Tremendo de medo, Ayla se apegou ao homem alto ao seu lado, enquanto observava os estranhos se aproximarem. Jondalar a abraçou protetoramente, mas ela continuou tremendo.
Ele é tão grande, pensou Ayla, olhando embasbacada para o homem no comando, de cabelo e barba cor de fogo. Ela jamais vira alguém tão grande. Ele chegava até a fazer Jondalar parecer pequeno, embora o homem que a abraçava fosse mais alto que a maioria. O homem ruivo que se aproximava era de estatura ainda maior; era grande, um urso. O pescoço, volumoso, o peito poderia encher dois homens comuns, o bíceps maciço equivalia às coxas da maioria dos homens.
Ayla lançou um rápido olhar a Jondalar e não viu medo em seu rosto, mas o sorriso dele desapareceu. Eram estranhos e, em suas longas viagens, ele aprendera a ser cauteloso com desconhecidos.
- Não me lembro de tê-los visto antes - disse o grandalhão indo direto ao assunto. - De que acampamento são? - Ele não falava a língua de Jondalar, notou Ayla, mas uma das outras que este andara lhe ensinando.
- De acampamento nenhum - retrucou Jondalar. - Não somos Mamutoi. - Largou Ayla e deu um passo à frente, estendendo as duas mãos, as palmas para cima, mostrando que nada escondia, na saudação de amizade. - Sou Jondalar dos Zelandonii.
As mãos não foram aceitas.
- Zelandonii? É um estrangeiro... Espere, não havia dois homens desconhecidos, vivendo com o povo do rio, a oeste? Parece-me que o nome que ouvi era parecido.
- Sim, meu irmão e eu vivemos com eles - admitiu Jondalar.
O homem da barba flamejante ficou pensativo por algum tempo. Depois, inesperadamente, investiu para Jondalar e agarrou o homem louro e alto num abraço de urso de quebrar os ossos.
- Então, somos parentes! - exclamou, com um largo sorriso iluminando-lhe o rosto. - Tholie é a filha do meu primo!
O sorriso de Jondalar reapareceu, um pouco trêmulo.
- Tholie! Uma mulher Mamutoi chamada Tholie era a companheira mestiça de meu irmão! Ela me ensinou a língua de vocês.
- Claro! Eu lhe disse, somos parentes. - Segurou as mãos que Jondalar estendera em sinal de amizade e que recusara antes. - Sou Talut, chefe do Acampamento do Leão.
Ayla observou que todos sorriam. Talut a cumprimentou com a cabeça, sorrindo. Depois, analisou-a com admiração.
Vejo que não viaja com um irmão agora - falou a Jondalar.
Jondalar tornou a abraçá-la e ela notou uma fugaz expressão de sofrimento enrugar-lhe a testa antes de ele dizer:
- Esta é Ayla.
Um nome incomum. Ela é do povo do rio?
Jondalar ficou surpreso com a pergunta brusca; depois sorriu interiormente ao se lembrar de Tholie. A mulher baixa e atarracada, que conhecera, tinha pouca semelhança ao grandalhão ali de pé, à margem do rio, mas eram parentes. Ambos possuíam a mesma maneira de abordagem direta, a mesma franqueza desinibida - quase ingênua. Ele não sabia o que dizer. Não seria fácil explicar Ayla.
- Não, ela vivia num vale a alguns dias de viagem daqui.
Talut pareceu intrigado.
- Não ouvi falar de mulher nenhuma com o nome dela, vivendo por perto. Tem certeza de que ela é Mamutoi?
- Tenho certeza de que não é.
- Então, qual é o povo dela? Somente nós, que caçamos mamutes, vivemos nesta região.
- Não tenho povo - disse Ayla, erguendo o queixo com um toque de desafio.
Talut a avaliou argutamente. Ela havia falado na língua dele, mas o timbre da voz e a forma como pronunciava os sons eram... Estranhos. Não desagradáveis, mas incomuns. Jondalar falava com o sotaque de uma língua que lhe era desconhecida; a diferença na maneira de ela falar ultrapassava o sotaque. O interesse de Talut cresceu.
- Bem, aqui não é lugar para conversar - disse Talut, por fim. - Nezzie ficará indignada como a Mãe, se não os convidar para uma visita. Os visitantes sempre trazem alguma excitação, e não recebemos visitas há algum tempo. O Acampamento do Leão lhes daria boas-vindas, Jondalar dos Zelandonii e Ayla de Nenhum Povo. Vocês virão?
- O que diz, Ayla? Gostaria de visitá-los? - perguntou Jondalar, mudando para a língua dos Zelandonii a fim de que ela pudesse responder sinceramente, sem medo de ofender. - Não é hora de conhecer os de sua espécie? Não foi isso que Iza mandou que fizesse? Encontrar seu próprio povo?
Ele não queria parecer ansioso demais, porém depois de tanto tempo sem mais ninguém com quem conversar, estava ávido para fazer uma visita.
- Não sei - disse ela, franzindo a testa, indecisa. - O que pensarão de mim? Ele quis saber quem era o meu povo. Não tenho mais família. E se não gostarem de mim?
- Gostarão de você, Ayla, acredite. Sei que gostarão. Talut a convidou, não? Não se importou por você não ter parente. Além disso, você nunca saberá se a aceitarão... Ou se gostará deles... Se não lhes der uma chance. Sabe, são o tipo de pessoas com quem deveria ter sido criada. Não precisamos, ficar muito tempo. Podemos partir a qualquer momento.
- Podemos partir a qualquer momento?
- Claro.
Ayla abaixou os olhos para o solo, tentando decidir-se. Queria ir com eles, sentia atração por aquelas pessoas, e curiosidade em saber mais a respeito delas, mas sentia um nó apertado de medo no estômago. Ergueu os olhos, viu dois peludos cavalos da estepe pastando no rico capim da planície perto do rio, e seu medo aumentou.
- E Whinney? O que faremos com ela? E se quiserem matá-la? Não posso deixar ninguém ferir Whinney!
Jondalar não pensara em Whinney. O que pensariam? Perguntou-se.
- Não sei o que farão, Ayla, mas acho que não a matarão se dissermos que é especial e não se destina à alimentação. - Lembrou-se de sua surpresa e sentimento inicial de espanto diante do relacionamento de Ayla com o animal. Seria interessante ver a reação deles. - Tenho uma idéia.
Talut não compreendeu o que Ayla e Jondalar diziam um ao outro, mas percebeu que a mulher relutava, e que o homem tentava persuadi-la. Também notou que ela falava com o mesmo sotaque incomum, até na língua dele. A língua do homem, mas não dela, notou o chefe.
Ele refletia sobre o mistério da mulher com certo prazer - gostava do novo e incomum, o inexplicável o desafiava. Mas, então, o mistério assumiu uma dimensão inteiramente nova.
Ayla assobiou alto e agudamente. De repente, uma égua cor de palha e um potro de um tom marrom extraordinariamente escuro galoparam até eles, diretamente até a mulher, e permaneceram quietos enquanto ela os tocava! O homem grande conteve um arrepio de pasmo.
Aquilo estava além de qualquer coisa que tinha visto.
Será que ela era Mamutoi, perguntou-se, com apreensão crescente. Alguém com poderes especiais? Muitos Daqueles que Serviam à Mãe reivindicavam a magia para chamar animais e dirigir a caçada, mas ele nunca havia visto alguém com tanto controle sobre os animais que os chamasse com um sinal. Ela possuía um dom único. Era um pouco assustador - mas imagine o quanto um acampamento poderia beneficiar-se de tal talento. Caçar animais seria bem fácil!
Exatamente quando Talut se recuperava do choque, a mulher causava-lhe outro. Segurando a crina rija e erguida da égua, a jovem saltou sobre o dorso do animal e sentou-se com uma perna de cada lado da égua. A boca do homem grande se escancarou de admiração enquanto a égua com Ayla, montada galopava pela margem do rio. Com o potro seguindo, subiram rapidamente a encosta para as estepes mais distantes. A admiração nos olhos de Talut era partilhada pelo resto do bando, particularmente por uma menina de doze anos.
Ela avançou para o chefe e apoiou-se nele, como se buscasse apoio.
- Como ela fez aquilo, Talut? - perguntou a menina, num tom de voz baixo que continha surpresa, pasmo e um vislumbre de ânsia. - Aquele cavalinho estava tão perto que quase pude tocá-lo.
A expressão de Talut se suavizou.
- Terá que perguntar a ela, Latie. Ou, talvez, a Jondalar - falou, virando-se para o grandalhão desconhecido.
- Também não tenho certeza - replicou ele. - Ayla tem um jeito especial com animais. Ela criou Whinney desde potranca.
- Whinney?
- É o mais parecido que posso dizer ao nome que ela deu à égua Quando ela o pronuncia, pensa-se que é um cavalo. O potro é Racer. Eu dei o nome a ele... Ela me pediu. É a palavra dos Zelandonii para alguém que corre muito. Também significa alguém que se esforça para ser o melhor. Na primeira vez que a vi, Ayla ajudava a égua a ter o filhote.
- Deve ter sido uma visão! Eu não imaginava que uma égua permitisse que alguém se aproximasse dela nesse momento - disse um dos outros homens.
A demonstração de equitação causou o efeito que Jondalar havia esperado e ele achou que era o momento adequado para abordar a preocupação de Ayla.
- Acho que ela gostaria de visitar seu acampamento, Talut, mas teme que possam pensar que os cavalos são animais comuns para serem caçados, e como eles não têm medo de pessoas, seria fácil matá-los.
- Sim, seria. Você deve ter adivinhado o que eu pensava, mas como poderia evitá-lo?
Talut observou Ayla voltando, parecendo um estranho animal, parcialmente humana, parcialmente cavalo. Ficou contente por não ter se aproximado deles inocentemente. Teria sido enervante. Refletiu um instante como seria cavalgar, e se ele causaria tanto assombro cavalgando. E depois, imaginando-se montado com uma perna de cada lado do pequeno, embora forte animal das estepes, riu alto.
- Eu poderia carregar esse animal mais facilmente do que ele a mim! - exclamou.
Jondalar riu baixinho. Não fora difícil acompanhar a linha de pensamento de Talut. Várias pessoas sorriram, ou riram baixo, e Jondalar compreendeu que todas elas tinham refletido sobre montar um cavalo. Não era tão estranho. Ocorrera com ele quando vira Ayla sobre o dorso de Whinney pela primeira vez.
Ayla vira surpresa e confusão nos rostos do pequeno grupo de pessoas e, se Jondalar não a estivesse esperando, ela teria continuado a cavalgar na direção do seu vale. Quando mais jovem, ela já sofrera bastante desaprovação por ações que não eram aceitáveis. E tivera liberdade suficiente, desde que vivia sozinha, para não querer sujeitar-se à crítica por seguir suas inclinações. Estava pronta para dizer a Jondalar que ele podia visitar aquelas pessoas se quisesse; ela ia voltar.
Mas, ao regressar, viu Talut ainda rindo por causa de sua imagem mental de ele próprio cavalgando e reconsiderou. O riso se tornara precioso para ela. Não tivera permissão para rir quando vivia com o Clã; eles ficavam nervosos e pouco à vontade. Somente com Durc, em segredo, ela ria alto. Foram Neném e Whinney que lhe ensinaram a gozar a sensação do riso, mas Jondalar era a primeira pessoa a dividi-lo abertamente com ela.
Observou o homem rindo, facilmente, com Talut. Ele ergueu a cabeça e sorriu, e a magia dos indescritíveis olhos azuis vívidos dele tocou um local profundo em seu íntimo, que ressoou como um arrebatamento cálido, ardente, e ela sentiu um grande amor por ele. Não podia voltar para o vale, não sem ele. Só pensar em viver sem ele trazia-lhe um aperto estrangulador à garganta e a dor causticante das lágrimas contidas.
Ao cavalgar na direção deles, notou que embora não fosse tão grande quanto o homem ruivo, em volume, Jondalar era quase tão alto e maior que os outros três. Não, um deles era um menino, percebeu. Será que era uma menina que estava com eles? Encontrou-se observando o grupo disfarçadamente, não querendo fixar o olhar.
Os movimentos do seu corpo deram sinal a Whinney para parar. Depois, movimentando a perna sobre a égua, escorregou para o solo. Os dois animais pareciam nervosos quando Talut se acercou; ela acariciou Whinney e pôs um braço em volta do pescoço de Racer. Tinha tanta necessidade da confiança renovada e familiar da presença dos animais como eles o tinham da dela.
- Ayla, de Nenhum Povo – disse, ele, incerto se era a maneira correta de dirigir-se a ela, embora talvez o fosse, para aquela mulher de dom estranho -, Jondalar diz que você teme que algum mal aconteça aos seus cavalos, se nos visitar. Digo aqui, enquanto Talut for o chefe do Acampamento do Leão, nenhum mal acontecerá à égua ou a seu filhote. Gostaria que nos visitasse e trouxesse os animais. - Seu sorriso se alargou com uma risada. - Do contrário, ninguém acreditará em nós!
Ela se sentia mais relaxada agora e sabia que Jondalar desejava fazer a visita. Não tinha razão verdadeira para recusar e foi atraída pelo riso fácil e amigável, do grande homem de cabelo ruivo.
- Sim, eu vou - disse ela. Talut sacudiu a cabeça, concordando, sorrindo e perguntando-se sobre ela, sobre seu sotaque curioso, sobre seu jeito estranho com os cavalos. Quem era Ayla de Nenhum Povo?
Ayla e Jondalar tinham acampado ao lado do rio impetuoso e decidiram naquela manhã, antes de encontrarem o bando do Acampamento do Leão, que era hora de voltar. O rio era largo demais para atravessar sem dificuldade e não valia o esforço, se eles iam dar meia-volta e voltar sobre seus passos. O leste do vale formado por estepes, onde Ayla vivera sozinha por três anos, fora mais acessível e a jovem não se dera o trabalho de trilhar o caminho difícil para o oeste, fora do vale, muitas vezes, e não estava nada familiarizada com a região. Embora tivesse partido na direção oeste, não tinham destino determinado em mente e acabaram viajando para o norte e depois para o leste, porém muito mais longe do que Ayla já viajara em suas incursões de caça.
Jondalar a convencera a fazer a viagem exploratória para acostumá-la a viajar. Ele queria levá-la para casa consigo, mas seu lar era distante, no oeste. Ela relutara, e ficara assustada ao deixar seu vale seguro para viver com pessoas desconhecidas num local desconhecido. Embora estivesse ansioso para regressar após viajar durante muitos anos, havia se resignado a passar o inverno com ela no vale. Seria uma longa jornada de volta - provavelmente levaria um ano inteiro - e seria melhor iniciá-la no final da primavera. Nessa época, ele estava certo de convencê-la a acompanhá-lo. Não queria sequer considerar qualquer outra, alternativa.
Ayla o havia encontrado gravemente ferido e quase morto no inicio do verão que agora via seus últimos dias, e ela conheceu a tragédia que ele sofrera. Apaixonaram-se enquanto ela cuidava dele, trazendo-lhe a saúde de volta, embora demorassem a vencer as barreiras de seus backgrounds enormemente diferentes. Ainda estavam aprendendo sobre os costumes e inclinações mútuos.
Ayla e Jondalar acabavam de levantar acampamento e para surpresa - e interesse - das pessoas que esperavam, colocaram suprimentos e equipamentos sobre a égua, em vez de embornais e mochilas que eles próprios carregariam. Embora os dois, às vezes, cavalgassem a égua robusta, Ayla achou que Whinney e seu potro ficariam menos nervosos se a vissem. Os dois caminharam atrás do bando. Jondalar puxava Racer por uma corda comprida presa a um cabresto que ele mesmo idealizara. Whinney seguia Ayla em liberdade total.
Acompanharam o curso do rio durante vários quilômetros, através de um grande vale que descia de planícies herbosas circundantes. Feno que chegava à altura do peito, extremidades de sementes inclinando-se, maduras e pesadas, crescendo em ondas douradas nas encostas próximas, harmonizando-se com o ritmo frio do ar frígido, que soprava em rajadas intermitentes das geleiras maciças ao norte. Nas estepes abertas, alguns vidoeiros e pinheiros inclinados e retorcidos amontoavam-se ao longo de rios, com suas raízes procurando a umidade cedida aos ventos dessecantes. Perto do rio, juncos e ciperáceas ainda estavam verdes, embora um vento frio retinisse através de galhos velhos, desprovidos de folhas.
Latie se demorou, olhando de vez em quando para os cavalos e a mulher, até virem várias pessoas em uma curva do rio. Então, ela correu à frente, querendo ser a primeira a contar sobre os visitantes. Ao ouvir seus gritos, as pessoas se viraram e ficaram boquiabertas.
Outras pessoas saíam do que pareceu a Ayla um grande buraco à margem do rio, uma caverna de algum tipo, talvez, mas diferente de todas as que já vira antes. Parecia ter se projetado da encosta que dava para o rio, mas não tinha a forma casual de taludes de pedra ou terra. O capim crescia no telhado, porém a abertura era uniforme demais, regular demais, e de aparência bastante antinatural. Era um arco perfeitamente simétrico.
De repente, em profundo nível emocional, compreendeu. Não era uma caverna, e as pessoas não eram um clã! Não se pareciam com Iza, que era a única mãe de quem se lembrava, ou com Creb ou Brun, baixos e musculosos, com grandes olhos encobertos por sobrancelhas grossas, uma testa curvada para trás e um maxilar sem queixo que se projetava para frente. Aquelas pessoas se pareciam com ela. Eram semelhantes ao seu povo. Sua mãe, sua verdadeira mãe, não devia ter sido parecida com uma daquelas mulheres. Aqueles eram os Outros! Ali era o seu lugar! A compreensão trouxe uma onda de excitação e um formigamento de medo.
Um silêncio atordoado saudou os estranhos - e seus animais ainda mais estranhos - quando chegaram no local de inverno permanente do Acampamento do Leão. Então, todos pareceram falar ao mesmo tempo.
- Talut! O que trouxe desta vez? Onde conseguiu esses cavalos? O que lhes fez?
Alguém se dirigiu a Ayla:
- Como os faz ficarem parados?
- De que acampamento são, Talut?
As pessoas ruidosas, gregárias, avançavam, agrupadas, ansiosas para ver e tocar os desconhecidos e os animais. Ayla estava perturbada, confusa. Não estava acostumada com tanta gente. Não estava acostumada com pessoas falando, especialmente todas falando ao mesmo tempo. Whinney dava passos para o lado, agitando as orelhas, a cabeça erguida, o pescoço arqueado, tentando proteger o potro assustado e afastar-se das pessoas que fechavam o cerco.
Jondalar percebia a confusão de Ayla e o nervosismo dos cavalos, mas não podia fazer Talut ou as outras pessoas entenderem. A égua suava, sacudindo o rabo, dançando em círculos. De repente, não suportou mais. Em pinou, relinchou de medo e escoiceou com os cascos duros, obrigando as pessoas a recuar.
A aflição de Whinney atraiu a atenção de Ayla. Chamou a égua pelo nome, com um som como um agrado confortador, e fez gestos que usara para se comunicar antes de Jondalar ensinar-lhe a falar.
- Talut! Ninguém deve tocar os cavalos a menos que Ayla o permita! Somente ela pode controlá-los. Eles são mansos, mas a égua pode ser perigosa se for provocada ou achar que seu potro está ameaçado. Alguém poderia ficar ferido - disse Jondalar.
- Recuem! Ouviram o que ele disse - gritou Talut com uma voz retumbante que silenciou a todos. Quando as pessoas e cavalos se imobilizaram, ele continuou em tom mais normal: - A mulher é Ayla. Prometi-lhe que não aconteceria nenhum mal aos cavalos se viessem nos visitar. Prometi, como chefe do Acampamento do Leão. Este é Jondalar dos Zelandonii, um parente, irmão do companheiro de Tholie. - Depois, com um sorriso de vaidade, acrescentou: - Talut trouxe alguns visitantes!
Houve balanços de cabeça, concordando. As pessoas permaneceram por perto, fixando com curiosidade clara, mas o suficientemente distantes para evitar os coices da égua. Mesmo se os estranhos tivessem partido naquele momento, despertariam interesse bastante e tagarelice para durar anos. A notícia de que dois homens desconhecidos estavam na região, vivendo com o povo do rio à sudoeste, fora motivo de conversa nas Reuniões de Verão.
Os Mamutoi negociavam com os Sharamudoi, e desde que Tholie, que era parente, escolhera um homem do rio, o Acampamento do Leão ficara ainda mais interessado. Mas nunca esperaram que um dos homens estrangeiros entrasse em seu acampamento, principalmente com uma mulher que tinha algum controle mágico sobre cavalos.
- Está bem? - perguntou Jondalar a Ayla.
- Assustaram Whinney e Racer também. As pessoas sempre falam ao mesmo tempo assim? Mulheres e homens juntos? É confuso, e gritam tanto, como se pode saber quem está dizendo o quê? Talvez devêssemos ter voltado para o vale. - Abraçava o pescoço da égua, inclinando-se contra ela, tranqüilizando-se, assim como consolando o animal.
Jondalar sabia que Ayla estava quase tão infeliz quanto os cavalos. A acolhida ruidosa das pessoas a havia chocado. Talvez não devesse ficar muito tempo. Talvez fosse melhor começar apenas com duas ou três pessoas de cada vez, até ela acostumar-se à sua espécie novamente, mas ele se perguntou o que ele faria se ela, realmente, nunca se habituasse.
Bem, estavam ali, agora. Ele podia esperar e ver.
- Às vezes as pessoas são barulhentas e falam ao mesmo tempo, mas, a maior parte das vezes, fala uma de cada vez. E acho que serão cuidadosas com os animais agora, Ayla - disse, quando ela começou a descarregar as cestas amarradas de ambos os lados do animal, com um arreio que ela fizera de tiras de couro.
Enquanto ela estava ocupada, Jondalar afastou-se com Talut e lhe disse, calmamente, que os cavalos de Ayla estavam um pouco nervosos e precisavam de algum tempo para se acostumar com todos.
- Seria melhor se fossem deixados sozinhos por algum tempo.
Talut compreendeu e se dirigiu às pessoas do acampamento, falando com cada uma delas.
Dispersaram-se, dedicando-se a outras tarefas, preparando comida, trabalhando em peles de animais ou ferramentas, de forma que pudessem observar sem serem tão óbvias a respeito. Também estavam inquietas. Os desconhecidos eram interessantes, mas uma mulher, com magia, tão atraente poderia fazer alguma coisa inesperada.
Somente algumas crianças permaneceram para observar, com interesse ávido, enquanto o homem e a mulher descarregavam seus pertences, mas Ayla não fez caso delas. Havia anos que não via crianças, desde que deixara o Clã, e estava tão curiosa em relação a elas quanto as crianças a respeito dela. Ela tirou o arreio e cabresto de Racer, depois acariciou e deu tapinhas em Whinney e em Racer em seguida. Após coçar e abraçar afetuosamente o potro, Ayla ergueu os olhos e viu Latie olhando atentamente com desejo o jovem animal.
- Gosta de tocar em cavalos? - perguntou Ayla.
- Posso?
- Venha. Dê a mão. Eu mostro. - Pegou a mão de Latie e a manteve sobre o pêlo do cavalo parcialmente crescido. Racer virou a cabeça para cheirar e focinhar a menina.
- Ele gosta de mim - disse a garota com um sorriso de gratidão que era uma dádiva.
- Ele também gosta de ser coçado, assim - disse Ayla, mostrando à menina os principais locais de comichão do potro.
Racer estava encantado com a atenção e demonstrou-o. Latie não cabia em si de alegria. O potro a havia atraído desde o início. Ayla deu as costas aos dois para ajudar Jondalar e não notou a aproximação de outra criança. Quando se virou, arquejou e sentiu o sangue fugir de seu rosto.
- Está bem se Rydag tocar o cavalo? - perguntou Latie. - Ele não pode falar, mas sei que quer fazê-lo. - Rydag sempre fazia as pessoas reagirem com surpresa. Latie estava acostumada a isso.
- Jondalar! - gritou Ayla. - Essa criança... Poderia ser meu filho! Parece Durc!
Ele se virou e abriu os olhos em surpresa e assombrado. Era uma criança de espíritos mistos.
Cabeças-chatas - aqueles a quem Ayla sempre se referia como Clã - eram animais para a maioria das pessoas, e crianças como aquela eram consideradas como “abominações”, parcialmente animais e parcialmente humanos. Ele ficara chocado ao compreender, pela primeira vez, que Ayla havia dado à luz um filho misto. A mãe de tal criança era, em geral, pária, excluída por medo que atraísse o mau espírito animal novamente e fizesse as outras mulheres darem à luz estas aberrações. Algumas pessoas não queriam sequer admitir que existissem, e encontrar uma ali vivendo com aquela gente era mais do que inesperado. Era um choque. De onde viera o menino?
Ayla e a criança se olhavam nos olhos, esquecidas de tudo ao seu redor. Ele é magro para quem é metade do Clã, pensou Ayla. Em geral têm ossos grandes e são musculosos.
Mesmo Durc não era tão magro assim. Ele é doente, disse a Ayla sua visão treinada de curandeira. Um problema desde o nascimento, com o forte músculo no peito, que pulsava e palpitava e fazia o sangue correr, adivinhou. Mas guardou esses fatos sem pensar; olhava mais atentamente para o rosto do menino, e sua cabeça, procurando as semelhanças e diferenças, entre a criança e seu filho.
Os olhos grandes, castanhos e vivos eram como os de Durc, até a expressão de antiga sabedoria muito, além de sua idade - ela sentiu uma pontada de saudade e um nó na garganta -, mas havia também dor e sofrimento, de forma alguma físicos, que Durc jamais conhecera. Encheu-se de compaixão. Depois de exame cuidadoso concluiu que os supercílios do menino não eram bastante pronunciados. Mesmo com apenas três anos de idade, quando ela partira, os olhos de Durc e suas sobrancelhas projetadas eram totalmente Clã, mas sua testa era como a daquela criança. Não era caída para trás e achatada como do Clã, mas alta e arqueada como a dela.
Seus pensamentos se desviaram. Durc teria seis anos agora, recordou, com idade suficiente para acompanhar os homens quando se exercitavam com suas armas de caça. Mas Brun estará ensinando Durc a caçar, não Broud. Ela jamais esqueceria como o filho da companheira de Brun alimentara seu ódio contra ela até conseguir lhe tirar o bebê, por maldade, e expulsá-la do Clã. Fechou os olhos quando a dor da recordação a dilacerou como faca. Não queria acreditar que jamais tornaria a ver o filho.
Abriu os olhos para Rydag, e respirou fundo.
Quantos anos terá este menino? É pequeno, mas deve ter quase a idade de Durc, pensou, comparando os dois novamente. A pele de Rydag era clara e o cabelo escuro e crespo, mas menos escuro e mais macio que o cabelo castanho basto muito comum ao clã. A maior diferença entre aquela criança e seu filho, observou Ayla, eram o queixo e o pescoço. Seu filho tinha um pescoço longo como o dela - ele engasgava, às vezes, com a comida, o que não acontecia nunca com os outros bebês do Clã - e um queixo pequeno, mas bem definido. Este menino tinha o pescoço curto do Clã, e maxilar protuberante Então, ela se lembrou. Latie dissera que ele não podia falar.
De repente, em um instante de compreensão, soube como devia ser a vida daquela criança.
Uma coisa era uma menina de cinco anos que perdera a família em um terremoto, e que fora, encontrada por uma tribo de pessoas incapazes de uma fala totalmente articulada, aprender a linguagem de sinais com que costumavam se comunicar. Outra coisa bem diferente era viver com pessoas que falavam e ser incapaz de falar. Ela recordou sua frustração inicial porque não fora capaz de se comunicar com as pessoas que a recolheram, e pior ainda, como havia sido difícil fazer Jondalar compreendê-la antes que ela aprendesse a falar novamente. E se ela não tivesse conseguido aprender?
Fez um sinal ao menino, um simples gesto de saudação, um dos primeiros que aprendera há tanto tempo atrás. Houve um instante de excitação nos olhos da criança, depois ele sacudiu a cabeça e pareceu intrigado. Ele jamais aprendera a maneira de falar com gestos do Clã, percebeu, ela, mas devia ter guardado algum vestígio das lembranças do Clã. Ele reconhecera o sinal por um momento, ela tinha certeza disso.
- Rydag pode tocar o potro? - perguntou Latie de novo.
- Pode - disse Ayla, segurando a mão do garoto. - Ele é tão franzino, tão frágil, pensou ela e compreendeu, então, o resto. Ele não podia correr como as outras crianças. Não podia brincar de luta, normalmente Só podia observar - e desejar.
Com uma ternura que Jondalar jamais vira em seu rosto, Ayla pegou o garoto no colo e colocou-o no dorso de Whinney. Fazendo sinal à égua para andar, ela deu volta com eles, lentamente, pelo acampamento. Houve uma parada na conversa quando todos fitaram Rydag cavalgando. Embora tivessem falado a respeito, exceto Talut e as pessoas que os tinham encontrado perto do rio, ninguém jamais vira alguém montar um cavalo antes.
Ninguém nunca imaginara tal coisa.
Uma mulher gorda maternal saiu da estranha habitação e, vendo Rydag montado à égua que escoiceara perigosamente próximo à sua cabeça, sua primeira reação foi correr em ajuda da criança. Mas, ao se acercar, tornou-se consciente do drama silencioso da cena.
O rosto do menino estava repleto de assombro e deleite. Quantas vezes ele havia observado com olhos ansiosos; impedido por sua fraqueza ou sua diferença de fazer o que as outras crianças faziam? Quantas vezes desejara poder fazer algo para ser admirado ou invejado?
Agora, pela primeira vez, montava a cavalo e todas as crianças e adultos do acampamento o observavam com olhos desejosos.
A mulher da moradia viu e se perguntou: teria aquela estranha realmente compreendido o menino tão depressa? Aceito a criança tão facilmente? Viu a forma como Ayla olhava para Rydag e constatou que sim.
Ayla notou que a mulher a examinou e depois lhe sorriu. Ela retribuiu o sorriso e parou ao lado dela.
- Fez Rydag muito feliz - disse a mulher, estendendo os braços para o garoto que Ayla fazia desmontar.
- É pouco - disse Ayla.
A mulher concordou com um gesto de cabeça.
- Meu nome é Nezzie.
- O meu é Ayla.
As duas mulheres se olharam, examinando-se cuidadosamente, não com hostilidade, mas sondando o terreno para um futuro relacionamento.
As perguntas que Ayla queria fazer sobre Rydag giravam em sua mente, mas ela hesitou, indecisa sobre se era adequado fazê-las. Será que Nezzie era a mãe do menino? Se o fosse, como dera à luz uma criança de espíritos mistos? Ayla também estava intrigada em relação a uma pergunta que a incomodara desde que Durc nascera. Como a vida começava? Uma mulher só sabia que a vida estava ali quando seu corpo mudava à medida que o bebê crescia. Como ele entrava em uma mulher?
Creb e Iza acreditavam que uma nova vida começava quando uma mulher engolia os espíritos do totem dos homens. Jondalar achava que a Grande Mãe Terra misturava os espíritos de um homem e uma mulher e os colocava dentro da mulher quando ela engravidava. Mas Ayla tinha formado sua própria opinião. Quando ela notou que seu filho tinha algumas das características do Clã, e algumas suas, compreendeu que nenhuma vida havia tido início dentro de si, senão depois de Broud forçar sua penetração nela.
Estremeceu com a lembrança, mas não podia esquecê-la porque era dolorosa demais, e ela viera a acreditar que se tratava de algo sobre um homem colocar seu órgão dentro do local de onde os bebês nasciam, o que fazia a vida ter início no interior de uma mulher. Jondalar achava que era uma idéia estranha, quando ela lhe contou, e tentou convencê-la de que era a
Mãe que criava a vida. Ela não acreditou nele, pensava agora. Ayla havia crescido com o Clã, era um deles, apesar de parecer diferente. Embora ela houvesse odiado quando ele o fizera, Broud apenas estava exercendo direitos. Mas, como um homem do Clã pudera forçar Nezzie?
Seus pensamentos foram interrompidos pelo alvoroço de um Outro pequeno grupo de caça que chegava. Quando um homem se aproximou e puxou para trás seu capuz, Ayla e Jondalar arquejaram, surpresos. O homem era marrom! A cor de sua pele era de um marrom-escuro forte, quase da cor de Racer, o que já era bastante incomum para um cavalo.
Nenhum deles jamais vira uma pessoa com pele marrom antes.
O cabelo era negro, cachos rijos, pequenos, que formavam um gorro lanoso como o pêlo de um carneiro selvagem. Os olhos eram negros também, e brilhavam de prazer quando sorriu, mostrando dentes brancos e uma língua rosada em contraste com a pele escura. Ele sabia a sensação que causava quando estranhos o viam pela primeira vez e gostava bastante disso.
Sob outros aspectos era um homem perfeitamente comum, de estatura mediana, dificilmente mais que uma polegada mais alto que Ayla e de constituição média. Mas uma vitalidade compacta, uma economia de movimentos e uma autoconfiança natural davam a impressão de alguém que sabia o que queria e não perderia tempo buscando o que desejava. Seus olhos revelaram um brilho extra ao ver Ayla.
Jondalar reconheceu o olhar como de atração. Sua testa franziu, mas nem a mulher loura, nem o homem de pele escura perceberam. Ela estava cativada pelo colorido incomum do homem e fitava-o com o espanto descarado de uma criança. Ele se sentiu atraído tanto pela aura de inocência ingênua que a resposta de Ayla refletia, quanto por sua beleza.
De repente, Ayla compreendeu que estivera fitando o homem e corou fortemente enquanto abaixava os olhos para o solo. Ela havia aprendido com Jondalar que era perfeitamente adequado que homens e mulheres olhassem diretamente uns para os outros, porém, para o povo do Clã era não apenas descortês, mas ofensivo encarar, principalmente para uma mulher. Era sua educação os costumes do Clã, fortalecidos sempre por Creb e Iza de maneira a ela ser mais aceitável, que causavam tal embaraço.
Mas sua aflição apenas aumentou o interesse do homem escuro. Ele era seguidamente objeto de atenção incomum de mulheres. A surpresa inicial de sua aparência parecia despertar curiosidade sobre que outras diferenças ele poderia ter. Às vezes, perguntava-se se toda mulher, nas reuniões de verão, tinha que descobrir por si mesma que ele era, realmente, um homem igual a todos os outros. Não que fizesse objeção, mas a reação de Ayla era tão intrigante para ele, quanto sua cor o era para ela. Ele não estava acostumado a ver uma mulher adulta incrivelmente bonita corar com tanto recato quanto uma menina.
- Ranec, conhece nossos visitantes? - gritou Talut, aproximando-se.
- Ainda não, mas estou esperando... Ansiosamente.
À entoação de sua voz, Ayla levantou a cabeça para os olhos negros cheios de desejo - e humor sutil. Eles alcançaram seu íntimo e tocaram um local que somente Jondalar havia tocado antes. O corpo de Ayla respondeu com um formigamento que trouxe um arquejo fraco aos seus lábios, e arregalou os olhos cinza-azulados. O homem se inclinou para frente, preparando-se para tomar-lhe as mãos, mas antes que as apresentações costumeiras pudessem ser feitas, o desconhecido alto avançou, ficando entre eles, e com ar sério estendeu as duas mãos.
- Sou Jondalar, dos Zelandonii - falou. - A mulher com quem viajo é Ayla.
Alguma coisa, Ayla estava certa, incomodava Jondalar, alguma coisa ligada ao homem escuro. Ela estava acostumada a ler o significado pela postura e atitude, e havia observado Jondalar atentamente em busca de pistas sobre que basear seu próprio comportamento. Mas a linguagem corporal de pessoas que dependiam de palavras era muito menos intencional do que a do Clã, que usava gestos para se comunicar, e, portanto, ela não confiava em suas percepções ainda. Estas pessoas pareciam ser tanto mais fáceis quanto mais difíceis de ler, como com a mudança súbita na atitude de Jondalar. Ela sabia que ele estava zangado, mas ignorava por quê.
O homem tomou as duas mãos de Jondalar e as apertou com firmeza.
- Sou Ranec, meu amigo, o melhor, senão o único escultor do Acampamento do Leão dos Mamutoi – disse, ele, com um sorriso de autocensura, ajuntando depois: - Quando se viaja com uma companhia tão bonita, deve-se esperar que ela chame a atenção.
Agora, foi à vez de Jondalar ficar embaraçado. A franqueza e amabilidade de Ranec o fizeram sentir-se um idiota e, com dor conhecida, lembrou-se do seu irmão. Thonolan tivera a mesma autoconfiança amistosa, e sempre dera os primeiros passos quando encontravam alguém em sua jornada. Jondalar se aborrecia quando fazia alguma tolice - sempre fora assim - e não gostava de começar um novo relacionamento de forma errada. Havia exibido má educação, no mínimo.
Mas sua raiva imediata o havia surpreendido e o pegara desprevenido.
O golpe ardente do ciúme era uma nova emoção para ele, ou ao menos uma que não experimentava havia tanto tempo que se tornara inesperada. Ele o negaria depressa, mas o homem alto e atraente com um carisma, inconsciente e habilidade apreciável com peles estava mais acostumado a ser alvo dos ciúmes das mulheres.
Por que deveria se aborrecer quando um homem olhava para Ayla, pensou Jondalar. Ranec estava certo, ele devia esperar por isso, sendo ela bonita como era. Tinha também o direito de fazer sua escolha. Somente porque ele foi o primeiro homem de sua raça que ela conhecera, não significava que seria o único que ela acharia atraente para sempre. Ayla o viu sorrir para Ranec e notou que a tensão em seus ombros não diminuíra.
- Ranec sempre fala casualmente a respeito disso, embora não tenha o hábito de negar qualquer uma de suas outras aptidões - dizia Talut e quanto caminhava à frente, em direção à incomum caverna que parecia ser feita de terra projetando-se do talude. - Ele e Wyrnez são parecidos nisso, se não em muitas outras coisas. Wymez reluta tanto em admitir sua habilidade como fazedor de ferramentas, quanto o filho de sua fogueira em falar sobre sua entalhadura. Ranec é o melhor escultor de todos os Mamutoi.
- Vocês têm um ferramenteiro capaz? Um quebrador de sílex? - perguntou Jondalar com agradável expectativa, seu ardente lampejo de ciúme desaparecendo com o pensamento de conhecer outra pessoa conhecedora de sua habilidade.
- Sim, e ele é o melhor, também. O Acampamento do Leão é bem conhecido. Temos o melhor escultor, o melhor ferramenteiro, e o Mamutoi mais velho - declarou o chefe.
