryan.
— O sistema não foi preparado para uma FLOTUS com um trabalho de verdade.
— Trabalho de verdade o cacete! Ela ganha mais do que eu. E isso há dez anos, descontando a época em que voltei ao mercado de ações. Os jornais não comentaram isso. Ela é uma grande médica.
As palavras do presidente estavam desconexas, percebeu Price. Ele estava cansado demais para pensar direito. Bem, acontecia também com os presidentes. Era por causa disso que ela estava por perto.
— Roy disse que seus pacientes a amam. De qualquer modo, terei de fazer preparativos para todos os seus filhos. É rotina, senhor. Sou responsável por todos os preparativos para a sua família. O agente Raman ficará ao seu lado durante a maior parte do dia. Nós o estamos promovendo. Ele tem tido um excelente desempenho — reportou a agente especial.
— Aquele que pegou a jaqueta de bombeiro para me disfarçar na primeira noite? — perguntou Jack.
— O senhor entendeu? — perguntou Price em resposta. O presidente virou-se para entrar na Casa Branca propriamente dita. Sua expressão denotava exaustão, mas ainda assim seus olhos azuis piscaram para sua agente principal.
— Não sou tão idiota, Andréa.
Não, decidiu Price. Não seria melhor ter um calhorda como presidente.
21
Relacionamentos
Patrick O’Day era um viúvo cuja vida, depois de um casamento na idade madura, havia mudado de forma cruel e repentina. Sua esposa, Deborah, tinha sido sua colega. Como agente da Divisão Laboratorial, especialista em investigação forense, Deborah costumava viajar com frequência para fazer trabalhos de campo, até a tarde em que pegou um voo para Colorado Springs e seu avião caiu por motivos ainda indeterminados. Aquela foi sua primeira missão depois de retornar da licença de maternidade, e Deborah deixou para trás uma filha de 14 meses, Megan.
Megan tinha agora dois anos e meio e o inspetor O’Day ainda tentava decidir como deveria apresentar Megan à mãe. Ele possuía gravações em vídeo e fotografias, mas se apontasse para pedaços de papel marcado a tinta ou para uma tela de fósforo, e dissesse à filha essa é a mamãe, isso poderia passar à menina a noção de que toda a vida era artificial? Que efeito isso resultaria em seu desenvolvimento? Essa era uma das questões na vida de um homem que, supostamente, deveria ter respostas. A paternidade solitária à qual fora forçado fizera dele um pai ainda mais devotado, e isso apesar de uma carreira profissional na qual acompanhara nada menos de seis sequestros até suas conclusões. Com 1,90m de altura, noventa quilos rijos, sacrificara seu bigode de Zapata apenas devido às exigências do QG. Apesar de sua aparência de macho, sua atenção à filha faria os colegas soltarem risadinhas. A menina tinha cabelos louros e longos, e todas as manhãs ele os escovava até ficarem macios como seda, depois de vesti-la em roupas de bebê coloridas e ajudá-la a colocar seus pequenos tênis. Para Megan, papai era um grande urso protetor que eclipsava o céu azul e a tirava do solo como um foguete para que pudesse envolver-lhe o pescoço com os bracinhos.
— Calma! — disse papai. — Você abraça forte demais!
— Fiz dodói? — perguntou Megan, fingindo alarme. Isso fazia parte da rotina matinal dos dois.
Um sorriso paternal.
— Não, desta vez não.
Dito isso, saiu da casa e abriu a porta de sua caminhonete enlameada.
Amarrou cuidadosamente o cinto de segurança da menina e colocou sua merendeira e seu cobertor entre os dois. Eram seis e meia, e estavam fazendo seu trajeto até a creche. O’Day não podia dar a partida na caminhonete sem olhar para Megan e ver a imagem da mãe, uma percepção diária que sempre o fazia morder os lábios, fechar os olhos e balançar a cabeça, perguntando-se por que o 737 investira direto contra o solo com a mulher com quem estava casado havia dezesseis meses no assento 18-F.
A creche nova era mais adequada ao seu trajeto para o trabalho, e os vizinhos do lado adoravam deixar seus gêmeos nela. Dobrou à direita na Ritchie Highway, e lembrou que o lugar ficava em frente a uma 7-Eleven.
Decidiu passar nela e comprar uma xícara de café para tomar no trevo da US 5.
Creche Giant Steps, bonito nome.
Tremenda forma de ganhar dinheiro, pensou Pat, estacionando sua caminhonete. Como de hábito, Marlene Daggett estava lá às seis, atendendo aos filhos dos burocratas que rumavam para a capital todas as manhãs. Ela veio receber pai e filha, que estavam chegando à creche pela primeira vez.
— Sr. O’Day! E essa é a Megan! — proclamou a professora com um entusiasmo quase inacreditável para aquela hora da manhã. Megan estava hesitante, e olhou para o pai. Em seguida, baixou os olhos para deparar com uma coisa especial. — O nome dela também é Megan. Ela é o seu ursinho, e acordou bem cedo para esperá-la.
— Oh — disse a menininha. Pegou a criatura de pelúcia marrom e a abraçou com etiqueta identificadora e tudo. — Oi.
A Sra. Daggett olhou para o agente do FBI com uma expressão que dizia sempre dá certo.
— Trouxe o cobertor dela?
— Está aqui, moça — disse O’Day, entregando também os formulários que preenchera na noite anterior. Megan não tinha problemas médicos, nenhum tipo de reação alérgica a remédios, leite ou alimentos; sim, em caso de emergência real vocês podem levá-la ao hospital mais próximo; e estes são os números do meu telefone comercial, meu pager, os números de meus pais. O’Day incluiu também o número do telefone dos pais de Deborah, que eram avós excelentes.
A Giant Steps era muito bem organizada. O’Day não sabia o quanto, porque a Sra. Daggett não podia falar que sua identidade estava sendo verificada pelo Serviço Secreto.
— Bem, Srta. Megan, acho melhor brincarmos e fazermos alguns novos amigos. — Ela olhou para cima. — Tomaremos conta dela direitinho.
O’Day voltou para sua caminhonete com a pontada de angústia usual que sentia ao deixar a filha — em qualquer lugar, tempo ou espaço —, e seguiu a rua até a 7-Eleven para comprar seu cafezinho. Ele tinha uma reunião marcada para as nove da manhã sobre procedimentos adicionais na investigação da queda do avião — estavam agora cruzando as informações que tinham apurado —, o que seria seguido por um dia de lixo administrativo que ao menos não o impediria de pegar sua filhinha na hora certa. Quarenta minutos depois, parou no quartel-general do FBI na rua 10 com a Pennsylvania. Seu posto como inspetor valia-lhe uma vaga de estacionamento reservada. De lá, caminhou até a galeria de tiro.
Atirador fenomenal desde o treinamento básico, Pat O’Day trabalhara como instrutor de armas de fogo em vários escritórios do FBI, supervisionando o treinamento com armas de outros agentes — o que sempre era uma parte importante da vida de um tira.
A galeria estava cheia demais para aquela hora do dia — ele chegou às 7:25
— e o inspetor selecionou duas caixas de balas 10mm com ponta oca para sua automática Smith & Wesson 1076 — uma pistola grande, de aço inoxidável —, juntamente com um par de alvos Q e um par de protetores de ouvido. O alvo era um painel simples de cartolina branca com um desenho das partes vitais do corpo humano. O alvo possuía aproximadamente a configuração de um latão de leite de fazendeiro, com a letra Q no centro, mais ou menos onde o coração deveria ficar. Ele prendeu o alvo no pregador móvel do cabo, ajustou a distância para nove metros e apertou o botão de movimento. O equipamento de alcance de tiro era programável. Ao chegar ao seu destino, o alvo se moveu para o lado e ficou praticamente invisível. Sem olhar, O’Day programou um ajuste aleatório no timer e continuou a olhar para o fundo da galeria, as mãos paradas à altura dos quadris. Agora seus pensamentos mudaram. Havia um Bandido lá embaixo. Um Bandido da pesada. Um criminoso em fuga, agora encurralado. Um Bandido que dissera aos negociadores que jamais veria o sol quadrado de novo, e que eles jamais o pegariam vivo. Em sua longa carreira, o inspetor O’Day ouvira isso muitas vezes, e sempre dera aos criminosos a oportunidade de cumprir a palavra, mas eles sempre tinham se abaixado, deixado cair a arma, molhado as calças ou mesmo irrompido em lágrimas ao se verem diante de um perigo real. Mas não desta vez. Este Bandido era perigoso.
Tinha um refém. Uma criança, talvez. Talvez sua própria pequena Megan. O pensamento fê-lo estreitar os olhos. Uma arma na cabecinha dela. No cinema, o Bandido mandaria você largar sua arma, mas se fizesse isso, tudo que iria conseguir seria um tira morto e um refém morto. Assim, você fala com o Bandido. Procura soar calmo, razoável, conciliador, e aguarda até que ele relaxe, só um pouquinho, só o bastante para afastar a arma da cabeça do refém. Isso poderia levar horas, porém, cedo ou tarde...
... o timer engatilhou, e o cartão-alvo voltou sua face para o agente. A mão direta de O’Day moveu-se num borrão, tirando a pistola do coldre.
Simultaneamente, recuou o pé direito, girou o corpo, agachou-se e juntou a mão esquerda com a direita nobre a arma durante a metade do movimento para cima.
Seus olhos localizaram as marcações de tiro no fundo de sua visão periférica e, no momento que estavam todos alinhados com a cabeça do alvo Q, premiu duas vezes o gatilho, disparando tão rápido que ambos os cartuchos ejetáveis ficaram no ar ao mesmo tempo. Isso se chamava double-tap, e O’Day praticara durante tantos anos que os sons dos disparos quase se mesclaram no ar. O eco dos dois tiros estava retornando da parede de aço quando as cápsulas vazias quicaram no assoalho de concreto, mas a essa altura havia dois buracos na cabeça do alvo, separados por menos de uma polegada de distância, entre e imediatamente acima do local onde ficariam os olhos. O alvo girou para o lado menos de um segundo depois de ter virado, simulando perfeitamente a queda do Bandido no chão.
Isso.
— Acho que você o pegou, Tex.
O’Day virou-se, despertado de sua fantasia por uma voz familiar.
— Bom dia, diretor.
— Oi, Pat — disse Murray com um bocejo, um par de protetores de ouvido pendendo de sua mão esquerda. — Você é um bocado rápido. Situação de refém?
— Procuro treinar para a pior situação possível.
— Sua filhinha — disse Murray, assentando. Todos eles faziam isso, porque o refém precisava ser importante na mente do agente. — Bem, você o pegou.
Mostre-me de novo — ordenou o diretor. Queria observar a técnica de O’Day.
Sempre havia alguma coisa para aprender. Depois da segunda simulação, havia um buraco na fronte do alvo hipotético. Murray, que se considerava também um atirador habilidoso, ficou espantado. — Preciso praticar mais.
O’Day relaxou um pouco sua rotina. Um atirador que obtivesse sucesso em seu primeiro disparo do dia — e ele acertara no alvo todas as quatro vezes — podia se considerar em forma. Dois minutos e vinte tiros mais tarde, a cabeça do alvo era uma meia-lua. Murray, na pista ao lado, estava ocupado com sua técnica padrão de Jeff Cooper, dois tiros rápidos no peito, seguidos por um mais lento mirado na cabeça. Quando ambos estavam satisfeitos e seus alvos mortos, chegou a hora de contemplar o dia.
— Novidades? — perguntou o diretor.
— Não, senhor. Fizemos mais algumas entrevistas de confirmação do caso da JAL, mas não descobrimos nada importante.
— E quanto a Kealty?
O’Day encolheu os ombros. Não tinha permissão para interferir na investigação da OPR, mas recebia resumos diários. Um caso dessa magnitude precisava ser reportado a alguém, e embora a supervisão do caso estivesse inteiramente sob a competência da OPR, as informações apuradas também seguiam para o escritório do diretor, filtradas através de seu inspetor itinerante.
— Dan, tanta gente entrou e saiu do escritório do secretário Hanson que qualquer um poderia ter roubado a carta, considerando que havia uma. Nosso pessoal acredita que provavelmente havia. Pelo menos Hanson conversou com várias pessoas a respeito dela... ou pelo menos foi isso que essas pessoas nos disseram.
— Acho que essa história toda não vai dar em nada.
— Bom dia, presidente.
Outro dia de rotina. As crianças estavam fora. Cathy estava fora. Ryan emergiu de seus aposentos de terno e gravata — o casaco estava abotoado, o que era muito incomum para ele, ou assim fora até se mudar para cá —, e seus sapatos tinham sido engraxados. Só que Jack ainda não conseguia pensar neste lugar como sua casa. Mais parecia um hotel, ou as acomodações VIP que ele costumava ocupar quando viajava a serviço da agência. Contudo, o lugar era mais luxuoso e o serviço, impecável.
— Você é Raman? — perguntou o presidente.
— Sim, senhor— replicou o agente especial Aref Raman.
Ele tinha 1,90 e um físico musculoso, mais próprio de um halterofilista que de um corredor, pensou Jack, embora esse efeito pudesse ser causado pela armadura corporal usada pelos membros da segurança presidencial. Ryan avaliou sua idade como meados da casa dos trinta. Boa aparência mediterrânea, um sorriso tímido e olhos tão azuis quanto os da CIRURGIÃ.
— ESPADACHIM em movimento — disse Raman em seu microfone. — Para o escritório.
— Raman... qual é a origem desse nome? — perguntou Jack no caminho para o elevador.
— Mãe libanesa, pai iraniano, vindos para cá em 79, quando o xá teve seus problemas. Papai pertencia ao regime.
— E então, o que acha da situação do Iraque? — perguntou o presidente.
— Senhor, nem sei mais falar a língua deles. — O agente sorriu. — Mas se o senhor quiser saber sobre quem jogará na final do campeonato de basquete universitário, ou o homem certo.
— Kentucky — disse Ryan com determinação. O elevador da Casa Branca era antigo, com o interior em estilo pré-Ar Deco, com botões negros desgastados que o presidente não tinha permissão para apertar. Raman fez isso por ele.
— Oregon vai para a final. Nunca erro, senhor. Venci as últimas quatro apostas que fiz com os colegas. Ninguém aposta mais comigo. A final será entre Oregon e Duke, minha universidade. Oregon ganhará por seis ou oito pontos. Bem, talvez menos, se Maceo Rawling estiver numa noite boa — acrescentou Raman.
— O que você estudou em Duke?
— Fiz o curso preparatório em direito, mas decidi que não queria ser advogado. Na verdade, decidi que os criminosos não deveriam ter qualquer tipo de direito, e assim decidi que seria melhor ser tira e me alistei no Serviço.
— Casado? — Ryan gostava de conhecer as pessoas ao seu redor. Num nível, era penas uma questão de boas maneiras. Em outro, essas pessoas tinham jurado defender sua vida, e ele não podia tratá-los como empregados.
— Não encontrei a garota certa... pelo menos ainda não.
— Muçulmano?
— Meus pais eram, mas depois que vi todo o problema que a religião lhes causou... — Fez uma careta. — Bem, se o senhor perguntar por aí, dirão que minha religião é o basquetebol. Jamais perco um jogo de Duke na TV. É uma pena que Oregon esteja tão bem este ano. Mas não há nada que se possa fazer contra isso.
A verdade naquela declaração fez o presidente soltar uma risadinha.
— Disse que Aref é o seu primeiro nome?
— Na verdade me chamam Jeff. É mais fácil de pronunciar — explicou Raman quando a porta se abriu. O agente se posicionou no centro das portas, bloqueando uma linha direta de visão para POTUS. Um membro da Divisão Uniformizada estava lá, juntamente com mais dois membros da segurança presidencial, todos conhecidos de vista por Raman. Protegendo Ryan pelos quatro cantos, o grupo virou para oeste, passando pelo corredor lateral que conduzia à pista de boliche e às oficinas de carpintaria.
— Certo, Jeff, temos um dia fácil pela frente — disse Ryan sem necessidade.
O Serviço Secreto era informado de sua agenda diária antes dele.
— Fácil para nós, talvez.
Estavam à sua espera no Salão Oval. Os Foley, Bert Vasco, Scott Adler e uma outra pessoa estavam de pé quando o presidente entrou. Eles já tinham sido revistados em busca de armas e materiais nucleares.
— Ben! — disse Jack. Ele parou para colocar seus documentos matinais na mesa e se juntou aos convidados.
— Presidente — replicou com um sorriso o Dr. Ben Goodley.
Como nem todos os visitantes matutinos integravam o círculo interno, Raman permaneceria na sala, atento para a possibilidade de algum deles saltar sobre a mesinha de centro e tentar estrangular o presidente. Uma pessoa não precisava de uma arma de fogo para ser letal. Algumas semanas de estudo e prática transformariam qualquer pessoa de físico razoável num praticante de artes marciais suficientemente bom para matar uma vítima desavisada. Por esse motivo, os membros da segurança presidencial carregavam não apenas pistolas, mas também cassetetes policiais feitos de segmentos telescópicos de aço.
Raman observou esse Goodley — um agente do serviço nacional de informações — entregar as folhas de instrução. Como muitos membros do Serviço Secreto, ele ouviria praticamente tudo. A etiqueta SOMENTE PARA OS OLHOS DO PRESIDENTE num envelope particularmente sensível não significava isso de fato. Sempre havia mais alguém na sala, e embora os membros da segurança presidencial alegassem entre si que não prestavam atenção a essas coisas, o que eles realmente queriam dizer é que não falavam muito a respeito delas. Não ouvir e não lembrar era outra história. Policiais não são treinados ou pagos para esquecer coisas, quanto mais para ignorá-las.
Nesse sentido, pensou Raman, ele era o espião perfeito. Treinado pelos Estados Unidos da América para ser um agente de campo, tivera um desempenho brilhante, principalmente em casos de falsificação. Era um atirador excepcional e sabia organizar muito bem seus pensamentos — característica revelada em seus tempos de faculdade; ele se formara na Duke com mérito, sem nada menos do que um grau A em sua tese final. Além disso, na universidade destacara-se em artes marciais. Era útil para um investigador ter boa memória, e ele tinha. Fotográfica, na verdade, talento que atraíra a atenção da liderança da segurança presidencial logo no princípio, porque os agentes que protegem o chefe de Estado precisam ser capazes de reconhecer um determinado rosto instantaneamente, a partir das centenas de fotografias que eles carregavam quando o Patrão iria se misturar ao povo. Durante a administração Fowler, como agente júnior emprestado à segurança presidencial para cobrir um jantar de levantamento de fundos, Raman identificara e detivera um homem suspeito de perseguir o presidente. Quando o homem foi revistado, descobriram que ele estava com uma 22 automática no bolso. Raman empurrara o homem da multidão tão discreta e habilidosamente que a acolhida do indivíduo pelo sistema de saúde mental do Missouri jamais chegou aos jornais, o que era exatamente o propósito da segurança presidencial. O jovem agente nasceu para a segurança presidencial, disse o então diretor do Serviço Secreto dos Estados Unidos quando Raman foi transferido para esse setor depois da ascensão de Roger Durling à presidência. Como membro júnior da segurança presidencial, passara horas tediosas em serviço, correndo junto com a limusine presidencial, subindo de posto rapidamente para um jovem. Trabalhara tanto porque, como imigrante, conhecia a importância dos EUA, e assim como seus ancestrais tinham servido a Dario o Grande como um dos Imortais, ele se dedicou com a mesma determinação ao seu novo país. Era fácil, na verdade muito mais fácil do que a tarefa que seu irmão — étnico, não biológico — desempenhara em Bagdá pouco tempo antes. Os americanos, apesar do que diziam as pesquisas de opinião, acolhiam imigrantes calorosamente em seus corações grandes e bobos.
Eles sabiam muita coisa e estavam sempre aprendendo, mas algo que ainda tinham de aprender era que ninguém pode enxergar o interior de outro coração humano.
— Não temos recursos que possamos empregar no solo — estava dizendo Mary Pat — No entanto, estamos fazendo interceptações excelentes — prosseguiu Goodley. — A NSA apurou que a liderança inteira do partido Baath está na prisão, e não acredito que eles sairão de lá, pelo menos com os próprios pés.
— Então o Iraque está completamente decapitado?
— Estão liderados por um conselho militar e por generais júnior. Os noticiários da TV — mostraram-nos com um mula iraniano. Isso não foi acidente — disse Bert Vasco com segurança. — O mínimo que podemos concluir é que está havendo um diálogo com ele. No mínimo, os dois países se aglutinarão.
Saberemos disso em alguns dias... duas semanas, no máximo.
— E os sauditas? — perguntou Ryan.
— Com o coração na mão, Jack — replicou Ed Foley prontamente. — Conversei com o príncipe Ali há menos de uma hora. Eles se cotizaram para arrecadar uma quantia que pagaria a nossa dívida externa. A intenção era comprar o novo regime. Fizeram isso do dia para a noite, e agora estão tentando entrar em contato com o Iraque, mas ninguém está atendendo o telefone. Isso os está deixando tremer de medo em Riad. O Iraque sempre esteve disposto a falar de negócios. Agora não.
E foi isso que amedrontou realmente todos os estados da península Arábica, refletiu Raman. O Ocidente não compreendia bem o fato de que os árabes eram homens de negócios. Não ideólogos, fanáticos, ou lunáticos, mas homens de negócios. Eles possuíam uma mistura de comércio marítimo que explorara o Islã, fato lembrado nos EUA apenas nas viagens das aventuras mitológicas do marinheiro Simbad. Nesse sentido pareciam — muito com os americanos, apesar da diferença em linguagem, vestuário e religião, e comumente como os americanos, tinham problemas em entender pessoas que não estavam dispostas a fazer negócios, a alcançar alguma forma de acordo. O Irã tinha sido um país assim até o final do reinado do xá, quando o aiatolá Khomeini transformara a nação em uma teocracia. Eles não são como nós era a preocupação básica de qualquer cultura. Eles não foram como nós era um pensamento muito assustador, principalmente para os Estados Golfo que, apesar das diferenças políticas, sempre contaram com o dinheiro m abrir canais de comunicação.
— Teerã? — foi a pergunta seguinte de Jack. Ben Goodley a respondeu.
— Os telejornais oficiais estão saudando os acontecimentos com as ofertas usuais de paz e amizade renovada, mas nada além disso — disse Goodley. — Oficialmente, é o que temos. Oficiosamente, estamos interceptando todos os tipos de comunicações. Pessoas em Bagdá pedem instruções, e pessoas em Teerã oferecem-nas. Por enquanto estão dizendo para deixar a situação se desenvolver sem empecilhos. O próximo passo será iniciar as cortes revolucionárias. Temos visto muitos sacerdotes islâmicos na TV, pregando amor e liberdade e todas essas coisas bonitas. Quando os julgamentos começarem e as pessoas estiverem sendo empurradas para o paredão, haverá um vácuo absoluto.
— Então o Irã assumirá o governo, ou provavelmente conduzirá o Iraque como uma marionete — disse Vasco, folheando as últimas comunicações interceptadas. — Goodley pode estar certo. Estou lendo este material da SIGINT
pela primeira vez. Perdoe-me, presidente, mas estive concentrado no lado político. Este material é mais revelador do que eu esperava.
— Está dizendo que significa mais do que entendi? — perguntou o agente do serviço nacional de informações.
Vasco assentiu sem olhar para cima.
— Acho que sim. Isso não é bom — opinou sombriamente o oficial. — Ainda hoje, os sauditas irão nos pedir para dar-lhes a mão — disse o secretário Adler — Que dirá a eles?
A resposta de Ryan foi tão automática que surpreendeu até mesmo a ele. — Nosso compromisso com o Reino permanece o mesmo. Se precisarem de nós, estaremos lá, agora e sempre.
E com duas frases, pensou Jack um segundo depois, ele comprometera todo o poder e credibilidade dos Estados Unidos da América a um país não democrático ali mil quilômetros de distância. Felizmente, Adler facilitou a situação.
— Concordo plenamente, senhor. Não há outra atitude que possamos tomar.
Todos assentaram em concordância, até mesmo Ben Goodley.
— Podemos fazer isso discretamente. O príncipe Ali compreenderá nossa situação e fará o rei compreender que não estamos brincando.
— O próximo passo é colocarmos Tony Bretano a par de tudo — disse Ed Foley. — Ele é muito bom, a propósito. Sabe escutar — informou ao presidente o diretor da CIA nomeado. — O senhor planeja realizar uma reunião de gabinete para discutir isso?
Ryan balançou a cabeça.
— Não. Acho que devemos proceder da forma mais discreta possível. Os EUA estão observando com interesse os acontecimentos regionais, mas não há nada nesse assunto para nos deixar nervosos. Scott, informe a imprensa através dos seus homens.
— Certo — replicou o secretário de Estado.
— Ben, o que você está fazendo agora em Langley?
— Nomearam-me chefe de observação do Centro de Operações, presidente.
— Boa reunião de instrução — disse Ryan ao homem mais jovem, antes de virar-se para o diretor da CIA. — Ed, ele trabalha agora para mim. Preciso de um agente do serviço nacional de informações que fale a minha língua.
— Será que pelo menos pode me emprestá-lo de volta como lançador? — replicou Foley com uma risada. — Este garoto tem futuro no beisebol, e eu estava querendo entrar no campeonato no próximo outono.
— Boa tentativa, Ed. Ben, a sua carga horária acaba de piorar. Por enquanto pode ficar com meu velho escritório no fim do corredor. A comida daqui é muito melhor — prometeu o presidente.
Durante todo o tempo, Aref Raman permaneceu imóvel, encostado na parede branca enquanto seus olhos corriam automaticamente de um visitante para outro. Fora treinado para não confiar em ninguém, com as prováveis exceções da esposa e dos filhos do presidente. Mais ninguém. Obviamente todos confiavam nele, inclusive aqueles que o haviam treinado para não confiar em ninguém, porque todos precisavam confiar em alguém.
Era só uma questão de tempo, realmente, e uma das coisas que sua educação americana e seu treinamento profissional lhe haviam proporcionado era paciência para esperar a chance de agir. Mas eventos do outro lado do globo estavam tornando esse momento cada vez mais próximo. Por trás de seus olhos inexpressivos, Raman pensou que talvez precisasse de orientação. Sua missão não era mais o evento aleatório que prometera cumprir vinte anos antes. Poderia fazer aquilo praticamente a qualquer momento, mas ele estava aqui agora, e embora qualquer um pudesse matar, e uma pessoa dedicada pudesse matar praticamente qualquer um, apenas um assassino habilidoso seria capaz de matar a pessoa certa no momento certo para cumprir um objetivo maior. Era delicadamente irônico o fato de que embora sua missão viesse de Deus, cada fator para sua realização provinha diretamente do próprio Satã, encarnado na vida de um homem cuja melhor forma de servir Alá seria partindo desta vida no momento oportuno. O mais difícil seria escolher o momento certo, e assim, depois de vinte anos, Raman decidiu que talvez tivesse de colocar seu disfarce em risco. Ele correria perigo, pensou, mas um perigo bem pequeno.
— O seu objetivo é ousado — disse calmamente Badrayn. Por dentro, estava tudo, menos calmo. Aquilo era de tirar o fôlego.
— Os humildes não herdarão a Terra — replicou Daryaei, que acabara de explicar pela primeira vez sua missão na vida a alguém de fora de seu círculo sacerdotal.
Ambos precisavam esforçar-se para agir como jogadores em torno de uma mesa de pôquer enquanto discutiam um plano que mudaria a face do mundo.
Para Daryaei esse era um conceito que ele desenvolvera por mais de uma geração, o apogeu de tudo que fizera na vida, a realização de um sonho e um objetivo que colocaria seu nome ao lado do próprio Profeta... se o alcançasse. A unificação do Islã. Era assim que ele expressava seu objetivo para seu círculo interno.
Badrayn via apenas o poder. A criação de um novo Megaestado que teria o Golfo Pérsico como centro, um Estado com imenso poder econômico, população numerosa, autossustentável em cada detalhe e capaz de expandir-se através da Ásia e da África, talvez cumprindo o desejo do Profeta Maomé, embora não fingisse saber o que o fundador de sua religião teria ou não desejado. Deixava isso a cargo de homens como Daryaei.
Para Badrayn o jogo significava apenas poder, e religião ou ideologia definiam apenas as identificações dos times. O seu time era este por causa do lugar onde nascera, e porque já estudara cuidadosamente o marxismo e decidira que era ineficaz.
— É possível — disse Badrayn depois de mais alguns segundos de contemplação.
— O momento histórico é único. O Grande Satã — ele não gostava de recair em questões políticas ao discutir seu plano, mas às vezes era impossível evitar — está fraco. O Satã Menor está destruído, com suas repúblicas islâmicas prontas para sentar no nosso colo. Eles precisam de uma identidade, e pode haver identidade melhor do que a Fé Sagrada?
E isso era a mais pura verdade, concordou Badrayn com um aceno silencioso. O colapso da União Soviética e sua substituição pela assim chamada Confederação dos Estados Independentes apenas gerara um vácuo ainda não preenchido nas repúblicas do sudeste, ainda economicamente dependentes de Moscou, como uma série de carroças atreladas a um cavalo moribundo. Eles sempre seriam mininações rebeldes cujas religiões as haviam separado do império ateu, e agora estavam todas tentando estabelecer sua própria identidade econômica de modo a poder se separar de uma vez por todas do centro de um país morto ao qual jamais pertenceram de fato. Mas não podiam sustentar-se economicamente, não na era moderna. Essas nações precisavam de outro mecenas, outro guia para o novo século. Essa nova liderança teria de prover-lhes dinheiro, e toneladas dele, mais a bandeira unificadora de uma religião e cultura, algo que o marxismo-leninismo negara-lhes por tanto tempo.
— Os EUA são o obstáculo, mas você não precisa de mim para saber disso — observou Badrayn desnecessariamente. — E a América é muito grande e poderosa para ser destruída.
— Já estive com esse Ryan. Mas, primeiro, diga-me o que pensa dele.
— Não é idiota, nem covarde — julgou Badrayn. — Já demonstrou bravura física, e é muito versado em operações de espionagem. É culto. Os sauditas confiam nele, os israelenses também. — Esses eram dois países que importavam muito nesse momento, mas havia um terceiro: — Os russos o conhecem e respeitam.
— O que mais?
— Não o subestime. Não subestime os EUA. Nós dois vimos o que acontece com quem faz isso — advertiu Badrayn.
— Mas e quanto ao estado atual da América?
— O que tenho visto indica que o presidente está dando duro para reconstituir o governo de seu país. E uma tarefa enorme, mas os EUA são um país fundamentalmente estável.
— E quanto ao problema na sucessão?
— Não estou bem a par — admitiu Badrayn. — Não tenho lido reportagens suficientes para compreender o desenrolar dos acontecimentos.
— Já estive com Ryan — disse Daryaei, por fim revelando seus pensamentos.
— Ele é um assistente, nada mais que isso. Aparenta ser forte mas não é. Se fosse um homem de força, atacaria Kealty diretamente. O homem cometeu um ato de traição, não é verdade? Ryan é uma pessoa. Os EUA são um país.
Ambos podem ser atacados, ao mesmo tempo, de mais de uma direção.
— Leão e hienas — disse Badrayn, e em seguida explicou o motivo do comentário. Daryaei ficou tão satisfeito com a imagem que não objetou contra a sua posição na metáfora.
— Não um único grande ataque, mas diversos ataques pequenos? — inquiriu o sacerdote.
— Já funcionou antes.
— E quanto a muitos ataques grandes? Contra a América e contra Ryan.
Falando nisso, e se Ryan caísse? Que aconteceria então, meu jovem amigo?
— Devido ao sistema governamental deles, isso geraria uma situação caótica. Mas eu aconselharia cautela. Também recomendaria aliados. Quanto maior o número de hienas e de direções das quais elas vierem, mais fragilizado ficará o leão. O mesmo vale quanto a atacar Ryan pessoalmente. — Badrayn prosseguiu, tentando adivinhar por que seu anfitrião dissera isso, e se teria sido um deslize de sua parte. — O presidente dos Estados Unidos é um alvo difícil, bem protegido e informado.
— Foi o que me disseram — replicou Daryaei por trás de olhos escuros desprovidos de expressão. — Que outros países você recomendaria como nossos aliados?
— O senhor tem prestado atenção ao conflito entre Japão e América? — perguntou Badrayn. — Já se perguntou por que alguns cães grandes jamais latem?
Isso era uma coisa engraçada a respeito dos cães grandes. Eles sempre estavam com fome. E Daryaei tinha falado mais de uma vez a respeito de Ryan e sua proteção. Um cão estava com mais fome que todos os outros. Eles formariam uma matilha muito interessante.
— Talvez tenha apenas funcionado mal.
Os representantes da Gulfstream estavam numa sala com oficiais da aviação civil suíça, juntamente com o chefe das operações de voo da corporação que possuía os jatos. Seus registros escritos mostravam que uma firma local provera manutenção adequada à aeronave. Todas as peças vieram de fornecedores aprovados. A corporação suíça que fazia a manutenção tinha um histórico de dez anos sem acidentes, sendo supervisionada pela mesma agência governamental que agora conduzia a investigação.
— Não seria a primeira vez — concordou o representante da Gulfstream.
Os registros de voo eram máquinas robustas, mas nem sempre sobreviviam, porque cada queda era diferente. Uma busca cuidadosa pelo USS Radford não fizera os localizadores zumbirem. Sem isso, era difícil realizar uma busca indireta, dada a profundidade do oceano. Além do mais, havia a problemática dos líbios, que não queriam navios xeretando suas águas. Se a aeronave perdida tivesse sido um avião de passageiros, o governo líbio poderia ser pressionado, mas um jatinho comercial com dois ou três passageiros reportados — um deles vítima de uma praga mortal — não era tão importante.
— Sem dados suficientes não podemos dizer muita coisa — prosseguiu o representante da Gulfstream. — Foi reportada falha da turbina, e isso podia significar combustível ruim, manutenção incompetente...
— Por favor! — objetou o representante da firma de manutenção.
— Estou falando teoricamente — frisou a Gulfstream. — Ou mesmo algum tipo de erro cometido pelo piloto. Sem dados técnicos ficamos com as mãos completamente atadas.
— O piloto tinha quatrocentas horas de voo. O copiloto tinha mais de duas mil — disse o representante dos proprietários pela quinta vez naquela tarde.
Todos estavam pensando a mesma coisa. O fabricante da aeronave possuía em sua defesa um registro de segurança soberbo. As empresas tinham relativamente poucos fabricantes de aeronaves entre os quais fazer suas escolhas, e para eles a segurança era tão ou mais importante que para os compradores, devido à competição árdua. Os compradores desses brinquedos caros tinham excelente memória, e mesmo não contando com dados precisos a respeito das poucas quedas que tinham acontecido, sempre lembravam das aeronaves e dos passageiros desaparecidos.
O representante da empresa de manutenção também não estava interessado em ser associado a um acidente fatal. A Suíça tinha muitos campos de pouso e um grande número de aviões comerciais. Uma manutenção ruim significaria perda de negócios, para não mencionar o problema com o governo suíço por violação de suas rígidas leis de aviação.
O proprietário do avião era quem menos tinha a perder em termos de reputação, mas ninguém o convenceria a assumir responsabilidade sem motivos reais.
E não havia motivo real para nenhum deles assumir a culpa, não sem o gravador de dados de voo. Os homens olharam um para o outro em torno da mesa, com o mesmo pensamento: pessoas boas cometiam erros, mas raramente queriam admiti-los, e ainda mais quando o representante do governo examinava a papelada e concluía que tudo estava em ordem. Além disso, nenhum deles tinha qualquer coisa a fazer exceto contatar o fabricante da turbina e tentar obter uma amostra do combustível. E no fim saberiam pouco mais do que agora. A Gulfstream poderia perder um ou dois aviões em vendas. O representante da empresa de manutenção teria de passar por um escrutínio rigoroso do governo. A empresa teria de comprar um novo jato. Como uma demonstração de lealdade, adquiriria outro jato comercial G-class, assim como os serviços da mesma empresa de manutenção. Isso agradaria a todos, até ao governo suíço.
Ser inspetor itinerante significava um salário mais alto do que o de um agente de campo, e era mais divertido do que ficar sentado atrás de uma mesa o tempo todo, mas Pat O’Day ainda se irritava por passar a maior parte do dia lendo relatórios gerados por agentes e suas secretárias. Para evitar inconsistências, esses documentos passariam pela supervisão de outros funcionários, embora ele fizesse o mesmo, rabiscando anotações a lápis em seu bloquinho amarelo, que a sua secretária iria compilar para seus relatórios ao diretor Murray. Agentes de verdade, acreditava implicitamente O’Day, não datilografavam. Bem, era isso que seus instrutores em Quântico provavelmente diriam.
Terminou suas reuniões cedo em Buzzard’s Point e decidiu que seu escritório no Edifício Hoover não precisava dele. O ritmo da investigação estava desacelerando. As novas informações coletadas eram todas de entrevistas, cada uma das quais confirmando informações verificadas anteriormente.
— Sempre odiei esta parte — disse o ADIC Tony Caruso.
Era o ponto em que o procurador-geral dos Estados Unidos tinha tudo que precisava para ganhar o caso, mas, sendo um advogado, nunca ficava satisfeito.
Eles deviam achar que a melhor forma de ganhar um caso era entediando o júri até a morte.
— Nem um grama de dados contraditórios. Está uma moleza, Tony. — Os dois homens eram amigos havia muito tempo. — Até agora nada novo e empolgante.
— Sorte sua. Como vai a Megan?
— Numa nova creche. Começou hoje. É a Giant Steps, na Ritchie Highway.
— É a mesma — observou Caruso.
— Hein?
— A mesma dos filhos de Ryan... oh, você não estava aqui quando aqueles desgraçados da ULA invadiram a creche.
— Ela não... a dona do lugar não comentou nada sobre... bem, acho que ela não tinha por que comentar, não é verdade?
— O Serviço Secreto é bem caxias nesses assuntos. Imagino que eles explicaram direitinho o que ela podia e o que não podia dizer.
Deve ter um ou dois agentes ajudando as crianças a pintar com os dedos, pensou O’Day por um segundo. Havia um balconista novo na 7-Eleven do outro lado da rua. Lembrava de ter percebido, ao pedir seu café, que o sujeito parecia um pouco arrumadinho demais para aquela hora da manhã. Hum...
Amanhã ele o olharia dos pés à cabeça em busca de uma arma, algo que o balconista já devia ter feito com ele, e por cortesia profissional, mostraria sua carteira, juntamente com uma piscadela e um aceno de cabeça.
— Um pouco superqualificado — concordou Caruso. — Mas qual é o problema com um pouco de proteção extra onde a sua filha está? Mal não faz.
— Com certeza, Tony. — O’Day se levantou. — Em todo caso, acho que vou lá pegá-la.
— Escravo de quartel-general. Turno de oito horas — resmungou o diretor assistente do Escritório de Campo de Washington.
— Foi você que quis ser um mandachuva, Don Antônio.
Deixar o trabalho sempre lhe dava uma sensação de liberdade. O ar tinha um aroma mais puro quando ele saía do que quando entrava. Caminhou até sua caminhonete, notando que ela não fora tocada ou roubada. Essa era uma vantagem em deixá-la suja e enlameada. Tirou o paletó e vestiu a jaqueta de couro da Marinha que usava havia dez anos por ser muito confortável. A gravata foi descartada em seguida. Dez minutos depois, estava na Rota 10 na direção de Annapolis, ouvindo a C&W no rádio. O trânsito estava especialmente favorável, e imediatamente antes de ouvir as notícias da hora, parou no estacionamento da Giant Steps, desta vez procurando por carros oficiais. O Serviço Secreto era muito esperto nessas situações. Como o FBI, seus carros ostentavam placas comuns que eram trocadas aleatoriamente. Ainda assim, viu duas placas que pareciam mais novas do que seus carros, e confirmou suas suspeitas estacionando ao lado de um e olhando o interior em busca de um rádio. Feito isso, questionou-se sobre seu próprio disfarce, e decidiu ver o quanto eles eram bons, percebendo em seguida que se eles fossem medianamente competentes, já teriam checado sua identidade através dos documentos que anotara nos formulários entregues à Srta. Daggett, ou, mais provavelmente, mesmo antes disso. Havia uma rivalidade profissional considerável entre o FBI e o Serviço Secreto. Na verdade, o FBI começara com um punhado de agentes do Serviço Secreto. Mas o FBI crescera bastante depois disso, e ao longo do caminho acumulara mais experiência em investigações criminosas que o SS. Isso não queria dizer que o SS não fosse uma agência danada de boa, embora, como Tony Caruso comentara, bem mais caxias que o FBI. Bem, eles provavelmente eram as melhores babás do mundo.
Atravessou o estacionamento com o zíper da jaqueta fechado até em cima e avistou um sujeito grande dentro da porta. Deveria manter sua identidade em segredo? O’Day passou direto por ele, apenas mais um pai esperando a saída da menina de seus olhos. Lá dentro, era apenas uma questão de checar as roupas e os aparelhos auriculares. E lá estavam duas agentes femininas usando sobretudos, provavelmente com automáticas Sig Sauer 9mm por baixo deles.
— Papai! — gritou Megan, levantando-se bruscamente. Ao lado dela havia outra criança de idade e aparência semelhante. O inspetor aproximou-se dela, abaixando-se para olhar o desenho a lápis-cera feito pela filha.
— Com licença — disse alguém e ele sentiu uma leve pressão sobre sua jaqueta: uma mão tateando sua automática.
— Você sabem quem eu sou — disse ele sem se virar.
— Claro que sei. — E então O’Day reconheceu a voz. Virou-se para ver Andréa Price.
— Foi rebaixada?—perguntou, levantando-se para olhar o rosto de Price. As duas agentes femininas disfarçadas de professoras de pré-escolar também o estavam observando de perto, alertadas pelo volume sob sua jaqueta de couro.
Nada mal, pensou O’Day. Elas o tinham examinado atentamente; o couro da jaqueta oferecia boa cobertura para a arma. Ambas continuavam executando as tarefas educacionais com as crianças, e suas expressões pareceriam casuais apenas aos não-iniciados.
— Engraçadinho. Estou checando os arranjos para as crianças — explicou.
— Esta é a Katie — disse Megan, apresentando sua nova amiga. — E esse é o papai.
— Ora, olá, Katie. — Abaixou-se para apertar sua mão e então se levantou novamente.— Ela é...?
— CHOCALHO, primeiro-bebê dos Estados Unidos — confirmou Price.
— E tem um de vocês do outro lado da rua? — Negócios em primeiro lugar..., — Dois. Horários alternados.
— É a cara da mãe — disse Pat a respeito de Katie Ryan. E, apenas por educação, tirou sua carteira oficial e jogou-a para a agente feminina mais próxima, Marcella Hilton.
— Está gostando de nos testar, não é? — perguntou Price.
— O seu homem na porta sabe que entrei. Ele parece um tira de rua.
— É o Don Russell, e ele já foi mesmo, mas...
— Mas não existe essa de cuidado demais — concordou o inspetor O’Day. — Sim, certo, admito, eu queria ver o quanto vocês estão sendo cuidadosos. Ei, minha menininha também está aqui. Acho que este lugar agora é um alvo. — Merda, pensou.
— Então passamos?
— Um do outro lado da rua, três aqui dentro. Aposto que vocês têm mais três acampados a noventa metros. Quer que eu procure pelo Suburban e pelos atiradores ocultos?
— Procure bem. Eles estão muito bem escondidos. — Ela não mencionou o agente que ele não vira dentro do prédio.
— Aposto que estão, agente Price — concordou O’Day, pegando a pista e olhando em volta. Ali estavam duas câmeras de TV disfarçadas que deviam ter sido instaladas recentemente. Isso também explicava o leve cheiro de tinta, o que por sua vez explicava a falta de marcas de mãos nas paredes. O prédio devia ter agora mais fios que uma máquina de fliperama. — Devo admitir, vocês são muito matreiros. Isso é bom — concluiu.
— Novidades sobre o acidente? Pat balançou a cabeça.
— Na verdade, não. Estudei mais algumas entrevistas hoje. As únicas inconsistências foram pequenas demais para significarem alguma coisa. A Polícia Montada está nos dando uma tremenda ajuda, a propósito. Os japonas também. Acho que eles já conversaram com todo mundo que Sato conheceu na vida, começando por sua professora do jardim de infância. Isso incluiu duas aeromoças com quem ele vinha saindo. O caso já está resolvido, Price.
— Andréa — replicou ela.
— Pat. — E ambos sorriram.
— Qual você usa?
— Uma Smith 1076. Melhor que as 9mm que vocês carregam — disse com expressão um tanto arrogante. O’Day acreditava em fazer buracos grandes, de preferência apenas em alvos, mas também em gente, se necessário. O Serviço Secreto seguia sua própria política de armas, e nesse campo ele estava certo de que o FBI tinha ideias melhores. Ela não pareceu irritada.
— Pode nos fazer um favor? Da próxima vez que vier, mostre sua identidade ao nosso agente na entrada. Talvez não seja sempre o mesmo.
Ela nem sequer pediu que ele deixasse sua arma no caminhão. Puxa, isso é que era cortesia profissional.
— E então, como vai ele?
— ESPADACHIM?
— Dan... o diretor Murray... acha o sujeito o máximo. Eles se conhecem há anos. Eu e Dan também.
— Nossa relação é apenas profissional, mas sabe de uma coisa? Murray está certo. Já vi piores. Ele também é mais esperto do que aparenta.
— Nas vezes que estive perto dele, percebi que ele sabe escutar.
— Melhor ainda, ele faz perguntas.
Ao som de um grito de criança, ambos se viraram, vasculharam a sala ao mesmo tempo e da mesma maneira, e em seguida viraram-se novamente para as duas menininhas, que estavam compartilhando lápis-cera para suas respectivas obras de arte. — A sua e a nossa se dão bem juntas — disse Price.
A nossa, pensou Pat. Isso dizia tudo. O homem grande no fundo da sala era Russell. Era agora o chefe desta subsegurança presidencial, e, com toda a certeza do mundo, um agente muito experiente. Eles haviam selecionado agentes mais jovens para o trabalho interno — duas mulheres, para melhor se imiscuírem no ambiente. Elas deviam ser boas, mas não tanto quanto ele era.
Nossa era a palavra-chave. Como leões rodeando os filhotes, ou apenas um, neste caso. O’Day se perguntou como feria este trabalho. Seria tedioso ficar simplesmente parado ali daquele jeito, mas um agente com essa responsabilidade não podia se dar ao luxo de ficar entediado. Aquilo seria um desafio. Ele já tivera sua cota de missões de vigilância discreta, um tremendo feito para alguém do seu tamanho, mas esta seria muito pior. Ainda assim, o olho de um tira veria a diferença entre as mulheres e as outras professoras de pré-escolar.
— Andréa, me parece que o seu pessoal trabalha muito bem. Por que tantos?
— Sei que estamos exagerando um pouco. — Price inclinou a cabeça. — Esta segurança ainda está em fase de teste. Ei, levamos uma tremenda cacetada no Capitólio, lembra? Não vai acontecer outra como aquela, não no meu turno, não enquanto eu dirigir a segurança presidencial, e se a imprensa encrespar com isso, que se foda. — Ela até falava como uma tira de verdade.
— Moça, concordo em gênero, número e grau. Se me dá licença, tenho de ir para casa fazer macarrão com queijo. — Ele olhou para baixo. Megan estava terminando sua obra de arte. Um observador casual sentiria dificuldade em distinguir as duas meninas. Isso era levemente preocupante, mas esse era o motivo para o Serviço estar aqui. — Onde você pratica? — Ele não precisava dizer o quê.
— Tem uma galeria no prédio da antiga sucursal, perto da Casa Branca.
Uma vez por semana — respondeu Price. — Não há um agente aqui que não possa ser chamado de especialista, e eu apostaria em Don contra qualquer um do mundo.
— Mesmo? — Os olhos de O’Day faiscaram. — Precisamos nos ver um dia desses. — Na sua casa ou na minha? — perguntou Price com uma piscadela.
— Presidente, o Sr. Golovko na três. — Essa era uma linha direta. Sergey Nikolayevich manifestava-se novamente. Jack apertou o botão.
— Sergey?
— Irã.
— Estou sabendo — disse o presidente.
— Quanto? — indagou o russo, suas malas já prontas para voltar para casa.
— Saberemos com certeza daqui a mais ou menos dez dias.
— Concordo. Ofereço cooperação.
Isso acabaria se transformando num hábito, pensou Jack, mas sempre era o tipo de coisa que requeria reflexão.
— Discutirei isso com Ed Foley. Quando voltará para casa?
— Amanhã.
— Telefone-me então.
Surpreendente como ele podia conversar com tamanha eficiência com um ex-inimigo. Teria de treinar o Congresso nesse sentido, pensou o presidente com um sorriso. Ryan levantou de sua mesa e caminhou até a sala do secretariado.
— Que tal alguma coisa para comer antes do meu próximo compromisso...
— Olá, presidente — disse Price. — Tem um minuto? Ryan cumprimentou-a enquanto sua segunda secretária telefonava para a cozinha.
— Tenho.
— Só queria dizer-lhe que inspecionei os procedimentos de segurança para seus filhos. Está bastante rígido.
Se isso deveria agradar o POTUS, ele não demonstrou, pensou Andréa.
Mas era compreensível. Ei, temos um monte de guarda-costas cuidando dos seus filhos. Que mundo. Dois minutos mais tarde, ela estava falando com Raman, que estava preparado para encerrar o expediente, tendo chegado na Casa Branca às cinco da manhã. Como sempre, não havia nada para reportar.
Tinha sido um dia calmo na Casa.
O agente mais jovem saltou de seu carro e dirigiu até o complexo, primeiro mostrando seu passe para os guardas da casamata e esperando que lhe abrissem o portão fortificado — uma barreira de 22 centímetros de espessura, de aparência robusta o bastante para deter um caminhão. Dali, traçou um caminho entre as barricadas de concreto da Pennsylvania Avenue — que até bem recentemente fora uma rua pública. Dobrou para oeste na direção de Georgetown, onde ficava seu apartamento. Mas desta vez não foi para casa. Em vez disso dobrou à direita na Wisconsin Avenue. Em seguida, dobrou novamente à direita e estacionou.
Era vagamente divertido o fato de que o homem fosse um mercador de tapetes. Muitos americanos pensavam que os iranianos eram sempre terroristas, mercadores de tapetes ou médicos mal-educados. Este deixara a Pérsia — mas a maioria dos americanos não associam tapetes persas com o Irã, como se fossem duas nações distintas — havia mais de 15 anos. Na parede havia fotografias de seu filho que, ele dizia àqueles que perguntavam, fora morto na guerra Irã-Iraque. Era verdade. Também dizia, a quem expressasse interesse, que odiava o governo de seu antigo país. Era mentira. Ele era um agente adormecido. Ele nunca estabelecera um único contato com qualquer um relacionado mesmo em terceiro grau com Teerã. Talvez ele tivesse sido investigado. Era mais provável que não tivesse sido. Ele não pertencia a nenhuma associação, não marchava, não expressava opiniões nem fazia nada além de conduzir um negócio próspero — como Raman, ele nem sequer frequentava uma mesquita. Na verdade, jamais se encontrara com Raman; assim, quando o homem entrou pela porta da frente, seu interesse dizia respeito apenas a qual entre os numerosos tapetes feitos à mão Raman iria querer. Em vez disso, depois de se certificar que não havia mais ninguém na loja naquele momento, seu visitante seguiu diretamente até o balcão.
— A foto na parede. Ele parece com você. Seu filho?
— Sim — respondeu o homem com uma tristeza que jamais o abandonava, com Ou sem promessas de Paraíso. — Morreu na guerra.
— Muitos perderam filhos naquele conflito. Era um rapaz religioso?
— Isso importa agora? — perguntou o mercador, piscando nervosamente os olhos.
— Sempre importa — disse Raman, num tom de voz absolutamente casual.
Os dois homens caminharam até a pilha de tapetes mais próxima. O comerciante levantou algumas bordas para mostrar os padrões.
— Estou em posição — disse Raman. — Requisito instruções sobre adequação de momento.
Raman não tinha um codinome, e a senha que ambos haviam acabado de trocar era conhecida apenas por três homens. O comerciante não sabia nada além disso, exceto repetir as nove palavras que ele acabara de ouvir para outra pessoa. Em seguida, esperaria por uma resposta e a transmitiria para Raman.
— O senhor se importaria de preencher um formulário para minha lista de clientes?
Raman fez isso, colocando o nome e o endereço de uma pessoa de verdade.
Ele escolhera o nome na lista telefônica — na verdade um catálogo de referência cruzada que havia na Casa Branca, que facilitava escolher um número apropriado. Uma marca sobre o sexto dígito dizia ao comerciante onde acrescentar 1 a 3 para obter 4 e assim completar a ligação. Era uma forma excelente de comunicação cifrada, ensinada ao seu instrutor na Savak por um israelense havia mais de duas décadas e jamais esquecido; afinal nenhum homem da cidade sagrada de Qom esquecia muito a respeito de qualquer coisa.
22
Fusos Horários
O tamanho da Terra e a localização dos pontos problemáticos eram muitíssimo convenientes. A América ia dormir quando outras partes do mundo estavam acordando para um novo dia, situação dificultada pelo fato de que as pessoas oito a nove horas adiantadas eram aquelas que tomavam as decisões às quais o resto do mundo precisaria reagir. Somava-se a isso o fato de que os agentes da CIA americana não dispunham de muitos recursos para prever os eventos. Isso deixava para STORM TRACK e PALM BOWL o dever de reportar principalmente o que diziam a imprensa e as emissoras de TV locais. E assim, enquanto o presidente americano dormia, pessoas suavam para coletar e analisar informações que ele só veria no meio do dia seguinte. Mesmo assim, o melhor dos espiões de Washington era importante demais para trabalhar no turno da noite — eles tinham famílias, afinal — e portanto também só leriam os documentos no dia seguinte, e depois participariam de várias reuniões e debates, o que só atrasaria ainda mais a apresentação de uma informação vital à segurança nacional. Em termos militares isso se chamava ter a iniciativa — fazer o primeiro movimento, físico, político ou psicológico. E era ainda melhor se o outro lado começasse a correr no último terço do dia seguinte.
As coisas estavam ligeiramente melhores em Moscou, que tinha apenas uma hora de diferença em relação ao tempo de Teerã, e ficava no mesmo fuso horário que Bagdá. Infelizmente, a RVS — sucessora da KGB — estava na mesma posição da CIA, tendo tido a maioria de suas redes varridas dos dois países. Mas para Moscou os problemas eram também um pouco mais próximo do lar, como Sergey Golovko descobriria quando deu avião aterrissasse em Sheremetyevo.
O maior problema no momento seria a reconciliação. A TV matutina no Iraque anunciara que o novo governo de Bagdá informara à ONU que todas as equipes internacionais de inspeção teriam total liberdade de visitar qualquer instalação do país, sem nenhuma interferência — na verdade, o Iraque exigiu que as inspeções fossem realizadas o mais depressa possível —, e contando com todo o apoio que pudessem oferecer. O novo governo de Bagdá expressava o objetivo de remover todos os obstáculos à restauração plena do comércio internacional de seu país. Por enquanto, a nação vizinha, Irã, expressou o pronunciamento, começaria a enviar caminhões de alimentos, de acordo com as antigas leis islâmicas de caridade aos necessitados. Isso era uma amostra da intenção do Irã em reentrar na comunidade das nações. Imagens gravadas em PALM BOWL da retransmissora de TV de Bassorá mostravam o primeiro comboio de caminhões de alimentos seguindo pela tortuosa rodovia Shahabad e cruzando o território iraquiano no sopé das montanhas que separavam os dois países. Outras imagens mostravam guardas da fronteira iraquiana removendo seus obstáculos e gesticulando para que os caminhões passassem, enquanto seus colegas iranianos permaneciam pacificamente de seu lado da fronteira, sem armas em evidência.
Em Langley, pessoas calculavam o número de caminhões, tonelagem de sua carga, e o número de pães resultante. Concluíram que, para ajudar de fato, seria necessário mandar navios com os porões carregados de pão. Mas símbolos eram importantes, e agora navios estavam realmente sendo carregados, conforme indicavam diversos satélites. Os representantes das Nações Unidas em Genebra, a apenas três horas atrás no tempo, receberam os pedidos de Bagdá com prazer e enviaram ordens imediatas para suas equipes de inspeção, que encontraram Mercedes à sua espera para ser escoltados por carros de polícia até os primeiros locais em suas listas. Ali também encontraram jornalistas de TV que iriam segui-los para onde quer que fossem, assim como representantes do governo que garantiram estar deliciados em poder contar tudo que sabiam e oferecer sugestões de como desmantelar, primeiro, uma fábrica de armas químicas disfarçada de indústria de inseticida. Finalmente, o Irã solicitou um encontro especial com o Conselho de Segurança para pedir o cancelamento dos embargos comerciais remanescentes, algo tão certo quanto o nascer do sol, ainda que tardio, na Costa Leste dos Estados Unidos. Dali a duas semanas a dieta média do Iraque aumentaria em pelo menos quinhentas calorias. O impacto psicológico não era difícil de prever, e o país que seria o principal responsável na restauração da normalidade à nação rica em petróleo seria seu antigo inimigo, o Irã — como sempre, citando a religião como o fator motivador da ajuda que estavam prestando.
— Amanhã veremos fotos de pão sendo distribuído gratuitamente nas mesquitas — previu o major Sabah. Ele poderia ter acrescentado as passagens do Corão que acompanhariam o evento, mas, considerando o conhecimento de cultura islâmica de seus colegas americanos, preferiu ficar calado.
— Sua estimativa, senhor? — perguntou o oficial americano mais graduado.
— Os dois países irão se unir — replicou Sabah. — E em breve.
Não havia motivo para perguntar por que as fabricas de armas iraquianas remanescentes estavam sendo expostas. O Irã tinha todas de que precisava.
Não existia mágica. Essa era apenas a palavra usada pelas pessoas para explicar truques realizados com tanta inteligência e técnica que os espectadores não tinham como deduzir sua lógica. E a técnica mais simples empregada pelos mágicos era distrair a plateia movendo uma mão (geralmente enluvada) enquanto a outra trabalhava. O mesmo se aplicava às nações. Enquanto caminhões corriam pela estrada, navios eram carregados, diplomatas recebiam convocações e a América acordava para descobrir o que estava acontecendo, a noite começava em Teerã.
Os contatos de Badrayn tinham sido úteis como sempre, e o que ele não pudera fazer ficara por conta de Daryaei. O jato comercial identificado como civil decolou de Mehrabad e virou para leste, seguindo primeiro para o Afeganistão e em seguida para o Paquistão, num voo de duas horas que terminou na cidade obscura de Rutog, perto da fronteira Paquistão-Índia-Caxemira. A cidade ficava nas montanhas Kunlun do primeiro país, e lar de parte da população muçulmana da China. A cidade fronteiriça tinha uma base da Força Aérea que abrigava alguns MIGs de fabricação local, e uma única pista de pouso, tudo separado do pequeno aeroporto regional da cidade. A localização era ideal para o propósito, assim como seus 965 quilômetros de distância de Nova Deli, e embora a terra fosse propriedade do governo chinês, o voo mais longo partira de Pequim, que ficava a mais de três mil quilômetros dali. As três aeronaves pousaram com uma diferença de alguns minutos, logo depois do pôr do sol local, taxiaram até a extremidade da rampa e estacionaram.
Veículos militares conduziram os passageiros até a sala de espera. O aiatolá Mahmoud Haji Daryaei estava acostumado a acomodações mais limpas e, pior, podia sentir o cheiro de porco frito, sempre parte da dieta chinesa mas absolutamente nauseante para ele. Procurou esquecer isso. Ele não era o primeiro fiel que precisava lidar com pagãos e infiéis.
A primeira-ministra da índia foi cordial. Ela já conhecera Daryaei numa conferência regional e o considerara retraído e antissocial. Isso, como ela logo viu, não mudara muito.
O último a chegar foi Zhan Han San, a quem a primeira-ministra também conhecia. Era um homem rotundo e jovial — até que se observasse seus olhos atentamente. Mesmo suas piadas eram ditas com um objetivo em aprender alguma coisa de seus companheiros. O único dos três cujo trabalho não era realmente conhecido pelos outros. Entretanto, estava claro que ele falava com autoridade, e como seu país era o mais poderoso dos três, não era um insulto que um mero ministro sem pasta estivesse tratando com chefes de Estado. O encontro foi conduzido em inglês, exceto pela despedida de Zhang ao oficial geral que recebera o grupo.
— Por favor, perdoem-me por não estar aqui quando chegaram. A... irregularidade no protocolo é lamentada com sinceridade.
Serviu-se chá, juntamente com alguns aperitivos. O tempo não fora suficiente para a preparação de uma refeição adequada.
— Não há nenhum problema — respondeu Daryaei. — A inconveniência é o preço da velocidade. Quanto a mim, estou muitíssimo grato por sua disposição em receber-me sob estas circunstâncias especiais. — Ele se virou. — E à senhora, primeira-ministra, por se reunir a nós. Deus abençoe esta reunião — concluiu.
— Minhas congratulações pelos acontecimentos no Iraque — disse Zhang, perguntando-se se a reunião seria conduzida por Daryaei, tamanha havia sido a habilidade com que enfatizara o fato de ter sido ele o organizador da assembleia. — E uma ocasião feliz, depois de tantos anos de discórdia entre as duas nações.
Sim, pensou índia, bebericando seu chá. Como você foi esperto em matar o homem num momento tão apropriado.
— E então, em que posso ser útil? — perguntou, reconhecendo assim a liderança de Daryaei e do Irã na reunião, para a irritação impassível da China.
— A senhora esteve recentemente com Ryan. Estou interessado em suas impressões.
— Um homem pequeno num trabalho grande — replicou prontamente. — O discurso que fez no funeral, por exemplo. Teria sido mais adequado a uma cerimônia particular em família. Esperam-se coisas maiores de um presidente.
Na recepção posterior, pareceu nervoso e pouco à vontade, e sua esposa é uma mulher arrogante... médica, como sabem. Eles quase sempre são cheios de si.
— Tive a mesma impressão a respeito dele quando o encontrei há alguns anos — concordou Daryaei.
— Ainda assim ele controla um grande país — observou Zhang.
— Controla? — inquiriu Irã. — A América ainda é grande? De onde vem a grandeza de uma nação, senão de seus líderes?
E essa, os dois outros chefes de Estado perceberam de imediato, era a pauta da reunião.
— Deus do céu — sussurrou Ryan para si mesmo. — Este é um lugar solitário.
Esse pensamento não parava de ocorrer-lhe, principalmente quando ficava sozinho neste escritório com suas paredes curvas e portas moldadas de sete centímetros. Estava usando seus óculos de leitura o tempo inteiro agora — recomendação de Cathy — mas isso meramente suavizara suas enxaquecas. Não que ele fosse desabituado à leitura. Todos os trabalhos que tivera nos últimos 15 anos tinham exigido longas horas de leitura, mas as enxaquecas contínuas eram novidade. Talvez devesse falar com Cathy ou outro médico a esse respeito? Não. Ryan balançou a cabeça. É apenas estresse do trabalho, e teria apenas de aprender a lidar com ele.
Claro, é só estresse. E câncer é só uma doença.
Seu trabalho no momento era política. Estava lendo um relatório de posição preparado pelos assessores políticos na OEOB, que ficava do outro lado da rua. Acha engraçado, e até consolador, o fato de que eles não sabiam o que aconselhá-lo. Ryan nunca pertencera a um partido político. Sempre se registrara como um independente, e isso o mantivera livre de cartas de solicitação da parte dos partidos organizados. Mas o presidente não apenas deveria ser membro de um partido — ele deveria ser o líder desse partido. Os partidos estavam ainda mais inteiramente decapitados que os três poderes do governo. Cada um deles ainda tinha um diretor, e ambos não sabiam o que fazer no momento. Durante alguns dias, presumira-se que Ryan era membro do mesmo partido que Roger Durling, e a verdade fora descoberta pela imprensa havia apenas alguns dias, gerando um coletivo puta merda! da cúpula de Washington. Para os gurus ideológicos da capital, aquilo era como perguntar quanto era dois mais dois e descobrir que a resposta era quatorze. O relatório de posição era previsivelmente caótico, produto de quatro ou mais analistas políticos profissionais, e era possível discernir quem escrevera os diferentes parágrafos daquela babel de letras. Até sua assessoria de informações fazia melhor que aquilo, disse Jack a si mesmo, jogando o papel na caixa de documentos lidos e desejando, novamente, fumar um cigarro. Ele sabia que isso também era o estresse falando.
Mas ele ainda tinha de sair para as tribunas, palavra cujo significado jamais aprendera, e realizar campanha por pessoas, ou, pelo menos, proferir discursos.
Ou algo do gênero. A orientação do relatório de posição não tinha sido exatamente clara nesse sentido. Já tendo atirado no próprio pé na questão do aborto — mais para o alto e para o centro, comentara acidamente Arnie van Damm no dia anterior, para reforçar sua última lição —, agora Ryan teria de deixar sua posição política evidente numa miríade de questões: ação afirmativa numa extremidade do alfabeto e saúde na outra, com impostos, meio ambiente e Deus sabe mais o quê, no meio. Depois que decidisse sua posição nessas questões, Callie Weston escreveria uma série de discursos para que ele pronunciasse de Seattle até Miami e Deus sabe mais onde, no meio. Havaí e Alasca estavam de fora porque eram estados pequenos em termos de importância política, e, de qualquer modo, ideologicamente polarizados. Eles iriam apenas tornar a situação mais confusa, ou pelo menos era isso que o documento lhe dissera.
— Por que não posso simplesmente ficar aqui e trabalhar, Arnie? — perguntou Ryan quando seu chefe de gabinete entrou na sala.
— Porque há trabalho para fazer lá fora, presidente. — Van Damm sentou-se para iniciar mais uma aula de presidência. — Porque, como você mesmo disse, É uma função de liderança ... citei certo? — perguntou Arnie com um olhar sardônico. — E liderar significa reunir-se com as tropas ou, neste caso, com os cidadãos. Isso está bem claro, presidente?
— Está se divertindo com isso? — Jack fechou os olhos e esfregou-os sob as lentes. Ele também odiava os malditos óculos.
— Tanto quanto você. — O que foi um comentário completamente justo.
— Perdão.
— A maioria dos que vêm morar aqui gosta realmente de escapar deste museu e encontrar pessoas de verdade. Obviamente, isso deixa gente como Andréa nervosa. Eles provavelmente concordarão em mantê-lo aqui o tempo todo. Mas o lugar já lhe parece uma prisão, não é mesmo? — indagou Arnie.
— Só quando acordo.
— Então saia. Conheça gente. Diga-lhes o que pensa, diga-lhes o que quiser.
Merda, eles talvez até ouçam. Talvez até lhe digam o que eles pensam, e talvez você aprenda alguma coisa. Em todo caso, você não pode ser presidente e não fazer isso.
Jack ergueu o relatório de posição depois de terminar.
— Leu esta coisa? Arnie assentiu.
— Li.
— É um monte de lixo — disse Ryan, completamente surpreso com sua própria resposta.
— É um documento político. Desde quando a política é consistente ou sensata? — Depois de uma pausa, prosseguiu: — As pessoas com que trabalhei nos últimos vinte anos ingeriam esse tipo de coisa junto com o leite da mãe... ou talvez não. Deviam ser bebês de mamadeira.
— Quê? Pergunte a Cathy. É uma dessas teorias comportamentais, aquele papo de Nova Era que supostamente explica tudo sobre todos em qualquer lugar. Todos os políticos são bebês de mamadeira. Suas mães nunca lhes deram o peito, e por causa disso se sentiram rejeitados e nunca desenvolveram empatia. Assim, como compensação, fazem discursos e dizem às pessoas em lugares diferentes as coisas que teriam gostado de ouvir, e recebem de estranhos o amor e a devoção que as mães lhes negaram... para não mencionar aqueles como Kealty, que tentam foder o tempo todo. Por outro lado, as crianças nutridas apropriadamente crescem para se tornar... médicos, acho, ou talvez rabinos...
— Mas quanta babaquice — o presidente quase gritou. Seu chefe de gabinete simplesmente sorriu.
— Te peguei por um momento, não foi? Admita. — Arnie fez um pausa e prosseguiu: — Acho que sei o que os fundadores esqueceram ao construir este país.
— Muito bem, me diga. —Jack fechou os olhos, tentando encontrar o humor no momento. Diabos, Arnie sabia como dar uma aula.
— Esqueceram de incluir um bobo da corte no Gabinete. Sabe como é, um anão... desculpe... um indivíduo do sexo masculino verticalmente desprovido... com ceroulas, multicoloridas e aquele chapéu engraçado com guizos. Um deles devia ficar ali no canto... claro, não tem um canto nesta sala, mas isto não vem ao caso... e a cada 15 minutos devia saltar sobre sua mesa, sacudir um chocalho na sua cara apenas para lembrá-lo de que você precisa mijar de vez em quando, como todo mundo. Entendeu agora, Jack?
— Não — admitiu o presidente.
— Seu burro! Este trabalho pode ser divertido Sair e ver seus cidadãos é divertido. Aprender o que eles querem é importante, mas também há um lado engraçado nisso. Eles querem amar você, Jack. Eles querem apoiá-lo. Eles querem saber o que você pensa. Acima de tudo, eles querem saber que você é um deles... e sabe de uma coisa? Você é o primeiro presidente em muito tempo que realmente é Então saia da porra dessa cadeira, mande aquecer as turbinas do Grande Pássaro Azul e faça o maldito jogo!
Arnie não precisou acrescentar que tudo já estava tão programado que ele não teria como tirar o corpo fora.
— Nem todo mundo vai gostar do que eu disser e do que eu acredito, Arnie, e prefiro morrer a mentir para pessoas apenas para ganhar votos ou qualquer coisa assim.
— Você espera que todos o amem? — perguntou van Damm, novamente sardônico. — A maioria dos presidentes ficaria satisfeito com 51 por cento.
Pouquíssimos conseguiram manter esse percentual por muito tempo. Eles arrancaram a sua cabeça por causa da sua declaração sobre o aborto, e sabe por quê? Porque a sua declaração foi confusa.
— Não foi não. Eu...
— Vai ouvir seu professor ou não?
— Prossiga — disse o presidente.
— Para início de conversa, quarenta por cento das pessoas votam nos democratas. Cerca de quarenta por cento votam nos republicanos. Desses oitenta por cento, a maioria não mudaria seu voto se Adolf Hitler estivesse concorrendo com Abe Lincoln... ou contra FDR, apenas para cobrir os dois lados...
— Mas por quê...
— Por que o céu é azul, Jack? — Exasperado. — Apenas é, entendeu? Mesmo se você puder explicar, e suponho que um astrônomo poderia fazê-lo, o céu é azul e vamos simplesmente aceitar o fato, certo? Assim restam-nos os vinte por cento que ficam mudando de lado. Talvez eles sejam os verdadeiros independentes, como você. Esses vinte por cento controlam o destino de nossa nação, e se você quiser que as coisas aconteçam do seu modo, essas são as pessoas que precisa alcançar. Agora, vem a parte engraçada. Esses vinte por cento não ligam para o que você pensa. — Essa conclusão foi coroada com um sorriso diabólico.
— Espere um minuto... Arnie estendeu a mão.
— Pare de interromper seu professor, menino. Os oitenta por cento que votam nos partidos não se preocupam muito com caráter. Eles votam porque acreditam na filosofia do partido... ou porque mamãe e papai sempre votaram dessa maneira. O motivo não importa realmente. É assim que acontece. É um fato. Lide com ele. Agora, voltemos aos vinte por cento que realmente importam. Eles se preocupam menos com o que você acredita do que com o que você é. Aí está a sua vantagem, presidente. Politicamente falando, você tem tanto a ver com este lugar quanto um menino de três anos tem a ver com uma loja de armas, mas você tem caráter a dar com pau. É por aí que vamos jogar.
Ryan franziu a testa ao ouvir a expressão jogar, mas desta vez ficou calado. Assentiu para seu chefe de gabinete prosseguir.
— Simplesmente diga no que você acredita. E diga com simplicidade. As boas ideias são expressas de forma simples e eficaz. Irão respeitá-lo e apoiá-lo mesmo quando discordarem de você. Por quê? Porque saberão que é um homem de palavra. E querem que o ocupante deste cargo seja um homem íntegro. Porque sabem que, mesmo nas piores situações, você sempre fará a coisa certa.
— Oh.
— O resto é embalagem. E não discuta comigo sobre isso, tá? Não há nada imoral em saber como transmitir corretamente suas ideias. No livro que escreveu sobre Halsey, O marinheiro combatente, você escolheu muito cuidadosamente as palavras para expressar suas ideias, certo? — O presidente assentiu. — O mesmo vale para essas ideias. Droga, essas ideias são ainda mais importantes, e você precisa embrulhá-las com uma perícia bem maior, concorda?
O plano de aula estava fluindo perfeitamente, considerou o chefe de gabinete.
— Arnie, com quantas dessas ideias você concorda?
— Não concordo com todas. Acho que você está errado sobre o aborto. Uma mulher tem o direito de escolher. Discordo sobre a ação afirmativa e em mais algumas coisas, mas você sabe, presidente, jamais duvidei de sua integridade nem por um único minuto. Não posso lhe dizer no que acreditar, mas você sabe como ouvir. Amo este país, Jack.
Minha família escapou da Holanda, atravessou o canal da Mancha num barco quando eu tinha três anos. Ainda lembro de ter posto as tripas pra fora.
— Você é judeu? — perguntou Jack com surpresa. Ele não tinha nenhuma ideia de qual igreja Arnie frequentava, se é que alguma.
— Não, meu pai era da Resistência e foi delatado. Saímos de lá na hora certa, se não, ele teria sido fuzilado e mamãe e eu teríamos acabado no mesmo campo que Anne Frank. O resto da minha família não teve tanta sorte. O nome dele era Willem, e ao fim da guerra decidiu que viríamos para cá, e cresci ouvindo histórias sobre o velho país, e como este lugar era diferente. É diferente. Tornei-me o que sou para proteger o sistema. Que torna a América diferente? A Constituição, acho. As pessoas mudam, os governos mudam, as ideologias mudam, mas a Constituição sempre continua a mesma. Você e Pat Martin fizeram um juramento. Eu fiz o meu — prosseguiu van Damm. — Só que o meu foi feito para mim mesmo, mamãe e papai. Não preciso concordar com você em todas as questões, Jack. Sei que você tentará fazer a coisa certa. Meu trabalho é protegê-lo para que você possa fazer o seu. Isso significa que você precisa ouvir, e que às vezes terá de fazer coisas que não aprecia. Mas esse é o seu trabalho, presidente. Um trabalho com regras próprias. E precisa segui-las — concluiu calmamente o chefe de gabinete.
— Como tenho me saído, Arnie? — perguntou Ryan, absorvendo a maior lição da semana.
— Nada mal, mas precisa fazer melhor. Kealty ainda é mais um incômodo que uma ameaça. Excursionar e parecer mais presidencial irá marginalizá-lo ainda mais. Agora, outra coisa. Assim que você sair, as pessoas começarão a lhe fazer perguntas sobre reeleição. Que vai dizer?
Ryan balançou a cabeça enfaticamente.
— Não quero este trabalho, Arnie. Vamos deixar alguém assumir quando...
— Nesse caso, você está fodido. Ninguém o levará a sério. Os congressistas não farão o que você quer. Estará aleijado e incapaz de concretizar as coisas que está pensando. Você se tornará politicamente ineficaz. A América não pode se dar a esse luxo, presidente. Governos estrangeiros... aqueles geridos por políticos, não esqueça... não o levarão a sério, e isso terá implicações na segurança nacional, a curto e longo prazos. Então, que dirá quando os jornalistas perguntarem?
O presidente sentiu-se como um aluno de primário levantando a mão para responder.
— Que não decidi ainda?
— Correto. Você está se dedicando ao seu trabalho de reconstruir o governo, e tratará desse assunto no devido tempo. Discretamente, deixarei transpirar a informação de que está pensando em permanecer na Casa Branca, que sente que seu dever principal é para com a nação, e quando os repórteres perguntarem isso, repita simplesmente sua afirmativa original. Isso enviará aos governos estrangeiros uma mensagem que eles entenderão e levarão a sério, e o povo americano também irá entendê-la e respeitá-la. As primárias presidenciais de ambos os partidos não selecionarão os candidatos marginais que não foram varridos no Capitólio. Eles votarão em delegações independentes. Talvez queiramos opinar a esse respeito. Conversarei sobre isso com Callie.
Ele não acrescentou que a mídia simplesmente iria amar essa perspectiva.
Cobrir duas convenções políticas abertas era um sonho que poucos jornalistas tinham ousado nutrir. Arnie estava considerando que sempre que Ryan tomasse qualquer posição, não menos de quarenta por cento do povo objetaria contra ela, talvez mais. O curioso quanto ao percentual de vinte por cento era que ele cobria todo o espectro político — como ele mesmo, menos preocupado com ideologia do que com caráter. Alguns objetariam vigorosamente, e fazendo isso se tornariam indistintos dos quarenta por cento que compartilhavam essa postura política, embora no fim do dia fossem votar no homem. Sempre faziam isso, mesmo sendo gente honesta que colocava o país acima do preconceito, mas juntando-se a um processo que muito frequentemente selecionava pessoas que careciam da honra de seus eleitores. Ryan ainda não percebera a oportunidade que tinha nas mãos, e talvez fosse melhor que não percebesse, porque assim talvez tentasse direcionar essa fatia do eleitorado, o que jamais aprenderia a fazer bem. Mesmo homens de honra podiam cometer erros, e Ryan não era diferente do resto. Era por causa disso que existiam pessoas como Arnold van Damm, para ensinar e guiar por dentro e por fora do sistema ao mesmo tempo. Ele olhou para o presidente, percebendo a confusão que acompanhava novos pensamentos. Estava tentando conferir sentido àquilo, e provavelmente conseguiria, porque era um bom ouvinte e um processador de informações particularmente hábil. Contudo, não chegaria à conclusão natural.
Apenas Arnie e talvez Callie Weston eram capazes de avistar um futuro tão distante. Nas últimas semanas, van Damm decidira que Ryan tinha o material certo para um presidente. Seu trabalho, decidira o chefe de gabinete, seria garantir que Jack permanecesse ali.
— Não podemos fazer isso — protestou a primeira-ministra da índia, admitindo: — Acabamos de receber uma lição da Marinha americana.
— Uma lição dura — concordou Zhang. — Mas não permanente. Acredito que o dano infligido aos seus navios estará sanado nas próximas duas semanas.
Essa afirmação fez Índia virar sua cabeça. Ela fora informada a esse respeito havia apenas alguns dias. Os reparos estavam minando uma parcela considerável do orçamento anual da Marinha indiana, o que vinha sendo sua maior preocupação. Não era todo dia que um país estrangeiro, particularmente um que já fora oponente numa guerra, revelava sua penetração em outro governo.
— Os EUA são uma fachada, um gigante com um coração doente e um cérebro insano — teorizou Daryaei. — A senhora mesma nos disse, primeira-ministra. O presidente Ryan é um homem pequeno num trabalho grande. Se tornarmos esse trabalho maior e mais difícil, os EUA perderão sua capacidade de interferir conosco por tempo suficiente para alcançarmos nossos objetivos. O governo americano está paralisado e permanecerá assim por algumas semanas.
Tudo que precisamos fazer é aumentar o grau de paralisia.
— E como é possível isso? — indagou índia.
— Através do estratagema simples de ampliar seus problemas externos e ao mesmo tempo perturbar sua estabilidade interna. Para a primeira coisa bastarão algumas ameaças da sua parte. Quanto à segunda, isso é assunto meu. Mas acho que será melhor que a senhora não tenha nenhum conhecimento a respeito desse aspecto.
Tivesse podido, Zhang não teria nem mesmo respirado naquele momento, para melhor controlar as emoções. Não era todo dia que se encontrava com alguém tão impiedoso quanto ele. Além disso, não queria saber o que Daryaei tinha em mente. Era melhor que outro país cometesse um ato de guerra.
— Prossiga — disse Zhang, pegando um cigarro no bolso.
— Cada um de nós representa um país com grandes capacidades e necessidades. China e índia possuem populações enormes e precisam de espaço e recursos. Em breve disporei de recursos, do capital que vem com eles, e também da capacidade de determinar como ambos serão distribuídos. A União Republicana do Islã se tornará uma grande potência como as suas. O Ocidente dominou o Oriente por tempo demais. — Daryaei olhou diretamente para Zhang.
— Ao norte de nós jaz um cadáver apodrecido. Há muitos milhões de Fiéis lá, e eles precisam ser libertados. Lá também existem os recursos e o espaço de que o seu país precisa. Eu lhe darei isso, se me oferecer em troca as terras dos Fiéis.
— Ele olhou para a primeira-ministra da índia. — Ao sul de vocês jaz um continente vazio com o espaço e os recursos dos quais a senhora precisa. Por sua cooperação, acredito que a União Republicana do Islã e a República do Povo estarão dispostas a oferecer sua proteção. De cada um de vocês peço apenas cooperação silenciosa sem risco direto.
Índia comentou com seus botões que já ouvira isso antes, mas suas necessidades também não tinham mudado desde então. China pensou imediatamente numa forma de prover distração sem correr muito perigo. Isso acontecera antes. O Irã... ou melhor, essa República Unida... oh, claro, pensou Zhang. Claro. A União Republicana do Islã assumiria todos os riscos reais, embora aparentemente esses riscos houvessem sido muito bem calculados.
Quando retornasse a Pequim ele faria sua própria checagem da correlação de forças.
— Claro que não estou pedindo que assumam compromissos neste momento. Vocês precisam certificar-se de que estou falando sério a respeito de minhas capacidades e intenções. Contudo, peço que considerem minha proposta... informal... de uma aliança.
— Paquistão — sugeriu a primeira-ministra, numa atitude que Zhang considerou tola.
— Islamabad já é uma marionete americana há muito tempo, e portanto não merece nossa confiança — replicou prontamente Daryaei, que tinha considerado esse país antes, embora não esperasse que a índia o propusesse tão rapidamente.
Essa mulher odiava a América tanto quanto ele. Bem, a lição, como ela a chamara, ferira seu orgulho ainda mais profundamente do que seus diplomatas tinham reportado. Era bem típico uma mulher valorizar tanto o seu orgulho. E fraco. Excelente. Olhou para Zhang.
— Nossos compromissos com o Paquistão são unicamente comerciais, e como tais estão sujeitos a modificações — observou China, igualmente deliciado com a fraqueza de índia. Ela não tinha ninguém a quem culpar além de si própria. Ela designara forças para o campo de batalha... ou melhor, para o mar... com o intuito de apoiar o ataque ineficaz do Japão à América. A China, por sua vez, não fizera e não arriscara nada, tendo emergido da guerra ilesa e descomprometida. Nem mesmo os superiores mais cautelosos de Zhang fizeram objeção às suas ações. E agora, novamente, mais ninguém assumiria riscos, e a índia se moveria para prover apoio pacifista, enquanto a China não teria nada a fazer além de repetir uma política anterior aparentemente sem nenhuma relação com essa nova União Republicana do Islã. Essa política pareceria apenas um teste para um novo presidente americano, e esse tipo de coisa acontecia o tempo todo. Além disso, Taiwan ainda era um incômodo. Aquilo era uma situação curiosa. Irã, motivado acima de tudo pela religião, a índia, motivada por cobiça e ódio. A China, por outro lado, pensava a longo prazo, buscando o que realmente importava, desapaixonada e discretamente, como de praxe. O objetivo do Irã era evidente, e se Daryaei estava disposto a correr risco de guerra em seu nome, então por que não observar em segurança, torcendo por seu sucesso? Mas ele não comprometeria seu país agora. Por que parecer ansioso? índia estava ansiosa bastante para deixar de ver o óbvio: se Daryaei fosse bem-sucedido, o Paquistão faria paz com a nova União Republicana do Islã, e talvez até se unisse a ela, e então a índia ficaria isolada e vulnerável.
Bem, era perigoso ser um vassalo, e ainda mais se você tinha aspirações de ascender ao nível seguinte — mas sem a capacidade de fazer isso acontecer. Era preciso muito cuidado na escolha de aliados. A gratidão entre nações era como uma flor de estufa: quando exposta ao mundo real, murchava facilmente.
A primeira-ministra meneou a cabeça em reconhecimento à sua vitória sobre o Paquistão, e não disse mais nada.
— Nesse caso, meus amigos, agradeço pela gentileza em reunirem comigo.
Agora, com sua permissão, preciso partir.
Os três se levantaram. Apertos de mão foram trocados, e caminharam até a porta. Minutos depois, o avião de Daryaei correu pela pista acidentada. O mula olhou para o bule que lhe foi oferecido e decidiu que seria melhor não tomar café. Queria algumas horas de sono antes de suas orações matutinas. Mas antes...
— Suas previsões estavam inteiramente corretas — reconheceu.
— Os russos chamam essas coisas de condições objetivas . Eles eram e ainda são infiéis, mas suas fórmulas de análise de problemas possuem um certo grau de precisão — explicou Badrayn. — Foi por causa disso que aprendi a colher informações com extremo cuidado.
— Foi o que vi. Sua próxima tarefa será planejar algumas operações.
Dito isso, Daryaei reclinou sua poltrona e fechou os olhos, imaginando se sonharia de novo com leões mortos.
Por mais que tivesse desejado um retorno à medicina clínica, Pierre Alexandre não gostava especialmente dela, pelo menos no tocante a tratar pessoas que não sobreviveriam. O ex-oficial das forças armadas que havia nele pensava que defender Bataan devia ter sido algo bem parecido. Fazer tudo que estava ao seu alcance, disparando todas as suas balas, mas sabendo que o alívio jamais chegaria. No momento havia três pacientes com AIDS, todos homossexuais na casa dos trinta, todos com menos de um ano de vida.
Alexandre era um homem muito religioso e não aprovava o estilo de vida.gay, mas ninguém merecia uma morte como essa. E mesmo se merecesse, ele era médico, e não Deus no trono do Juízo Final. Merda, pensou saindo do elevador e falando suas notas de prontuário num minigravador.
Era parte do trabalho de um médico compartimentar sua vida. Os três pacientes nesta unidade estariam aqui amanhã, e nenhum deles precisaria de atenção de emergência naquela noite. Colocar seus problemas de lado não era cruel. Era apenas uma questão de negócios. Além disso, as vidas dos três pacientes dependiam de sua habilidade em desligar-se um pouco de seus corpos enfermos para voltar sua atenção aos microorganismos que os atacavam. Deu a fita cassete à sua secretária, que datilografaria as notas.
— Dr. Lorenz, de Atlanta, retornou seu telefonema, retornando o telefonema dele e retornando o seu telefonema original — disse a secretária enquanto ele passava. Assim que se sentou, o médico discou de cabeça a linha direta.
— Sim?
— Gus? É Alex, daqui do Hopkins. Te peguei — disse com uma risadinha.
Ele ouviu uma grande risada do outro lado da linha. A diferença de fusos horários costumava provocar um pega-pega infernal.
— Como vai a pescaria, coronel?
— Acredita que ainda não tive tempo? Ralph está me fazendo dar duro.
— Que quer de mim? Foi você quem ligou antes, não foi? — Lorenz não tinha mais certeza, outro sinal de um homem trabalhando duro demais.
— Fui eu sim, Gus. Ralph me disse que você está começando a trabalhar numa nova estrutura do Ebola... resultante daquela pequena epidemia no Zaire, certo?
— Bem, eu estaria, só que alguém roubou meus macacos — reportou amargamente o diretor do CDC. — O carregamento substituto chegará daqui a um dia ou dois, pelo menos foi o que me disseram.
— Foram invadidos? — perguntou Alexandre.
Um dos problemas dos laboratórios que trabalhavam com animais experimentais era que de vez em quando os fanáticos pelos direitos dos animais tentavam invadir os laboratórios e libertar os bichos. Um dia, caso não se tomasse cuidado, algum maluco sairia com um macaco debaixo do braço e descobriria que o animal tinha febre Lassa... ou coisa pior. Como os médicos poderiam estudar os malditos vírus sem animais... e quem podia dizer que um macaco era mais importante que um ser humano? A resposta a isso era simples: na América havia pessoas que acreditavam em praticamente todo tipo de coisa, e ser um pé no saco era um direito constitucional. Por causa disso, CDC, Hopkins e outros laboratórios de pesquisa tinham guardas armados que protegiam as jaulas de macacos. E até as gaiolas dos ratos, lembrança que sempre fazia Alex levantar os olhos para o teto.
— Não. Eles foram sequestrados na África. De qualquer modo, isso vai me retardar uma semana. Que diabo. Estava procurando esse desgraçado há 15
anos.
— A amostra é recente?
— Veio do Paciente índice. Identificação positiva, Ebola Zaire, cepa Mayinga. Temos outra amostra da única outra paciente. Aquela que desapareceu...
— O quê? — perguntou Alexandre em alarme imediato.
— Perdida no mar numa queda de avião. Estava sendo levada para Paris para ver Rousseau. Não houve mais casos, Alex. Desta vez nos esquivamos da bala, para variar — garantiu Lorenz ao colega mais jovem.
Melhor morrer esmagada numa queda de avião do que sangrando até a morte por causa do maldito filho da puta, pensou Alexandre. Ele ainda pensava como um soldado, com direito a profanidades e tudo.
— Que bom — disse Alexandre.
— E então, por que ligou?
— Polinômios — ouviu Lorenz.
— Como assim? — perguntou o médico em Atlanta. — Quando mapear esse aí, pense em fazer uma análise matemática da estrutura — disse Alexandre.
— Venho brincando com isso há algum tempo. Porém, neste momento quero examinar o ciclo reprodutivo e...
— Exatamente, Gus, a natureza matemática da interação. Eu estava conversando com uma colega daqui... uma cortadora de olhos, acredita? Ela disse uma coisa interessante. Se os aminoácidos possuem um valor matemático quantificável, e eles devem possuir, então a forma como interagem com cadeias de códons pode dizer-nos alguma coisa.
— Alexandre fez uma pausa e ouviu um fósforo acender. Gus estava fumando seu cachimbo no escritório de novo.
— Continue.
— Ainda estou pensando no assunto, Gus. E se for como você vem pensando? Se tudo for como uma equação? O truque é resolvê-la, certo? Como fazemos isso? Ralph me contou sobre o seu estudo de ciclos de tempo. Acho que está no caminho certo. Se mapearmos o RNA do vírus, e tivermos o DNA do hospedeiro mapeado, então...
— Eureca! As interações nos dirão algo sobre os valores dos elementos no polinômio...
— E isso nos dirá muito sobre como o desgraçado se replica e talvez, apenas talvez...
— Como atacá-lo! — Uma pausa e uma baforada longa do outro lado da linha. — Alex, isso é muito bom.
— Você é o melhor para o trabalho, Gus, e já está com tudo preparado para a experiência.
— Mas falta uma coisa.
— Sempre falta.
— Deixe-me pensar nisso por um ou dois dias. Te ligo de volta. Boa essa, Alex.
— Obrigado, senhor.
O professor Alexandre colocou o telefone no gancho pensando que prestara um serviço à ciência médica. Mas não era muito, e realmente faltava um elemento naquela sugestão.
23
Experiências
Foram necessários vários dias para providenciar tudo. O presidente Ryan precisava reunir-se com mais uma turma de novos senadores — alguns deles de estados que estavam trabalhando com uma certa lentidão, principalmente porque seus governadores tinham estabelecido comitês para avaliar listas de candidatos. Em Washington isso foi recebido com surpresa por quem esperava que os governadores agissem como sempre, nomeando substitutos ao Senado assim que os cadáveres esfriassem. Só que aquele discurso de Ryan tinha gerado uma certa reação, afinal de contas. Oito governadores perceberam que a situação era única e agiram de forma diferente, obtendo no processo elogios dos jornais locais, se não a aprovação completa da imprensa nacional.
A primeira viagem política de Jack foi experimental. Levantou cedo, beijou a mulher e os filhos ao caminhar até a porta e embarcou no helicóptero no Jardim Sul pouco antes das sete da manhã. Dez minutos depois, deixou o avião para subir correndo a escada para o Força Aérea Um, tecnicamente conhecido pelo Pentágono como um VC-25a, um 747 custosamente modificado segundo a conveniência pessoal do presidente. Subiu a bordo no momento em que o piloto, um coronel de idade avançada, estava conferindo suas instruções de voo.
Olhando para trás, Ryan pôde ver cerca de oitenta jornalistas atando os cintos de segurança de suas poltronas melhores que as de primeira classe. Na verdade, alguns cintos não fechavam, porque o Força Aérea Um geralmente voava mais suavemente que um transatlântico em águas calmas. Quando se virou para a frente, o presidente ouviu: — E este é um voo de não-fumantes!
— Quem disse isso? — perguntou o presidente.
— Um dos pulhas da TV — replicou Andréa. — Acha que o avião é dele.
— De certo modo é sim — lembrou Arnie. — Não esqueça disso.
— Aquele é Tom Donner — acrescentou Callie Weston. — Ancora da NBC.
Suas fezes não cheiram bem, e ele usa mais fixador de cabelo do que eu. Mas parte dele está grudado na careca.
— Siga-me, presidente — disse Andréa, apontando para a frente. A cabine do presidente no Força Aérea Um ficava no nariz extremo do convés principal. Ali havia poltronas comuns, embora muito confortáveis, mais dois sofás que se desdobravam em camas para viagens longas. Sob o olhar atento de sua agente principal, o presidente fechou o cinto de segurança. Os passageiros poderiam quebrar as regras — o Serviço Secreto não estava nem aí para os jornalistas —, mas não o POTUS. Depois que ele estava seguro, Andréa gesticulou para um tripulante do Força Aérea Um, que levantou um telefone e disse ao piloto que ele podia seguir agora. Feito isso, as turbinas foram acionadas. Jack perdera a maior parte de seu medo de voar, mas esta era a parte do voo na qual ele fechava os olhos e pensava (anos antes ele sussurraria) uma oração pela segurança coletiva das pessoas a bordo — na crença de que Deus o consideraria egoísta se rezasse apenas por si. Mais ou menos no fim dessa oração, a aeronave começou a taxiar, mais rápido que o normal para um 747. Pouco carregado, o avião parecia um jatinho correndo, e não um trem ganhando velocidade na estação.
— Certo — disse Arnie enquanto o nariz do avião levantava. O presidente esforçou-se para não segurar os descansos de braço, como fazia normalmente. — Vai ser tranquilo. Indianápolis, Oklahoma City e de volta para casa na hora do jantar. As multidões serão amigáveis e quase tão reacionárias quanto você — acrescentou com uma piscadela. — Portanto, não tem realmente nada com que se preocupar.
A agente especial Price, sentada no mesmo compartimento para a decolagem, odiava quando alguém dizia isso. O chefe de gabinete van Damm — CARPINTEIRO para o Serviço Secreto; Callie Weston era CALIOPE — era um dos funcionários que nunca entendiam as dores de cabeça que o Serviço sofria.
Pensava no perigo como um risco político, mesmo depois da queda do 747.
Incrível, pensou ela. Alguns metros atrás, o agente Raman estava vigiando o corredor de acesso, para o caso de algum repórter sacar um revólver em vez de um lápis. Havia mais seis agentes a bordo para ficarem de olho em todos, mesmo os tripulantes uniformizados, e um pelotão deles estava de prontidão em cada uma das duas cidades, juntamente com um imensa coleção de tiras locais.
Na base Tinker da Força Aérea, em Oklahoma City, o caminhão-tanque já estava sob a guarda do Serviço Secreto, para que ninguém contaminasse o combustível que abasteceria o avião presidencial; permaneceria assim até muito depois que o 747 retornasse para Andrews. Um transporte C-5B Galaxy já estava em Indianápolis, tendo levado os automóveis presidenciais para lá.
Mover o presidente era como transportar o circo Ringling Brothers, Barnun & Bailey, com a exceção de que geralmente ninguém pensava em matar o trapezista.
Ryan, notou a agente Price, estava repassando seu discurso. Aquele era um de seus poucos comportamentos normais. Eles quase sempre ficavam nervosos antes de fazer discursos — geralmente não tanto por medo de palco, mas principalmente por causa do conteúdo do que diriam. O pensamento provocou um sorriso no rosto de Price. Ryan não estava preocupado com o conteúdo, mas receava arruinar tudo. Bem, ele aprenderia, e sua boa estrela era que Callie Weston, por mais chata que fosse, escrevia discursos maravilhosos.
— Desjejum? — perguntou uma aeromoça agora que o avião estava nivelado.
O presidente meneou a cabeça.
— Estou sem fome, obrigado.
— Traga-lhe ovos com presunto, torrada e café descafeinado — ordenou van Damm.
— Jamais tente fazer um discurso com o estômago vazio — aconselhou Callie. — Ouça o que digo.