- E um chefe bastante grande para fazer todos concordarem, quer acreditem ou não - disse Ranec com um sorriso torto.
Talut devolveu o sorriso, conhecendo a tendência de Ranec de ignorar elogios em relação à sua perícia de escultor com um gracejo. Não impediu que Talut se vangloriasse, no entanto.
Tinha orgulho de seu acampamento e não hesitava em deixar que todos soubessem disso.
Ayla observava a interação sutil dos dois homens - o mais velho, um gigante maciço com cabelo flamejante e olhos azul-claros, o outro moreno e forte - e compreendeu o elo profundo de afeto e lealdade que partilhavam embora fossem os mais diferentes possíveis. Ambos eram caçadores de mamutes, ambos membros do Acampamento do Leão dos Mamutoi.
Caminharam em direção à abertura em arco que Ayla notara antes. Parecia dar para um outeiro ou talvez uma série deles, enfiada na ladeira de frente para o grande rio. Ayla havia visto pessoas entrando e saindo. Sabia que devia ser uma caverna ou uma habitação de algum tipo, mas que parecia ser inteiramente feita de terra; barro duro, mas com capim crescendo em espécie de canteiros, principalmente em volta do fundo e dos lados. Misturava-se tão bem com o ambiente que, exceto pela entrada, era difícil distinguir a moradia de seu meio.
Em observação mais atenta, ela notou que o topo arredondado do monte de terra era repositório de vários objetos e instrumentos curiosos. Então ela viu um, bem acima da arcada, e prendeu a respiração.
Era a cabeça de um leão da caverna!
Ayla se escondia em uma pequena fenda de uma muralha de pedra pura, observando uma grande pata de um leão de caverna estender-se para alcançá-la. Ela gritou de dor e medo quando a garra encontrou sua coxa nua e marcou-a com quatro cortes paralelos. O Espírito do Grande Leão da Caverna a havia escolhido, e fez com que fosse marcada para mostrar que ele era seu totem, explicara Creb, depois de uma prova, muito além do que até um homem tinha de suportar, embora ela fosse uma menina de apenas cinco anos. Uma sensação de tremor de terra sob seus pés lhe trouxe uma onda de náusea.
Ela sacudiu a cabeça para afastar a recordação vivida.
- O que há, Ayla? - perguntou Jondalar, percebendo sua aflição.
- Vi aquela caveira - disse ela, apontando para a decoração sobre a porta -, e recordei quando fui escolhida, quando o Leão da Caverna se tornou meu totem!
- Somos o Acampamento do Leão - anunciou Talut com orgulho, apesar de já tê-lo dito antes. Ele não compreendia quando falavam a língua de Jondalar, mas viu o interesse que mostravam pelo talismã do acampamento.
- O leão da caverna tem um forte significado para Ayla - explicou Jondalar. - Ela diz que o espírito do grande gato a guia e protege.
- Então, deve se sentir à vontade aqui - disse Talut, dirigindo-lhe um sorriso, sentindo-se satisfeito.
Ela viu Nezzie carregando Rydag e pensou novamente em seu filho.
- Acho que sim - falou.
Antes de entrarem, a jovem parou para examinar o arco da entrada e sorriu ao ver como sua simetria perfeita fora conseguida. Era simples, porém ela nunca o teria imaginado. Duas grandes presas de mamute, do mesmo animal ou, ao menos, de animais de idêntico tamanho tinham sido cravadas firmemente ao solo com as pontas de frente uma para a outra, e unidas no alto do arco, em uma manga feita de uma pequena parte oca do osso da perna de um mamute.
Uma pesada cortina de pele de mamute cobria a abertura, que era suficientemente alta para que até Talut, afastando a cortina, pudesse entrar sem abaixar a cabeça. A arcada levava a uma ampla área de entrada com outro arco simétrico de presas de mamute e couro diretamente pendurado nelas. Eles desceram para um salão de entrada circular cujas grossas paredes se curvavam para um teto abobadado baixo.
Quando atravessaram o recinto, Ayla notou as paredes laterais, que pareciam um mosaico de ossos de mamute, cobertas com roupas externas penduradas em cabides com implementos e recipientes de estocagem. Talut afastou a cortina interna, avançou e segurou-a para os hóspedes.
Ayla desceu novamente. Depois parou e reparou, com surpresa, dominada por impressões assombradas de objetos desconhecidos, visões incomuns e cores vivas. Muito do que via lhe era incompreensível e agarrou-se ao que fazia algum sentido para ela.
O espaço onde se encontravam tinha uma grande fogueira perto do centro. Um pernil maciço cozinhava nela, espetado em uma vara comprida. Cada extremidade descansava em um encaixe cortado na articulação do joelho de um osso vertical da perna de um filhote de mamute, cravado no solo. Uma forquilha de uma grande galhada de veado tinha sido convertida em manivela e um menino a girava. Era uma das crianças que permanecera para observar Ayla e Whinney. Ayla o reconheceu e sorriu. Ele retribuiu o sorriso.
Ela estava surpresa pela amplidão da moradia de barro, limpa e confortável, enquanto os olhos se acostumavam à luz fraca do interior. A fogueira era apenas a primeira de uma série que se estendia até o meio da habitação comunal, uma moradia com mais de 25 metros de comprimento e quase seis de largura.
Sete fogueiras, contou Ayla, pressionando os dedos discretamente na perna e pensando nas palavras de contagem que Jondalar lhe ensinara.
Ela percebeu que estava quente ali dentro. As fogueiras aqueciam o interior da habitação parcialmente subterrânea mais do que os fogos aqueciam, em geral, as cavernas a que ela estava habituada. Na verdade, estava bastante quente e ela notou algumas pessoas mais ao fundo, com vestimentas muito leves.
Mas não estava mais escuro no fundo. O teto tinha a mesma altura em toda a habitação, cerca de 3,6 metros, e havia aberturas para a fumaça acima de cada fogueira, que deixavam também a luz penetrar. Caibros de ossos de mamute, cheios de roupas, implementos e alimentos, estendiam-se pelo local, mas a parte central do teto era feita com muitos chifres de rena entrelaçados.
De repente, Ayla sentiu um odor que lhe encheu a boca de água. É carne de mamute, pensou. Não comia a carne saborosa e tenra de mamute desde que deixara a caverna do Clã.
Havia outros odores deliciosos de comida também, alguns familiares, Outros não, mas, combinava-se para lembrar-lhe que estava com fome.
Enquanto eram conduzidos ao longo de uma passagem freqüentada que descia em direção ao meio da habitação comunal, próxima a várias fogueiras, ela notou largos bancos com peles empilhadas sobre eles, projetando-se das paredes. Algumas pessoas estavam sentadas ali, descansando ou conversando. Ela sentiu que a olhavam quando passou. Viu mais arcadas de presas de mamutes nas partes laterais, e se perguntou aonde levariam, mas hesitou em indagar.
É como uma caverna, pensou, uma caverna grande e confortável. Mas as presas em arco e os grandes e longos ossos de mamutes, usados como pilares, suportes e paredes, fizeram-na compreender que não era uma caverna descoberta por alguém. Era uma das que eles haviam construído!
A primeira dependência, onde a carne cozinhava, era maior que o resto, e o mesmo acontecia à quarta, aonde Talut os conduziu. Vários bancos de dormir vazios ao longo das paredes, aparentemente sem uso, mostravam como eram construídos.
Quando o solo inferior fora escavado, largas plataformas de terra foram deixadas exatamente abaixo do nível do chão, ao longo dos dois lados e fixadas com ossos de mamute estrategicamente colocados. Mais ossos de mamute, estavam colocados ao longo do topo das plataformas, cheios com capim entrelaçado entre os espaços, para erguer e sustentar enxergas de couro macio estofadas com lã de mamute e outros materiais penugentos, Com várias camadas de peles adicionais, as plataformas de barro tornavam-se leitos ou camas quentes e confortáveis, Jondalar se perguntou se a fogueira para onde foram levados estava desocupada. Parecia vazia, mas apesar de todos os espaços nus, tinha aparência de ser habitada. As brasas brilhavam na fogueira, peles e couros empilhavam-se em alguns dos bancos, e ervas secas pendiam de suportes.
- Em geral, os visitantes ficam na Fogueira do Mamute - explicou Talut -, se Mamut não faz objeção. Vou perguntar.
-. Claro que podem ficar, Talut.
A voz veio de um banco vazio. Jondalar deu meia-volta e fitou uma das pilhas de peles que se moveu. Então, dois olhos cintilaram num rosto marcado, a maçã direita com distintivos tatuados que caíam nos vincos e costuravam através das rugas de idade inacreditável, O que ele imaginara ser uma pele de animal de inverno, revelou-se uma barba branca. Duas canelas compridas e finas desembaraçaram-se de uma posição de pernas cruzadas e caíram sobre a borda do estrado erguido, para o chão.
- Não fique tão surpreso, homem dos Zelandonii. A mulher sabia que eu estava aqui - disse o velho com voz forte, que sugeria pouco a sua idade avançada.
- Sabia, Ayla? - perguntou Jondalar, mas ela não pareceu ouvi-lo. Ayla e o velho estavam presos ao domínio dos olhos um do outro, fitando-se como se um pudesse ver a alma do outro. Então, a jovem caiu ao chão diante do velho Mamut, cruzando as pernas e inclinando a cabeça.
Jondalar estava curioso e embaraçado. Ayla usava a linguagem de sinais que, ela lhe contara, a gente do Clã utilizava para se comunicar. Aquela maneira de sentar era a postura de deferência e respeito que uma mulher do Clã assumia quando pedia permissão para expressar-se. A única vez em que ele a vira naquela posição foi quando ela tentava dizer-lhe algo muito importante, alguma coisa que não podia comunicar de outra forma quando as palavras que ele lhe havia ensinado não eram suficientes para dizer-lhe como ela se sentia. Perguntou-se como algo podia ser expresso mais claramente, numa linguagem em que gestos e ações fossem mais usados que palavras, porém ficara mais surpreso ao saber que aquelas pessoas se comunicavam de qualquer moda.
Desejou, porém, que ela não houvesse feito aquilo, ah. Seu rosto ficou rubro ao vê-la usar sinais dos cabeças-chatas em publico, daquela maneira, e quis apressar-se lhe dizer que se levantasse, antes que mais alguém a visse. De qualquer forma, a postura o fazia sentir-se inconfortável, como se ela lhe oferecesse a reverência e homenagem, devidas a Dom, a Grande Mãe Terra. Ele havia pensado naquilo como algo particular, entre eles, pessoal, não uma coisa a ser mostrada a outra pessoa. Uma coisa era fazê-lo com ele, quando estavam sozinhos, mas ele queria que ela causasse boa impressão àquelas pessoas. Queria que gostassem dela. Não desejava que conhecessem o background de Ayla.
O Mamut lançou-lhe um olhar penetrante, depois se voltou a Ayla. Examinou-a um momento, em seguida inclinou-se e deu-lhe um tapinha no ombro.
Ayla levantou a cabeça e viu olhos sábios, bondosos, num rosto enrugado, com dobras delicadas e vincos suaves. A tatuagem sob o olho direito deu-lhe a impressão fugidia de uma órbita escurecida e da falta de um olho, e por um segundo ela pensou que fosse Creb.
Mas o velho santo do Clã, que com Iza a havia criado e zelado por ela, estava morto e Iza também. Então, quem era aquele homem que lhe provocara tais sentimentos fortes? Por que estava ela sentada aos pés dele, como uma mulher do Clã? E como ele soubera a resposta adequada do Clã?
- Levante-se, minha cara. Conversaremos mais tarde - disse o Mamut. - Precisa de tempo para repousar e comer. Isto são camas... Locais de dormir. - explicou, indicando os bancos, como se soubesse que era algo de que precisava contar a ela. - Há peles extras e roupas ali.
Ayla ficou de pé graciosamente. O velho observador viu anos de prática no movimento e acrescentou essa informação ao seu conhecimento crescente sobre a mulher. Durante o rápido encontro, ele já sabia mais sobre Ayla e Jondalar do que qualquer outro individuo do acampamento. Entretanto ele tinha uma vantagem, sabia mais a respeito de onde Ayla viera, do que qualquer outra pessoa no acampamento.
O assado de mamute fora levado para o exterior numa grande travessa de osso pélvico com várias raízes e vegetais e frutas para que se usufruísse a refeição ao sol do fim de tarde. A carne de mamute estava tão saborosa e macia quanto Ayla recordava, mas ela teve um instante de dificuldade quando a refeição foi servida. Desconhecia o protocolo. Em certas ocasiões, em geral mais formais, as mulheres do Clã comiam separadamente dos homens.
Comumente, contudo, sentavam-se em grupos familiares, juntos, mas, mesmo assim, os homens eram servidos em primeiro lugar.
Ayla ignorava que os Mamutoi homenageavam os hóspedes oferecendo-lhes o primeiro e escolhido pedaço, ou que o costume ditava, em deferência com a Mãe, que uma mulher desse a primeira mordida. Ayla se retraiu quando a comida foi trazida, mantendo-se atrás de Jondalar, tentando observar os outros discretamente. Houve um momento de confusão enquanto todos relutavam, esperando que ela começasse, e ela continuava tentando se manter atrás deles.
Alguns membros do grupo perceberam a ação e, com sorrisos maliciosos, começaram a fazer troça, mas Ayla não achou graça. Sabia que fazia algo errado, e não adiantava observar Jondalar. Ele também tentava empurrá-la para frente.
Mamut veio em seu auxílio. Tomou-lhe o braço e conduziu-a a travessa de osso de assado de mamute em fatias grossas.
- Espera-se que coma primeiro, Ayla – disse, ele.
- Mas sou uma mulher! - protestou ela.
- Por isto deve comer primeiro. É nossa oferta à Mãe, e é melhor se uma mulher a aceitar em Seu nome. Tire o melhor pedaço, não para seu bem, mas para honrar Mudo - explicou o velho.
Ela olhou para ele, primeiro com surpresa, depois com gratidão. Pegou um prato, uma peça de marfim ligeiramente curva lascada de uma presa e, com grande seriedade, escolheu cuidadosamente a melhor fatia. Jondalar lhe sorriu, sacudindo a cabeça em aprovação; depois os outros avançaram para servir-se. Quando terminou, Ayla pós o prato no chão, onde vira, os outros colocarem os seus.
- Perguntei-me se antes nos mostrava uma nova dança - disse uma voz próxima, atrás dela.
Ayla se voltou para ver os olhos escuros do homem com pele marrom. Não compreendeu a palavra “dança”, mas seu sorriso largo era amistoso. Ela devolveu-lhe o sorriso.
- Alguém já lhe disse como é bonita quando sorri? - disse ele.
- Bonita? Eu? - Ela riu e sacudiu a cabeça, incrédula.
Jondalar dissera quase as mesmas palavras, certa vez, mas Ayla não pensava assim sobre si mesma. Desde muito antes de chegar à vida adulta, fora mais magra e mais alta do que as pessoas que a criaram. Ela parecera tão diferente, com sua testa proeminente e o osso engraçado sob a boca, que Jondalar chamava de queixo, que sempre se considerara grande e feia.
Ranec observava intrigado. Ela riu com descontração infantil, como se pensasse realmente que ele dissera algo engraçado. Não era a resposta que ele esperava. Um sorriso tímido, talvez, ou um convite sagaz risonho, mas os olhos cinza-azulados não tinham astúcia, e nada havia de reservado ou acanhado na maneira pela qual ela atirou a cabeça para trás ou afastou do caminho os longos cabelos.
Em vez disso, ela se moveu com a graça fluida natural de um animal, talvez um cavalo ou um leão. Possuía uma aura à sua volta, um atributo que ele não podia definir claramente, mas tinha elementos de honestidade e candura totais, não obstante algum mistério profundo. Parecia inocente como um bebê, aberta para tudo, mas era mulher em cada partícula, uma mulher alta e formidável, inflexivelmente bonita.
Ele a examinou com curiosidade e interesse. Seu cabelo espesso e longo, com uma ondulação natural, era brilhante como ouro, como um campo de feno soprando ao vento; os olhos eram grandes e separados e emoldurados por pestanas um pouco mais escuras que o cabelo. Com o sentido experiente de um escultor, examinou a estrutura lisa elegante do rosto, a graça musculosa do corpo, e quando seus olhos alcançaram-lhe os seios exuberantes e os quadris convidativos assumiram uma expressão que a desconcertou.
Corou e desviou o olhar. Embora Jondalar lhe houvesse dito que era adequado, não estava certa de gostar daquele olhar direto de alguém. Fazia com que se sentisse indefesa, vulnerável. As costas de Jondalar estavam voltadas para ela quando olhou em sua direção, porém a postura do homem lhe disse mais que palavras. Ele estava zangado. Por quê? Tinha ela feito alguma coisa que o encolerizasse?
- Talut! Ranec! Barzec! Vejam quem está aqui! - gritou uma voz. Todos se voltaram para olhar. Várias pessoas subiam a elevação chegando ao topo da encosta. Nezzie e Talut começaram a subir a colina enquanto um jovem se afastou, correndo em direção a eles.
Encontraram-se no meio do caminho e se abraçaram com entusiasmo. Ranec se apressou também para ir ao encontro de um daqueles que se aproximavam e, embora o cumprimento fosse mais contido, foi ainda com afeto caloroso que abraçou o homem mais velho.
Ayla observava com uma sensação de estranho vazio, enquanto o resto das pessoas do acampamento abandonava os visitantes em sua ansiedade para saudar os amigos e parentes que regressavam, todos falando e rindo ao mesmo tempo. Ela era Ayla de Nenhum Povo. Não tinha lugar aonde ir, não tinha lar para onde retornar, nenhum Clã para lhe dar boas-vindas com abraços e beijos. Iza e Creb, que a amaram, estavam mortos, e ela estava morta para aqueles a quem amava.
Uba, filha de Iza, fora uma irmã tanto quanto era possível ser; eram parentes por amor, se não por sangue. Mas Uba fecharia seu coração e mente para Ayla se a visse agora; recusaria acreditar em seus olhos; não acreditaria em seus olhos, não a veria. Broud a havia amaldiçoado com a morte. Ela estava, portanto, morta.
E Durc se lembraria dela sequer? Ela tivera que deixá-lo com o Clã de Brun. Mesmo se ela tivesse podido roubá-lo, teriam sido apenas os dois.
Se alguma coisa lhe acontecesse, ele ficaria sozinho. Era melhor deixá-lo com o Clã. Uba o amava e cuidaria dele. Todos o amavam - exceto Broud. Brun o protegeria, contudo, e lhe ensinaria a caçar. E ele cresceria forte e bravo, e seria tão bom quanto ela era com uma funda, e seria um corredor rápido e...
De repente, reparou num membro do acampamento que não havia subido a ladeira correndo. Rydag estava perto da habitação de terra, com uma das mãos sobre uma presa de mamute, fitando com olhos arregalados o grupo de pessoas risonhas, felizes, que caminhavam de volta. Ela as viu então, através dos olhos do menino, abraçadas, com crianças ao colo, enquanto outras crianças saltavam pedindo para serem carregadas. Ele respirava com dificuldade, achou ela, sentindo demasiada excitação.
Ela caminhou para o menino e viu Jondalar mover-se na mesma direção.
- Eu ia levá-lo lá em cima - disse ele. Jondalar também notara o menino e os dois tiveram o mesmo pensamento.
- Sim, faça isso - disse ela. - Whinney e Racer podem ficar nervosos novamente perto de toda essa nova gente. Vou ficar com eles.
Ayla observou Jondalar pegar no colo a criança de cabelos escuros, colocá-la nos ombros e subir a encosta com passos largos em direção às pessoas do Acampamento do Leão. O jovem, quase da altura de Jondalar, que Talut e Nezzie receberam tão afetuosamente, estendeu os braços para o menino com claro prazer e cumprimentou-o, depois colocou Rydag em seus ombros para voltar à moradia. Ele é amado, pensou Ayla, e lembrou-se de que ela também fora amada, apesar de sua diferença.
Jondalar a viu observando-os e lhe sorriu. Ela sentiu um ímpeto afetuoso de sentimento pelo homem amoroso, sensível, embaraçada ao pensar que tivera pena de si mesma momentos antes. Não estava mais sozinha. Tinha Jondalar. Amava o som do seu nome e seus pensamentos se ocuparam dele e de seu sentimento por ele.
Jondalar. O primeiro dos Outros que ela havia visto, que era capaz de lembrar; o primeiro com um rosto como o dela, olhos azuis como os dela - apenas mais azuis; os olhos dele eram tão azuis que era difícil acreditar que fossem verdadeiros.
Jondalar. O primeiro homem que conhecera que era mais alto que ela; o primeiro que rira com ela e o primeiro a derramar lágrimas de tristeza - pelo irmão que ele havia perdido.
Jondalar. O homem que fora trazido como dádiva do seu totem, ela estava certa, para o vale onde ela se fixara depois de deixar o Clã, quando se cansara de procurar os Outros parecidos com ela.
Jondalar. O homem que lhe ensinara a falar novamente, com palavras, não apenas a linguagem de sinais do Clã. Jondalar, cujas mãos sensíveis eram capazes de moldar uma ferramenta, ou coçar um pequeno cavalo, ou erguer uma criança e colocá-la às costas. Jondalar que lhe ensinou as alegrias do seu corpo - e do dele - e que a amava, e que ela amava mais do que imaginara possível amar alguém.
Ela caminhou em direção ao rio e por uma curva, onde Racer estava amarrado a uma árvore mirrada por uma corda comprida. Enxugou os olhos molhados com a palma da mão, vencida pela emoção que ainda era tão nova para ela. Estendeu a mão para seu amuleto, uma pequena bolsa de couro presa e uma correia ao redor do pescoço. Sentiu os objetos grumosos que continha e dirigiu o pensamento para seu totem.
“Espírito do Grande Leão da Caverna, Creb sempre dizia que era difícil conviver com um totem poderoso. Ele tinha razão. A prova sempre é difícil, mas tem valido a pena, sempre. Esta mulher é grata pela proteção, e pelas dádivas do poderoso totem. Os dons interiores das coisas aprendidas, e os dons daqueles por quem me interesso, como Whinney, Racer e Bebê e, mais que todos, Jondalar”.
Whinney se aproximou de Ayla, quando ela alcançou o potro, e bufou-lhe um cumprimento suave. Ela colocou a cabeça sobre o pescoço da égua. A mulher se sentia cansada, esgotada. Não estava habituada com tantas pessoas, tanta coisa acontecendo, e as pessoas que falavam uma língua eram muito ruidosas! Ela estava com dor de cabeça, as têmporas martelavam, e o pescoço e ombros doíam. Whinney encostou-se nela, e Racer, reunindo-se a elas, acrescentou a pressão do seu flanco, até ela se sentir comprimida entre os animais. Não se importou, contudo.
- Chega! - exclamou, afinal, dando um tapa no flanco do potro.
- Está grande demais, Racer, para me colocar no meio, assim. Olhe para você! Veja como está grande. Quase tão grande quanto sua mãe! - Coçou-o, depois esfregou Whinney e lhe deu um tapinha carinhoso, notando o suor seco. - É difícil para você também, não é. Mais tarde eu lhe darei uma boa esfregadela e a escovarei, mas as pessoas estão chegando agora, assim, provavelmente, você receberá mais atenção. Não será tão ruim quando elas se acostumarem com você.
Ayla não notou que ela usara a linguagem particular que desenvolvera durante os anos que passara sozinha, tendo somente animais por companhia. Compunha-se em parte de gestos do Clã, e parcialmente de verbalizações de algumas das poucas palavras que o Clã falava, imitações de animais, e as palavras tolas que ela e o filho tinham começado a empregar.
Para qualquer outra pessoa, era provável que os sinais com a mão não tivessem sido notados, e ela pareceria murmurar uma série de sons muito peculiar; grunhidos e resmungos e sílabas repetitivas. Talvez não fosse considerada como língua.
“Talvez Jondalar escove Racer também”.
Parou, de repente, quando um pensamento perturbador lhe ocorreu. Estendeu a mão para o amuleto novamente e tentou conter seus pensamentos.
“Grande Leão da Caverna, Jondalar também é seu escolhido agora, ele tem as cicatrizes de sua marca na perna, como eu tenho”. Mudou os pensamentos para a antiga linguagem silenciosa falada somente com as mãos; a linguagem adequada para se dirigir ao mundo dos espíritos.
“Espírito do Grande Leão da Caverna, o homem que foi escolhido não tem conhecimento dos totens. O homem não sabe sobre as provas, nem sobre os julgamentos de um totem poderoso, ou os dons e o aprendizado. Até esta mulher que sabe os achou, difíceis. Esta mulher pede ao Espírito do Leão da Caverna.., pede por esse homem...”
Ayla parou. Não estava certa sobre o que pedia. Não queria pedir ao espírito para não testar Jondalar - não queria que ele fosse privado dos benefícios que tais provas teriam, com grande certeza - e nem mesmo que fosse condescendente com ele. Desde que ele havia sofrido grandes provações e conseguido, talentos únicos e impares, ela viera a acreditar que os benefícios eram proporcionais ao rigor da prova. Ela reuniu seus pensamentos e prosseguiu.
“Esta mulher pede ao Espírito do Grande Leão da Caverna para ajudar esse homem, que foi escolhido, a conhecer o valor de seu poderoso totem, a saber, que não importa quão difícil possa parecer a prova, ela é necessária.” Afinal, terminou e deixou as mãos caírem.
- Ayla?
Ela deu meia-volta e viu Latie.
- Sim.
- Parece estar... Ocupada. Não quis interrompê-la.
- Acabei.
- Talut gostaria que você viesse e trouxesse os cavalos. Ele já disse a todos que não devem fazer nada que você não queira. Para não assustar os animais, ou deixá-los nervosos... Acho que ele fez algumas pessoas ficarem nervosas.
- Eu irei - disse Ayla, depois sorriu. - Gosta de andar a cavalo? - interrogou.
O rosto de Latie se abriu em um sorriso largo.
- Posso? De verdade? - Quando ela sorria daquele jeito, parecia-se com Talut, pensou Ayla.
- Talvez as pessoas não fiquem nervosas quando virem você montando Whinney. Venha.
Aqui está uma pedra, ajudará você a subir.
Quando Ayla fez a curva do rio seguida por uma égua adulta, com a menina montada nela e um potro brincalhão atrás, toda a conversa cessou. Aqueles que tinham visto a cena antes, embora ainda assombrados, divertiam-se com as expressões de incredulidade aturdida nos rostos dos outros.
- Está vendo, Tulie? Eu lhe disse! - exclamou Talut para uma mulher de cabelos escuros que se parecia com ele em tamanho, se não na cor. Ela era mais alta que Barzec, o homem da última fogueira, que estava de pé ao seu lado, o braço ao redor de sua cintura.
Perto deles encontravam-se os dois meninos dessa fogueira, de treze e oito anos, e sua irmã de seis, que Ayla conhecera recentemente.
Quando chegaram à habitação de terra, Ayla tirou Latie de cima da égua, depois acariciou e deu tapinhas em Whinney, cujas narinas se alargavam ao farejar novamente o odor de pessoas estranhas. A garota correu para um rapaz ruivo, desajeitado, de uns quatorze anos talvez, quase tão alto quanto Talut e, exceto pela idade e pelo corpo ainda não totalmente desenvolvido, quase idêntico a ele.
- Venha conhecer Ayla - disse Latie, puxando-o na direção da mulher com os cavalos. Ele se deixou levar. Jondalar se moveu a fim de manter Racer calmo.
- Este é meu irmão Danug - explicou Latie. - Ele ficou longe muito tempo, mas permanecerá em casa agora, já que sabe tudo sobre sílex de minas. Não é, Danug?
- Não sei tudo sobre isso, Latie – falou, ele, um pouco embaraçado.
- Eu o saúdo - disse Ayla sorrindo e estendendo as mãos.
Ele ficou ainda mais constrangido. Era o filho da Fogueira do Leão, devia ter saudado a visitante, primeiro, mas estava surpreendido pela bela desconhecida que possuía tanto poder sobre os animais. Ele tomou-lhe as mãos e murmurou um cumprimento. Whinney escolheu esse momento para resfolegar e empinar, e ele soltou as mãos de Ayla depressa, sentindo, por alguma razão, que a égua desaprovava.
- Whinney aprenderia a conhecê-lo melhor se a acariciasse e a deixasse sentir seu odor - disse Jondalar, sentindo o desconforto do rapaz. Era uma idade difícil, não mais uma criança, mas ainda não um homem.
- Andou aprendendo a arte de mineração de sílex? - perguntou ele, amável, tentando colocar o rapaz à vontade, enquanto lhe mostrava como acariciar o animal.
- Sou um trabalhador de sílex. Wymez tem me ensinado desde que eu era criança - disse o rapazola com orgulho. - Ele é o melhor, mas queria que eu aprendesse algumas outras técnicas, e como julgar a pedra bruta. - Com a conversa voltada para tópicos familiares, o entusiasmo natural de Danug veio à tona.
Os olhos de Jondalar se iluminaram com interesse sincero.
- Também trabalho com sílex e aprendi meu oficio com um homem que é o melhor.
Quando tinha a sua idade, mais ou menos, vivi com ele perto da mina de sílex que descobriu.
Eu gostaria de conhecer seu professor, um dia.
- Então, deixe que o apresente, já que sou o filho de sua fogueira... E o primeiro, embora não o único, usuário de suas ferramentas.
Jondalar se virou ao som da voz de Ranec, e notou que todo o acampamento formava um círculo. De pé, ao lado do homem de pele escura, encontrava-se aquele que Ranec saudara com tanto entusiasmo. Apesar de serem da mesma altura, Jondalar não viu nenhuma outra semelhança. O cabelo do homem mais velho era liso e castanho-claro salpicado de cinza, os olhos de um azul comum, e não havia semelhança entre as suas e as feições distintamente exóticas de Ranec. A Mãe devia ter escolhido o espírito de outro homem para filho de sua fogueira, pensou Jondalar, mas por que Ela escolhera um com uma cor tão rara?
- Wymez, da Fogueira da Raposa do Acampamento do Leão, Mestre de Sílex dos Mamutoi - disse Ranec com formalidade exagerada -, conheça nossos visitantes, Jondalar dos Zelandonii, outro de sua classe, parece. - Jondalar sentiu uma tendência oculta de... Não estava certo. Humor? Sarcasmo? Alguma coisa. - E sua bela companheira, Ayla, uma mulher de Nenhum Povo, mas de grande encanto... E mistério. - Seu sorriso atraiu os olhos de Ayla com o contraste entre os dentes brancos e a pele escura, e os olhos escuros cintilaram com expressão sagaz.
- Saudações - disse Wymez, tão simples e direto quanto Ranec havia sido rebuscado. - Trabalha a pedra?
- Sim, sou um britador de sílex - replicou Jondalar.
- Tenho excelente pedra comigo. Recém-tirada da fonte, não secou totalmente ainda.
- Tenho um malho e um bom buril em minha trouxa - disse Jondalar, imediatamente interessado. - Usa um buril?
Ranec lançou um olhar penalizado a Ayla enquanto a conversa mudava rapidamente para suas habilidades mútuas.
- Eu podia ter-lhe dito que isto aconteceria - disse ele. - Sabe qual a pior parte de viver na fogueira de um ferramenteiro-mestre? Nem sempre é ter lascas de pedra em suas peles, é sempre ter uma conversa sobre pedra em seus ouvidos. E depois que Danug mostrou interesse... Pedra, pedra, pedra... É só o que ouço. - O sorriso cálido de Ranec desmentia sua queixa, e todos a tinham, obviamente, ouvido antes, já que ninguém prestou muita atenção, com exceção de Danug.
- Eu não sabia que isto o incomodava tanto - disse o jovem.
- Não incomoda - disse Wymez ao rapazola. - Não percebe quando Ranec está tentando impressionar uma mulher bonita?
- Na verdade, sou-lhe grato, Danug. Até você chegar, acho que esperava tornar-me um trabalhador de sílex - falou Ranec para aliviar a preocupação de Danug.
- Não depois de eu compreender que seu único interesse em minhas ferramentas era o de esculpir marfim com elas, e isto não foi muito depois de chegarmos aqui - falou Wymez, depois sorriu e ajuntou: - E se acha que lascas de sílex em sua cama são coisa ruim, devia tentar pó de marfim em sua comida.
Os dois homens diferentes sorriam um para o outro, e Ayla compreendeu com alívio que brincavam, provocando-se verbalmente de forma amistosa. Também observou que apesar de toda a diferença na cor e nas feições exóticas de Ranec, seu sorriso era semelhante, e os corpos moviam-se da mesma maneira.
De repente, ouviu-se gritaria vinda do interior da habitação comunal.
- Fique fora disso, velha! Isto é entre Fralie e mim. - Era uma voz de homem, o homem da sexta fogueira, vizinha da última. Ayla lembrou-se de tê-lo conhecido.
- Não sei por que ela escolheu você, Frebec! Eu jamais o teria permitido! - retrucou uma mulher. De repente, uma mulher mais velha irrompeu da passagem em arco, arrastando consigo uma jovem que chorava. Dois meninos espantados as seguiam, um de cerca de sete anos, o outro um bebê de dois anos, nu e com o polegar na boca.
- A culpa é toda sua. Ela lhe dá ouvidos, demasiadamente. Por que não pára de interferir?
Todos deram as costas - já tinham ouvido tudo aquilo antes, inúmeras vezes. Mas Ayla encarava, surpresa. Nenhuma mulher do Clã teria discutido com qualquer homem daquela forma.
- Frebec e Crozie estão brigando de novo, não ligue para eles - falou Tronie. Era a mulher da quinta fogueira - a Fogueira da Rena, lembrou Ayla. Era a seguinte depois da Fogueira do Mamute, onde ela e Jondalar estavam. A mulher mantinha um bebê contra seu seio.
Ayla encontrara a jovem mãe da fogueira vizinha anteriormente, e se sentira atraída a ela.
Tornec, seu companheiro, pegou a filha de três anos que se agarrava à mãe, ainda não aceitando o bebê novo que roubara seu lugar no seio materno. Eram um jovem casal amoroso e afável, e Ayla estava contente por serem eles a morar na fogueira seguinte, e não aqueles que discutiam. Manuv, que vivia com eles, viera falar com ela enquanto comiam, e contou-lhe que ele fora o homem da fogueira quando Tornec era jovem, e era o filho de um primo de Mamut. Disse que passava o tempo, muitas vezes, na quarta fogueira, o que a agradou. Ela sempre gostara muito de pessoas mais velhas.
Não se sentia tão à vontade com a fogueira vizinha do lado oposto, a terceira. Ranec vivia nela - e a chamara Fogueira da Raposa. Ela não desgostava dele, mas Jondalar agia tão estranhamente em relação a ele... Era uma fogueira menor, todavia, com apenas dois homens, e tomava menos espaço na habitação comunal. Assim, ela se sentia mais perto de Nezzie e Talut, na segunda fogueira, e de Rydag. Gostava das outras crianças da Fogueira do Leão, de Talut, também, Latie e Rugie, a filha mais nova de Nezzie, de idade bem próxima à de Rydag. Agora, que havia conhecido Danug, gostava dele também.
Talut se aproximou com a mulher grande. Barzec e as crianças estavam com eles e Ayla imaginou que eram companheiros.
- Ayla, quero que conheça minha irmã, Tulie, da Fogueira dos Auroques, a chefe do Acampamento do Leão.
- Saudações - disse a mulher, estendendo as duas mãos na forma protocolar. - Em nome de Mut, eu lhe dou boas-vindas. - Como irmã do chefe ela era da sua categoria e consciente de suas responsabilidades.
- Eu a saúdo, Tulie - respondeu Ayla, tentando não encará-la.
A primeira vez que Jondalar pôde ficar de pé, fora um choque descobrir que ele era mais alto que ela, porém ver uma mulher que era mais alta era ainda mais espantoso. Ayla sempre fora mais alta que todos do Clã. Mas a chefe era mais que alta, era musculosa e de aparência forte. O único que a ultrapassava em tamanho era o irmão. Ela se comportava com a presença que somente peso e altura pura podem dar e a auto-segurança inegável de uma mulher, mãe, e líder completamente confiante e com o controle de sua vida.
Tulie se perguntou sobre o estranho sotaque da visitante, porém outro problema a preocupava mais e, com a franqueza típica de seu povo, não hesitou em abordá-lo.
- Eu não sabia que a Fogueira do Mamute estaria ocupada quando convidei Branag a voltar conosco. Ele e Deegie serão unidos neste verão. Ele ficará apenas alguns dias, e sei que ela havia esperado que pudessem passar estes dias um pouco sozinhos, longe da irmã e dos irmãos dela. Por você ser uma hóspede, Deegie não pediria, mas ela gostaria de ficar na Fogueira do Mamute com Branag, se não fizer objeção.
- E uma fogueira grande. Muitas camas. Não faço objeção - disse Ayla sentindo-se pouco à vontade com a pergunta. Não era o seu lar.
Enquanto falavam, uma jovem saiu da habitação de terra, seguida por um rapaz. Ayla olhou duas vezes. Tinha quase a idade de Ayla, era entroncada e um pouquinho mais alta! Tinha o cabelo castanho-escuro e um rosto simpático que muitos diriam que era bonito, e era evidente que o rapaz que a acompanhava achava-a muito atraente. Mas Ayla não prestava grande atenção à aparência física da moça, fitava com assombro a roupa da jovem.
Vestia perneiras e uma túnica de couro de uma cor quase igual à do cabelo - uma túnica comprida, profusamente enfeitada, vermelho-ocre, que se abria na frente, e cintada para ser mantida fechada. Vermelho era uma cor sagrada para o Clã. O saquinho de Iza era o único objeto que Ayla possuía que fora tingido de vermelho. Continha às raízes especiais usadas para fazer a bebida para as cerimônias importantes. Ela ainda o possuía, cuidadosamente guardado em sua sacola de remédios onde carregava as ervas secas utilizadas na magia da cura. Uma túnica inteira feita de couro vermelho? Era difícil de acreditar.
- É tão bonita! - exclamou Ayla, mesmo antes de ser apresentada adequadamente.
- Gosta? E para meu matrimônio, quando formos unidos. A mãe de Branag me deu, e tive que vesti-la para mostrar a todos.
- Nunca vi uma coisa assim! - exclamou Ayla, os olhos arregalados.
A jovem estava encantada.
- E você que se chama Ayla, não é? Meu nome é Deegie, e este é Branag. Ele tem que voltar dentro de poucos dias - disse, parecendo desapontada -, mas depois do próximo verão estaremos juntos. Vamos morar com meu irmão Tarneg. Ele vive com sua mulher e sua família agora, mas quer erguer um novo acampamento e tem andado atrás de mim para que eu arranjasse um companheiro a fim de ele ter uma chefe.