— E evite café de verdade. A cafeína o deixará agitado. Quando um presidente fez um discurso — essa era a lição matutina de Arnie —, ele... Callie, me dá uma ajuda?
— Nada dramático nessas duas cidades hoje. Você está na casa do vizinho porque ele quer seu conselho num assunto. Seja amigável. Razoável. Calmo. Ei, Fred, acho que você devia fazer assim e assim — explicou Weston com as sobrancelhas soerguidas.
— Um médico de família gentil dizendo a um cliente que ele devia evitar comida gordurosa e talvez jogar uma partida de golfe a mais por semana... exercício pode ser divertido, esse tipo de coisa — emendou o chefe de gabinete.
— Você faz isso o tempo todo na vida real.
— É só fazer isso hoje de manhã na frente de mil pessoas, certo? — perguntou Ryan.
— E câmeras da C-SPAN, e noticiários noturnos e...
— A CNN também transmitirá ao vivo, porque esse será seu primeiro discurso numa viagem pelo país — acrescentou Callie. Não havia motivo para mentir para o homem.
Deus. Jack baixou os olhos para seu discurso.
— Tem razão, Arnie. É melhor descafeinado. — Levantou os olhos subitamente. — Fumantes a bordo?
Foi a forma como perguntou que fez a aeromoça virar-se.
— Quer um, senhor?
A resposta saiu um pouco envergonhada.
— Sim.
Ela lhe deu um Virginia Slim e acendeu-o com um sorriso caloroso. Não era todo dia que se tinha uma chance de proporcionar um serviço ao comandante-em-chefe. Ryan deu uma baforada.
— Se contar à minha esposa, sargento...
— Nosso segredo, senhor. — Ela desapareceu para pegar o café da manhã do presidente, seu dia já ganho.
O líquido era de uma cor horrível, escarlate vivo com um tom de marrom.
Eles tinham monitorado o processo com amostras pequenas sob um microscópio eletrônico. Os rins de macaco expostos ao sangue infectado eram compostos de células discretas e altamente especializadas, e por algum motivo, o Ebola adorava essas células assim como um glutão adora sua musse de chocolate. Assistir àquilo tinha sido a um só tempo fascinante e horrível. As cepas microscópicas do vírus tocaram as células, penetraram-nas e começaram a se replicar na biosfera rica e aquecida. Era como uma cena de um filme de ficção científica, só que muito real. Equivocava-se quem dizia que este vírus, como todos os outros, estava vivo. Ele podia agir apenas com ajuda, e essa ajuda precisava vir do hospedeiro, que proporcionava os meios para o vírus ser ativado e também conspirava para sua própria morte. Os filamentos do Ebola continham apenas RNA, e para que a mitose acontecesse, eram necessários RNA e DNA. As células renais tinham ambos; os filamentos do vírus procuravam-nas e, quando as juntavam, o Ebola começava a se re produzir.
Fazer isso requeria energia, e ela era suprida pelas células renais que no fim eram, obviamente, destruídas. O processo multiplicativo era um microcosmo do processo de doença numa comunidade humana. Começava lentamente e depois acelerava geometricamente — 2,4, 16,256, 65.536 — até que todos os nutrientes tinham sido comidos e restassem apenas filamentos do vírus, que em seguida ficavam adormecidos e esperavam a oportunidade seguinte. As pessoas atribuíam todo tipo de imagem falsa à doença. Esperaria sua chance; mataria sem misericórdia; procuraria outras vítimas. Tudo isso essa bobagem antropomórfica, como bem sabiam Moudi e seu colega. A coisa não pensava.
Ela não fazia nada malévolo. Tudo que o Ebola fazia era comer e reproduzir e voltar ao estado adormecido. Mas como um computador é apenas uma coleção de comutadores elétricos que podem distinguir apenas os numerais 1 e 0 — mas que faz isso mais rápida e eficientemente que seus usuários humanos —, o Ebola adaptava-se supremamente bem para se reproduzir tão rápido que o sistema imunológico do corpo humano, geralmente um mecanismo de defesa eficiente, era completamente rendido, como se sob o ataque de uma legião de formigas carnívoras. Nisso residia a fraqueza histórica do Ebola. Era eficiente demais.
Matava muito rápido. Seu mecanismo de sobrevivência dentro do hospedeiro humano também tendia a matar o hospedeiro antes de passar a doença adiante.
Além disso, o Ebola não sobrevivia por tempo suficiente no ambiente externo, e apenas num ambiente selvático. Por esse motivo, e como não podia sobreviver num hospedeiro humano sem matá-lo em dez dias ou menos, também evoluía lentamente — sem dar o passo evolucionário seguinte de se tornar aéreo.
Ou era o que todos pensavam. Talvez esperavam fosse uma palavra ainda melhor, refletiu Moudi. Uma variante do Ebola que pudesse disseminar-se pelo ar seria catastroficamente mortal. Era possível que fosse exatamente isso que eles tinham. Esta era a cepa Mayinga, conforme fora estabelecido por diversos exames microscópicos, e suspeitava-se que essa variante fosse capaz de transmissão aérea, e era isso que estavam dispostos a provar.
Por exemplo, o congelamento profundo, usando nitrogênio líquido como refrigerante, matava a maioria das células humanas. Quando elas congelavam, a expansão da água, que contribuía com a maior parte da massa celular, explodia as paredes celulares, deixando atrás de si nada além de destroços. O Ebola, por outro lado, era primitivo demais para que isso acontecesse. Calor excessivo podia matá-lo. Luz ultravioleta podia matá-lo. Alterações mínimas no ambiente químico podiam matá-lo. Mas bastava-lhe um lugar frio e escuro para que ficasse adormecido em paz.
Eles trabalharam numa caixa com luvas embutidas. Era um ambiente altamente controlável e mortalmente contaminado, cercado por lexan forte o bastante para deter a bala de uma arma. Em dois buracos laterais cortados no plástico duro, e rebitado em cada estação de trabalho, havia um par de luvas de borracha grossa. Moudi retirou 10cc do líquido rico em vírus e transferiu-o para uma pequena caixa, a qual lacrou. A lentidão do processo devia-se menos ao perigo físico do que à dificuldade em operar com as luvas. Quando o recipiente foi fechado, ele o transferiu de uma mão enluvada para outra, e então para o diretor, que executou um movimento semelhante, finalmente movendo-o para uma pequena escotilha. Quando essa porta foi fechada, conforme indicado por uma luz acionada por um sensor de pressão, o pequeno compartimento foi inundado com spray desinfetante — solução de fenol. Os médicos aguardaram um pouco, deixando o spray assentar por três minutos, até terem certeza de que o ar e o recipiente de transferência estavam seguros para ser liberados. Até então ninguém o tocaria sem luvas, e apesar da segurança da caixa com luvas, os dois médicos estavam usando roupas protetoras. O diretor removeu o recipiente, segurando-o com as duas mãos enquanto percorria o caminho de três metros até a mesa de trabalho.
Para o propósito da experiência, a lata de aerossol era do tipo usado para inseticidas, podendo ser colocada no chão e ativada para borrifar sozinha uma sala inteira. Tinha sido desmontada inteiramente, limpada três vezes a vapor quente e remontada; as partes plásticas teriam imposto um problema, mas isso fora constatado e resolvido alguns meses antes. Era uma peça rudimentar. As versões industriais seriam muito mais elegantes. O único perigo aqui provinha do nitrogênio líquido, um fluido de aparência aquosa que, caso fosse derramado sobre as luvas, iria congelá-las imediatamente, provocando seu estilhaçamento.
O diretor permaneceu imóvel enquanto Moudi vertia o líquido criogênico em torno do frasco de pressão. O propósito do experimento requeria apenas alguns cc. O líquido rico em Ebola foi injetado num recipiente de aço inoxidável, e a tampa de rosca, fechada. Quando a capa plástica foi lacrada, o novo recipiente foi espargido com desinfetante e em seguida lavado com solução salina estéril.
O recipiente de transferência menor foi colocado numa caixa de dejetos para futura incineração.
— É isso — disse o diretor. — Estamos prontos.
Dentro da lata de spray o Ebola já estava congelado profundamente, mas não por muito tempo. O nitrogênio evaporava com relativa rapidez, e a amostra descongelaria. Nesse momento, o restante da experiência seria providenciado. E mais tarde os dois médicos removeriam suas roupas protetoras e iriam jantar.
O piloto, um coronel, fez o avião tocar o solo com perícia formidável. Era a primeira vez que conduzia o presidente, e tinha algo a provar. O percurso pela pista foi rotineiro, com as turbinas de reversão retardando o jumbo até a velocidade automática antes de seu nariz virar para a esquerda. Pelas janelas, Ryan podia ver centenas — não, logo percebeu, milhares — de pessoas. Todas estão ali para me ver?, perguntou-se. Droga. As pessoas nas fileiras da frente seguravam bandeiras vermelhas, azuis e brancas. Quando a aeronave finalmente parou, as bandeiras nacionais levantaram-se todas a um só tempo, como se acionadas por um dispositivo automático. A escada móvel foi trazida até a porta, que foi aberta pela aeromoça — chamá-la assim seria incorreto — que lhe dera um cigarro.
— Quer mais um? — sussurrou a mulher. Ryan esboçou um sorriso sem jeito.
— Talvez mais tarde. E obrigado, sargento.
— Como dizem no teatro, merda pra você, presidente... mas não escorregue na escada, certo?
Ela recebeu um risinho como recompensa.
— Tudo preparado para o Patrão — ouviu Price por seu circuito de rádio vindo do líder da equipe avançada. Ela assentiu para o presidente Ryan.
— É hora do show, presidente.
Ryan respirou fundo e parou no centro da porta, encarando o dia claro do Meio-Oeste.
O cerimonial ditava que ele teria de descer a escada primeiro e sozinho.
Mal tinha parado no vão da porta quando uma ovação explodiu, vinda de pessoas que mal sabiam qualquer coisa sobre ele. Terno abotoado, cabelo penteado e fixado com spray apesar de seus protestos, Jack Ryan desceu a escada, sentindo-se mais um palhaço que um presidente até pisar no chão. Enfio um primeiro-sargento da Força Aérea bateu uma continência que Ryan, devidamente condicionado em seus poucos meses nos fuzileiros, retribuiu perfeitamente — e mais uma ovação se fez ouvir. Olhou em torno para ver agentes do Serviço Secreto e do Tesouro espalhados estrategicamente, quase todos eles olhando para a multidão. A primeira pessoa a se aproximar foi o governador do estado.
— Bem-vindo a Indiana, presidente! — Ele agarrou a mão de Ryan e apertou-a vigorosamente. — Estamos honrados em receber sua primeira visita oficial.
Eles não haviam poupado recursos. Uma companhia da Guarda Nacional local foi formada. A banda iniciou a marcha Ruffles and Flourishes, seguida imediatamente por Hail to the Chief, e Ryan teve a sensação de ser uma fraude.
Com o governador ao seu lado e a meio passo atrás, Ryan seguiu o tapete — que grande surpresa... — vermelho. Os soldados reunidos apresentaram armas, e a banda tocou seu velho hino, embora não o Stars and Stripes que, como um atleta americano proclamara certa vez, saúda a bandeira, e não nenhum tipo de potentado (ele fora um americano de descendência irlandesa que não quisera homenagear o rei da Inglaterra na Olimpíada de 1908). Jack pousou a mão direita sobre o coração enquanto passava, gesto lembrado de sua juventude, e olhou para os guardas reunidos. Ele era agora seu comandante-em-chefe, disse o presidente a si mesmo. Podia ordenar que fossem para o campo de batalha, e teria de fitar seus rostos. Ali estavam eles, barba feita, jovens, orgulhosos, como ele teria estado vinte e muitos anos antes. Eles estavam aqui por ele. E ele sempre estaria ali por eles. Sim, Jack disse a si mesmo. Precisava lembrar disso.
— Posso apresentá-lo a alguns cidadãos, senhor? — perguntou o governador, apontando para a cerca de proteção. Ryan assentiu e o seguiu.
— Atenção: contato de pele — disse Andréa no microfone de seu rádio. Por mais frequente que fosse, esta era a situação que os agentes da segurança presidencial mais odiavam. Price estaria com POTUS o tempo todo. Raman e três outros pairariam em ambos os lados dele, olhos vasculhando a multidão por detrás de óculos escuros, procurando armas, expressões erradas, rostos memorizados de fotografias, qualquer coisa fora do comum.
Havia muitos, pensou Jack. Nenhum votara nele, e até muito recentemente poucos conheciam seu nome. Ainda assim estavam lá. Alguns, talvez, funcionários públicos desfrutando de um dia de folga, mas não aqueles segurando crianças, e o brilho em seus olhos impressionou o presidente, que jamais vivenciara nada parecido. Mãos estendiam-se freneticamente, e ele apertou todas que pôde, movendo-se para sua esquerda ao longo da fila, tentando ouvir vozes individuais através da cacofonia de gritos.
— Bem-vindo a Indiana! — Como vai? — Sr. presidente — Confiamos em você! — Bom trabalho até agora! — Estamos com você!
Ryan tentou responder, exprimindo pouco mais do que um obrigado mecânico, a boca conseguindo quase nada além de se manter aberta em pasmo pelo carinho avassalador, com que estava sendo tratado. Foi suficiente para fazê-lo ignorar a dor crescente em sua mão, mas finalmente teve de recuar da cerca e gesticular, o que gerou mais uma cacofonia de expressões de amor pelo novo presidente.
Droga. Que fariam se soubessem a fraude que eu sou? Que diabos estou fazendo aqui? — perguntou-se enquanto se dirigia à porta aberta da limusine presidencial.
Havia dez deles no porão do prédio. Todos homens. Apenas um era prisioneiro político, e seu crime era apostasia. O restante consistia em pessoas singularmente indesejáveis: quatro assassinos, um estuprador, dois molestadores de crianças e dois ladrões que eram reincidentes e, como tais, sob a lei do Corão, sujeitos ao corte de suas mãos direitas. Estavam numa única sala com ar condicionado, cada um deles com o pé preso à cama por uma corrente.
Todos estavam condenados à morte, exceto os ladrões que supostamente seriam apenas mutilados, e, sabendo disso, perguntavam-se o que estavam fazendo com o resto. Para os outros, o motivo de ainda estarem vivos era um mistério ainda não questionado, mas que também não lhes trouxe alívio. Sua dieta nas últimas semanas fora particularmente pobre, o suficiente para reduzir sua energia física e seu nível de alerta. Um „ deles enfiou um dedo na boca para examinar as gengivas inflamadas e feridas. O dedo k saiu quando a porta foi aberta.
Era alguém vestido numa roupa plástica, que nenhum deles vira antes. A pessoa — um homem, embora mal pudessem discernir-lhe o rosto por trás da máscara de plástico ., — pousou um recipiente cilíndrico no assoalho de concreto, tirou a capa plástica azul e premiu um botão. Então retirou-se apressado. A porta mal se fechara quando um chiado escapou do recipiente, e um vapor espalhou-se pelo quarto como se ali fosse uma sauna. Um deles gritou, achando que se tratava de gás venenoso, e puxou o lençol fino da cama para cobrir o rosto. O mais próximo do spray estava atordoado e apenas observou, e quando a nuvem cobriu-o, olhou em torno enquanto os outros esperavam que ele morresse. Quando isso não aconteceu, os homens sentiram-se mais curiosos que amedrontados. Depois de alguns minutos, o incidente passou para a sua limitada História. As luzes ; foram apagadas, e puseram-se a dormir.
— Três dias para descobrir — disse o diretor, desligando o monitor que mostrava a cela. — O sistema de borrifo que fizeram parece funcionar bem, proporcionando uma dispersão apropriada. Tiveram um problema com o dispositivo de retardamento. Na versão industrial o espargimento só deverá começar depois de... uns cinco minutos, acho.
Três dias, pensou Moudi. Setenta e duas horas para constatar o mal que haviam despertado.
Apesar de todo o dinheiro e exagero, apesar de todo o planejamento detalhado, Ryan estava sentado numa simples cadeira dobrável de metal, o tipo que deixava a bunda doendo. A sua frente havia uma bancada de madeira coberta por um pano vermelho, azul e branco. Sob o pano havia uma folha de aço presumivelmente capaz de deter uma bala. O pódio era blindado de forma parecida — aço e Kevlar neste caso; Kevlar é uma liga a um só tempo forte e leve — e protegeria praticamente todo seu corpo abaixo dos ombros. O estádio universitário — um ginásio muito grande, embora não aquele usado por seu time de basquete, já eliminado do campeonato — estava cheio até a borda, como os jornalistas costumavam descrever auditórios com todos os seus assentos ocupados. A maior parte da plateia provavelmente era composta de estudantes, mas era difícil precisar isso. Ryan era o alvo de incontáveis luzes brilhantes, e a iluminação excessiva impedia-lhe de ver a maior parte da plateia. Tinham chegado pela porta dos fundos, entrando pela porta de um vestiário fedorento porque o presidente usaria o caminho mais rápido para entrar e sair. O cortejo de automóveis seguira uma rodovia a maior parte do tempo, mas nas ruas comuns, que tinham ocupado talvez um quarto da distância, houvera pessoas nas calçadas, acenando para ele enquanto seu governador exaltava as virtudes da cidade e do estado Hoosier. Jack pensou em perguntar a origem da palavra Hoosier, mas decidiu que era melhor ficar calado.
O governador estava falando novamente agora, sucedendo três outros oradores. Um estudante, seguido pelo reitor da universidade e depois pelo prefeito. O presidente tentou realmente prestar atenção aos discursos, mas enquanto por um lado todos diziam basicamente a mesma coisa, por outro, pouco do que falavam era verdade. Era como se estivessem comentando sobre outra pessoa, um presidente hipotético com virtudes genéricas para lidar com seus deveres. Talvez aquilo fosse apenas porque seus redatores de discursos estivessem acostumados a lidar apenas com assuntos locais, decidiu Jack.
Melhor para eles.
— ...minha grande honra de apresentar-lhes o presidente dos Estados Unidos.
O governador virou-se e gesticulou. Ryan se levantou, aproximou-se do pódio, apertou a mão do governador. Enquanto colocava sua pasta de discursos no topo do pódio, meneou a cabeça cumprimentando, embaraçado, a multidão que mal podia ver. Nas primeiras fileiras, à direita da cesta da quadra de basquete, estavam alguns figurões locais. Em outros momentos e circunstâncias, eles seriam grandes mecenas. Neste caso, Ryan não sabia.
Talvez pertencessem a ambos os partidos. Então lembrou que os principais mecenas doavam dinheiro para ambos os partidos, para aumentar suas chances de obter acesso ao poder, a despeito de quem estivesse nele. Provavelmente já estavam tentando descobrir como doar dinheiro à campanha de Ryan.
— Obrigado pela apresentação, governador.
Ryan virou-se para gesticular na direção das pessoas que estavam no palanque com ele, citando-os a partir de uma lista na primeira página de sua pasta de discursos, bons amigos a quem jamais reveria depois desta primeira vez, cujos rostos iluminaram-se pelo simples fato de que ele proferiu seus nomes na ordem correta.
— Senhoras e senhores, eu nunca estive antes em Indiana. Esta é a minha primeira visita ao estado Hoosier, mas depois de desfrutar de sua acolhida, espero que não seja a última...
O comentário foi recebido como se alguém tivesse levantado a tabuleta de Aplausos num programa de TV. Ele tinha apenas falado a verdade, seguida de algo que poderia ser ou não mentira, e embora soubessem disso, não se importavam nem um pouco. E então Jack Ryan aprendeu uma coisa importante pela primeira vez.
Deus, é como um narcótico, pensou Jack, compreendendo apenas então por que as pessoas ingressavam na política. Ninguém poderia ficar parado ali daquele jeito, ouvindo a adulação, vendo os rostos, e não amar o momento.
Aquilo superou o medo do palco e a sensação esmagadora de não pertencer.
Aqui estava ele, diante de quatro mil pessoas, colegas cidadãos, iguais a ele perante a lei, mas em suas mentes ele era uma coisa completamente diversa. Ele era os Estados Unidos da América. Ele era seu presidente, porém mais que isso, era a materialização de suas esperanças, seus desejos, a imagem de sua própria nação, e por causa disso estavam dispostos a amar alguém a quem não conheciam, a apreciar cada palavra, a torcer por um momento fugaz em que ele olhasse diretamente para cada par individual de olhos de modo que aquele segundo se tornasse eternamente especial, para jamais ser esquecido. Era um poder que ele desconhecia. Era por causa disso que homens dedicavam suas vidas a alcançar a presidência, para banhar-se neste momento como se fosse uma cálida onda oceânica, um instante de perfeição cabal.
Mas por que pensavam que ele era tão diferente? Por que tornavam-no especial em suas mentes? Em seu caso chegara ali por acidente, e em todos os outros casos eram eles próprios que tinham feito a escolha, que tinham elevado o homem ao pódio, que tinham transformado um homem comum em alguma outra coisa... e talvez nem isso. Era apenas uma questão de percepção. Ryan era o mesmo homem de um mês ou um ano atrás. Adquirira pouco em conhecimento e menos ainda em sabedoria. Era a mesma pessoa com um trabalho diferente, e embora estivesse cercado pelos símbolos do novo posto, a pessoa dentro do anel protetor de guarda-costas, a pessoa cercada por um mar de amor que jamais almejara, era meramente o produto de pais, infância, educação e experiências, assim como todo mundo. Pensavam que ele era diferente, especial e talvez até maior que eles, mas isso era apenas percepção, não realidade. A realidade do momento eram mãos suadas sobre o pódio blindado, um discurso escrito por outra pessoa, e um homem que sabia que estava fora de seu ambiente, por mais agradável que fosse o momento.
Então, que faço agora?, perguntou a si mesmo o presidente dos Estados Unidos, sua mente correndo à medida que a onda de aplausos daquele momento arrefecia. Jamais seria o que eles pensavam que era. Ele era um homem bom, sabia disso, mas não um grande homem, e a presidência era um trabalho, um posto, um cargo governamental que vinha com deveres definidos por James Madison, e, como com todas as coisas na vida, um ponto de transição de uma realidade para outra. Não se pode alterar o passado. O futuro era uma coisa que se tentava ver. O presente estava onde você estava, e era por causa disso que você precisava dar o máximo de si — e se tivesse sorte, talvez ser merecedor do momento. Apaixonar-se não era suficiente. Ele precisava merecer o amor para tornar as expressões naqueles rostos algo além de uma mentira, porque ao conferir-lhe poder, davam-lhe também responsabilidade, e ao ofertar-lhe amor exigiam retribuição. Tímido, Jack baixou os olhos para o painel de vidro que refletia o texto de seu discursos, respirou fundo e começou a falar como fizera em suas aulas de História em Annapolis.
— Vim conversar com vocês hoje sobre a América...
Abaixo do presidente estavam cinco agentes do serviço secreto parados em fila, seus óculos escuros acobertando-lhes os olhos de modo a impedir que as pessoas na plateia soubessem para quem estavam olhando, e também porque gente sem olhos era ameaçadora em um nível visceral. Mantinham os dedos entrelaçados à sua frente, e rádios auriculares mantinham-nos em contato uns com os outros enquanto perscrutavam a multidão. No fundo do estádio havia outros, este grupo vasculhando a plateia com binóculos, porque sabiam que o amorno prédio não era uniforme, ou mesmo que fosse, havia pessoas que tentavam matar coisas que amavam. Por esse motivo, a equipe avançada erigira arcos detectores de metais portáteis em todas as entradas. Por esse motivo, cães pastores belgas tinham farejado o prédio em busca de explosivos. Por esse motivo observavam tudo com a mesma atenção que soldados numa zona de combate dispensariam a cada sombra.
— ...e a força da América reside não em Washington, não em Indiana e no Novo México, mas em cada lugar em que os americanos vivem e trabalham, seja onde for. Nós em Washington não somos a América. Vocês são — a voz do presidente ribombou através do sistema de alto-falantes, não um bom sistema, tinham considerado os agentes, mas este evento fora produzido com um pouco de pressa. — E nós trabalhamos para vocês.
Mesmo assim, a plateia ovacionou novamente.
As câmeras de TV estavam conectadas a furgões no exterior do prédio, e dali antenas parabólicas emitiam os sons e as imagens para satélites. Hoje os jornalistas estavam comportados, tomando notas apesar de já terem recebido o texto integral do discurso, juntamente com uma promessa por escrito de que o presidente iria realmente enunciá-lo. O discurso de hoje do presidente..., diriam todos à noite, mas aquelas não tinham sido realmente as palavras do presidente e todos sabiam de quem eram. Callie Weston já conversara com vários jornalistas a respeito do discurso. Assim, eles agora observavam a multidão, tarefa fácil, porque não tinham lâmpadas incandescentes voltadas em sua direção.
— ... não é uma oportunidade, mas uma responsabilidade que todos compartilhamos, porque a América pertence a todos nós. Assim, o dever de governar nosso país começa aqui, não em Washington.
Mais aplausos.
— Bom discurso — observou Tom Donner para seu comentarista analista, John Plumber.
— Muito bem declamado também. Conversei com o superintendente da Academia Naval. Dizem por lá que o presidente era um excelente professor — replicou Plumber.
— Ele também teve uma boa plateia, principalmente jovens. E não está falando sobre questões políticas.
— Está molhando os pés — concordou John. —Você tem uma equipe trabalhando no outro segmento para esta noite, certo?
Donner checou o relógio e assentiu.
— Já devem estar lá agora.
— E então, Dra. Ryan, como é será primeira-dama? — perguntou Krystin Matthews, com um sorriso afetuoso.
— Ainda estou descobrindo.
Estavam conversando no cubículo que servia de escritório para Cathy e dava para o centro de Baltimore. Mal havia espaço para uma mesa e três cadeiras (uma boa para a doutora, uma para o paciente e a outra para seu cônjuge ou mãe), e com todas as câmeras e luzes na sala, ela se sentia encurralada. — Sabe, sinto falta de cozinhar para a minha família.
— A senhora é cirurgiã... e o seu marido também espera que cozinhe? — indagou a âncora da NBC, com uma expressão de surpresa que beirava a indignação.
— Sempre gostei de cozinhar. E uma forma de relaxar quando chego em casa. — Em vez de assistir à TV, a professora Caroline Ryan podia ter acrescentado. Ela estava usando um novo jaleco. Dispusera de 15 minutos para cuidar de seu cabelo e maquiagem, e tinha pacientes à espera. — Além do mais, faço isso muito bem.
Ah, sim, então era diferente. Um sorriso matreiro: — Qual é o prato favorito do presidente? Cathy retribuiu o sorriso.
— Essa é fácil. Bife, batata assada, espiga de milho assada, e minha salada de espinafre... Eu sei, a médica em mim sabe que isso é um pouco pesado em colesterol. Jack é muito bom na grelha. Na verdade, ele é o tipo de homem que ajuda muito na casa. Ele nem se importa em cortar a grama.
— Deixe-me levá-la de volta à noite que seu filho nasceu, aquela noite terrível quando os terroristas...
— Eu não esqueci — disse Cathy numa voz mais serena.
— O seu marido matou pessoas. A senhora é médica. Como se sente a respeito disso?
— Jack e Robby... ele é almirante Jackson agora... Robby e Sissy são nossos amigos mais íntimos — explicou Cathy. — Em todo caso, eles fizeram o que tinham de fazer. Se não o tivessem feito, não teríamos sobrevivido àquela noite.
Não gosto de violência. Sou cirurgiã. Semana passada cuidei de um caso de trauma, um homem que perdeu o olho como resultado de uma briga num bar a alguns quarteirões daqui. Mas o que Jack fez foi diferente do que eles fizeram.
Meu marido lutou para proteger a mim e a Sally, e ao pequeno Jack, que ainda nem tinha nascido.
— Gosta de ser médica?
— Amo meu trabalho. Não o deixaria por nada.
— Mas geralmente a primeira-dama...
— Sei o que você quer dizer. Não sou uma esposa política. Exerço a medicina. Sou uma cientista de pesquisa, e trabalho no melhor instituto de visão do mundo. Tenho pacientes à minha espera agora. Eles precisam de mim... e, você sabe, também preciso deles. Meu trabalho é o que sou. Também sou esposa e mãe, e gosto de praticamente tudo em minha vida.
— Exceto isto? — perguntou Krystin, com um sorriso. Os olhos azuis de Cathy piscaram.
— Não preciso realmente responder a isso, preciso? — E Matthews soube que tinha a frase de chamada para a entrevista.
— Que tipo de homem é o seu marido?
— Bem, não posso ser totalmente imparcial, posso? Eu o amo. Ele arriscou sua vida por mim e meus filhos. Sempre que precisei de meu marido, ele estava lá. E faço o mesmo por ele. E isso que significa amor e casamento. Jack é inteligente. É honesto. Acho que é do tipo que se preocupa demais. De vez em quando ele acorda no meio da noite... lá em casa, quero dizer... e passa uma meia hora olhando pela janela para a água. Não sei se ele sabe que eu sei.
— Ainda faz isso?
— Ultimamente não. Ele geralmente está muito cansado quando se deita.
Ele nunca trabalhou tanto.
— Seus outros cargos governamentais, na CIA, por exemplo, há relatos de que ele... Cathy interrompeu erguendo uma mão.
— Não tenho acesso a assuntos confidenciais. Eu não sei, e provavelmente não quero saber. Acontece o mesmo comigo. Não tenho permissão de discutir informações confidenciais sobre pacientes com Jack, ou com qualquer um de fora da faculdade.
— Gostaríamos de vê-la com seus pacientes e... — FLOTUS balançou a cabeça, cortando o pedido no meio.
— Não. Isto é um hospital, não um estúdio de TV Não é tanto devido à minha privacidade, mas devido à privacidade dos meus pacientes. Para eles, não sou a primeira-dama. Para eles, sou a Dra. Ryan. Não sou uma celebridade.
Sou uma médica e cirurgiã. Para meus alunos, sou professora.
— E, segundo dizem, uma das melhores do mundo em sua área — acrescentou Matthews, apenas para ver a reação.
Isso resultou num sorriso.
— Sim, ganhei o prêmio Lasker, e o respeito de meus colegas é um presente que vale muito mais do que dinheiro... mas, você sabe, também não é isso que me motiva. Não é muito comum... mas de vez em quando, depois de uma cirurgia, sou eu quem tira os curativos numa sala escura, acendo as luzes lentamente, e observo. Posso ver o sentimento no rosto do paciente. Conserto os olhos, coloco-os para trabalhar novamente, e a expressão no rosto do paciente... bem, ninguém na medicina trabalha pelo dinheiro, pelo menos não aqui no Hopkins. Estamos aqui para melhorara saúde dos doentes e, no meu caso, preservar e restaurar a visão, e o olhar que você vê quando o trabalho está pronto é como ter Deus dando-lhe um tapinha no ombro e dizendo: Belo trabalho . É por causa disso que eu nunca, nunca, deixarei a medicina — disse Cathy Ryan, quase liricamente, sabendo que usariam isso na TV à noite, e torcendo para que algum jovem brilhante no ginásio ouvisse suas palavras e optasse pela medicina. Se ela precisava desperdiçar seu tempo dessa maneira, então que o usasse para servir à sua arte.
Foi uma sequencia muito boa, pensou Krystin Matthews, mas com apenas dois minutos e trinta segundos de tempo no ar, eles não poderiam usá-la. Era melhor a parte em que ela dizia como odiava ser primeira-dama. Todos mundo estava acostumado a ouvir papo de médico.
24
Na Mosca
O retorno ao avião foi rápido e eficaz. O governador seguiu seu caminho.
As pessoas que se haviam acotovelado nas calçadas já tinham voltado quase todas para seus trabalhos, e aqueles que se viraram para olhar estavam fazendo compras e provavelmente se perguntaram qual seria o motivo das sirenes — ou, se sabiam, ficaram irritados com o ruído. Ryan pôde recostar-se na poltrona de couro macia, arrasado pela fadiga que acompanha os momentos de estresse.
— E então, como me saí? — perguntou, olhando pela janela enquanto Indiana corria lá fora a 112 quilômetros por hora. Sorriu para si mesmo ao perceber que estava trafegando a essa velocidade na periferia de uma cidade sem o risco de levar uma multa.
— Muito bem. Muito bem mesmo — disse Callie Weston em primeiro lugar.
— Falou como um professor.
— Já fui professor — disse o presidente Ryan. E com sorte, serei de novo algum dia.
— É um tom adequado para um discurso como este, mas para outros você precisará de um pouco de fogo — observou Arnie.
— Uma coisa por vez — aconselhou Callie ao chefe de gabinete. — Antes de andar, engatinhe.
— O mesmo discurso em Oklahoma, certo? — indagou POTUS.
— Algumas mudanças, mas nada substancial. Lembre apenas que não está mais em Indiana. Está no estado Sooner, não no estado Hoosier. A mesma piada sobre tornados, mas com futebol americano em vez de basquetebol.
— Eles também perderam os dois senadores, mas ainda têm um congressista, e ele estará com você no palanque — alertou van Damm.
— Como ele sobreviveu? — perguntou Jack por pura curiosidade.
— Provavelmente estava trepando naquela noite — foi a resposta curta. — Você anunciará um novo contrato para a base Tinker da Força Aérea. Isso significa cerca de quinhentos novos empregos, consolidando algumas operações no novo terreno. Isso deverá deixar os jornais locais felizes.
Ben Goodley não sabia se era o conselheiro de Segurança Nacional ou não.
Se fosse, então era jovem demais para o trabalho, mas pelo menos o presidente ao qual servia era bem versado em relações exteriores. Isso o tornava mais um secretário de classe do que um consultor. Não se importava com isso.
Aprendera muito em seu período breve em Langley, e subira rapidamente, tornando-se um dos homens mais jovens a ganhar o cobiçado cartão de agente do serviço nacional de informações porque sabia como organizar dados, e porque tinha conhecimento político para classificar os assuntos importantes.
Estava gostando particularmente de trabalhar próximo ao presidente Ryan.
Goodley sabia que podia jogar limpo com o Patrão, e que Jack — ainda pensava nele por esse nome, embora não mais o usasse — sempre o deixaria saber o que estava pensando. Isso seria outra experiência de aprendizado para o Dr.
Goodley, e uma experiência inestimável para alguém cujo novo sonho de vida era se tornar um dia diretor da CIA por mérito, e não através de politicagens.
Na parede em frente à sua mesa havia o tipo de relógio que mostra a posição do sol no mundo inteiro. Ele requisitara um no dia que chegara — e, para sua surpresa, o aparelho aparecera literalmente do dia para a noite em vez de se arrastar através de cinco níveis de burocracia. Ouvira histórias de que a Casa Branca era uma porção do governo que funcionava de fato, e não acreditara nelas — o formando de Harvard estava a serviço do governo havia quatro anos, e achava que sabia o que funcionava e o que não funcionava. A surpresa foi bem-vinda, e o relógio, descobrira em seu trabalho no Centro de Operações da CIA, era uma referência instantânea, melhor que a fileira de relógios comuns usada em alguns lugares. O seu olho batia instantaneamente onde era meio-dia e ele podia saber que horas eram em qualquer lugar do mundo. Mais importante, sabia de imediato se alguma coisa estava acontecendo numa hora incomum, e isso dizia-lhe tanto quanto o boletim do Departamento de Sinais — o SIGINT. Como aquele que tinha acabado de sair de seu fax pessoal conectado a uma linha telefônica de segurança.
A NSA, a agência de segurança nacional, tinha o hábito de enviar resumos periódicos de atividades através do mundo. Seu próprio centro de vigília estava abarrotado de militares graduados, e embora a aparência deles fosse mais técnica e menos política do que a de Ben, eles não eram bobos. Com o tempo aprendera o nome e a reputação de muitos deles, sem falar de seus talentos individuais. O coronel da USAF que comandava o Centro de Vigília da NSA nas tardes dos dias úteis não tinha o hábito de incomodar as pessoas com trivialidades. Isso ficava a cargo de pessoas em postos inferiores e a cargo de sinais menos importantes. Quando o coronel colocava seu nome em alguma coisa, era porque aquilo era merecedor de leitura. E ainda era pouco depois do meio-dia, hora de Washington.
Goodley viu que a nota de FLASH dizia respeito ao Iraque. Essa era outra coisa curiosa a respeito do coronel. Ele não usava o cabeçalho crítico apenas por usar, como faziam alguns. Ben levantou os olhos para checar o relógio de parede. Depois do pôr do sol, hora local, um momento de relaxamento para alguns, e ação para outros. A ação seria do tipo que dura a noite inteira, para melhor alcançar os objetivos sem interferência, de modo que o dia seguinte seria genuinamente novo, genuinamente diferente.
— Caramba! — exprimiu Goodley.
Releu a página. Depois, virou sua cadeira giratória e pegou o telefone, tocando o botão #3 de discagem rápida.
— Gabinete do diretor — atendeu a voz de um homem na casa dos cinquenta.
— Goodley para Foley.
— Aguarde por favor, Dr. Goodley. — Em seguida: — Oi, Ben.
— Olá, diretor. — Ele considerou impróprio usar o primeiro nome do diretor da CIA. Ele provavelmente voltaria a trabalhar em Langley dentro de um ano, e não como um oficial de patente baixa. — Recebeu o mesmo que eu? — Tendo acabado de sair da impressora, a folha ainda estava quente em sua mão.
— Iraque?
— Exato.
— É melhor ler duas vezes, Ben. Acabei de mandar Bert Vasco arrastar a bunda até aqui.
Ambos sabiam que o especialista em Iraque da CIA era fraco, enquanto esse sujeito do Departamento de Estado era danado de bom.
— Tenho a impressão de que a coisa é grave.
— Idem — replicou Ed Foley, assentando do outro lado da linha. — Deus, eles estão agindo rápido lá. Dê-me uma hora, talvez noventa minutos.
— Acho que o presidente precisa saber — disse Goodley, com uma voz que ocultava a urgência que sentia. Ou assim ele achou.
— Ele precisa saber mais do que podemos lhe dizer agora. Ben? — acrescentou o diretor da CIA.
— Sim, diretor?
— Jack não irá matá-lo por você ser paciente e, de qualquer modo, não podemos fazer nada além de observar o desenrolar dos acontecimentos. Não esqueça que não podemos sobrecarregá-lo com informações. Ele não dispõe mais de tempo para supervisionar tudo. Ele precisa ler relatórios concisos. O seu trabalho é esse — explicou Ed Foley. — Você levará algumas semanas para se adaptar. Eu o ajudarei — prosseguiu o diretor da CIA, recordando a Goodley o quanto ele era verde.
— Certo. Serei paciente. Foley desligou.
Ben Goodley teve cerca de um minuto de silêncio, durante o qual releu o boletim da NSA, e então o telefone tocou novamente.
— Dr. Goodley.
— Doutor, aqui é o gabinete do presidente — disse uma das secretárias. — Tenho um Sr. Golovko na linha particular do presidente. O senhor pode atender?
— Sim — respondeu, praguejando mentalmente.
— Prossiga, por favor — disse ela, desligando o telefone.
— Ben Goodley falando.
— Aqui é Golovko. Quem é você?
— Sou o conselheiro de segurança nacional do presidente. — E sei quem é você.
— Goodley? — Ben pôde ouvir a voz vasculhando sua memória. — Ah, sim, você é o agente do serviço nacional de informação que acaba de aprender a se barbear. Parabéns pela promoção. A habilidade do russo em fazer o jogo era impressionante, embora Goodley soubesse que ele provavelmente tinha um arquivo em sua mesa com tudo a seu respeito, começando pelo número de seu sapato. Nem Golovko podia ter uma memória tão boa. Goodley estava na Casa Branca havia tempo suficiente para que a notícia de sua promoção tivesse se espalhado; a RVS KGB simplesmente fizera seu trabalho de casa.
— Bem, alguém precisa atender o telefone, ministro. — O jogo podia ser feito dos dois lados. Golovko não era realmente um ministro, mas agia como tal, e isso, tecnicamente, era segredo. Foi uma resposta fraca, mas foi uma resposta. — Que posso fazer pelo senhor?
— Está a par do acordo que tenho com Ivan Emmetovich?
— Sim, senhor. Estou.
— Muito bem, diga-lhe que um novo país está prestes a nascer. Será chamado União Republicana do Islã. Incluirá, por enquanto, Irã e Iraque.
Suspeito que ainda crescerá.
— O quanto essa informação é confiável? — Era melhor ser cortês. Isso faria o russo sentir-se maior.
— Jovem, eu não prestaria um relatório ao seu presidente se não tivesse certeza absoluta, mas — acrescentou generosamente — compreendo que você precisa fazer essa pergunta. O ponto de origem do relatório não lhe diz respeito.
A confiabilidade da fonte é suficiente para que eu esteja passando a informação adiante. Voltarei a fazer isso em breve. Vocês têm indicações similares?
A pergunta congelou os olhos de Goodley onde estavam, fitando um espaço vazio em sua mesa. Ele não tinha orientação a esse respeito. Sim, sabia que Golovko propusera um acordo de cooperação ao presidente Ryan, que ele também conversara o assunto com Ed Foley, e que ambos haviam decidido aceitar. Mas ninguém o instruíra sobre os parâmetros de conferir informações de volta a Moscou, e ele não tinha tempo de ligar para Langley para pedir instruções. Se o fizesse demonstraria fraqueza perante os russos, e os russos não queriam que os EUA parecessem fracos no momento. Ele era o responsável, e tinha de tomar uma decisão. O processo inteiro de pensamento levou cerca de um terço de segundo.
— Sim, ministro, nós temos. O senhor ligou na hora certa. O diretor Foley e eu acabamos de conversar sobre o assunto.
— Ah, sim, Dr. Goodley, vejo que seus agentes de sinais continuam eficientes. É uma pena que o desempenho de suas fontes humanas não se equipare.
Ben não ousou responder à afirmação, embora sua precisão tenha contraído seu estômago. Goodley tinha mais respeito por Jack Ryan do que por qualquer homem, e agora lembrava da admiração que Jack expressara frequentemente pelo homem do outro lado da linha. Bem-vindo aos maiorais, garoto. Cuidado com as bolas de efeito.
— Ministro, falarei com o presidente na próxima hora, e passarei a sua informação. Muito obrigado pela informação tão fresca, senhor.
— Tenha um bom dia, Dr. Goodley.
União Republicana do Islã, leu Ben em seu bloco de anotações. Já houvera uma República Árabe Unida, uma estranha aliança entre a Síria e o Egito que já nascera condena da ao fracasso. Os países tinham sido fundamentalmente incompatíveis, e a aliança fora formada apenas para destruir Israel, que protestara contra o objetivo e fizera isso com eficácia. Mais importante, uma União Republicana do Islã era uma declaração religiosa, assim como política, porque o Irã não era uma nação árabe — como o Iraque —, mas uma nação ariana, com raízes étnicas e linguísticas diferentes. O Islã era a única grande religião do mundo a condenar em suas escrituras todas as formas de racismo e proclamar a igualdade de todos os homens diante de Deus, a despeito de cor — fato frequentemente esquecido pelo Ocidente. Assim, o Islã propunha-se a ser uma força unificadora, e a nova nação hipotética ostentaria esse propósito em seu próprio nome. Isso dizia muita coisa, tanto que Golovko nem precisara explicar, e também dizia que Golovko sentia que ele e Ryan estavam no mesmo comprimento de onda. Goodley checou o relógio de parede novamente.
Também era noite em Moscou. Golovko estava trabalhando tarde — bem, não tão tarde assim para um alto oficial. Ben pegou o telefone e premiu #3
novamente. Demorou menos de um minuto resumindo o telefonema de Moscou.
— Podemos acreditar em tudo que ele disser... relativo a esse assunto, pelo menos. Sergey Nikolayevitch é raposa velha. Aposto que mordeu o seu rabo hoje, hein? — perguntou o diretor da CIA.
— Arrancou um pouco do meu pelo — admitiu Goodley.
— Uma herança dos velhos tempos. Eles gostam de seus joguinhos de poder. Não deixe que isso o incomode e não atire de volta. O melhor é simplesmente ignorar — explicou Foley. — Certo, com que ele está preocupado?
— Um monte de repúblicas com istão no fim — disse Goodley sem refletir.
— Concordo. — Essa foi outra voz.
— Vasco?
— Sim, acabei de entrar. — E então Goodley precisou repetir o que dissera a Ed Foley. Mary Pat provavelmente também estava lá. Individualmente, ambos eram bons no que faziam. Na mesma sala, pensando juntos, eram uma arma mortal. O tipo de coisa que precisava ser vista para crer, pensou Ben.
— Isso me parece um problemão — observou Goodley.
— Tenho a mesma impressão — disse Vasco no viva-voz. — Deixe-nos verificar algumas coisas. Falamos com você daqui a 15 ou vinte minutos.
— Acredita que Avi ben Jakob está nos mandando informações? — reportou Ed, depois de um ruído de fundo na linha. — Eles devem estar tendo um dia muito estressante.
Por enquanto era apenas irônico o fato de que os russos eram tanto os primeiros a enviar informações (e que simplesmente estivessem fazendo isso) quanto os únicos ligando diretamente para a Casa Branca, vencendo Israel nas duas categorias. Mas a diversão não duraria, e os jogadores sabiam disso. Israel provavelmente era quem estava tendo o pior dia. A Rússia estava apenas tendo um dia muito ruim. E os Estados Unidos iriam compartilhar a experiência.
Seria incivilizado negar-lhes uma chance de rezar. Por mais cruéis que fossem, precisavam de uma chance de orar, mesmo que por um tempo curto.
Cada um deles estava na presença de um mula, que, com voz firme mas não descortês, informou-lhes seus destinos, citou as escrituras e falou com eles sobre sua chance de reconciliação com Alá antes de estar com Ele face a face.
Cada um deles fez isso — embora se acreditassem no que estavam fazendo fosse outra história, uma cujo julgamento ficaria a cargo de Alá. Mas os mulas cumpriram seu dever — e então cada um deles foi conduzido para o pátio da prisão.
Era um tipo de processo de linha de montagem, cuidadosamente cronometrado de modo que os três sacerdotes dessem a cada condenado exatamente o triplo do intervalo necessário para que cada um deles fosse conduzido até o poste, amarrado, fuzilado, removido e o processo reiniciado.
Assim, computavam-se cinco minutos por execução e 15 minutos por oração.
O general que comandara a 41ª Divisão Blindada era típico, exceto que sua religião era um pouco mais que residual. Mãos amarradas, estava em sua cela na frente de seu imã — o general preferia o termo arábico ao farsi — e foi conduzido para fora por soldados que uma semana antes teriam batido continência e tremido ao vê-lo passar. Ele havia aceitado seu destino, e não daria aos sacanas persas contra quem lutara nos pântanos fronteiriços a menor satisfação, embora por dentro amaldiçoasse perante Deus os seus superiores que tinham fugido covardemente e deixado o país entregue à própria sorte. Talvez ele devesse ter matado o presidente com as próprias mãos e tomado o poder, pensou enquanto suas algemas eram presas ao poste. O general dedicou um momento a olhar para trás na direção do muro e avaliar a competência do pelotão de fuzilamento. Ele encontrou um estranho humor no fato de que, se os atiradores não fossem bons, ele levaria alguns segundos extras para morrer.
Resfolegou de desgosto. Treinado pelos russos e competente, tentara ser um soldado honesto — apolítico, seguindo suas ordens fielmente e sem fazer perguntas, quaisquer que fossem elas — e, portanto, nunca fora completamente merecedor da confiança da liderança política de seu país, e esta era sua recompensa. Um capitão chegou com uma venda.
— Prefiro um cigarro, se for possível. Poderá lembrar que me fez esse favor quando for dormir, mais tarde.
O capitão assentiu sem expressão, suas emoções já anuviadas pelos assassinatos cometidos na última hora. Tirou um cigarro de seu maço, colocou-o entre os lábios do condenado e acendeu-o com um fósforo. Feito isso, proferiu as palavras que achava ter o dever de dizer: — Salaam alaykum. — A paz esteja convosco.
— Terei mais do que você, jovem. Faça seu dever. Certifique-se de que sua pistola está carregada, certo?
O general fechou os olhos para dar uma tragada longa e agradável. Havia apenas alguns dias, o médico lhe dissera que fazia mal à sua saúde. Não era uma piada? Pensou em sua carreira, maravilhando-se com o fato de ainda estar vivo depois do que os americanos fizeram com sua divisão em 1991. Bem, ele evitara a morte mais de uma vez, e essa era uma corrida que um homem poderia fazer durar, mas que jamais venceria. E assim estava escrito. Deu outra baforada. Um Winston americano. Reconheceu o sabor. Como um mero capitão podia ter um maço dessa marca? Os soldados levantaram seus fuzis para a posição apontar. Não havia expressão em seus rostos. Bem, matar fazia isso com os homens, refletiu o general. O que devia ser cruel e horrível simplesmente se tornava um trabalho que...