Ayla viu Tulie sorrindo e sacudindo a cabeça afirmativamente para a filha e se lembrou do pedido.
- A fogueira tem muito espaço, muitos leitos vazios, Deegie. Você fica na Fogueira do Mamute com Branag? Ele também é visitante, se Mamut não se importar. A fogueira é de Mamut.
- A primeira mulher dele foi a mãe de minha avó. Já dormi em sua fogueira muitas vezes. Mamut não se importará, não é? - perguntou Deegie ao vê-lo.
- Claro, você e Branag podem ficar, Deegie - disse o velho-, mas lembre-se de que não poderão dormir muito. - Deegie sorriu com ansiedade, enquanto o velho continuava: - Com visitantes, Danug de volta depois de estar longe por um ano, seu matrimônio e o sucesso de Wymez em sua missão de comércio, acho que há razão para uma reunião na Fogueira do Mamute esta noite e para contar as histórias.
Todos sorriram. Esperavam o anúncio, mas isso não diminuía sua expectativa. Sabiam que uma reunião na Fogueira do Mamute significava a repetição de experiências, contar histórias e, talvez, outra diversão, e esperavam a noite com alegria.
Estavam ansiosos para ouvir notícias de outros acampamentos, e para ouvir novamente as histórias que conheciam. E estavam tão interessados em ver as reações dos estranhos às vidas e aventuras dos membros de seu acampamento, quanto ouvir as histórias que eles tinham que compartilhar.
Jondalar também sabia o que a reunião significava, e incomodava-o. Ayla contaria muito de sua história? O Acampamento do Leão seria tão acolhedor depois? Pensou em levá-la para um lado e preveni-la, mas sabia que ela ficaria apenas zangada e aborrecida. Em muitos aspectos ela era como os Mamutoi, direta e honesta na expressão de seus sentimentos. De qualquer forma, não adiantaria nada. Ela não sabia mentir. No máximo, poderia abster-se de falar.
Ayla passou bastante tempo, à tarde, alisando e esfregando Whinney com um pedaço macio de couro e a cabeça seca espinhosa de um cardo-penteador. Era tão relaxante para ela quanto para a égua.
Jondalar trabalhava amistosamente ao seu lado, usando um cardo em Racer para aliviar os locais que coçavam, enquanto alisava o pêlo emaranhado do potro, embora o animalzinho quisesse brincar, mais do que permanecer parado. A camada interior macia e cálida de Racer havia-se tornado bem mais espessa, lembrando ao homem que breve o frio chegaria até eles, o que o levou a pensar sobre onde passariam o inverno. Ainda não estava certo sobre como Ayla se sentia em relação aos Mamutoi, mas ao menos as pessoas do acampamento e os cavalos se acostumavam uns aos outros.
Ayla também notou o alívio das tensões, mas estava preocupada, sobre onde os cavalos passariam a noite quando ela estivesse no interior da habitação de barro. Eles estavam habituados a dividir uma caverna com ela. Jondalar continuou assegurando que ficariam bem. Os cavalos estavam habituados a ficar fora de casa. Afinal, ela resolveu amarrar Racer próximo à entrada, sabendo que Whinney não se afastaria sem o potro, e que a égua a despertaria se surgisse algum perigo.
O vento se tornou frio quando a noite caiu, e havia uma brisa de neve no ar quando Ayla e Jondalar entraram, mas a Fogueira do Mamute, no meio da moradia quase subterrânea, estava agradável e quente quando as pessoas se reuniram. Muitas se haviam detido para pegar sobras frias da refeição anterior, que tinham sido trazidas para dentro: pequenas raízes amiláceas, cenouras, uvas-do-monte e fatias de assado de mamute. Pegavam as verduras e frutas com os dedos ou um par de pauzinhos usados como pinças, mas Ayla reparou que cada pessoa, exceto as crianças, tinha uma faca para comer a carne. Intrigou-a ver alguém segurar uma fatia grande com os dentes, depois cortar um pequeno pedaço com um movimento rápido da faca para cima - sem perder o nariz.
Pequenas sacolas marrons de água - os estômagos e vesículas preservados e à prova d’água de vários animais - eram passadas e as pessoas bebiam delas com grande prazer.
Talut ofereceu-lhe um gole. Tinha um odor fermentado e um pouco desagradável, e encheu-lhe a boca com um sabor levemente doce, mas fortemente ardente. Ela recusou um segundo oferecimento. Não gostou, embora Jondalar parecesse apreciar a bebida.
As pessoas falavam e riam enquanto encontravam lugares em plataformas ou sobre peles ou capachos no chão. A cabeça de Ayla estava virada, ouvindo uma conversa, quando o nível de barulho caiu claramente. Ela se voltou e viu o velho Mamut de pé, silencioso, atrás da fogueira em que o fogo ardia. Quando toda a conversa cessou e ele conseguiu a atenção de todos, pegou uma pequena tocha apagada e estendeu-a até as chamas quentes até ela se acender. No silêncio expectante de respirações contidas, levou a chama até um pequeno lampião de pedra, que se encontrava em uma reentrância na parede, atrás de si. O pavio de líquen seco crepitou na gordura de mamute e depois se incendiou, revelando uma pequena escultura de marfim, de uma mulher corpulenta, bem-dotada, atrás da lâmpada.
Ayla sentiu uma alfinetada de reconhecimento, embora nunca houvesse visto uma igual àquela antes. É o que Jondalar chama uma donii, pensou. Diz que ela possui o Espírito da Grande Mãe Terra. Ou parte dele, talvez. Parece pequena demais para contê-lo todo. Mas, enfim, quão grande é um espírito?
Sua mente vagou de volta à outra cerimônia, à época em que lhe foi dada à pedra negra que ela carregava no saquinho de amuleto ao redor do pescoço. O pequeno volume de dióxido de manganês negro continha uma parte do espírito de todos no Clã inteiro, não apenas no seu clã. A pedra havia-lhe sido, dada quando ela se tornou curandeira e cedera parte do seu próprio espírito em troca, de modo que, se salvasse a vida de alguém, essa pessoa não tivesse obrigação de dar-lhe alguma coisa de valor e espécie igual, em retribuição. Já havia sido feito.
Ainda ficava perturbada quando recordava que os espíritos não tinham sido devolvidos depois que foi amaldiçoada de morte. Creb os havia tirado de Iza, depois que a velha curandeira morreu, para que não fossem com ela para o mundo espiritual, mas ninguém os tinha tirado de Ayla. Se ela possuía uma parte do espírito de cada membro do Clã, será que Broud fizera com que também fossem amaldiçoados de morte?
Estou morta? Perguntou-se, como já se interrogara muitas vezes antes. Achava que não. Havia aprendido que o poder da maldição de morte estava na crença e que, quando seres amados não reconhecem mais sua existência e você não tem mais lugar aonde ir, pode muito bem morrer. Mas por que ela não morrera? O que a havia impedido de desistir? E, mais importante, o que aconteceria ao Clã quando ela realmente morresse? Sua morte poderia causar dano àqueles a quem amava? Talvez a todo o Clã? A pequena bolsa de couro pesava com a força da responsabilidade, como se o destino de todo o Clã pendesse de seu pescoço.
Ayla foi arrancada de sua reflexão por um som rítmico. Com uma parte de um chifre de veado em forma de martelo, Mamut batia sobre o crânio de um mamute, pintado com linhas geométricas e símbolos. Ayla achou que detectava uma qualidade além do ritmo e observou e ouviu com atenção. A cavidade oca intensificava o som com vibrações harmoniosas, porém era mais que a ressonância simples do instrumento. Quando o velho feiticeiro tocava nas diferentes partes marcadas sobre o tambor de osso, a altura do tom e o timbre mudavam com variações tão complexas e sutis que parecia que Mamut arrancava palavras do tambor, fazendo o velho crânio de mamute falar.
No fundo, e muito baixo em seu peito, o velho começou a entoar um canto de tons menores acuradamente modulados. Enquanto o tambor e a voz se entrelaçavam num intrincado padrão de som, outras vozes se juntavam daqui e dali, em todo o recinto, ajustando-se ao modo estabelecido, no entanto, variando-o de forma independente. O ritmo do tambor era acompanhado por um som similar do lado oposto da dependência. Ayla olhou e viu Deegie tocando outro tambor de caveira. Depois Tornec começou a bater devagar com um martelo de chifre sobre outro osso de mamute, um osso da espádua coberto com divisas e linhas igualmente espaçadas pintadas de vermelho. As graves ressonâncias dos tambores e o timbre agudo da omoplata encheram a habitação de terra com um belo som obsedante. O corpo de Ayla palpitava com movimento e ela observou os outros mexerem seus corpos ao compasso do som. De repente, ele parou.
O silêncio estava pleno de expectativa, mas este se desvaneceu. Não se planejara qualquer cerimônia formal, somente uma reunião informal do acampamento para se passar uma noite agradável em companhia uns dos outros, fazendo o que as pessoas realizavam melhor - falar.
Tulie começou anunciando o acordo feito, e que as núpcias de Deegie e Branag seriam formalizadas no próximo verão. Palavras de aprovação e congratulações foram ditas, embora todos esperassem por aquilo. O jovem casal se inclinou, mostrando seu regozijo.
Depois Talut pediu a Wymez para lhe contar sobre sua missão comercial, e souberam que tal missão envolvia trocas de sal, âmbar e sílex. Várias pessoas fizeram perguntas ou comentários enquanto Jondalar ouvia com interesse, mas Ayla não compreendia e resolveu que o interrogaria mais tarde. Em seguida, Talut perguntou a respeito do progresso de Danug, causando embaraço ao rapaz.
- Ele tem talento, um toque hábil. Mais alguns anos de prática e será muito bom. Ficaram com pena de vê-lo partir. Ele aprendeu bem, valeu a pena o ano longe - relatou Wymez. O grupo pronunciou mais palavras de aprovação. Depois, houve uma calmaria cheia de pequenas conversas particulares, antes de Talut se voltar a Jondalar, o que causou sussurros de excitação.
- Diga-nos, homem dos Zelandonii, como aconteceu de estar sentado no abrigo do Acampamento do Leão dos Mamutoi? - perguntou.
Jondalar engoliu um gole fermentado de uma das pequenas sacolas de água marrons, olhou ao redor para as pessoas que esperavam com ânsia e depois sorriu para Ayla. Já fez isto antes, pensou ela, um pouco surpresa, compreendendo que ele estabelecia o caminho e o tom para contar sua história. Ela se ajeitou para ouvi-lo bem.
- É uma longa história - começou ele, enquanto as pessoas sacudiam as cabeças afirmativamente. Era o que desejavam ouvir. - Meu povo vive muito longe daqui, distante, distante, a oeste, até além da nascente do Grande Rio Mãe que se esvazia no mar Beran. Vivemos perto de um rio também, como vocês, mas nosso rio corre para as Grandes Águas do oeste.
“Os Zelandonii são um grande povo. Como vocês, somos os Filhos da Terra; aquela que chamam Mut, Mudo, chamamos Doni, mas Ela é ainda a Grande Mãe Terra. Caçamos e negociamos e, às vezes, fazemos longas jornadas. Meu irmão e eu resolvemos fazer uma dessas jornadas. - Jondalar fechou um momento os olhos e sua testa enrugou-se de dor.
- Thonolan... Meu irmão... Era muito alegre e adorava uma aventura. Era um favorito da Mãe”.
O sofrimento era real demais. Todos notaram que não era fingimento, para realçar a história. Mesmo sem dizer, as pessoas adivinharam a causa. Também tinham um ditado sobre a Mãe levar cedo aqueles que protegia. Jondalar não planejara revelar seus sentimentos daquela forma. A tristeza o pegou de surpresa e o deixou um pouco constrangido. Mas tal perda é universalmente compreendida. Sua demonstração não-intencional provocou a simpatia deles e fez com que sentissem por ele um carinho que ia além da curiosidade normal e cortesia que ofereciam, em geral, a estranhos não-ameaçadores.
Ele respirou fundo e tentou seguir o fio de sua história.
- A jornada foi de Thonolan no inicio. Eu pretendia acompanhá-lo somente durante um trajeto curto, apenas até o lar de alguns parentes, mas então resolvi ir com ele. Atravessamos uma pequena geleira, que é a nascente do Donau... O Grande Rio Mãe... E dissemos que iríamos segui-lo até o fim. Ninguém acreditou que o fizéssemos, não estou certo se fizemos, mas continuamos avançando, cruzando muitos afluentes e encontrando muitas pessoas.
“Certa vez, durante o primeiro verão, paramos para caçar e enquanto secávamos a carne, nos encontramos cercados por homens apontando lanças para nós...”
Jondalar havia novamente encontrado seu ritmo e manteve o acampamento cativado enquanto tornava a contar suas aventuras. Era um bom contador de histórias, com jeito para estender o suspense. Houve murmúrios e gestos de cabeça de aprovação e palavras de encorajamento, muitas vezes gritos de excitação. Mesmo quando ouvem, pensou Ayla, as pessoas que falam com palavras não estão silenciosas.
Ela estava tão fascinada quanto os outros, mas encontrou-se observando, um instante, as pessoas que ouviam Jondalar. Adultos seguravam crianças ao colo enquanto os filhos mais velhos sentavam-se juntos, vendo o estranho carismático com olhos brilhantes. Particularmente, Danug parecia cativado. Estava inclinado à frente, com atenção enlevada.
- Thonolan entrou no desfiladeiro pensando que estava seguro, tendo a leoa ido embora.
Então, ouvimos o rugido de um leão...
- O que aconteceu então? - indagou Danug.
- Ayla terá que contar o resto. Não me lembro de muita coisa, depois disso.
Todos os olhos se voltaram para ela. Ayla ficou aturdida. Não o esperava; jamais falara antes a um grupo de pessoas. Jondalar lhe sorria. Ele havia pensado, subitamente, que a melhor maneira de acostumá-la a falar com as pessoas era levando-a a fazê-lo. Não seria a última vez que esperariam que narrasse alguma experiência e, com o seu domínio sobre os cavalos ainda fresco na lembrança de todos, a história do leão seria mais crível. Era uma história excitante, sabia ele, e somaria ao mistério de Ayla - e talvez, se os satisfizesse com esta história, não teria que falar sobre seu background.
- O que aconteceu, Ayla? - perguntou Danug, ainda preso à narrativa. Rugie vinha se sentindo tímida e relutante perto do irmão mais velho que se ausentara por tanto tempo, mas, recordando épocas anteriores quando se sentavam em círculo contando histórias, resolveu sentar-se naquele momento ao colo dele. Ele a recebeu bem, com um abraço e sorriso distraído, mas olhando com expectativa para Ayla.
Ayla olhou ao redor, para todos os semblantes voltados para si, tentou falar, mas a boca estava seca, embora as palmas das mãos se encontrassem molhadas.
- Sim, o que aconteceu? - repetiu Latie. Ela estava acomodada próxima a Danug, com Rydag em seu colo.
Os grandes olhos castanhos do menino estavam cheios de excitação. Ele abriu a boca para perguntar também, mas ninguém compreendeu o som emitido - exceto Ayla. Não a própria palavra, mas a intenção. Ela havia ouvido sons semelhantes antes, chegara até a aprender a falá-los. As pessoas do Clã não eram mudas, mas eram limitadas em sua capacidade de articular. Em vez disso, tinham desenvolvido uma linguagem rica e compreensível de sinais para se comunicar, usando palavras somente para ênfase. Ela sabia que a criança pedia-lhe para continuar a história e que as palavras tinham significado para o menino. Ayla sorriu e dirigiu a ele suas palavras.
- Eu estava com Whinney - começou Ayla. Sua maneira de dizer o nome da égua sempre fora uma imitação do murmúrio suave de um cavalo. As pessoas no abrigo não compreenderam que ela dizia o nome do animal. Pensaram, em vez disso, que era um embelezamento maravilhoso da história. Sorriam e pronunciavam palavras de aprovação, encorajando-a a continuar no mesmo tom.
- Ela teve filhote logo - disse Ayla, mantendo as mãos diante do ventre para indicar que a égua estava grávida. - Muito grande. - Houve sorrisos de compreensão. - Todo dia cavalgamos, Whinney precisava sair. Não longe, não depressa.
Sempre para leste, fácil ir para leste. Fácil demais, nada novo. Um dia fomos para oeste, não leste. Ver um lugar novo - continuou Ayla, dirigindo suas palavras a Rydag.
Jondalar estivera lhe ensinando Mamutoi, assim como as outras línguas que conhecia, mas ela não era tão fluente quanto o era na língua dele, aquela que havia aprendido a falar primeiro. Sua forma de falar era estranha, diferente, de uma maneira difícil de explicar, e ela lutou para encontrar palavras, sentindo-se tímida a respeito disso. Mas quando pensou no menino que não era capaz de fazer-se entender de modo algum, teve que tentar. Porque ele havia pedido.
- Ouvi um leão. - Ela não estava certa por que o fazia. Talvez fosse o olhar ansioso no rosto de Rydag, ou a maneira como virou a cabeça para ouvir, ou um instinto, mas acompanhou a palavra “leão” com um rugido ameaçador, que soou como leão verdadeiro para todos. Ouviu pequenos arquejos de medo, risadinhas nervosas, depois palavras alegres de elogio do grupo reunido. Sua capacidade de imitar os sons dos animais era rara. Somava excitação inesperada à sua história. Jondalar sacudia a cabeça e sorria, aprovando também.
- Ouvi homem gritar. - Olhou para Jondalar e seus olhos se encheram de tristeza. - Parei. O que fazer? Whinney esperava bebê. – Produziu os sons agudos de um filhote e foi recompensada com um sorriso e inclinação de cabeça de Latie. - Preocupei-me com cavalo, mas o homem gritava. Ouvi o leão de novo. Prestei atenção. - De alguma forma, conseguiu que o som do rugido do leão parecesse engraçado. - Era “Neném”. Então, entrei no desfiladeiro. Sabia que a égua não seria ferida.
Ayla notou olhares intrigados. A palavra dita não era familiar, embora Rydag pudesse conhecê-la se sua situação fosse diferente. Ela havia dito a Jondalar que era a palavra do Clã para filhote de animal, ou criança pequena.
- Neném é leão - falou, tentando explicar. - Neném é leão que conheço, Neném é... Como filho. Entrei no desfiladeiro, fiz leão ir embora. Encontrei um homem morto. Outro homem, Jondalar, muito ferido. Whinney o carregou de volta para o vale.
- Ah! - exclamou uma voz zombeteira. Ayla ergueu os olhos e viu que era Frebec, o homem que andara discutindo antes com a mulher. - Está tentando dizer que mandou um leão afastar-se de um homem ferido?
- Um leão qualquer, não. Neném - disse Ayla.
- O que é isso... O que está dizendo?
- Neném é palavra do Clã. Significa criança pequena, filhote. É o nome que dei ao leão quando viveu comigo. Neném é um leão que conheci. Égua conhece também, não teve medo. - Ayla estava aborrecida, alguma coisa estava errada, mas ela não tinha certeza do que era.
- Viveu com um leão? Não acredito nisso - escarneceu ele.
- Não acredita? - disse Jondalar, parecendo zangado. O homem acusava Ayla de mentir, e ele sabia muito bem quanto sua história era verdadeira. - Ayla não mente - disse ele, levantando-se para desatar uma correia que se fechava ao redor de suas calças de couro. Abaixou um lado das calças e expôs uma virilha e uma coxa desfiguradas por cicatrizes vermelhas. - Esse leão me atacou, e Ayla não apenas me tirou de perto dele, como se revelou uma curandeira de grande perícia. Eu teria seguido meu irmão para o outro mundo se não fosse ela. Vou lhe dizer mais. Vi-a cavalgar aquele leão, exatamente como cavalga a égua. Vai me chamar de mentiroso?
- Nenhum hóspede do Acampamento do Leão é chamado de mentiroso - falou Tulie, olhando para Frebec com raiva, tentando acalmar uma cena potencialmente ameaçadora. - Acho evidente que você foi gravemente ferido, e certamente vimos à mulher... Ayla... Cavalgar a égua. Não vejo motivo para duvidar de você, ou dela.
Houve um silêncio constrangido. Ayla olhava de um para o outro, confusa. A palavra “mentiroso” lhe era desconhecida, e não entendia por que Frebec dissera não acreditar nela.
Ayla havia crescido entre pessoas que se comunicavam com movimento. Mais do que com sinais manuais, a linguagem do Clã incluía postura e expressões para atenuar significados e oferecer nuanças. Era impossível mentir eficazmente com o corpo inteiro. Podia-se, no máximo, deixar de mencionar algo, e mesmo isso era percebido, embora permitido para o bem da privacidade. Ayla jamais aprendera a mentir.
Mas sabia que alguma coisa estava errada. Podia ler raiva e hostilidade que surgiram tão facilmente quanto se as tivessem expressado em voz alta. Também compreendeu que tentavam conter-se. Talut viu Ayla olhar para o homem de pele escura, depois desviar o olhar. Ao ver Ranec, ele teve uma idéia para aliviar as tensões e voltar à narrativa de histórias.
- Foi uma boa história, Jondalar - retumbou Talut, enviando um olhar duro a Frebec. - É sempre excitante ouvir sobre longas jornadas. Gostaria de ouvir uma história sobre outra longa jornada?
- Sim, muito.
Houve sorrisos em toda parte, enquanto as pessoas relaxavam. Era uma história favorita do grupo e, muitas vezes, não existia a oportunidade de partilhá-la com pessoas que não a tinham ouvido antes.
- É a história de Ranec... - começou Talut.
Ayla olhou para Ranec, expectante.
- Quero saber como homens com pele marrom vieram viver no Acampamento do Leão - disse ela.
Ranec lhe sorriu, mas voltou-se para o homem de sua fogueira.
- É a minha história, mas você deve contá-la, Wymez - disse ele.
Jondalar sentou-se de novo, incerto sobre se gostava do rumo novo que a conversa tomara - ou talvez do interesse de Ayla por Ranec - embora fosse melhor do que a quase franca hostilidade, e ele também estava interessado.
Wymez se acomodou, fez um sinal de cabeça a Ayla, depois, sorrindo para Jondalar, começou:
- Temos mais em comum do que um jeito com pedra, rapaz. Também fiz uma longa jornada em minha juventude. Viajei para o sul, primeiro em direção ao leste, passei pelo mar Beran, e percorri todo o caminho para as praias de um mar muito maior, no sul mais distante. Este mar do Sul tem muitos nomes, porque muitas pessoas vivem em suas praias.
Viajei em sua parte oriental, depois ocidental, ao longo do litoral Sul através de terras de muitas florestas, mais quentes e chuvosas do que aqui.
“Não tentarei contar tudo o que me aconteceu. Guardarei isso para outra ocasião. Vou contar a história de Ranec. Ao viajar para o oeste, encontrei muitas pessoas e permaneci com algumas. Aprendi muitos costumes novos, mas depois ficava inquieto e tornava a viajar. Queria ver até onde eu poderia ir à direção oeste. Depois de vários anos, cheguei a um local, não longe de suas Grandes Águas, acho, Jondalar, mas do outro lado dos estreitos canais onde o mar do Sul se junta a elas. Lá conheci pessoas cuja pele era tão escura que parecia negra, e lá encontrei uma mulher que me atraiu. Talvez, a princípio, fosse a diferença... Suas roupas exóticas, a cor, os olhos negros cintilantes. O sorriso sedutor... e a maneira como dançava e se movia... era a mulher mais excitante que eu já conhecera”.
Wymez falava de forma direta, moderada, mas a história era tão cativante que não necessitava de arte dramática. No entanto, a conduta do homem robusto, calmamente reservado, mudou perceptivelmente quando mencionou a mulher.
- Quando ela concordou em juntar-se a mim, resolvi ficar lá com ela. Sempre tive interesse em trabalhar pedra, mesmo quando jovem, e aprendi a maneira deles de fazer pontas de lança. Eles lascam os dois lados da pedra, entende? - Dirigiu a pergunta a Jondalar.
- Sim, de forma bi facial, como um machado.
- Mas estas pontas não eram tão espessas e brutas. Tinham boa técnica. Também lhes mostrei algumas coisas, e fiquei bastante satisfeito em aceitar seus hábitos, especialmente depois que a Mãe a abençoou com uma criança, um menino. Ela me pediu um nome, como era seu costume, e escolhi Ranec.
Isto explica, pensou Ayla. A mãe dele tinha pele escura.
- O que fez com que resolvesse voltar? - interrogou Jondalar.
- Alguns anos depois que Ranec nasceu, as dificuldades começaram. O povo de pele escura com quem eu vivia se mudara para além do sul mais distante, e algumas pessoas dos acampamentos vizinhos não queriam partilhar as terras de caça. Havia diferenças de costumes. Quase os convenci a se reunir e conversar. Então, alguns jovens exaltados de ambos os lados resolveram lutar, em vez de conversar. Uma morte levou a outra, por vingança, e depois a ataques a acampamentos familiares.
“Providenciamos boas defesas, porém eles eram mais numerosos. A luta continuou por algum tempo e eles nos matavam, um após o outro. Depois de certo tempo, a visão de uma pessoa com pele mais clara começou a causar medo e ódio. Embora eu fosse um deles, começaram a desconfiar de mim e até de Ranec. Sua pele era mais clara que a dos Outros e suas feições tinham um feitio diferente. Conversei com a mãe de Ranec e decidimos partir. Foi uma partida triste, deixar a família e muitos amigos, porém não era seguro ficar. Alguns dos exaltados quiseram até nos impedir de ir embora, mas escapamos de noite com alguma ajuda”.
“Viajamos para o norte, para os canais. Eu sabia que algumas pessoas viviam lá e faziam pequenos barcos que usavam para atravessar o mar amplo. Fomos avisados de que era a estação errada e era difícil uma travessia durante a melhor das condições. Mas sentimos que tínhamos que fugir e resolvemos arriscar”.
“Foi uma decisão errada”, disse Wymez numa voz rigidamente controlada. “O barco virou e somente Ranec e eu conseguimos atravessar, e uma trouxa dos pertences dela”. Fez uma pausa por um momento antes de continuar a história. “Ainda estávamos longe de casa, e demoramos muito tempo, mas chegamos finalmente aqui, durante a Reunião de Verão”.
- Por quanto tempo ficou longe? - interrogou Jondalar.
- Dez anos - respondeu Wymez, depois sorriu. - Provocamos um grande alvoroço. Ninguém esperava tornar a ver-me, muito menos com Ranec. Nezzie não me reconheceu sequer, mas minha irmãzinha era apenas uma menina quando parti. Ela e Talut tinham completado seu matrimônio e criavam o Acampamento do Leão com Tulie e seus dois companheiros, e seus filhos. Convidaram-me a reunir-me a eles. Nezzie adotou Ranec, embora ele ainda seja o filho da minha fogueira, e cuidou dele como se fosse dela, mesmo depois do nascimento de Danug.
Quando ele se calou, foi preciso um instante para compreender que tinha terminado. Todos queriam ouvir mais. Embora a maioria tivesse ouvido a maior parte de suas aventuras, ele sempre parecia ter histórias novas ou novas versões para antigas histórias.
- Acho que Nezzie seria a mãe de todos, se pudesse - disse Tulie, recordando a época de sua volta. - Eu amamentava Deegie, então, e Nezzie nunca se cansava de brincar com ela.
- Ela faz mais do que ser minha mãe! - exclamou Talut com um sorriso brincalhão, enquanto dava tapinhas em suas nádegas grandes. Pegara outro saco de água com a bebida forte e a passava depois de tomar um gole.
- Talut! Muito bem, farei mais do que ser sua mãe! - Ela tentava mostrar-se zangada, mas reprimia um sorriso.
- Ë uma promessa? - contra-atacou ele.
- Sabe o que quero dizer, Talut - disse Tulie, ignorando as indiretas bastante óbvias entre seu irmão e sua mulher. - Ela nem sequer renunciou a Rydag. Ele é tão doente que seria melhor para ele.
Ayla fitou o menino. O comentário de Tulie o havia incomodado. As palavras da mulher não foram intencionalmente maldosas, mas Ayla sabia que ele não gostava que falassem dele como se não estivesse presente. Não havia nada, contudo, que ele pudesse fazer a respeito. Ele não podia dizer a ela como se sentia e, sem pensar, ela imaginava que porque ele não podia falar não sentia tampouco.
Ayla quis perguntar sobre a criança também, mas achou que poderia parecer presunção.
Jondalar o fez em seu lugar, embora fosse para satisfazer sua própria curiosidade.
- Nezzie, quer nos contar sobre Rydag? Acho que Ayla estaria particularmente interessada... E eu também.
Nezzie inclinou-se para frente e pegou a criança de Latie, e segurou-a no colo enquanto punha os pensamentos em ordem.
- Sabe, estávamos fora, atrás de megáceros, os veados gigantes com grandes galhadas – começaram, ela -, e planejávamos construir uma cerca para levá-los para dentro... Este é o melhor meio para caçar os veados de grandes galhadas. Quando notei primeiro a mulher escondida perto de nosso acampamento de caça, achei estranho. Raras vezes se vêem mulheres cabeças-chatas muito, menos sozinhas.
Ayla se inclinou para mais perto, ouvindo atentamente.
- Ela sequer fugiu quando me viu olhando-a, somente quando tentei aproximar-me mais. Então, vi que estava grávida. Pensei que talvez tivesse fome e deixei alimento próximo ao local onde se encontrava escondida. De manhã, o alimento tinha desaparecido e deixei mais, antes de desarmarmos o acampamento. Pensei tê-la visto algumas vezes no dia seguinte, mas eu não estava segura. Então, naquela noite, quando eu estava perto do fogo acalentando Rugie, tornei a vê-la. Levantei-me e tentei me aproximar mais dela. Ela tornou a fugir, mas movia-se como se sentisse dor e compreendi que ia dar à luz. Eu não sabia o que fazer. Queria ajudar, mas ela continuou fugindo, e escurecia. Contei a Talut e ele reuniu algumas pessoas para irem atrás dela.
- Isso também foi estranho - disse Talut, ajuntando sua parte à história de Nezzie. - Achei que teríamos que cercá-la e armar-lhe uma cilada, mas quando lhe gritei para parar, ela apenas se sentou ao solo e esperou. Não me pareceu amedrontada demais e, quando lhe acenei para se acercar, levantou-se imediatamente e seguiu atrás de mim, como se soubesse o que fazer e compreendesse que eu não iria machucá-la.
- Não sei como ela conseguia andar - continuou Nezzie. - Sentia muita dor.
Compreendeu depressa que eu queria ajudá-la, mas não sei quanto auxílio prestei. Eu nem mesmo sabia, com certeza, se ela viveria para dar à luz seu bebê. Ela nunca gritou, no entanto. Por fim, na manhã seguinte, seu filho nasceu. Fiquei surpresa ao ver que era de espíritos mistos. Mesmo tão novo, podia-se dizer que era diferente.
“A mulher estava tão fraca que pensei que talvez a encorajasse a viver, se lhe mostrasse que seu filho vivia, e ela pareceu ansiosa para vê-lo. Mas acho que ela estava muito doente, perdera sangue demais e morreu antes de o sol nascer”.
“Todos me disseram para deixar o bebê morrer com sua mãe, mas de qualquer maneira eu amamentava Rugie e tinha muito leite. Não foi tanto trabalho dar-lhe o meu peito também”.
Ela o abraçou protetora: “Sei que é fraco, talvez eu devesse tê-lo abandonado, mas não poderia amar mais Rydag se fosse meu próprio filho. E não lamento tê-lo protegido”.
Rydag ergueu a cabeça para Nezzie com os grandes olhos castanhos brilhando, depois colocou os braços ao redor do pescoço da mulher e recostou a cabeça a seu seio. Nezzie o ninou enquanto o segurava.
- Algumas pessoas dizem que ele é um animal porque é incapaz de falar, mas sei que ele compreende. E não é tampouco uma “abominação” - acrescentou ela com uma expressão encolerizada dirigida a Frebec. - Somente a Mãe sabe por que os espíritos que o fizeram eram mistos.
Ayla lutava para conter as lágrimas. Ignorava como aquelas pessoas reagiriam às lágrimas; seus olhos úmidos sempre incomodaram a gente do Clã. Observando a criança e a mulher, foi dominada por lembranças. Ansiava por segurar seu filho, e entristecia-se mais uma vez por Iza, que a acolhera e criara, embora ela fosse diferente do Clã, como Rydag era do Acampamento do Leão. Porém, mais que tudo, desejava que existisse alguma maneira de explicar a Nezzie como estava comovida, como era grata em nome de Rydag... E em seu nome. Inexplicavelmente, Ayla sentia que de algum modo ajudaria a retribuir o que Iza fizera, se ela encontrasse uma maneira de auxiliar Nezzie.
- Nezzie, ele sabe - falou Ayla, suavemente. - Não é um animal, não é cabeça-chata. É um filho de Clã e filho dos Outros.
- Sei que ele não é um animal, Ayla - disse Nezzie -, mas o que é Clã?
- Pessoas, como a mãe de Rydag. Vocês dizem cabeça-chata, eles dizem Clã - explicou Ayla.
- O que significa “eles dizem Clã”? Não podem falar – interrompeu Tulie.
- Não falam muitas palavras, mas falam. Falam com as mãos.
- Como sabe? - perguntou Frebec. - O que a faz tão sagaz?
Jondalar respirou fundo e prendeu a respiração em seguida, esperando pela resposta de Ayla.
- Vivi com o Clã antes. Eu falava como o Clã. Não com palavras, até Jondalar aparecer - disse Ayla. - O Clã era meu povo.
Houve um silêncio aturdido quando o significado de suas palavras se tornou claro.
- Quer dizer que viveu com cabeças-chatas! Viveu com aqueles animais sujos! - exclamou Frebec com nojo, levantando-se de um salto e recuando. - Não é de admirar que ela não seja capaz de falar direito. Se ela viveu com eles é tão má quanto eles. Nada senão animais, todos eles, inclusive a sua perversão mista, Nezzie.
O acampamento ficou tumultuado. Mesmo se alguns concordassem com ele, Frebec havia ido longe demais. Ultrapassara os limites da cortesia com os visitantes e chegara até a insultar à companheira do chefe. Mas havia muito tempo que ele se sentia constrangido por pertencer ao acampamento que acolhera a “abominação de espíritos mistos”, e ainda se irritava diante da mãe de Fralie, no round mais recente de sua luta de longa duração. Queria jogar sua impaciência sobre alguém.
Talut bradou em defesa de Nezzie e Ayla. Tulie foi rápida na defesa de honra do acampamento. Crozie, sorrindo com malícia, alternadamente reprovava Frebec e intimidava Fralie, e os Outros expressavam sua opinião em voz alta. Ayla olhava de um para o outro, querendo colocar as mãos sobre os ouvidos para abafar o barulho.
De repente, Talut gritou ordenando silêncio. Foi um brado bastante forte para surpreender e silenciar a todos. Então, ouviu-se o tambor de Mamut. Tinha um efeito calmante, tranqüilizador.
- Acho que antes de mais alguém dizer alguma coisa, devemos ouvir o que Ayla tem a dizer - falou Talut, enquanto o tambor se calava.
As pessoas se inclinaram para frente, atentas, muito desejosas de ouvir para saber sobre a mulher misteriosa. Ayla não estava muito segura de querer dizer mais alguma coisa às pessoas ruidosas, rudes, mas sentiu que não tinha escolha. Então, erguendo um pouco o queixo, achou que, se queriam ouvir, ela lhes contaria, mas partiria de manhã cedo.
- Eu não... Não lembro da infância - começou Ayla -, somente do terremoto e da caverna do leão que fez cicatrizes em minha perna. Iza disse que me encontrou perto do rio... Como é a palavra, Mamut? Não acordada?
- Inconsciente.
- Iza me encontrou perto do rio, inconsciente. Tinha quase a idade de Rydag, pouco menos. Talvez cinco anos. Minha perna estava ferida pela garra do leão da caverna. Iza era... Curandeira. Curou minha perna. Creb... Creb era Mog-ur... Como Mamut... Homem santo... Conhecia o mundo espiritual. Creb me ensinou a falar do jeito do Clã. Iza e Creb... Todo o Clã... Cuidaram de mim. Não sou do Clã, mas cuidaram de mim.
Ayla se esforçava para lembrar-se de tudo que Jondalar lhe dissera sobre sua língua. Não gostara do comentário de Frebec de que ela não era capaz de falar direito, e tampouco do resto que ele havia dito. Lançou um olhar a Jondalar. Sua testa estava franzida. Ele queria que ela tomasse cuidado com alguma coisa. Ela não estava inteiramente certa sobre a razão da preocupação dele, mas talvez não fosse necessário mencionar tudo.
- Cresci com o Clã... Mas parti para encontrar os Outros, como eu. Eu tinha... - Calou-se para pensar na palavra correta. - Quatorze anos então. Iza me disse que os Outros viviam ao norte. Procurei muito tempo, não encontrei ninguém. Então, encontrei o vale e fiquei para me preparar para o inverno. Matei cavalo para ter carne, depois vi pequeno cavalo, seu filhote. Não tenho família, o cavalinho é como bebê, eu cuidei dele. Mais tarde, encontrei um filhote de leão ferido. Cuidei do leãozinho também, mas ele cresceu, foi embora encontrar companheira. Vivi anos, sozinha no vale. Então, Jondalar chegou.
Ayla se calou então. Ninguém falou. Sua explicação, narrada com tanta simplicidade, sem ornatos, só podia ser verdadeira, embora difícil de acreditar. Formulava mais perguntas do que dava respostas. Podia ela, realmente, ter sido acolhida e criada pelos cabeças-chatas? Eles falavam, realmente, ou ao menos se comunicavam? Poderiam eles ser tão bondosos, tão humanos? E ela? Se fora criada por eles, era humana?
No silêncio que se seguiu, Ayla observou Nezzie e seu menino, e depois se lembrou de um incidente no início de sua vida com o Clã. Creb lhe ensinara a se comunicar com sinais manuais, mas havia um gesto que ela aprendera sozinha. Era um sinal feito muitas vezes a bebês, e sempre usado pelas crianças para as mulheres que tomavam conta delas, e ela recordou como Iza se sentira quando ela fizera o sinal pela primeira vez.
Ayla se inclinou para frente e disse a Rydag:
- Quero lhe mostrar palavra. Palavra que diz com as mãos.
Ele endireitou o corpo, os olhos revelando interesse e excitação. Ele havia compreendido, como sempre acontecia, toda palavra dita, e a conversa sobre sinais manuais causara vaga agitação em seu íntimo. Com todos observando ela fez um gesto, um movimento proposital com as mãos. Ele fez uma tentativa de imitá-la, franziu a testa com curiosidade.