O capitão se aproximou do corpo que tombara para a frente, suspenso pela corda de náilon amarrada à corrente das algemas. De novo, pensou, sacando sua Browning 9mm e mirando a um metro de distância. Um estampido final pôs fim aos gemidos. Então dois soldados cortaram a corda e arrastaram o cadáver dali. Outro soldado amarrou novamente a corda ao poste. Um quarto usou um ancinho de jardineiro para revolver a areia do chão, não para limpar o sangue, mas para misturá-lo à terra, de modo a evitar que alguém escorregasse no líquido viscoso. O próximo seria um político, não um soldado. A maioria dos soldados, pelo menos, morria com dignidade, como fizera o último. Não era o caso dos civis. Eles choravam e pediam clemência a Alá. E sempre queriam a venda. Isso estava sendo uma experiência de aprendizado para o capitão, que nunca fizera nada assim antes.
Tinham sido necessários alguns dias para organizar tudo, mas eles estavam todos agora em casas separadas em partes diferentes da cidade — e depois que isso tinha sido feito, os generais e suas comitivas ficaram preocupados.
Alojados separadamente, todos achavam, poderiam ser pegos um a um e presos antes que fossem mandados de volta para Bagdá. Cada família tinha pelo menos dois guarda-costas, mas o que eles podiam fazer além de enxotar mendigos que se aproximavam das casas onde seus senhores estavam hospedados?
Encontravam-se com frequência — cada general tinha um carro à sua disposição — principalmente para fazer novos preparativos de viagem. Também discutiam se deveriam continuar viajando juntos para uma nova casa coletiva ou começariam a seguir caminhos separados. Alguns defendiam que seria mais seguro e barato comprar uma grande faixa de terra e ali construir suas casas.
Outros deixavam claro que agora que estavam fora do Iraque de uma vez por todas (dois deles nutriam ilusões de retornar em triunfo para tomar o governo, mas isso era uma fantasia, conforme sabiam todos menos esses dois), ficariam felizes em não ver nunca mais nenhum dos colegas. As rivalidades entre eles há muito haviam se cristalizado em antipatia genuína, que as novas circunstâncias tinham apenas exacerbado. O mais pobre deles tinha uma fortuna pessoal de quarenta milhões de dólares — um era dono de quase trezentos milhões espalhados por vários bancos suíços — mais do que o suficiente para viver confortavelmente em qualquer país do mundo. A maioria escolheu a Suíça, sempre um refugio para aqueles com dinheiro e desejo de viver discretamente, embora alguns olhassem um pouco mais para leste. O sultão de Brunei estava procurando pessoas para reorganizar seu Exército, e três dos generais iraquianos consideravam-se aptos. O governo da nação em que estavam, o Sudão, também iniciara uma negociação informal sobre usar alguns deles como consultores para as operações militares em andamento contra minorias no sul do país. Os iraquianos tinham muita experiência com os curdos.
Mas os generais tinham mais com que se preocupar além de si mesmos.
Tinham trazido suas famílias e amantes, que agora viviam, para desconforto geral, juntas nas casas de seus anfitriões. Essas pessoas estavam sendo tão ignoradas quanto haviam sido em Bagdá. Isso iria mudar.
O Sudão é um país quase inteiramente desértico, conhecido por seu calor escaldante. Já tendo sido um protetorado inglês, sua capital possuía um hospital para estrangeiros, com uma equipe quase inteiramente inglesa. Não era o melhor hospital do mundo, mas superava a maioria nos países do Saara. Seus médicos eram jovens e um tanto idealistas, que chegavam com ideias românticas sobre a África e suas carreiras (isso acontecia havia mais de cem anos). E logo percebiam que a situação não era bem assim, mas davam o melhor de si, o que, na maioria dos casos, era muita coisa.
Os dois pacientes chegaram aproximadamente com uma hora de intervalo.
A menina chegou primeiro, acompanhada por sua preocupada mãe. Tinha quatro anos, soube o Dr. Ian MacGregor, e sempre fora saudável, exceto por um caso leve de asma que, informou a mãe corretamente, seria difícil se manifestar no clima seco de Cartum. De onde eram? Do Iraque? O médico não conhecia nem se importava com política. Tinha 38 anos, recém-formado em medicina interna, um homem pequeno que sofria de calvície precoce. O que importava era que não tinha visto nenhum boletim relacionando esse país com uma doença infecciosa grave. Ele e sua equipe haviam sido alertados sobre a miniepidemia de Ebola no Zaire, mas as vítimas foram casos isolados.
A paciente estava com 38 graus, o que não era alarmante para uma criança, principalmente num país onde ao meio-dia a temperatura ao menos equiparava-se à daqui. A pressão, o ritmo cardíaco e a respiração estavam normais. Ela parecia letárgica. Há quanto tempo em Cartum, você disse? Apenas alguns dias? Bem, deve ser apenas distúrbio de fuso horário. Algumas pessoas eram mais sensíveis que outras, explicou MacGregor. Novos ambientes podiam abalar a saúde de algumas crianças. Talvez fosse resfriado ou gripe, nada sério.
O Sudão possui um clima quente, mas um clima realmente saudável, não como em outras partes do continente africano. Enfiou as mãos em luvas de borracha — não que houvesse necessidade, mas porque seu treinamento em medicina na Universidade de Edimburgo condicionara-o a fazer isso todas as vezes, porque naquela vez em que esquecer, poderá acabar como o Dr. Sinclair... oh, não ouviu falar como ele contraiu AIDS de um paciente? Uma história desse tipo geralmente era suficiente. A paciente não estava correndo qualquer tipo de risco. Os olhos estavam um pouco inchados, a garganta levemente inflamada, mas nada sério. Provavelmente bastaria uma ou duas noites de sono. O médico decidiu que era hora para uma xícara de chá. Ao longo do caminho para a sala dos médicos, despiu as luvas de látex que lhe tinham salvo a vida e jogou-as na cesta de dejetos.
O outro chegou mais ou menos trinta minutos depois. Homem, 33 anos, parecendo mais um bandido, olhando desconfiado para os funcionários africanos, mas solícito para com os europeus. Obviamente um homem que conhecia a África, pensou MacGregor. Provavelmente um negociante árabe.
Viaja muito? Recentemente? Oh, bem, essa pode ser a causa desse resfriado.
Seja cuidadoso ao beber a água local, que pode ser a explicação para o desconforto estomacal. E este paciente também voltou para casa com um frasco de aspirinas, mais alguns remédios para seus problemas gastrintestinais. Assim, MacGregor saiu do hospital depois de mais um dia rotineiro no trabalho.
— Presidente? é Ben Goodley, através da STU — disse um sargento para Ryan. Em seguida mostrou-lhe como colocar os fones de ouvido.
— Ben? — disse Jack.
— Temos relatos sobre vários figurões iraquianos que foram para o paredão.
Estou enviando os relatórios por fax para você. Os russos e os israelenses confirmam.
Como se tivesse sido ensaiado, outro oficial da Força Aérea apareceu e entregou a Ryan três folhas de papel. A primeira dizia apenas CONFIDENCIAL — SOMENTE PARA OS OLHOS DO PRESIDENTE, ainda que dois ou três oficiais de comunicação o tivessem lido, e isso apenas no avião, que estava começando a pousar em Tinker.
— Recebi agora. Deixe-me ler. — Ryan correu os olhos pelo texto e depois voltou ao começo para ler mais devagar. — Certo, quem ainda está lá?
— Segundo Vasco, ninguém merecedor de nota. Esta é a liderança do partido Baath inteiro e todos os altos oficiais militares que permaneceram no país. Assim, não sobrou ninguém importante. Certo, a parte assustadora vem de PALM BOWL e...
— Quem é esse major Sabah?
— Fiz a mesma pergunta, senhor— replicou Goodley. — É um espião kuwaitiano. Nosso pessoal diz que é um bocado esperto. Vasco concorda com a avaliação que ele fez. A situação está seguindo o curso que temíamos, e muito rápido.
— Reação saudita? — Ryan se assustou com um pequeno tremor quando o VC-25a atravessou algumas nuvens. Estava chuvoso lá fora.
— Nenhuma ainda. Ainda estão deliberando.
— Certo, obrigado pelas notícias, Ben. Mantenha-me informado.
— Farei isso, senhor.
Ryan colocou o telefone no gancho e franziu a testa.
— Problemas? — indagou Arnie.
— O Iraque está agindo rápido. Agora estão executando pessoas a passo acelerado. O presidente passou as folhas para seu chefe de gabinete.
Aquele tipo de coisa sempre parecia envolta num manto de irrealidade. O relatório da NSA, corrigido e atualizado pela CIA e outras agências, listava vários nomes. Caso estivesse em seu gabinete, Ryan também teria olhado as fotos de homens que jamais conhecera, e que jamais viria a conhecer, porque enquanto estava descendo em Oklahoma para fazer um discurso político sem conotações políticas, as vidas dos homens nessa lista chegavam ao fim — mais provavelmente já tinham chegado. Era como ouvir um jogo pelo rádio, exceto que neste jogo pessoas de verdade estavam sendo mortas. O mundo chegava ao fim para seres humanos ali mil quilômetros dali, e Ryan estava sabendo disso graças a interceptações radiofônicas feitas de um lugar ainda mais distante.
Aquilo parecia real, e ao mesmo tempo não parecia. Esse era um efeito causado pela distância... e pelo ambiente no qual ele estava. Uma centena de oficiais iraquianos estão sendo mortos... quer um sanduíche antes de saltar do avião? O dualismo poderia ter sido divertido se não fossem as implicações na política externa. Não, isso também não era verdade. Aquilo não teria sido divertido de forma alguma.
— No que está pensando? — indagou van Damm.
— Preciso voltar ao gabinete — replicou Ryan. — Isto é importante, e preciso me manter informado.
— Errado! — disse Arnie com um meneio de cabeça e um dedo em riste. — Você não é mais conselheiro de Segurança Nacional. Há pessoas fazendo esse tipo de trabalho por você. Você é o presidente, e tem muitas coisas para fazer, todas importantes. O presidente jamais fica preso a um único assunto e jamais fica trancado no Salão Oval. As pessoas lá fora não querem ver isso, porque significaria que você não está no controle. Significaria que os eventos o estão controlando. Pergunte a Jimmy Carter o quanto foi complicado seu segundo mandato. Droga, isso não é tão importante.
— Pode vir a ser — protestou Jack no momento que o avião pousava.
— O importante neste momento é o seu discurso para o Estado Sooner.— Fez uma pausa antes de prosseguir. — Não é apenas a caridade que começa em casa.
O podei político também. Ele começa ali.
O chefe de gabinete apontou para as janelas enquanto Oklahoma parava de se mover lá fora.
Ryan olhou, mas o que via era a União Republicana do Islã.
Entrar na União Soviética já fora difícil. Antes, uma vasta organização chamada Diretório dos Guardas de Fronteira patrulhara suas cercas — em alguns casos campos minados e fortificações genuínas —, com o propósito duplo de manter pessoas dentro e fora. A conservação desses obstáculos fora interrompida havia muito tempo, e agora o propósito principal dos postos de checagem era permitir que a nova geração dos guardas de fronteira aceitasse subornos de contrabandistas. Os contrabandistas usavam caminhões para entrar com produtos importados na nação que um dia fora governada com mão de ferro, mas que era agora uma coleção de repúblicas semi-independentes. Quase todas estavam entregues à própria sorte no terreno econômico, e consequentemente, no terreno político. Não tinha sido planejado dessa forma.
Quando estabelecera a economia isolacionista da antiga União Soviética, Stalin fizera um esforço deliberado em disseminar campos de produção, de modo que cada segmento do vasto império dependesse de bens vitais produzidos em outros. Mas Stalin esquecera que, caso a economia inteira caísse, quando uma região precisasse de uma coisa e não a conseguisse numa fonte, procuraria em outra. Assim, com a dissolução da União Soviética, o contrabando, muito bem controlado sob o governo comunista, tornara-se uma indústria genuína. E com produtos importados também vinham ideias, difíceis de serem detidas, impossíveis de ser associadas a impostos.
A única coisa que faltava era um comitê de boas-vindas, mas isso teria sido desaconselhável. A corrupção dos guardas de fronteira funcionava nos dois sentidos. Enquanto dividiam sua coleta informal de taxas com os superiores, os guardas provável mente contavam tudo o que acontecia na fronteira. Assim, o emissário aguardou sentado no banco direito do caminhão enquanto o motorista cuidava de negócios — neste caso, oferecendo aos guardas uma seleção de sua carga. Não estavam muito gananciosos hoje, levando pouco mais do que podiam ocultar com facilidade no bagageiro de seus automóveis. (A única coisa que conferia uma aparência ilegal àquelas transações era que elas só ocorriam à noite.) Os selos apropriados foram afixados nos documentos apropriados e o caminhão partiu, seguindo a rodovia que cruzava a fronteira, provavelmente a única superfície decentemente pavimentada na área. O percurso restante levou um pouco mais de uma hora. Pouco depois de entrar na cidade grande que já vivera do comércio com caravanas, o caminhão parou. O emissário saiu e caminhou até um automóvel particular para prosseguir sua jornada, carregando apenas uma pequena valise com uma ou duas roupas.
O presidente desta república semiautônoma afirmava ser muçulmano, mas era na verdade um oportunista, um político que durante sua carreira negara Deus com regularidade para garantir sua ascensão. Com a mudança do vento político, abraçou o Islã com entusiasmo público e desinteresse privado. Sua fé, se era possível chamá-la assim, dizia respeito inteiramente ao seu bem-estar.
Havia várias passagens do Corão que falavam Nobre gente desse tipo, nenhuma delas elogiosa. Ele vivia uma vida confortável num palácio pessoal confortável que já abrigara o chefe de partido desta ex-república soviética. Em Nua residência oficial, o presidente bebia, fornicava e geria sua república com um punho que era, a um só tempo, excessivamente firme e gentil. Com firmeza, controlava a economia regional (com seu treinamento comunista, era terrivelmente inapto), e com gentileza permitia o Islã florescer, para conferir ao seu povo a ilusão de liberdade individual (e nisso demonstrava claramente seu entendimento equivocado da natureza da Fé Islâmica que afirmava professar, porque a lei islâmica fora escrita para o material e para o espiritual). Como todos os presidentes que o precederam, achava-se amado por seu povo. O emissário sabia que essa era uma ilusão que os tolos quase sempre alimentavam. O emissário chegou à casa modesta de um amigo do líder religioso local. Este era um homem de fé simples e honra silenciosa, amado por todos que o conheciam e odiado por ninguém, porque mantinha sua voz adocicada ao tratar de todos os assuntos, e seus ataques ocasionais de fúria eram fundamentados em princípios que até os infiéis poderiam respeitar.
Quando tinha cerca de 55 anos, sofrera nas mãos do regime anterior, mas sua fé jamais enfraquecera. O emissário encontrou o sacerdote perfeitamente paramentado para a tarefa, e rodeado por seus associados mais íntimos.
Depois da saudação usual ao Santo Nome de Deus, tomaram chá e decidiram que era hora de falar de negócios.
— É uma coisa muito triste encontrar os fiéis vivendo em tamanha pobreza — disse o emissário.
— Sempre foi assim, mas hoje podemos praticar nossa religião em liberdade. Meu povo está voltando ao caminho da fé. Nossas mesquitas foram restauradas, e a cada dia que passa ficam mais cheias. O que são as posses materiais comparadas com a Fé? — respondeu o líder local, com o tom de voz racional de um professor.
— É a mais pura verdade — concordou o emissário. — Ainda assim, Alá deseja que seus Fiéis prosperem, não é verdade?
Houve uma anuência geral. Cada homem na sala era uma autoridade em islamismo, e poucos preferiam a pobreza ao conforto.
— Acima de tudo, meu povo precisa de escolas, escolas apropriadas — foi a resposta. — Precisamos de hospitais melhores. Estou cansado de consolar pais de crianças que morreram sem necessidade. Precisamos de muitas coisas. Não posso negar.
— Todas essas coisas podem ser providenciadas com facilidade... por quem dispõe de dinheiro — comentou o enviado.
— Mas esta sempre foi uma terra pobre. Temos recursos, sim, mas eles nunca foram explorados adequadamente, e agora perdemos o apoio do governo central... no exato momento em que temos a liberdade para controlar nosso destino, enquanto aquele nosso presidente se embebeda e abusa de mulheres em seu palácio. Se ao menos fosse um homem justo, religioso, poderíamos trazer prosperidade para esta terra — observou, mais melancólico que enfurecido.
— Isso e um pouco de capital externo — sugeriu modestamente um dos membros do grupo com mais formação econômica. O Islã jamais teve uma regra contra a atividade comercial. Embora seja lembrado pelo Ocidente por sua disseminação pela espada, o Islã seguira para leste em navios mercantes, assim como o cristianismo espalhara-se através da palavra e do exemplo de seus seguidores.
— Nós em Teerã acreditamos que chegou a hora de os fiéis agirem sob o comando do Profeta. Cometemos o erro, comum aos infiéis, de pensar mais em termos de cobiça nacional do que nas necessidades de todas as pessoas. Meu professor, Mahmoud Haji Daryaei, pregou a necessidade de um retorno aos fundamentos de nossa Fé — disse numa voz calma. Ele economizava o tom passional para a arena pública. Numa sala fechada, conversando com homens com seu mesmo grau de instrução, falava apenas num tom de voz racional. — Temos riquezas... riquezas tamanhas que só podem nos ter sido ofertadas por Alá para cumprirmos Seu plano. E agora também temos um momento oportuno. Vocês nesta sala mantiveram a Fé, honraram a Palavra apesar da perseguição, enquanto outros de nós ficaram ricos. Agora é nossa obrigação recompensá-los, aceitando-os como irmãos e compartilhando nossas riquezas com vocês. É isso que meu professor propõe.
— É bom ouvir palavras como essas — foi a resposta cautelosa. O fato de que o homem era principalmente um servo de Deus não o tornava ingênuo.
Manteve seus pensamentos guardados com cuidado, o que aprendera ao crescer sob o regime comunista. Mas o que estava pensando era óbvio.
— Nossa esperança é unir todo o Islã sob um teto, reunir os Fiéis como desejou o Profeta Maomé, abençoado seja. Somos diferentes em lugar, linguagem, até em cor, mas na Fé somos um. Nós somos os eleitos de Alá.
— É assim?
— É assim, queremos que sua república se una à nossa para que possamos ser uma só nação. Traremos escolas e assistência médica para o seu povo. Nós os ajudaremos a controlar sua terra, de modo que aquilo que lhe dermos retorne para o bem comum, e nos tornemos irmãos, conforme a vontade de Alá.
Um observador ocidental poderia ter comentado que todos esses homens pareciam broncos, devido às suas roupas simples, seus modos humildes ou meramente o fato de que estavam sentados no chão. Não era o caso, mas estavam um pouco desorientados. Afinal ter um emissário do Irã entre eles fazendo aquele tipo de proposta não era menos estranho do que receber um embaixador de outro planeta. As duas nações, os dois povos, eram muito diferentes. Para começar, tinham linguagem e cultura diversas. Durante séculos haviam travado guerras e saqueado um ao outro, isto a despeito das regras rígidas no Corão Sagrado a respeito de conflitos armados entre nações islâmicas. Não tinham, na verdade, nenhum elo — exceto o religioso. Esse elo poderia ser considerado acidental, mas os verdadeiramente Fiéis não acreditavam em acidentes. Quando a Rússia — primeiro sob o governo dos czares e depois sob o marxismo-leninismo — conquistara sua terra (mais um processo demorado do que um evento), o povo foi despojado de quase toda sua história e herança cultural. Restou-lhe apenas a língua, um entrave à extinção daquilo que os soviéticos chamavam de problema nacionalista . Os soviéticos tentaram solucionar esse problema destruindo e em seguida reconstruindo tudo num estilo novo e ateísta. No fim, a única força unificadora que restara ao povo havia sido sua Fé, que os russos também tentaram sufocar a todo custo. Mas essas tentativas apenas deixaram os Fiéis mais determinados. Aquilo poderia ter sido até... aquilo havia sido um plano de Alá, para mostrarão povo que sua única salvação residia na Fé. Agora estavam retornando para ela, para os líderes que mantiveram a chama acesa. O próprio Alá derrubara todas as diferenças entre os dois povos para que as nações pudessem se unir conforme a vontade de seu Deus. E o que era melhor do que buscar essa unificação com a esperança de prosperidade material, que por tanto tempo lhes fora negada por pessoas que se diziam fiéis à Palavra Sagrada? A União Soviética estava morta, seu Estado sucessor aleijado e os filhos de Moscou entregues à própria sorte. Se a presente oportunidade não fosse um sinal de Alá, que ela era?, refletiram os homens na sala.
Eles tinham de fazer apenas uma coisa para consolidar o plano de Alá. E o homem em seu caminho era um infiel. Alá iria julgá-lo... através das mãos daqueles sacerdotes.
— E embora eu não possa dizer que tenha gostado da forma como vocês trataram o time do Boston College em outubro último — disse Ryan com um sorriso para os campeões universitários de futebol americano da Universidade de Oklahoma em Norman —, a sua tradição de excelência faz parte da alma americana.
E as pessoas aplaudiram de novo. Jack ficou tão satisfeito com isso que quase esqueceu que o discurso não era realmente dele. Seu sorriso, dentes tortos e tudo, iluminou a arena, e ele acenou com a mão direita, desta vez com convicção. Era possível perceber a diferença na imagem transmitida pelo canal político C-SPAN.
— Ele aprende rápido — disse Ed Kealty. Ele era objetivo em relação a esses assuntos. Sua postura pública era uma coisa, mas políticos são realistas, ao menos no sentido tático.
— Ele foi bem treinado, não esqueça — lembrou o chefe de gabinete do ex-vice-presidente ao seu chefe. — Arnie é de primeira linha. Ed, nosso ataque inicial deu um susto neles e van Damm deve ter ensinado tudo a Ryan o mais rápido que pôde.
Não precisou acrescentar que seu ataque não tivera muitas repercussões depois do impacto inicial. No começo os jornais publicaram editoriais a seu favor, mas depois refletiram e recuaram — não editorialmente, porque a mídia quase nunca admite erros, mas as últimas matérias sobre a Casa Branca, ainda que não fossem elogiosas a Ryan, não tinham empregado as palavras assassinas usuais: inseguro, confuso, desorganizado. Nenhuma Casa Branca poderia ser desorganizada com Arnie van Damm nela, e toda a comunidade de Washington sabia disso.
As nomeações de Ryan ao gabinete tinham sido mal recebidas, mas logo seus assessores começaram a fazer as coisas certas. Adler era outro assessor que trabalhara duro para chegar ao topo. Em seus anos como assessor júnior, colaborara com muitos jornalistas, e eles não lhe dariam as costas agora — e ele jamais perdia uma chance de exaltar a experiência de Ryan em política interna.
George Winston, plutocrata e isolado do círculo político, iniciara um exame discreto sobre seu departamento. Winston tinha em sua agenda o número de cada editor financeiro de Berlim a Tóquio, a quem estava pedindo opiniões e conselhos sobre seu estudo interno. O mais surpreendente de todos era Tony Bretano no Pentágono. Politicamente independente nos últimos dez anos, Bretano prometera à comunidade de jornalistas especializados em defesa que limparia o templo ou morreria tentando; disse-lhes que desperdiçava dinheiro, como eles sempre tinham proclamado, mas que ele, com a aprovação do presidente, daria o máximo de si para descorromper o processo de aquisição de uma vez por todas. O gabinete de Ryan era um grupo singularmente charmoso.
Todos eram de fora do círculo político de Washington, mas os malditos estavam seduzindo a mídia da melhor forma possível — discretamente. O mais perturbador: o Washington Post, segundo um espião interno comunicou a Kealty no começo do dia, preparava uma série de matérias sobre a história de Ryan na CIA. As matérias, que colocariam Ryan nas nuvens, seriam assinadas por ninguém menos que Bob Holtzman. Ele era a representação máxima do jornalista político e, por motivos ignorados, gostava pessoalmente de Ryan — e dispunha de uma tremenda fonte interna em algum lugar. Aquilo era um Cavalo de Troia. Se as matérias fossem publicadas, e republicadas em rede nacional — duas coisas prováveis, considerando que isso elevaria o prestígio tanto de Holtzman quanto do Post —, os contatos de Kealty na mídia lhe dariam as costas rapidamente. Os editoriais iriam aconselhá-lo a retirar sua alegação pelo bem da nação e ele não teria mais qualquer apoio; sua carreira política cairia em desgraça ainda maior do que aceitara havia alguns dias. Os historiadores que teriam feito vista grossa para suas indiscrições pessoais se concentrariam agora em sua ambição desenfreada e, em vez de ver isso como uma exceção, reexaminariam toda sua carreira a uma luz diferente e desfavorável, questionando tudo que fizera, dizendo que as coisas boas que realizara foram exceções. Não era sua sepultura política que Kealty estava contemplando: era sua danação eterna.
— Você esqueceu de mencionar Callie — resmungou Ed, ainda assistindo ao discurso, ouvindo o conteúdo e prestando ainda mais atenção na forma como Ryan o declamava: num estilo acadêmico, adequado a uma plateia composta principalmente por estudantes, que aplaudiam esse Ryan como se ele fosse um treinador de futebol ou alguém de irrelevância semelhante.
— Um discurso de Callie faria Pee-Wee Herman parecer presidencial — concordou o chefe de gabinete.
E esse era o maior perigo de todos. Para vencer, Ryan precisava apenas parecer presidencial, fosse realmente ou não — e ele não era, claro, como Kealty não parava de lembrar a si próprio. Como poderia ser?
— Nunca disse que ele era estúpido — admitiu Kealty. Ele precisava ser objetivo. Não é mais um jogo. E ainda mais importante que a vida.
— Vai acontecer logo, Ed.
— Sei disso.
Mas ele precisaria de munição mais pesada para usar em seu ataque. Era uma metáfora curiosa para alguém que defendera o controle de armas durante toda sua vida política.
25
Emanações
A fazenda viera com um celeiro. Agora estava servindo principalmente como garagem. Ernie Brown ganhara muito dinheiro no ramo de construções.
Tendo iniciado sua carreira nos anos 70, estabelecera seu próprio negócio no final da década de 80 para desfrutar do boom imobiliário da Califórnia. Embora dois divórcios tivessem depenado seus fundos, a venda das propriedades fora feita no momento certo. Com o dinheiro, Ernie comprara uma parcela considerável de terra numa área ainda não chique o bastante para ter seu valor inflacionado por figuras de Hollywood. O que resultara fora praticamente uma seção inteira — 2,60 km2 — de privacidade. Na verdade mais que isso, porque os ranchos vizinhos estavam dormentes nesta época do ano, os pastos congelados, o gado confortavelmente recolhido e comendo alfafa. Eles podiam passar vários dias sem ver outro carro na estrada, ou pelo menos era essa a impressão que tinham. Ônibus escolares não contavam.
Um caminhão de cinco toneladas também viera com o rancho — motor a diesel, o que era muito conveniente — juntamente com um tanque de combustível subterrâneo com capacidade para dois mil galões ao lado do celeiro. A família que vendera rancho, celeiro e casa ao recém-chegado da Califórnia não sabia que em sua ex-propriedade seria montada uma fabrica de bombas. O primeiro trabalho de Ernie e Pete tinha sido fazer o velho caminhão funcionar. Isso se revelou um exercício de quarenta minutos, porque não era apenas um caso de bateria descarregada; por sorte, Pete Holbrook era um mecânico competente e no devido tempo o motor do caminhão despertou com um rugido e deu todos os sinais de que continuaria entre os vivos. O caminhão não estava licenciado, mas isso não era terrivelmente incomum nesta área de grandes propriedades, e o percurso de 64 quilômetros para o norte, rumo à loja de suprimentos de fazenda, decorreu sem incidentes.
Para a loja, aquilo não poderia ser um presságio melhor de uma boa primavera. A temporada de plantio estava chegando (havia muitos fazendeiros de trigo nas imediações), e aqui estava o primeiro grande cliente para a montanha de fertilizante que acabara de chegar do armazém do distribuidor, em Helena. Os homens compraram quatro toneladas, o que não era uma quantidade incomum. Uma empilhadeira movida a propano depositou o fertilizante na carroceria do caminhão, eles pagaram em dinheiro e se despediram com um aperto de mão e um sorriso.
— Vai ser um trabalho duro — comentou Holbrook no meio do caminho de volta.
— É verdade. E teremos de fazer tudo sozinhos — concordou Brow. — Ou quer contratar alguém que pode se tornar um informante?
— Eu entendo, Ernie — replicou Pete enquanto cruzavam com um carro da polícia estadual. O tira nem sequer virou a cabeça, embora o encontro tenha provocado arrepios nos dois Montanheses. — Quantos mais?
Brown fizera os cálculos uma dúzia de vezes.
— Mais um caminhão cheio. E uma pena que esse material seja tão volumoso.
Fariam a segunda compra no dia seguinte, numa loja a 48 quilômetros ao sul do rancho. Teriam muito trabalho a realizar esta manhã, descarregando toda essa porcaria para dentro do celeiro. Um bom exercício. Por que a maldita fazenda não tinha uma empilhadeira? — perguntou-se Holbrook. Pelo menos, quando reabastecessem o tanque de combustível, a companhia petrolífera local faria isso. Era um consolo.
Fazia frio na costa chinesa, o que facilitava para que os satélites vissem uma série de emanações térmicas em duas bases navais. Na verdade, a Marinha chinesa era o Serviço Naval do Exército de Libertação Popular, um desrespeito tão grosseiro à tradição que os navios ocidentais ignoravam o nome correto, favorecendo o costume. A imagem foi gravada e transmitida para o Centro de Comando Militar do Pentágono, onde o observador-chefe virou-se para seu especialista em informação.
— Os chineses estão realizando um exercício?
— Não que saibamos.
As fotos mostravam que vinte navios, todos alinhados, estavam com as máquinas funcionando, em vez do procedimento normal segundo o qual tiravam sua energia elétrica da doca. Um olhar mais atento revelava meia dúzia de rebocadores movendo-se em volta do porto. Sendo militar, o especialista em informação da base mandou chamar um oficial da Marinha.
— Estão lançando alguns navios ao mar — foi a análise óbvia.
— Não estão apenas fazendo um exame de engenharia ou algo assim?
— Não precisariam de rebocadores para isso. Quando é o próximo passe? — indagou o comandante da Marinha, referindo-se a um passe de satélite, checando a hora de referência na foto. Ela fora batida havia trinta minutos.
— Daqui a cinquenta minutos.
— Então deverá mostrar três ou quatro navios saindo ao mar em ambas as bases. Pode ter certeza. Por enquanto, as chances são de duas em três de que estejam iniciando um exercício de grandes proporções. —Fez uma pausa. — Tem algum auê político acontecendo?
O chefe de vigilância balançou a cabeça.
— Nada.
— Então é um exercício de esquadra. Talvez alguém tenha decidido checar sua presteza.
Eles descobririam mais com um release para a imprensa de Pequim, mas estava a trinta minutos num futuro que não podiam ver, embora fossem pagos para isso.
O diretor era um homem religioso, conforme o esperado, considerando a sensibilidade de seu posto. Médico talentoso que tinha sido, e virólogo que ainda era, vivia num país em que a confiabilidade política de uma pessoa era medida por sua devoção ao ramo xiita do Islã, e nesse aspecto não havia dúvidas quanto a ele. Suas preces eram sempre feitas na hora certa, com seu trabalho no laboratório programado em função delas. Exigia o mesmo de seus assistentes, porque sua devoção era tão grande que ultrapassava o ensinamento do Islã sem que nem sequer pensasse nisso, dobrando suas leis como se fossem de borracha, e ao mesmo tempo dizendo a si mesmo que jamais violara a vontade do Profeta, ou de Alá. Como poderia ter feito isso? Ele estava ajudando a disseminar a Fé novamente pela Terra.
Os prisioneiros, as cobaias, eram todos homens condenados, de uma forma ou de outra. Mesmo os ladrões, criminosos menores, haviam violado quatro vezes o Corão Sagrado, e provavelmente tinham cometido outros crimes — provavelmente, disse a si mesmo —, crimes puníveis com a pena de morte.
Todos os dias eram informados sobre a hora da oração e embora se ajoelhassem, curvassem e recitassem as orações, bastava observá-los pelo monitor de TV para perceber que estavam apenas seguindo o ritual, não realmente orando para Alá na forma indicada. Isso os tornava apóstatas — e apostasia era um crime capital em seu país —, embora apenas um deles tivesse sido condenado por esse crime.
Ele pertencia à religião bahai, uma minoria quase extinta, uma estrutura de crença que evoluíra depois do Islã. Cristãos e judeus eram Povos do Livro Sagrado; embora desorientados, ao menos reconheciam o mesmo Deus no Universo, aquele de quem Maomé fora o mensageiro final. O bahai aparecera depois, inventando algo a um só tempo novo e falso que os relegara ao status de pagãos, negando a Fé Verdadeira e atraindo a ira de seu governo. Era adequado que este homem fosse o primeiro a demonstrar que a experiência tinha sido bem-sucedida.
Era notável que os prisioneiros se mostrassem tão letárgicos devido à sua condição que os primeiros sintomas de gripe não causaram nenhuma reação especial. Os médicos militares, como sempre protegidos com roupas plásticas, entraram para tirar amostras de sangue, e um benefício adicional da condição dos prisioneiros tinha sido que eles estavam intimidados demais para causar problemas. Todos estavam na prisão havia algum tempo, submetidos a uma dieta deficiente que causava efeitos nocivos em seus níveis de energia, além de um regime disciplinar ao qual não ousaram resistir. Mesmo os prisioneiros condenados que sabiam estar contemplando a morte não desejavam acelerar o processo. Todos submeteram-se humildemente a ter seu sangue extraído por médicos extremamente cuidadosos. Os tubos de testes foram rotulados cuidadosamente de acordo com os números em suas camas, e os médicos se retiraram.
No laboratório, o sangue do Paciente Três foi o primeiro a ser colocado sob o microscópio. O teste de anticorpos tendia a gerar uma leitura falsa positiva, e a experiência era importante demais para riscos de erro. Assim, slides foram preparados e colocados sob microscópios eletrônicos, inicialmente ajustados numa ampliação de 20.000 por área de busca. O equipamento eletrônico de precisão que movia o slide ajustou-o para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, até...
— Ah — disse o diretor. Ele centrou o alvo no campo de visão e aumentou a ampliação para 112.000... e ali estava ele, projetado no monitor de computador em preto e branco. Sua cultura sabia muito sobre pastoreio, e o aforismo Cajado de Pastor pareceu-lhe uma descrição perfeita. Centrado estava o filamento de RNA, fino e curvo no fundo, com os laços de proteína no topo. Eles eram a chave da ação do vírus, ou pelo menos assim pensavam todos. Sua função exata não era compreendida, e isso também agradou a faceta de técnico de guerra biológica do diretor.
— Moudi — falou.
— Sim, estou vendo — disse o médico mais jovem, assentindo lentamente enquanto caminhava até aquele lado da sala. O vírus Ebola Zaire Mayinga estava no sangue do apóstata. Ele acabara de proceder ao teste de anticorpos e vira a pequena amostra mudar de cor. Não se tratava de um resultado falso positivo.
— Está confirmada a transmissão aérea.
— De acordo. — O rosto de Moudi não mudou. Ele não estava surpreso.
— Esperaremos mais um dia... não, dois dias, para a segunda fase. E então saberemos. Por enquanto, ele tinha um relatório a fazer.
O pronunciamento em Pequim pegou a embaixada americana de surpresa.
A situação foi comunicada em termos de rotina. A Marinha chinesa estava executando um exercício de grande porte no estreito de Taiwan. Haveria alguns disparos de mísseis terra-ar e terra-terra em datas ainda não especificadas (ainda havia considerações climáticas a ser esclarecidas, disse o release). O governo da República Popular da China estava emitindo notas de alerta para a aviação e a marinha de todos os países, de modo que as companhias aéreas e de navegação pudessem ajustar suas rotas de acordo. Fora disso, o release não dizia absolutamente nada, o que foi constatado com certo temor pelo vice-chefe de missão em Pequim. O vice-chefe imediatamente conferenciou com seus adidos militares e o chefe de estação da CIA, nenhum dos quais teve qualquer informação a oferecer, exceto que o release não tinha nada a dizer sobre o governo da República da China em Taiwan. Por um lado, essas eram boas notícias — não havia nenhuma reclamação sobre a contínua independência política daquela que Pequim considerava uma província rebelde. Por outro lado, eram más notícias — o release não dizia que aquele era um exercício rotineiro e que não pretendia agredir ninguém. O comunicado era apenas isso, sem nenhuma explicação adicional. A informação foi despachada para o NMCC no Pentágono, para o chefe de Departamento, e para o quartel-general da CIA em Langley.
Daryaei teve de vasculhar a memória em busca do rosto que acompanhava aquele nome, e o rosto que lembrou era errado, porque pertencia a um menino de Qom, e a mensagem vinha de um homem maduro a meio mundo de distância. Raman... oh, sim, Aref Raman, que rapaz brilhante ele era. Seu pai tinha sido vendedor de automóveis, e vendia-os em Teerã aos poderosos, um homem cuja fé esvanecera. Mas não a de seu filho. Seu filho nem piscara ao saber da morte dos pais, mortos por acidente nas mãos do Exército do xá, porque estavam no lado errado da rua na hora errada, apanhados em meio a um distúrbio civil do qual não tomaram parte. Juntos, ele e o professor haviam rezado por eles. Mortos pelas mãos daqueles em quem confiavam era a lição do evento, mas a lição fora desnecessária. Raman já era um rapaz de fé profunda, ofendido pelo fato de sua irmã mais velha ter dormido com um oficial americano, maculando assim o nome da família e o seu. Ela também desaparecera na revolução, condenada por um tribunal islâmico por adultério.
Assim, só restara Raman. Podiam tê-lo usado de muitas formas, mas a escolhida fora planejada pelo próprio Daryaei. Associada com duas pessoas de idade, a nova família saíra do país com a riqueza da família Raman e fora primeiro para a Europa e logo depois para os EUA. Ali não tinham feito nada mais do que viver discretamente. Daryaei acreditava que estavam mortos a essa altura. O filho, selecionado para a missão por seu domínio prematuro da língua inglesa, prosseguiu sua educação e entrou no serviço governamental, desempenhando seus deveres com toda a excelência que demonstrara nas fases iniciais da revolução, durante a qual matara dois altos oficiais na Força Aérea do xá, enquanto eles bebiam uísque num bar de hotel.
Depois disso agira conforme suas ordens. Não faça nada. Imiscua-se, desapareça. Lembre de sua missão, mas não faça nada. Era gratificante para o aiatolá saber que julgara bem o menino, porque agora, por aquela breve mensagem, sabia que sua missão tinha sido quase completamente realizada.
A palavra assassino é derivada ashohashin, a palavra árabe para o narcótico haxixe, a ferramenta que já fora usada pelos membros do Nizari, uma subseita do Islã, para conferir a si próprios uma visão induzida por drogas do Paraíso antes de partir para suas missões de assassinato. Na verdade, segundo a filosofia de Daryaei, eles tinham sido hereges — e o uso de drogas era uma abominação. Eles haviam sido servos de mente fraca mas eficazes para uma série de líderes terroristas como Hasan e Rashid ad-Din, e, durante uma época que se prolongou por dois séculos, haviam servido ao equilíbrio político de poder numa região que se estendia da Síria à Pérsia. Mas nesse conceito havia um brilhantismo que fascinara o sacerdote desde que o aprendera quando menino. A tática de colocar um agente fiel dentro do campo inimigo. Era uma missão que demandava anos, e, portanto, uma missão de fé. Os nizaris tinham falhado porque eram hereges, separados da Fé Verdadeira, capazes de recrutar alguns extremistas para seu culto, mas não as grandes massas, e assim, serviam a um único homem, e não a Alá, daí sua necessidade de ingerir drogas para adquirir confiança, como os infiéis faziam com o álcool. Uma ideia brilhante fracassada. Mas, ainda assim, uma ideia brilhante. Daryaei simplesmente a aperfeiçoara e agora tinha um homem próximo, algo pelo que ele ansiava havia muito tempo. Melhor ainda, tinha um homem próximo e aguardando instruções, na outra extremidade de uma trilha desconhecida de mensagem que ele 1 nunca usara, toda composta de pessoas que haviam partido para o mundo havia pouco mais de cinquenta anos, um estado de coisas muito melhor do que ele tivera no Iraque, mas nos EUA as pessoas suspeitas eram presas ou investigadas, ou vigiadas até os vigilantes ficarem entediados e se dedicarem a outras tarefas.
Em alguns países, quando isso acontecia, os vigilantes ficavam entediados, capturavam a quem vigiavam e frequentemente o matavam.
Assim era quase hora de Raman completar sua missão, e depois de todos esses anos, ele ainda usava sua cabeça, não afetada por drogas e treinada pelo próprio Grande Satã. As notícias eram tão sublimes que ocasionaram um sorriso.
O telefone tocou. O particular.
— Sim?
— Tenho boas notícias sobre a Fazenda de Macacos — disse o diretor.
— Sabe, Arnie, você estava certo — disse Jack, sentindo a brisa do vento oeste.
— Foi maravilhoso sair daqui.
O chefe de gabinete percebeu a velocidade nos passos de Ryan, mas não ficou empolgado com o ânimo do presidente. O Força Aérea Um trouxera-o de volta a tempo de um jantar calmo com a família em vez dos rigores usuais de três ou quatro discursos, horas intermináveis de confraternização com mecenas, quatro horas de sono à noite — muito frequentemente, a bordo do avião —, e em seguida, um banho rápido e um dia de trabalho estendido artificialmente pela pressão dos compromissos. Era incrível, pensou, o fato de que algum presidente conseguisse trabalhar de verdade. Os verdadeiros deveres do cargo eram muito árduos. E quase sempre subordinados a atividades que eram pouco mais que relações públicas, ainda que uma função necessária numa democracia, na qual as pessoas precisavam ver o presidente realizando mais do que ficar em sua poltrona fazendo... seu trabalho. A presidência era um trabalho que se podia amar sem gostar, frase que parecia contraditória até que se via o que acontecia aqui.
— Você foi ótimo — congratulou van Damm. — O discurso ficou perfeito na TV, e o segmento que a NBC exibiu sobre sua esposa também foi bom.
— Ela não gostou. Ela acha que não usaram sua melhor frase — comentou Ryan com leveza.
— Podia ter sido muito pior. —Eles não lhe perguntaram sobre aborto, pensou Arnie. Para impedir que isso acontecesse, ele tinha gasto vários trunfos com a NBC, e providenciara para que Tom Donner fosse tratado tão bem quanto um senador, talvez até mesmo um membro do gabinete, no voo do dia anterior, incluindo um raro segmento gravado do voo. Na semana seguinte, Donner seria o primeiro âncora de televisão a ter uma conversa cara a cara com o presidente na sala de estar do andar superior, e para essa entrevista não haveria acordos sobre os tipos de perguntas, significando que Ryan teria de ser instruído durante horas para não meter os pés pelas mãos. Mas por enquanto o chefe de gabinete permitiu que seu presidente desfrutasse a satisfação resultante de um dia muito bom no Meio-Oeste, cuja missão real, além de tirar Ryan de Washington e provar o que era realmente ser presidente, fora fazê-lo parecer um presidente, e marginalizar ainda mais Kealty, aquele filho da puta.
O Serviço Secreto estava tão eufórico quanto seu presidente, porque frequentemente extraíam seu humor do POTUS, retribuindo seus cumprimentos e acenos com os seus próprios: Bom dia, presidente!, foi repetido por quatro deles enquanto Ryan passava, seguindo seu caminho até o Salão Oval.
— Bom dia, Ben — disse Ryan animado, caminhando até sua mesa e afundando na confortável cadeira giratória. — Conte-me como vai o mundo.
— Podemos estar com um problema. A Marinha da República Popular da China está no mar — comunicou o conselheiro de Segurança Nacional. O Serviço Secreto acabara de designar-lhe um nome código, BATOTEIRO.
— E? — indagou Ryan, irritado por terem estragado sua manhã.
— E parece um exercício naval de grande porte. E estão anunciando que haverá testes com lançamentos de mísseis carregados. Nenhuma reação ainda de Taipé.
— Eles não estão para ter eleições ou nada do tipo, estão? — perguntou Jack.
Goodley balançou a cabeça.
— Não. Não por mais um ano. A República da China continua gastando dinheiro com as Nações Unidas, e estão fazendo um lobby discreto com diversos países, para o caso de terem seu pedido de representação aceito, mas nada anormal. Taipé está jogando na retranca, e não está fazendo nada que possa ofender o continente. Seu relacionamento comercial é estável. Em suma, não temos explicação alguma para o exercício.
— Que temos na área?
— Um submarino no estreito de Formosa, ficando de olho numa base chinesa.
— Porta-aviões?
— Não chega nem perto do que tivemos no oceano Índico. O Stennis está em Pearl para reparos de motor, juntamente com o Enterprise, e ficarão lá durante um tempo. Ainda estamos bem fragilizados. — BATOTEIRO lembrou ao presidente o que ele mesmo lembrara ao presidente dele apenas alguns meses antes.
— E quanto ao exército deles? — foi a pergunta seguinte do presidente.
— Nada novo também. Temos níveis de atividade maiores que o usual, como os russos informaram, mas isso já vem acontecendo há algum tempo.
Ryan recostou-se na poltrona e contemplou uma xícara de café descafeinado. Ele descobrira em sua viagem de discursos que seu estômago ficava melhor quando evitava cafeína, e comentara isso com Cathy, que tinha apenas sorrido e falado: Eu te disse!
— Certo, Ben, especule.
— Conversei com alguns especialistas em China do Estado e na Agência — replicou Goodley. —Talvez os seus militares estejam fazendo uma manobra política, política interna, quero dizer, elevando seu estado de prontidão para fazer as pessoas em Pequim saberem que ainda estão por perto. Fora isso, qualquer outra coisa é especulação pura, e esse não é meu trabalho, lembra?
— Não sei significa não sei, não é? — Era uma pergunta retórica, e um dos aforismos favoritos de Ryan.
— O senhor me ensinou isso do outro lado do rio, presidente — concordou Goodley, mas sem o sorriso esperado. — Também me ensinou a não gostar de coisas que não posso explicar. — O oficial do serviço nacional de informações fez uma pausa. — Eles sabem que nós iremos saber, e sabem que ficaremos interessados, sabem que o senhor é novo aqui, sabem que o senhor não precisa de uma briga. Então por que fariam? — perguntou Goodley, também retoricamente.
— Sim — concordou com calma o presidente. — Andréa? — chamou. Price, como sempre, estava na sala, fingindo não prestar atenção.
— Senhor?
— Onde está o fumante mais próximo? — perguntou Ryan sem a menor vergonha.
— Presidente, eu não...
— O cacete que você não. Eu quero um.
Price assentiu e desapareceu na sala de secretariado. Ela reconhecia os sinais quando os via. Mudar de café normal para descafeinado, e agora um cigarro. De certo modo era surpreendente que tivesse demorado tanto, e isso explicou-lhe mais sobre o relatório do serviço nacional de informações do que as palavras do Dr. Benjamin Goodley.
Tinha de ser uma mulher fumante, constatou o presidente um minuto depois. Outro cigarro fino. Price trouxe até um fósforo e um cinzeiro junto com seu olhar desaprovador. Ele se perguntou se eles tinham agido da mesma forma com FDR e Eisenhower.
Ryan deu sua primeira tragada, aprofundado em pensamentos. A China tinha sido a parceira silenciosa no conflito — ele ainda não conseguia usar a palavra guerra, nem mesmo em sua própria mente — com o Japão. Pelo menos era isso que se supunha. Tudo fazia sentido, e tudo se encaixava perfeitamente, mas não havia provas suficientes para rechear um relatório especial do serviço nacional de informação, quanto mais apresentar à imprensa, que na maioria das vezes exigia o mesmo nível de confiabilidade que um juiz especialmente conservador. Assim... Ryan levantou o telefone.
— Quero falar com o diretor Murray.
Uma das poucas coisas boas na presidência era o uso do telefone. Por favor, aguarde pelo presidente, uma frase simples falada por uma secretária da Casa Branca no tom de voz com que pediria uma pizza, sempre causava uma reação próxima ao pânico do outro lado de qualquer linha. Raramente levava menos de dez segundos para conseguir falar com alguém. Desta vez levou seis.
— Bom dia, presidente.
— Bom dia, Dan. Preciso de uma coisa. Qual é o nome do inspetor da polícia japonesa que esteve aqui?
— Jisaburo Tanaka — respondeu Murray prontamente.
— Ele é bom? — foi a pergunta seguinte.
— Sólido. Tão bom quanto qualquer um com quem trabalhei aqui. O que você quer dele?
— Presumo que eles estejam falando muito com aquele tal Yamata.
— Tão certo quanto um urso mija na floresta, presidente — o diretor do FBI conseguiu dizer sem rir.
— Quero saber sobre suas conversas com a China, especialmente quem era o contato deles.
— Podemos fazer isso. Tentarei falar com ele agora mesmo. Ligo de volta para você?
— Não. Passe as informações para o Ben Goodley, e ele irá coordenar com as pessoas lá de baixo — disse Ryan, empregando uma antiga expressão íntima dos dois. — Ben está aqui agora no meu velho escritório.
— Sim, senhor. Deixe-me fazer isso agora. É quase meia-noite em Tóquio.
— Obrigado, Dan. Tchau. — Jack desligou o telefone. — Vamos tentar elucidar isso.
— Pode ter certeza, chefe — prometeu Goodley.
— Mais alguma coisa acontecendo no mundo? Iraque?
— Mesmas notícias de ontem. Muita gente sendo executada. Os russos nos informaram sobre essa história de União Republicana do Islã, e todos achamos que é provável, mas eles ainda não têm evidências concretas. Planejava trabalhar nisso hoje, e...
— Certo, então faça.
— E então, qual é o procedimento padrão para isto? — indagou Tony Bretano. Robby Jackson não gostava especialmente de fazer nada às pressas, mas aquele era o trabalho do recém-promovido J-3, diretor de operações para o Estado-Maior. Na semana anterior, ele aprendera a gostar do secretário de Defesa nomeado. Bretano era um sujeito aparentemente difícil de se lidar, mas sua carranca era apenas fachada, escondendo um cérebro ativo e capaz de decisões rápidas. E o homem era um engenheiro — sabia o que não sabia, e não hesitava em fazer perguntas.
— Temos o Pasadena, um submarino de ataque rápido, no estreito, já procedendo a vigilância de rotina. Interrompemos seu trabalho atual e o movemos para o nordeste. Em seguida, movemos duas das três embarcações adicionais que temos na área, designando-lhes bases de operação para ficar de olho nos acontecimentos. Abrimos uma linha de comunicação com Taipé e eles estão instruídos a nos passar o que virem e souberem. Farão isso. Sempre jogam limpo conosco. Também moveremos um cruzador para um pouco mais perto da área, mas desta vez não o posicionaremos próximo demais; isso pareceria uma reação exagerada porque não existe uma ameaça política a Taipé.
Temos aeronaves com equipamentos de coleta de informações em patrulha nas áreas fora do alcance da base Anderson da Força Aérea, em Guam. Somos prejudicados por não dispormos de uma base próxima.
— Em resumo, coletamos informações e não obtivemos nada substancial? — perguntou o secretário de Defesa.
— Coletar informações é substancial, senhor, mas sim, é isso... Bretano sorriu.
— Eu sei. Construí os satélites que vocês usarão. O que eles nos dirão?
— Provavelmente captaremos muitas conversas limpas que ocuparão cada microfone que eles têm em Forte Meade e não nos dirão muito sobre suas intenções gerais. O material operacional será útil... ele nos dirá muito sobre suas capacidades. Se conheço bem o almirante Mancuso, comandante de submarinos do Pacífico, ele fará um ou dois de seus submarinos moverem-se mais rápido que os demais e se desgarrarem do grupo, para ver se os chineses perseguirão um deles, mas nada ostensivo. Essa é das opções que temos se não gostarmos da forma como o exercício está sendo executado.
— Que quer dizer?
— Quero dizer que se você quiser realmente deixar um oficial naval temente a Deus, faça-o saber que tem um submarino perto dele... imagine, secretário, um submarino aparecer inesperadamente no meio da sua formação e desaparecerem seguida. É um jogo de nervos, um jogo muito sujo. Nosso pessoal é bom nisso, e Bart Mancuso sabe como usar seus barcos. Não teríamos derrotado os japoneses sem ele — disse Jackson positivamente.
— Ele é tão bom assim? — Para o novo secretário de Defesa, Mancuso era apenas um nome.
— Não há ninguém melhor. E uma das pessoas a quem você deveria ouvir.
Assim como o seu comandante-em-chefe do Pacífico, Dave Seaton.
— O almirante DeMarco me disse...
— Senhor, posso falar francamente? — perguntou o J-3.
— Jackson, essa é a única regra aqui.
— Bruno DeMarco foi feito vice-chefe das Operações Navais por um motivo. Bretano entendeu imediatamente.
— Oh, para fazer discursos e não fazer nada que possa prejudicar a Marinha? A resposta de Robby Jackson foi um meneio de cabeça.
— Anotado, almirante Jackson.
— Senhor, não sei muita coisa sobre indústria, mas há uma coisa que o senhor precisa saber sobre este prédio. Há dois tipos de oficiais no Pentágono, operadores e burocratas. O almirante DeMarco está aqui há mais da metade de sua carreira. Mancuso e Seaton são operadores, e eles fazem o máximo que podem para ficar longe deste prédio.
— E você também — observou Bretano.
— Acho que simplesmente gosto do cheiro de maresia, secretário. Não estou querendo aparecer, senhor. Você decidirá se gosta de mim ou não... Além disso, não posso mesmo voar mais. Mas quando Seaton e Mancuso falarem, espero que o senhor lhes dê ouvidos.
— Qual é o seu problema, Robby? — perguntou o secretário de Defesa com preocupação súbita. Ele conhecia um bom funcionário quando via um.
Jackson deu de ombros.
— Artrite. Problema de família. Podia ser pior, senhor. Não vai prejudicar meu jogo de golfe, e chefes de esquadra não voam muito mesmo.
— Não se importa em ser promovido, se importa? — Bretano estava para recomendar outra estrela para Jackson.
— Secretário, sou filho de um pastor do Mississippi. Fui para Annapolis, pilotei caças por vinte anos e ainda estou vivo para falar sobre isso. — Muitos de seus amigos não estavam, fato que Robby jamais esquecia. — Posso me retirar do serviço a qualquer momento que quiser e conseguir um bom emprego. Mas a América tem sido muito boa comigo, e devo alguma coisa ao país. Pago essa dívida dizendo a verdade da melhor forma que posso e me danando para as consequências.
— Então, você também não é um burocrata. — Bretano se perguntou qual seria a formação de Jackson. Ele falava como um engenheiro competente. Até sorria como um.
— Preferiria tocar piano num bordel, senhor. É um trabalho mais honesto.
— Vamos nos afinar bem, Robby. Estabeleça um plano. Fique de olho nos chineses.
— Na verdade, pretendia apenas aconselhar e...
— Depois coordene com Seaton. Imagino que ele também lhe dê ouvidos.
As equipes de inspeção das Nações Unidas estavam tão acostumadas com a frustração que mal sabiam lidar com a satisfação. As diversas equipes nas várias instalações haviam entregado pilhas de papel, fotografias e fitas de vídeo, e praticamente arrastaram os inspetores pelas instalações, apontando os aspectos importantes e muitas vezes demonstrando os métodos mais simples de desativar os equipamentos mais ofensivos. Havia o pequeno problema de que a diferença entre uma usina de armas químicas e uma fabrica de inseticida era essencialmente nula. O gás neural fora uma invenção acidental da pesquisa de combate a insetos (a maioria dos inseticidas são venenos neurais). A única diferença eram os ingredientes químicos, chamados precursores. Além disso, qualquer país com recursos petrolíferos e uma indústria petroquímica produzia rotineiramente todos os tipos de produtos especializados, a maioria deles tóxicos aos humanos.
Mas o jogo tinha regras, e uma delas era que pessoas honestas não produzem armas proibidas e, da noite para o dia, o Iraque tornara-se um membro honesto da comunidade mundial.
Este fato ficou claro no encontro do Conselho de Segurança da ONU. O embaixador iraquiano falou de sua poltrona na mesa anular, usando gráficos para mostrar o que fora exibido às equipes inspetoras, e lamentando o fato de que ele tinha sido incapaz de falar a verdade antes. Os outros diplomatas na sala entenderam. Muitos deles mentiam tanto que mal sabiam mais o que era a verdade. E assim, estavam agora diante de uma verdade e não reconheciam a mentira que ela ocultava.
— Considerando a aceitação total de meu país a todas as resoluções das Nações Unidas, requisitamos respeitosamente que, em vista das necessidades de meu país, o embargo de gêneros alimentícios seja retirado o mais rápido possível — concluiu o embaixador. Até mesmo seu tom estava razoável agora, notaram com satisfação os outros diplomatas.
— A cadeira reconhece o embaixador da República Islâmica do Irã — disse o embaixador chinês, que no momento ocupava a posição rotativa de diretor do Conselho de Segurança.
— Nenhum país neste grupo tem motivos maiores para não gostar do Iraque.
As fábricas de armas químicas inspecionadas hoje fabricavam armas de destruição em massa que em seguida eram usadas contra o povo de meu país.
Concomitantemente, consideremos responsabilidade nossa reconhecer o novo dia que nasceu para nosso vizinho. Os cidadãos do Iraque sofreram por muito tempo devido às ações de seu governante... mas agora esse governante caiu, e o novo governo está demonstrando todos os sinais de ser responsável o bastante para ingressar na comunidade das nações. Em vista disso, a República Islâmica do Irã apoiará a suspensão imediata do embargo. Além disso, providenciaremos uma transferência emergencial de gêneros alimentícios para prover alívio aos cidadãos iraquianos. O Irã propõe que a suspensão seja condicional à manutenção da boa fé do Iraque. Com esse fim, submetemos a Resolução Provisória 3569...
Scott Adler voara para Nova York para ocupar a cadeira americana no Conselho. O embaixador americano na ONU era um diplomata experiente, mas para algumas situações a proximidade de Washington era muito conveniente, e esta era uma delas. Só que havia pouco que pudesse fazer. O secretário de Estado não tinha cartas para jogar. Frequentemente a estratégia mais inteligente na diplomacia era fazer exatamente o que seu adversário requisitava. Esse fora o maior temor em 1991, que o Iraque pudesse simplesmente retirar-se do Kuwait, deixando a América e seus aliados com nada para fazer. E preservando o Exército iraquiano para lutar outro dia. Essa fora, felizmente, uma opção um pouco inteligente demais para ser adotada pelo Iraque. Mas alguém aprendera com aquilo. Quando você exige que alguém faça alguma coisa ou nega algo de que ele precisa, e então essa pessoa faz... bem, então você não pode negar mais o que ele quer, pode?
Adler fora completamente instruído sobre a situação, o que ajudava muito pouco. Era como ficar sentado num jogo de pôquer com três ases depois de comprar, apenas para descobrir que o seu oponente tem um straight flush. Boa informação nem sempre ajuda. A única coisa que poderia adiar os procedimentos era o ritmo túrgido das Nações Unidas, e mesmo isso tinha limites quando os diplomatas ficavam entusiasmados. Adler poderia ter pedido uma postergação dos votos para averiguar a obediência do Iraque às exigências de longo prazo da ONU, mas o Irã já cuidara disso, submetendo uma resolução que especificava a natureza temporária e condicional da suspensão do embargo.
Também tinham deixado muito claro que enviariam alimentos de qualquer modo — na verdade, já tinham feito isso, através de caminhões, na teoria de que fazer alguma coisa ilegal em público tornava-a aceitável. O secretário de Estado olhou para seu embaixador — eles eram amigos havia anos e viu uma piscadela irônica. O embaixador inglês estava olhando para um bloco com anotações a lápis. O embaixador russo lia despachos. Ninguém estava ouvindo realmente.
Não precisavam. Em duas horas, a resolução iraquiana passaria. Bem, poderia ter sido pior. Pelo menos ele teria uma chance de falar cara a cara com o embaixador chinês e perguntar sobre suas manobras navais. Ele sabia a resposta que receberia, mas não saberia se ela era verdadeira ou falsa. Claro. Sou o secretário de Estado na nação mais poderosa do mundo, pensou Adler, mas hoje não passo de um mero espectador.
26
Ervas Daninhas
Bem poucas coisas mais tristes do que uma criança doente. Sohaila, era esse seu nome, lembrou o Dr. MacGregor. Um nome bonito para uma menina bonita, com rosto de fada. Seu pai a segurava no colo. Parecia um homem bruto — fora essa a primeira impressão de MacGregor, e ele aprendera a confiar em seus instintos. Sua esposa estava com ele, juntamente com outro homem de aparência árabe usando terno, e atrás dele, havia um sudanês de aparência oficial. O médico notou e ignorou a todos. Não estavam doentes. Sohaila sim.
— Bem, olá novamente, mocinha — disse com um sorriso confortador. — Não está se sentindo muito bem, não é? Teremos de cuidar disso, não é? Venha comigo — disse ele ao pai da menina.
Claramente essas pessoas eram importantes para alguém, e seriam tratadas de acordo. MacGregor conduziu-os a uma sala de exames. O pai acomodou a menininha na mesa e recuou, deixando a esposa segurando a mão de Sohaila.
Os guarda-costas — era isso que eram — permaneceram do lado de fora. O médico encostou a mão na testa da criança. Ela estava ardendo em febre — 39
graus, pelo menos. Certo. Lavou as mãos e vestiu luvas, novamente porque esta era a África, e na África tomavam-se todas as precauções possíveis. Sua primeira ação foi tomar sua temperatura através do ouvido: 39.4. A pulsação estava rápida, mas não preocupante para uma criança. Uma checagem rápida com um estetoscópio confirmou sons cardíacos normais e nenhum problema específico com os pulmões, embora a respiração também estivesse rápida. Até agora ela tivera febre, algo comum com crianças, especialmente aquelas recém-chegadas a um novo ambiente. Olhou para cima.
— O que parece ser o problema com sua filha? — perguntou ao pai desta vez.
— Ela não pode comer, e sua outra extremidade...
— Vômitos e diarreia? — perguntou MacGregor, checando agora os olhos da menina. Também pareciam normais.
— Sim, doutor.
— Vocês chegaram recentemente? — Olhou para cima quando a resposta foi uma hesitação. — Preciso saber.
— Correto. Do Iraque, apenas há alguns dias.
— E a sua filha sofre de um problema mediano de asma, nada mais, nenhum outro problema de saúde, correto?
— É verdade, sim. Ela tomou todas as vacinas. Nunca esteve doente desse jeito.
A mãe apenas assentiu. O pai claramente assumira o controle da situação, provavelmente para obter a sensação de autoridade, de fazer as coisas acontecerem, considerou o médico. Por ele, tudo bem.
— Comeram alguma coisa diferente desde que chegaram? — perguntou MacGregor.
— Algumas pessoas são muito suscetíveis a viagens, e crianças são extremamente vulneráveis. Pode ser simplesmente a água local.
— Dei-lhe o remédio, mas ela piorou — comunicou a mãe.
— Não é a água — disse o pai positivamente. — A casa tem poço próprio. A água é boa.
Como se tivesse ensaiado, Sohaila gemeu e se virou, vomitando na mesa de exames e no assoalho de ladrilhos. A cor não era certa. Havia vestígios de vermelho e preto. Vermelho para o sangue novo, preto para o velho. Não era enjoo de jato ou água ruim. Úlcera, talvez? Envenenamento alimentar?
MacGregor piscou e checou instintivamente as mãos para verem se estavam enluvadas. A mãe estava procurando papel-toalha para...
— Não toque nisso — disse em tom calmo. Em seguida, tomou a pressão da criança. Estava baixa, confirmando hemorragia interna.
— Sohaila, temo que você terá de passar a noite conosco até podermos deixá-la bem novamente.
Podia ser muitas coisas, mas o médico estava na África havia tempo suficiente para saber que precisava agir como se fosse o pior. O jovem médico consolou-se com a crença de que, fosse o que fosse, não podia ser tão ruim.
Não era como nos velhos tempos — o que era? — mas Mancuso gostava do trabalho. Ele tinha feito uma boa guerra — ele pensava naquilo como uma guerra; seus submarinos tinham feito exatamente o que ele planejara. Depois de perder Asheville e Charlotte — isso antes do anúncio oficial das hostilidades —, ele não perdera mais nenhum. Seus submarinos tinham desempenhado cada missão designada, derrotando a força submarina inimiga numa emboscada planejada com cuidado, sustentando uma operação especial brilhante, conduzindo lançamentos de mísseis sob a superfície, e, como sempre, colhendo informações vitais. Sua melhor jogada, achava, fora retirar da aposentadoria os submarinos nucleares de mísseis balísticos. Eles eram grandes demais para funcionar em ataques rápidos, mas Deus sabia que eles tinham dado conta do serviço. Ele tinha feito o trabalho pelo qual lhe pagavam. E agora tinha outro.
— Então, o que eles devem fazer? — perguntou ao seu chefe imediato, o almirante Dave Seaton.
— Ninguém parece saber ao certo. — Seaton viera dar uma olhada. Como qualquer bom oficial, tentava sair do escritório sempre que possível, mesmo quando isso significava apenas visitar outro. — Talvez seja apenas um exercício de esquadra, mas como temos um novo presidente, talvez eles queiram mostrar os músculos para ver o que acontece. — Gente de uniforme não gostava de exames internacionais, principalmente porque suas vidas costumavam fazer parte da avaliação.
— Conheço esse sujeito, chefe — disse Bart.
— É?
— Não tão bem, mas você sabe sobre o Outubro Vermelho. Seaton sorriu.
— Bart, se você quiser me contar essa história, um de nós terá de matar o outro, e eu sou maior. — O fato, um dos segredos mais bem guardados da história naval, ainda não era amplamente conhecido, embora os rumores — jamais se podia contê-los — fossem variados e diversos.
— Você precisa saber, almirante. Precisa saber o que a Autoridade Nacional de Comando tem entre as pernas. Fui companheiro de viagem desse sujeito.
Isso fez Mancuso piscar, atônito.
— Está brincando.
— Ryan estava no submarino nuclear comigo. Na verdade, chegou antes de mim. — Mancuso fechou os olhos, deliciado com o fato de que finalmente poderia contar essa história de marinheiro. Dave Seaton era um comandante-em-chefe de campo, e tinha o direito de saber que tipo de homem estava enviando ordens lá de Washington.
— Ouvi dizer que ele esteve envolvido na operação, mas pensei que fosse em Norfolk, quando eles aportaram o submarino na doca Oito-Dez. Quero dizer, ele é um espião, certo, mas um burocrata...
— Na verdade, não. Ele matou um sujeito, em plena sala de mísseis... antes de eu subira bordo. Ele estava no timão na hora. Estava morto de medo, mas não se escondeu. O presidente que temos agora esteve lá fora e fez esse tipo de coisa. Assim, se eles quiserem testar nosso presidente, apostarei todas minhas fichas nele. Dois colhões bem grandes, Dave, é isso que ele tem entre as pernas.
Pode não aparentar isso na TV, mas seguirei aquele filho da puta até qualquer lugar.
Mancuso surpreendeu-se com o que disse. Era a primeira vez que chegava a essa conclusão.
É bom saber, pensou Seaton.
— E então, qual é a missão? — perguntou Mancuso.
— J-3 nos quer como sombra.
— Você conhece Jackson melhor que eu. Quais são os parâmetros?
— Se isso for um exercício de esquadra e nada mais, observaremos discretamente. Se as coisas mudarem, faremos com que percebam que nos importamos. Você entendeu do que se trata, Bart. Meu armário está vazio.
Eles precisavam apenas olhar pelas janelas para ver isso. O Enterprise e o John Stennis estavam ambos na doca seca. O comandante-em-chefe do Pacífico não tinha um único porta-aviões para colocar em serviço, e essa situação perduraria por meses. Eles tinham usado o Johnnie Reb para a retomada das Marianas, mas agora ele jazia ao lado do irmão mais velho, com buracos bem grandes no convés embaixo do primeiro nível de plataforma, enquanto estavam sendo fabricadas novas turbinas e motores de redução. Os porta-aviões eram os meios usuais que a Marinha dos Estados Unidos usava em suas demonstrações de força. Provavelmente fazia parte do plano dos chineses, ver como os EUA se portariam quando uma reação substancial não fosse possível, ou pelo menos era isso que alguns achavam.
— Você me dará cobertura com DeMarco? — perguntou Mancuso.
— Que quer dizer?
— Estou querendo dizer que Bruno é da velha escola. Ele acha que é ruim ser detectado. Pessoalmente, acho que isso às vezes pode ser bom. Se você quiser que eu balance a gaiola dos chinas, ele terá de escutar as barras tremerem, não é?
— Vou redigir as ordens de acordo. Como você as seguirá, fica por sua conta. Por enquanto, se algum contramestre falar com seu superior sobre ficar deitado na praia, vou querer isso gravado em fita para a minha coleção.
— Dave, essa é uma ordem que um homem pode entender. Eu até mesmo lhe darei o número do telefone, senhor.
— E não podemos fazer porra nenhuma — concluiu Cliff Rutledge em sua avaliação.
— Puxa, Cliff— respondeu Scott Adler. — Eu mesmo podia ter chegado a essa conclusão.
A ideia era de que os subordinados lhe dessem alternativas em vez de extirpá-las — ou, neste caso, dizer-lhe algo que já sabia.
Eles tiveram muita sorte nesse aspecto. A mídia não ficara ciente de muita coisa. As pessoas em Washington ainda estavam chocadas, os peixes pequenos ocupando postos de peixes grandes ainda não estavam confiantes o bastante para vazar informações sem autorização, e os homens que tinham sido escolhidos pessoalmente pelo presidente Ryan eram impressionantemente leais ao seu comandante-em-chefe, um benefício inesperado de pegar forasteiros que não sabiam nada de política. Mas isso não duraria, especialmente com alguma coisa tão suculenta quanto um novo país prestes a nascer de dois inimigos, ambos já tendo derramado sangue americano.
— Suponho que sempre podemos simplesmente não fazer nada — observou levianamente Rutledge, perguntando-se qual seria a reação. Esta alternativa era distinta de não poder fazer nada, uma sutileza metafísica que não escapava aos homens de Washington.
— Assumir essa posição apenas encoraja desenvolvimentos adversos aos nossos interesses — observou outro alto oficial.
— Sendo a alternativa proclamar nossa impotência? — replicou Rutledge. — Se dissermos que não gostamos de uma coisa e então fracassarmos em acabar com essa coisa, isso é pior do que não assumir nenhuma posição.
Adler refletiu que sempre era possível depender de um homem de Harvard por boa gramática e um cabelo muito bem penteado, e, no caso de Rutledge, não muito mais que isso. Este oficial de carreira do serviço diplomático chegara ao sétimo andar por jamais pisar no calo de ninguém, que era uma outra forma de dizer que ele nunca liderara uma dança na vida. Por outro lado, ele tinha ligações soberbas — ou tivera. Cliff, contudo, sofria da pior doença que um diplomata podia ter. Considerava tudo negociável. Adler não pensava dessa forma. Era preciso lutar por algumas coisas, porque, se não fizesse isso, o outro cara decidiria onde seria o campo de batalha, e então ele teria o controle. A missão dos diplomatas era prevenir isso, um trabalho sério, pensou Adler, que uma pessoa realizava sabendo onde permanecer firme e onde ficavam os limites da negociação. Para o secretário-assistente de Estado da pasta de política, isso era apenas uma dança sem fim. Com alguma outra pessoa liderando. Aliás, Adler ainda não dispunha do capital político para despedir o homem, ou talvez torná-lo embaixador em algum posto inofensivo. Ele próprio ainda precisava ser confirmado pelo novo Senado, por exemplo.
— Que tal definirmos isso apenas como uma questão regional? — perguntou outro diplomata. A cabeça de Adler virou-se lentamente. Rutledge estava alcançando um consenso?
— Não, não é isso — pronunciou o secretário de Estado, tomando as rédeas em sua própria sala de conferências. — É um interesse vital de segurança dos Estados Unidos da América. Garantimos manter a segurança dos sauditas.
— Linha na areia? — perguntou Cliff. — Não há motivo para fazer isso ainda.
Veja, vamos ser sensatos sobre este caso, certo? O Irã e o Iraque se juntam e formam esta nova República Unida do Islã, tudo bem. E então o quê? Eles vão demorar anos para organizar o novo país. Nesse meio-tempo, as forças que sabemos estar atuantes no Irã despertam o regime teocrata que já foi um tremendo espinho no nosso pé. Este não é um acordo unilateral, é? Podemos esperar isso devido à influência que os elementos seculares na sociedade iraquiana terão necessariamente no Irã. Se entrarmos em pânico e agirmos ofensivamente, facilitaremos a vida de Daryaei e seus fanáticos. Mas se agirmos com calma, eles terão menos razões para gastar sua retórica conosco.
Certo, não podemos deter esta fusão, podemos? — Rutledge prosseguiu. — Então, se não podemos, que podemos fazer? Podemos pensar nisso como uma oportunidade para abrir um diálogo com o novo país.
Havia uma certa lógica nessa proposta, notou Adler, reparando também as cabeças assentindo em torno da mesa de conferências. Ele conhecia bem os chavões. Oportunidade. Diálogo.
— Isso vai deixar os sauditas realmente tensos e nervosos — objetou uma voz no fim da mesa. Era Bert Vasco, o homem menos graduado no recinto. — Sr.
Rutledge, acho que está subestimando a situação. O Irã orquestrou o assassinato...
— Não temos prova disso, temos?
— E Al Capone nunca foi condenado pelo massacre de São Valentim, mas vi o filme. — Ser chamado ao Salão Oval aguçara a retórica do oficial. Adler soergueu uma sobrancelha, divertido. — Alguém está tramando isto tudo, começando com o atentado, prosseguindo com a eliminação do alto comando militar, e depois o massacre da liderança do partido Baath. Em seguida, temos este renascimento religioso que está acontecendo agora. A imagem que faço da situação é de uma identidade nacional e religiosa renovada. Isso irá atenuar as influências moderadoras à qual o senhor se referiu. A dissidência interna no Irã será recuada em pelo menos um ano por esses acontecimentos... e não sabemos o que mais pode estar acontecendo. Daryaei é um maquinador, e dos bons. E paciente, dedicado, e um filho da puta cruel...
— Que está nas últimas — objetou um dos aliados de Rutledge na sala.
— Quem disse?—defendeu-se Vasco.—Ele lidou com tudo isso com muita lucidez.
— Ele está na casa dos setenta.
— Ele não fuma nem bebe. Em todas as gravações que temos dele em público, ele parece muito vigoroso. Já cometemos antes o erro de subestimar esse homem.
— Ele perdeu o contato com seu próprio povo.
— Talvez ele não saiba disso. Ele está tendo um bom ano até agora, e todo mundo gosta de vencedores — concluiu Vasco.
— Bert, talvez você esteja apenas preocupado em perder seu cargo com a formação da RIU — brincou alguém. Era um golpe baixo, direcionado por um sênior a um júnior, com risadinhas em torno da mesa apenas para lembrá-lo disso. O silêncio resultante informou ao secretário de Estado que havia um consenso se formando, e não o que ele queria. Era hora de reassumir o controle.
— Certo, vamos prosseguir — disse Adler. — O FBI voltará amanhã para convergir conosco sobre a carta roubada. E adivinha o que eles trarão?
— Não a Caixa de novo — gemeu alguém. Ninguém notou a forma como Rutledge virou a cabeça.
— Vejam isso apenas como um teste de rotina para nossas condições de segurança disse o secretário de Estado aos seus subordinados principais. Os polígrafos não eram exatamente desconhecidos pelos veteranos que estavam ali.
— Pelo amor de Deus, Scott — disse Cliff, falando pelos outros. — Ou somos dignos de confiança ou não. Já desperdicei horas e mais horas com essa gente.
— Sabiam que também nunca encontraram a carta de demissão de Nixon? — comentou outro.
— Talvez Henry esteja com ela — brincou um terceiro.
— Amanhã. Começando às dez da manhã. Eu incluído — disse-lhes Adler.
Ele também achava a coisa pura perda de tempo.
Tinha pele clara, olhos cinza e cabelos com um tom ruivo, resultado, achava, de uma mulher inglesa em algum ponto de sua genealogia, ou pelo menos era essa a piada da família. Uma vantagem era sua capacidade em passar por qualquer etnia caucasiana. O motivo de que ainda podia fazer isso era o resultado de sua cautela. Em suas poucas opções públicas, ele pintara o cabelo, usara óculos escuros e deixara a barba crescer — barba preta —, o que resultava em piadas dentro de sua comunidade: Estrela de cinema, diziam. Mas muitos dos piadistas estavam mortos e ele não. Talvez os israelenses tivessem fotos dele — nunca se sabia com os israelenses, mas uma coisa que se sabia era que raramente compartilhavam informações com qualquer um, mesmo seus mecenas americanos, o que era estupidez. E você não pode ficar preocupado com tudo, mesmo fotografias no arquivo de algum Mossad.
Ele passou pelo Aeroporto Internacional de Dulles depois de seu voo de Frankfurt, com mais duas malas carregadas por todo homem de negócios sério, como ele, com nada tinha a declarar senão um litro de uísque comprado num free-shop alemão. O propósito de sua visita à América? Negócios e prazer. É seguro andar em Washington agora? Coisa terrível aquilo. Vira a cena na TV
umas mil vezes. Coisa terrível. E agora? As coisas estavam realmente de volta ao normal? Bom. Seu carro alugado estava esperando. Ele o dirigiu até um hotel nas proximidades, cansado pelo voo longo. Ali comprou um jornal, pediu seu jantar e ligou a TV. Feito isso, conectou seu computador portátil no telefone do quarto — todos agora tinham saída para computadores — e acessou a Net para dizer a Badrayn que estava em segurança dentro do país para sua missão de reconhecimento. Um programa comercial de codificação transformou o que era uma frase código sem sentido numa absoluta algaravia.
— Bem-vindos a bordo. Meu nome é Clark — disse John ao primeiro grupo de 15. Estava muito mais bem vestido que de costume, usando um terno de corte elegante, blusa com botões e gravata. Por enquanto precisava impressionar de apenas uma forma. Logo teria de impressionar de outras.
Conseguir o primeiro grupo fora mais fácil do que esperara.
Apesar do retrato pintado por Hollywood, a CIA é uma agência popular entre os cidadãos americanos, com pelo menos dez inscrições para cada vaga, e fora preciso apenas fazer uma busca por computador para encontrar 15
candidatos que se enquadravam nos parâmetros do Plano Azul de Clark. Cada um deles era um policial com formação universitária, pelo menos quatro anos de serviço e uma ficha imaculada que seria checada novamente pelo FBI. Por enquanto, todos eram homens, provavelmente um erro, pensou John, mas por enquanto isso não era importante. Sete brancos, dois negros, um asiático.
Pertenciam, principalmente, a órgãos policiais de grandes cidades. Todos eram pelo menos bilíngues.
— Sou um oficial do serviço nacional de informações. Não um agente secreto, não um espião, não um operador . Um oficial — explicou. — Estou no ramo há um bom tempo. Sou casado e tenho dois filhos. Se algum de vocês tem ideias de encontrar louras curvilíneas e sair atirando em pessoas, pode ir embora agora. Na maior parte do tempo este é um trabalho chato, principalmente se você for esperto o bastante para fazê-lo direito. Vocês todos são tiras, e portanto já sabem o quanto este trabalho é importante. Nós lidamos com crime de alto nível, e o trabalho é obter informação para que esses grandes crimes possam ser detidos antes que pessoas morram. Fazemos isso colhendo informações e passando-as para quem precisa delas. Outros olham para fotos de satélites ou tentam ler a correspondência alheia. Fazemos a parte difícil.
Conseguimos nossas informações com pessoas. Algumas são pessoas boas com motivos bons. Outras são pessoas não tão boas que querem dinheiro, vingança ou se sentir importantes. O que essas pessoas são não vem ao caso. Todos vocês já lidaram com informantes nas ruas, e eles não são irmãs Teresa, certo? O mesmo se aplica aqui. Os seus informantes frequentemente serão mais bem-educados, mais poderosos, mas não serão muito diferentes daqueles com quem já trabalharam. E exatamente como seus informantes de rua, vocês precisam ser leais a eles, precisam protegê-los, e terão de colocá-los nos eixos de vez em quando. Se vocês fizerem merda, essas pessoas podem morrer, e em alguns dos lugares em que estiverem trabalhando, as esposas e os filhos deles morrerão também. Se acham que estou brincando, estão muito enganados. Vocês trabalharão em países onde a lei significa o que as pessoas no poder querem que ela signifique. Vocês viram isso na televisão nos últimos dias, não é mesmo? — perguntou. — Alguns dos líderes do partido Baath fuzilados em Bagdá viraram notícia de telejornal, com os alertas usuais para crianças e pessoas sensíveis, que invariavelmente assistem de qualquer jeito. Cabeças assentiram.
— Na maior parte do tempo, vocês não estarão armados no campo. Vocês sobreviverão à custa da sua inteligência. Às vezes arriscarão suas vidas. Perdi amigos no campo, alguns em eventos de que vocês ouviram falar, outros não. O mundo pode ser mais calmo e gentil agora, mas não em toda parte. Vocês não vão para os lugares calmos, rapazes — prometeu-lhes John.
No fundo da sala, Ding Chavez estava se esforçando para não sorrir. John só faltava dizer e aquele baixinho engomado é meu parceiro e está noivo da minha filhinha. O que ele estava querendo fazer? Assustar esses rapazes?
— Que esse trabalho tem de bom? Bem, que há de bom em ser um tira?
Resposta: você salva vidas na rua cada vez que encana um bandido. Neste trabalho, fazer a informação certa chegar às pessoas certas também salva vidas.
Muitas — enfatizou Clark. — Quando fazemos o trabalho direito, guerras não acontecem.
De qualquer modo, bem-vindos a bordo. Serei seu professor supervisor.
Vocês acharão o treino aqui estimulante e difícil. Começa às oito e meia, amanhã de manhã.
Dito isso, John deixou o pódio e caminhou até o fundo da sala. Chavez abriu a porta para ele e os dois saíram para o ar fresco.
— Puxa, Sr. C, onde assino?
— Porra, Ding, eu tinha de dizer alguma coisa. — Aquele fora o discurso mais longo que John fizera em anos.
— E então, o que Foley teve de fazer para trazer esses calouros para bordo?
— Os RIFs começaram, meu garoto. Droga, Ding, tínhamos de fazer as coisas começarem a funcionar, não tínhamos?
— Acho que você devia ter esperado algumas semanas. Foley ainda não foi confirmado pelo Senado. Na minha opinião, o melhor seria esperar — Chavez pensou um pouco.
— Mas ainda sou um espião júnior.
— Sempre me esqueço o quanto você ficou esperto — disse John Clark.
— E então? Como é esse tal Zhang Han San? — perguntou Ryan.
— Em algum ponto na casa dos cinquenta, mas com aparência jovem para sua idade, dez quilos acima do peso, 54 aproximadamente, médio em tudo, pelo menos é o que diz o nosso amigo — reportou Dan Murray de suas anotações por escrito. — Calmo e pensativo, e ele traiu Yamata.
— Mesmo? — disse Mary Pat Foley. — Como?
— Yamata estava em Saipan quando assumimos o controle das coisas. Ele ligou para Pequim, pretendendo fugir para um lugar seguro. O Sr. Zhang reagiu como se aquilo fosse um trote. Que acordo? Não temos acordo nenhum — imitou o diretor do FBI. — E depois disso, os telefonemas de Yamata simplesmente não foram atendidos. Nosso amigo japonês considera isso uma traição pessoal.
— Parece que ele está cantando como um canário — observou Ed Foley. — Isso parece suspeito?
— Não — disse Ryan. — Na Segunda Guerra Mundial, os japoneses que pegamos falaram muito.
— O presidente está certo — confirmou Murray. — Eu mesmo perguntei a Tanaka sobre isso. Ele diz que é uma coisa cultural, Yamata quer tirar a própria vida... a saída honrosa em seu contexto cultural... mas eles o puseram em vigilância para impedir tentativas de suicídio... não lhe deixaram nem cadarços de sapato. Para o sujeito, a desgraça resultante é tamanha que ele não tem nenhuma razão em especial para manter segredos. Uma tremenda técnica de interrogatório. De qualquer modo, Zhang supostamente é um diplomata... Yamata disse que fazia parte de uma delegação comercial. Mas o Departamento de Estado nunca ouviu falar dele. Os japoneses não têm arquivos do nome em nenhuma lista diplomática. No que me diz respeito, isso faz dele um espião, e assim... — Ele olhou para os Foley.
— Já chequei o nome — disse Mary Pat. — Neca. Mas quem pode dizer que é um nome verdadeiro?
— Mesmo se fosse, não sabemos tanto sobre os homens no serviço de informações chinês — acrescentou seu marido. — Se eu tivesse de dar um palpite, diria que é um político. Por quê? Ele conseguiu um acordo, um acordo discreto, mas importante. O Exército deles ainda está em prontidão e regime de treinamento por causa desse acordo, que é o motivo para os russos ainda estarem nervosos. Quem quer que seja este sujeito, o melhor palpite é que seja um jogador muito importante.
O que não era exatamente uma novidade.
— Há alguma coisa que você possa descobrir? — inquiriu Murray com delicadeza. A Sra. Foley balançou a cabeça negativamente.
— Não temos agentes posicionados, pelo menos nenhum que possamos usar para isto. Temos uma boa dupla de marido e mulher em Hong Kong, estabelecendo uma bela rede. Temos alguns agentes em Xangai. Em Pequim temos alguns agentes de baixo escalão no Ministério da Defesa, mas eles são perspectivas de longo prazo e usá-los neste caso não resultaria em muita coisa além de colocá-los em risco. Dan, o problema que temos com a China é que não sabemos realmente como o seu governo funciona. Ele possui níveis de complexidade que podemos apenas presumir. Os membros do Politburo, nós sabemos quem eles são... ou pelo menos é o que achamos. Um dos maiorais deve estar morto agora, e estamos tentando averiguar isso há mais de um mês.
Mesmo os russos nos deixam saber quando eles enterram pessoas — comentou a DDO, enquanto bebericava seu vinho.
Ryan passara a gostar de convidar seus conselheiros mais íntimos para drinques depois do expediente regular. Mas não lhe ocorrera que estava estendendo o dia de trabalho deles. Também estava passando por cima da autoridade de seu próprio conselho de segurança nacional, mas, por mais leal e inteligente que Ben Goodley fosse, Jack Ryan ainda queria ser informado diretamente.
Ed continuou explicando de onde Foley parou.
— Entendam, nós conhecemos o time principal deles, mas nunca descobrimos muita coisa a respeito dos jogadores do segundo time. A dinâmica é simples depois de entendida, mas o problema foi decifrá-la. Os homens no poder são muito velhos. Não podem se mover com facilidade. Precisam de olhos e ouvidos móveis, e com o passar dos anos esses mensageiros acumulam muito poder. Quem está realmente ditando as ordens? Não sabemos ao certo, e sem gente por dentro, não podemos descobrir.
— Posso tentar descobrir isso, pessoal — resmungou Murray, pegando sua cerveja. — Na época em que lidava com o crime organizado, às vezes identificávamos chefões da Máfia vendo quem abria a porta do carro para quem. Segurança operacional não é uma coisa tão complicada se você pensar nela um pouco.
— Parece um bom caso para o PLANO AZUL — disse Jack em seguida.
— Bem, então o senhor ficará feliz em saber que os primeiros 15 estão entrando na linha de produção neste exato momento. John deve ter feito seu discurso de boas-vindas há algumas horas — anunciou o diretor da CIA.
Ryan estudara o plano de Foley de redução do contingente da CIA. Ed planejava descer o machado, reduzindo o orçamento da Agência em quinhentos milhões durante cinco anos e ao mesmo tempo aumentar o contingente de campo. Era uma coisa que deixaria muita gente em Washington feliz, mas como a maior parte do orçamento real da CIA ficava na parte escura dos gastos federais, poucos chegariam a saber. Ou talvez não, pensou Jack. Essas notícias provavelmente iriam vazar.
Vazamentos. Ele os odiara durante toda sua carreira. Mas agora eram parte das ferramentas de governo, não eram? Mas o que ele deveria achar? Que vazamentos eram coisas boas agora que era ele quem os fazia ou permitia que acontecessem? Merda. Leis e princípios não deviam funcionar desse jeito, deviam? Qual ideia, ideal ou princípio ele deveria realmente adotar?
O nome do guarda-costas era Saleh. Era um homem fisicamente robusto, conforme as exigências do seu trabalho e, como tal, alguém que costumava negar doenças ou desconfortos de qualquer espécie. Um homem de sua posição na vida simplesmente não gostava de admitir dificuldades. Saleh sabia que ele, como todos os homens, estava sujeito a problemas estomacais, mas quando o desconforto não sumiu conforme esperava e como o médico dissera, e quando viu o sangue na privada... admitiu que alguma coisa estava errada. Um corpo sadio só expele sangue quando é cortado ou recebe um ferimento bala, não quando defeca, e esse era o tipo de indicador capaz de abalar qualquer um, mesmo o mais forte e confiante. Como muitos fariam, ele ainda esperou um pouco, imaginando que aquilo talvez fosse um problema temporário que acabaria passando, que o desconforto chegaria a um ápice e então sumiria, como sempre acontecia com os sintonias da gripe. Mas os sintomas foram piorando, e finalmente o medo se tornou incontrolável. Antes do amanhecer deixou a vila, pegando o carro e dirigindo até o hospital. Ao longo do caminho teve de parar o carro para vomitar, evitando virar-se para ver o que deixara na rua, seu corpo enfraquecendo a cada minuto, até que a caminhada do carro até a porta do hospital pareceu-lhe exigir cada gota de energia de que dispunha.
Depois que entrou no que passava por uma sala de emergência, precisou esperar que procurassem sua ficha. Ficou ali, sentindo o cheiro de hospital, o mesmo odor de desinfetante que faz um cachorro parar e sair correndo ganindo, por associá-lo a dor, até finalmente uma enfermeira negra chamar seu nome.
Levantou-se, reuniu sua dignidade e compostura, e caminhou até a mesma sala de exames que visitara antes.
O segundo grupo de dez criminosos era quase igual ao primeiro, exceto que neste não havia um apóstata condenado. Era fácil não gostar desses homens, pensou Moudi. A causa estava principalmente em suas expressões. Eles realmente pareciam criminosos, sempre evitando olhar-se nos olhos, voltando-se para este e para aquele lado sempre parecendo procurar uma saída, um truque, um ângulo, alguma coisa escondida. Havia em seus rostos uma combinação perene de medo e brutalidade. Não eram simplesmente homens, e embora isso parecesse ao médico uma observação pueril, marcava-os como diferentes de si mesmo e das pessoas que ele conhecia, e portanto como portadores de vidas que não eram importantes.
— Temos algumas pessoas doentes aqui — disse a eles. — Vocês foram designados para cuidar delas. Se fizerem bem suas tarefas, serão treinados como auxiliares de enfermagem para trabalhar em suas prisões. Se não trabalharem bem, voltarão para suas celas e sentenças. Se não se comportarem, a punição será imediata e severa.
Todos assentiram, demonstrando entendimento. Sabiam o que significava tratamento severo. As prisões iranianas não eram conhecidas por suas amenidades. Nem por boa comida. Todos tinham pele pálida e olhos remelosos.
Bem, que solicitude esses homens tinham feito por merecer? Cada um deles era culpado por crimes conhecidos, todos graves, e quais crimes desconhecidos jaziam em seu passado, apenas os criminosos e Alá sabiam. A pena que Moudi sentia por eles era residual, resultado de seu treinamento médico, que o impelia a vê-los como seres humanos, apesar de tudo. Ele superaria isso. Todos ladrões, bandidos, pederastas. Tinham violado a lei num país onde a lei provinha de Deus, e se era dura, também era justa. Se seu tratamento era severo segundo os padrões ocidentais — os europeus e americanos tinham as ideias mais estranhas sobre direitos humanos; e quanto aos direitos das vítimas dessas pessoas? —, eles tinham feito por merecê-lo, disse Moudi a si mesmo, afastando-se daquelas pessoas. A Anistia Internacional havia muito parará de reclamar sobre as prisões de seu país. Talvez eles pudessem devotar sua atenção para outras coisas, como o tratamento dos Fiéis em outras terras. Não havia uma irmã Jean Baptiste entre aqueles prisioneiros; ela estava morta e isso estava escrito, e o que restava era ver se os destinos desses homens tinham sido traçados pela mesma mão no livro da vida e da morte. Acenou com a cabeça para o guarda, que gritou com seus novos auxiliares de enfermagem. Moudi percebeu a forma insolente como se levantaram. Bem, isso era esperado.
Eles tinham sido examinados, despidos, banhados, barbeados, desinfetados e vesti dos em aventais cirúrgicos com números de um só dígito nas costas.
Usavam chinelos de pano. Os guardas conduziram-nos até câmaras de vácuo, dentro das quais havia médicos do Exército, suplementados por um único guarda armado, que se mantinha a distância, uma pistola em sua mão enluvada.
Moudi retornou para a sala de segurança para assistir pelo circuito fechado de TV. Nos monitores em preto-e-branco ele os assistiu descer o corredor, olhos curiosos movendo-se para a esquerda e para a direita — indubitavelmente procurando uma saída. Todos os olhos demoravam-se no guarda, que nunca eslava a menos de quatro metros de distância. Ao longo do caminho, cada um dos recém-chegados recebeu um balde de plástico com várias ferramentas simples no interior — os baldes também estavam numerados.
Ficaram um pouco assustados ao ver os médicos em suas roupas protetora, mas continuaram andando. Foi na entrada da sala de tratamento que eles pararam. Deve ter sido o cheiro, ou talvez a cena. Ainda que lentos em seus reflexos, pelo menos um deles deve ter percebido finalmente que aquilo era...
No monitor, um médico gesticulou para um dos prisioneiros imóveis no vão da porta. O homem hesitou, e então começou a dizer alguma coisa para o médico. Um momento depois, jogou seu balde no chão e começou a balançar o punho, enquanto s outros observavam para ver no que aquilo iria dar. Então o guarda de segurança i pareceu no canto do quadro, levantando e estendendo o revólver. A uma distância de dois metros, ele disparou — como era estranho ver o tiro e não ouvi-lo — direto no rosto do criminoso. O corpo caiu no assoalho ladrilhado, deixando um desenho de pontos pretos na parede cinza. O médico mais próximo apontou para um dos prisioneiros, que imediatamente pegou o balde caído e entrou na sala. Não haveria mais problemas disciplinares com esse grupo. Moudi virou-se para olhar o monitor seguinte.
A câmera desse monitor era colorida. Tinha de ser. Ela também podia ser movimentada e acionar as lentes zoom por controle remoto. Moudi indicou a cama do canto, Paciente 1. A princípio, o recém-chegado com 1 nas costas e no balde ficou parado ali no pé da cama, balde numa mão, sem saber o que estava vendo. Este quarto contava com captarão de som, mas não funcionava bem porque era um único microfone multidirecional, e a equipe de segurança já abaixara seu volume para quase zero, devido à natureza deprimente e sinistra dos gemidos e gritos dos moribundos. O apóstata, previsivelmente, era o mais patético. Ele rezava e até tentava confortar aqueles a quem podia alcançar de sua cama. Ele tentara até mesmo liderar alguns numa oração, mas seus colegas de quarto não estavam acostumados a conversar com Deus.
O Auxiliar de Enfermagem permaneceu parado por um ou dois minutos, olhando pura o Paciente, um assassino condenado, seu tornozelo algemado à cama. Moudi assumiu o controle da câmera e aproximou a imagem para ver se as algemas tinham machucado a pele do prisioneiro. Havia uma mancha vermelha no colchão debaixo da algema. O homem — o paciente condenado, Moudi corrigia a si mesmo — estava se contorcendo um pouco, e então o Auxiliar de Enfermagem lembrou do que lhe fora dito. Vestiu as luvas plásticas, umedeceu a esponja e esfregou-a na fronte do paciente. Moudi recuou a imagem da câmera. Um a um, os outros auxiliares de enfermagem repetiram a ação do Auxiliar de Enfermagem, e os médicos do Exército se retiraram.