Então, de repente, a compreensão o alcançou de algum local profundamente enterrado, e se revelou em seu rosto. Ele se corrigiu enquanto Ayla sorria, e sacudia a cabeça afirmativamente. Então, ele se voltou para Nezzie e repetiu o gesto. Ela olhou para Ayla.
- Ele diz “mãe” para você - explicou Ayla.
- Mãe? - repetiu Nezzie, depois fechou os olhos, pestanejando para conter as lágrimas, enquanto abraçava a criança que criara desde o nascimento. - Talut! Viu isso? Rydag acabou de me chamar de “mãe”. Nunca pensei que veria o dia em que Rydag me chamaria de “mãe”.
O humor do acampamento suavizou-se. Ninguém sabia o que dizer ou o que pensar. Quem eram os estranhos que apareceram, de repente, em seu meio? Era mais fácil acreditar no homem que afirmava vir de um local distante, a oeste, do que na mulher que dizia ter vivido durante três anos num vale próximo e, ainda mais surpreendente, com um bando de cabeças-chatas antes. A história da mulher ameaçava uma inteira estrutura de crenças confortadoras, no entanto era difícil duvidar-se dela.
Nezzie carregara Rydag para a cama com lágrimas nos olhos, depois que ele fizera o gesto de sua primeira palavra silenciosa. Todos encararam isso como sinal de que a narrativa de histórias terminara e se dirigiram às suas fogueiras. Ayla aproveitou a chance para escapulir. Puxando sua parka, uma túnica de pele com capuz, sobre a cabeça, saiu.
Whinney a reconheceu e relinchou suavemente. Tateando seu caminho no escuro, guiando-se pelo bufo e resfôlego da égua, Ayla encontrou o animal.
- Está tudo bem, Whinney? Está confortável? E Racer? Provavelmente, não mais do que eu - disse Ayla, com pensamentos, tanto quanto com a linguagem particular que usava quando se encontrava com os cavalos. Whinney sacudiu a cabeça, empinando delicadamente, depois descansou a cabeça no ombro da mulher, enquanto Ayla envolvia o pescoço peludo da égua com os braços e repousava a testa contra o animal que havia sido sua única companhia durante tanto tempo. Racer se acercou e todos três ficaram juntos, encostados um ao outro por um momento de intervalo de todas as experiências incomuns do dia.
Depois de Ayla assegurar-se de que os animais estavam bem, desceu para a margem do rio.
Era bom sair do abrigo, ficar longe das pessoas. Respirou fundo. O ar da noite era frio e seco. Faíscas estalavam através do seu cabelo quando empurrou para trás o capuz revestido de pele, esticou o pescoço e ergueu a cabeça.
A lua nova evitando o grande companheiro que a mantinha acorrentada, havia voltado o olho brilhante para as profundezas distantes, cujas luzes giratórias atormentavam com promessas de liberdade ilimitada, mas ofereciam apenas vazio cósmico. Altas nuvens finas escondiam as estrelas mais fracas, mas apenas velavam as mais determinadas, com auréolas cintilantes, e faziam o enfarruscado céu negro parecer mais próximo e agradável.
Ayla estava em um turbilhão, emoções conflitantes abatiam-na. Estes eram os Outros que ela havia procurado. A raça da qual nascera. Teria crescido com pessoas como aquelas, satisfeita, à vontade, se não fosse o terremoto. Em vez disso, fora criada pelo Clã.
Conhecia os costumes do Clã, mas os hábitos de seu próprio povo lhe eram estranhos. No entanto, se não fosse o Clã, ela não teria crescido, de modo algum. Não podia voltar para eles, mas tampouco sentia que pertencia àquele lugar.
Aquelas pessoas eram muito ruidosas e desordenadas. Iza teria dito que não tinham educação. Como aquele homem, Frebec, falando fora de sua vez, sem pedir permissão, e depois todos gritando e falando ao mesmo tempo. Ela achava que Talut era um líder, mas mesmo ele tivera que gritar para se fazer ouvir. Brun jamais teria que gritar. A única vez em que ela o ouvira berrar foi para avisar alguém sobre um perigo iminente. Todos no Clã conservavam o líder em um certo nível de percepção. Brun tinha apenas que fazer um sinal e, em segundos, tinha a atenção de todos.
Ela também não gostava da maneira como aquelas pessoas falavam do Clã, chamando-os de cabeças-chatas e animais. Será que ninguém via que também eram pessoas? Um pouco diferentes, talvez, mas gente, do mesmo modo. Nezzie sabia disso. Apesar do que o resto dissera, ela sabia que a mãe de Rydag era uma mulher, e o filho que tivera, apenas um bebê.
Ele é misto, contudo, como o meu filho, pensou Ayla, e como a menina de Oda na Reunião de Clãs. Como a mãe de Rydag pudera ter um filho de espíritos mistos, como aquele?
Espíritos! Será que são mesmo os espíritos que fazem bebês? Será que o espírito do totem de um homem vence o da mulher e faz um bebê crescer dentro dela, como pensa o Clã? Será que a Grande Mãe escolhe e combina os espíritos de um homem e uma mulher e então os coloca dentro de uma mulher, como acreditam Jondalar e estas pessoas?
Por que será que sou a única a pensar que é um homem, não um espírito, que inicia um processo de gestação de um bebê dentro de uma mulher? Um homem, que o faz com seu órgão... Sua virilidade, diz Jondalar. Por que outro motivo os homens e as mulheres se uniriam como o fazem?
Quando Iza me contou sobre o remédio, disse que ele fortalecia seu totem e foi isso que a impediu de ter um bebê por tantos anos. Talvez sim, mas não tomei o remédio quando vivia sozinha, e bebê nenhum começou a crescer por si mesmo. Foi somente depois que Jondalar veio, que pensei em procurar aquela planta de fibra dourada e raízes de salva, novamente...
Depois que Jondalar me mostrou que não tinha que doer... Depois que me mostrou como podia ser maravilhoso um homem e uma mulher juntos...
Pergunto-me o que aconteceria se eu parasse de tomar o remédio secreto de Iza. Teria eu um bebê? Teria um bebê de Jondalar? Se ele pusesse sua virilidade lá, de onde os bebês vêm?
O pensamento trouxe uma onda de calor ao seu rosto e um formigamento aos seus seios. É tarde demais hoje, pensou ela, eu já tomei o remédio esta manhã, mas e se eu fizer um chá comum amanhã? O bebê de Jondalar poderia começar a crescer? Não teríamos que esperar, contudo. Podíamos tentar esta noite...
Ela sorriu consigo mesma. Você quer apenas que ele toque em você e ponha sua boca sobre a sua e... Estremeceu com ansiedade, fechando os olhos para deixar seu corpo recordar como Jondalar podia fazê-lo sentir.
- Ayla? - clamou uma voz.
Ela saltou ao ouvir o som. Não ouvira Jondalar se aproximar, e o tom que ele usara não estava de acordo com a maneira como ela se sentia. Dissipou o ardor. Alguma coisa o aborrecia. Algo o incomodava desde que chegaram; ela gostaria de descobrir o que era.
- Sim.
- O que está fazendo aqui fora? - falou ele, bruscamente. O que ela estivera fazendo?
- Estou sentindo a noite, e respirando e pensando em você - respondeu ela, explicando o melhor possível.
Não era a resposta que Jondalar esperava, embora não estivesse seguro da resposta que esperava. Ele andara lutando contra uma sensação dura de cólera e ansiedade, que fizera seu estômago revolver-se desde que o homem de pele escura aparecera. Ayla parecia achá-lo muito interessante e Ranec estava sempre olhando para ela. Jondalar havia tentado engolir sua raiva e convencer-se de que era tolice pensar que havia alguma coisa mais séria.
Ela precisava de outros amigos. Só porque ele foi o primeiro, não significava que era o único homem que ela poderia querer conhecer.
No entanto, quando Ayla perguntou a Ranec sobre seu passado, Jondalar se sentiu corar de raiva ardente e estremecer de frio terror ao mesmo tempo. Por que ela queria saber mais sobre o fascinante desconhecido, se não estava interessada? O homem alto resistiu ao desejo de levá-la para longe, e ficou aborrecido por ter este sentimento. Tinha o direito de escolher seus amigos, e eles eram apenas amigos. Tinham somente se olhado e falado um com o outro.
Quando saiu sozinha, Jondalar, vendo os olhos escuros de Ranec segui-la, colocou rapidamente sua parka e foi atrás dela. Ele a viu de pé ao lado do rio e, por uma razão que não pôde explicar, teve certeza de que ela pensava em Ranec. A resposta de Ayla o pegou de surpresa a princípio, depois ele relaxou e sorriu.
- Eu devia saber que, se perguntasse, teria uma resposta completa e honesta. Respirando e sentindo a noite - você é maravilhosa, Ayla.
Ela lhe devolveu o sorriso. Não estava certa do que havia feito, mas alguma coisa o fizera sorrir e recolocara a felicidade de volta em sua voz. O afeto que ela estivera sentindo reapareceu, e ela se moveu para ele. Mesmo na escuridão da noite, com o brilho das estrelas quase insuficiente para revelar um rosto, Jondalar sentiu o estado de espírito da jovem pela forma como ela se moveu e respondeu na mesma moeda. No instante seguinte ela estava nos braços dele, com a boca de Jondalar sobre a sua e todas as suas dúvidas e preocupações abandonaram-lhe a mente. Ela iria para qualquer lugar, viveria com qualquer povo, aprenderia qualquer costume estranho, contanto que tivesse Jondalar.
Um instante depois, ela levantou a cabeça para ele.
- Recorda quando lhe perguntei qual era o seu sinal? Como eu faria quando quisesse que você me tocasse, e quisesse sua virilidade em mim?
- Sim, lembro - disse ele, com um sorriso torto.
- Você disse para beijar, ou apenas pedir. Estou pedindo. Pode aprontar sua virilidade?
Ela estava tão séria, e tão ingênua e tão atraente que ele inclinou a cabeça para tornar a beijá-la, e conservou-a tão perto de si, que ela quase podia ver o azul de seus olhos e o amor neles.
- Ayla, minha mulher bonita, engraçada - disse ele. - Sabe quanto amo você?
Mas, enquanto a abraçava, sentiu um lampejo de culpa. Se a amava tanto, por que se sentia embaraçado com as coisas que ela fazia? Quando Frebec se afastara dela com nojo, desejara morrer de vergonha por tê-la trazido, por ter-se ligado a ela. Pouco depois, ele se odiara por isso. Ele a amava. Como podia se envergonhar da mulher que amava?
Ranec, o homem escuro, não sentia vergonha. A forma como olhava para ela, com os dentes brancos brilhando e os olhos escuros cintilantes, rindo, adulando, provocando; quando Jondalar pensava nisso, tinha que lutar contra o impulso de atacar o homem.
Sempre que pensava a respeito, tinha que combater o desejo novamente. Amava-a tanto que não supor tava o pensamento de que ela pudesse querer outro homem, talvez alguém que não ficasse constrangido por causa dela. Ele a amava mais do que julgara possível amar alguém. Mas como podia se envergonhar da mulher que amava?
Jondalar tornou a beijá-la, com mais força, apertando-a tanto que doía, depois com um ardor quase frenético, beijou-lhe a garganta e pescoço.
- Sabe o que significa ter certeza, afinal, de que você é capaz de se apaixonar? Ayla, não sente o quanto amo você?
Ele estava tão sério, tão ardente, que ela sentiu uma pontada de medo, não por ela, mas por ele. Ela o amava, mais do que jamais poderia se expressar em palavras, mas este amor que ele sentia por ela não era exatamente o mesmo. Não era tão mais forte, quanto mais exigente, mais insistente. Como se ele temesse perder aquilo que afinal ganhara. Os totens, especialmente os totens fortes, tinham uma maneira de conhecer e testar esses temores. Ela queria encontrar um meio de desviar aquele derramamento de emoção poderosa.
- Posso sentir quanto você está pronto - disse ela com um sorriso curto.
Mas ele não respondeu com um humor mais afável, como ela esperara. Em vez disso beijou-a ferozmente, esmagando-a até ela imaginar que suas costelas se partiriam. Então, ele tateou sob a parka de Ayla, embaixo de sua túnica, alcançando-lhe os seios, tentando desatar as tiras de amarrar das calças da mulher.
Ela jamais o vira assim, necessitado, ansioso, implorando em sua pressa. Em geral, sua maneira era mais terna, mais atenciosa em relação às necessidades dela. Ele conhecia-lhe o corpo melhor que ela mesma e deleitava-se com o seu conhecimento e habilidade. Mas desta vez suas necessidades eram mais fortes. Reconhecendo o momento por aquilo que era, ela cedeu, e se perdeu na expressão poderosa do amor do homem. Ela estava tão pronta para ele quanto ele para ela. Ela desatou a tira e deixou suas calças caírem, depois ajudou-o com as dele.
Antes de se dar conta, ela estava sobre o solo duro próximo à margem do rio. Teve um vislumbre de estrelas levemente nebulosas antes de fechar os olhos. Ele estava sobre ela, a boca justo sobre a dela, a língua estimulando, buscando, como se ele pudesse encontrar com ela o que procurava tão avidamente com o membro ardente e ereto. Ela se abriu para ele, sua boca e coxas, depois estendeu a mão para o homem e guiou-o para suas profundezas úmidas, convidativas. Arquejou quando ele penetrou, e ouviu um lamento quase abafado, depois sentiu seu pênis mergulhar para enchê-la, enquanto ela se agarrava a ele.
Mesmo em seu frenesi, ele se encantou com a mulher maravilhosa, com o quanto eram adequados um para o outro, com o quanto às profundezas dela equivaliam ao tamanho dele.
Ele sentiu-lhe as dobras cálidas envolvê-lo completamente e quase alcançou o auge naquele primeiro instante. Por certo tempo, lutou para controlar-se, para exercitar o domínio a que estava tão acostumado; depois, abandonou-se. Afundou, e novamente, e mais uma vez, e então com um estremecimento inexprimível sentiu um êxtase crescente e gritou o nome dela.
- Ayla! Oh, minha Ayla, minha Ayla. Amo você!
- Jondalar, Jondalar, Jondalar...
Ele terminou alguns últimos movimentos, depois enterrou o rosto em seu pescoço com um gemido e segurou-a enquanto permanecia imóvel, exaurido. Ela sentiu uma pedra espetando-lhe as costas, mas ignorou-a.
Um pouco depois ele se ergueu e olhou-a com a testa enrugada de preocupação.
- Sinto muito - falou.
- Por quê?
- Foi rápido demais, e não fiz você ficar pronta, não lhe dei prazer também.
- Eu estava pronta, Jondalar. Tive prazer. Não lhe pedi? Tenho prazer no seu prazer. Tenho prazer em seu amor, em seu forte sentimento por mim.
- Mas não sentiu o momento como eu senti.
- Não foi preciso, tive sensação diferente, prazer diferente. É sempre necessário? - interrogou ela.
- Não, suponho que não – retrucou, ele, a testa franzida. Depois a beijou, demorando-se.
- E esta noite não acabou ainda. Venha, levante-se. Está frio aqui fora. Vamos encontrar uma cama quente. Deegie e Branag já fecharam suas cortinas. Estarão separados até o próximo verão, e estão ansiosos.
Ayla sorriu.
- Mas não tão ansiosos quanto você estava. - Não pôde ver, mas achou que ele corava.
- Amo você, Jondalar. Tudo. Tudo o que faz. Até sua ávida... - Balançou a cabeça. - Não, não está certo, a palavra está errada.
- A palavra que quer é “avidez”, eu acho.
- Amo até sua avidez. Sim, é verdade. Ao menos, sei suas palavras melhor que Mamutoi.
- Fez uma pausa. - Frebec disse que eu não falava correto, Jondalar. Será que aprenderei, um dia, a falar certo?
- Eu, tampouco, falo Mamutoi muito bem. Não é a língua com que fui criado. Frebec apenas gosta de causar encrenca - disse Jondalar, ajudando-a a levantar-se. - Por que toda caverna, todo acampamento, todo grupo tem um encrenqueiro? Não dê atenção a ele, ninguém mais dá. Você fala muito bem. Estou surpreso com a forma como aprende línguas. Dentro de pouco tempo falará Mamutoi melhor do que eu.
- Tenho que aprender como falar com palavras. Não tenho mais nada agora - disse ela suavemente. - Não conheço ninguém que fale a linguagem com que cresci. Não mais. - Fechou os olhos um instante, enquanto uma sensação de triste vazio a dominava.
Ela sacudiu os ombros para afastá-la e começou a vestir as calças e então parou.
- Espere - disse ela, tirando-as novamente. - Há muito tempo, quando fiquei mulher pela primeira vez, Iza me contou tudo o que uma mulher do Clã devia saber sobre homens e mulheres, embora duvidasse de que eu encontrasse um companheiro, algum dia, e necessitasse saber. Os Outros talvez não acreditem nisso, até os sinais entre homens e mulheres não são os mesmos, mas na primeira noite que durmo num local dos Outros, acho que deveria fazer uma limpeza depois de nossos prazeres.
- O que quer dizer?
- Vou me lavar no rio.
- Ayla! Está frio. Está escuro. Pode ser perigoso.
- Não irei longe, só aqui na margem - disse ela, tirando a parka e puxando a túnica pela cabeça.
A água estava fria. Jondalar a observava da margem, e se molhou o suficiente para saber como a água estava fria. O sentimento de Ayla pela cerimônia da ocasião o fez pensar nos rituais de purificação dos Primeiros Ritos, e resolveu que uma limpeza não lhe faria mal, tampouco. Ela tremia quando saiu. Ele a segurou em seus braços para aquecê-la. A pele de bisão felpuda da parka dele a secou, e ele a ajudou a vestir sua túnica e parka, depois.
Ela se sentia viva, animada e fresca quando caminharam de volta à habitação de terra. A maioria das pessoas se acomodava para dormir quando eles entraram. As fogueiras estavam abafadas e as vozes, baixas. A primeira fogueira se encontrava vazia, embora o assado de mamute ainda se encontrasse em evidência. Quando se dirigiram em silêncio pela passagem através da Fogueira do Leão, Nezzie se levantou e os deteve.
- Eu queria apenas lhe agradecer, Ayla - disse ela, olhando para uma das camas ao longo da parede.
Ayla acompanhou-lhe os olhos e viu três pequenas formas esparramadas num grande leito. Latie e Rugie dividiam a cama com Rydag. Danug, com o corpo, espalhado em seu sono ocupava outra cama, e Talut, estendido ao comprido, apoiado em um cotovelo, esperava por Nezzie e sorriu para ela de uma terceira cama. Ela sacudiu a cabeça afirmativamente e sorriu também, insegura sobre qual era a resposta correta.
Caminharam para a próxima fogueira, enquanto Nezzie rastejava para o lado do gigante de cabelo ruivo, e tentaram atravessar silenciosamente para não perturbar ninguém. Ayla sentiu alguém os observando e olhou em direção à parede. Dois olhos brilhantes e um sorriso os, fixavam do recesso escuro. Ela sentiu os ombros de Jondalar enrijecerem e desviou o olhar depressa. Pensou ter ouvido uma risadinha baixa, depois achou que deviam ser os roncos vindos da cama ao longo da parede oposta.
Na grande quarta fogueira, uma das camas estava escondida por uma cortina pesada de couro, isolando o espaço do corredor, embora se pudessem detectar sons e movimentos lá dentro. Ayla notou que a maioria das outras camas na habitação comunal possuía cortinas similares, presas a suportes de osso de mamute no alto, ou a estacas de um lado a outro, embora nem todas estivessem fechadas. A cama de Mamut, na parede lateral oposta à deles, estava aberta. Ele estava deitado, mas ela notou que ele não dormia.
Jondalar acendeu um pau numa brasa da fogueira e, protegendo-o com a mão, carregou-o até a parede perto da cabeceira de seu estrado de dormir. Lá, em um nicho, uma pedra espessa, achatada, na qual fora feita uma cavidade com a forma de um pires, estava cheia de gordura até a metade. Ele acendeu um pavio de lanugem de tifa torcido, iluminando uma pequena figura da Mãe atrás do lampião de pedra. Então, desatou as correias que sustentavam a cortina ao redor da cama deles e, quando a cortina desceu, moveu-se até Ayla.
Ela se esgueirou e subiu ao estrado com uma pilha alta de peles macias. Sentada no meio, isolada pela cortina e iluminada pela suave luz trêmula, ela se sentiu escondida e segura.
Era um pequenino recinto todo deles. Lembrou-se da pequena caverna que encontrara quando menina, onde costumava ir quando desejava ficar sozinha.
- São muito inteligentes, Jondalar. Eu não teria pensado nisto.
Jondalar se estendeu ao seu lado, satisfeito com a alegria dela.
- Gosta da cortina fechada?
- Oh, sim! Faz a gente se sentir sozinha, mesmo sabendo que as pessoas estão por perto. Sim, gosto. - O sorriso era radiante.
Ele a puxou para si e beijou-a de leve.
- É tão bonita quando sorri... Ayla.
Ela olhou para o rosto dele inundado de amor, para os olhos irresistíveis, cor de violeta à luz do fogo, em vez do usual azul vivo; para o comprido cabelo louro desalinhado sobre as peles para o queixo determinado e testa alta, tão diferente do maxilar sem queixo e da testa fugidia dos homens do Clã.
- Por que corta sua barba? - perguntou ela, tocando-lhe os pêlos do queixo.
- Não sei. É hábito, acho. No verão, é mais fresco, não coça tanto. Em geral, deixo a barba crescer no inverno. Ajuda a manter o rosto quente quando estou fora. Não gosta que eu a corte?
Ela franziu a testa, confusa.
- Não sou eu que devo dizer. A barba é de um homem, é ele quem deve cortá-la ou não, como lhe agradar. Perguntei apenas porque nunca tinha visto um homem que cortava a barba, que nem você faz. Por que pergunta se gosto ou não de barba?
- Pergunto porque quero agradá-la. Se gostar de barba, deixarei a minha crescer.
- Não importa. Sua barba não é importante. Você é importante. Você me dá praz... Não. - Sacudiu a cabeça, zangada. - Você me dá praz. Prazeres... Você me dá prazer - corrigiu-se.
Ele sorriu diante do esforço dela, e disse:
- Gostaria de lhe dar prazeres - puxou-a para si, de novo, e beijou-a. Ela se aconchegou a ele, deitada de lado. Ele rolou, depois se sentou e abaixou os olhos para ela.
- Como a primeira vez – disse, ele. - Há até uma donii observando-nos. - Fitou o nicho com a escultura de marfim iluminada pelo fogo da figura maternal.
- É a primeira vez... Em um local dos Outros - falou ela, fechando os olhos, sentindo tanto a expectativa quanto a solenidade do momento.
Ele colocou a mão em concha no rosto dela e beijou-lhe as pálpebras, depois fitou com ardor a mulher que achava mais bonita que qualquer outra que conhecera.
Havia um atributo exótico nela. Suas maçãs do rosto eram mais altas do que as das mulheres dos Zelandonii, seus olhos mais amplamente espaçados. Eram emoldurados por pestanas espessas, mais escuras que o cabelo farto, que era dourado como o capim outonal.
Seu maxilar era firme, o queixo levemente pontudo.
Tinha ela uma pequena cicatriz reta na cavidade na altura da garganta.
Ele beijou a cicatriz, e sentiu-a estremecer de prazer. Ele tornou a erguer-se e a examinou outra vez, depois lhe beijou a ponta do nariz reto, bonito, e o canto da boca carnuda onde se levantava a insinuação de um sorriso.
Ele podia sentir a tensão dela. Como um beija-flor, imóvel, mas cheio de tremores de excitação, que ele não podia ver, mas sentir, ela mantinha os olhos fechados, jazendo imóvel e obrigando-se a esperar. Ele a observou, deleitando-se com o momento, depois lhe beijou a boca, abriu a dele e procurou entrar com a língua. Sentiu que ela a acolhia. Nenhuma estocada desta vez, apenas uma busca gentil e depois a aceitação dela.
Ele se sentou, viu-a abrir os olhos e sorrir-lhe. Tirou a túnica e ajudou-a a despir a sua. Levando-a deitar-se com calma, inclinou-se sobre ela e tomou um mamilo, endurecido com a boca, sugando-o. Ela arquejou quando o choque excitante a atravessou. Sentiu um cálido e úmido torpor entre as pernas, e perguntou-se por que a boca de Jondalar em seu mamilo a fazia ter sensações onde ele ainda nem sequer tocara.
Ele acariciou e mordiscou levemente, até ela se mover para ele, e sugou com ânsia. Ela gemeu de prazer. Ele procurou o outro seio, acariciou seu bico túrgido e totalmente redondo. Ela já respirava entrecortadamente. Ele soltou o seio e começou a beijar-lhe o pescoço e garganta, encontrou sua orelha e mordiscou um lóbulo, depois soprou nele, acariciando-lhe braços e seios com as duas mãos. Estremecimentos tomaram conta de Ayla.
Ele lhe beijou a boca, depois correu a língua cálida lentamente pelo queixo até a altura da garganta, entre os seios e desceu até o umbigo. Sua virilidade havia enrijecido de novo, e investia insistentemente contra as restrições do fechamento com o cinto. Primeiro, ele abriu o cinto e tirou as calças compridas, depois, começando no umbigo da mulher, continuou na direção que seguia. Sentiu pêlo macio, e depois sua língua encontrou o alto da fenda cálida.
Ele a sentiu pular quando alcançou a saliência pequena dura. Quando ele parou, ela soltou um pequeno grito de desalento.
Então, ele desatou sua própria tira de couro e libertou o membro enquanto despia as calças.
Ayla se sentou e tomou-o na mão, deixando-o escorregar para frente e para trás em toda a sua extensão, sentindo a pele quente e lisa, o volume rijo. Ele estava contente por seu tamanho não assustá-la, como havia acontecido com tantas mulheres quando o viram pela primeira vez; com Ayla, nem sequer da primeira. Ela se inclinou para ele, e Jondalar sentiu a boca generosa envolvê-lo. Teve vontade de avançar enquanto ela se movia para cima e para baixo, e ele ficou feliz por já ter satisfeito sua necessidade mais forte, ou talvez não conseguisse se controlar agora.
- Ayla, desta vez, quero dar-lhe prazer - disse ele, afastando-a.
Ela o fitou com olhos arregalados, escuros e luminosos, beijou-o e concordou com um gesto de cabeça. Ele a segurou pelos ombros e empurrou-a de costas sobre as peles, e beijou-lhe a boca e a garganta de novo, dando a ela calafrios de prazer. Segurou-lhe os seios com as mãos em concha, manteve-os juntos, e foi de um mamilo sensível a outro, e entre eles. Depois, a língua descobriu o umbigo outra vez, e cercou-o com uma espiral sempre crescente, até alcançar o pêlo suave de seu púbis.
Ele se moveu entre as coxas de Ayla, abrindo-as, depois empurrou-lhe as dobras para trás com as mãos e experimentou' um sabor prolongado e lento. Ela estremeceu, parcialmente sentada, gritou, e ele se sentiu crescer novamente. Amava lhe dar prazer, sentir a resposta de Ayla à sua habilidade.
Era como tirar uma lâmina fina de um pedaço de sílex. Dava-lhe uma sensação especial de alegria saber que ele fora o primeiro a dar-lhe prazer. Ela havia conhecido somente a força e a dor antes de ele despertar nela a Dádiva do Prazer que a Grande Mãe Terra dera aos Seus filhos.
Ele a explorou com ternura, sabendo onde jaziam suas sensações agradáveis, provocando-as com a língua e, com as mãos hábeis, alcançando-lhe o íntimo. Ela começou a mover-se contra ele, gritando e sacudindo a cabeça, e ele compreendeu que estava pronta. Encontrou a saliência rija, começou a trabalhá-la, enquanto a respiração dela se acelerava, a própria virilidade dele, ansiosa por ela. Então ela gritou, ele sentiu uma umidade quando ela o agarrou.
- Jondalar... ahhh... Jondalar!
Ela estava além de si, além de qualquer conhecimento exceto ele. Ela o queria, desejava sentir-lhe o membro dentro de si. Ele estava sobre ela, ela o ajudava, guiando-o. Ele escorregou para dentro e sentiu uma vibração que o levou ao auge inexprimível. Recuou e afundou de novo, profundamente; ela o abraçou totalmente.
Ele saiu e depois investiu de novo, e mais uma vez, e outra ainda. Queria retirar-se, prolongar o ato.
Desejava que nunca terminasse e, contudo, não podia esperar. Com cada investida forte, sentia-se mais próximo do êxtase. O suor brilhava em seus corpos, sob a luz trêmula, enquanto ajustavam o ritmo, encontravam o compasso e se moviam com o passo da vida.
Respirando com dificuldade, esforçavam-se para o encontro a cada golpe, buscando, palpitando, desejo puro, pensamento total, sentimentos concentrados. Então, quase inesperadamente a intensidade chegou ao auge. Em uma explosão além dos dois, atingiram o clímax e gozaram com um espasmo de alegria. Ficaram quietos um instante, como se tentassem se tornar um só, e depois se afastaram.
Permaneceram imóveis, arfando. A luz piscou, enfraqueceu, inflamou-se, depois apagou. Depois de algum tempo, Jondalar rolou sobre o próprio corpo e jazeu ao lado dela, sentindo-se num estado crepuscular entre o sono e o despertar. Mas Ayla ainda estava bem acordada, os olhos abertos na escuridão, ouvindo pela primeira vez, em anos, os sons das pessoas.
O murmúrio de vozes baixas de um homem e de uma mulher vinha do leito próximo e, um pouco além, o som irritante baixo, do feiticeiro adormecido. Ela podia ouvir um homem roncando na fogueira seguinte e, da primeira fogueira, vinham os gritos e resmungos inconfundíveis, ritmados, de Talut e Nezzie partilhando prazeres. Da outra direção, um bebe gritava. Alguém produziu sons confortadores até o choro cessar abruptamente. Ayla sorriu. Sem dúvida, um seio fora oferecido. Mais distante, vozes de raiva contida chegaram até ela numa explosão. Depois, silenciaram e, mais distante ainda, uma tosse seca se fez ouvir.
As noites tinham sido sempre o pior momento durante os longos anos de Ayla no vale. De dia, encontrava alguma coisa para manter-se ocupada, mas, à noite, o vazio desolado de sua caverna influía fortemente. No início, ouvindo apenas o som de sua própria respiração, ela até tivera problema para dormir. Com o Clã, havia sempre alguém por perto de noite - o pior castigo que podia ser infligido era alguém ser isolado, separado; o ostracismo, ser evitado, a maldição da morte.
Ela sabia muito bem que era realmente um castigo terrível. Soube melhor ainda naquele momento.
Deitada no escuro, ouvindo os sons de vida ao seu redor, sentindo o calor de Jondalar ao seu lado, sentiu-se em casa pela primeira vez desde que conhecera aquelas pessoas, a que chamava de os Outros.
- Jondalar? - disse, suavemente.
- Hmmmmm.
- Está dormindo?
- Ainda não - balbuciou ele.
- Estas pessoas são boas. Você tinha razão, eu precisava vir e conhecê-las.
O cérebro de Jondalar se desanuviou imediatamente. Ele esperava que quando conhecesse sua raça, e esta não era mais tão desconhecida, ela não tivesse tanto medo deles. Ele partira há muitos anos, a jornada de regresso ao lar seria demorada e difícil. Ela teria que querer ir com ele. Mas o vale de Ayla se tornara um lar. Oferecia-lhe tudo do que ela necessitava para sobreviver e ela construiu uma vida para si mesma ali, usando os animais como substituto para as pessoas que lhe faltavam.
Ayla não queria partir; em vez disso, desejava que Jondalar ficasse.
- Eu sabia que você iria pensar assim, Ayla - falou ele afetuoso persuasivo -, se conhecesse essas pessoas.
- Nezzie me faz lembrar de Iza. Como acha que a mãe de Rydag ficou grávida?
- Quem sabe por que a Mãe lhe deu um filho de espíritos mistos? Os caminhos da Mãe são sempre misteriosos.
Ayla ficou um tempo em silêncio.
- Não acho que a Mãe deu-lhe espíritos mistos. Acho que ela conheceu um homem dos Outros.
Jondalar franziu a testa.
- Sei que acha que os homens têm algo a ver com o início da vida, mas como uma mulher cabeça-chata poderia conhecer um homem?
- Não sei como, mas as mulheres do Clã não viajam sozinhas, e ficam longe dos Outros. Os homens não querem os Outros ao redor das mulheres. Acham que os bebês são iniciados por um espírito do totem de um homem, e não querem que o espírito de um homem dos Outros se aproxime demais. E as mulheres temem os Outros. Sempre há novas histórias na Reunião de Clãs sobre pessoas que foram incomodadas ou feridas pelos Outros, principalmente mulheres.
“Mas a mãe de Rydag não tinha medo dos Outros. Nezzie disse que ela os seguiu por dois dias e veio com Talut quando ele lhe fez um sinal. Qualquer outra mulher do Clã teria fugido dele rapidamente. Ela devia ter conhecido um antes, e um que a tratou bem, ou ao menos não a feriu, porque não teve medo de Talut. Quando precisou de ajuda, o que lhe deu motivo para pensar que talvez a encontrasse nos Outros?”.
- Talvez fosse apenas porque ela viu Nezzie amamentando - sugeriu Jondalar.
- Talvez. Mas isso não responde ao motivo por que ela estava sozinha. A única razão em que posso pensar é que foi amaldiçoada e expulsa do seu Clã. As mulheres do Clã não são muitas vezes amaldiçoadas. Não é de sua natureza trazer a maldição sobre si mesmas. Talvez tivesse algo a ver com um homem dos Outros...
Ayla fez uma pausa e depois acrescentou pensativa:
- A mãe de Rydag deve ter querido muito o seu bebê. Precisou de muita coragem para se aproximar dos Outros, mesmo conhecendo um homem antes. Foi somente quando viu o bebê e achou que era deformado, que desistiu. O Clã tampouco gosta de crianças mistas.
- Como pode estar tão segura de que ela conheceu um homem?
- Ela procurou os Outros, para ter o seu bebê, o que significa que não tinha Clã para ajudá-la e havia algum motivo para pensar que Nezzie e Talut a ajudariam. Talvez ela o tenha conhecido mais tarde, mas tenho certeza de que encontrou um homem que teve prazeres com ela... Talvez só satisfazendo as necessidades dele. Ela teve uma criança mista, Jondalar.
- Por que acha que é um homem que faz a vida começar?
- Pode ver, Jondalar, se pensar sobre isso. Veja o menino que chegou hoje, Danug. Ele se parece com Talut, apenas mais jovem. Acho que Talut o começou quando dividiu prazeres com Nezzie.
- Isso significa que ela terá outro filho porque eles partilharam pra zeres esta noite? – perguntou Jondalar. - Prazeres são compartilhados muitas vezes. São uma Dádiva da Grande Mãe Terra e Ela é honrada quando eles são divididos muitas vezes. Mas as mulheres não têm filhos cada vez que partilham Sua Dádiva, Ayla, se um homem aprecia as Dádivas da Mãe, honra-a, depois Ela pode escolher, levar seu espírito para misturá-lo com a mulher que ele tem por companheira. Se o espírito é do homem, a criança pode parecer com ele, como Danug se parece com Talut, mas é a Mãe quem decide.
Ayla franziu a testa na escuridão. Era uma questão que ela não tinha analisado.
- Não sei por que uma mulher não tem filhos todas às vezes. Talvez os prazeres devam ser divididos várias vezes, antes de um bebê poder ser iniciado, ou talvez somente algumas vezes.
Talvez seja apenas quando o espírito do totem de um homem é especialmente poderoso e pode, assim, vencer o da mulher, ou talvez a Mãe resolva, mas Ela escolhe o homem e torna sua virilidade mais forte. Pode dizer, com certeza, como Ela escolhe? Sabe como os espíritos se misturam? Não poderiam se misturar dentro da mulher quando eles dividem prazeres?
- Nunca ouvi falar nisso - disse Jondalar -, mas suponho que sim.
- Agora, ele enrugava a testa na escuridão. Ficou calado por tanto tempo que Ayla pensou que ele adormecera, mas, então, ele falou: - Ayla, se o que você pensa for verdade, talvez estejamos começando um bebê dentro de você todas as vezes que partilhamos a Dádiva da Mãe.
- Sim, acho que sim - falou Ayla, encantada com a idéia.
- Então, devemos parar! - exclamou Jondalar, sentando-se de repente.
- Mas por quê? Quero ter um bebê começado por você, Jondalar.
O desalento de Ayla era evidente.
Jondalar rolou sobre si mesmo e abraçou-a.
- Eu também quero, mas não agora. É uma longa jornada de volta a casa. Poderia levar um ano ou mais. Poderia ser perigoso para você viajar tanto se estiver grávida.
- Não podemos apenas voltar para o meu vale, então?
Jondalar temia que se voltassem para o vale a fim de que ela pudesse ter o filho em segurança, jamais partissem.
- Ayla, acho que não seria uma boa idéia. Você não deveria ficar sozinha. Eu não saberia como ajudá-la, você precisaria de mulheres por perto. Uma mulher pode morrer de parto - disse ele, a voz comida com angústia. Ele o tinha visto acontecer, não há muito tempo atrás.
Era verdade, compreendeu Ayla. Ela quase morrera ao dar à luz o seu filho. Sem Iza, não teria vivido. Aquele não era o momento de ter um bebê, nem mesmo um de Jondalar.
- Sim, tem razão - disse ela, sentindo grande desapontamento. - Pode ser difícil... Eu... Eu... Gostaria de mulheres ao meu lado - concordou.
Ele ficou em silêncio por longo tempo, novamente.
- Ayla - falou, a voz quase falhada com a tensão -, talvez... Talvez não devêssemos dividir a mesma cama. Se... Mas, honra a Mãe, partilhar Sua Dádiva - explodiu.
Como ela lhe poderia dizer, sinceramente, que não precisavam parar de dividir prazeres? Iza a havia prevenido para jamais contar a ninguém, principalmente a um homem, sobre seu remédio secreto.
- Acho que não deve se preocupar com isso – disse, ela. - Não sei, com certeza, se é um homem que faz as crianças, e se a Grande Mãe resolver, pode escolher qualquer momento, não pode?
- Pode, e me preocupa. Contudo, se evitarmos Sua Dádiva, talvez se zangue. Ela espera ser honrada.
- Jondalar, se Ela resolver, estará resolvido. Se chegar o momento, podemos tomar uma decisão então. Não gostaria que você A ofendesse.
- Sim, Ayla, tem razão - disse ele, um pouco aliviado.