O regime de tratamento para os pacientes não seria sério. Não havia motivo em sê-lo, considerando que eles já haviam alcançado seu propósito com o projeto. Isso facilitava a vida para todos. Sem tubos intravenosos para aplicar, sem injeções para injetar e sem risco de contaminação. Ao contrair o Ebola, eles tinham confirmado que a cepa Mayinga era transmitida pelo ar, e agora tudo que restava era provar que o vírus não se atenuava durante o processo reprodutivo... e que poderia ser transmitido pelo mesmo processo aéreo que infectara o primeiro grupo de criminosos. Moudi logo percebeu que a maioria dos recém-chegados cumpria as ordens à risca — mas com pouco zelo, manejando suas esponjas da forma mais rápida que conseguiam. Uns poucos pareciam genuinamente preocupados com os pacientes. Talvez Alá percebesse sua caridade e lhes fosse misericordioso quando chegasse sua hora, dali a menos de dez dias.
— Boletins escolares — anunciou Cathy quando Jack entrou no quarto.
— Boas ou más notícias? — perguntou seu marido.
— Veja você mesmo — sugeriu a esposa.
Oh-oky pensou o presidente, pegando os boletins. Na verdade, considerando tudo pelo que eles tinham passado, os resultados não eram ruins.
As páginas de comentários — cada professor fizera um pequeno parágrafo ao lado da nota que conferira — afirmavam que a qualidade dos trabalhos de casa melhorara nas últimas semanas... Então os agentes do Serviço Secreto estão ajudando as crianças, percebeu Jack. Num nível, era divertido. No outro... estranhos estavam fazendo o trabalho do pai, e esse pensamento causou-lhe uma ardência no estômago. A lealdade dos agentes apenas ilustrava que ele estava deixando de fazer algo por seus próprios filhos.
— Se Sally quiser ingressar na Hopkins, terá de se dedicar mais às matérias científicas — observou Cathy.
— Ela é apenas uma criança.
Para seu pai, ela sempre seria a menininha que...
— Ela está crescendo. Sabia que ela está interessada num rapaz, um jogador de futebol? O nome do rapaz é Kenny, e ele é um gato — reportou CIRURGIA. — Também precisa cortar o cabelo. O dele é mais longo que o meu.
— Merda! — replicou ESPADACHIM.
— Estou surpresa por ter demorado tanto. Eu comecei a sair com garotos quando tinha...
— Eu não quero ouvir nada sobre isso...
— Eu me casei com você, não foi? — Pausa. — Sr. presidente... Jack se virou.
— Isso foi há um bom tempo.
— Alguma chance de irmos para o quarto de Lincoln? — perguntou Cathy.
Jack notou uma taça na mesinha de cabeceira de Cathy. Ela havia tomado um ou dois drinques. Amanhã não seria dia de cirurgia.
— Ele nunca dormiu lá, querida. Chamam assim por causa...
— Do quadro. Eu sei. Já perguntei. Gosto da cama — explicou com um sorriso. Cathy colocou seus prontuários de lado e tirou os óculos de leitura.
Então levantou os braços, quase como um bebê solicitando ser tomada no colo e abraçada. — Sabe, nunca fiz amor com o homem mais poderoso do mundo... pelo menos não esta semana.
— E quanto ao seu período? — Cathy não tomava pílula.
— Que é que tem o meu período? — replicou. E ela sempre fora regular como um metrônomo.
— Não quer deixar passar mais um...
— Talvez eu não me importe.
— Você está com quarenta anos — objetou POTUS.
— Ora, muito obrigada! Não precisava me lembrar disso. Com que está preocupado? Jack pensou no assunto por um momento.
— Nada, acho. Não cheguei a fazer aquela vasectomia, não é?
— Não, e você nem falou com Pat a respeito, como disse que faria... e se fizer a cirurgia agora, vai aparecer em todos os jornais — disse FLOTUS com um sorriso maliciosa — Talvez até televisionem ao vivo. Arnie pode até dizer que isso seria bom... um exemplo positivo para a política de controle de natalidade... se não fossem as implicações quanto à segurança nacional...
— Como é?
— Se o presidente dos Estados Unidos deixar que lhe cortem os bagos, o pessoal lá de fora talvez deixe de respeitar a América.
Jack quase começou a rir, mas se conteve. O pessoal da segurança presidencial no corredor poderia ouvir e...
— Que deu em você?
— Talvez eu finalmente esteja me sentindo à vontade com tudo isto... ou talvez eu apenas queira trepar— acrescentou Cathy.
O telefone ao lado da cama tocou. Cathy fez uma careta e atendeu.
— Alô? Sim, Dr. Sabo. A Sra. Emory? Certo... não, eu não acho que... Não, definitivamente eu não me importo se ela está agitada. Não até amanhã. Dê-lhe alguma coisa para dormir... qualquer coisa. Os curativos ficam até ordem em contrário, e especifique isso no prontuário dela. Ela é resmungona. Sim. Boa noite, doutor. — Cathy colocou o telefone no gancho e resmungou: — A troca de lentes que fiz outro dia. Ela não gosta de ficar vendada, mas se tirarmos os curativos cedo demais...
— Espere aí. Ele ligou...
— Eles têm nosso número no Wilmer.
— O número direto? — Esse, ao contrário de todos os outros números da Casa Branca, não era vigiado. Ou provavelmente era. Ryan não perguntara, e talvez não quisesse saber.
— Eles tinham o da outra casa, não tinham? — perguntou Cathy. — Sou cirurgiã, trato pacientes, sou professora... eles precisam falar comigo quando estou com pessoas sob meus cuidados... especialmente as chatas.
— Interrupções. —Jack se deitou ao lado da esposa. — Não quer mesmo mais um bebê, não é?
— O que quero é fazer amor com o meu marido. Não posso mais me dar ao luxo de me preocupar tanto com meu período, posso?
— Tem sido tão ruim assim? — Beijou-a gentilmente.
— Sim, mas não estou com raiva. Você tem se esforçado. Você me lembra um dos meus pacientes... só que mais velho. — Ela tocou o rosto de Jack e sorriu. — Se alguma coisa acontecer, aconteceu. Eu gosto de ser mulher.
— Também gosto que você seja.
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Resultados
Alguns tinham formação em psicologia. Essa era uma das colações de grau preferidas pelos agentes da lei. Alguns até mesmo haviam feito cursos de extensão e mestrado, e um deles já concluíra o doutorado, tendo escrito sua tese sobre a especialidade da análise psicológica de criminosos. Todos eram pelo menos amadores talentosos na ciência da leitura de mentes; Andréa Price era um desses. CIRURGIÃ estava saltitante durante a caminhada até o helicóptero.
ESPADACHIM conduziu-a até a pista e se despediu dela com um beijo — o beijo fazia parte da rotina, conduzi-la de mãos dadas não, ou pelo menos não nos últimos tempos. Price trocou um olhar com dois de seus agentes. Leram as mentes um do outro, como os tiras sabem fazer, e julgaram que aquilo era bom, exceto por Raman, que era tão inteligente quanto o resto, porém bem mais reservado. Devotava mais paixão aos esportes que a qualquer outra coisa, e Price imaginava-o parado diante da TV todas as noites. Ele talvez até soubesse programar seu videocassete. Bem, havia pessoas de todos os tipos no Serviço Secreto.
— Como estamos hoje? — perguntou POTUS, dando as costas para o Black Hawk decolando.
— CIRURGIÃ está no ar — ouviu Andréa em seu fone. — Tudo limpo — reportaram os agentes em vigília em seus postos nos prédios do governo ao redor da Casa Branca, listavam vigiando o perímetro na última hora, como faziam todos os dias. Lá fora estavam as pessoas de sempre, os clientes, conhecidos de vista por todos os membros da segurança presidencial. Eram pessoas que costumavam aparecer com frequência. Algumas eram simplesmente fascinadas pela Primeira Família, fosse ela qual fosse. Para eles, a Casa Branca era a verdadeira novela americana, alias ao cubo, e a rotina da vida nesta casa famosíssima atraía-os por alguma razão que os psicólogos do Serviço Secreto suavam para compreender, porque, para os agentes armados da segurança presidencial, o simples fato de existirem tornava-os clientes perigosos. E assim, os atiradores posicionados no antigo prédio executivo e no Tesouro conheciam a todos de vista através de suas miras telescópicas. E também já tinham se encontrado pessoalmente com eles, disfarçados como transeuntes ou mendigos. Em algum momento, cada cliente fora seguido até sua casa, identificado e investigado com discrição. Aqueles com irregularidades tinham sido arquivados segundo os tipos de personalidade — todos tinham algumas esquisitices — e depois revistados pelos membros da segurança presidencial que realizavam serviço externo. Entre os métodos de revista discreta estava a técnica do esbarrão com um praticante de cooper, que, enquanto ajudava o suspeito a se levantar e se desculpava, revistava-o em busca de armas. Mas esse risco pertencia ao passado, pelo menos por enquanto.
— Não olhou sua agenda ontem à noite? — perguntou Price, distraindo-se de seus deveres, fazendo uma pergunta boba.
— Não. Decidi ver um pouco de TV — respondeu ESPADACHIM, sem saber que eles sabiam que estava mentindo.
Ele nem corou, percebeu Price. Da sua parte, não permitira sua expressão mudar. Mesmo o POTUS tinha direito a ter um ou dois segredos. Ou pelo menos a ilusão de tê-los.
— Certo, aqui está a minha cópia — disse Andréa, entregando a agenda.
Ryan passou os olhos pela primeira página, que mostrava seus compromissos até o almoço.
— O secretário do Tesouro vem para o café da manhã logo depois de BATOTEIRO.
— Como vocês chamam o George? — perguntou Jack, entrando na Ala Oeste. • — NEGOCIANTE. Ele gosta — reportou Andréa.
— Contanto que ele não se envolva em negociatas. — O que não era uma piada ruim para as 7:50 da manhã, pensou POTUS. Mas era difícil saber. Os membros da segurança presidencial gostavam mesmo de quase todas suas piadas ou só estavam sendo gentis?
— Bom dia, presidente. — Goodley estava à espera, como de costume, quando Jack entrou no Salão Oval.
— Oi, Ben. — Ryan deixou cair a agenda na mesa, procurou documentos mais importantes, sentou-se. — Prossiga.
— Ontem à noite você roubou a minha conferência com a equipe a respeito de Zhang. Fizemos um pequeno estudo sobre o Sr. Zhang. Poderia lhe dar a versão longa, mas imagino que você já a ouviu.
O presidente balançou a cabeça, indicando que prosseguisse.
— Muito bem, os acontecimentos no estreito de Taiwan. A República Popular da China está com 15 embarcações de superfície no mar. Duas formações, uma de seis, uma de nove. Tenho esquemas, se você quiser, mas são todos destróieres e fragatas. Distribuídos em grupos regulares de esquadra, segundo nos disse o Pentágono. Temos um EC-135 em vigília. Temos um submarino, Pasadena, acampado entre os dois grupos, com mais dois navios em rota no Pacífico central, programados para alcançar a área em 36 e 15 horas, respectivamente. O comandante do Pacífico, na pessoa do almirante Seaton, já compilou um pacote inteiro de vigilância. Seus parâmetros estão agora na mesa do secretário Bretano. Já conversei por telefone com Bretano. Parece que Seaton sabe o que faz.
Lado político: o governo chinês não emitiu nenhum comentário oficial sobre o exercício. Divulgaram uma nota de imprensa sobre a questão, mas os militares deles estão em contato entre si e, consequentemente, com os nossos... através do comandante do Pacífico. Teremos oficiais em postos de escuta. — Goodley olhou seu relógio. — Talvez estejam. O Estado não acha que isso seja um caso preocupante, mas eles estão de olhos l em abertos.
— Quadro geral? — perguntou Ryan.
— Poderia ser rotineiro, mas o que parece estranho é a hora escolhida pelos chineses. Entretanto, não estão tomando nenhuma atitude ofensiva.
— E enquanto não estiverem agindo ofensivamente, nós também não agiremos. Muito bem. Não divulgaremos nenhum comentário oficial sobre o exercício. Vamos manter nossos movimentos em sigilo. Nada de notas para a imprensa, nada de entrevistas. Se fizerem perguntas, responderemos que não é nada com que valha a pena se preocupar.
Goodley assentiu.
— O plano é esse, presidente. Assunto seguinte: Iraque. Novamente, dispomos de pouca informação direta. A emissora de TV local de repente ficou religiosa. Xiita, mais especificamente. Os sacerdotes iranianos que estávamos observando estão no ar durante i maior parte da programação. A cobertura televisiva é quase inteiramente de cunho religioso. Os âncoras estão falando como pregadores. Execuções continuam sendo realizados. Ainda não terminamos a contagem de corpos, mas devem passar dos cem. Aparentemente, as execuções acabaram. A liderança do partido Baath já se foi. Os peixes menores estão na lata. A TV fez algum comentário acerca do quanto o governo provisório está sendo misericordioso para com os criminosos menores. A misericórdia é justificada religiosamente, e parece que alguns dos criminosos menores reencontraram Jesus., perdão, Alá... com grande pressa. A TV mostrou imagens deles discutindo seus pecados com um imã.
Próximo assunto: estamos vendo atividades mais organizadas dentro do Exército iraniano. Tropas em treinamento. Estamos interceptando tráfego tático por rádio. São comunicações rotineiras, mas o tráfego está intenso. Estão com uma equipe 24 horas em Foggy Bottom analisando o material. Foi organizada pelo subsecretário da pasta política, Rutledge. O pessoal da divisão de Pesquisa e Defesa está trabalhando ensandecidamente.
O gabinete de Pesquisa e Defesa do Departamento de Estado era o primo menor e mais pobre dos outros serviços de informações. Contudo, possuía um punhado de analistas astutos cuja perspectiva diplomática ocasionalmente possibilitava-lhes conclusões que escapavam aos outros serviços de informação.
— Conclusões:1 — perguntou Jack. — Da equipe 24 horas, quero dizer.
— Nenhuma. —E claro, poderia ter acrescentado Goodley, mas não o fez. — Vou Conversar com eles daqui a mais ou menos uma hora.
— Preste atenção no que o pessoal de Pesquisa e Defesa disser. Em particular no que disser o...
— Bert Vasco. Sim — concordou Goodley. — Ele é OK, mas aposto que o sétimo andar está lhe dando uma puta dor de cabeça. Conversamos há vinte minutos. Ele afirmou que... está preparado? Ele afirma que vai acontecer em 48
horas. Ninguém concorda com ele. Ninguém — enfatizou BATOTEIRO.
— Mas...? — Ryan recostou-se em sua cadeira.
— Mas eu não apostaria contra Bert Vasco, Patrão. Embora eu não tenha nada para sustentar sua avaliação. Nosso pessoal burocrático na CIA não concorda. O Estado não irá apoiá-lo... nem foram eles que me passaram a informação; eu a obtive diretamente de Vasco. Mas, você sabe, não serei eu quem irá dizer que ele está errado. — Goodley fez uma pausa, percebendo que estava soando como qualquer outro oficial do serviço nacional de informações.
— Precisamos considerar a possibilidade, Patrão. Vasco tem bons instintos, e tem colhões também.
— Tiraremos a prova bem rápido. Esteja certo ou errado nesta questão, concordo que ele é o melhor homem que temos aqui. Providencie para Adler falar com ele, e diga a Scott que não quero que ele seja desacreditado, a despeito do rumo que a presente situação tomar.
Ben assentiu enfaticamente enquanto fazia uma anotação.
— Vasco ganhou proteção num escalão bem alto. Gosto disso, senhor. Pode até mesmo encorajar outras pessoas a dar um palpite arriscado de vez em quando.
— E quanto aos sauditas?
— Nada deles. Até parece que estão catatônicos. Acho que estão com medo de pedir qualquer ajuda antes de realmente precisar dela.
— Entre em contato com Ali durante a próxima hora — ordenou o presidente.
— Quero a opinião dele.
— Sim, senhor.
— E se ele quiser falar comigo, a qualquer hora, dia ou noite, diga-lhe que ele é meu amigo, e que sempre tenho tempo para ele.
— ... e essas são as notícias da manhã, senhor. — Levantou-se. — A propósito, quem escolheu o nome BATOTEIRO?
— Fomos nós — disse Price do fundo da sala. A mão esquerda dela tocou seu fone auricular. — Está no seu arquivo. Aparentemente, você era conhecido como um grande jogador de pôquer na sua fraternidade.
— Não vou perguntar o que minhas namoradas disseram ao meu respeito — replicou o conselheiro da segurança nacional em seu caminho até a porta.
— Não sabia disso, Andréa.
— Ele até ganhou algum dinheiro em Atlantic City. Todos o subestimavam porque era jovem demais. NEGOCIANTE acaba de chegar.
Ryan checou sua agenda. Certo, esta é sobre o comparecimento de George diante do Senado. O presidente tirou um minuto para rever sua lista de compromissos matutinos, enquanto um taifeiro da Marinha trazia-lhe uma bandeja com um desjejum leve.
— Presidente, o secretário do Tesouro — anunciou a agente Price na porta lateral do corredor.
— Obrigado, podemos cuidar disso sozinhos — disse Ryan, levantando-se de sua mesa enquanto George Winston entrava.
— Bom dia, senhor — disse o secretário do Tesouro enquanto a porta se fechava silenciosamente. Vestia um de seus ternos sob medida e carregava uma pasta de cartolina. Ao contrário do presidente, o secretário do Tesouro estava acostumado a usar paletó a maior parte do tempo. Ryan despiu o seu e deitou-o em sua mesa enquanto ambos sentavam-se em sofás gêmeos, com uma mesinha de centro entre eles.
— Certo, como vão as coisas do outro lado da rua? — perguntou Ryan, servindo-se de café, esta manhã com cafeína.
— Se eu dirigisse minha firma como aquele lugar, meu contador usaria meu couro como tapete e poria minha cabeça sobre a lareira e minha bunda na penitenciária de Leavenworth. Eu vou... diabos, já comecei a trazer alguns dos meus homens de administração de Nova York. Tem muita gente lá cujo único trabalho é ficar olhando um para o outro e dizendo o quanto todos eles são importantes. Ninguém é responsável por nada. Droga, no Columbus Group frequentemente tomamos decisões por comitê, mas tomamos essas decisões a tempo de valerem alguma coisa. Tem gente demais lá, presidente...
— Pode me chamar de Jack, pelo menos aqui dentro, George, eu...
A porta para a sala do secretariado abriu e o fotógrafo entrou com sua câmera. Ele não disse nada. Raramente dizia. Apenas bateu uma foto atrás da outra, e o protocolo rezava que todos deviam simplesmente ignorar sua presença. Seria um tremendo posto para um espião, pensou Ryan.
— Obrigado. Jack, até onde podemos ir? — perguntou NEGOCIANTE.
— Eu já lhe disse. O departamento é seu. Quem o dirige é você. Apenas me conte primeiro o que fará.
— Então estou lhe contando. Vou cortar pessoal. Vou montar aquele departamento como se fosse uma empresa. — Ele parou por um segundo. — E vou reescrever a legislação do imposto de renda. Deus, eu nem sabia o quanto ela estava fodida até alguns dias atrás. Convoquei alguns advogados da minha organização...
— Isso não pode pesar na receita. Não podemos ficar mexendo no orçamento. Nenhum de nós tem ainda competência para isso, e até a Câmara ser reconstituída...
O fotógrafo saiu, deixando o presidente numa grande pose, ambas as mãos estendidas sobre a bandeja de café.
— Coelhinha do Mês — disse Winston com uma risada gostosa. Pegou um croissant e passou manteiga. —Já fizemos os prognósticos. Os impostos irão ignorar os números brutos da renda de cada contribuinte, Jack. Com isso, provavelmente haverá uma elevação geral nos fundos de ações.
— Tem certeza? Não precisa estudar todo o...
— Não, Jack. Não preciso estudar nada. Chamei Mark Gant para ser meu assistente executivo. Ele entende de prognósticos por computador melhor que qualquer pessoa com quem já estive. Ele passou a semana passada inteira checando os... nunca ninguém lhe disse? Lá no tesouro, eles nunca param de analisar o sistema de impostos. Estudar? Eu pego o telefone e dali a uma hora tenho na minha mesa um documento de mil páginas dizendo como as coisas estavam em 1952, o que o imposto de renda da época fez em cada segmento da economia... ou o que o povo pensa que ele fez. — O secretário do Tesouro parou para morder seu croissant. — Moral da história? Wall Street é muito mais complexa, e usa modelos mais simples, e esses modelos funcionam. Por quê?
Porque são mais simples. E vou dizer isso ao Senado em noventa minutos, com a sua permissão.
— Tem certeza de que está certo sobre isso, George? — indagou POTUS.
Esse era um dos problemas, talvez o maior de todos. O presidente não podia checar tudo que era feito em seu nome — manter-se ciente um por cento já seria uma façanha homérica —, mas tinha responsabilidade por todos eles. Era esse conhecimento que conduzira muitos presidentes ao fracasso microadministrativo.
— Jack, tenho certeza suficiente para apostar o dinheiro dos meus investidores nisso. Dois pares de olhos cruzaram-se sobre a mesa. Cada homem fez sua avaliação do outro. O presidente poderia ter dito que o bem-estar da nação era uma questão mais delicada do que os bilhões de dólares que Winston administrara no Columbus Group, mas não o fez. Winston construíra sua empresa de investimentos a partir do zero. Como Ryan, um homem de origens humildes, ele criara um empreendimento em meio a um ambiente de competitividade feroz, tendo como único trunfo sua inteligência e integridade.
O dinheiro que lhe era confiado pelos clientes precisava ser mais precioso que o seu próprio. Graças a isso, ficara rico e poderoso, mas jamais esquecera o como e o porquê de tudo. A primeira declaração política pública feita por um dos administradores de Ryan seria alicerçada na lucidez e na honra de Winston. O presidente considerou isso por um segundo, e então assentiu.
— Então, mãos à obra, NEGOCIANTE.
Mas então Winston demonstrou que não estava completamente seguro. Foi instrutivo para o presidente o fato de mesmo uma figura tão poderosa como o secretário do Tesouro baixar os olhos por um segundo e dizer algo menos positivo do que a afirmação confiante que tecera havia cinco segundos.
— Você sabe, politicamente, isso vai...
— George, o que você dirá ao Senado é bom para o país como um todo?
— Claro, senhor! — Um meneio enfático de cabeça.
— Então não fraqueje agora.
O secretário de Tesouro limpou a boca com o guardanapo com monograma e baixou os olhos novamente.
— Sabe, depois que tudo isto acabar e voltarmos a ter uma vida normal, realmente teremos de encontrar uma maneira de trabalhar juntos. Não há muita gente como nós, Ryan.
— Na verdade, há sim — disse o presidente depois de um momento de reflexão. — O problema é que eles nunca vêm trabalhar aqui. Sabe com quem aprendi isso? Com Cathy. Se ela fizer merda no seu trabalho, alguém fica cego, mas ela não pode deixar de atender a um chamado, pode? Imagine: você faz merda e alguém perde a visão para sempre... ou morre. — Os caras que trabalham na sala de emergência é que vivem realmente na cor da bamba. A primeira vez que isso me ocorreu foi quando Cathy e Sally foram para CTI.
Você deixa de ajudar alguém e essa pessoa desaparece para sempre. Isso é que viver na corda bamba, George. É mais assustador do que investir em ações, como costumávamos fazer. Os policiais pertencem ao mesmo caso. Os soldados também. Você precisa atender ao chamado, agora mesmo, ou alguma coisa realmente ruim vai acontecei Mas esses tipos de pessoas não vem trabalhar aqui em Washington. A maioria dessas pessoas vai para os lugares onde se encontra a verdadeira ação — disse Ryan, num tom quase sonhador. — Os verdadeiramente bons vão para onde são necessários, e eles sempre parecem saber quais são esses lugares.
— Então os realmente bons não gostam de enrolação, e é por causa disso que não vem para cá? — perguntou Winston, percebendo que tinha encontrado em Ryan um excelente professor de política.
— Alguns vêm. Adler no Estado. Tem outro sujeito lá que eu descobri, um tal Vasco. Mas são esses que impulsionam o sistema. O sistema funciona contra eles. São eles que precisamos identificar e proteger. A maioria são peixes pequenos, mas o que eles fazem não é pequeno. Eles mantêm o sistema funcionando, e quase todos passam despercebidos porque não querem ser percebidos. Eles se importam em fazer seu trabalho, e m servir às pessoas lá fora. Sabe o que eu gostaria realmente de fazer? — perguntou Ryan, pela primeira vez revelando alguma coisa das profundezas de sua alma. Ele não tinha coragem de dizer isso a Arnie.
— Sim. Montar um sistema que funcione de fato. Um sistema que reconheça os bons e conceda-lhes o que merecem. Sabe o quanto é difícil fazer isso em qualquer organização? Porra, eu suava para fazer isso na minha empresa, e o Tesouro tem mais serventes do que eu tinha executivos de investimento. Nem tenho certeza por onde começar um trabalho como esse — disse Winston.
Ele era a pessoa certa para entender a amplitude do sonho, pensou seu presidente.
— Ainda mais difícil do que você pensa — disse Ryan. Os caras que realmente fazem o serviço não querem ser os chefes. Eles querem trabalhar.
Cathy poderia ser uma administradora. Eles lhe ofereceram uma cadeira na faculdade de medicina da Universidade da Virginia... e isso seria um tremendo cargo. Mas teria cortado pela metade seu tempo para pacientes, e ela gosta de fazer o que faz. Um dia, Bernie Katz no Hopkins vai se aposentar, e oferecerão a cadeira a ela, e Cathy irá recusá-la também. A não ser, talvez, que eu consiga convencê-la a aceitar.
— Não pode ser feito, Jack. — NEGOCIANTE balançou a cabeça. — Mas é uma puta ideia.
— Grover Cleveland reformulou o serviço civil há mais de cem anos — recordou POTUS ao seu convidado para o desjejum. — Sei que não podemos torná-lo perfeito, mas podemos torná-lo melhor. Você já está tentando... você acaba de me dizer isso. Pense um pouco no assunto.
— Farei isso — prometeu o secretário do Tesouro, se levantando. — Mas por enquanto tenho outra revolução para fomentar. Quantos inimigos você pode se dar ao luxo de fazer?
— Sempre há inimigos, George. Jesus tinha inimigos.
Ele gostava da alcunha Astro de Cinema. Recebera-a havia quinze anos, e sabia que era justa. A missão era de reconhecimento, e a arma era o charme. Ele dispunha de uma variedade de sotaques em seu repertório. Como tinha documentos de viagem alemães, imitava a fala de uma pessoa de Frankfurt para combinar com roupas alemães, completas até os sapatos e a valise, tudo comprado com o dinheiro que vinha do mecenas que Ali Badrayn conseguira recentemente, fosse quem fosse. A empresa de aluguel de carros fornecera-lhe mapas excelentes, todos espalhados no banco do carona ao seu lado. Isso poupara-o de decorar todas as rotas, o que era cansativo e um desperdício de seu tempo e sua memória fotográfica.
A primeira parada foi na St. Mary s School, localizada a alguns quilômetros de Annapolis. Era uma escola religiosa, católica romana, que oferecia desde maternal até o segundo grau, e tinha um pouco menos de seiscentos alunos. Isso significava que a escola era um caso discutível em termos de retorno financeiro. A escola ficava num terreno que já fora uma fazenda de tamanho considerável, que a Igreja católica conseguira tirar na lábia de alguma família. Havia apenas uma estrada de acesso. O terreno da escola terminava na água, e havia um rio no extremo oposto, depois dos campos de atletismo. A estrada tinha casas num lado, um projeto residencial de uns trinta anos de idade. Havia 11 prédios na escola, alguns muito próximos, outros mais espaçados. Astro de Cinema sabia as idades dos alvos, o que facilitava adivinhar onde eles passariam a maior parte de seu tempo, se não todo. O ambiente tático não era favorável, e ficou ainda menos quando avistou a proteção. A escola tinha muito terreno — pelo menos duzentos hectares — e isso compunha um perímetro de defesa de tamanho considerável, o que significava um fator de risco elevado. Avistou um total de três veículos grandes e negros, Chevy Suburbans, que não poderiam ser transportes mais óbvios para os protetores de seus alvos. Quantos? Ele viu duas pessoas paradas ao ar livre, mas os veículos teriam pelo menos quatro guardas em cada um. Os veículos eram blindados e equipados com armamento pesado. Havia apenas uma entrada e uma saída. Quase um quilômetro da estrada principal. E quanto à água?, perguntou-se Astro de Cinema, dirigindo até o fim do terreno. Ah. Ali havia uma lancha da Guarda Costeira, pequena, mas decerto provida de rádio, e isso tornava-o grande o bastante.
Astro de Cinema parou o carro no beco sem saída, saltando para olhar uma casa com uma placa de à venda no jardim. Pegou o jornal da manhã no carro, checando ostensivamente a página dobrada com o número da casa, e então olhou em torno em busca de algum movimento. Precisava ser rápido. Os guardas seriam cautelosos, e embora não pudessem checar tudo — mesmo o Serviço Secreto americano tinha limites em tempo e recursos — ele não podia se dar ao luxo de desperdiçar tempo. Suas impressões iniciais não foram muito favoráveis. O acesso era limitado. Alunos demais... escolher os dois certo” seria difícil. Os guardas eram muitos e dispersados. Essa era a parte ruim. Os números importavam menos que o espaço físico. A defesa mais difícil de romper era uma defesa em profundidade, profundidade significando tempo e espaço. Era possível neutralizar qualquer número de pessoas numa questão de segundos se você dispusesse das armas adequadas e as vítimas e os protetores fossem pegos de surpresa. Mas dê aos protetores qualquer coisa mais de cinco segundos, e seu treinamento seria colocado em prática. Os guardas eram bem treinados. Eles tinham planos, alguns previsíveis, outros não. O barco da Guarda Costeira, por exemplo, poderia avançar até a praia e recolher os alvos.
Ou os guardas poderiam recuar com seus protegidos até um ponto isolado e resistir dali, •
Astro de Cinema não tinha ilusões sobre seu próprio treinamento e dedicação. Dê-lhes cinco segundos e eles vencerão. Eles pediriam ajuda à polícia local — que tinha até mesmo helicópteros; Astro de Cinema checara isso — e a força atacante seria neutralizada. Não, este não era um local adequado.
Astro de Cinema jogou o jornal de volta no carro e dirigiu para longe dali. No percurso, vasculhou a estrada em busca de veículos de tocaia. Havia alguns furgões estacionados em estradas paralelas, nenhum com vidro fume para ocultar um homem com uma câmera. Sua visão periférica confirmou a avaliação. Este não era um bom lugar. O ideal seria pegar os alvos em movimento. Na estrada, mais corretamente. Porém, isso não seria muito melhor.
A proteção para a estrada provavelmente seria excelente. Painéis de Kevlar.
Janelas de Lexan. Pneus especiais. E, indubitavelmente, proteção aérea na forma de helicópteros. E isso sem falar dos carros sem placa e do acesso imediato a reforços policiais.
Certo, pensou Astro de Cinema, usando em sua mente um americanismo que tinha aplicação universal. A creche Giant Steps, na Ritchie Highway com a Joyce Lane. Apenas um alvo lá, mas um alvo melhor e, provavelmente, um ambiente tático mais favorável. Pelo menos era por isso que Astro de Cinema torcia.
Winston estava no ramo de vender a si próprio e suas ideias havia mais de vinte unos. Além disso, tinha um certo senso teatral. Melhor ainda, o medo de palco agia nas duas direções. Apenas um dos senadores no comitê tinha experiência prévia, e ele era do partido minoritário — a polaridade do Senado mudara com a queda do 747, e fizera isso em favor de sua posição ideológica.
Como resultado, os homens e mulheres sentados atrás da imensa bancada de carvalho estavam tão nervosos quanto ele. Enquanto ele ocupava “sua cadeira e dispunha seus documentos, um total de seis pessoas empilhava enormes volumes encadernados na mesa do lado. Winston ignorou-os. As câmeras da C-SPAN uno.
A situação logo melhorou. Enquanto o secretário designado papeava com Mark Gant, mas, com seu computador portátil aberto e operando à sua frente, a mesa à esquerda deles rangeu e partiu, espalhando a pilha de livros no chão, para susto de todos na sala. Winston virou-se assustado, mas ficou satisfeito com o que viu. Seus auxiliares tinham feito exatamente o que lhes pedira: empilhar os volumes da legislação do imposto de renda dos Estudos Unidos no meio da mesa, em vez de distribuir o peso igualmente.
— Merda, George — sussurrou Gant, esforçando-se para não rir.
— Talvez Deus esteja mesmo do nosso lado.
Levantou-se para ver se alguém havia se machucado. Todos estavam bem.
O primeiro ranger de protesto da mesa de carvalho fizera as pessoas se afastarem. Agora guardas de segurança entravam correndo, apenas para ver que nada de realmente anormal tinha acontecido. Winston inclinou-se sobre o microfone.
— Sr. Presidente do comitê, queira me desculpar por isso, mas ninguém saiu machucado. Podemos prosseguir sem mais atrasos?
O presidente do comitê ordenou silêncio sem tirar os olhos do desastre. Um minuto depois, George Winston prestou juramento.
— Tem um discurso de inauguração, Sr. Winston?
— Sim senhor, tenho. — O secretário do Tesouro balançou a cabeça e conteve uma risada, embora não completamente. — Acho que devo pedir desculpas aos membros do comitê por nosso pequeno acidente. Eu não o planejei como uma ilustração de um de meus pontos de vista, mas... bem...
Winston arrumou seus papéis e se colocou mais ereto na cadeira.
— Sr. Presidente, membros do comitê, meu nome é George Winston. O presidente Ryan pediu que me afastasse de meus negócios para servir à minha nação na capacidade de secretário do Tesouro. Deixem-me contar um pouco a meu respeito...
— Que sabemos dele? — indagou Kealty.
— Muita coisa. É inteligente. É durão. É muito honesto. É mais rico que Deus. É até mais rico que você, evitou dizer o assessor.
— Já foi investigado?
— Nunca. — Seu chefe de gabinete balançou a cabeça. — Talvez ele já tenha patinado em gelo fino, mas... não, Ed, não posso nem dizer isso. O que sabemos sobre Winston é que ele joga segundo as regras. Seu grupo de investimentos é conhecido por competência e integridade. Oito anos atrás, George teve um investidor desonesto em seu quadro de funcionários, e testemunhou pessoalmente contra ele no tribunal. Ele também indenizou as pessoas lesadas pelo sujeito com dinheiro do próprio bolso. E não foi pouco: quarenta milhões de dólares. O larápio pegou cinco anos de cadeia. Ryan escolheu bem. George não é político, mas é bem respeitado em Wall Street.
— Que merda — observou Kealty.
— Sr. Presidente do comitê, há muitas coisas que precisam ser feitas. — Winston colocou o texto do discurso de lado e prosseguiu de improviso. Ou pelo menos assim pareceu. Apontou a mão direita para a pilha de livros. — Aquela mesa quebrada ali. Aquilo é a legislação do imposto de renda dos Estados Unidos. Um princípio jurídico reza que a ignorância da lei não é uma defesa contra a decisão da justiça. Mas, no caso do código de imposto, isso não faz mais sentido. O Departamento do Tesouro e a Receita Federal promulgam e aplicam a lei de impostos em nosso país. Como todos sabemos, essas leis são submetidas à aprovação do Congresso, mas a maioria é aprovada porque meu departamento submete o conjunto proposto de leis, o Congresso as modifica e aprova, e então as aplica. Em muitos casos, a interpretação do código que vocês aprovam é deixada a cargo de pessoas que trabalham para mim, e, como todos sabemos, a interpretação da lei pode ser tão importante quanto a própria lei.
Temos tribunais especiais de impostos para fazer novos regulamentos... mas o que resta no final é aquela pilha de papel impresso, posso garantir a este comitê que ninguém, nem mesmo um juiz experiente, é capaz de entender o que está escrito ali.
Temos inclusive a situação absurda de que quando um cidadão leva seus registros de impostos e formulários de devolução para um posto da Receita, para pedir ajuda as pessoas que aplicam a lei, e esses funcionários do imposto de renda cometem um erro, cidadão que procurou o governo para pedir ajuda se torna responsável pelos erros que seu governo cometeu. Quando eu estava no ramo de investimento, se eu dava um conselho ruim ao meu cliente, eu assumia a responsabilidade por esse erro.
O propósito dos impostos é prover o governo de um país de uma receita com a qual possa servirão povo. Mas ao longo do caminho criamos toda uma indústria que tira bilhões de dólares do povo. Por quê? Para explicar um imposto de renda que se torna mais complexo a cada ano. As próprias pessoas que aplicam esse imposto não assumem responsabilidade em cumpri-lo... porque não o entendem. Vocês já sabem, ou deveriam saber — eles não sabiam —, que a maior parte do dinheiro coletado é gasta na aplicação do imposto de renda. Isso não é produtivo. Devemos trabalhar para o povo, não confundi-lo.
E assim, Sr. Presidente, há algumas coisas que espero conseguir durante minha gestão no Tesouro, caso o comitê confirme minha indicação. Em primeiro lugar, quero a legislação do imposto de renda completamente reescrita numa coisa que possa ser entendida por uma pessoa comum. Quero que a legislação do imposto de renda faça sentido. Quero uma legislação sem exceções especiais. Quero que as mesmas regras sejam aplicadas igualmente a todos. Estou preparado para apresentar uma proposta para que seja feito exatamente isso.
Quero trabalhar com o comitê para transformar essa proposta em lei. Quero trabalhar com vocês, damas e cavalheiros. Não vou deixar nenhum representante de empresas ou qualquer espécie de lobista entrar no meu gabinete para discutir esse assunto e, aqui e agora, peço que façam o mesmo.
Sr. Presidente do comitê, quando começamos a falar com qualquer fulano ou beltrano com uma sugestão para tratar de um grupo especial com necessidades especiais, acabamos com aquilo nas mãos!
Winston apontou novamente para a mesa quebrada.
— Somos todos americanos. O pressuposto é que trabalhemos juntos, e quando deturpamos as leis de impostos de nosso país segundo as conveniências de cada lobista com um escritório e uma clientela, apenas tiramos mais dinheiro de todo mundo. As leis de nosso país não existem para oferecer um cabide de emprego para contadores e advogados no setor privado e burocratas no setor público. As leis que vocês aprovam, e que pessoas como eu aplicam, devem servir às necessidades dos cidadãos, não do governo.
Em segundo lugar, quero que meu departamento opere com eficácia.
Eficácia não é uma palavra que o governo saiba soletrar, quanto mais implementar. Isso precisa mudar, bem, não posso mudar toda esta cidade, mas posso mudar o departamento que me foi confiado pelo presidente e que, espero, as senhoras e os senhores irão confirmar. Sei como gerir um negócio. O Columbus Group serve literalmente a milhões de pessoas, direta e indiretamente, e carrego esse fardo com orgulho. Nos próximos meses submeterei um orçamento para um Departamento do Tesouro que não irá desperdiçar um centavo do povo.
Era um exagero considerável, mas impressionante.
— Esta sala já ouviu promessas como essa antes, e não irei culpá-los por engolir minhas palavras com uma tonelada de sal, mas sou um homem acostumado a cumprir minha palavra com resultados, e é isso que acontecerá aqui.
O presidente Ryan teve de gritar comigo para me convencer a mudar para Washington.
Não gosto daqui, Sr. Presidente — disse Winston ao comitê. Eles precisavam saber disso. — Quero fazer meu trabalho e ir embora. Mas o trabalho será feito, se as senhoras e os senhores me confirmarem. Isso conclui meu discurso de inauguração.
As pessoas mais experientes na sala eram jornalistas do segundo escalão — o primeiro escalão ficara com a esposa e a família de Winston. Eles sabiam como as coisas eram feitas e ditas. Um oficial de gabinete devia decantar as honras de ser permitido servir o país, sobre a alegria de ter recebido poder, sobre a responsabilidade que lhe pesaria sobre os ombros.
Eu não gosto daqui? Os repórteres pararam de rabiscar suas anotações e olharam para cima, primeiro para o palanque, depois uns para os outros.
Astro de Cinema gostou do que viu. Embora o perigo para ele fosse grande, o risco era equilibrado. Aqui estava uma rodovia de quatro pistas a poucos metros do objetivo, e essa levava a uma rede infinita de estradas laterais. O melhor: era possível ver quase tudo. Diretamente acima do objetivo havia um bosquete, denso o bastante para permitir o ocultamente de um veículo de apoio.
Tinha de haver um, e onde estaria ele... ? Ali, pensou. Uma casa próxima com uma garagem anexa que dava vista para a creche. Sim... havia dois carros estacionados bem diante da casa — por que não estavam na garagem?
Provavelmente o Serviço Secreto fizera um acordo com os proprietários. Era ideal, a cinquenta metros da creche, voltada na direção certa. Se acontecesse alguma coisa suspeita, o alarme seria acionado, a porta da garagem seria aberta e o veículo de apoio sairia forte e veloz como um tanque, só que não era um tanque.
Num caso como esse, o problema com a segurança era que os procedimentos precisavam estar escritos em pedra, e por mais espertos que fossem os agentes do Serviço Secreto, seus arranjos precisavam se enquadrarem parâmetros conhecidos e previsíveis. Ele checou as horas. Como confirmar suas suspeitas? Para início de conversa, precisava de alguns minutos em repouso.
Diretamente em frente à Giant Steps havia uma loja de conveniências. Ele iria checá-la, porque o inimigo teria uma pessoa lá, talvez mais de uma. Estacionou o carro e entrou, passando mais ou menos um minuto bisbilhotando os produtos da loja.
— Posso ajudar? — perguntou uma voz.
Mulher, 25 anos — não mais velha que isso, mas tentando parecer jovem.
Astro de Cinema sabia que se conseguia isso com o corte de cabelo certo e um pouco de maquiagem. Ele mesmo já usara agentes femininas, e fora sobre isso que lhes instruíra. Pessoas mais jovens sempre parecem menos ameaçadoras, especialmente as mulheres. Com um sorriso de confusão e embaraço, caminhou até o balcão.
— Estou procurando os seus mapas — disse.
— Bem ali, debaixo do balcão. — A balconista apontou com um sorriso. Ela era do Serviço Secreto. Olhos brilhantes demais para uma pessoa num trabalho tão servil.
— Ach! — disse, selecionando um livro rodoviário grande que mostrava cada rua residencial no distrito — condado, como chamavam na América. Pegou-o e folheou ;is páginas, um olho treinado fixo no outro lado da rua. As crianças estavam sendo conduzida para o playground. Quatro adultos com elas. Dois teriam sido o número normal. Então, pelo menos dois... três, percebeu, vendo um homem nas sombras, ficaram imóveis. Homem grande, cerca de l,80m, usando roupas esportivas. Sim, o playground dava para a casa com garagem. Os observadores tinham de estar ali. Dois, talvez três, ficariam o tempo todo na casa. Isto não seria exatamente fácil, mas ele pelo menos saberia onde ficava a oposição.
— Quanto é o mapa?
— O preço está na capa.
— Ach, já, perdão. — Enfiou a mão no bolso. — Cinco dólares, noventa e cinco centavos — disse para si mesmo, catando os trocados.
— Mais imposto. — Bateu o preço na máquina registradora. — Você é novo na área?
— Sim, sou. Eu sou professor.
— Oh, e o que ensina?
— Alemão — replicou, pegando seu troco, contando-o. — Queria ver como as casas eram aqui. Obrigado pelo mapa. Tenho muito trabalho.
Um aceno curto de cabeça, ao modo europeu, pontuou o encontro e ele saiu sem olhar novamente para o outro lado da rua. Astro de Cinema sentiu um arrepio. A balconista definitivamente fazia o tipo policial. Ela o estava observando agora, provavelmente a notando a placa de seu carro, mas se fizesse isso, e se o Serviço Secreto pesquisasse o número, descobriria que seu nome era Dieter Kolb, alemão de Frankfurt, professor de inglês, atualmente fora do país.
Se eles não fossem muito insistentes, essa cobertura bastaria. Seguiu para o norte pela Ritchie Highway, virando à direita na primeira oportunidade. Havia uma escola de comunidade numa colina próxima e, nos EUA, todas elas tinham estacionamentos.
Era apenas uma questão de encontrar um bom ponto. Era este. Com a chegada da primavera, os bosques adjacentes logo estariam floridos, bloqueando o acesso visual à Giant Steps. Os fundos da casa cuja garagem provavelmente abrigava o Chevy Suburban de apoio teriam apenas algumas janelas voltadas nessa direção, e elas estariam cobertas por cortinas. O mesmo valia para o próprio maternal. Astro de Cinema Kolb levantou um par de binóculos compactos e vasculhou a paisagem. Não seria fácil com todos os troncos entre ele e o objetivo, mas embora o Serviço Secreto fosse perfeito, seus agentes ....eram. Ninguém era. Mais importante: a Giant Steps não era uma locação favorável para proteger uma criança importante, mas isso não era surpreendente. A família Ryan matriculava todos os seus filhos aqui. Os professores deviam ser excelentes, e Ryan e sua mulher médica provavelmente os conheciam e eram amigos deles. Além disso, as notícias de jornal que ele baixara da Internet enfatizavam que os Ryan queriam manter sua vida familiar intacta. Quão humano. E quão estúpido.
Observou as crianças brincarem no playground. Parecia ser coberto com tacos de madeira. Os pequeninos estavam enclausurados em roupas de inverno bem grossas — a temperatura estava aproximadamente em 11 graus abaixo de zero — e corriam para cima para baixo, brincando nos escorregas e nas gangorras, enquanto outros remexiam na terra que conseguiam encontrar. Por seu vestuário, podia dizer que essas crianças eram bem-criadas e, afinal de contas, crianças. Exceto por uma. Uma que ele não podia ter certeza àquela distância — precisaria ver fotos para isso —, mas essa não era uma simples criança. Essa era uma declaração política da parte de alguém. Quem faria essa declaração, e exatamente qual declaração seria feita, não dizia respeito a Astro de Cinema. Ele permaneceria em seu poleiro por muitas horas, não pensando no que poderia resultar de suas atividades. Ou no que poderia não resultar. Não se importava. Ele escreveria suas anotações memorizadas, desenharia seus mapas e diagramas detalhados e esqueceria tudo. Kolb não se importava com isso havia anos. O que começara com fervor religioso pela Guerra Santa libertadora de seu povo, havia, com o passar do tempo, se tornado o trabalho pelo qual ele era pago. Se no fim acontecesse alguma coisa politicamente benéfica, melhor.
Mas de algum modo isso nunca acontecia, apesar de todas as esperanças, sonhos e discursos inflamados. A única certeza que o sustentava era seu trabalho e sua habilidade nele. Que estranho, pensou Astro de Cinema, que as coisas tivessem chegado a esse ponto, mas os guerreiros apaixonados eram aqueles que morriam, vítimas de sua própria dedicação. Sorriu pensando na ironia. Os crentes autênticos eram consumidos por sua própria paixão, e aqueles que sustentavam a esperança de seu povo eram aqueles que... que não se importavam mais? Seria verdade isso?
— Muitas pessoas objetarão contra a natureza da sua proposta de um plano de impostos. Um plano realmente justo é progressivo — prosseguiu o senador.
Previsivelmente, era um dos sobreviventes, não um dos recém-chegados.
Recitou o velho mantra: — Será que isso não será um fardo pesado para os trabalhadores americanos?
— Senador, compreendo o que está querendo dizer— replicou Winston depois de tomar um gole de seu copo d água. — Mas a quem o senhor está se referindo por trabalhadores americanos ? Eu trabalho. Construí meu negócio a partir dos alicerces e, creia em mim, fiz isso com trabalho. Cathy Ryan, a primeira-dama, ganha algo em torno de quatrocentos mil dólares anuais... muito mais que seu marido, a propósito. Isso significa que ela não trabalha? Acho que ela trabalha. Ela é uma cirurgiã. Tenho um irmão médico, e sei quantas horas ele trabalha. É verdade, essas duas pessoas ganham mais que o americano médio, porém o mercado há muito decidiu que o trabalho que eles fazem é mais importante que o de outras pessoas. Se o senhor ficar cego, um operário de uma fabrica de automóveis não poderá ajudá-lo; nem um advogado. Um médico poderá. Isso não significa que o médico não trabalha, senador. Significa que o trabalho que ele faz requer qualificações mais altas e treinamento mais longo, e que como resultado o trabalho é mais bem remunerado. E quanto a um jogador de beisebol? Essa é outra categoria de trabalho altamente qualificado, e ninguém nesta sala objeta contra o salário pago a Ken Griffey, Jr., por exemplo.
Por quê? Porque ele é soberbo no que faz, um dos cinco, talvez quatro melhores no mundo, e é recompensado regiamente por isso. Mais uma vez, esse é o mercado de trabalho em funcionamento.