Com uma pontada de remorso, Ayla decidiu que continuaria tomando o remédio que evitava a concepção, mas sonhou em ter filhos naquela noite, alguns com compridos cabelos louros e outros que se pareciam com Rydag e Durc. Era quase de manhã quando teve um sonho que tinha uma dimensão diferente, sinistro e do outro mundo.
No sonho, tinha dois filhos, irmãos que ninguém imaginaria que o fossem. Um era alto e louro, como Jondalar, o outro, mais velho, ela sabia que era Durc embora seu rosto estivesse obscuro. Os dois irmãos se aproximavam um do outro, de direções opostas no meio de uma planície deserta, desolada, castigada pelo vento. Ela sentiu grande ansiedade; alguma coisa terrível ia acontecer, algo que ela devia impedir. Então, com um choque de terror, ela soube que um dos filhos iria matar o outro. Quando se aproximaram mais, ela tentou alcançá-los, mas uma muralha espessa, viscosa a mantinha encurralada. Eles estavam quase se alcançando, os braços erguidos como para uma luta.
Ela gritou.
- Ayla! Ayla! O que aconteceu? - disse Jondalar, sacudindo-a.
De repente, Mamut estava ao lado dele. -
- Acorde, filha. Acorde! - disse ele. - É apenas um símbolo, uma mensagem. Acorde, Ayla!
- Mas um vai morrer! - gritou ela, ainda cheia de emoção do seu sonho.
- Não é o que pensa, Ayla - falou Mamut. - Talvez não signifique que um irmão morrerá. Deve aprender a procurar o verdadeiro significado em seus sonhos. Você tem o Dom; é muito forte, mas falta prática.
A visão de Ayla desapareceu e ela viu dois semblantes preocupados olhando-a, ambos homens altos, um, jovem e atraente, o outro, velho e sábio. Jondalar segurava uma lenha acesa da fogueira para ajudá-la a despertar. Ela se sentou e se esforçou para sorrir.
- Está bem, agora? - indagou Mamut.
- Sim, sim. Lamento tê-lo acordado - disse Ayla em Zelandonii, esquecendo que o velho não entendia essa língua.
- Falaremos mais tarde - disse ele sorrindo, gentilmente, e voltando para seu leito. Ayla observou a cortina da outra cama ocupada descer, quando ela e Jondalar se recostaram em seu estrado de dormir, e sentiu-se um pouco embaraçada por ter criado tal alvoroço. Ela se aninhou ao lado de Jondalar, descansando a cabeça na cavidade sob seu ombro, grata por seu calor e sua presença. Estava quase dormindo quando, de repente, seus olhos se abriram de novo.
- Jondalar - sussurrou -, como Mamut soube que sonhei com meus filhos, sobre um irmão matar o outro?
Mas ele já dormia.
Ayla despertou sobressaltada, depois jazeu imóvel e ouviu. Novamente, escutou um gemido alto.
Alguém parecia estar sofrendo muito. Preocupada, afastou a cortina para um lado e espiou. Crozie estava de pé no corredor, próxima à sexta fogueira com os braços abertos numa atitude de desespero, suplicando com o fim de provocar compaixão.
- Ele me apunhalaria. Quem seria capaz de virar minha própria filha contra mim! - gritou Crozie como se morresse, apertando as mãos contra o peito. Várias pessoas pararam para olhar. - Dei a ele minha própria carne, tirada do meu corpo...
- Deu! Você não me deu nada! - berrou Frebec. - Paguei o seu Preço de Noiva por Fralie.
- Foi insignificante! Eu poderia ter conseguido muito mais por ela - rebateu Crozie. Seu lamento não era mais sincero do que fora seu grito de dor. - Ela foi para você com dois filhos. Prova do favor da Mãe. Você diminuiu seu valor com sua ninharia. E o valor de seus filhos. E olhe para ela! Abençoada novamente. Eu a dei a você por bondade, por generosidade do meu coração...
- E porque ninguém mais aceitaria Crozie, mesmo com sua filha duas vezes abençoada - disse uma voz próxima.
Ayla se virou para ver quem falara. A jovem que usara a bonita túnica vermelha no dia anterior lhe sorriu.
- Se planejava dormir até tarde, pode esquecer - disse Deegie. - Eles começaram cedo hoje.
- Não, vou levantar - falou Ayla. Olhou ao redor. A cama estava vazia e, exceto pelas duas mulheres, não havia ninguém por perto. - Jondalar já levantou. - Ela encontrou suas roupas e começou a se vestir. - Acordei, pensei que a mulher estava ferida.
- Ninguém está. Ao menos, não que alguém possa ver. Mas, sinto por Fralie - disse Deegie. - É duro ficar no meio, assim.
Ayla sacudiu a cabeça.
- Por que gritam?
- Não sei por que discutem o tempo todo. Suponho que ambos querem as boas graças de Fralie.
Crozie está envelhecendo e não quer que Frebec destrua sua influência, mas Frebec é teimoso. Ele não tinha muito antes, e não deseja perder sua nova posição. Fralie lhe trouxe um bocado de status, mesmo com seu baixo Preço de Noiva.
A visitante estava obviamente interessada e Deegie se sentou em um estrado que servia de leito, enquanto Ayla se vestia, entusiasmando-se com o assunto.
- No entanto, acho que ela não o poria de lado, acredito que goste dele, embora ele possa ser tão maldoso, às vezes. Não foi tão fácil encontrar outro homem... Um que aceitasse sua mãe. Todos viram como foi da primeira vez, ninguém queria agüentar Crozie. A velha pode gritar tudo o que quiser sobre dar a filha, mas foi ela quem reduziu o valor de Fralie. Eu odiaria ser puxada de dois lados, assim. Não tenho sorte. Mesmo se eu fosse para um acampamento estabelecido em vez de iniciar um novo com meu irmão, Tulie seria bem-vinda.
- Sua mãe vai com você? - perguntou Ayla, curiosa. Ela entendia que uma mulher se mudasse para o Clã do companheiro, mas levar a mãe consigo era novidade para ela.
- Gostaria que fosse, mas acho que não irá. Creio que prefere ficar aqui. Não a culpo. É melhor ser a chefe em seu próprio acampamento do que mãe de uma, em outro. No entanto, sentirei sua falta.
Ayla ouvia, fascinada. Não compreendia metade do que Deegie dizia, e não estava certa se acreditava compreender a outra metade.
- È triste deixar a mãe e o seu povo - disse Ayla. - Mas, terá companheiro cedo?
- Oh, sim, no próximo verão. Na Reunião de Verão. Afinal, mamãe acertou tudo. Estabeleceu um Preço de Noiva tão alto que tive medo de que ninguém chegasse a ele, mas concordaram. Contudo, é muito difícil esperar. Se, ao menos, Branag não tivesse que partir agora, mas eles o estão esperando. Ele prometeu voltar imediatamente...
As duas jovens caminharam juntas para a entrada da habitação comunal, amistosamente, Deegie tagarelando e Ayla a ouvindo com interesse.
Estava mais frio no salão da entrada, mas só ao sentir a rajada de vento frio, quando a cortina do arco da frente foi erguida, é que Ayla compreendeu o quanto à temperatura havia caído. O vento frio atirou-lhe o cabelo para trás e arrancou a pesada cobertura da entrada de pele de mamute, estofando-a com uma rajada repentina. Uma camada fina de neve caíra durante a noite. Uma contracorrente cortante atingiu os flocos finos, arrastou-os para cavidades e depressões, retirou os cristais castigados pelo vento e arremessou-os através do espaço aberto. O rosto de Ayla ardia com bolinhas duras de gelo.
No entanto, estivera quente dentro, muito mais quente do que em uma caverna. Ela pusera sua parka de pele somente para sair; não precisaria de roupa extra se tivesse ficado no interior. Ouviu Whinney relinchar. A égua e o potro, ainda amarrados, estavam o mais longe possível das pessoas e de suas atividades. Ayla caminhou até eles, virou-se e sorriu para Deegie.
A jovem retribuiu-lhe o sorriso e foi procurar Branag.
A égua parecia aliviada quando Ayla se acercou, agitando-se e sacudindo a cabeça em cumprimento. A mulher retirou o cabresto de Racer e depois caminhou com eles em direção ao rio e perto da curva. Whinney e Racer relaxaram assim que o acampamento se perdeu de vista e, depois de alguns agrados mútuos, começaram a pastar no capim frágil e seco.
Ayla parou ao lado de um arbusto antes de começar a voltar. Desatou a tira da cintura de suas calças, mas ainda estava incerta sobre o que fazer para as perneiras não se molharem quando urinasse. Ela havia tido o mesmo problema desde que começara a usar as roupas. Ela própria fizera o traje durante o verão, tendo como modelo o que havia feito para Jondalar, que fora copiado da roupa que o leão dilacerara. Mas não havia usado a roupa senão quando começaram sua viagem de exploração. Jondalar ficara tão satisfeito ao vê-la vestindo roupas como a dele, em vez do agasalho de couro usado em geral pelas mulheres do Clã, que ela resolveu abandoná-lo. Mas ainda não descobrira como resolver esta necessidade básica facilmente e não queria perguntar a ele. Jondalar era um homem. Como poderia saber o que uma mulher precisava fazer?
Ela desfez-se das calças ajustadas, o que exigia que tirasse também o calçado - mocassins de gáspea alta que se enrolavam ao redor das partes inferiores das calças -, depois separou as pernas e se inclinou em sua maneira usual. Equilibrando-se em um dos pés, para vestir novamente as calças, notou o rio que corria suavemente e mudou de idéia. Em vez disso, tirou a parka e a túnica pela cabeça, retirou o amuleto do pescoço e caminhou até a margem em direção à água. O ritual de limpeza devia ser completo e ela gostava de um banho matinal.
Havia planejado lavar o rosto e as mãos no rio. Ignorava que meios aquelas pessoas usavam para se limpar. Quando era necessário, se a pilha de lenha estivesse enterrada sob o gelo e o combustível estivesse escasso, ou se o vento soprasse fortemente através da caverna, ou se a água congelasse a ponto de ser difícil conseguir quebrar algum gelo até para beber podia passar sem se lavar, mas preferia estar limpa. E, no fundo do seu pensamento, ainda pensava no ritual, no término de uma cerimônia de purificação após sua primeira noite na caverna - ou na habitação comunal - dos Outros.
Olhou para a água. A corrente movia-se depressa ao longo do canal principal, mas o gelo em lâminas transparentes cobria poças e as águas mais paradas do rio e formava uma crosta branca na margem. Um apêndice do rio, escassamente coberto com capim esbranquiçado e descorado, estendia-se até o rio, formando uma lagoa parada entre ele próprio e a praia um único vidoeiro, reduzido a arbusto, crescia na faixa de terra.
Ayla caminhou na direção do pequeno lago e entrou, despedaçando a perfeita vidraça de gelo que o recobria. Arquejou enquanto a água gelada do rio provocava-lhe um forte arrepio e agarrou um ramo mirrado do pequeno vidoeiro para firmar-se, enquanto entrava na corrente. Uma rajada cortante de vento gelado castigou-lhe a pele nua, arrepiando-a e atirou-lhe o cabelo sobre o rosto.
Ela cerrou os dentes que rangiam e avançou mais na água. Quando a água estava quase à cintura, ela jogou água gelada ao rosto. Depois, com outra respiração rápida, aspirada, de choque, abaixou-se e submergiu até o pescoço.
Apesar de todos os arquejos e tremores, estava habituada à água fria, e concluiu que breve seria impossível banhar-se no rio. Quando saiu, tirou a água do corpo com as mãos e vestiu-se depressa. Uma calidez ardente substituindo frio entorpecedor quando caminhou ladeira acima, fazendo-a sentir-se renovada e revigorada, e ela sorriu quando um sol cansado momentaneamente sobressaiu no céu nublado.
Ao se aproximar do acampamento, deteve-se à beira de uma área pisada, próxima à habitação comunal, e observou os vários grupos de pessoas envolvidos em ocupações diversas.
Jondalar falava com Wymez e Danug, e ela não teve dúvida em relação ao tema da conversa dos três britadores de sílex. Não distante deles, quatro pessoas desatavam cordas que tinham segurado a pele de um veado - agora, um couro macio, flexível, quase branco - numa armação retangular feita de ossos de costela de mamute amarrados com correias. Perto, Deegie estendia e prendia vigorosamente uma segunda pele, que estava amarrada a uma armação semelhante com a ponta um pouco rombuda de outro osso de costela. Ayla sabia que se trabalhava pele enquanto secava, para tornar o couro flexível, mas prendê-lo a armações de ossos de mamute era um novo método de estender couro. Ficou interessada e notou os detalhes do processo.
Uma série de pequenos cortes eram feitos perto da orla, seguindo o contorno da pele do animal, depois passava-se uma corda por cada um, amarrava-se à armação e puxava-se com força para esticar a pele retesada. A armação era apoiada contra a habitação comunal e podia ser virada e trabalhada dos dois lados. Deegie inclinava-se com todo o seu peso sobre a estaca de ossos de costela, empurrando a ponta rombuda para a pele fixada até parecer que a haste comprida a furaria, mas o couro forte, elástico, resistia, sem se deixar perfurar.
Alguns outros ocupavam-se com atividades que Ayla não conhecia, mas o resto das pessoas colocava as sobras do esqueleto de mamutes em covas que tinham sido abertas no solo. Ossos e marfim espalhavam-se por toda parte. Ela levantou a cabeça quando alguém gritou e viu Talut e Tulie acercando-se do acampamento, carregando aos ombros uma grande presa curva, ainda ligada à caveira de um mamute. A maioria dos ossos não vinha de animais que eles matavam. Descobertas ocasionais nas estepes propiciavam alguns, porém a maioria vinha das pilhas de ossos acumulados em curvas pronunciadas, nos rios, onde águas enraivecidas depositavam os restos dos animais.
Então, Ayla observou outra pessoa que vigiava o acampamento, não distante dela. Sorriu ao reunir-se a Rydag, mas sobressaltou-se ao vê-lo retribuir o sorriso. As pessoas do Clã não sorriam. Uma expressão revelando os dentes nus, em geral, denotava hostilidade num rosto com feições do Clã, ou extremo nervosismo e medo. O sorriso do menino pareceu, por um momento, inadequado. Mas o menino não crescera com o Clã e havia aprendido um significado amistoso em relação àquela expressão.
- Bom dia, Rydag - disse Ayla, fazendo ao mesmo tempo o gesto de saudação do Clã com uma pequena variação, que indicava que era dirigido a uma criança. Notou, novamente, o lampejo de compreensão diante do sinal manual. Ele se lembra! Pensou ela. Ele se lembra, estou certa disso. Conhece os sinais, teria apenas de ser lembrado deles. Não como eu. Tive que aprendê-los.
Ela recordou a tristeza de Creb e Iza quando descobriram como lhe era difícil, comparativamente aos jovens do Clã, lembrar qualquer coisa.
Ela tivera que lutar para aprender a memorizar, enquanto as crianças do clã necessitavam ver o sinal uma vez apenas. Algumas pessoas pensaram que Ayla fosse bastante estúpida mas, à medida que cresceu, ensinou a si mesma a memorizar rapidamente, de modo que não perdessem a paciência com ela.
Mas Jondalar ficara surpreso com sua habilidade. Em comparação a outros como ela, sua memória treinada era uma maravilha e acentuava sua capacidade de aprender. Ficou assombrado como ela aprendia novas línguas com facilidade, por exemplo, quase que aparentemente sem qualquer esforço. Mas não fora fácil conseguir tal perícia e, embora houvesse aprendido a memorizar depressa, nunca compreendeu inteiramente o que eram as memórias do Clã. Nenhum dos Outros era capaz. Era uma diferença básica entre eles.
Com cérebros ainda maiores do que aqueles que vieram depois, não era tão menos inteligente que um tipo diferente de inteligência. Aprendiam de lembranças que eram de alguma forma semelhantes ao instinto, porém mais conscientes, e tudo o que seus antepassados sabiam estava estocado no fundo de seus grandes cérebros, ao nascer. Não precisavam aprender o saber e habilidades necessárias para viver, lembravam-se deles. Como crianças, necessitavam apenas serem lembradas do que já sabiam para habituar-se ao processo. Como adultos, sabiam como recorrer às suas lembranças.
Recordavam facilmente, mas nada novo era dominado senão com grande esforço. Assim que alguma coisa nova era aprendida - ou um novo conceito compreendido, ou uma nova crença aceita - jamais o esqueciam e o passavam à sua descendência, mas aprendiam e mudavam devagar. Iza viera a entender, se não a assimilar, a diferença entre elas quando ensinava a Ayla a arte de uma curandeira. A estranha menina não era capaz de lembrar tão bem quanto eles, porém aprendia bem mais depressa.
Rydag disse uma palavra. Ayla não entendeu imediatamente. Depois a reconheceu. Era o seu nome! O seu nome dito de uma forma que fora familiar certa vez, como algumas pessoas do Clã o tinham pronunciado.
Como elas, a criança não era capaz de uma fala totalmente articulada; podia vocalizar, mas não era capaz de emitir alguns sons importantes, necessários para reproduzir a língua das pessoas com quem vivia. Eram os mesmos sons com que Ayla tinha dificuldade, por falta de prática. Era essa limitação no aparelho vocal do Clã, e aquelas que existiram antes, que os havia levado a desenvolver, em seu lugar, uma rica e compreensiva linguagem de gestos e sinais manuais para expressar os pensamentos de sua rica e extensa cultura. Rydag compreendia os Outros, o povo com quem vivia; compreendia o conceito de linguagem. Apenas, não era capaz de se fazer entender por eles.
Então, o menino fez o gesto que havia feito a Nezzie na noite anterior; chamou Ayla de “mãe”.
Ayla sentiu o coração bater mais depressa. O último que lhe fizera esse gesto fora seu filho, e Rydag parecia-se tanto com Durc que, por um instante, ela viu seu filho nele. Quis acreditar que ele fosse Durc e ansiou pegá-lo ao colo, apertá-lo nos braços e dizer seu nome. Fechou os olhos e reprimiu a ânsia de chamá-lo, estremecendo com o esforço.
Quando tornou a abrir os olhos, Rydag a observava com uma expressão sagaz, antiga, terna, como se a compreendesse e soubesse que ela o compreendia. Apesar dos desejos dela, Rydag não era Durc. Não mais Durc do que ela, Deegie; era ele próprio. Controlada de novo, respirou fundo.
- Gostaria de mais palavras? Mais sinais manuais, Rydag? - perguntou.
Ele sacudiu a cabeça afirmativa e enfaticamente.
- Lembra-se de “mãe” da noite passada...
Ele respondeu repetindo o gesto que tanto comovera Nezzie... E a si própria.
- Conhece este? - indagou Ayla, fazendo o gesto de saudação. Podia vê-lo lutando com o conhecimento que quase já possuía. - E um cumprimento, significa “bom dia” ou “alô”. Este... - ela mostrou o sinal de novo, com a variação que usara - é quando uma pessoa mais velha fala com uma mais jovem.
Ele franziu a testa, depois fez o gesto; em seguida sorriu para ela com seu sorriso surpreendente.
Fez os dois gestos, depois pensou e fez um terceiro, e olhou para ela de soslaio, incerto sobre se havia feito realmente alguma coisa.
Sim, está certo, Rydag, sou uma mulher, como mãe, e essa é a forma de cumprimentar a mãe. Você se lembra!
Nezzie notou que Ayla e o menino estavam juntos. Ele lhe havia causado grande aflição, algumas vezes, quando se descontrolava e fazia excessos, daí ela estar sempre ciente das atividades e localização da criança. Foi atraída. A jovem e o menino, tentando observar e entender o que faziam.
Ayla a viu, com sua expressão de curiosidade e preocupação, e chamou-a.
- Estou mostrando a Rydag a linguagem do Clã... A raça da mãe - explicou Ayla -, como a palavra, na noite passada.
Rydag, com um largo sorriso que revelava seus dentes maiores que o normal, fez um gesto deliberado para Nezzie.
- O que isso significa? - perguntou ela, olhando para Ayla.
- Rydag diz “Bom dia, mãe” - explicou a jovem.
- Bom dia, mãe? - Nezzie fez um movimento que se parecia vagamente com o gesto deliberado que Rydag fizera. - Isso significa “Bom dia, mãe”?
- Não. Sente-se aqui, eu lhe mostrarei. - Isto... - Ayla fez o sinal-...Significa “Bom dia, mãe”. Talvez ele faça o mesmo sinal para mim. Significaria “mulher maternal”. Você faria deste jeito... - Ayla fez outra variação do sinal manual - ...para dizer
“Bom dia, criança”. E este... - Ayla prosseguiu com mais uma variação - ...Para dizer “Bom dia, meu filho”. Está vendo?
Ayla repetiu todas as variações enquanto Nezzie observava com cuidado. A mulher, sentindo-se um pouco inibida, tentou de novo. Embora não houvesse finura no gesto, ficou claro para ambos, Ayla e Rydag, que o sinal que ela tentava fazer significava “Bom dia, filho”.
O menino, que estava de pé ao seu lado, estendeu os braços finos ao redor do pescoço de Nezzie e ela abraçou-o, pestanejando fortemente para conter o fluxo de lágrimas que ameaçava derramar-se, e até os olhos de Rydag ficaram úmidos o que surpreendeu Ayla.
De todos os membros do clã de Brun, somente os olhos dela tinham derramado lágrimas de emoção, embora os sentimentos de todos fossem igualmente fortes. Seu filho podia vocalizar o mesmo que ela; era capaz de fala total - o coração de Ayla ainda doía quando ela recordava como ele a chamara quando foi forçada a partir -, mas Durc não derramava lágrimas para expressar sua tristeza. Como sua mãe do Clã, Rydag não podia falar, mas quando seus olhos se enchiam de amor, cintilavam com lágrimas.
- Nunca fui capaz de conversar com ele antes... Tendo certeza de que compreendia - disse Nezzie.
- Gostaria de mais sinais? - perguntou Ayla, gentilmente.
A mulher concordou com um gesto de cabeça, ainda segurando o menino, não confiando em si mesma para falar naquele instante, por medo de se descontrolar. Ayla fez outra série de sinais e variações com Nezzie e Rydag concentrados, tentando aprendê-los. E depois outra. As filhas de Nezzie, Latie e Rugie, e os filhos mais novos de Tulie, Brinan e sua irmãzinha Tusie, que tinham quase a mesma idade de Rugie e Rydag, vieram descobrir o que ocorria; depois o filho de sete anos de Fralie, Crisavec, se reuniu a eles. Breve, todos estavam entretidos no que parecia ser um maravilhoso jogo novo: falar com as mãos.
Mas, ao contrário da maioria dos jogos das crianças do acampamento, este era aquele em que Rydag levava vantagem. Ayla não conseguia ensiná-lo depressa demais. Mal lhe mostrava um sinal uma vez, e breve ele próprio acrescentava as variações - as nuanças e sutilezas de significado. Tinha a sensação de que aquilo estava bem ali, dentro dele, derramando-se e pronto para sair, precisando apenas da menor passagem, e uma vez liberado, não podia ser contido.
Era mais excitante ainda porque as crianças que tinham quase a idade dele aprendiam também. Pela primeira vez na vida, Rydag podia expressar-se completamente e não se satisfazia nunca. As crianças com quem crescera aceitaram facilmente sua capacidade de “falar” fluentemente daquela nova maneira. Elas se comunicaram com ele antes. Sabiam que ele era diferente, que tinha problema para falar, mas ainda não tinham adquirido o preconceito adulto de que, portanto, lhe faltava inteligência. E Latie, como fazem as irmãs mais velhas muitas vezes, andara traduzindo seu “palavreado” para os membros adultos do acampamento durante anos.
Quando todos já tinham aprendido bastante e começaram a levar o novo jogo a sério, Ayla observou que Rydag os corrigia e as crianças se voltavam para ele em busca de confirmação do significado de gestos e sinais manuais. Ele havia encontrado um novo lugar entre seus iguais.
Ainda sentada ao lado de Nezzie, Ayla observou-os fazendo rápidos sinais silenciosos uns para os outros. Ela sorriu, imaginando o que Iza pensaria de filhos dos Outros falando como o Clã, gritando e rindo ao mesmo tempo. De algum modo, refletiu Ayla, a velha curandeira teria compreendido.
- Deve estar certa. Essa é a maneira dele de falar - disse Nezzie. - Nunca o vi aprender algo tão depressa. Eu não conhecia os cabeças-cha... Como é que você os chama?
- Clã. Eles dizem Clã. Significa... Família... Gente... Homens. O Clã do Urso da Caverna, pessoas que honram o Grande Urso da Caverna; vocês dizem Mamutoi, Caçadores de Mamutes, que honram a Mãe - replicou Ayla.
- Clã... Eu não sabia que eles podiam falar assim, não sabia que alguém pudesse dizer tanto com as mãos... Jamais vi Rydag tão feliz. - A mulher hesitou e Ayla sentiu que ela tentava encontrar uma maneira de dizer mais alguma coisa. Esperou para dar-lhe uma chance de pôr os pensamentos em ordem. - Estou surpresa por você ter gostado dele tão depressa - continuou Nezzie. - Algumas pessoas fazem objeção porque é misto e a maioria fica um pouco constrangida perto dele.
Mas você parece conhecê-lo.
Ayla fez uma pausa antes de falar enquanto examinava a mulher mais velha, incerta sobre o que dizer. Depois, tomando uma decisão, disse:
- Certa vez, conheci alguém como ele... Meu filho. Meu filho, Durc.
- Seu filho! - Havia surpresa na voz de Nezzie, porém Ayla não detectou qualquer sinal da reação repentina que fora tão evidente na voz de Frebec quando falou dos cabeças-chatas e de Rydag na noite anterior. - Você teve um filho misto? Onde está ele? O que lhe aconteceu?
A angústia obscureceu o semblante de Ayla. Ela havia guardado os pensamentos sobre seu filho enterrados no fundo, enquanto estava sozinha no vale, mas a visão de Rydag os havia despertado.
As perguntas de Nezzie trouxeram lembranças e emoções dolorosas à tona e pegaram-na de surpresa. Agora, tinha que enfrentá-las.
Nezzie era tão aberta e franca quanto o resto de seu povo, e as perguntas foram espontâneas, mas ela era sensível.
- Desculpe, Ayla. Eu devia ter pensado...
- Não se preocupe, Nezzie - disse Ayla, pestanejando para conter as lágrimas. - Sei que surgem perguntas quando falo de meu filho. Dói... Pensar em Durc.
- Não precisa falar sobre ele.
- Às vezes preciso falar de Durc. - Ayla fez uma pausa, depois investiu: - Durc está com o Clã. Quando ela morreu... Iza... Minha mãe, como você com Rydag... Disse para eu ir para o norte, encontrar meu povo. Não o Clã, os Outros. Durc era bebê então. Eu não fui. Depois, Durc tinha três anos, Broud me fez ir. Eu não sabia onde viviam os Outros, não sabia para onde ir, não podia levar Durc. Dei para Uba... Irmã. Ela ama Durc, toma conta dele. É filho dela, agora.
Ayla parou de falar, mas Nezzie não sabia o que dizer. Gostaria de fazer mais perguntas, mas não queria pressionar, quando era claro que era um sofrimento enorme para Ayla falar do filho que amava, mas tivera que abafá-lo Ayla continuou por conta própria.
- Três anos desde que vi Durc. Ele tem... Seis anos agora. Como Rydag?
Nezzie concordou com um gesto de cabeça.
- Não se passaram sete anos ainda desde que Rydag nasceu.
Ayla ficou calada, parecendo imersa em pensamento. Depois prosseguiu:
- Durc é como Rydag, mas não é. Durc é como Clã nos olhos, como eu na boca. - Sorriu torto.
- Devia ser de Outro jeito. Durc forma palavras, podia falar, mas o Clã não. Melhor se Rydag falasse, mas ele não pode. Durc é forte. - Os olhos de Ayla assumiram uma expressão distante. - Ele corre depressa, é o melhor corredor, será muito bom corredor um dia, como diz Jondalar. - Seus olhos encheram-se de tristeza quando se ergueram para Nezzie. - Rydag fraco. De nascimento. Fraco em...? - Colocou a mão no peito, não sabia a palavra.
- Ele tem problema de respiração, às vezes - disse Nezzie.
- Problema não é de respiração, problema é sangue... Não... Sangue não... Aqui dentro - disse, a mão fechada sobre o peito, frustrada por desconhecer a palavra.
- O coração. É o que Mamut diz. Ele tem um coração fraco. Como soube disso?
- Iza era curandeira, feiticeira. Melhor curandeira do Clã. Ela me ensinou como filha. Sou curandeira.
Jondalar havia dito que Ayla era uma curandeira, lembrou Nezzie. Estava surpresa em saber que os cabeças-chatas sequer pensavam em curar, mas também ignorara que eram capazes de falar. E havia estado perto de Rydag o suficiente para saber que, mesmo sem uma fala completa, ele não era o animal estúpido que tantas pessoas acreditavam. Mesmo não sendo um Mamut, não havia razão para Ayla não poder saber alguma coisa sobre a arte de curar.
As duas mulheres ergueram os olhos quando uma sombra desceu sobre elas.
- Mamut quer saber se pode ir falar com ele, Ayla - disse Danug. As duas estavam tão entretidas na conversa que nenhuma havia notado a aproximação do jovem alto. - Rydag está muito excitado com o novo jogo de mãos que você lhe mostrou - continuou ele. - Latie diz que ele quer que eu pergunte se você me ensinará alguns dos sinais também.
- Sim. Sim. Ensino a você, ensino a todos.
- Também quero saber mais sobre suas palavras manuais - disse Nezzie quando as duas ficaram de pé.
- De manhã? - interrogou Ayla.
- Sim, amanhã de manhã. Mas ainda não comeu nada. Talvez, amanhã, seja melhor comer alguma coisa primeiro - disse Nezzie. - Venha comigo e lhe darei alguma coisa, e também para Mamut.
- Estou faminta - falou Ayla.
- Eu também - ajuntou Danug.
- Quando é que não está com fome? Você e Talut juntos poderiam comer um mamute - falou Nezzie com orgulho nos olhos, por seu filho grande e forte.
Quando as duas mulheres e Danug se dirigiram à casa comunal, aparentemente os Outros consideraram-no uma sugestão para parar a fim de fazerem uma refeição e seguiram-nos. As roupas exteriores foram removidas no recinto de entrada e penduradas em cabides. Era uma refeição matinal, casual, diária, com algumas pessoas cozinhando em suas próprias fogueiras e outras reunindo-se na grande primeira fogueira, que continha o fogo principal, e várias outras, menores. Algumas pessoas comiam sobras frias de mamute, outras, carne ou peixe cozidos com raízes ou verduras em uma sopa engrossada com cereais rudemente moídos, colhidos dos pastos das estepes. Mas, quer cozinhassem em seu recinto privado ou não, a maioria das pessoas perambulava, eventualmente, pela área comunal para uma visita, enquanto bebia um chá quente antes de sair novamente.
Ayla estava sentada ao lado de Mamut, observando as atividades com grande interesse. O nível de ruído de tantas pessoas conversando e rindo juntas ainda a surpreendia, mas já se acostumava a ele.
Estava ainda mais surpresa com a naturalidade com que as mulheres se moviam entre os homens. Não havia hierarquia rígida, nenhuma ordem para cozinhar ou servir a comida. Todos pareciam se servir, exceto as mulheres e homens que ajudavam os filhos mais novos.
Jondalar aproximou-se deles e se acomodou cuidadosamente na esteira de capim ao lado de Ayla, enquanto equilibrava com as duas mãos uma tigela bastante flexível, à prova d’água, mas sem alça, tecida de gramínea, em um desenho em ziguezigue decores contrastantes, cheia de chá de hortelã quente.
- Acordou cedo de manhã - disse Ayla.
- Não quis perturbar você. Dormia tão profundamente...
- Acordei quando pensei que alguém estava ferido, mas Deegie me disse que a velha... Crozie... Sempre fala alto com Frebec.
- Discutiam tão alto que até os ouvi lá fora - falou Jondalar. - Frebec pode ser um encrenqueiro, mas não estou certo de que tem culpa. Aquela mulher velha grasna mais que um gaio. De que modo alguém pode viver com ela?
- Achei que alguém estava ferido - disse Ayla, pensativa.
Jondalar a olhou, intrigado. Não achava que ela se repetia, dizendo que pensara, erradamente, que alguém estava fisicamente ferido.
- Tem razão, Ayla - disse Mamut. - Velhas feridas que ainda doem.
- Deegie tem pena de Fralie. - Ayla se virou para Mamut, sentindo-se à vontade para fazer-lhe perguntas, embora na maioria das vezes não quisesse revelar sua ignorância. - O que é Preço de Noiva? Deegie disse que Tulie pediu alto Preço de Noiva por ela.
Mamut fez uma pausa antes de responder, pondo cuidadosamente os pensamentos em ordem porque queria compreendê-la. Ayla observava o velho de cabelos brancos com ansiedade.
- Eu poderia lhe dar uma resposta simples, Ayla, mas a coisa não é tão clara quanto parece. Tenho pensado a respeito durante muitos anos.
Não é fácil compreender e explicar você e sua gente, mesmo quando você é um daqueles que os outros procuram para ter respostas. - Fechou os olhos, enrugando a testa, concentrado. - Compreende status, não?
- Sim - respondeu Ayla. - No Clã, o líder tem o maior status, depois o caçador escolhido, em seguida outros caçadores. Mog-ur tem alto status também, mas é diferente. Ele é... Homem do mundo espiritual.
- E as mulheres?
- As mulheres têm status do companheiro, mas a curandeira tem seu status próprio.
Os comentários de Ayla surpreenderam Jondalar. Com tudo o que ele aprendera com ela sobre os cabeças-chatas, ainda tinha dificuldade em acreditar que eram capazes de entender um conceito tão complexo quanto a posição social comparativa.
- Imaginei isso - disse Mamut em voz baixa, continuando a explicar depois: - Reverenciamos a Mãe, a criadora e sustentadora de toda a vida. As pessoas, animais, plantas, água, árvores, rochas, terra, tudo foi dado à luz por Ela, Ela criou tudo. Quando invocamos o espírito do mamute, ou o espírito do veado, ou do bisão para pedir permissão para caçá-los, sabemos que é o Espírito da Mãe que lhes deu vida; é Seu Espírito que faz com que outro mamute, ou veado, ou bisão nasça para substituir aqueles que Ela nos dá como alimento.
- Dizemos que é a Dádiva de Vida da Mãe - disse Jondalar, intrigado. Interessava-se em descobrir como os costumes dos Mamutoi comparavam-se aos dos Zelandonii.
- Mut, a Mãe, escolheu as mulheres para nos mostrar como Ela tomou o Espírito da Vida em si mesma, para criar e dar à luz nova vida, a fim de substituir aquelas que Ela chamou de volta - disse o velho santo.
- As crianças aprendem isto quando crescem, por meio de lendas e histórias e canções, mas você está além disso agora, Ayla. Gostamos de ouvir as histórias mesmo quando envelhecemos, mas você precisa compreender o curso que as move e o que jaz embaixo, para poder entender as razões para muitos dos nossos costumes. Conosco, o status depende de uma mãe, e o Preço de Noiva é a maneira como mostramos valor.
Ayla sacudiu a cabeça concordando, fascinada. Jondalar tentara explicar sobre a Mãe, mas Mamut fez parecer tão razoável, tão mais fácil de compreender...
- Quando as mulheres e homens decidem formar uma união, o homem e seu acampamento dão muitos presentes à mãe da mulher e ao seu acampamento. A mãe ou chefe do acampamento estabelece o preço - diz quantos presentes são exigidos - pela filha, ou ocasionalmente, a mulher pode fixar seu próprio preço, mas depende de muito mais do que do seu capricho. Nenhuma mulher quer ser desvalorizada, mas o preço não deve ser tão alto que o homem de sua escolha e o seu acampamento não tenham os meios ou não desejem pagar.
- Por que pagamento por uma mulher? - perguntou Jondalar. - Isso não a torna uma mercadoria de comércio, como o sal ou sílex ou âmbar?
- O valor de uma mulher é muito maior. O Preço de Noiva é o que um homem paga pelo privilégio de viver com uma mulher. Um Preço de Noiva bom beneficia a todos. Concede alto status à mulher; diz a todos como o homem que a quer lhe dá um elevado valor, assim como o seu próprio acampamento. Honra o acampamento dele e deixa que mostrem que são bem-sucedidos e podem pagar o preço. Distingue o acampamento da mulher, mostra-lhes estima e respeito e lhes dá alguma coisa para compensar pela perda da mulher, se ela partir, como fazem algumas jovens, para formar novo acampamento ou para viver no acampamento do homem. Porém, mais importante, ajuda-os a pagar um bom Preço de Noiva quando um dos seus homens desejar uma mulher, de forma a poderem exibir sua riqueza.
“As crianças nascem com o status de suas mães, ou seja, um Preço de Noiva alto as beneficia. Embora o Preço de Noiva seja pago em presentes, e alguns sejam para o casal começar a vida juntos, o valor real é o status, o elevado conceito da mulher em seu próprio acampamento e em todos os outros, e o valor que ela dá ao seu companheiro e filhos.
Ayla ainda estava intrigada, mas Jondalar sacudia a cabeça afirmativamente, começando a compreender. Os detalhes específicos e complexos não eram os mesmos, porém os esboços gerais de valores e relacionamentos de parentesco não eram tão diferentes dos de seu próprio povo.
- Como se conhece o valor de uma mulher? Para fixar um bom Preço de Noiva? - perguntou o homem dos Zelandonii.
- O Preço de Noiva depende de muitas coisas. Um homem irá sempre tentar encontrar uma mulher com o status mais elevado que ele possa pagar porque, quando ele deixa sua mãe, assume o status de sua companheira que é ou será uma mãe. Uma mulher que provou sua maternidade tem um valor mais alto, assim, as mulheres com filhos são grandemente desejadas. Os homens tentarão, muitas vezes, aumentar o valor de sua provável companheira porque é benefício para eles; dois homens que estão competindo por uma mulher de alto valor talvez combinem seus recursos... Se puderem se dar bem e ela concordar... E sobem ainda mais o Preço de Noiva. Às vezes, um homem se unirá a duas mulheres, especialmente irmãs que não querem se separar. Então, ele consegue o status da mulher de categoria mais alta e é considerado com distinção, o que lhe dá certo status adicional. Ele mostra que é capaz de sustentar duas mulheres e seus futuros filhos. Gêmeas são consideradas bênção especial, raramente são separadas.
- Quando meu irmão encontrou uma mulher entre os Sharamudoi, ele tinha laços de parentesco com uma mulher chamada Tholie, que era Mamutoi Uma vez ela me contou que foi “roubada”, embora concordasse com isso - falou Jondalar
- Negociamos com os Sharamudoi, mas nossos costumes não são os mesmos. Tholie era uma mulher de status elevado. Perdê-la para outros significou ceder alguém que não era apenas valioso... E pagaram um bom Preço de Noiva... Mas que levaria o valor que ela havia recebido de sua mãe e o daria ao seu companheiro e filhos, valor que, eventualmente, teria sido trocado entre todos os Mamutoi. Não havia maneira de compensar isso. Era a perda para nós, embora seu valor fosse roubado de nós. Mas Tholie estava apaixonada e determinada a unir-se ao jovem Sharamudoi.
Assim, para resolver o caso, permitimos que ela fosse “roubada”.
- Deegie diz que a mãe de Fralie fez Preço de Noiva baixo - falou Ayla.
O velho mudou de posição. Podia ver a que sua pergunta conduzia e não seria fácil responder. A maioria das pessoas compreendia seus costumes intuitivamente e não poderia dar uma explicação tão clara quanto Mamut. Muitos, em sua posição, teriam relutado em explicar crenças que normalmente teriam sido disfarçadas em histórias ambíguas, temendo que tal exposição direta e detalhada de valores culturais os despojasse de seu mistério e poder. Chegou mesmo a deixá-lo pouco à vontade, mas já fora levado a algumas conclusões e tomara algumas decisões sobre Ayla. Queria que ela entendesse os conceitos e assimilasse seus costumes, tão depressa quanto possível.
- Uma mãe pode ir para a fogueira de qualquer um dos seus filhos - disse ele. - Se faz isso... E em geral, não o fará até envelhecer... Será a de um filha que ainda vive no mesmo acampamento. Seu companheiro se muda, em geral, com ela, mas ele pode voltar para o acampamento de sua mãe, ou viver com uma irmã se quiser. Muitas vezes, um homem se sente mais próximo dos filhos de sua companheira, dos filhos de sua fogueira, porque ele vive com eles e os treina, mas os filhos de sua irmã são seus herdeiros, e quando ele envelhece é responsabilidade deles. Usualmente, os idosos são bem-vindos, mas infelizmente, nem sempre. Fralie é a única filha que resta a Crozie, por isto, onde sua filha vai, ela vai. A vida não tem sido boa para Crozie e ela não se tornou bondosa com a idade. Ela se apega e é dominadora e poucos homens desejariam dividir sua fogueira com ela. Teve que baixar muito o Preço de Noiva de sua filha depois que o primeiro marido de Fralie morreu, o que inflama e aumenta sua amargura.
Ayla concordou com um gesto de cabeça, depois franziu atesta, preocupada.
- Iza me contou sobre velha que viveu com o clã de Brun antes de eu ser encontrada. Ela veio de outro clã. O companheiro morreu, nenhum filho. Ela não tinha valor, nem status, mas sempre tinha comida, lugar perto do fogo. Se Crozie não tivesse Fralie, para onde iria?
Mamut ponderou a pergunta por um momento. Queria dar uma resposta totalmente verdadeira a Ayla.
- Crozie teria um problema, Ayla. Em geral, alguém que não tem parentes será adotado por outra fogueira, mas ela é tão desagradável, que não há muitos que a aceitariam. Provavelmente, encontraria o suficiente para comer e um lugar para dormir em qualquer acampamento, mas depois de algum tempo a fariam ir embora, exatamente como seu acampa mento as fez partir depois que o primeiro marido de Fralie morreu.
O velho feiticeiro continuou com uma careta.
- Frebec também não é muito agradável. O status de sua mãe era muito baixo, tinha poucos talentos e pouco a oferecer exceto uma inclinação para a bebida, assim, ele nunca teve muito para começar. Seu acampamento não quis Crozie e não se importava se ele partisse. Recusaram-se a pagar qualquer coisa. Por isto, o Preço de Noiva de Fralie foi tão baixo. A única razão pela qual estão aqui é por causa de Nezzie. Ela convenceu Talut a falar em nome deles, e foram aceitos. Há alguns, aqui, que lamentam.
Ayla balançou a cabeça, compreendendo. A situação era um pouco mais clara agora.
- Mamut, que...
- Nuvie! Nuvie! Ó Mãe! Ela está com asfixia! - gritou uma mulher, de repente.
Várias pessoas estavam de pé ao redor, enquanto sua filha de três anos tossia e cuspia e lutava para respirar. Alguém bateu nas costas da criança, mas não deu resultado. Outros se encontravam de pé à sua volta, tentando dar conselhos, mas não sabiam o que fazer enquanto observavam a menina arquejar e se tornar azul.
Ayla abriu caminho entre a multidão e alcançou a criança quando ela perdia a consciência. Pegou a menina, sentou-se e colocou-a atravessada em seu colo, depois enfiou um dedo em sua boca para ver se encontrava a obstrução. Quando isto não teve sucesso, Ayla se levantou, virou a criança ao contrário e segurou-a pela cintura com um braço, fazendo com que pendessem sua cabeça e braços, e golpeou-a com força entre os ombros. Depois, colocou os braços por trás da criança flácida e empurrou com um movimento brusco.
Todos retrocederam, as respirações suspensas, observando a mulher que parecia saber o que fazia, numa luta de vida ou morte para desobstruir o bloqueio na garganta da menininha. A criança parara de respirar, embora seu coração ainda batesse. Ayla deitou a criança e se ajoelhou ao seu lado. Viu uma peça de roupa, a parka da criança e enfiou-a sob seu pescoço para manter a cabeça para trás e a boca aberta. Então, mantendo o narizinho fechado, a mulher colocou sua boca sobre a da criança e inspirou o mais forte possível, criando uma forte sucção. Manteve a pressão até estar, ela própria, quase sem ar.
De repente, então, com um ruído abafado, ela sentiu um objeto voar para sua boca e quase se alojar em sua própria garganta. Ayla ergueu a boca e cuspiu um pedaço de osso cartilaginoso com carne agarrada a ele. Inspirou profundamente, empurrou o cabelo para trás, e cobrindo a boca da criança imóvel com a sua, novamente, cedeu sua respiração, para reanimar os pulmões sem vida. O pequeno peito se ergueu. Ela repetiu o gesto várias vezes.
De repente, a criança recomeçou a tossir e cuspir e depois respirou fundo, asperamente.
Ayla ajudou Nuvie a sentar-se quando ela recomeçou a respirar, só então tendo consciência de Tronie que soluçava, aliviada ao ver sua filha ainda viva.
Ayla vestiu sua parka pela cabeça, afastou o capuz para trás e abaixou o olhar para a fila de fogueiras. Na última, a Fogueira dos Auroques, viu Deegie de pé próxima ao fogo, escovando seu cabelo castanho abundante e fazendo um coque enquanto conversava com alguém em um estrado-cama. Ayla e Deegie tinham-se tornado boas amigas nos últimos poucos dias e geralmente saíam juntas de manhã. Enfiando um grampo de cabelo de marfim - comprido e fino esculpido de uma presa de mamute e polido suavemente - Deegie acenou para Ayla e fez um sinal, “Espere por mim, irei com você”.
Tronie estava sentada sobre um leito na fogueira vizinha à Fogueira do Mamute, amamentando Hartal. Sorriu para Ayla e chamou-a. Ayla entrou na área definida como Fogueira da Rena e sentou-se ao lado dela; depois se inclinou e fez cócegas no bebê. Ele soltou o peito da mãe um instante, riu e deu chutes; depois procurou o seio materno para mamar novamente.
- Ele já conhece você - disse Tronie.
- Hartal está feliz, saudável. Cresce depressa. Onde está Nuvie?
- Manuv a levou lá fora mais cedo. Ele ajuda tanto com ela, que estou contente por ele ter vindo morar conosco. Tornec tem uma irmã com quem poderia ter ficado. O velho e o jovem sempre parecem se dar bem, mas Manuv passa quase todo o seu tempo com a pequenina e não é capaz de recusar-lhe coisa alguma. Especialmente agora, depois que quase a perdemos. - A jovem mãe colocou o bebê ao ombro para dar palmadinhas em suas costas, depois voltou-se a Ayla de novo. - Não tive uma chance, realmente, de falar com você a sós. Gostaria de lhe agradecer novamente.
Todos somos tão gratos... Eu tive medo de que ela... Ainda tenho pesadelos. Eu não sabia o que fazer. Não sei o que teria feito se você não estivesse presente. - Ficou com a voz embargada enquanto lágrimas surgiam em seus olhos.
- Tronie, não fale. Não é necessário agradecer. E meu... Não sei a palavra. Tenho conhecimento... É necessário para mim.
Ayla viu Deegie atravessar a Fogueira da Garça e notou que Fralie a observava. Havia olheiras fundas em redor de seus olhos e ela parecia mais cansada do que deveria estar. Ayla andara observando-a e embora sua gravidez já estivesse bem adiantada, a ponto de não dever mais ter enjôo matinal, Fralie ainda vomitava regularmente e não apenas de manhã. Ayla quis fazer um exame mais detalhado, porém Frebec ficara enfurecido quando ela o mencionara. Afirmou que porque impedira que alguém tivesse asfixia, isso não provava que ela conhecia alguma coisa sobre cura. Não estava convencido, só porque ela dizia isso, e não queria que uma mulher estranha desse mau conselho a Fralie. Isto deu motivo a Crozie para discutir com ele. Por fim, para parar com a briga, Fralie declarou que estava ótima e não precisava consultar Ayla.
Ayla sorriu para a mulher acossada, encorajando-a. Depois, pegando uma vasilha de couro, vazia, para água pelo caminho, dirigiu-se à entrada com Deegie. Quando atravessaram a Fogueira do Mamute e entraram na Fogueira da Raposa, Ranec levantou a cabeça e observou-as passar. Ayla teve a sensação distinta de que ele a observava durante toda a travessia da Fogueira do Leão e área de cozinhar até ela alcançar o arco interior, e teve que controlar o desejo de olhar para trás.
Quando afastaram a cortina exterior, Ayla pestanejou diante do brilho inesperado de um sol intenso num céu azul vivo. Era um desses dias quentes, tranqüilos, de outono que chegavam como um presente raro, para serem lembrados na estação em que ventos cortantes, tempestades furiosas e frio intenso seriam o clima diário. Ayla sorriu com prazer e de repente recordou, embora não houvesse pensado naquilo havia anos, que Uba havia nascido num dia como aquele, no primeiro outono depois do clã de Brun encontrá-la.
A habitação comunal e a área nivelada à sua frente foram cavadas mais ou menos à metade de uma encosta que dava para o oeste. Da entrada, a vista era ampla e Ayla ficou parada um instante, apreciando. O rio apressado cintilava e resplandecia como se murmurasse um líquido subtom à interação da água e da luz solar e, do outro lado, numa névoa distante, ela viu uma escarpa semelhante. O rio largo e rápido, abrindo um canal através das vastas estepes descampadas, estava ladeado por taludes de terra erodida.
Da banqueta arredondada do platô acima até a larga planície aluvial abaixo, o bom solo de loesse era marcado por ravinas profundas; o trabalho da chuva, a neve derretida, e o escoamento das grandes geleiras para o norte durante o fluxo primaveril. Poucos pinheiros e lanços verdes se erguiam eretos e rígidos em seu isolamento, disseminados esparsamente entre o emaranhado reclinado de arbustos desfolhados no terreno mais baixo. Rio abaixo, ao longo de sua margem, as espigas de tifáceas misturavam-se com canas e junças. Sua visão rio acima estava bloqueada pela curva do rio, mas Whinney e Racer pastavam por perto, no capim seco, vertical, que cobria o equilíbrio da paisagem árida, seca.
Um salpico de poeira aterrissou aos pés de Ayla. Ela ergueu a cabeça surpresa para os olhos azuis, vívidos de Jondalar. Talut estava ao lado dele, com um largo sorriso no rosto. Ela ficou espantada ao ver mais algumas pessoas no alto da habitação.
- Suba, Ayla. Eu ajudo - disse Jondalar.
- Agora não. Depois. Acabei de sair. Por que estão aí em cima?
- Estamos colocando os barcos bojudos sobre os buracos de fumaça - explicou Talut.
- O quê?
- Venha, eu explicarei - falou Deegie. - Estou pronta para urinar.
As duas jovens caminharam juntas em direção a uma ravina próxima. Os degraus tinham sido cortados rudemente na encosta íngreme que levava a várias grandes omoplatas de mamutes, achatadas, com buracos, colocadas sobre uma parte mais funda da ravina seca. Ayla ficou de pé sobre um dos ossos, desatou a tira de suas calças, abaixou-as, depois se inclinou e acocorou-se sobre a abertura, ao lado de Deegie, perguntando-se mais uma vez por que não pensara na postura quando tivera tanta dificuldade com suas roupas. Parecia tão simples e claro depois de ter observado Deegie, uma vez. Os conteúdos das cestas noturnas também eram atirados na ravina, assim como outro refugo, sendo tudo limpo pelas águas na primavera.
Afastaram-se e desceram para o rio ao lado da larga ravina. Um riacho, cuja nascente mais ao norte já estava congelada, escorria pelo meio. Quando a estação mudasse novamente, a vala carregaria uma corrente enraivecida. As partes mais altas de alguns crânios de mamutes estavam invertidas e fincadas perto da margem juntamente com algumas canecas toscas de cabo comprido, feitas de ossos das pernas.
As duas mulheres encheram as bacias de crânios de mamute com água tirada do rio e, de uma sacola que trouxera consigo, Ayla salpicou pétalas esbranquiçadas - antes os ramos azuis-claros de flores de ceanoto, ricas em saponina - às mãos. Esfregando com mãos molhadas criou uma substância espumosa para lavar, levemente arenosa, que deixava um perfume suave em rosto e mãos limpos. Ayla arrancou um graveto, mastigou a ponta partida e usou-a sobre os dentes, um hábito adquirido com Jondalar.
- O que é um barco bojudo? - perguntou Ayla enquanto voltavam carregando uma de cada lado o estômago de bisão impermeável, abaulado com água fresca.
- Nós os usamos para atravessar o rio, quando não está muito agitado. Você começa com uma armação de osso e lã em forma de uma tigela grande, um bojo, que poderá conter duas ou talvez três pessoas e cobre-a com uma pele em geral de auroques, o pêlo voltado para o lado exterior e bem oleado. Galhada de megáceros com algumas aparas dá bons remos... para mover a embarcação através da água - explicou Deegie.
- Por que os barcos no alto da moradia?
- Ë onde os colocamos sempre quando não os estamos usando, mas no inverno cobrimos as aberturas de fumaça com eles para que a chuva e a neve não entrem. Eles estavam atando os barcos aos buracos para que não fossem levados pelo vento. Mas você tem que deixar um espaço para a fumaça sair, e poder movê-la, e abaná-la para que se solte do interior se a neve subir.
Enquanto caminhavam juntas, Ayla pensava como era feliz por conhecer Deegie. Uba havia sido uma irmã e ela a amava, mas Uba era mais jovem e filha verdadeira de Iza; sempre existira uma diferença. Ayla jamais conhecera alguém de sua própria idade que parecesse compreender tudo o que ela dizia e com quem tivesse tanto em comum. Colocaram o pesado odre no chão, parando para descansar um pouco.
- Ayla, mostre-me como dizer “Eu amo você” com sinais, para eu poder dizer a Branag quando tornar a vê-lo - pediu Deegie.
- Clã não tem sinal como esse - disse Ayla.
- Não se amam? Você os faz parecer tão humanos quando fala deles que pensei que se amassem.
- Sim, se amam, mas são calados... Não, essa não é a palavra correta.
- Acho que a palavra que quer é “Sutis” - disse Deegie.
- Sutis... Sobre mostrar seus sentimentos. Uma mãe poderia dizer você me enche de felicidade”, ao filho - replicou Ayla, mostrando o sinal adequado a Deegie -, mas a mulher não seria tão aberta... não, óbvia? - questionou sua segunda escolha de palavras e esperou pelo gesto afirmativo de Deegie para continuar -, óbvia sobre seus sentimentos por um homem.
Deegie estava curiosa.
- O que ela deveria fazer? Tive que deixar Branag saber como me sentia em relação a ele quando descobri que estivera me observando nas Reuniões de Verão, exatamente como eu o estivera examinando. Se não lhe pudesse dizer, não sei o que eu teria feito.
- Uma mulher do Clã não diz, mostra. Faz coisas para o homem que ama, cozinha como ele gosta, apronta seu chá preferido de manhã, quando ele acorda. Faz roupas de maneira especial... Agasalho de pele do pêlo interior muito macio, ou proteções quentes para os pés, com pele dentro. Melhor ainda se a mulher conseguir saber o que ele quer, antes que peça. Mostra que ela presta muita atenção para aprender seus hábitos e inclinações, o conhece e se importa com ele.
Deegie concordou com um gesto de cabeça.
- E uma boa maneira de dizer a alguém que você o ama. E bonito fazer coisas especiais um para o outro. Mas, como uma mulher sabe que o homem a ama? O que um homem faz por uma mulher?
- Uma vez, Goov se arriscou para matar um leopardo da neve que era assustador para Ovra, porque estava rondando muito perto da caverna. Ela sabia que ele fizera isso por ela, embora ele desse a pele a Creb e Iza tivesse feito um agasalho de pele para mim - explicou Ayla.
- Isso é sutil! Não estou certa se eu teria compreendido. - Deegie riu. - Como sabe que ele se arriscou por causa dela?
- Ovra me contou, mais tarde. Eu não sabia, na época. Eu era criança. Ainda aprendia. Sinais manuais, não toda a linguagem do Clã. Muito mais era dito no rosto, olhos e corpo. A maneira de andar virando a cabeça, músculos dos ombros rígidos, se você sabe o que significa, dizem mais do que palavras. Levei muito tempo para aprender linguagem do Clã.
- Estou surpresa como aprendeu Mamutoi depressa! Eu a tenho visto, está melhor a cada dia.
Quisera ter seu talento para línguas.
- Ainda não estou segura, há muitas palavras que ignoro, mas penso em dizer as palavras na forma de linguagem do Clã. Ouço as palavras e observo a expressão dos rostos, sinto como as palavras soam e se unem e vejo como o corpo se move... E tento lembrar. Quando mostro a Rydag e aos outros os sinais manuais, aprendo também. Aprendo mais sua língua. Devo aprender, Deegie - acrescentou Ayla com um ardor que revelava sua sinceridade.
- Não é apenas um jogo para você, é? Como os sinais manuais para nós. É engraçado pensar que podemos ir à Reunião de Verão e falar um com o Outro sem mais ninguém saber.
- Estou feliz porque todos se divertem e querem saber mais. Por Rydag. Ele se diverte agora, mas não é uma brincadeira para ele.
- Não, suponho que não seja. - Pegaram o odre de novo. Depois, Deegie parou e olhou para Ayla. - No princípio, não entendi por que Nezzie quis ficar com ele. Mas depois acostumei-me a ele e comecei a gostar dele. Agora, é um de nós, e sentiria sua falta se ele não estivesse aqui, mas nunca me ocorreu que, talvez, ele quisesse falar antes daquela noite. Nunca imaginei que ele sequer pensasse nisso.
Jondalar estava de pé à entrada da moradia comunal, observando as duas jovens profundamente envolvidas na conversa enquanto se aproximavam, satisfeito por ver Ayla dando-se tão bem.
Quando refletiu a respeito, parecia bastante espantoso que, de todos os povos que pudessem ter encontrado, o grupo que descobriram tivesse uma criança de espíritos mistos em seu meio e, assim, estivesse mais ansioso que a maioria, provavelmente, para aceitá-la. Ele estivera certo sobre uma coisa, todavia. Ayla não hesitou em contar a todos sobre sua formação.
Bem, ao menos ela não lhes contara sobre seu filho, pensou ele. Uma coisa era uma pessoa como Nezzie abrir seu coração para um órfão, outra, bem diferente, acolher uma mulher cujo espírito havia se misturado ao de um cabeça-chata, e que dera à luz uma abominação. Havia sempre um temor oculto de que pudesse acontecer de novo, e se ela atraísse o tipo errado de espíritos, talvez eles se espalhassem por outras mulheres próximas.
De súbito, o homem atraente e alto corou. Ayla não acha que seu filho é uma abominação, refletiu, mortificado. Ele havia vacilado, sentira-se repugnado, quando Ayla lhe contara pela primeira vez sobre o filho e ela ficara furiosa. Jamais a vira tão zangada, mas seu filho era seu filho e, certamente, ela não se envergonhava dele. Ela tem razão. Doni me contou num sonho. Cabeças-chatas... O Clã... São filhos, também, da Mãe. Veja Rydag. É muito mais inteligente do que imaginei que alguém como ele pudesse ser. É um pouco diferente, mas é humano e muito simpático.
Jondalar havia passado algum tempo com o menino e descoberto como era esperto e maduro, com uma graça até mesmo irônica, principalmente quando sua diferença ou fraqueza era mencionada.
Vira adoração nos olhos de Rydag sempre que o menino fitava Ayla. Ela lhe contara que meninos da idade de Rydag estavam mais perto da virilidade no Clã, mais como Danug, mas também era verdade que sua fraqueza talvez o tivesse amadurecido além de sua idade.
Ela está certa. Sei que tem razão sobre eles. Mas, se ela não falasse a respeito deles, seria muito mais fácil. Ninguém sequer saberia, se não contasse.
Ela os considera sua gente, Jondalar, censurou-se ele, sentindo o rosto rubro de novo, encolerizado com seus próprios pensamentos. Como você se sentiria se alguém lhe dissesse para não falar das pessoas que o criaram e cuidaram de você? Se ela não se envergonha de seu povo, por que você deveria se envergonhar? Isto não tem sido tão mau assim. De qualquer forma, Frebec é um encrenqueiro. Mas ela não sabe como as pessoas podem atacá-lo e a qualquer pessoa que estiver em sua companhia.
Talvez seja melhor que não saiba. Talvez não vá acontecer. Ela já levou a maioria deste acampamento a falar como os cabeças-chatas, inclusive a mim.
Depois de Jondalar ter visto como quase todos estavam ansiosos para aprender a maneira de comunicação do Clã, ele passou a tomar parte nas lições improvisadas que pareciam ter origem sempre que alguém fazia perguntas sobre o assunto. Encontrava-se cativado pela diversão do novo jogo, enviando sinais à distância, fazendo brincadeiras silenciosas, como dizer uma coisa e fazer o sinal de outra pelas costas de alguém. Estava surpreso com a profundidade e plenitude da fala silenciosa.
- Jondalar, seu rosto está vermelho. Em que estaria pensando? - interrogou Deegie em tom provocador quando chegaram à arcada.
A pergunta o pegou desprevenido, lembrou-o de sua vergonha e ele corou ainda mais em seu embaraço.
- Devo ter estado perto demais do fogo - resmungou, virando-se e afastando-se.
Por que Jondalar diz palavras que não são verdadeiras? Perguntou-se Ayla, notando-lhe a testa enrugada e os belos olhos azuis profundamente perturbados antes de ele desviá-los. Ele não está vermelho do fogo. Está corado de emoção. Exatamente quando acho que estou começando a entender, ele faz algo que não compreendo. Eu o observo, tento prestar atenção. Tudo parece maravilhoso. Depois, sem qualquer razão, de repente, ele fica zangado. Vejo que está zangado, mas não entendo por que motivo. É como nos jogos, dizendo uma coisa com as palavras e outra com os sinais. Como quando diz palavras bonitas a Ranec, mas seu corpo diz que ele está com raiva. Por que Ranec o encoleriza? E, agora, alguma coisa o incomoda, mas diz que o fogo o fez ficar vermelho, O que estou fazendo de errado? Por que não o compreendo? Entenderei, um dia?
Os três se viraram para entrar e quase esbarraram em Talut que sala da habitação comunal.
- Vinha procurá-lo, Jondalar - disse o chefe. - Não quero perder um dia tão bom, e Wymez fez exploração não-planejada ao voltar para cá. Ele disse que passou por uma manada de inverno de bisões. Depois de comermos vamos caçá-los. Gostaria de ir conosco?
- Sim, gostaria! - exclamou Jondalar com um sorriso largo.
- Pedi a Mamut para sentir o tempo e procurar o rebanho. Ele diz que os sinais são bons, e que a manada não foi para longe. Disse outra coisa também, que não compreendo. Disse “A saída também é a entrada”. Entende isso?
- Não, mas não é incomum. Aqueles Que Servem a Mãe dizem, muitas vezes, coisas que não compreendo - Jondalar sorriu. - Falam com palavras obscuras.
- Às vezes pergunto-me se sabem o que querem dizer - falou Talut.
- Se vamos caçar, gostaria de lhe mostrar uma coisa que pode ser útil.
- Jondalar os conduziu ao estrado de dormir na Fogueira do Mamute. Pegou um punhado de lanças leves e um implemento que era desconhecido de Talut. - Fi-lo no vale de Ayla e temos caçado com isso, desde então.
Ayla recuou, observando, sentindo uma tensão terrível crescer em seu íntimo. Queria desesperadamente ser incluída, mas não estava segura de como aquelas pessoas reagiriam diante de mulheres caçadoras. Caçar havia sido causa de grande angústia para ela no passado. As mulheres do Clã eram proibidas de caçar, ou mesmo de tocar em armas de caça, mas ela havia aprendido sozinha a usar uma funda, apesar do tabu e do castigo ter sido severo quando foi descoberta.
Depois, resistira e teve até permissão para caçar em base limitada para acalmar seu totem poderoso que a protegera. Mas sua caça fora apenas mais uma razão para Broud odiá-la e posteriormente contribuiu para sua expulsão.
Sim, caçar com sua funda aumentara suas chances quando vivia sozinha no vale e lhe dera incentivo e encorajamento para expandir sua habilidade. Ayla sobrevivera por causa das artes que aprendera como uma mulher do Clã e sua própria inteligência e coragem lhe deram a capacidade de cuidar de si mesma. Mas caçar passara a simbolizar para ela mais do que a segurança de depender e ser responsável por si mesma; apoiava a independência e liberdade que eram o resultado natural.
Não desistiria da caça facilmente.
- Ayla, por que não pega seu arremessador de lanças também? - falou Jondalar, depois tornou a virar-se para Talut. - Tenho mais força, porém Ayla é mais precisa do que eu, pode lhe mostrar o que isto pode fazer, melhor do que eu. Na verdade, se quiser ver uma exibição de precisão, deve vê-la com uma funda. Acho que sua perícia lhe dá vantagem com estas armas.
Ayla soltou a respiração - não sabia que a estivera prendendo - e foi buscar seu arremessador e lanças enquanto Jondalar conversava com Talut. Ainda era difícil acreditar como aquele homem dos Outros aceitara seu desejo e habilidade para caçar e como ele falara natural e elogiosamente de sua perícia. Ele parecia presumir que Talut e o Acampamento do Leão a aceitariam como caçadora também. Ela lançou um olhar a Deegie, perguntando-se qual seria a opinião de uma mulher.
- Deve avisar a Mãe se vai experimentar uma nova arma na caça, Talut. Sabe que ela quererá vê-la também - falou Deegie. - Acho que vou buscar minhas lanças e fardos, agora. E uma tenda. Provavelmente, passaremos a noite fora.
Depois do desjejum, Talut se dirigiu a Wymez e se acocorou perto de uma área de terra macia, próxima a uma das fogueiras menores do espaço de cozinhar, bem iluminado pela luz que entrava pelo buraco da fumaça. Fincado no solo perto da extremidade, estava um implemento feito de um osso de perna de veado. Tinha a forma de uma faca ou de uma adaga afilada, com um fio reto e cego que vinha da junta do joelho até uma ponta. Talut, segurando-a pelo nó da junta, aplainou o chão com a extremidade plana da faca. Depois, mudando-a de posição, começou a traçar marcas e linhas na superfície com a ponta. Várias pessoas reuniram-se à sua volta.
- Wymez disse que viu o bisão perto dos três aforamentos a nordeste, próximo do tributário do riacho que descarrega rio acima - começou o chefe, explicando enquanto desenhava um mapa grosseiro da região com a faca.
O mapa de Talut não era nem uma reprodução visual aproximada nem um desenho esquemático.
Não era necessário representar a localização com precisão. O povo do Acampamento do Leão conhecia a região e o desenho não passava de uma ajuda mnemônica para lembrá-los de um local que lhes era familiar. Consistia de linhas e marcas convencionais que representavam sinais e idéias que eram compreendidos.
O mapa não indicava a rota que o rio tomava atravessando a terra; sua perspectiva não era uma vista geral. Ele traçava linhas em ziguezigue e espinha de peixe para indicar o rio, e ligava-as aos dois lados de uma linha reta para mostrar um afluente. No nível da superfície de sua paisagem aberta, plana, os rios eram troncos de água que se juntavam algumas vezes.
Eles sabiam de onde os rios vinham e aonde levavam, e que os rios podiam ser seguidos para se chegar a um determinado destino, mas também outros pontos de referência o podiam, e um afloramento rochoso tinha menos possibilidade de mudar. Numa terra tão próxima de uma geleira, ainda sujeita a mudanças sazonais de latitudes mais baixas, o gelo e a camada de permafrost - solo que estava permanentemente congelado - causavam alterações drásticas na paisagem. Exceto em relação ao maior deles, a enchente como escoamento glacial podia mudar o curso de um rio de uma estação para a outra tão facilmente quanto as colinas geladas do inverno se derretiam nos pântanos do verão. Os caçadores de mamutes imaginavam seu solo como um todo interligado, em que os rios eram apenas um elemento. Tampouco Talut concebia desenhar linhas para determinar a extensão de um rio ou trilha em quilômetros ou passos. Essas medidas lineares tinham pouco significado. Compreendiam a distância não em termos de quão longe era um local, mas quanto tempo seria necessário para chegar lá, e isso era mais bem demonstrado por uma série de linhas indicando o número de dias, ou algumas outras marcas de número ou tempo. Mesmo assim, um local talvez ficasse mais distante para algumas pessoas do que para outras, ou o mesmo lugar talvez ficasse mais longe em uma estação do que em outra porque se demorava mais para viajar até ele. À distância percorrida por todo o acampamento era avaliada pela extensão de tempo que o mais lento levava. O mapa de Talut era perfeitamente claro para os membro do Acampamento do Leão, mas Ayla observava com fascinação e curiosidade.
- Wymez, diga-me onde eles estavam - falou Talut.
- No lado sul do afluente - replicou Wymez, pegando a faca de desenho de osso e acrescentando algumas linhas adicionais. - É rochoso, com afloramentos íngremes, mas a planície aluvial é grande.
- Se continuarem subindo a corrente, não existem muitas saídas daquele lado - disse Tulie.
- Mamut, o que acha? - indagou Talut. - Você disse que eles não foram longe.
O velho feiticeiro pegou a faca e fez uma pausa por um instante, com os olhos fechados.
- Existe uma corrente que se aproxima, entre o segundo e o último afloramento - disse ele, enquanto desenhava. - Provavelmente, eles se moverão nessa direção, imaginando que levará a uma saída.
- Conheço o lugar! - exclamou Talut. - Se subir a corrente, a planície aluvial se estreita e, depois, é cercada por rocha escarpada. E um bom local para encurralá-los. Quantos são?
Wymez pegou o instrumento de desenho e fez várias linhas ao longo da margem, hesitou e acrescentou mais uma.
- Vi este número, tenho certeza - disse, cravando a faca de osso no solo.
Tulie pegou a faca e ajuntou mais três linhas.
- Vi três atrasados, um parecia bem novo, talvez estivesse fraco.
Danug pegou a faca e traçou mais uma linha.
- Acho que era um gêmeo. Vi outro extraviado. Você viu dois, Deegie?
- Não me lembro.
- Ela só tinha olhos para Branag - falou Wymez com um sorriso afável.
- Esse local fica a meio dia daqui, não é? - perguntou Talut.
Wymez concordou com um gesto de cabeça.
- Meio dia, em boa marcha.
- Então, devemos partir imediatamente. - O chefe fez uma pausa, pensativo. - Faz algum tempo desde que estive lá. Gostaria de saber qual a configuração do terreno. Pergunto-me...
- Alguém que quisesse correr poderia chegar lá mais depressa e explorar o terreno e depois nos encontrar ao voltar - disse Tulie, adivinhando O que o irmão pensava.
- É uma corrida longa... - disse Talut e lançou um olhar a Danug.
O rapaz alto, desajeitado, ia falar, mas Ayla o fez primeiro.
- Não é um percurso longo para um cavalo. Os cavalos correm muito. Eu poderia montar Whinney... Mas não conheço o local - disse ela.
Talut pareceu surpreso a princípio, depois sorriu largamente.
- Eu poderia lhe dar um mapa como este! - exclamou, apontando para o desenho no solo. Olhou ao redor e descobriu uma lasca de marfim perto da pilha de ossos para combustível, depois pegou sua faca aguçada, de sílex. - Escute, você vai para o norte até chegar ao grande rio - começou a gravar linhas em ziguezague para indicar a água. - Há um menor que deve atravessar primeiro. Não se deixe confundir por ele.
Ayla enrugou a testa.
- Não entendo mapa - disse. - Nunca vi mapa antes.
Talut pareceu desapontado e devolveu o marfim à antiga pilha.
- Não haveria alguém para ir com ela? - sugeriu Jondalar. – O cavalo pode carregar duas pessoas. Eu já montei a égua com ela.
Talut tornou a sorrir.
- Boa idéia! Quem quer ir?
- Eu irei! Conheço o caminho - gritou uma voz, seguida rapidamente por outra.
- Conheço o caminho. Acabei de vir de lá.
Latie e Danug tinham falado juntos e vários outros pareciam prontos para ir.
Talut olhou de um para o outro, depois deu de ombros, estendendo as duas mãos e se virou para Ayla.
- A escolha é sua.
Ayla olhou para o rapaz, quase tão alto quanto Jondalar, com cabelo ruivo, da cor do de Talut, e a penugem clara de uma barba incipiente. Depois para a menina alta e magra, não ainda uma mulher, mas quase sendo, com cabelo louro-escuro, uma ou duas tonalidades mais claro que o de Nezzie.
Havia esperança e ansiedade nos dois pares de olhos. Ela não sabia qual escolher. Danug era quase um homem. Achou que devia levá-lo, mas alguma coisa em Latie fazia Ayla lembrar de si mesma, e ela recordou a expressão de desejo que havia visto no semblante da menina, na primeira vez que Latie vira os cavalos.
- Acho que Whinney irá mais depressa se não carregar peso demais. Danug é homem - disse Ayla, endereçando-lhe um sorriso afetuoso, cálido. - Acho que Latie é melhor, desta vez.
Danug concordou com um gesto de cabeça, parecendo aturdido, e recuou tentando encontrar um modo de enfrentar a repentina onda de emoções diversas que, inesperadamente, o dominava. Ele estava dolorosamente desapontado por Latie ter sido escolhida, mas o sorriso radiante de Ayla quando o chamara de homem fizera com que seu sangue corresse para o rosto e o coração batesse mais depressa... E sentiu um aperto embaraçoso em seus rins.
Latie apressou-se para trocar a roupa pelas peles de rena leves e quentes que usava para viajar, arrumou sua mochila, ajuntou comida e a sacola de água que Nezzie lhe preparou, e estava do lado de fora e pronta antes de Ayla se vestir. Observou enquanto Jondalar ajudava Ayla a prender as cestas laterais em Whinney com o arranjo de arreios que ela havia idealizado. Ayla colocou numa cesta a comida que Nezzie lhe deu juntamente com a água por cima de suas outras coisas, pegou a mochila de Latie, e a colocou na outra cesta. Depois, segurando a crina de Whinney, Ayla deu um salto rápido e montou, uma perna de cada lado. Jondalar ajudou a menina a montar. Sentada na frente de Ayla, do dorso da égua castanha, Latie abaixou o olhar para as pessoas de seu acampamento, com os olhos cheios de felicidade.
Danug se aproximou um pouco timidamente delas, e entregou a lasca de marfim a Latie.
- Tome, eu terminei o mapa que Talut começou, para tornar o local mais fácil de achar - disse.
- Oh, Danug, obrigada! - exclamou Latie, e agarrou-o pelo pescoço para abraçá-lo.
- Sim, obrigada, Danug - disse Ayla, enviando-lhe seu sorriso sincero.
O rosto de Danug ficou quase tão vermelho quanto seu cabelo. Quando a mulher e a menina começaram a subir a encosta montadas na égua, ele acenou para elas com a palma da mão de frente para ele, num gesto de “regresso”.
Jondalar, com o braço ao redor do pescoço arqueado do potro que se esforçava para ir atrás delas, com a cabeça erguida e focinho no ar, colocou o outro braço ao redor do ombro do rapaz.
- Foi muita bondade sua. Sei que você queria ir. Estou certo de que poderá montar a égua em outra ocasião. - Danug sacudiu a cabeça apenas, concordando. Naquele momento, ele não pensava exatamente em montar a cavalo.
Assim que alcançaram as estepes, Ayla se comunicou com a égua com pressões sutis e movimentos corporais, e Whinney começou a galopar na direção norte. O solo se toldava com o movimento sob os cascos rapidíssimos e Latie mal podia acreditar que atravessava as estepes no dorso de um cavalo. Ela sorrira com orgulho quando partiram e o sorriso perdurava, porém ela fechava os olhos às vezes e se inclinava à frente a fim de sentir o vento no rosto. Estava indescritivelmente entusiasmada; jamais sonhara que podia haver algo tão excitante.
O resto dos caçadores as seguiu não muito tempo depois de sua partida. Todos que eram capazes e queriam ir, foram. A Fogueira do Leão contribuiu com três caçadores. Latie era jovem e só recentemente tivera permissão de se reunir a Talut e Danug. Estava sempre ansiosa a ir, como a mãe o estivera quando jovem, mas Nezzie não acompanhava mais os caçadores com freqüência, agora. Ficava para tomar conta de Rugie e Rydag e ajudar a vigiar as outras crianças pequenas. Não participara de muitas caçadas desde que acolhera Rydag.
A Fogueira da Raposa tinha apenas dois homens e ambos, Wymez e Ranec, caçavam, mas nenhum da Fogueira do Mamute o fazia, exceto os Visitantes, Ayla e Jondalar. Mamut era velho demais.
Embora quisesse ter ido, Manuv ficou para não atrasar os outros. Tronie permaneceu também, com Nuvie e Hartal. Exceto por um passeio ocasional, onde mesmo as crianças podiam ajudar, ela não mais fazia viagens para caçar, tampouco. Tornec era o único caçador da Fogueira da Rena, assim como Frebec, o único caçador da Fogueira da Garça. Fralie e Crozie permaneceram no acampamento com Crisavec e Tasher.