Num sentido mais amplo, falando como mero cidadão e não como secretário designado, oponho-me com fervor à dicotomia artificial e falsa que algumas pessoas na arena política colocam entre trabalhadores braçais e intelectuais. Não há outra forma de viver honestamente neste país que não seja oferecendo um produto ou um serviço ao público e, falando em termos gerais, quanto mais suor e inteligência uma pessoa depositar em seu trabalho, mais dinheiro irá ganhar. É justo que algumas pessoas tenham habilidades maiores que as outras. Se existe uma classe de ricos indolentes na América, acho que o único lugar onde se pode encontrá-los é no cinema. Quem nesta sala, se tivesse escolha, não trocaria de lugar instantaneamente com Ken Griffey ou Jack Nicklaus? Nós todos não sonhamos em ser tão bons em alguma coisa? Eu sonho — admitiu Winston. — Mas não sou tão bom assim no golfe.
Muito bem, e quanto a um engenheiro de programas de computador realmente talentoso? Também não sei fazer isso. E que tal um inventor? Que tal um executivo que transforma uma companhia de uma perdedora numa usina de lucros... lembram do que Samuel Gompers disse? O pior fracasso de um capitão de indústria é não conseguir mostrar lucro. Por quê? Porque uma companhia rentável é aquela que faz bem seu trabalho, e apenas essas companhias podem compensar seus trabalhadores adequadamente, e ao mesmo tempo devolver dinheiro aos seus acionistas... e essas são as pessoas que investem o dinheiro delas na companhia que gera empregos para seus trabalhadores.
Senador, o que esquecemos é o motivo pelo qual estamos aqui e o que estamos tentando fazer. O governo não proporciona trabalhos produtivos. O nosso dever não é esse. General Motors, Boeing e Microsoft são as instituições que empregam trabalhadores para fazer os produtos que as empresas precisam.
O trabalho do governo é proteger o povo, manter a lei e providenciar para que as pessoas ajam segundo as regras, como o juiz num campo de futebol. O nosso trabalho não deve ser punir as pessoas que jogam bem demais.
Nosso trabalho é coletar impostos para que o governo possa desempenhar suas funções. Mas nos afastamos disso. Devemos coletar esses impostos de uma forma tal a causar um dano mínimo à economia como um todo. Por sua própria natureza, os impostos são uma influência negativa, e não podemos nos afastar disso, mas podemos fazer o máximo possível para estruturar o sistema de impostos de uma forma tal que ele cause o mínimo de dano, e talvez até encoraje as pessoas a usar seu dinheiro de modo a estimular o sistema inteiro a trabalhar.
— Eu sei que direção o senhor está tomando. Vai falar sobre cortar os impostos de ganho de capital, mas isso beneficia apenas uns poucos, ao custo de...
— Senador, desculpe por interromper, mas isso simplesmente não é verdade, e o Senhor sabe que não é — disse Winston bruscamente. — Reduzir a taxa de impostos de ganhos de capital significa o seguinte: estímulo às pessoas a investir seu dinheiro... não, deixe-me recuar um pouco.
Digamos que eu ganhe mil dólares. Pago impostos com esse dinheiro. Pago comida. Pago a prestação do meu carro. O que sobra, invisto na... digamos, na XYZ Computadores. A XYZ pega meu dinheiro e contrata alguém. Essa pessoa faz seu trabalho e eu faço o meu, e do trabalho que essa pessoa faz... ela está gerando o produto que o público gosta e compra, certo?... a companhia obtém lucro, que divide. Esse dinheiro é taxado como renda regular. Então eu vendo a ação e compro de outra companhia, de modo que essa companhia possa contratar outra pessoa. O dinheiro gerado pela venda da ação é ganho de capital. As pessoas não colocam mais seu dinheiro debaixo do colchão e não queremos que elas façam isso. Queremos que elas invistam na América, em seus concidadãos.
Agora, eu já paguei imposto pelo dinheiro que investi, certo? Muito bem, então ajudei a dar trabalho a algum concidadão. Esse trabalho faz alguma coisa para o público. E por ajudar a dar um trabalho a um cidadão, e por ajudar esse trabalhador a fazer algo pelo público, obtive um retorno modesto. Isso é bom para o trabalhador que ajudei a contratar e bom para o público. Então faço a mesma coisa em outro lugar. Por que me punir por isso? Não faz mais sentido encorajar as pessoas a fazer isso? E lembre-se de que taxamos um imposto nesse dinheiro investido uma vez... na verdade, mais de uma.
Isso não é bom para o país. Já é ruim o bastante que nós tiremos tanto, mas a forma como tiramos esse dinheiro é contraproducente. Por que estamos aqui, senador? Devíamos estar ajudando o povo, não o prejudicando. E não se esqueça de que o resultado líquido é um sistema de impostos tão complicado que precisamos coletar bilhões para administrá-lo... esse dinheiro é todo jogado fora. Vamos nos livrar de todos os contadores e advogados de impostos que vivem de lidar com uma coisa que o público não pode entender — concluiu o secretário do Tesouro.
A América não está construída sobre a inveja. Ela não está construída sobre a rivalidade de classes. Nós não temos um sistema de classes na América.
Ninguém diz a um cidadão americano o que ele pode fazer. O berço não conta tanto. Vejam só os membros do comitê. Filho de fazendeiro, filho de professor, filho de motorista de caminhão, filho de advogado, e o senhor, senador Nikolides, filho de um imigrante. Se a América é uma sociedade de classes definidas, então como diabo vocês chegaram aqui? — inquiriu.
No momento, seu interrogador era um político profissional, filho de outro, para não mencionar um arrogante filho da puta, pensou Winston. Cada um que ele acabara de apontar tremera um pouco ao ser enfocado pelas câmeras.
Winston prosseguiu:
— Cavalheiros, tentemos facilitar a vida das pessoas, para que elas consigam o que nós conseguimos. Se vamos inclinar o sistema, então o façamos num ângulo que encoraje nossos concidadãos a ajudarem uns aos outros. Se a América possui um problema econômico estrutural, é que não geramos tantas oportunidades quanto poderíamos. O sistema não é perfeito. Certo, vamos tentar consertá-lo um pouco. É para isso que estamos todos aqui.
— Mas o sistema precisa exigir que todos paguem sua parte justa — disse o senador, tentando retomar a vantagem.
— Que significa a palavra justo ? No dicionário, significa que todo mundo precisa fazer mais ou menos a mesma coisa. Dez por cento de um milhão de dólares ainda é dez vezes mais que dez por cento de cem mil dólares, e vinte vezes mais que dez por cento de cinquenta mil. Mas, na legislação do imposto de renda, justiça veio a significar que nós tomamos todo o dinheiro que podemos de pessoas bem-sucedidas e o doamos de volta. A propósito, essas pessoas ricas contratam advogados e lobistas que conversam com gente na arena política e fazem com que um milhão de exceções especiais sejam inseridas no sistema para que elas não sejam totalmente depenadas. E essas pessoas não são depenadas, todos sabemos disso. No fim, com que ficamos? — Winston gesticulou na direção da pilha de livros no chão da sala do comitê. — Ficamos com um programa de empregos para burocratas. E contadores. E advogados. E lobistas. E em algum lugar ao longo do caminho, os cidadãos que pagam seus impostos são completamente esquecidos. Nós não nos importamos com que eles entendam o sistema que deveria servi-los. Não deveria ser assim.
Winston inclinou-se sobre o microfone.
— Vou lhes dizer o que acho que significa a palavra justo. Acho que significa que todos carregamos o mesmo fardo na mesma proporção. Acho que significa que o sistema não apenas permite como nos encoraja a participar da economia. Acho que significa promulgarmos leis simples e compreensíveis para que as pessoas saibam onde estão pensando Acho que justo significa o jogo estar nivelado, com todo mundo desfrutando das mesmas chances, e não punirmos Ken Griffey por fazer home runs. Justo é admirá-lo e tentar emulá-lo.
É tentarmos fazer mais home runs que ele. E não o atrapalharmos quando estiver jogando.
— Deixar que eles comam brioches? — perguntou o chefe de gabinete de Kealty.
— Não podemos dizer cachorro-quente, podemos? — perguntou Kealty.
Então abriu um sorriso largo. — Finalmente.
— Finalmente — concordou outro assessor.
Os resultados foram equivocados. O técnico de polígrafo do FBI passara a manhã inteira trabalhando, e cada gráfico impresso em formulário contínuo estava duvidoso. Não havia como evitar. Eles tinham virado a noite numa reunião. Quando lhes pedia para dizer alguma coisa importante que ele estivesse autorizado a revelar, era sempre a situação Irã Iraque, claro. Ele podia assistir à CNN como qualquer um, os homens que pusera na jogada estavam todos cansados e irritadiços, e alguns haviam causado flutuações no gráfico até mesmo ao dizer seus nomes e descrições de trabalho. O exercício inteiro fora infrutífero. Provavelmente.
— E então? Passei? — perguntou Rutledge, tirando a braçadeira pressurizada com naturalidade de quem já conhecia o processo.
— Bem, tenho certeza de que já lhe disseram que...
— ...não é um processo de exame do tipo passe-ou-fracasse — completou o subsecretário de Estado, exausto. — Sim, diga isso a alguém que já perdeu a autorização para assuntos sigilosos depois de uma sessão na caixa. Odeio essas coisas, sempre odiei.
Em termos de técnica, aquilo estava quase exatamente à altura de um dentista, pensou o agente do FBI, e embora ele fosse um dos melhores nesta arte negra em particular, não descobrira nada que pudesse ajudar na investigação...
— Sobre a reunião de ontem à noite...
Rutledge cortou-o secamente. — Não podemos falar sobre ela. Desculpe.
— Não... O que quero saber... esse tipo de coisa é normal aqui?
— Será por algum tempo, provavelmente. Olhe, você sabe do que se trata, provavelmente.
O agente assentiu e o subsecretário assentiu em resposta.
— Muito bem — disse o subsecretário. — Então você sabe que é um grande abacaxi, e que vamos ficar batendo pestana por um bom tempo falando sobre isso, especialmente o meu pessoal. Por um tempo vai ser assim: montes de café, horas longas, pavios curtos. — Olhou as horas. — Meus grupos de trabalho se reúnem em dez minutos. Mais alguma coisa?
— Não, senhor.
— Obrigado por noventa minutos de diversão — disse Rutledge, caminhando até a porta. Tinha sido muito fácil. Era preciso apenas saber como as coisas funcionavam. Eles precisam de indivíduos calmos e relaxados para obter os resultados adequados — o polígrafo essencialmente media a tensão induzida por perguntas incômodas. Então deixe todo mundo tenso. Era simples assim. E realmente os iranianos estavam fazendo o trabalho. Tudo que ele tinha a fazer era atiçar um pouco as chamas. O pensamento lhe valeu um sorriso quando entrou no banheiro executivo.
Astro de Cinema consultou o relógio e fez mais uma nota mental. Dois homens saíram da casa particular. Um deles virou-se para dizer alguma coisa enquanto fechava a porta. Caminharam até o estacionamento da Giant Steps, olhos perscrutando os arredores numa forma que os identificava tão positivamente quanto se estivessem envergando uniformes e fuzis. O Chevy Suburban emergiu da garagem particular. Um bom esconderijo, mas um pouco óbvio demais aos olhos de um observador perito. Duas crianças saíram juntas, uma conduzida por uma mulher, outra por um homem... sim, aquela que estivera à sombra na hora do recreio. Homem grande, corpo formidável. Duas mulheres, uma na frente, outra atrás. Todas as cabeças virando e olhando ao redor. Levaram a criança até um carro comum. O Suburban parou na frente da pista secundária, e os outros carros seguiram-no pela estrada, com um carro de polícia 15 segundos atrás.
Seria uma tarefa difícil, mas não impossível, e a missão tinha vários resultados diferentes, todos aceitáveis pelos seus patrocinadores. Tudo correria bem se ele não se deixasse vencer por seus sentimentos em relação a crianças.
Já estivera envolvido em missões dessa natureza e sabia que o essencial era não ver os alvos como crianças. O alvo conduzido pela mão de seu guarda-costas era exatamente aquele no qual apostara antes, uma declaração política a ser feita por outra pessoa. Alá não teria aprovado. Astro de Cinema sabia disso.
Não havia uma religião no mundo que sancionasse males contra crianças, mas religiões não eram instrumentos de governo, a despeito de quaisquer que fossem as crenças do chefe atual de Badrayn. Religiões eram algo para um mundo ideal, e o mundo não era ideal. E assim seria preciso usar meios cruéis para alcançar objetivos religiosos, e isso significava... alguma coisa na qual ele simplesmente procurava não pensar. Era trabalho, seu trabalho, ver o que podia ser feito, fosse moral ou imoral. Astro de Cinema não se sentia nem um pouco religioso em relação a isso, o que provavelmente era a razão para ele ainda estar vivo enquanto outros não estavam... e se ele conduzisse sua missão a contento, mais outros também não estariam.
28
Nada Mais que um Gemido
Políticos raramente gostam de surpresas. A maioria gosta de surpreender os outros — principalmente outros políticos, em geral em público, e sempre depois de um cuidado preparatório digno de uma emboscada na floresta —, e da mesma forma detestam estar no lado surpreendido. E era assim em todo o mundo, principalmente em países onde a política não era um jogo civilizado.
No Turcomenistão as coisas ainda não haviam chegado a esse ponto. O premiê — ele tinha uma ampla variedade de títulos dos quais escolher, e apreciava mais este do que presidente — gostava de tudo sobre sua vida e seu cargo. Como cacique do moribundo Partido Comunista, vivera sob restrições bem maiores dos que as atuais, e sempre estava no outro lado da linha de uma ligação para Moscou, como um peixe fisgado numa linha comprida. Mas não agora. Moscou não tinha mais esse controle, e ele se tornara um peixe bem maior. Era um homem vigoroso no fim da casa dos cinquenta e, como gostava de brincar, um homem do povo. O povo neste caso fora uma funcionária pública atraente com cerca de vinte anos. Depois de um belo jantar e um pouco de danças étnicas (nas quais ele era excelente), a funcionária o divertira como apenas as mulheres jovens podiam. Agora estava voltando para a residência oficial sob um céu claro e estrelado, sentado no banco frontal direito de sua Mercedes preta; no rosto, o sorriso de um homem que acabara de provar sua masculinidade, da melhor forma possível. Talvez arranjasse uma promoção para a garota... dali a algumas semanas. Ele possuía um grau de poder que, embora não absoluto, era suficiente para qualquer homem, e esse pensamento chegou acompanhado de um sentimento de euforia. Popular entre seu povo como um tipo de líder caloroso e paternalista, sabia como agir, como sentar-se com as pessoas simples, como segurar uma mão ou um ombro... sempre diante das câmeras de TV para mostrar que era um deles. Culto à personalidade : era assim que o regime anterior chamava esse tipo de estratégia, e decerto não havia nada mais político que isso. O presidente detinha responsabilidades, cumpria à risca seus deveres e, em troca, gozava de certos privilégios. Um deles era este belo automóvel alemão — contrabandeá-lo para o país fora mais um exercício de lábia que de corrupção — e outro estava agora retornando para sua cama com um sorriso e um suspiro. E a vida era boa. E lhe restavam menos de sessenta segundos para desfrutá-la.
O premiê não fazia questão de escolta policial — era amado por sua gente.
Tinha certeza disso. Além do mais, era tarde. Mas avistou um carro de polícia num cruzamento, luzes girando e piscando, bloqueando o caminho. Um policial levantou a mão enquanto falava em seu rádio, mal olhando para eles. O premiê tentou adivinhar qual era o problema. Seu motorista guarda-costas reduziu a velocidade da Mercedes bufando pelo incômodo, parando no cruzamento enquanto se certificava se sua pistola estava prontamente acessível. Mal o carro oficial havia parado quando os dois ouviram um ruído à direita. O premiê virou-se nessa direção; mal teve tempo de arregalar os olhos antes de um caminhão Zil-157 chocar-se com eles a quarenta quilômetros por hora. O veículo militar arremessou o carro oficial dez metros para a esquerda. O carro parou apenas ao atingir a parede de pedra de um edifício comercial. Foi o momento para o policial se aproximar, assistido por dois outros que tinham emergido das sombras. O motorista quebrara o pescoço e morrera. Os policiais podiam ver isso pelo ângulo de sua cabeça. Um deles esticou a mão pelo para-brisa estilhaçado para virar a cabeça do motorista, apenas por precaução. Mas o premiê, para surpresa geral, ainda gemia, apesar dos ferimentos. Provavelmente seu corpo estivera relaxado devido ao excesso de bebida, pensaram os homens.
Bem, isso podia ser resolvido fácil. O policial no comando caminhou até o caminhão, abriu a caixa de ferramentas, pegou um macaco, retornou e golpeou a cabeça do premiê bem na têmpora. Missão cumprida. Jogou a ferramenta para o motorista do caminhão; o premiê do Turcomenistão estava morto como resultado de um acidente automobilístico. Isso significava que o país teria de realizar eleições, não é mesmo? Isso seria Uma novidade, e exigia um líder a quem as pessoas conhecessem e respeitassem.
— Senador, foi um dia longo — concordou Tony Bretano. — E para mim as últimas semanas também têm sido longas, aprendendo o caminho das pedras e me reunindo com pessoas, mas administração é administração, e o Departamento de Defesa vem carecendo dela há um bom tempo. Estou preocupado particularmente com o sistema de aquisições. Demora muito e custa demais. O problema não é exatamente corrupção, mas uma tentativa de impor um padrão de justiça tão exato que... bem, num exemplo simples, se o senhor comprasse comida do jeito que o Departamento de Defesa compra armas, morreria de fome entre as prateleiras de batatas fritas e cigarros. A TRW é uma empresa de reengenharia, e na minha forma de pensar, muito boa. Se o Departamento de Defesa fosse uma empresa particular, eu não teria condições de geri-la. Meus acionistas iriam me linchar. Podemos fazer melhor, e pretendo providenciar para que isso aconteça.
O senador perguntou: — Sr. Secretário designado, quanto mais isto vai demorar? Acabamos de vencer uma guerra e...
— Senador, a América possui o melhor serviço médico do mundo, mas ainda assim tu pessoas morrem de câncer e doenças cardíacas. O melhor nem sempre é bom o bastante, não é verdade? Mais que isso, e mais concernente, é o fato de que podemos fazer melhor com menos dinheiro. Não procurarei vocês com um pedido de aumento geral de verbas. O fundo de aquisição pode ser maior, sim. O fundo de treinamento e prontidão também irá aumentar. Mas o dinheiro verdadeiro da Defesa se esvai em custos com funcionários, e é nesse ponto que podemos cortar gastos. O departamento inteiro está com excesso de contingente nos lugares errados. Isso é um desperdício do dinheiro dos contribuintes. Eu sei. Pago muitos impostos. Não utilizamos nosso pessoal com eficácia, e nada, nada, senador, é um desperdício maior que esse. Acho que posso prometer a vocês uma redução líquida de dois ou três por cento. Talvez mais, se puder dar um jeito no sistema de aquisições. Quanto a esse, preciso de assistência estatutária. Não há motivo para termos de esperar oito a vinte anos para comprarmos um novo avião. Nós estudamos as coisas demais. Já houve sentido em economizar dinheiro, e talvez na época fosse uma boa ideia, mas agora gastamos mais dinheiro em estudos do que realmente em Pesquisa e Defesa. É hora de pararmos de inventara roda a cada dois anos. Nossos cidadãos trabalham pelo dinheiro que gastamos, e é nosso dever para com eles gastar com inteligência.
Mais importante de tudo, quando a América manda seus filhos e filhas para os braços do inimigo, eles procuram ser os melhores. Precisam ser ás forças mais bem treinadas, apoiadas e equipadas que pudermos colocar em campo. O fato é que podemos fazer isso e também economizar dinheiro, fazendo o sistema trabalhar com mais eficácia.
A coisa boa sobre essa nova safra de senadores, refletiu Bretano, era que eles não sabiam o que era impossível. Há apenas um ano ele jamais poderia ter falado o que acabara de dizer. Eficácia era um conceito alienígena para a maioria das agências governamentais. Não porque houvesse alguma coisa errada com as pessoas, mas porque ninguém jamais lhes dissera para fazer melhor. Havia muito a ser dito para quem trabalhava no lugar que imprimia o dinheiro, mas havia muito mais a ser dito para quem comia barras de chocolate até ficar com as artérias entupidas. Se o coração da América fosse seu governo, a nação teria caído dura há muito tempo. Felizmente, seu coração estava em outro lugar, e sobrevivendo com alimentos mais saudáveis.
— Mas por que precisamos tanto de defesa numa época em que...
Bretano interrompeu-o novamente. Era um hábito do qual precisava se livrar, mas isto era demais.
— Senador, o senhor olhou o prédio do outro lado da rua recentemente?
Foi engraçado ver a forma como o homem jogou a cabeça para trás, embora o assessor à esquerda de Bretano tenha se contorcido tanto quanto o senador. Esse senador tinha um voto, tanto no comitê quanto no plenário do Senado, que estava reaberto agora que haviam tirado o cheiro de fumaça do prédio. Mas a maioria dos outros integrantes do comitê concordou com a opinião do secretário da Defesa, e Bretano estava disposto a se contentar com isso. No devido tempo, o presidente do comitê decretou o final da sessão e marcou uma votação para a manhã seguinte. Os senadores já tinham deixado seus votos claros com seu elogio ao discurso franco e positivo de Bretano, declarando seu desejo de trabalhar com ele com palavras tão ingênuas quanto as do secretário designado, e com isso mais um dia chegava ao fim, com um novo prestes a começar.
A resolução da ONU mal acabara de ser aprovada quando o primeiro navio partiu na viagem curta até o porto de Bushire, no Iraque. Ali descarregou grandes estruturas de armazenagem. Pela primeira manhã em muitos anos haveria pão suficiente para todos os iraquianos no café da manhã. O telejornal matutino proclamou o fato para todos — com as esperadas imagens ao vivo de padarias distribuindo mercadorias para multidões felizes e sorridentes — e concluiu com a notícia de que o novo governo revolucionário iria se reunir ainda naquele dia para discutir outros assuntos de importância nacional. Essas transmissões foram devidamente interceptadas em PALM BOWL e STORM TRACK e retransmitidas; mas as notícias verdadeiras daquele dia vieram de outra fonte. Golovko disse a si mesmo que o premiê turcomeno poderia de fato ter morrido num ocidente. Seus hábitos pessoais eram bem conhecidos, e acidentes automobilísticos geralmente eram comuns em todos os países — na verdade, os acidentes de carro tinham alcançado números alarmantes na antiga União Soviética, principalmente quando associados ao consumo de álcool. Mas Golovko não era dado a crer em coincidências de nenhum tipo, particularmente quando dispunha de amplos recursos para diagnosticar o problema. O premiê estava morto. Haveria eleições. O vencedor provável seria obviamente o sucessor do falecido, que fora tão maravilhosamente eficaz em abafar a oposição. E agora unidades militares iraquianas estavam se formando para marchar rumo ao oeste. Dois chefes de Estado mortos num espaço de tempo tão curto, num perímetro tão próximo, dois países fronteiriços ao Irã... não, mesmo se isso tivesse sido uma coincidência, ele não poderia acreditar nela. Com essa determinação, Golovko mudou de chapéus — o aforismo ocidental — e pegou seu telefone.
O USS Pasadena estava posicionado entre as duas esquadras de superfície da China, no momento operando a cerca de 14 quilômetros de distância uma da outra. O submarino estava carregado de armas, todas apropriadas para guerras; mesmo assim, era o mesmo que ser o único tira na Times Square na meia-noite do Ano-Novo tentando cuidar de tudo ao mesmo tempo. Ter um revólver carregado não significava muita coisa.
De vez em quando o submarino estendia sua antena receptora para captar os sinais eletrônicos transmitidos na região. O departamento de sonar também passava dados para a equipe de rastreamento na parte de trás do centro de ataque, enquanto o maior número cabível de homens reunia-se em torno da mesa do mapa fazendo marcações para os diversos contatos. O comandante ordenou que seu barco mergulhasse para trezentos pés, de modo que ele tivesse alguns minutos para examinar o gráfico, que se tornara complexo demais para que ele o guardasse de cabeça. Com o barco nivelado em sua nova profundidade, deu três passos para trás para olhar melhor.
Era um exercício de esquadra, mas um tipo de exercício que não era exatamente comum. Geralmente um grupo desempenhava o papel do mocinho contra os bandidos teóricos no outro grupo, e era possível saber qual era qual pela disposição dos navios. Mas em vez de se orientar um contra o outro, ambos os grupos estavam orientados rumo leste. Isso era chamado eixo de ameaça, significando a direção da qual se esperava que o inimigo atacasse. Para leste ficava a República da China, que abrangia principalmente a ilha de Taiwan. O chefe de operações supervisionando o gráfico estava marcando a capa de acetato, e o desenho estava tão claro quanto era necessário.
— Leme, aqui é sonar — foi a chamada seguinte.
— Leme, entendido — respondeu o comandante, pegando o microfone.
— Dois novos contatos, senhor, designados Sierra Vinte e Vinte e Um.
Ambos aparentam ser contatos submersíveis. Sierra Vinte, marcação três-dois-cinco, curso direto e leve... aguarde... certo, parece um SSN classe-Han, bom corte na linha dos cinquenta Hertz, também estamos captando ruído das máquinas. Vinte e Um, também contato submersível, em três-três-zero, começando a parecer um Xia, senhor.
— Um submarino nuclear de ataque num exercício de esquadra? — perguntou o chefe de operações.
— Qual é a qualidade de corte do Vinte e Um?
— Melhorando agora, senhor — replicou o chefe do sonar. A equipe de sonar inteira estava em seu compartimento, logo depois do centro de ataque a estibordo. — O ruído das máquinas parece indicar um Xia, comandante. O Han está manobrando para o sul, agora em curso três-dois-um... sua velocidade está em dezoito nós.
— Senhor? — o chefe de operações fez uma marcação rápida no gráfico. O SSN e o nuclear de ataque estariam atrás do grupo de superfície ao norte.
— Mais alguma coisa, sonar? — indagou o comandante.
— Senhor, está ficando um pouco complicado manter todas essas trilhas.
— Eu que o diga — resmungou alguém na mesa de rastreamento enquanto fazia mais uma mudança.
— Alguma coisa a leste? — persistiu o chefe de operações.
— Senhor, a leste temos seis contatos, todos classificados como tráfego mercante, — Temos todos eles aqui, senhor — confirmou o chefe de operações. — Nada ainda da Marinha de Taiwan.
— Isso vai mudar — pensou em voz alta o comandante.
O general Bondarenko também não acreditava em coincidências. Mais que isso, a parte sul do país que um dia fora conhecido como União das Repúblicas Socialistas Soviéticas encantava-lhe pouco. Sentia-se assim desde seu período no Afeganistão e de uma noite frenética no Tadjiquistão. Em resumo, não teria se importado se o divórcio total da República Russa das protonações muçulmanas tivesse poupado a fronteira sul de seu país, mas o mundo real não era perfeito.
— E então, que acha que está acontecendo? — perguntou o tenente-general.
— Foi instruído sobre a situação no Iraque?
— Fui, camarada diretor.
— Então me diga você, Gennady Iosefovich — comandou Golovko.
Bondarenko inclinou-se sobre a mesa do mapa e falou, enquanto movia um dedo sobre o gráfico.
— Diria que o que lhe diz respeito é que o Irã possivelmente está tentando alcançar um status de superpotência. Unindo-se com o Iraque, aumenta sua riqueza petrolífera em algo por volta de quarenta por cento. Além disso, isso lhes conferiria fronteiras contínuas com o Kuwait e o reino saudita. A conquista dessas nações reduplicaria sua riqueza. Pode-se inclusive presumir que as nações menores também cairiam. As circunstâncias objetivas aqui são por si só evidentes. — O general prosseguiu, falando com o tom calmo de um soldado profissional analisando o desastre. — Combinados, Irã e Iraque superam em número as populações combinadas dos outros Estados por uma margem considerável... cinco para um, camarada diretor? Mais? Não recordo os números exatos, mas decerto a vantagem em poder humano é decisiva, o que garantiria a conquista direta, ao menos, uma grande influência política. Isso bastaria para conferir à União Republicana do Islã um imenso poder econômico, a capacidade de sufocar o suprimento, energético ao Ocidente e à Ásia.
Bondarenko fez uma pausa e prosseguiu: — Agora, quanto ao Turcomenistão... Se isto, como suspeita, não for uma coincidência, então podemos concluir que o Irã também tenciona mover-se para o norte, talvez visando o Azerbaijão — seu dedo tracejou uma linha no mapa —, o Uzbequistão, o Tadjiquistão e pelo menos parte do Cazaquistão. Isso triplicaria sua população e somaria uma base de recursos significativa à URI. Podemos presumir que em seguida a URI absorveria o Afeganistão e o Paquistão. Assim, teremos uma nação nova, estendendo-se do Mar Vermelho até o Hindu Kush... nyet, mais provável, do mar Vermelho até a China, então nossa fronteira sul estará completamente alinhada com nações hostis.
Olhou para cima.
— Isto é muito pior do que eu estava esperando, Sergey Nikolayevitch — concluiu com tom sereno. — Sabemos que os chineses cobiçam o que temos a leste. Este novo Estado ameaça os nossos campos petrolíferos no sul, na Transcaucásia. Eu não posso defender nossa fronteira. Meu Deus, comparada a isso, a defesa contra Hitler foi brincadeira de criança.
Golovko estava do outro lado da mesa do mapa. Chamara Bondarenko por um motivo. A liderança do Exército de seu país era composta de remanescentes de uma era anterior, e eles estavam finalmente morrendo. Gennady Iosefovich era um dos membros da nova geração, testado em batalha na desafortunada Guerra Afegã, velho o bastante para saber na carne o que era um conflito — perversamente, isso tornava-o e aos seus pares àqueles que os substituiriam em breve —, e jovem a ponto de não carregar a carga ideológica da geração anterior.
Não um pessimista, mas um otimista disposto a conviver com o Ocidente, onde acabara de passar um mês com diversos exércitos da OTAN, avaliando tudo que podia, especialmente com os americanos. Mas Bondarenko estava olhando alarmado para o mapa.
— Quanto tempo? — perguntou o general. — Quanto tempo levarão para estabelecer o novo Estado? Golovko deu de ombros.
— Quem pode dizer? Três anos, dois na pior das hipóteses. Na melhor das hipóteses, cinco anos.
— Dê-me cinco anos e a capacidade de reconstruir o poderio militar de nossa nação e poderemos... provavelmente... não. — Bondarenko balançou a cabeça. — Não posso dar-lhe garantias. O governo não me dará o dinheiro e os recursos de que precisarei. Não dispomos do dinheiro necessário.
— O que significa... — o general levantou os olhos para fitar o diretor.
— Que eu preferiria ser oficial de operações do outro lado. A leste temos montanhas para defender, e isso é bom, mas temos apenas duas linhas de trem para apoio logístico, e isso não é tão bom. No centro... e se eles absorverem todo o Cazaquistão? — Cutucou o mapa. — Veja só o quanto isso os coloca perto de Moscou. E quanto às alianças? Com a Ucrânia, talvez? E quanto à Turquia?
E quanto à Síria? Todo o Oriente Médio terá de fazer acordos com esse novo Estado... E nós perderemos, camarada diretor. Podemos ameaçar usar armas nucleares... mas que bem isso nos trará? A China pode se dar o luxo de perder quinhentos milhões de habitantes e ainda assim superar-nos numericamente. A economia deles cresce a cada dia enquanto a nossa continua estagnada. Eles podem comprar armas do Ocidente, ou melhor ainda, podem comprar os projetos e fabricá-las em seu próprio território. Nosso uso de armas nucleares é perigoso, tanto em nível tático quanto estratégico, e há a dimensão política que deixarei a seu cargo. Militarmente, estaremos em desvantagem numérica em todas as categorias relevantes. O inimigo terá superioridade em termos de armas, poder humano e localização geográfica. Sua capacidade de cortar o suprimento petrolífero para o resto do mundo limita nossa esperança de assegurar ajuda estrangeira — considerando que qualquer nação ocidental terá o desejo de fazer isso. O que você me mostrou é a destruição potencial do nosso país.
O fato de Bondarenko ter dito isso com calma era o fato mais perturbador de todos. Bondarenko não era um alarmista. Estava apenas expondo objetivamente um fato.
— E quanto às possibilidades de prevenção?
— Não podemos permitir a perda das repúblicas do sul, não ao mesmo tempo. Então, como assumiremos o controle do Turcomenistão? Combater a campanha de guerrilha que resultaria certamente? Nosso exército não está em forma para travar esse tipo de guerra. Não estamos em condição de travar uma única guerra, e não será apenas uma, será?
O predecessor de Bondarenko fora demitido devido ao fracasso do Exército Vermelho — o termo e a noção estavam custando a morrer — em lidar com eficácia com a Chechênia. O que deveria ter sido um esforço relativamente simples de pacificação anunciara ao mundo que o Exército russo não passava de uma sombra do que fora havia apenas alguns anos.
Ambos sabiam que a União Soviética operara no princípio do medo. O medo da KGB mantivera os cidadãos na linha. E o medo do que o Exército Vermelho poderia e iria fazer com qualquer rebelião sistemática preveniria perturbações políticas em larga escala. Mas o que acontecia quando o medo acabava? O fracasso soviético em pacificar o Afeganistão, apesar das medidas mais brutais imagináveis, fora um sinal para as repúblicas muçulmanas de que seu medo era infundado. Agora a União Soviética desaparecera, e o que restava era uma mera sombra. E agora essa sombra seria ofuscada por um sol mais brilhante ao sul. Golovko podia ver isso no rosto de seu visitante. Seu país não tinha o poder do qual precisava. A Rússia ainda conseguia impor respeito no Ocidente — os ocidentais não tinham esquecido do Pacto de Varsóvia, e nem se livrado do espectro do imenso Exército Vermelho, pronto para marchar até a baía de Biscaia —, mas o mesmo não acontecia em outras partes do mundo. A Europa Ocidental e a América ainda lembravam-se do punho de ferro que tinham visto, mas jamais sentido. Porém os países que tinham sentido esse punho de ferro perceberam assim que seu aperto suavizou. E esses países sabiam o significado de um punho flácido.
— De que você irá precisar?
— Tempo e dinheiro. Apoio político para reconstruir nosso exército. Ajuda do ocidente.
O general ainda fitava o mapa. Sentiu-se como o herdeiro de uma família capitalista poderosa. O patriarca morreu, e quando o herdeiro reclamou a fortuna que era sua por direito, descobriu que tudo havia sumido e só restavam dívidas. O general voltara dos EUA animado, sentindo que encontrara o caminho, vira o futuro, descobrira uma forma de proteger seu país e fazer isso da forma adequada, com um exército profissional composto de especialistas veteranos, unidos por um espírito de equipe, guardiães e servos orgulhosos de uma nação livre, a forma como o Exército Vermelho marchara até Berlim. Mas seriam necessários anos para construir esse exército. Conforme estava... se Golovko estava certo, então o máximo que podia esperar era que sua nação iria resistir como fizera em 1941, trocar espaço por tempo e contra-atacar como fizera em 1942-43. O general disse a si mesmo que ninguém podia prever o futuro; nenhum homem tinha esse dom. E talvez isso fosse bom, porque o passado, que todos os homens conheciam, raramente se repetia. A Rússia tivera sorte contra os fascistas. Mas não se podia confiar na sorte.
Podia-se confiar num adversário astuto e imprevisível. Outras pessoas podiam olhar para um mapa, como ele estava fazendo, e ver as distâncias e os obstáculos, discernir a Correlação de forças, e saber que o curinga estava em outro baralho, no outro lado da mesa. A fórmula clássica era primeiro aleijar o forte, depois esmagar o fraco e então voltar a enfrentar o forte na hora mais adequada. Sabendo disso, Bondarenko não podia fazer nada a respeito. Ele era o fraco. Ele tinha seus problemas. Suas nações não podiam contar com amigos, apenas com os que ela se esforçara tanto para criar.
Saleh nunca conhecera uma agonia tão grande. Já vira agonia, e já a infligira dor — fizera parte do serviço de segurança de seu país — mas nada dessa magnitude, fora tão ruim. Era como se estivesse pagando agora por tudo que fizera... ao mesmo tempo. Sentia dor em cada centímetro de seu corpo. Seu vigor era formidável, seus músculos eram rijos, sua força de vontade excepcional. Mas não agora. Agora cada grama de tecido doía, e quando se moveu ligeiramente para amenizar a dor numa região, tudo que conseguiu foi sentir uma pontada terrível noutra. A dor era tão grande que embotava o medo pelo que a estava causando.
Mas esse não era o caso do médico. Ian MacGregor estava usando vestes cirúrgicas completas, máscara no rosto, mas apenas toda a sua concentração impedia que as mãos enluvadas tremessem. Acabara de extrair sangue, e nunca em toda sua vida o fizera com tanto zelo, nem mesmo ao tratar pacientes aidéticos. Dois auxiliares de enfermagem fortes seguraram cada braço do paciente enquanto tirava as amostras. MacGregor nunca presenciara um caso de febre hemorrágica. Para ele, até então a febre hemorrágica nada mais fora do que uma citação num livro didático, ou um artigo do Lancei. Uma coisa intelectualmente interessante e ligeiramente assustadora, como o câncer, como outras doenças africanas, mas estava acontecendo bem na sua frente.
— Saleh? — disse o médico.
— ...sim. — Uma palavra, um arfar.
— Como veio para cá? Preciso saber para ajudá-lo.
Não houve hesitação, nenhuma consideração por segredos ou segurança.
Parou apenas para respirar ao convocar a energia para responder à pergunta.
— De Bagdá. Avião — acrescentou sem necessidade.
— E a África? Visitou a África recentemente?
— Nunca antes. — A cabeça virou para a esquerda e para a direita não mais que um centímetro, olhos cerrados. O paciente tentava ser corajoso, e estava conseguindo. Primeira vez na África.
— Manteve relações sexuais recentemente? Mais ou menos na última semana? — esclareceu MacGregor.
Parecia uma pergunta muito cruel. Teoricamente era possível contrair doenças desse tipo mediante contato sexual. Talvez uma prostituta daquela mesma cidade? Talvez houvesse outro caso dessa doença em outro hospital local e estivesse sendo mantida em segredo.
Demorou um momento até o homem entender o que o médico estava perguntando. Balançou novamente a cabeça.
— Não. Nada de mulheres há muito tempo.
MacGregor pôde ler no rosto do homem: Nunca mais, não para mim...
— Algum sangue recentemente? Quero dizer, doaram-lhe sangue?
— Não.
— Esteve em contato com alguém que viajou para algum lugar?
— Não, apenas Bagdá, apenas Bagdá. Sou segurança do meu general. Fico com ele o tempo todo. Com mais ninguém.
— Obrigado. Vamos lhe dar alguma coisa para a dor. Vamos lhe dar também um pouco de sangue e tentar esfriá-lo com gelo. Voltarei daqui a pouco.
O paciente assentiu, e o médico saiu da sala, segurando os tubos cheios de sangue com suas mãos enluvadas.
— Merda — resmungou MacGregor.
Enquanto as enfermeiras e os auxiliares de enfermagem faziam seu trabalho, MacGregor dedicava-se ao seu. Dividiu uma das amostras de sangue em duas, empacotou ambas com o máximo de cuidado, endereçando uma para Paris e o Instituto Pasteur, e a outra para o Centro de Controle e Prevenção de Doenças em Atlanta. Iriam por via aérea. Enquanto o resto seguia para seu técnico-chefe, um sudanês competente, o médico rascunhou um fax. O texto comunicaria um possível caso de febre hemorrágica, indicando país, cidade e hospital... mas primeiro... Pegou o telefone e discou o número de seu contato no departamento de saúde do governo.
— Aqui? — disse o médico do governo. — Em Cartum? Tem certeza? De onde é o paciente?
— Está correto — replicou MacGregor. — O paciente diz que veio para cá do Iraque.
— Iraque? Por que essa doença viria de lá? Já testou com os anticorpos apropriados? — inquiriu o funcionário público.
— O teste está sendo realizado agora mesmo — disse o escocês ao africano.
— Quanto tempo vai levar?
— Uma hora. — Antes que você faça qualquer notificação, deixe-me passar aí para ver o caso — instruiu o funcionário público.
Para supervisionar o caso, foi o que o homem quis dizer. MacGregor fechou os olhos e apertou o telefone como se quisesse esganá-lo. Esse suposto médico era um indicado do governo, filho de um ministro, e o melhor que podia ser dito a respeito desse seu colega de profissão era que, sentado em seu gabinete suntuoso, ele pelo menos não punha em risco a vida de pacientes.
MacGregor teve de fazer força para manter a raiva sob Controle. Era assim em toda a África. Os governos sempre pareciam interessados em proteger sua indústria turística — algo do qual o Sudão carecia completamente, exceto por alguns escavações de antropólogos em busca do homem primitivo ao sul, perto da fronteira com a Etiópia. Mas era sempre assim que as coisas aconteciam no Continente Negro. Os departamentos de saúde negavam tudo, motivo pelo qual a AIDS estava tão descontrolada na África Central. Eles sempre negavam e negavam. Até quando continuariam fingindo? Até o percentual de mortos de suas populações alcançarem os dez por cento? Trinta? Cinquenta? Mas todos tinham medo de criticar os governos africanos e seus burocratas. Aqui era muito fácil ser chamado de racista. Assim, o melhor era ficar calado e deixar as pessoas mentirem.
— Doutor, tenho confiança em meu diagnóstico — persistiu MacGregor. — E tenho o dever profissional de...
— Seu dever pode esperar até que eu chegue aí — foi a resposta. MacGregor sabia que esse era simplesmente o estilo africano, e não havia motivo para lutar contra ele. Impossível vencer essa batalha. O departamento sudanês de saúde cancelaria seu visto numa questão de minutos, e então quem trataria de seus pacientes?
— Muito bem, doutor. Por favor, venha o mais rápido possível.
— Tenho algumas coisas para fazer, mas irei assim que puder. — Isso poderia significar um dia inteiro, e ambos sabiam disso. — O paciente está isolado?
— Todas as precauções foram tomadas — assegurou-lhe MacGregor.
— Você é um bom médico, Ian, e sei que posso confiar em você para providenciar nada sério aconteça. — A linha foi desligada. Ian mal recolocara o telefone no gancho quando o instrumento tocou novamente.
— Alô?
— Doutor, por favor, venha ao quarto 22 — disse-lhe a voz de uma enfermeira.
Estava lá em três minutos. Era Sohaila. Um auxiliar de enfermagem estava esvaziando um vomitório. Havia sangue nele. MacGregor lembrou que ela também chegara ali vinda do Iraque.
Meu Deus, pensou.
— Nenhum de vocês tem nada a temer.
As palavras eram um pouco reconfortantes, embora não tanto quanto os membros do Conselho Revolucionário teriam gostado. Os mulas iranianos provavelmente estavam dizendo a verdade, mas os coronéis e generais em torno da mesa tinham combatido o Irã como capitães e majores, e ninguém esquece seus inimigos de campo de batalha.
— Precisamos que vocês assumam o controle do exército do seu país — disse o mais graduado. — Como resultado da sua cooperação, serão mantidos em seus postos. Exigimos apenas que jurem sua lealdade ao seu novo governo em nome de Deus.
Todos os oficiais sabiam que sua situação não seria tão tranquila assim.
Seriam observados atentamente. Se pisassem em falso, seriam fuzilados. Mas não tinham mais opções, exceto talvez ser fuzilados naquela mesma tarde.
Execução sumária não era um procedimento incomum no Irã ou no Iraque, sendo uma forma eficaz de lidar com dissidentes, reais ou imaginários, em ambos os países.
Havia duas formas de encarar a situação; tudo dependia de que lado você se encontrava. Para o Irã, aquela era uma forma rápida, eficaz e definitiva de ajustar as coisas em seu favor. Para o lado dos iraquianos, aquilo era injusto como uma queda de helicóptero; apenas o tempo suficiente para o seu espírito gritar Não! antes que o choque abrupto apagasse a surpresa e a indignação.
Exceto que neste caso eles realmente tinham uma espécie de escolha. Morte certa agora, ou chance de morrer depois. Os generais remanescentes do Exército iraquiano trocaram olhares furtivos. Eles não estavam controlando o Exército de seu país. O Exército e os soldados estavam ao lado do povo ou dos oficiais de suas companhias. O povo estava satisfeito em ter comida farta pela primeira em quase uma década. Os oficiais de companhia estavam igualmente satisfeitos, vendo um novo dia nascer para seu país. O rompimento com o antigo regime estava completo. Era agora apenas uma lembrança ruim, e não havia como retornar a ele. Os homens na sala só poderiam restabelecer o controle através de seus ex-inimigos, os oficiais que estavam sentados do outro lado da mesa com os sorrisos serenos que acompanhavam a vitória e o fato de ter vidas em suas mãos como um homem comum teria dinheiro trocado. Na verdade, os generais não tinham nenhuma escolha.
O líder titular do conselho assentiu sua submissão, imitado segundos depois por todos os outros. Com esse gesto, a identidade do país desmanchou-se na História.
A partir daí, tudo se resumia a fazer algumas ligações telefônicas.
A única surpresa foi os eventos não terem sido exibidos ao vivo pela televisão iraquiana. Dessa vez, os postos de escuta em STORM TRACK e PALM BOWL foram deixados pura trás por analistas em outra parte. As câmeras de TV iraquianas estavam a postos e transmitiram as imagens via satélite para as emissoras, para transmissão posterior.
Os primeiros iranianos a atravessar a fronteira chegaram em unidades motorizadas percorrendo as estradas em silêncio, evitando transmissões por rádio. Era dia claro, e as imagens foram interceptadas por dois satélites KH-11
que transmitiram seus sinais para aeronaves de comunicação, sendo dali enviados para os pontos de recepção. Os mais próximos de Washington ficavam em Forte Belvoir.
— Alô — disse Ryan, levantando o telefone até sua orelha.
— Quem fala é Ben Goodley, presidente. Está acontecendo agora. Tropas iranianas estão cruzando a fronteira sem oposição que possamos ver.
— Alguma declaração?
— Nada ainda. Parece que querem estar com tudo sob controle primeiro.
Jack checou as horas.
— Certo, trataremos disso na reunião de amanhã de manhã. — Não havia motivo para arruinar seu sono. Havia pessoas que passariam a noite trabalhando por ele, disse Ryan a si próprio. Ele mesmo já fizera isso.
— Sim, senhor.
Ryan colocou o telefone no gancho e preparou-se para voltar a dormir.
Essa era uma habilidade presidencial que estava começando a dominar.
Enquanto adormecia, Ryan pensou que talvez conseguisse até aprender a jogar golfe durante uma crise... isso não.
Adequadamente, foi um dos pederastas. Ele vinha cuidando de um colega criminoso — esse, um assassino — e, a julgar pelos videoteipes, estava fazendo um bom trabalho, o que acelerara o processo.
Moudi tivera o cuidado de mandar os auxiliares de enfermagem supervisionarem rigorosamente os novos recrutas. Eles vinham tomando as precauções habituais, usando luvas, lavando-se cuidadosamente, mantendo o quarto limpo, limpando com o esfregão os fluidos. Esta última tarefa tornava-se cada vez mais difícil com a progressão do progresso da doença no primeiro grupo de cobaias expostas. Seus gemidos coletivos eram captados pelo microfone com clareza suficiente para que Moudi entendesse o que estava-se passando, particularmente com a ausência de analgésicos — uma violação das leis muçulmanas de piedade, que ele preferira ignorar. O segundo grupo de cobaias estava fazendo o que lhe fora mandado, mas não tinham recebido máscaras, e havia um motivo para isso.
O pederasta era um jovem, talvez no começo da casa dos vinte, e fora surpreendentemente atencioso com seu paciente. Se fora movido por piedade pela dor do assassino ou pela intenção de parecer merecedor de complacência, não fazia a menor diferença. Moudi aproximou a imagem da câmera. A pele do homem estava seca e enrubescida, seus movimentos lentos e doloridos. O médico pegou o telefone. Um minuto depois, um dos médicos militares entrou em quadro. Falou rapidamente com o pederasta e enfiou o termômetro em seu ouvido antes de sair da sala e se dirigir a um telefone de corredor.
— Cobaia Oito está com uma temperatura de trinta e nove ponto dois e reporta fadiga e dores nas extremidades. Seus olhos estão vermelhos e inchados — relatou bruscamente o médico. Era natural que os médicos não sentissem por qualquer uma dessas cobaias o mesmo grau de empatia que haviam nutrido pela irmã Jean Baptiste. Embora ela tivesse sido uma infiel, ao menos fora uma mulher virtuosa. Esse não era o caso de nenhum dos homens na sala, o que tornava as coisas mais fáceis para todo mundo.
— Obrigado.
Então era verdade, disse Moudi a si mesmo. A cepa Mayinga era realmente transmitida pelo ar. Para constatar se ela se transmitia plenamente seria preciso apenas esperar mais um pouco e ver se essa nova vítima morreria. Quando metade do segundo grupo exibisse os sintomas, eles seriam removidos para uma sala de tratamento específica, e as cobaias do primeiro grupo — todas sofrendo com o Ebola — seriam eliminadas medicamente.
O diretor ficaria satisfeito, pensou Moudi. O último passo no experimento fora tão bem-sucedido quanto os anteriores. Agora estavam cada vez mais convictos de que tinham nas mãos a arma mais poderosa já usada pelo homem.
O que é maravilhoso comentou o médico para si mesmo.
O voo era sempre mais fácil na volta. Astro de Cinema caminhou através do detector de metais, parou, deixou que a varinha mágica fosse manejada sobre seu corpo, resultando no constrangimento usual devido à sua caneta-tinteiro de ouro, e então caminhou até a sala de espera da primeira classe, sem sequer olhar para o policial que o teria detido imediatamente se fizesse a menor ideia de quem ele era. Mas ele nem imaginava quem Astro de Cinema era, e portanto não fez nada. Dentro de sua valise de viagem havia uma prancheta com capa de couro, mas ele ainda não a usara. O voo foi anunciado na hora certa. Astro de Cinema subiu a bordo e encontrou rápido sua poltrona na dianteira do 747. Só a metade dos lugares estava ocupada, e isso tornava as coisas muito convenientes. A aeronave mal havia decolado quando ele tirou sua prancheta e começou a registrar no bloco todas as coisas que ainda não arriscara colocar no papel. Como de praxe, sua memória fotográfica ajudou, e ele trabalhou por três horas sólidas até que, sobrevoando o Atlântico, sucumbiu à necessidade de dormir. Suspeitava de que precisaria do sono. Tinha razão.
29
Tribunal Lotado
Kealty sabia que aquele poderia ser seu último cartucho, mais uma vez usando em sua mente uma metáfora para armas de fogo. Ele nunca percebia a ironia, linha coisas mais importantes para fazer. Passara a noite anterior convocando seus últimos contatos na imprensa — aqueles em quem poderia confiar. Os outros ou tinham lhe virado as costas, ou pelo menos mantido uma distância discreta devido à incerteza. Mas não fora difícil obter a atenção da maioria. Eles tinham sido atraídos à reunião de duas horas de duração, começando a meia-noite, por algumas palavras e frases escolhidas cuidadosamente para excitar suas sensibilidades profissionais. Depois disso, tudo que Kealty precisara fazer fora estabelecer as regras. O encontro deveria ficar em segredo. Nada do que seria dito ali poderia ser usado como declarações. Os jornalistas concordaram, claro.
— É muito perturbador. O FBI submeteu todo o andar superior do Departamento a testes com o detector de mentira — disse-lhes. Aquilo era uma coisa sobre a qual tinham ouvido, mas que ainda não haviam conseguido confirmar. Isso contaria como confirmação. — Porém, o mais perturbador de tudo são as políticas que estamos vendo. Montar a defesa com esse tal de Bretano, um sujeito que cresceu dentro da indústria Militar! Ele diz que quer eliminar todas as garantias dentro do sistema de aquisições, que quer extinguir a supervisão do congresso. E George Winston, o que ele quer fazer? Afundar o sistema de impostos, torná-lo mais condescendente, liberar completamente os ganhos de capital... e porquê? Para jogar o fardo dos impostos todo nas costas das classes médias e trabalhadoras e dar passe livre para os figurões! Depois de uma pausa, Kealty prosseguiu: — Nunca tomei esse Ryan por um profissional, por um tipo de homem competente para ocupar a presidência, mas devo confessar que eu não esperava isso. Ele é um reacionário, um conservador radical... não tenho certeza do que vocês deveriam chamá-lo.
— O senhor tem certeza sobre aquilo no Estado? — indagou o New York Times. Kealty assentiu.
— Positivo. Cem por cento. Que há com vocês, que não estão fazendo seu trabalho direito? No meio de uma crise no Oriente Médio, Ryan está fazendo o FBI incomodar homens mais importantes, tentando acusá-los de roubar uma carta que nunca existiu.
O chefe de gabinete de Kealty acrescentou, parecendo falar fora de sua deixa: — E agora temos o Washington Post prestes a veicular um material que vai canonizar Ryan.
— Espere um minuto — disse o repórter do Post, endireitando-se na cadeira.
— Isso é coisa de Bob Holtzman, não minha. Eu disse ao meu redator-chefe que essa não era uma boa ideia.
— Quem é o informante? — indagou Kealty.
— Não faço a menor ideia. Bob jamais revelaria. Você sabe disso.
— E o que Ryan está fazendo na CIA? Ele quer triplicar a Diretoria de Operações: os espiões. É exatamente do que o país precisa, não é mesmo? O que Ryan está fazendo? — perguntou Kealty retoricamente. — Está fortalecendo a defesa. Está reescrevendo a legislação do imposto de renda para beneficiar os gatos gordos. E está levando a CIA de volta aos tempos da Guerra Fria.
Estamos de volta aos anos cinquenta...por quê? — inquiriu Kealty. — Por que ele está fazendo tudo isso? No que está pensando? Sou o único nesta cidade fazendo perguntas? Quando vocês vão começar a fazer o seu trabalho? Ele está tentando sufocar o Congresso, e está conseguindo. E onde está a mídia? Quem está protegendo as pessoas lá fora?
— Do que está falando, Ed? — perguntou o Times.
O gesto de frustração foi realizado com perícia absoluta.
— Estou de pé sobre minha própria sepultura política. Não tenho nada a ganhar com isto, mas não posso ficar parado sem fazer nada. Mesmo que tenham a força de nosso governo por trás deles, simplesmente não posso deixar que Ryan e seus comparsas concentrem todo o poder numas poucas mãos, que aumentem sua capacidade em nos espionar, que moldem o sistema de impostos de forma a beneficiar as pessoas ricas que jamais pagaram o que é justo, que recompensem a indústria bélica... Que virá em seguida? O fim dos direitos civis? Ele está mandando a mulher trabalhar todos os dias de helicóptero, e vocês nem comentaram que isso jamais aconteceu antes. Estamos vivendo uma presidência imperial com a qual nem Lyndon Johnson sonhou, sem um Congresso para fazer alguma coisa a respeito. Vocês sabem quem temos no poder? — Kealty deu-lhes um momento. — Rei Jack I. Alguém devia estar preocupado com isso. Por que é que vocês e seus colegas não estão?
— Que sabe sobre o artigo de Holtzman? — quis saber o Boston Globe.
— Parece que ele tem um histórico animado na CIA. Ele matou pessoas.
— É um James Bond de araque — disse o chefe de gabinete de Kealty bem na deixa. O jornalista do Post precisou defender a honra de sua publicação: — Holtzman não diz isso. Se você está se referindo aos terroristas que...
— Não, isso não. Holztman vai escrever sobre o caso em Moscou. Nem foi Ryan quem montou aquilo. Foi o juiz Arthur Moore, quando era diretor da CIA.
Ryan foi o homem de campo. De qualquer modo, a coisa é feia. Aquilo interferiu no funcionamento interno da antiga União Soviética, e nunca ocorreu a ninguém que talvez isso não fosse uma grande ideia... Droga, ferrar o governo de um país com dez mil ogivas apontadas para nós... e para quê? Para resgatar o chefão deles da prisão e assim podermos desmantelar um anel de espionagem dentro da CIA. Aposto que ele não disse isso a Holtzman, disse?
— Não li a matéria — admitiu o jornalista do Post. — Só ouvi algumas coisas.
Aquilo quase valeu um sorriso. As fontes de Kealty dentro do jornal eram melhores que as do principal jornalista político do veículo. O repórter do Post prosseguiu: — Certo, você diz que Ryan matou pessoas como se fosse James Bond.
Sustente isso — disse numa voz monótona.
— Lembra, há quatro anos, quando aquelas bombas na Colômbia mandaram para os ares alguns membros do cartel das drogas? — Kealty esperou que assentissem. — Foi uma operação da CIA. Ryan foi até a Colômbia... e esse foi outro ato de guerra, pessoal. Com esse, tenho notícia de dois.
Era divertido para Kealty ver que Ryan estava cavando a própria cova com tanta facilidade. O projeto PLANO AZUL dentro da CIA já estava cortando cabeças; muitos membros principais do Diretório de Informações estavam enfrentando aposentadoria compulsória ou redução de seus impérios burocráticos, e a maioria gostava de caminhar pelos corredores do poder. Era fácil para eles pensar que eram vitais para a segurança de seu país, e pensando assim, sentiam o ímpeto de fazer alguma coisa. Mais que isso. Ryan pisara em muitos calos burocráticos em Langley, e agora era a hora da Vingança. O fato de que Ryan agora ocupava um cargo mais elevado não fora empecilho; enfim, as fontes tinham falado com o ex-vice dos Estados Unidos, talvez até com o presidente verdadeiro. Além disso, tinham falado com Kealty, e não com a mídia, o que configuraria um vazamento de informações vitais para a segurança nacional, sendo, portanto, contra a lei.
— Quanto você está certo sobre isso? — indagou o Globe.
— Tenho datas. Lembram quando o almirante James Greer morreu? Ele foi o mentor de Ryan. Ele provavelmente maquinou a operação em seu leito de morte. Ryan não compareceu ao funeral. Ele estava na Colômbia na época. Isso é um fato, e vocês podem checar — insistiu Kealty. — Provavelmente foi o motivo que levou James Cutter a cometer suicídio...
— Pensei que aquilo tinha sido um acidente — disse o Times. — Ele estava fazendo cooper e...
— E simplesmente ficou na frente de um ônibus? Olhe, não estou dizendo que Cutter foi assassinado. Estou dizendo que ele estava implicado na operação ilegal que Ryan realizava, e não teve coragem de dançar conforme a música.
Isso concedeu a Jack Ryan a oportunidade de cobrir seu rastro.
Kealty concluiu: — Sabem, eu subestimei esse tal Ryan. Ele é o maior agente que esta cidade conheceu desde Allen Dulles, talvez desde Bill Donovan... mas a época para esse tipo de coisa já passou. Não precisamos de uma CIA com seu quadro de espiões triplicado. Não precisamos de mais dólares para a defesa. Não precisamos replanejar a legislação do imposto de renda para proteger os milionários que estão bancando Ryan. Com toda certeza, não precisamos de um presidente que acha que a década de cinquenta foi maravilhosa. Não podemos permitir que ele continue fazendo essas coisas com nosso país. Eu não sei... — Outro gesto de frustração. — Talvez eu deva continuar sozinho nesta história.
Eu... Eu sei que vocês não esquecem aquele tipo de coisa... talvez eu não... talvez eu seja o cara certo para isto... Fiz algumas coisas horríveis. Traí minha esposa. O povo americano merece alguém melhor que eu para fazer o que é certo... mas sou tudo que o povo tem neste momento, e não posso... não posso faltar com a confiança que o povo depositou em mim, custe o que custar. Ryan não é o presidente dos Estados Unidos. Ele sabe disso. Por que outro motivo estaria querendo mudar tantas coisas tão depressa? Por que está tentando induzir políticos importantes a mentir? Por que está criticando os direitos de aborto? Por que está deturpando a legislação do imposto de renda através de Winston, esse plutocrata? Ele está tentando comprar o que não é dele por direito. Ele vai continuar sufocando o Congresso até que os gatos gordos que o apoiam tentem elegê-lo rei ou alguma coisa assim. Quem está representando o povo neste momento?
Depois de alguns segundos, o Globe respondeu: — Simplesmente não o vejo assim, Ed. A política de Ryan é bem voltada para a direita, mas ele parece tremendamente sincero.
— Qual é a primeira regra da política? — perguntou o Times com uma risadinha. Então prosseguiu: — Eu lhe digo uma coisa: se essa história sobre a Rússia e a Colômbia for verdade... boa! Isso de ficar metendo o nariz no governo dos outros é uma política que devia ter sido esquecida na década de cinquenta. Não devíamos fazer mais isso; com toda certeza não nesse nível.
— Vocês nunca souberam disso por nosso intermédio e não posso revelar nossa fonte em Langley. — O chefe de gabinete distribuiu fitas cassete. — Mas aqui estão fatos verificáveis que confirmarão tudo que dissemos.
— Vai levar alguns dias — disse o San Francisco Examiner, pegando a fita e olhando para os colegas. A corrida estava começando. Cada jornalista na sala iria querer ser o primeiro a dar o furo. Esse processo começaria quando tocassem as fitas em seus carros durante o trajeto para suas casas, e aquele que morasse mais perto tinha vantagem.
— Cavalheiros, tudo que posso dizer é: esta é uma matéria importante, e vocês precisam dedicar a ela sua melhor conduta profissional. Não é por mim — disse Kealty. — Gostaria de poder escolher outra pessoa para fazer isso, alguém com uma ficha mais limpa... mas não posso. Não é por mim. É pelo bem do país, e isso significa que vocês precisarão jogar o mais limpo que puderem.
— Nós iremos, Ed — prometeu o Times. Ele olhou as horas. Quase três da manhã, Precisaria trabalhar o dia inteiro até o fechamento às dez da noite. Até então teria de verificar e reverificar as informações, e conversar com cada um de seus editores assistentes para garantir que conseguiria a primeira página, acima da dobra. Os jornais da Costa Oeste teriam a vantagem — mais três horas devido aos seus fusos horários — mas ele sabia como chegar na frente dos outros. As xícaras de café foram pousadas na mesa e os jornalistas se levantaram, enfiando seus minigravadores profissionais nos bolsos dos paletó, cada um deles segurando sua fita cassete na mão esquerda enquanto pescava as chaves do carro com a direita.
— Fale comigo, Ben — ordenou Jack cerca de quatro horas depois.
— Ainda nada na TV iraquiana, mas captamos material enviado por micro-ondas para transmissão posterior.
Goodley calou-se enquanto Ryan ocupava sua poltrona atrás da mesa.
Prosseguiu:
— A qualidade é ruim demais para mostrar a você, mas temos as faixas de áudio. Em todo caso, eles passaram o dia inteiro consolidando poder. Amanhã irão a público. O boca a boca já deve estar solto pelas ruas, e o material oficial será realmente endereçado ao resto do mundo.
— Espertos — observou o presidente.
— Concordo — assentiu Goodley. — Mais uma zebra. O premiê do Turcomenistão bateu as botas, supostamente num acidente de carro. Golovko telefonou para me contar, depois das cinco, acho. Ele queria que soubéssemos logo. Não anda nada feliz. Acha que os acontecimentos no Iraque e no Turcomenistão são atos da mesma peça.
— Temos alguma coisa que sustente isso? — indagou Ryan, amarrando a gravata. Era uma pergunta estúpida.
— Está brincando, Patrão? Não temos porra nenhuma, nem mesmo boatos.
Por um segundo, Jack manteve os olhos voltados para o tampo de sua mesa.
— Sabe, considerando todas as coisas que as pessoas falam sobre o quanto a CIA é mentirosa...
— Ei, eu trabalho aqui, lembra? Graças a Deus pela CNN. As boas novas são que os russos estão nos contando pelo menos parte do que sabem.
— Assustados — observou o presidente.
— Muito — concordou o agente do serviço nacional de informações.
— Certo, temos o Irã ocupando o Iraque. Temos um líder morto no Turcomenistão. Análise? — indagou Jack.
— Não vou contradizer Golovko desta vez. Com toda certeza, ele tem agentes no ml, e parece que está na mesma situação que a gente. Pode assistir e se preocupar, mas u dispõe de nenhuma possibilidade operacional. Talvez seja uma coincidência, mas os militares não podem se dar ao luxo de acreditar no acaso. E posso garantir que Sergey não acredita. Ele acha que tudo faz parte de um complô. Creio que há uma possibilidade concreta de que ele esteja certo.
Vou conversar com Vasco a esse respeito, também. Tudo o ele previu está tomando forma, e está ficando um pouco assustador. Teremos notícias dos sauditas hoje.
E de Israel não muito depois, pensou Ryan.
— China? — foi a pergunta seguinte do presidente. Talvez a situação do outro lado do mundo estivesse um pouco melhor. Não estava.
— Exercício de grande escala. Combatentes de superfície e submarinos.
Nada sério ainda, mas os satélites constataram muita movimentação nas bases dos caças...
— Espere um pouco...
— Sim senhor. Se é um exercício planejado, por que eles não estavam preparados para ele? Terei uma reunião a esse respeito no Pentágono às oito e meia. O embaixador conversou um pouco com um homem do Ministério das Relações Exteriores. Segundo ele, não é nada de mais. Parece que o ministro nem sabia que ia acontecer. Treinamento de rotina.
— Treinamento de rotina o cacete.
— Talvez. Taiwan ainda está reagindo com discrição, mas eles mandarão alguns navios lá hoje, quando for noite aqui. Estamos enviando agentes para a área. Os chineses de Taiwan estão jogando às claras, cooperando plenamente com nossos observadores em seus postos. Logo irão nos perguntar o que faremos se A ou B acontecer. Precisamos pensar sobre isso. O Pentágono disse que a República Popular da China não possui os recursos necessários para realizar uma invasão, mas foi o mesmo que disseram em 96. A Força Aérea chinesa está mais forte agora do que era. Mesmo assim, acho que tudo isso não dará em nada. Talvez seja mesmo um exercício. Talvez queiram ver como nós... ou melhor, como você reage.
— O que Adler acha?
— Ele está dizendo para ignorar. Acho que tem razão. Taiwan está agindo com discrição. Acho que devemos imitá-los. Destacaremos embarcações, especialmente submarinos, mas iremos mantê-los fora de vista. O comando do Pacífico parece ter tudo sob controle. Podemos deixar que ele conduza a operação daqui em diante?
Ryan assentiu.
— Através do secretário de Defesa, sim. Europa?
— Tudo calmo. O mesmo no nosso hemisfério. O mesmo na África. Sabe, se a China está apenas sendo um pé no saco, como sempre, então o problema real está no Golfo Pérsico... e a verdade da questão é que já estivemos lá, senhor. Demos aos sauditas nossa palavra de que não iremos abandoná-los.
Manter essa palavra será a garantia de que eles estarão ao nosso lado quando precisarmos, e fará o outro lado pensar duas vezes antes de avançar com seus planos. Eu não estou gostando do aparecimento da União Republicana do Islã, mas acho que podemos lidar com isso. O Irã está fundamentalmente instável; o povo daquele país quer liberdade, e quando sentirem o gosto dela, o país irá mudar. Podemos dar conta da situação, senhor.
Ryan sorriu e serviu-se de uma xícara de café descafeinado.
— Está ficando muito confiante, Dr. Goodley.
— Você me paga para pensar. Faz parte do trabalho dizer-lhe o que está acontecendo entre as minhas orelhas, Patrão.
— Certo, prossiga com o seu trabalho e me mantenha informado. Preciso encontrar uma forma de reconstituir a Suprema Corte hoje.
Ryan bebericou seu café e esperou Arnie entrar. Até que este trabalho não era difícil, não é mesmo? Não quando há uma boa equipe trabalhando para você.
— A alma do negócio é a sedução — disse Clark aos rostos de olhos reluzentes no auditório, rangendo os dentes ao perceber o sorriso de Ding, no fundo da sala.
O filme de treinamento que tinham acabado de assistir contara a história de seis canos importantes. Havia apenas cinco películas do filme, e esta já estava sendo rebobinada para ser levada de volta ao cofre. Ele mesmo trabalhara em dois dos casos. Um dos agentes fora executado no porão da praça Dzerjinski número 2 depois de ser delatado por um espião infiltrado da KGB em Langley.
O outro tinha agora uma fazenda a norte de New Hampshire, provavelmente ainda sonhando em voltar para casa — mas a Rússia ainda era a Rússia, e a forma estreita como sua cultura via a alta traição não fora inventada pelo regime anterior. Essas pessoas seriam órfãs para sempre... Clark virou a página c prosseguiu com suas anotações.
— Vocês irão procurar pessoas com problemas. Irão simpatizar com esses problemas. As pessoas com quem irão trabalhar não são perfeitas. Todas elas têm segredos. Alguns desses segredos irão compartilhar com vocês. Não precisam amá-las, mas precisam ser leais a elas.
Depois de uma breve pausa, prosseguiu: — Que quero dizer com sedução? Cada um nesta sala já fez isso uma ou duas vezes, certo? Você escuta mais do que fala. Você concorda. Isso mesmo, você é mais inteligente do que o seu chefe; sei como ele é, nós temos o mesmo tipo de palerma no nosso governo. Também já tive um chefe assim. E difícil ser honesto nesse tipo de governo, não é mesmo? Você tem razão, honra é realmente importante. Quando eles dizem isso se sabe que eles querem dinheiro. Tudo bem. Eles nunca esperam tanto quanto pedem. Nosso orçamento permite pagar o quanto eles quiserem... mas o importante é fazer com que mordam a isca. Depois que perderem a virgindade, pessoal, não poderão reavê-la.
Os seus agentes, as pessoas que recrutarem, serão viciados no que fazem.
Ser espião é divertido. Eles sentirão culpa. Eles beberão. Alguns procurarão seus padres; isso já aconteceu comigo. Alguns quebrarão as regras pela primeira vez e irão concluir que elas não são importantes. Esses começarão a passar cantadas em todas as mulheres que virem pela frente e a correr todo tipo de riscos.
Lidar com agentes é uma arte. Vocês são mãe, pai, padre e professor deles.
Vocês precisam acalmá-los. Precisam aconselhá-los a cuidar de suas famílias, a não dar as costas para o inimigo, especialmente no caso dos recrutas com ideologias boas. Esses aí muitas vezes não medem os riscos. Muito desses agentes se autodestroem. Eles podem se imaginar cruzados. E poucos cruzados morrem de velhice.
Os agentes que querem ganhar dinheiro costumam ser os mais confiáveis.
Não correm muitos riscos. Cedo ou tarde, eles se aposentam para gozar a boa vida. A coisa positiva no caso dos agentes que trabalham por dinheiro é que eles querem viver para gastá-lo. Por outro lado, quando você quiser que algo seja feito às pressas, quando precisar que alguém corra um risco... bem, esteja preparado para receber seu pedido de demissão no dia seguinte. Eles não demoram a achar que já fizeram muito, e a exigir sair Que estou dizendo a vocês? Que não há regras simples e rápidas neste negócio. Vocês tem que usar a cabeça. Precisam conhecer pessoas, saber quem elas são, como agem, como pensam. Precisam sentir uma empatia genuína por seus agentes, gostem deles ou não. Vocês não gostarão da maioria. Viram o filme. Cada um desses serviços foi real. Três desses casos terminaram com a morte de um agente. Um deles terminou com a morte de um oficial. Lembrem disso. Fez uma pausa e concluiu: — Muito bem. Vamos fazer um intervalo. A próxima aula será com o Sr.
Revell. Clark reuniu suas anotações e caminhou até o fundo da sala enquanto os treinandos absorviam as lições em silêncio.
— Puxa, Sr. C, quer dizer que a gente pode seduzir? — perguntou Ding.
— Apenas quando você é pago para isso, Domingo.
Todos no grupo dois estavam doentes agora. Era como se algum tipo de dispositivo de tempo tivesse sido acionado dentro de seus corpos. Num espaço de dez horas, todos tinham reclamado de febre e dores — sintomas da gripe.
Alguns sabiam, ou decerto suspeitavam, o que havia acontecido com eles.
Outros continuaram a ajudar os indivíduos mais doentes aos quais tinham sido designados. Alguns chamaram os médicos militares para se queixar, ou simplesmente sentaram-se no chão da sala de tratamento e não fizeram nada além de saborear sua própria doença, temendo que ela se tornasse aquilo que estavam vendo. Mais uma vez, as condições do seu aprisionamento e dieta anterior conspiraram contra eles. Os famintos e debilitados são controlados com mais facilidade que os saudáveis e bem nutridos.
O grupo original estava se deteriorando na velocidade esperada. Sua dor estava cada vez pior, ao ponto de evitarem se mexer em suas camas, porque sentiam mais dor movendo-se do que parados. Um parecia próximo à morte, e Moudi imaginou se, como ocorrera com Benedict Mkusa, o coração desta vítima não seria anormalmente vulnerável à cepa Ebola Mayinga. Será que este subtipo da doença tinha uma afinidade com o tecido cardíaco? Essa seria uma questão teórica interessante, mas eles definitivamente tinham passado da fase teórica.
— Não ganhamos nada continuando nesta fase, Moudi — observou o diretor, parado ao lado do homem mais jovem e assistindo às imagens nos monitores de TV. — Próximo passo.
— Como quiser.
O Dr. Moudi pegou o telefone e falou durante um ou dois minutos.
Foram necessários 15 minutos para os preparativos. Então, os auxiliares de enfermagem entraram em quadro. Todos os nove membros do segundo grupo foram tirados da sala e conduzidos através de um corredor até uma segunda sala de tratamento, maior Ali, num conjunto diferente de monitores, os médicos viram cada um dos membros d segundo grupo ser acomodado numa cama.
Todos receberam um medicamento; em poucos minutos estavam dormindo. Em seguida, os médicos retornaram para o grupo originai Metade dos membros do grupo estavam acordados; os outros estavam atordoados de dor, incapazes de resistir. Os acordados foram mortos primeiro, com injeções de Dilaudid, um narcótico sintético muito poderoso, injetado na veia mais conveniente. As execuções levaram alguns minutos e foram, em retrospecto, misericordiosas. Os corpos foram colocados um a um em maças de rodas e transportados até o incinerador. Os colchões e as roupas de cama foram empilhados para serem queimados, deixando nuas as armações de metal das camas. Essas, juntamente com o restante da sala, foram borrifadas com produtos químicos cáusticos. A sala seria mantida fechada por vários dias, depois borrifada novamente. Então a atenção coletiva da equipe seria transferida para o Grupo Dois, os nove criminosos condenados que tinham provado — ou assim parecia — que o Ebola Zaire Mayinga podia ser transmitido pelo ar.
O oficial do Departamento de Saúde levou um dia inteiro para chegar. Fora retardado — assim suspeitava o Dr. MacGregor — por uma pilha de papéis em sua mesa, um bom jantar e uma noite com a mulher que apimentava sua vida cotidiana. E provavelmente a papelada ainda estava esperando em sua mesa, disse o escocês a si mesmo.
Ao menos ele estava ciente das precauções adequadas. O médico do governo não chegou exatamente a entrar no quarto; deu um passo relutante para a frente de modo a permitir que a porta pudesse ser fechada, mas não se aproximou mais do que isso, ficando parado ali, a cabeça inclinada para a frente, os olhos franzidos com o esforço, tentando observar o paciente a dois metros de distância. As luzes na sala tinham sido reduzidas puni não incomodar os olhos de Saleh. Apesar disso, a descoloração de sua pele era evidente. As duas unidades de sangue “O” e o frasco de morfina diziam o resto, juntamente tom o prontuário, agora nas mãos enluvadas e trêmulas do funcionário público.
— Os testes de anticorpos? — perguntou em voz baixa, tentando recompor sua dignidade.
— Deram positivo — disse MacGregor.
Ninguém sabia há quanto tempo o Ebola existia, quantas aldeias no meio da selva africana tinham sido exterminadas cem anos antes, mas a primeira epidemia documentada de Ebola alastrara-se pela equipe do hospital com velocidade assustadora. Os funcionários que não tinham sido contaminados fugiram do hospital em pânico. Perversamente, isso ajudara a findar a epidemia com mais rapidez do que teria acontecido se o tratamento contínuo houvesse sido mantido — as vítimas morreram, e ninguém chegou perto delas o bastante para contrair o vírus. Os médicos africanos agora sabiam quais precauções tomar. Todos trabalhavam mascarados e enluvados, e os procedimentos de desinfecção eram realizados impiedosamente. Por mais desleixados que fossem os profissionais de saúde africanos, esta era uma lição que eles agora sabiam de cor; com esse sentimento de segurança estabelecido, eles faziam o melhor que podiam, como seus colegas do resto do mundo.
No caso deste paciente, todos os tratamentos seriam inúteis. O prontuário também mostrava isso.
— Do Iraque? — indagou o funcionário público.
O Dr. MacGregor assentiu.
— Foi o que ele me disse.
— Preciso checar com as autoridades responsáveis.
— Doutor, tenho um relatório para fazer — insistiu MacGregor. — Possivelmente temos nas mãos um caso de epidemia e...
— Não. — O funcionário público balançou a cabeça. — Não até descobrirmos mais. Quando fizermos o relatório, se fizermos, precisaremos reunir todas as informações necessárias para que o alerta seja útil.
— Mas...
— Mas isto é responsabilidade minha, e é meu dever providenciar para que a responsabilidade seja executada a contento. — Ele apontou para o prontuário do paciente. Sua mão não estava tremendo agora que estabelecera seu poder sobre o caso. — Ele tem família? Quem pode nos dizer mais a respeito dele?
— Não sei.
— Deixe-me checar isso — disse o médico do governo. — Mande seu pessoal fazer cópias de todos os registros e mandá-las para mim imediatamente.
Tendo dado uma ordem dura, o representante do Departamento de Saúde sentiu ter cumprido seu dever para com sua profissão e seu país.
MacGregor assentiu, submisso. Eram momentos assim que o faziam odiar a África. Seu país chegara aqui havia mais de um século. Um escocês chamado Gordon viera ao Sudão, apaixonara-se pelo país — será que o homem era louco?
— e morrera nesta mesma cidade havia 120 anos. Depois disso, o Sudão tornara-se um protetorado britânico. Um regimento de infantaria foi criado neste país, e esse regimento lutou bem e bravamente sob as ordens dos oficiais britânicos.
Então, o Sudão retornou para os sudaneses — rápido demais, sem o tempo e o dinheiro necessários para criar a infraestrutura institucional que transformaria uma região tribal em nação viável. A mesma história se repetiu da mesma maneira por todo o continente, e o povo da África ainda estava pagando o preço por esse desserviço. Outra consequência era o fato de que os europeus não podiam falar em voz alta — exceto uns com os outros, e às vezes nem isso — sem o risco de ser chamados de racistas. Mas se ele fosse um racista, por que então teria vindo para cá?
— Você irá tê-los em duas horas.
— Muito bem.
O funcionário público caminhou até a porta. Ali a enfermeira-chefe da unidade recebeu-o para levá-lo até a área de desinfecção. Agora seria a vez do funcionário público seguir ordens como uma criança sob o olhar de uma mãe severa.
Pat Martin chegou com uma maleta cheia. Dela, retirou 14 pastas, dispondo-as sobre a mesa em ordem alfabética. As pastas estavam rotuladas A a M, porque o presidente Ryan pedira significativamente para não ser informado sobre os nomes verdadeiros daquelas pessoas.
— Sabe, eu me sentiria muito melhor se o senhor não tivesse me dado todo esse poder — confessou Martin sem olhar para cima.
— Como assim? — perguntou Jack.
— Sou apenas um promotor público. Um muito bom, claro, e agora dirijo a Divisão Criminal, e isso me agrada, mas eu...
— Como acha que eu me sinto? — inquiriu Ryan, e então abaixou a voz. — Ninguém desde Washington teve uma responsabilidade dessas nas mãos, e você acha que eu sei o que devo fazer? Merda, não sou nem advogado para entender toda essa coisa sem uma cartilha.
Martin olhou para ele com um meio sorriso.
— Certo, mereci isso.
Ryan tinha estabelecido o critério. À sua frente estava uma seleção dos principais juízes em atividade nos Estados Unidos. Cada uma das 14 pastas trazia o histórico profissional de um juiz da Corte de Apelação dos Estados Unidos, indo desde um em Boston até outro em Seattle. O presidente dissera a Martin para mandar seu pessoal selecionar juízes com pelo menos dez anos de experiência, com não menos de cinquenta veredictos importantes (que se destacassem das questões rotineiras como decidir que lado ganhava um caso de responsabilidade legal). Além disso, nenhum desses veredictos deveria ter ido desaprovado pela Suprema Corte, ou, se uma ou duas tivessem sido desaprovadas, deveriam ter sido justificadas posteriormente por uma autoridade superior em Washington.
— Esta é uma turma e tanto — disse Martin.
— Pena de morte?
— A Constituição é bem clara quanto a isso. Lembre da Quinta Emenda. — Martin recitou-a de cabeça: — Nenhuma pessoa deve ter sua vida ou liberdade colocada em risco duas vezes pela mesma acusação; nem deve ser compelida em qualquer caso criminoso ser testemunha contra si mesma, nem privada de vida, liberdade ou propriedade por indevido processo da lei. Portanto, com o devido processo, pode-se tirar a vida de uma pessoa, mas você só pode tentar isso uma vez. Uma Corte estabeleceu o critério legal disso em diversos casos nas décadas de setenta e oitenta: — julgamento de culpa se finda por julgamento de pena, com a natureza da pena dependendo de circunstâncias especiais .
Todos esses juízes apoiaram essa regra... com umas poucas exceções. Da quinta ou a pena num caso do Mississippi tomando por base incompetência mental. A injunção foi boa, e embora o crime tenha sido bem violento, a Suprema Corte confirmou veredicto sem comentários ou audições. Senhor, o problema com o sistema é um que ninguém pode realmente consertar. É apenas a natureza da lei.
Vários princípios legais 10 baseados em veredictos de casos incomuns. Há um ditado que reza que os casos forçam a lei a ser falha. Como aquele caso na Inglaterra, lembra? Dois meninos mataram um garoto mais novo. Que diabo um juiz deve fazer quando os acusados (definitivamente culpados de assassinato brutal, mas têm apenas oito anos de idade? O que o juiz pode fazer é rezar para essa batata quente cair no colo de algum colega. De algum modo, todos tentamos formar uma doutrina jurídica coesa a partir daí. Não é totalmente possível, mas fazemos do mesmo modo.
— Estou vendo que escolheu os durões, Pat. Escolheu os justos? — indagou o presidente. — Lembra do que eu disse há um minuto? Que não gosto deste tipo de poder? Eu não ousaria escolher quem não fosse justo. Por exemplo, o “E”.
Ele reverteu uma condenação que um dos meus melhores homens conseguiu tendo por base uma tecnicalidade. uma questão de admissibilidade... e quando fez isso, todos nós ficamos putos da vida. O acusado era culpado como o diabo, ninguém duvidava disso. Mas o juiz... mas “E” analisou os argumentos e provavelmente tomou a decisão certa, e ela hoje faz parte das linhas de orientação do FBI.
Jack olhou para as pastas. Ele teria uma semana cheia de leituras. Isto, como Arnie dissera-lhe alguns dias antes, seria seu ato mais importante como presidente. Nenhum executivo-chefe desde Washington enfrentara a necessidade de indicar uma Suprema Corte inteira; e mesmo o caso de Washington fora numa época em que o consenso nacional sobre a lei era mais firme do que o existente hoje na América. Naquela época punição cruel e incomum seria condenar alguém ao ecúleo ou à fogueira — as duas coisas tinham sido usadas na América pré-revolucionária —, mas nos últimos anos isso significava ausência de TV a cabo e negação de relações sexuais, ou simplesmente superpopulação carcerária. Se as prisões estão cheias, por que não libertar logo os criminosos perigosos para não ser cruel com eles? pensou Ryan.
Agora ele tinha o poder de mudar isso. Tudo que precisava fazer era escolher juízes que tivessem sua mesma visão inclemente do crime, visão que ele adquirira ouvindo os desabafos ocasionais de seu pai sobre um crime particularmente vil, ou sobre algum juiz de mente estreita que jamais vira uma cena de crime, e que portanto jamais sabia realmente com o que estava lidando.
E para Ryan havia o elemento pessoal. Ele fora alvo de uma tentativa de assassinato, assim como sua esposa e filhos. Ryan sabia com o que estava lidando. Sentia-se indignado com o fato de que havia pessoas que podiam tirar uma vida com a mesma facilidade com que compravam doces na esquina, que atiravam nos outros como se fossem patos em galerias de tiros, e cujas ações exigiam punição. Lembrava de ter fitado os olhos de Sean Miller mais de uma vez e não visto nada, absolutamente nada. Nenhuma humanidade, nenhuma empatia, nenhum sentimento, nem mesmo ódio. Apenas um homem que se distanciara tanto da natureza humana que não tinha como retornar para ela.
Ryan fechou os olhos. Lembrou o momento em que estava segurando uma pistola Browning carregada, o sangue fervendo em suas veias mas suas mãos frias como gelo, o momento em que poderia ter posto fim à vida do homem que quisera tanto pôr fim à sua — e à de Cathy, Sally, e do pequeno Jack, ainda no ventre da mãe. O momento em que o fitara nos olhos e finalmente vira o medo, irrompendo através de sua casca de desumanidade... mas quantas vezes agradecera a um Deus misericordioso por ter esquecido de ter destravado o cão da arma? Não fosse por isso, ele o teria matado. Jack quisera fazer isso mais do que qualquer outra coisa em sua vida, e podia lembrar de ter apertado o gatilho, apenas para ficar surpreso quando ele não se moveu... e então o momento passou. Mas Jack lembrava de ter matado. O terrorista em Londres. Aquele no barco. O cozinheiro no submarino. Certamente matara outros — naquela noite horrível na Colômbia que lhe causara pesadelos por tantos anos. Mas o caso de Sean Miller fora diferente. No caso de Miller matá-lo não tinha sido uma necessidade. Para Jack tinha sido uma espécie de justiça; Miller estava à sua frente, e Jack era a Lei, e por Deus, como ele quisera tirar aquela vida inútil!
Mas ele não a tirara. A Lei que pusera fim à vida daquele terrorista e de seus colegas fora fria e imparcial... como devia ser a lei. Era por essa razão que Jack precisava selecionar as melhores pessoas para repovoar a corte, porque as decisões que teriam de tomar não diriam respeito a um homem enfurecido tentando vingar e proteger a família. A lei, afinal, era para todos, e portanto não podia dizer respeito a decisões pessoais. Esta coisa que as pessoas chamavam de civilização dizia respeito a alguma coisa superior à mera paixão de um homem. Precisava ser assim. O dever de Jack era garantir que a lei fosse justa, e a forma de fazer isso seria escolhendo as pessoas certas.
— Sim — disse Martin, lendo o rosto do presidente. — Uma tremenda responsabilidade, não é mesmo?
— Espere um pouco. — Jack se levantou e caminhou até a porta para a sala de secretariado. — Qual de vocês fuma? — perguntou.
— Eu — disse Ellen Sumter. Tinha a idade de Jack, e provavelmente estava tentando largar o vício, como todos os fumantes dessa idade ao menos alegavam. Sem nenhuma pergunta, entregou ao presidente um Virgínia Slim — o mesmo que a tripulante do avião dera-lhe, percebeu Jack — e um isqueiro a gás.
O presidente balançou a cabeça em sinal de agradecimento e retornou ao escritório, acendendo o cigarro. Antes que pudesse fechar a porta, a Sra. Sumter correu para acompanhá-lo com um isqueiro tirado de i gaveta.
Sentando-se, Ryan deu uma tragada longa, olhos fixos no tapete ornamentado com o Selo do presidente dos Estados Unidos, embora estivesse parcialmente coberto com a mobília. Perguntou em tom calmo: — Mas quem foi que decidiu que um homem só deveria ter tanto poder? O que eu estou fazendo aqui...
— Sim, senhor — disse Martin. — E mais ou menos como fez James Madison, não é? Escolher pessoas que decidirão o que a Constituição realmente significa.
Todos estão no final da casa dos quarenta ou dos cinquenta, e portanto ficarão aqui por um bom tempo. Anime-se. Pelo menos para você isto não é um jogo.
Pelo menos o senhor está agindo da forma certa. Não está escolhendo mulheres porque são mulheres, ou negros porque são negros. Eu lhe dei uma boa mistura, diferentes cores e banheiros, mas todos Os nomes foram codificados. Não será capaz de saber quem é quem, a não ser que tenha acompanhado os casos, o que provavelmente não fez. Eu lhe dou minha palavra, senhor, que eles são bons.
Passei um bom tempo fazendo a lista. As suas linhas de orientação me guiaram, e com toda certeza foram excelentes linhas de orientação. As pessoas que estão ali pensam da mesma forma que o senhor. Pessoas que gostam de poder me assustam.
Os bons refletem muito sobre o que fazem antes de escolher juízes de verdade que darão alguns veredictos realmente difíceis. Bem, leia seus veredictos. O senhor verá o quanto eles levam a sério o que fazem.
Outra tragada. Ryan tamborilou os dedos sobre as pastas.
— Não conheço a lei bem o bastante para compreender tudo que está aí dentro. A única coisa que sei sobre a lei é que não se deve infringi-la.
Martin sorriu ao ouvir isso.
— Não é um lugar ruim para começar, se você pensar bem.
Martin não precisava explicar-se. Nem todos os ocupantes deste gabinete tinham pensado dessa forma. Os dois homens sabiam disso, mas não era o tipo de coisa que se dizia para o presidente dos Estados Unidos.
— Eu sei do que não gosto — disse o presidente. — Sei que coisas gostaria de ver mudadas, mas... — Ryan levantou o rosto, olhos arregalados agora. —... será que tenho o direito de tomar esse tipo de decisão?
— Sim, presidente, o senhor tem, porque o Senado precisa olhar sobre o seu ombro, lembra? Talvez eles discordem sobre a escolha de uma ou duas dessas pessoas. Todos esses juízes foram sondados pelo FBI. Todos são honestos.
Todos são inteligentes. Nenhum deles jamais esperou chegar à Suprema Corte que não através de uma carta requisitória. Se o senhor não gostar de nove deles, nós procuraremos mais. Nesse caso, talvez seja melhor ainda designar outra pessoa. O chefe da Divisão dos Direitos Civis também é um bom homem. Ele costuma concordar comigo às vezes, mas possui uma visão bem diferente das coisas.
Direitos civis, pensou Jack. Será que ele deveria direcionar a política governamental também nessa questão? Como ele deveria saber qual seria a forma certa de tratar pessoas que poderiam ou não ser um pouco diferentes de todas as outras? Cedo ou tarde ele perderia a capacidade de ser objetivo e suas crenças assumiriam o comando. Quando isso acontecesse ele estaria fazendo política tendo por base preconceitos pessoais? Como deveria saber o que é certo? Jesus.
Ryan deu uma última tragada e apagou o cigarro no cinzeiro, recompensado pelo prazer do vício renascido.
— Bem, acho que tenho muita leitura pela frente.
— Eu lhe ofereceria alguma ajuda, mas provavelmente será melhor se o senhor tentar fazer sozinho. Dessa forma, ninguém poluirá o processo... mais do que já fizemos, bem entendido. É bom ter isso em mente. Posso não ser a melhor pessoa para isso, mas o senhor me pediu, e foi o melhor que pude fazer.
— Suponho que seja o melhor que qualquer um de nós pode fazer — observou Ryan, fitando a pilha de pastas.
O Chefe da Divisão dos Direitos Civis do Departamento de Justiça dos Estados Unidos era um político nomeado desde a época do presidente Fowler.
Ex-advogado empresarial e lobista — o que pagava bem melhor que o posto acadêmico que tivera antes de seu primeiro cargo político —, era ativo politicamente desde antes de ser admitido na faculdade de direito. Como acontecia com muitos ocupantes de postos oficiais, tornara-se, se não seu próprio posto, ao menos a visão que fazia dele. Detinha um eleitorado embora jamais tivesse sido eleito para nada e seu serviço ao governo houvesse sido intermitente. A carreira governamental fora uma sucessão de postos cada vez mais altos possibilitados por sua proximidade ao poder reinante nesta cidade, os almoços, as festas e as visitas oficiais realizadas enquanto estava representando pessoas das quais podia gostar ou não, porque um advogado tinha uma obrigação de servir aos interesses dos clientes — e os clientes o escolhiam, não o contrário. Frequentemente um advogado precisava dos honorários de uns poucos para servir às necessidades de muitos — que era, na verdade, sua própria filosofia de governo. Sem perceber, passara a viver a máxima de Ben Jonson que dita que Fala por meros contrários, mas ainda assim é a lei. Mas ele jamais perdera sua paixão pelos direitos civis, e nunca fizera lobby por qualquer coisa contrária à crença geral — obviamente, ninguém desde a década de 60 fazia pressão contra os direitos civis — mas ele dizia a si mesmo que isso era importante. Homem branco com posses originárias de muito antes da Guerra Revolucionária, falava em todos os fóruns pelos direitos, e com isso conquistara a admiração de pessoas cuja visão política era a mesma nutrida por ele. Dessa admiração vinha poder, e era difícil dizer que aspecto de sua vida influenciava mais o outro. Devido ao seu trabalho anterior no Departamento de Justiça ele conquistara a atenção de figuras políticas. Como fizera esse trabalho com perícia, também atraíra a atenção de uma empresa política muito influente.
Ao deixar o governo para entrar nessa firma, usara seus contatos políticos para praticar sua profissão com mais eficácia; essa eficácia gerara credibilidade adicional nos mundos políticos, uma mão constantemente lavando a outra até que ele não podia mais discernir qual mão era qual. Ao longo do caminho, os casos em que trabalhava tinham se tornado sua própria identidade num processo tão gradual e aparentemente tão lógico que ele mal se dava conta do que tinha acontecido. Ele era os casos nos quais trabalhara com o passar dos anos.
E esse era o problema no exato momento. Ele conhecia e admirava Patrick Martin um talento jurídico menor que subira na Justiça trabalhando exclusivamente nas cortes. Martin jamais fora sequer um promotor público dos Estados Unidos (esses eram nomeados políticos, selecionados principalmente por senadores dos estados em que residiam), mas uma das abelhas-operárias apolíticas que faziam realmente o trabalho enquanto seus chefes escreviam discursos e galgavam os degraus do poder. O fato era que Martin era um estrategista jurídico talentoso, e melhor ainda como administrador jurídico guiando promotores jovens. Mas ele não entendia muito de política, pensou o chefe dos Direitos Civis, e por essa razão ele era o homem errado para aconselhar o presidente Ryan.
Ele tinha a lista. Um dos seus ajudara Martin a compilá-la, e os seus eram leais, pois sabiam que o melhor caminho para subir nesta cidade era entrando e saindo da política ... o que seu chefe fizera, e seu chefe podia pegar o telefone e conseguir para eles aquele um trabalho numa grande firma; assim, um dos seus entregara-lhe a lista, com os nomes não codificados.
O chefe da Divisão dos Direitos Civis precisou apenas ler os 14 nomes. Ele não precisava lei toda a papelada sobre eles. Conhecia todos. Este aqui, no Quarto Circuito em Richmond, tinha revertido um veredicto da corte inferior e escrito uma opinião longa questionando constitucionalidade da ação afirmativa — um discurso muito bom, que persuadira a Suprema Corte numa acirrada votação de cinco para quatro. O caso fora decidido por uma margem estreita, e a aprovação dele em Washington também fora estreita, mas o não gostava de nenhum dos tijolos nesse muro de pedras.
Aquele em Nova York afirmara a posição do governo em outra área, mas ao fazer isso limitara a aplicabilidade do princípio — e esse caso não avançara, e era lei para uma boa parte do país.
Elas eram as pessoas erradas. Sua visão do poder judiciário era limitada demais. Respeitavam demais o Congresso e as legislaturas estatais. A visão de Pat Martin da lei era diferente da sua. Martin não via que os juízes tinham o dever de consertar o que estava errado — os dois haviam debatido a questão na hora do almoço em conversas inflamadas, mas sempre respeitosas. Martin era um homem agradável, e um debatedor tão bom que era difícil abalar sua posição, estivesse certo ou errado; embora isso fizesse dele um bom promotor, Martin simplesmente não tinha o temperamento ideal. Ele simplesmente não via a forma como as coisas deviam ser, e escolhera os juízes da mesma forma. O Senado poderia ser estúpido a ponto de aprovar as seleções, e isso não podia acontecer. Para este tipo de poder é preciso escolher pessoas que saibam como exercitá-lo da forma apropriada.
Ele realmente não tinha escolha. Dobrou a lista e colocou-a num envelope.
Enfiou o envelope no bolso do paletó e telefonou para um de seus muitos contatos. Convidou-o para almoçar.