Tulie quase sempre encontrara um meio de reunir-se a grupos de caça, mesmo quando tinha filhos pequenos, e a Fogueira dos Auroques estava bem representada. Além da chefe, Barzec, Deegie e Druwez, foram todos. Brinan se empenhou o máximo para que sua mãe o deixasse ir, mas foi deixado com Nezzie juntamente a sua irmã, Tusie, acalmando-se com a promessa de que, breve, ele teria idade suficiente.
Os caçadores subiram com esforço a encosta, juntos, e Talut acelerou o passo quando alcançaram a pastagem plana.
- Acho que o dia está bom demais para desperdiçar, também - disse Nezzie, pousando sua tigela com firmeza e falando ao grupo reunido ao redor da fogueira ao ar livre para cozinhar, depois que os caçadores partiram. Bebiam chá e terminavam o desjejum. - Os cereais estão secos e maduros, e tenho querido subir e colher a riqueza de um último bom dia. Se nos dirigirmos àquela plataforma de pinheiros-mansos perto do riacho, podemos colher as pinhas maduras dos estróbilos, se houver tempo. Mais alguém deseja ir?
- Não sei se Fralie deve caminhar tanto - disse Crozie.
- Oh, mamãe - falou Fralie. - Uma pequena caminhada me fará bem, e se o tempo ficar ruim, todos teremos que ficar dentro de casa a maior parte do tempo. Isso acontecerá muito breve. Eu gostaria de ir, Nezzie.
- Bem, é melhor eu ir, então, para ajudar você com as crianças - disse Crozie, como se fizesse um grande sacrifício, embora a idéia de um passeio lhe parecesse boa.
Tronie não relutou em admitir isso:
- Que boa idéia, Nezzie! Estou certa de que posso colocar Hartal na acomodação das costas; assim, poderei carregar Nuvie quando ela ficar cansada. Não há nada que me agrade mais do que passar um dia fora.
- Carregarei Nuvie, você não precisa carregar duas crianças - falou Manuv. - Mas, acho que pegarei as pinhas primeiro e deixarei a colheita de cereais para o resto de vocês.
- Acho que também vou, Nezzie - disse Mamut. - Talvez Rydag não se importe com a companhia de um velho e talvez me ensine mais sobre os sinais de Ayla, já que ele é tão bom neles.
- Você é muito bom em sinais, Mamut - indicou Rydag. - Aprende os sinais depressa, talvez me ensine.
- Talvez possamos ensinar um ao outro - Mamut respondeu por sinais.
Nezzie sorriu. O velho nunca tratara o filho de espíritos mistos de forma diferente das outras crianças do acampamento, exceto para mostrar consideração extra por sua fraqueza, e muitas vezes a ajudara com Rydag. Parecia haver uma intimidade especial entre eles, e ela suspeitava de que Mamut ia acompanhá-los para manter o menino ocupado enquanto o resto trabalhava. Sabia que ele também impediria que alguém exercesse pressão, inadvertidamente, sobre Rydag para se mover mais depressa do que devia.
Ele podia se retardar se visse que o menino se esforçava demais e culpar sua idade avançada. Ele havia feito isso antes.
Quando todos se reuniram fora da habitação comunal, com cestas para colher e carregar, mochilas de couro, sacos de água e alimento para uma refeição do meio-dia, Mamut trouxe uma pequena figura de mulher madura esculpida em marfim e fincou-a ao solo diante da entrada. Disse algumas palavras que somente ele compreendeu e mais ninguém, e fez gestos evocativos. Todos do acampamento sairiam, a moradia ficaria vazia, e ele invocava o Espírito de Mut, a Grande Mãe, para que guardasse e protegesse a habitação em sua ausência.
Ninguém violaria a proibição de entrada que a figura da Mãe à porta representava. A não ser por absoluta necessidade, ninguém ousaria arriscar-se às conseqüências resultantes, segundo todos acreditavam, de tal ato. Mesmo se a necessidade fosse terrível - se alguém estivesse ferido, ou apanhado em uma tempestade de neve e precisasse de abrigo - medidas imediatas seriam tomadas para aplacar uma protetora provavelmente encolerizada e vingativa. Compensação maior e acima do valor de qualquer coisa utilizada seria paga pela pessoa, ou a família ou acampamento da pessoa, o mais cedo possível. Doações e presentes seriam dados aos membros da Fogueira do Mamute para acalmar o Espírito da Grande Mãe com pedidos e explicações, e promessas de futuras boas ações ou atividades compensadoras. A ação de Mamut era mais eficaz que qualquer fechadura.
Quando Mamut se virou e se afastou da entrada, Nezzie levantou a cesta até suas costas e prendeu sua correia à testa, pegou Rydag e colocou-o em seu quadril largo para carregá-lo encosta acima.
Depois, reunindo Rugie, Tusie e Brinan à sua frente, começou a subir as estepes. Os outros a seguiram e, logo, a outra metade do acampamento caminhava através das pastagens abertas para um dia de trabalho, colhendo os grãos e sementes que tinham sido plantados e oferecidos a eles pela Grande Mãe Terra. O trabalho e a contribuição para a sua sobrevivência por parte dos colhedores eram tidos como tão valiosos quanto o trabalho dos caçadores, porém, nenhum dos dois era somente trabalho. O companheirismo e a participação tornavam o trabalho divertido.
Ayla e Latie chafurdavam num riacho raso, mas Ayla reduziu a marcha do animal antes de chegarem ao próximo rio um pouco mais extenso.
- Este rio que devemos seguir? - perguntou.
- Acho que não - respondeu Latie. Depois consultou as marcas no pedaço de marfim. - Não. Está vendo? Este aqui é o riacho que atravessamos. E cruzamos este também. Viramos e seguimos o próximo, corrente acima.
- Não parece fundo aqui. E um bom lugar para atravessar?
Latie olhou rio acima e rio abaixo.
- Há um lugar melhor um pouco acima. Temos apenas que tirar as botas e enrolar as calças.
Subiram a corrente, mas quando chegaram ao passo largo e raso, onde a água espumava ao redor de pedras salientes, Ayla não parou. Virou Whinney para a água e deixou a égua escolher seu caminho. Do outro lado, a égua se afastou a galope e Latie tornou a sorrir.
- Nem mesmo nos molhamos! - exclamou. - Somente alguns salpicos.
Quando alcançaram o rio seguinte e viraram a leste, Ayla diminuiu a marcha um pouco para dar descanso a Whinney, mas mesmo a andadura mais lenta do animal era tão mais rápida que os passos de um homem, andando ou correndo, que cobriram a distância rapidamente. O terreno mudou enquanto prosseguiam, tornando-se mais acidentado e ganhando em altura. Quando Ayla parou e apontou para um rio do lado oposto que formava um largo “V” com aquele que tinham seguido, Latie ficou surpresa. Não esperava ver o afluente tão cedo, mas Ayla havia notado turbulência e o esperava. Três grandes afloramentos de granito podiam ser vistos onde elas se encontravam, uma face escarpada e recortada do outro lado do rio e mais duas na margem em que estavam, rio acima, e formando um ângulo.
Seguiram a margem do rio e observaram que formavam um cotovelo em direção aos afloramentos e, quando se aproximaram do primeiro, viram que o rio corria entre eles. A alguma distância dos afloramentos que elas ultrapassaram e que ladeavam o rio, Ayla notou vários bisões escuros, peludos, pastando nos caniços e junças verdes perto da água. Ela apontou e cochichou ao ouvido de Latie.
- Não fale alto. Veja.
- Lá estão eles - disse Latie em voz abafada, tentando controlar sua excitação.
Ayla virou a cabeça para trás e para frente, umedeceu um dedo depois e manteve-o no alto, testando a direção do vento.
- O vento sopra dos bisões para nós. Bom. Não quero perturbá-los até estarmos prontos para caçar. O bisão conhece cavalos. Vamos nos aproximar, mas não demais.
Ayla guiou a égua com cuidado contornando os animais, para verificar mais além, corrente acima, e quando ficou satisfeita voltou pelo mesmo caminho. Uma vaca grande e velha ergueu a cabeça e olhou para elas, ruminando. A ponta de seu chifre esquerdo estava quebrada. A mulher reduziu a marcha e deixou Whinney assumir seu movimento natural enquanto as amazonas prendiam a respiração. A égua parou e abaixou a cabeça para comer algumas folhas de capim. Os cavalos em geral não pastariam se estivessem nervosos e a ação pareceu tranqüilizar o bisão, que também voltou a pastar. Ayla esgueirou-se em volta do pequeno rebanho, tão depressa quanto pôde, e fez Whinney galopar corrente abaixo. Quando alcançaram pontos de referência observados antes, viraram para o sul novamente. Depois de atravessarem o rio seguinte, pararam para Whinney beber água e elas também e em seguida continuaram em direção ao sul.
O grupo de caça estava exatamente depois do primeiro riacho quando Jondalar notou Racer puxando com força o seu cabresto, em direção a uma nuvem de poeira que se aproximava deles. Jondalar bateu de leve no ombro de Talut e apontou. O chefe olhou à frente e viu Ayla e Latie galopando em sua direção, montadas em Whinney. Os caçadores não tiveram que esperar muito antes de a égua e as amazonas avançarem para o seu meio e pararem. O sorriso no rosto de Latie era de êxtase, seus olhos cintilavam, as maçãs do rosto estavam coradas de excitação quando Talut as ajudou a desmontar. Então, Ayla passou a perna por cima da égua e escorregou para o chão. Todos se amontoaram ao redor.
- Não conseguiram encontrar o Ioc - perguntou Talut, expressando a preocupação que todos sentiam.
Outra pessoa mencionou-o quase ao mesmo tempo, mas em tom diferente.
- Nem sequer encontraram o local. Achei que correr à frente a cavalo de nada adiantaria - escarneceu Frebec.
Latie respondeu-lhe com raiva e perplexidade.
- O que quer dizer com “não conseguiram sequer encontrar o local”. Encontramos o lugar. Até vimos os bisões.
- Está tentando dizer que já estiveram lá e já voltaram? - perguntou ele, sacudindo a cabeça com incredulidade.
- Onde estão os bisões agora? - Wymez interrogou a filha de sua irmã, ignorando Frebec e desprezando seu comentário vulgar.
Latie caminhou até a cesta no flanco esquerdo de Whinney e pegou o pedaço de marfim marcado. Depois, tirando a faca de sílex da bainha à sua cintura, sentou-se ao chão e começou a traçar algumas linhas adicionais no mapa.
- Aqui, a bifurcação sul passa entre dois afloramentos - disse ela. Wymez e Talut sentaram-se ao lado dela e concordaram, sacudindo as cabeças, enquanto Ayla e vários outros ficavam de pé atrás e ao redor deles.
- Os bisões estavam do lado oposto ao afloramento, onde a planície aluvial se abre e existe ainda alimento verde próximo à água. Vi quatro pequenos... - Ela traçou quatro pequenas marcas paralelas enquanto falava.
- Acho que cinco - emendou Ayla.
Latie ergueu os olhos a Ayla e concordou com um gesto de cabeça, depois acrescentou mais uma pequena marca.
- Você tinha razão, Danug, sobre os gêmeos. E são filhotes. E sete vacas... - ergueu novamente os olhos a Ayla, em busca de confirmação. A mulher balançou a cabeça afirmativamente, e Latie acrescentou mais sete linhas paralelas, um pouco mais longas do que as primeiras -... somente quatro com filhotes, acho. - Refletiu um pouco. - Havia mais, um pouco mais longe.
- Cinco machos novos - acrescentou Ayla. - E dois ou três outros. Não tenho certeza. Talvez mais alguns que não tenhamos visto.
Latie fez cinco linhas ligeiramente mais compridas, um pouco afastadas das primeiras, depois acrescentou mais três entre as duas séries, fazendo-as um pouco menores novamente. Ela traçou um pequeno na última marca da linha para indicar que estava terminado, que aquele era o número total de bisões que haviam contado. Suas marcas de contagem passaram sobre algumas das outras marcas, que foram desenhadas antes no marfim, porém, não importava. Já tinham servido ao seu propósito
Talut pegou a lasca de marfim de Latie e examinou-a. Depois olhou para Ayla.
- Por acaso, não notaram que direção os animais seguiam, não é?
- Acho que subiam o rio. Passamos ao largo do rebanho com cuidado, para não perturbar.
Nenhum rastro do lado oposto, o capim não estava comido - falou Ayla.
Talut concordou com um gesto de cabeça e fez uma pausa, obviamente pensando.
- Você disse que passou ao largo do rebanho. Subiu muito o rio?
- Sim.
- Pelo que me lembro, a planície aluvial se estreita até desaparecer, e rochas elevadas se fecham sobre a corrente e não existe saída. É correto?
- Sim... Mas, talvez exista saída.
- Saída?
- Antes das rochas elevadas à encosta é íngreme, árvores, arbustos espessos com espinhos, mas perto dos rochedos está o leito seco do rio. Como trilha íngreme. Acho que é uma saída - disse ela.
Talut franziu a testa, olhou para Wymez e Tulie, depois riu alto.
- A saída também é a entrada! Foi isso que Mamut disse!
Wymez pareceu intrigado por um momento. Depois, sorriu lentamente ao compreender. Tulie olhou para os dois e uma expressão inicial de compreensão apareceu em seu rosto, depois.
- Claro! Podemos seguir nesta direção, construir uma cerca para pegá-los, depois dar a volta pelo outro lado e empurrá-los para lá - falou Tulie, deixando claro a todos o que fariam. - Alguém terá que vigiar e certificar-se de que o vento não está soprando de nós para eles, para que não desçam o rio de novo enquanto construímos a cerca.
- Parece um bom trabalho para Danug e Latie - disse Talut.
- Acho que Druwez pode ajudá-los - acrescentou Barzec -, e se achar que precisam de mais ajuda, eu irei.
- Ótimo! - exclamou Talut. - Por que não vai com eles, Barzec, e segue o rio subindo a corrente? Conheço um caminho mais rápido para chegar à extremidade oposta. Cortaremos caminho daqui. Vocês os mantêm cercados até construirmos a armadilha e, então, daremos a volta para ajudar a encurralá-los.
O leito ressequido do rio era uma faixa de barro seco e pedra atravessando uma encosta escarpada, arborizada, com arbustos emaranhados. Levava a uma planície aluvial estreita, mas nivelada, ao lado de um curso d’água intenso que jorrava entre os rochedos formando uma série de cachoeiras e pequenas quedas d’água. Assim que Ayla desceu a pé, voltou para buscar os cavalos. Tanto Whinney quanto Racer, acostumados à trilha íngreme que conduzira à sua caverna no vale, desceram sem dificuldade.
Ela removeu o arreio com as cestas de Whinney para que o animal pudesse pastar livremente. Mas Jondalar ficou apreensivo em tirar o cabresto de Racer já que nem ele nem Ayla tinham muito controle sobre o potro sem o cabresto, e Racer estava suficientemente velho para se tornar rebelde quando ficava de mau humor. Já que o cabresto não o impedia de pastar, ela concordou em que ficasse com ele, embora houvesse preferido dar-lhe total liberdade. Isto fazia com que Ayla compreendesse a diferença entre o cavalo e a mãe dele. Whinney sempre andara a solta, à vontade, mas Ayla passara todo o tempo com a égua - ela não tinha mais ninguém. Racer tinha Whinney, mas menos contato com ela. Talvez ela ou Jondalar devessem passar mais tempo com ele, e tentar ensiná-lo, pensou ela.
O abrigo tipo curral já estava em construção quando Ayla foi ajudar. A cerca foi feita com os materiais que encontrassem, pedras grandes, ossos, árvores e galhos, que eram erguidos e entrelaçados. A vida animal rica e variada das frias planícies se renovava constantemente e os velhos ossos espalhados pelo terreno eram muitas vezes levados por rios caprichosos formando pilhas confusas. Uma busca rápida rio abaixo revelara um monte de ossos a curta distância e os caçadores arrastavam grandes ossos das pernas e costelas em direção ao centro de atividades: uma área perto do fundo do rio seco, que cercavam. A cerca precisava ser bastante forte para conter a manada de bisões, mas não se destinava a ser uma estrutura permanente. Seria usada uma vez apenas e não era provável que durasse mais que a primavera, quando o rio rápido se transformava em torrente impetuosa.
Ayla observou Talut girar um enorme machado com uma gigantesca cabeça de pedra como se fosse um brinquedo. Ele tirara a camisa e suava profusamente enquanto abria o caminho golpeando em direção a uma plataforma de árvores novas, eretas, abatendo cada árvore com duas ou três machadadas. Tornec e Frebec, que carregavam as árvores derrubadas, não conseguiam manter o mesmo ritmo que ele. Tulie supervisionava a colocação das árvores. Ela utilizava um machado quase tão grande quanto o do irmão e manejava-o com igual facilidade, partindo a árvore ao meio, ou golpeando um osso para torná-lo adequado. Poucos homens igualavam-se à força da chefe.
- Talut! - gritou Deegie. - Ela carregava a extremidade dianteira de uma presa inteira, curvada, de mamute, que tinha mais de 4,5 metros de comprimento. Wymez e Ranec sustentavam o meio e a parte de trás. - Encontramos alguns ossos de mamute. Quer quebrar esta presa? - interrogou ela.
O gigante de cabelos ruivos sorriu.
- Este animal enorme deve ter vivido muito e bem! - exclamou, abrindo a presa quando a puseram no solo.
Os músculos enormes de Talut se salientaram quando ergueu o machado do tamanho de um malho e o ar ressoou com os golpes enquanto estilhas e lascas de marfim voavam em todas as direções. Ayla ficou fascinada só de observar o homem forte brandir a ferramenta maciça com tal perícia. Mas o feito ainda era mais surpreendente para Jondalar, por uma razão que ele jamais levara em consideração. Ayla estava mais acostumada a ver homens executarem façanhas prodigiosas de força muscular. Embora ela os excedesse em estatura, os homens do Clã eram maciçamente musculosos e extraordinariamente robustos. Mesmo as mulheres possuíam pronunciada força bruta e a vida que Ayla levara enquanto crescia, esperando-se que realizasse as tarefas de uma mulher do Clã, fê-la desenvolver músculos incomumente fortes para seus ossos franzinos.
Talut pousou o machado, ergueu a parte posterior da presa até seu ombro e partiu em direção ao cercado que construíam. Ayla pegou o grande machado para movê-lo e compreendeu que não poderia manejá-lo. Até Jondalar o achou pesado demais para usar com habilidade. Era uma ferramenta adequada unicamente ao grande chefe. Eles dois ergueram a outra metade da presa, colocaram-na ao ombro e seguiram Talut.
Jondalar e Wymez permaneceram para ajudar a socar os pedaços pesados de marfim com pedras grandes; eles seriam uma barreira sólida contra qualquer bisão atacante. Ayla foi pegar mais osso com Deegie e Ranec. Jondalar se voltou para vê-los ir e lutou para conter a cólera quando viu o homem escuro se mover para o lado de Ayla e fazer um comentário que provocou seu riso e o de Deegie. Talut e Wymez notaram o rosto vermelho, brilhante de seu visitante jovem e atraente, e trocaram um olhar significativo, mas não disseram coisa alguma.
O elemento final do curral era uma porteira. Uma árvore nova e resistente, desprovida de seus galhos, estava posicionada, ereta, a um lado de uma abertura na cerca. Escavaram um buraco para a base, e um monte de pedras foi empilhado ao redor para sustentá-la. Era reforçada sendo amarrada com correias a pesadas presas de mamute. A própria porteira era construída de ossos de perna, galhos e costelas de mamute atados firmemente a pedaços cruzados de árvores novas, cortados no tamanho conveniente. Então, com várias pessoas mantendo a porteira no lugar, uma extremidade foi presa em muitos locais ao mastro ereto, usando-se uma corda transpassada que permitia que ela se movesse sobre as dobradiças de couro. Pedras grandes e ossos pesados foram empilhados próximos à outra extremidade, prontos para serem empurrados para frente da porteira assim que fosse fechada.
Era de tarde, o sol ainda alto, quando tudo ficou pronto. Com todos trabalhando juntos, fora necessário um período de tempo surpreendentemente curto para construir o curral.
Reuniram-se em volta de Talut e almoçaram a comida seca de viagem que trouxeram, enquanto faziam mais planos.
- A parte difícil será fazer com que atravessem a porteira - disse Talut. - Se conseguirmos que um entre, os outros o seguirão, provavelmente. Mas se forem além da porteira e começarem a mover-se em círculos neste pequeno espaço ao fundo, se dirigirão à água.
Aquele rio é acidentado aqui, e talvez alguns não consigam atravessar, mas isso não adiantará de nada para nós. Nós os perderemos. O máximo que poderíamos esperar seria encontrar uma carcaça afogada rio abaixo.
- Então, temos que impedir-lhes a passagem - disse Tulie. - Não deixar que ultrapassem o curral.
- Como? - indagou Deegie.
- Podíamos construir outra cerca - sugeriu Frebec.
-. Como sabe que os bisões não se voltarão à água quando alcançarem a cerca? - perguntou Ayla.
Frebec a olhou com expressão protetora, mas Talut falou antes dele.
- Uma boa pergunta, Ayla. Além disso, não resta muito material aqui por perto para a construção de cercas.
Frebec enviou um olhar sombrio de cólera a Ayla. Sentiu como se ela o tivesse feito parecer estúpido.
- Qualquer coisa que pudéssemos construir para impedir a sua passagem seria útil, mas acho que alguém precisa estar lá para guiá-los para o cercado. Pode ser uma posição perigosa - continuou Talut.
- Eu ficarei. É um bom lugar para usar este arremessador de lanças sobre o qual lhes tenho falado - disse Jondalar, mostrando o implemento incomum. - Não apenas faz uma lança alcançar distância maior, como também dá mais força à lança do que quando é atirada de forma manual.
Com pontaria correta, a lança pode matar instantaneamente, a curta distância.
- É verdade? - perguntou Talut, olhando Jondalar com interesse renovado. - Teremos que falar mais sobre isso depois, mas, sim, se desejar, pode assumir essa posição. Acho que também irei.
- E eu também - murmurou Ranec.
Jondalar franziu a testa para o homem escuro, sorridente. Não estava certo de querer assumir uma posição com o homem que, tão obviamente, se interessava por Ayla.
- Eu também ficarei aqui - disse Tulie. - Mas, em vez de tentar construir outra cerca, devíamos fazer pilhas separadas para cada um de nós se colocar atrás.
- Ou correr para trás delas - gracejou Ranec. - O que a faz pensar que eles não acabarão nos caçando?
- Por falar em caçar, agora que decidimos o que fazer quando chegarem aqui, como vamos trazer os animais para cá? - perguntou Talut, lançando um olhar para a localização do sol no céu. - É uma longa caminhada para nos colocarmos atrás deles. Talvez escureça antes de conseguirmos.
Ayla estivera ouvindo com mais do que interesse. Recordava-se dos homens do Clã traçando planos para caçar, e especialmente depois que ela começara a caçar com sua funda, desejosa, muitas vezes, de ser incluída. Desta vez, ela era um dos caçadores. Notou que Talut dera ouvidos ao seu comentário anterior e lembrou como eles tinham aceitado prontamente seu oferecimento de explorar adiante deles. Isso a encorajou a fazer outra sugestão.
- Whinney é boa caçadora - falou. - Cacei rebanhos, muitas vezes, montada em Whinney.
Posso dar a volta pelos bisões, encontrar Barzec e os outros, perseguir os animais trazendo-os logo para cá. Vocês esperam, empurram os bisões para o curral.
Talut olhou para os caçadores depois de fitar Ayla, e olhou-a de novo em seguida.
- Tem certeza de que pode fazer isso?
- Tenho.
- E dar a volta ao redor deles? - perguntou Tulie. - Provavelmente, já perceberam que estamos aqui e a única razão por que não se foram é que Barzec e os jovens os estão mantendo encurralados. Mas por quanto tempo serão capazes de conter os animais? Você não os levará pelo caminho errado se for na direção deles deste ponto?
- Acho que não. Cavalo não perturba muito o bisão, mas darei a volta, se quiserem. Cavalo anda mais depressa que vocês - disse Ayla.
- Ela tem razão! Ninguém pode negá-lo. Ayla poderia dar a volta mais depressa a cavalo do que nós caminhando - disse Talut, depois franziu atesta, pensativo. - Acho que devemos deixá-la fazer do jeito que quer, Tulie. Importa, realmente, o sucesso desta caçada? Ajudaria, principalmente, se o inverno for duro e prolongado, e nos daria mais variedade, porém temos estoque suficiente, na verdade. Não sofreríamos se o resultado não fosse bom nesta caçada.
- É verdade, mas tivemos bastante trabalho.
- Não seria a primeira vez em que teríamos muito trabalho e voltaríamos de mãos vazias. - Talut fez outra pausa. - A pior coisa que pode acontecer é perdermos a manada. Se der certo, poderemos festejar comendo bisão antes de escurecer e estar de regresso de manhã.
Tulie concordou com um gesto de cabeça.
- Muito bem, Talut. Tentaremos do seu modo.
- Quer dizer, do modo de Ayla. Vá em frente, Ayla. Veja se consegue trazer os bisões para cá.
Ayla sorriu e assobiou para Whinney. A égua relinchou e galopou em direção à mulher, seguida por Racer.
- Jondalar, mantenha Racer aqui - disse ela, e correu para a égua.
- Não esqueça seu arremessador de lanças - gritou ele.
Ela parou para pegá-lo e a algumas lanças do porta lanças ao lado de sua mochila. Depois, com um movimento treinado e hábil, saltou para o dorso do animal e partiu. Durante algum tempo Jondalar teve as mãos ocupadas com o potro, que não gostava de ser impedido de reunir-se à sua mãe num galope excitante. Foi bom. Não deu tempo a Jondalar de ver a expressão no rosto de Ranec enquanto observava Ayla partir.
A mulher, montada em pêlo, cavalgou diligentemente ao longo da planície aluvial ao lado do rio agitado, impetuoso, que serpenteava em um corredor sinuoso, ladeado por encostas onduladas e escarpadas de ambos os lados. Galhos nus encobertos por feno seco agarravam-se às encostas e se curvavam nos picos ventosos, suavizando a aparência alcantilada da terra, mas, escondido sob a camada superficial do solo, atingida pelo vento que enchia as rachaduras, encontrava-se um núcleo de pedra. Saliências expostas de leito de rocha firme, juncando os declives, revelavam a característica essencial de granito da região, dominada por outeiros majestosos que alcançavam os cumes rochosos, nus, dos afloramentos protuberantes.
Ayla reduziu a marcha quando se acercou da área onde antes vira os bisões, naquele dia, mas eles não se encontravam ali. Tinham sentido ou ouvido a atividade de construção e mudaram de rumo.
Ela os viu exatamente quando se movia à sombra de um dos afloramentos, projetada pelo sol da tarde e, bem além do pequeno rebanho, viu Barzec de pé, próximo ao que parecia ser um pequeno marco.
O capim mais verde entre as árvores nuas, esguias, perto da água, havia induzido os animais a ir para o vale estreito, mas do momento em que atravessavam os afloramentos gêmeos que ladeavam o rio, não existia outra saída senão a entrada. Barzec e os jovens caçadores tinham visto a manada enfileirada ao longo do rio, parando ainda para pastar de vez em quando, avançando, porém, com firmeza. Tinham perseguido a manada, de volta, até ali, mas isso detinha os animais apenas temporariamente e fazia com que se agrupassem e se movessem com mais determinação quando tentassem deixar o vale da próxima vez. Determinação e frustração podiam levar ao estouro.
Os quatro tinham sido enviados para impedir que os animais partissem, mas sabiam que jamais controlariam um estouro da boiada. Não podiam continuar a persegui-los ali. Era preciso muito esforço para contê-los e Barzec tampouco queria que houvesse um estouro na direção oposta, antes de o curral estar pronto. O monte de pedras próximo ao local onde Barzec estava de pé, quando Ayla o viu pela primeira vez, encontrava-se empilhado ao redor de um galho resistente. Uma peça de roupa estava amarrada a ele e oscilava ao vento. Então, ela viu mais alguns montes de pedras sustentando galhos ou ossos verticais, a intervalos bastante pequenos entre o afloramento e o rio, e em cada um se encontrava pendurada uma pele de dormir ou uma peça de roupa ou ainda a cobertura de uma tenda. Tinham usado até pequenas árvores e arbustos, qualquer coisa onde pudessem pendurar algo que se movesse ao vento.
Os bisões espiavam nervosamente as estranhas aparições, incertos sobre quão ameaçadoras eram.
Não queriam voltar por onde tinham vindo, mas tampouco queriam avançar mais.
Esporadicamente, um bisão movia-se em direção às coisas, depois recuava quando elas balançavam ao vento. Estavam bloqueados exatamente no local em que Barzec os queria. Ayla ficou impressionada com a idéia inteligente.
Fez Whinney avançar devagar, perto do afloramento, tentando dar lentamente a volta ao redor da manada, para não perturbar o delicado equilíbrio. Observou a velha vaca com o chifre quebrado avançando com hesitação. Não estava gostando de ser retida e parecia pronta para escapar.
Barzec viu Ayla, olhou para trás de si em busca do resto dos caçadores e depois voltou a fixá-la, a testa enrugada. Depois de todos os seus esforços, não queria que ela perseguisse os bisões pelo caminho errado. Latie acercou-se dele e falaram em voz baixa, mas ele ainda observava a mulher e a égua com apreensão, até que ela os alcançou.
- Onde estão os outros? - perguntou Barzec.
- Estão esperando - retrucou Ayla.
- Esperando o quê? Não podemos manter estes bisões aqui para sempre!
- Esperam que nós os persigamos.
- Como vamos fazê-lo? Não somos suficientemente numerosos! Eles estão se preparando para fugir. Não sei por quanto tempo mais conseguiremos mantê-los aqui, muito menos levá-los ao cercado. Faríamos com que houvesse um estouro.
- Whinney os levará - disse Ayla.
- A égua levará os bisões!
- Ela já o fez antes, mas é melhor ajudarem, também.
Danug e Druwez, que se tinham afastado para vigiar a manada, atirando pedras nalgum animal que ousava, por acaso, enfrentar as sentinelas esvoaçantes, aproximaram-se para ouvir. Não ficaram menos espantados que Barzec, mas sua vigilância reduzida abriu uma oportunidade e pôs fim à conversa.
Com o canto do olho, Ayla viu um touro novo e grande saltar, seguido por vários outros. Num instante, todos estariam perdidos enquanto o rebanho enclausurado se libertava. Ela fez Whinney girar, largou sua lança e arremessador de lanças e foi atrás do animal, agarrando a túnica oscilante e puxando-a do galho, no caminho.
Correu diretamente ao animal, inclinando-se, acenando-lhe com a túnica. O bisão se esquivou, tentando dar a volta. Whinney girou de novo enquanto Ayla batia com o couro na cara do touro novo. O próximo movimento de fuga do animal o fez voltar para o vale estreito e para a trilha dos animais que tinham seguido seu comando, com Whinney e Ayla, agitando a túnica de couro, bem atrás dele.
Outro animal fugiu, mas Ayla conseguiu fazer com que voltasse também. Whinney parecia saber, quase antes de o bisão agir, o que ele tentaria em seguida, mas eram tanto os sinais inconscientes da mulher para o animal, quanto o sentido intuitivo da égua, que a colocavam no caminho do bisão peludo. O treinamento de Whinney por Ayla não fora um esforço consciente no início. Na primeira vez em que ela montou a égua foi por puro impulso e nenhum pensamento de controle ou comando passou por sua cabeça. Havia acontecido aos poucos, à medida que a compreensão mútua crescia e o controle era exercido pela tensão de suas pernas e mudanças sutis de posição do corpo. Embora, eventualmente, ela começasse a aplicar isso de propósito, havia sempre um elemento adicional de interação entre mulher e égua, e muitas vezes moviam-se como um único ser, como se dividissem uma só mente.
No instante em que Ayla se moveu, os outros entenderam a situação e correram para deter o rebanho. Ayla havia caçado animais de rebanho com Whinney no passado, mas não teria sido capaz de fazer os bisões darem meia-volta sem ajuda. Os grandes animais encurvados eram muito mais difíceis de controlar do que ela imaginara. Tinham sido detidos e ela jamais tentara conduzir animais a um local aonde não desejavam ir. Era quase como se algum instinto os prevenisse sobre a cilada que os esperava.
Danug correu para ajudar Ayla, para forçar os primeiros animais a saltar a darem meia-volta, embora ela se concentrasse tanto em deter o touro novo que mal notou sua presença a princípio.
Latie viu um dos bezerros gêmeos fugir e, arrancando o galho da pilha de pedras, correu para obstruir o caminho. Ela golpeou-lhe o focinho e forçou-o a recuar, enquanto Barzec e Druwez atacavam uma vaca com pedras e uma pele oscilante. Afinal, seus esforços determinados puseram fim ao estouro incipiente. A velha vaca com o chifre partido e alguns outros animais conseguiram fugir, mas a maioria do rebanho se arrastou ao longo da planície aluvial do riacho, subindo a corrente.
Eles respiraram um pouco aliviados quando o pequeno rebanho estava além dos afloramentos de granito, mas precisavam mantê-lo avançando. Ayla parou somente o tempo suficiente para descer da égua, pegar sua lança e arremessador de lanças, e saltar sobre o animal novamente.
Talut havia tomado um gole de seu saco de água quando pensou ouvir um ruído surdo, como um trovão abafado. Ergueu a cabeça para rio abaixo e ouviu com atenção durante alguns instantes, não esperando escutar nada tão cedo, incerto de esperar ouvir alguma coisa, afinal. Inclinou o rosto e colocou o ouvido ao solo.
- Estão vindo! - gritou, levantando-se de um salto.
Todos se misturaram para apanhar suas lanças e correram para os locais que haviam resolvido ocupar. Frebec, Wymez, Tornec e Deegie espalharam-se pela encosta escarpada de um lado, prontos para investir por trás e bloquear a porteira fechada. Tulie se encontrava mais perto da porteira aberta, do lado oposto, pronta para fechá-la assim que os bisões estivessem dentro do curral.
No espaço entre o curral e o rio impetuoso, Ranec se encontrava a alguns passos de Tulie, e Jondalar, mais alguns passos adiante, quase à margem do rio. Talut escolheu um local um pouco à frente do visitante e permaneceu de pé na margem úmida. Cada pessoa tinha um pedaço de Couro ou roupa para agitar diante dos animais que se acercavam, com esperança de fazê-los virar para um lado, mas todos também erguiam uma lança, giravam-na no ar levemente, depois a agarravam com firmeza ao redor do fuste, e mantinham-na em posição - com exceção de Jondalar.
O implemento estreito, liso, de madeira, que segurava na mão direita tinha quase o comprimento do seu braço, do cotovelo às pontas dos dedos, e acanelado no centro. Tinha um gancho como escora numa extremidade e duas alças de couro, de ambos os lados, para seus dedos, na extremidade dianteira. Ele o segurava horizontalmente, e ajustou a ponta emplumada de uma haste de lança leve, coroada com uma ponta de osso muito aguçada e comprida, contra o gancho na parte posterior do arremessador de lanças. Mantendo a lança no lugar com seus dois primeiros dedos que atravessavam as alças, enfiou seu pedaço de couro no cinto e pegou uma segunda lança com a mão esquerda, pronto para colocá-la rapidamente no lugar para um segundo arremesso.
Então, esperaram. Ninguém falava e, na expectativa silenciosa, pequenos sons se avolumavam.
Aves trinavam e cantavam. O vento sussurrava nos galhos secos. A água cascateando sobre as rochas salpicava e gorgolejava. As moscas zuniam. O ruído surdo de cascos em disparada crescia.
Depois, podiam-se ouvir gritos, roncos e resmungos acima do estrondo que se acercava, e vozes humanas berrando. Os olhos se esforçaram para ver sinais do primeiro bisão na curva, rio abaixo, mas quando ele chegou, não era apenas um. De repente, toda a manada avançava pesadamente pela curva e os animais grandes, peludos, marrons-escuros com chifres longos, negros, mortíferos, debandavam diretamente na direção deles.
Cada pessoa se preparou, esperando o ataque. Na frente estava o grande e jovem touro que quase havia saltado para salvar-se antes de a longa perseguição começar. Ele viu o cercado à frente e virou em direção à água - e aos caçadores em seu caminho.
Ayla, bem nos calcanhares do pequeno rebanho, estivera segurando seu arremessador de lanças frouxamente enquanto perseguiam os animais, mas, quando se aproximaram da última curva, ela o colocou em posição, sem saber o que esperar. Viu o touro mudar de rumo... E dirigir-se diretamente para Jondalar. Outros bisões o seguiam.
Talut correu para o animal sacudindo uma túnica, mas o bisão de crina abundante já estava farto de coisas agitadas à sua frente, e não seria detido. Sem pensar de novo, Ayla inclinou-se à frente e apressou Whinney para um galope a toda velocidade. Desviando-se e passando por outros animais que corriam, ela se acercou do grande touro e arremessou sua lança exatamente quando Jondalar atirava a sua. Uma terceira lança foi arremessada ao mesmo tempo.
A égua moveu-se com estardalhaço passando pelos outros caçadores, salpicando Talut quando seus cascos atingiram a margem do rio. Ayla reduziu a marcha do animal e parou; depois voltou rapidamente. Então, estava acabado. O grande bisão se encontrava no solo. Os que vinham atrás dele diminuíram a corrida, e os que se encontravam mais perto da encosta não tinham outro local para ir senão o curral. Depois de o primeiro atravessar a abertura, os outros o seguiram com pouco estímulo. Tulie acompanhou o último animal extraviado e fechou a porteira. E quando se fechou, Tornec e Deegie empurraram uma grande pedra contra ela. Wymez e Frebéc a prenderam a escoras verticais seguras, enquanto Tulie empurrava outra grande pedra para o lado da primeira.
Ayla desmontou de Whinney, ainda um pouco trêmula. Jondalar estava ajoelhado ao lado do touro com Talut e Ranec.
- A lança de Jondalar entrou no lado do pescoço e atravessou a garganta. Acho que teria matado este touro por si só, mas sua lança também poderia ter feito isso, Ayla. Nem sequer vi você vindo - disse Talut apenas um pouco espantado com sua proeza. - Sua lança penetrou profundamente nas costelas do animal.
- Mas foi uma coisa perigosa, Ayla. Você poderia ter sido ferida - disse Jondalar. Suava zangado, mas era a reação do medo que sentira por Ayla ao compreender o que ela tinha feito.
Depois, olhou Talut e apontou para uma terceira lança. - De quem é esta lança? Foi bem atirada, penetrou fundo no peito. Também teria detido o animal.
- É de Ranec - disse Talut.
Jondalar se virou para o homem de pele escura e os dois se examinaram mutuamente. Diferenças que talvez tivessem, e rivalidades, poderiam fazê-los discutir, mas em primeiro lugar eram humanos, homens que dividiam um mundo belo, mas duro, primitivo, e sabiam que a sobrevivência de pendia de ambos.
- Devo-lhe agradecimentos - falou Jondalar. - Se minha lança tivesse errado o alvo, eu lhe estaria agradecendo por minha vida.
- Somente se a lança de Ayla também falhasse. Esse bisão foi morto três vezes. Não tinha chance alguma avançando contra você. Parece que seu destino é viver. Tem sorte, meu amigo; a Mãe deve favorecê-lo. Tem sorte assim em tudo? - perguntou Ranec, olhando depois para Ayla com expressão de admiração, de muita admiração.
Ao contrário de Talut, Ranec a tinha visto aproximar-se. Indiferente ao perigo de chifres longos e aguçados, o cabelo esvoaçante, os olhos cheios de terror e raiva, dominando a égua como se fosse uma extensão de si própria, era como um espírito vingador, ou como toda mãe de todo ser vivo que já havia defendido seus filhos. Não lhe parecia importar que tanto ela quanto a égua pudessem ser facilmente feridas pelos chifres. Era quase como se ela fosse o Espírito da Mãe, que era capaz de controlar o bisão tão facilmente quanto ela dominar a égua. Ranec jamais havia visto algo como ela. Ayla era tudo o que ele já desejara: bonita, forte, destemida, carinhosa, protetora. Era toda mulher.
Jondalar viu como Ranec olhou-a e suas entranhas se retorceram. Como Ayla poderia não perceber? Como poderia não responder? Ele temia perdê-la, talvez para o excitante homem moreno, e não sabia o que fazer a respeito. Rangendo os dentes, a testa enrugada com raiva e frustração, deu meia-volta, tentando esconder seus sentimentos.
Ele tinha visto homens e mulheres reagirem como ele estava fazendo e sentira piedade por eles, e algum desprezo. Era o comportamento de uma criança, uma criança inexperiente, sem conhecimento e saber das coisas do mundo. Pensou que estava além daquilo. Ranec agira para salvar sua vida, e ele era um homem. Podia culpá-lo por se sentir atraído por Ayla? Não tinha ela o direito de fazer sua escolha? Ele se odiou por sentir o que sentia, mas nada podia fazer. Jondalar arrancou sua lança do bisão e se afastou.
A matança já havia começado. De trás da segurança da cerca, os caçadores atiravam lanças aos animais que se inclinavam, berrando, e confusos, dando voltas pelo cercado-armadilha. Ayla subiu na cerca, encontrando um local conveniente para ficar, e viu Ranec arremessar uma lança com força e precisão. Uma grande vaca cambaleou e caiu de joelhos. Druwez atirou outra, contra o mesmo animal, e de outra direção - ela não tinha certeza de quem atirou - veio ainda uma terceira. O animal peludo, encurvado, tombou e a cabeça ferida caiu sobre seus joelhos. Ela compreendeu que os arremessadores de lança não eram uma vantagem ali. Os homens tinham um método bastante eficaz com lanças atiradas manualmente.
De repente, um touro investiu contra a cerca, chocando-se nela com a força de toneladas. A madeira lascou, pedaços se soltaram e as escoras verticais deslocaram-se. Ayla pôde sentir a cerca tremendo e saltou para o solo, mas o tremor não cessou. Os chifres do bisão estavam presos! Ele fazia toda a estrutura estremecer em seus esforços para libertar-se. Ayla pensou que a cerca ia se partir.
Talut subiu na porteira trêmula e, com um golpe de seu grande machado, abriu o crânio do forte animal. O sangue jorrou e os miolos saltaram. O bisão se inclinou e, com seus chifres ainda presos, puxou a porteira enfraquecida e Talut para o chão com ele.
O grande chefe se afastou agilmente da estrutura que caía quando ela alcançou o solo, deu alguns passos e desferiu outro golpe abrindo o crânio do último bisão ainda de pé. A porteira havia servido para o seu propósito.
- Agora, vem o trabalho - disse Deegie, gesticulando em direção ao espaço cercado pela porteira improvisada. Animais caídos espalhavam-se ao redor, como montículos de lã marrom-escura. Ela caminhou para o primeiro, tirou da bainha sua faca de sílex, afiada como navalha e, abrindo-lhe a cabeça, cortou-lhe a garganta. Sangue vermelho vivo esguichou da jugular, depois diminuiu e fez uma poça de tom vermelho-escuro ao redor da boca e nariz. Afundou lentamente no solo em um círculo que se alargava, manchando a terra parda de negro.
- Talut! - gritou Deegie, quando chegou ao monte seguinte de pele marrom-escura. A lâmina da comprida lança saindo do flanco do animal ainda estremecia. - Venha acabar com a dor deste aqui, mas tente salvar parte dos miolos desta vez. Quero usá-los. - Talut liquidou rapidamente o animal sofredor.
Depois veio o trabalho sangrento de destripar, tirar a pele e talhar. Ayla se reuniu a Deegie e ajudou-a a virar uma grande vaca para desnudar seu lado inferior tenro. Jondalar caminhou até elas, mas Ranec estava mais próximo e chegou primeiro. Jondalar observou, perguntando-se se precisariam de ajuda ou se uma quarta pessoa iria apenas atrapalhar.
Começando pelo ânus, cortaram do estômago até a garganta, retirando os úberes cheios de leite.
Ayla segurou de um lado e Ranec do outro para dilacerar a caixa torácica. Ela se abriu com um estalo e, depois, com Deegie quase subindo ao interior da cavidade ainda quente, extraíram os órgãos internos - estômago, intestinos, coração, fígado. Foi feito rapidamente, de forma que os gases intestinais, que breve começariam a inchar a carcaça, não contaminassem a carne. Em seguida, começaram a trabalhar na pele.
Era evidente que não precisavam de ajuda. Jondalar viu Latie e Danug lutando com a caixa torácica de um animal menor. Deu uma cotovelada em Latie, afastando-a para um lado, e com as duas mãos abriu a caixa com um forte rasgão encolerizado. Mas talhar era trabalho duro e, quando estavam prontos para destripar, o esforço havia abrandado sua raiva.
Ayla não desconhecia o processo, havia feito aquilo sozinha, muitas vezes. A pele não era tão cortada quanto arrancada. Uma vez cortada e solta ao redor das pernas, separava-se bastante facilmente do músculo, e era mais eficaz e limpo segurá-la e arrancá-la com força do interior, ou puxá-la. Onde havia um ligamento preso e era fácil cortar, usavam uma faca especial de estripar com um cabo de osso e uma lâmina de sílex aguçada nos dois fios, mas arredondada e rombuda na ponta para não perfurar a pele. Ayla estava tão habituada a utilizar ferramentas e facas seguras diretamente com as duas mãos, que se sentia desajeitada usando uma lâmina com cabo, embora já pudesse dizer que teria melhor controle e ação quando se acostumasse a ela.
Os tendões das pernas e costas foram extraídos; tinham grande variedade de usos, desde fio para costurar, até laços. A pele se tornaria objetos ou roupas de pele e couro. A crina longa, emaranhada, transformar-se-ia em corda e cordame de vários tamanhos e em rede para pescar, ou pegar pássaros, ou pequenos animais em sua estação. Todos os cérebros eram guardados, assim como vários cascos, para serem fervidos com os ossos e pedaços de pele para grude. Os grandes chifres, que tinham, às vezes, 1 ,82m eram considerados de grande valor. As extremidades sólidas que se estendiam por um terço do seu comprimento podiam ser usadas como alavancas, pregos, sovelas, cunhas e adagas. A porção oca com a extremidade sólida periférica removida transformava-se em tubos cônicos utilizados para avivar fogos, ou funis para encher bolsas de pele com líquidos, pós ou sementes, e para esvaziá-las de novo. Uma parte central, com alguma porção sólida intacta para fazer um fundo, podia servir como xícara. Segmentos transversais estreitos podiam-se tornar fivelas, braceletes e anéis.
Os focinhos e línguas do bisão eram reservados - iguarias selecionadas. Juntamente com os fígados. Depois, as carcaças eram cortadas em seis pedaços: dois traseiros, dois dianteiros, a parte do meio pela metade, e o grande pescoço. Os intestinos, estômagos e bexigas eram levados e enrolados em peles. Mais tarde, seriam enchidos de ar para que não encolhessem e depois usados para cozinhar ou recipientes para estoque de gorduras ou líquidos, ou bóias para redes de pesca. Toda parte do animal era utilizada, mas nem todas as partes de todo animal eram levadas, somente as selecionadas e mais úteis.
Somente uma quantidade que podia ser carregada.
Jondalar havia levado Racer até metade da trilha íngreme e, para infelicidade do potro, o amarrara seguramente a uma árvore para mantê-lo fora do caminho, e de perigo. Whinney o encontrou assim que os bisões foram encurralados e Ayla deixou-a ir. Jondalar foi buscar o potro depois de acabar de ajudar Latie e Danug com o primeiro bisão, mas Racer estava assustado ao redor de todos os animais mortos. Whinney tampouco gostava daquilo, porém estava mais acostumada. Ayla os viu se aproximarem e observou Barzec e Druwez descendo o rio de novo, e lhe ocorreu que na pressa de fazer os bisões se voltarem e de persegui-los até o cercado, suas mochilas tinham sido abandonadas. Ela foi atrás deles - Barzec, vai buscar as mochilas? - interrogou.
Ele lhe sorriu.
- Vou. E as roupas que sobraram. Partimos com tanta pressa... Não que eu lamente Se você não os tivesse feito virar quando o fez, nós teríamos perdido os animais, com certeza. Foi um truque e tanto que fez com aquele cavalo. Eu não teria acreditado, se não houvesse visto, mas estou preocupado em abandonar tudo lá. Todos estes bisões mortos vão trazer os animais carnívoros que estejam por perto. Vi rastros de lobo enquanto esperávamos, e pareciam recentes. Os lobos adoram mastigar couro quando o encontram. Os carcajus também, e ficarão irritados por isto, mas os lobos só o fazem pela diversão.
- Posso ir buscar as roupas e mochilas a cavalo - disse Ayla.
- Não pensei nisso! Depois que terminarmos haverá muita comida, mas não quero deixar de lado nada que eu não queira que eles comam.
- Escondemos os fardos, lembra? - disse Druwez. - Ela jamais os encontrará.
- Ë verdade - falou Barzec. - Acho que nós mesmos teremos que ir.
- Druwez sabe onde encontrar? - perguntou Ayla.
O garoto olhou para Ayla e sacudiu a cabeça afirmativamente.
Ayla sorriu:
- Quer vir a cavalo comigo?
O rosto do menino abriu-se em largo sorriso.
- Posso?
Ela olhou para Jondalar e seus olhos se cruzaram. Então, ela lhe acenou para que trouxesse os cavalos. Ele se apressou.
- Vou levar Druwez e pegar as trouxas e coisas que abandonaram quando começamos a caçada - disse Ayla, falando Zelandonii. - Deixarei Racer ir também. Uma boa corrida talvez o acalme. Os cavalos não gostam de animais mortos. Foi difícil para Whinney no início também. Você tinha razão sobre conservar o cabresto nele, mas devemos começar a pensar em ensiná-lo a ser como Whinney
Jondalar sorriu:
- É uma boa idéia, mas como fará isto?
- Não sei. - Ayla franziu a testa. Whinney faz coisas para mim porque ela quer, porque somos boas amigas, mas não sei em relação a Racer.
Ele gosta de você, Jondalar. Talvez faça coisas para você. Acho que nós dois devemos tentar.
- Quero tentar - disse ele. - Gostaria de ser capaz de montar Racer, um dia, como você cavalga Whinney.
- Eu também gostaria disso, Jondalar - disse ela, recordando, com o cálido sentimento do amor que sentira mesmo assim, como ela esperara antes que, se o homem louro dos Outros viesse a gostar do filho de Whinney, talvez isto o encorajasse a ficar no vale, com ela. Foi por isso que ela lhe pedira para dar nome ao potro.
Barzec estivera esperando enquanto os dois estrangeiros falavam na língua estranha que ele não compreendia, impacientando-se um pouco. Afinal, disse:
- Bem, se vocês vão buscar as coisas, eu voltarei e ajudarei com os bisões.
- Espere um momento. Auxiliarei Druwez a montar e irei com você - falou Jondalar.
Ambos ajudaram o menino a montar, e ficaram parados observando-os se afastar.
As sombras já se alongavam quando voltaram e os dois correram para ajudar. Mais tarde, enquanto lavava os compridos canais intestinais à margem do riacho, Ayla se lembrou de estripar e talhar animais com as mulheres do Clã. De repente, ela compreendeu que aquela era a primeira vez que caçara como um membro aceito de um grupo de caçadores.
Mesmo quando era jovem, quisera ir com os homens, embora soubesse que as mulheres eram proibidas de caçar. Mas os homens eram tão respeitados por sua habilidade, e faziam a caça parecer tão excitante, que ela sonhava que era uma caçadora, especialmente quando queria escapar de uma situação desagradável ou difícil. Esse foi o começo inocente que levou-a a situações muito mais difíceis do que ela imaginara. Depois de receber permissão para caçar com uma funda, embora outro tipo de caçada continuasse sendo proibida, muitas vezes ela havia prestado atenção, em silêncio, quando os homens discutiam a estratégia de caça. Os homens do Clã quase nada faziam a não ser caçar - exceto discutir caçadas, fabricar armas de caça e participar de rituais de caça. As mulheres do Clã destripavam e cortavam os animais, preparavam as peles para vestimentas e roupas de cama, preservavam e cozinhavam a carne, além de fazer os recipientes para guardá-la, cordas, capachos e vários objetos domésticos, e de colher vegetais para a alimentação, medicamentos e outras utilidades.
O clã de Brun tinha mais ou menos o mesmo número de pessoas que o Acampamento do Leão, mas os caçadores raramente matavam mais de um ou dois animais de uma só vez. Conseqüentemente, tinham que caçar seguidamente. Naquela época do ano, os caçadores do Clã ficavam fora quase o dia inteiro para conseguir o máximo que pudessem estocar para o inverno próximo. Desde que ela chegara, aquela era a primeira vez que alguém do Acampamento do Leão havia caçado e, embora ela refletisse a respeito, ninguém mais parecia preocupado com o assunto. Ayla fez uma pausa para fitar os homens e mulheres destripando e cortando um pequeno rebanho. Com duas ou três pessoas trabalhando juntas em cada animal, o trabalho era realizado mais depressa do que Ayla julgara possível. Isso a fez pensar sobre as diferenças entre eles e o Clã.
As mulheres Mamutoi caçavam; isso significava, pensou Ayla, que havia mais caçadores. Era verdade que nove caçadores eram homens e somente quatro eram mulheres - mulheres grávidas raramente caçavam -, mas fazia diferença. Podiam caçar mais eficazmente com mais caçadores, exatamente como podiam preparar e cortar mais eficientemente com todos trabalhando juntos.
Fazia sentido, mas ela achava que havia algo mais implícito, um ponto especial que ela não percebia, um significado fundamental que devia aprender. Os Mamutoi tinham uma maneira diferente de pensar, também. Não eram tão rigorosos, tão limitados por normas do que era considerado adequado, e do que havia sido feito antes. Havia uma confusão de papéis, o comportamento de homens e mulheres não era tão rigidamente definido. Parecia depender mais da tendência pessoal, e do que funcionava melhor.
Jondalar havia-lhe contado que entre seu povo ninguém era proibido de caçar e, embora a caça fosse importante e a maioria das pessoas caçasse, ao menos quando eram jovens, não se exigia que ninguém caçasse. Aparentemente, os Mamutoi possuíam costumes semelhantes. Ele tentara explicar que sua gente talvez tivesse outras aptidões e habilidades que eram igualmente valiosas e usou a si mesmo como exemplo. Depois de ter aprendido a quebrar o sílex, e criado fama por ser um artesão capaz, conseguiu negociar suas ferramentas e pontas aguçadas por qualquer coisa de que necessitasse. Não era preciso que caçasse, de modo algum, a não ser que quisesse.
Mas Ayla não havia compreendido bem. Que tipo de cerimônia de masculinidade tinham, se não importava se um homem caçasse ou não? Os homens do Clã ficariam perdidos se não acreditassem que caçar era essencial para eles. Um menino não se tornava um homem até matar seu primeiro grande animal. Então, pensou em Creb. Ele jamais caçara. Não podia caçar, não tinha um olho, e um braço, e era coxo. Fora o grande Mog-ur, o maior homem santo de cerimônia da masculinidade.
Em seu íntimo, não era um homem. Mas ela sabia que ele era.
Embora já fosse hora do crepúsculo quando terminaram, nenhum dos caçadores salpicados de sangue hesitou em se despir e se dirigir ao rio. As mulheres tomaram banho rio acima, um pouco separadas dos homens, mas podiam-se ver mutuamente. Peles enroladas e carcaças partidas tinham sido fincadas juntas, e várias fogueiras foram acesas para manter afastados os predadores quadrúpedes e animais necrófagos. A madeira lançada à margem do rio, as árvores derrubadas e a madeira verde utilizada na construção da cerca estavam empilhadas perto. Um peso de carne com osso assava em um espeto sobre uma das pilhas, e várias tendas baixas espalhavam-se ao redor.
A temperatura caiu rapidamente quando a escuridão os envolveu. Ayla ficou contente pelas roupas mal combinadas e mal-ajustadas que Tulie e Deegie lhe emprestaram enquanto seu traje, que ela havia lavado para tirar as manchas de sangue, secava perto de uma fogueira juntamente a vários outros. Ela passou algum tempo com os cavalos, certificando-se de que estavam à vontade e calmos. Whinney permaneceu exatamente na extremidade de luz da fogueira onde a carne assava, mas tão longe quanto possível das carcaças, que esperavam para ser transportadas de volta à habitação comunal, e da pilha de restos além da área protegida pelo fogo, de onde se ouviam, ocasionalmente, rosnados e ganidos.
Depois de os caçadores comerem até se fartar o bisão assado e dourado externamente e mal passado perto do osso, avivaram o fogo e sentaram-se ao redor, tomando chá de ervas quente, e conversavam.
- Deviam ter visto como ela fez a manada mudar de rumo - dizia Barzec. - Não sei quanto tempo mais poderíamos ter contido os animais. Estavam ficando cada vez mais nervosos e eu estava certo de que os perderíamos uma vez que aquele touro fugisse.
- Acho que temos que agradecer a Ayla pelo sucesso desta caçada - falou Tulie.
Ayla corou com o elogio a que não estava acostumada, mas a timidez era responsável apenas por parte do seu rubor. A sua aceitação e admiração de seus talentos e capacidade contidas no elogio a fizeram brilhar de entusiasmo. Ela esperara por essa aceitação a sua vida inteira.
- E pensem que história dará na Reunião de Verão! - exclamou Talut.
A conversa se interrompeu. Talut pegou um galho seco, um pedaço de árvore derrubada que permanecera tanto tempo no solo, que a casca pendia solta ao seu redor, como uma pele velha e desgastada. Ele o partiu em dois contra seu joelho e colocou os dois pedaços no fogo. Um gêiser de centelhas irrompeu, iluminando os semblantes das pessoas sentadas juntas ao redor das chamas.
- As caçadas nem sempre são tão bem-sucedidas. Recordam-se daquela vez em que quase pegamos o bisão branco? - perguntou Tulie. - Que pena ele ter fugido!
- Aquele devia ser protegido. Eu estava seguro de que o pegávamos. Já viu um bisão branco? - perguntou Barzec a Jondalar.
- Ouvi falar deles, e vi uma pele - replicou Jondalar. - Os animais brancos são sagrados para os Zelandonii.
- As raposas e coelhos também? - interrogou Deegie.
- Sim, mas não tanto. Até ptármigas o são, quando brancas. Acreditamos que significa que os animais foram tocados por Doni. Assim, aqueles que nascem brancos e permanecem brancos o ano inteiro são mais sagrados - explicou Jondalar.
- Os brancos têm significado especial para nós também. E por isto que a Fogueira da Garça tem status tão elevado... Em geral - disse Tulie, lançando um olhar a Frebec com uma ponta de desprezo. - A grande garça do norte é branca e aves são os mensageiros especiais de Mut. E mamutes brancos têm poderes especiais.
- Jamais esquecerei a caçada do mamute branco - disse Talut. Olhares ansiosos o encorajaram a prosseguir. - Todos estavam excitados quando o explorador relatou que vira a fêmea. É a maior honra de todas para a Mãe nos dar uma fêmea branca de mamute e, já que era a primeira caçada de uma Reunião de Verão, significaria boa sorte para todos, se conseguíssemos caçá-la - explicou aos visitantes. - Todos os caçadores que quiseram participar da caçada, tiveram que passar por provas de purificação e jejum para ter certeza de que éramos aceitáveis, e a Fogueira do Mamute impôs tabus a nós, mesmo depois, mas todos queríamos ser escolhidos. Eu era jovem, não muito mais velho que Danug, mas era grande como ele é. Talvez por isto eu tenha sido escolhido e fui um dos que acertaram uma lança nela. Como o bisão que o perseguiu, Jondalar, ninguém sabe de quem era a lança que matou a fêmea. Acho que a Mãe não queria que nenhuma pessoa ou acampamento conseguisse grande honraria. A mamute fêmea branca era de todos. Foi melhor assim. Sem inveja ou ressentimentos.
- Ouvi falar de uma corrida de ursos brancos que vivem distante, ao norte - disse Frebec, não querendo ser deixado de lado na conversa. Talvez nenhuma pessoa ou acampamento pudesse assumir plenamente a façanha de ter matado a fêmea branca, mas isso não excluiu toda inveja e ressentimentos. Qualquer pessoa escolhida para participar de tal caçada ganhava mais status por esta única caçada do que o status com que Frebec nascera.
- Também ouvi falar - disse Danug. - Quando eu estava na mina de sílex, visitantes de Sungaea vieram negociar sílex. Uma mulher era uma contadora de histórias, uma boa contadora de histórias. Ela falou sobre a Mãe do Mundo e os homens-cogumelo que seguem o sol à noite e muitos animais diferentes. Contou-nos sobre o urso branco. Vivem no gelo, disse ela, e comem animais marinhos apenas, mas dizem que são mansos, como o grande urso da caverna que não come carne. Não como o urso pardo. Eles são perversos. - Danug não notou o olhar irritado que Frebec lhe lançava. Ele não tivera intenção de interromper, estava apenas satisfeito por tomar parte com algo para dizer.
- Os homens do Clã voltaram da caçada, uma vez, e contaram sobre o rinoceronte branco - disse Ayla. Frebec ainda estava irritado e olhou-a com raiva.
- Sim, os brancos são raros - disse Ranec -, mas os pretos também são especiais. - Ele estava sentado afastado do fogo e mal se podia ver- lhe o rosto na sombra, exceto os dentes brancos e o brilho maroto nos olhos.
- Você é raro, sim, e está mais do que feliz em deixar toda mulher na Reunião de Verão, que quiser descobrir, saber o quanto você é raro - comentou Deegie.
Ranec riu:
- Deegie, o que posso fazer se a Mãe tem filhas tão curiosas? Não gostaria que eu desapontasse ninguém, não é? Mas, eu não falava de mim, pensava em felinos pretos.
- Felinos pretos? .- perguntou Deegie.
- Wymez, tenho uma vaga lembrança de um grande felino preto - disse ele, virando-se para o homem com quem dividia uma fogueira. - Sabe alguma coisa sobre isso?
- Deve ter-lhe causado uma impressão muito forte. Não pensei que se lembrasse - disse Wymez.
- Era pouco mais que um bebê, mas sua mãe gritou. Você estava perambulando, um pouco afastado e, quando ela o viu, viu também um grande felino negro, como um leopardo da neve, somente preto, saltando de uma árvore. Acho que ela pensou que o animal ia pegá-lo, mas ou o grito dela assustou o felino, ou ele não tinha essa intenção. Ele se afastou, mas ela correu até você e passou-se muito tempo antes que o perdesse de vista novamente.
- Havia muitos desses felinos negros onde você esteve? - perguntou Talut.
- Não muitos, mas havia alguns por perto. Permaneciam nas florestas e eram caçadores noturnos, portanto, difíceis de ver.
- Seriam tão raros quanto os brancos daqui, não? Os bisões são escuros e alguns mamutes também, mas não são realmente negros. Preto é especial. Quantos animais pretos existem? - indagou Ranec.
- Hoje, quando fui com Druwez, vimos um lobo negro - disse Ayla.
- Nunca tinha visto lobo negro antes.
- Era negro, realmente? Ou apenas escuro? - interrogou Ranec, muito interessado.
- Negro. Mais claro na barriga, mas preto. Lobo solitário, eu acho - acrescentou Ayla. - Não vi outros rastros. Em bando seria... Status inferior. Talvez tenha partido e encontre outro lobo solitário e forme novo bando...
- Status inferior? Como sabe tanto sobre lobos? - perguntou Frebec. Havia uma sombra de motejo em sua voz como se não quisesse acreditar nela, mas havia evidente interesse também.
- Quando aprendi a caçar, caçava apenas animais carnívoros. Somente com funda. Eu observava de perto, muito tempo. Aprendi sobre lobos. Uma vez vi uma loba branca, em bando. Outros lobos não gostavam dela. Ela partiu. Outros lobos não gostam de lobo de cor errada.
- Era um lobo negro - disse Druwez, querendo defender Ayla, especialmente depois da excitante cavalgada. - Também vi. Não estava certo, a princípio, mas era um lobo, e era preto. E acho que estava sozinho.
- Falando de lobos, devíamos vigiar esta noite. Se há um lobo negro por perto, há ainda mais motivo para vigiar - disse Talut. - Podemos revezar, mas alguém tem que ficar acordado e de vigia a noite toda.
- Devíamos ir descansar - falou Tulie, levantando-se. - Temos uma longa caminhada amanhã.
- Eu vigiarei primeiro - disse Jondalar. - Quando cansar posso acordar alguém.
- Pode me acordar - falou Talut e Jondalar concordou com um gesto de cabeça.
- Eu vigio também - disse Ayla.
- Por que não vigia com Jondalar? É uma boa idéia ter uma companhia para isso. Podem manter-se acordados, mutuamente.
- Estava frio na noite passada. Esta carne está começando a congelar - disse Deegie, prendendo um traseiro a um fardo.
- Isso é bom - falou Tutie -, mas há mais do que podemos carregar. Teremos que deixar alguma carne.
- Não podemos construir um monte sobre ela com as pedras da cerca? - perguntou Latie.
- Podemos, e deveríamos, provavelmente, Latie. É uma boa idéia - disse Tulie, preparando um fardo para si mesma que era tão grande que Ayla se perguntou como ela, apesar de ser tão forte, poderia carregá-lo.
- Mas, talvez não voltemos para buscar a carne até a primavera, se o tempo mudar. Se fosse um local mais perto da moradia, seria melhor.
Os animais não se aproximam tanto e poderíamos vigiar, mas aqui, no descampado, se um leão de caverna ou mesmo um carcaju determinado quiser a carne, realmente, encontrará um meio de passar pelo monte de pedras.
- Não podemos derramar água sobre ele para congelar? Isso manteria os animais afastados. É difícil penetrar através de um monte de pedras congelado mesmo com picaretas e enxadas - disse Deegie.
- Manteria os animais afastados, sim, mas como evitaria o sol, Deegie? - perguntou Tornec. - Não pode ter certeza de que continuará frio. A estação está muito no início.
Ayla ouvia e observava a pilha de pedaços de bisão diminuir enquanto todos arrumavam o máximo que podiam carregar. Ela não estava acostumada a excesso, a ter tanto que se podia pegar e escolher e levar apenas o melhor. Sempre houvera alimento abundante quando ela vivia com o Clã, e mais do que peles suficientes para roupas, cobertas de cama e outros usos, mas pouco era desperdiçado. Ela não estava certa de quanto seria deixado ali, mas tanto já havia sido atirado ao monte de sobras, que a incomodava pensar em abandonar mais, e era óbvio que os outros também o quisessem.
Observou Danug pegar o machado de Tulie, manejando-o com tanta facilidade quanto a mulher, partir uma tora em duas e acrescentá-la à última fogueira que ainda ardia. Ela caminhou até ele.
- Danug - disse, a voz baixa -, quer me ajudar?
- Hum... Ah... Sim - balbuciou ele timidamente. A voz dela era tão baixa e suave e seu sotaque incomum era tão exótico! Ela o pegara de surpresa; não a tinha visto aproximar-se, e ficar de pé perto da bela mulher o aturdia, inexplicavelmente.
- Preciso de... Duas toras - disse Ayla, erguendo dois dedos. - Há árvores novas rio abaixo. Corte-as para mim?
- Ah... Claro. Cortarei duas árvores para você.
Quando caminharam em direção à curva do riacho, Danug se sentiu mais relaxado, mas continuou abaixando os olhos para a cabeça loura da mulher que caminhava a seu lado e apenas a meio passo à frente. Ela selecionou dois amieiros novos, eretos, de aproximadamente a mesma largura, e depois de Danug derrubá-los, ela lhe ordenou para tirar os galhos e cortar as extremidades, de forma a que ficassem do mesmo comprimento. Então, a maioria da timidez do jovem alto e forte havia desaparecido.
- O que vai fazer com isto? - perguntou Danug.
- Eu lhe mostro - disse ela, depois com um assobio alto, imperioso, chamou Whinney. A égua galopou em sua direção. Ayla havia-lhe colocado antes os arreios e cestos em preparação para a partida. Embora Danug achasse estranho ver uma manta de couro sobre o lombo de uma égua, e duas cestas amarradas com correias aos seus flancos, notou que o animal não parecia incomodado ou mais lento.
- Como consegue que ela faça isto? - interrogou ele.
- Faça o quê?
- Vir até você quando assobia.
Ayla franziu a testa pensativa.
- Não estou certa, Danug. Até Neném chegar eu estava sozinha no vale com Whinney. Era a única amiga que eu tinha. Cresceu comigo e aprendemos... Uma sobre a outra.
- E verdade que fala com ela?
- Aprendemos a nos conhecer, Danug. Whinney não fala como você. Aprendi... Seus sinais... Seus movimentos. Ela aprendeu os meus.
- Quer dizer, como os sinais de Rydag?
- Um pouco. Animais, pessoas, todos têm sinais, até você, Danug. Diz palavras, gestos dizem mais. Fala quando não sabe que está falando.
Danug enrugou a testa. Não estava seguro sobre rumo da conversa.
- Não compreendo - disse, desviando o olha...
- Agora falamos - continuou Ayla. - Palavras não dizem nada, mas sinais dizem... Quer montar a cavalo. Certo?
- Bem... Ah... Sim, eu gostaria.
- Então... Você monta.
- Fala sério? Posso montar a égua, realmente? Como Latie e Druwez fizeram? Ayla sorriu.
- Venha cá. Preciso de pedra grande para ajudá-lo a montar, na primeira vez.
Ayla acariciou e deu tapinhas carinhosos em Whinney, e falou-lhe na única linguagem que se desenvolvera naturalmente entre elas: a combinação de palavras e sinais do Clã, sons tolos que ela inventara com seu filho e aos quais dera significado, e sons de animais que imitava perfeitamente. Disse a Whinney que Danug queria dar uma volta, e para tornar o passeio excitante, mas não perigoso. O rapazola havia aprendido alguns dos sinais do Clã que Ayla ensinava a Rydag e ao acampamento, e ficou surpreso por descobrir o significado de alguns, que eram parte da comunicação de Ayla com o animal, porém, isto o deixou apenas ainda mais assombrado. Ela falava com a égua, mas como Mamut quando invocava espíritos, utilizava uma linguagem mística, poderosa, esotérica.
Quer a égua compreendesse explicitamente ou não, entendia, pelos movimentos de Ayla, que algo especial era esperado quando a mulher ajudou o rapaz alto a montá-la. Para Whinney, ele era como um homem que ela havia conhecido e em quem confiava. Suas pernas compridas pendiam e não havia senso de direção ou comando.
- Segure a crina - instruiu Ayla. - Quando quiser ir, incline-se um pouco à frente Quando quiser diminuir a marcha ou parar, endireite o corpo.
- Quer dizer que não vai comigo? - perguntou Danug, com uma ponta de medo estremecendo sua voz.
- Não precisa de mim - disse ela. Depois, deu uma palmada no flanco de Whinney.
A égua partiu com um súbito impulso de velocidade. Danug saltou para trás, depois agarrou-lhe a crina para curvar-se à frente, passou os braços ao redor do pescoço da égua e se equilibrou a todo custo. Mas quando Ayla cavalgava, inclinada para a frente, era um sinal para ir mais depressa. A égua robusta das planícies frias saltou à frente pela planície lisa de aluvião, que agora já se tornara bastante familiar, pulando toras e galhos cortados, e evitando pedras expostas, pontudas, e árvores ocasionais.
A princípio, Danug ficou tão petrificado que só conseguiu manter os olhos apertadamente cerrados e se segurar. Mas depois, ao compreender que não havia caído, embora pudesse sentir os músculos fortes da égua quando saltava com a andadura larga do animal, abriu os olhos um pouco. Seu coração batia de excitação enquanto observava as árvores e galhos cortados, e o terreno abaixo, passarem numa velocidade indistinta. Ainda se mantendo seguro, ergueu a cabeça para olhar ao redor.
Mal podia acreditar quão longe havia ido. Os grandes afloramentos que ladeavam o rio estavam bem à frente! Ouviu, vagamente, um assobio agudo atrás de si, ao longe, e imediatamente notou uma diferença na marcha da égua. Whinney ultrapassou os rochedos de proteção, em seguida, reduzindo apenas ligeiramente a velocidade, fez a volta em um circulo largo e regressou. Embora ainda se segurando com força, Danug sentia menos medo agora. Queria ver para onde iam, e se colocou numa posição um pouco mais ereta, que Whinney interpretou como um sinal para reduzir a velocidade.
O sorriso no rosto de Danug quando o animal se acercou fez Ayla pensar especialmente quando estava satisfeito consigo mesmo. Ela pôde ver o homem no menino. Whinney empinou e parou, e Ayla a conduziu para a pedra a fim de Danug poder descer. Ele estava tão extasiado que mal podia falar, porém não conseguia parar de sorrir. Ele jamais havia pensado em cavalgar rapidamente - isto estava além de sua imaginação - e a experiência ultrapassava suas expectativas mais excitantes. Jamais esqueceria.
Seu sorriso fez Ayla rir sempre que olhava para ele. Ela prendeu as toras aos arreios de Whinney e quando voltaram ao local do acampamento, Danug ainda sorria largamente.
- O que há com você? - perguntou Latie. - Por que está sorrindo assim?
- Eu montei a égua - respondeu Danug. Latie sacudiu a cabeça afirmativamente e sorriu.
Quase tudo o que podia ser levado do local da caçada fora preso às costas, ou enrolado em peles, prontas para oscilarem de varas resistentes, como se fossem redes, carregadas aos ombros por duas pessoas. Ainda havia lombos e peles enroladas abandonados, mas não tantos quanto Ayla imaginara que seriam. Como com a caça e o retalho da carne, poderiam levar mais para o acampamento de inverno quando todos trabalhavam juntos.
Várias pessoas viram que Ayla não preparava um fardo para carregar de volta, e perguntaram-se onde teria ido, mas quando Jondalar a viu regressar com Whinney arrastando as toras, soube o que ela tinha em mente. Ela arrumou novamente as toras de maneira que as extremidades mais grossas se cruzassem bem acima dos cestos através da cernelha da égua e amarrou-as aos arreios, e as extremidades estreitas ficassem obliquamente atrás do animal e descansassem no solo facilmente. Então, entre as duas toras, ela prendeu um estrado improvisado feito de cobertura da tenda, utilizando galhos para suporte. As pessoas pararam de observá-la, mas somente quando ela começou a transferir os restos da carne de bisão para o travois foi que todos compreenderam o seu propósito.
Ela também encheu os cestos e colocou a última carne em uma mochila, para ela própria carregar.
Quando terminou, para surpresa de todos, não restava nada na pilha.
Tulie olhou para Ayla e a égua com o travois e os cestos, obviamente impressionada.
- Jamais pensei em usar um cavalo para carregar um fardo - disse ela. - Na verdade, nunca me ocorreu utilizar um cavalo para coisa alguma, a não ser alimento... Até agora.
Talut atirou terra ao fogo, e mexeu-o para ter certeza de que se apagara. Depois levou às costas seu pesado fardo, colocou a mochila ao ombro esquerdo, e pegou a lança e partiu. O resto dos caçadores o seguiu. Jondalar havia-se perguntado, desde que conhecera os Mamutoi, por que faziam suas mochilas para serem usadas apenas sobre um ombro. Enquanto ajeitava o fardo às costas para que se ajustasse de forma confortável, e colocava a mochila ao ombro, compreendeu, de repente. Isso lhes permitia carregar sacos completamente cheios às costas. Devem carregar grandes quantidades, com freqüência, pensou.
Whinney caminhou atrás de Ayla, a cabeça perto do ombro da mulher. Jondalar, conduzindo Racer pelo cabresto, caminhava ao lado dela. Talut recuou e andava logo à frente deles, e trocaram algumas palavras enquanto caminhavam. Enquanto as pessoas se arrastavam sob o peso dos fardos, Ayla notou um olhar ocasional em sua direção e na de Whinney.
Depois de algum tempo, Talut começou a entoar uma melodia em voz sussurrante. Logo, vocalizava sons no compasso de seus passos:
Hus-na, dus-na, teesh-na, keesh-na.
Pec-na, sec-na, ha-na-nya.
Hus-na, dus-na, teesh-na, keesh-na.
Pec-na, sec-na, ha-na-nya!
O resto do grupo participou, repetindo as sílabas e o tom. Depois, com um sorriso malicioso, Talut, mantendo o mesmo ritmo e compasso, olhou para Deegie e mudou para palavras.
“O que a bela Deegie deseja?
Branag, Branag, divida minha cama.
Para onde vai a bela Deegie, no entanto?
Para casa, esvaziar as peles.”
Deegie corou, mas sorriu, enquanto todos riam, astuciosamente. Quando Talut repetiu a primeira pergunta, o resto do grupo se uniu na resposta, e depois da segunda, cantaram a réplica. Em seguida, juntaram-se a Talut para cantar o refrão.
Hus-na, dus-na, teesh-na, keesh-na.
Pec-na, sec-na, ha-na-nya!
Repetiram-no várias vezes, depois Talut improvisou outro verso.
“Como Wymez passa o inverno?
Fabricando ferramentas e querendo diversão.
Como Wymez passa o verão?
Recuperando-se por não ter nenhuma das duas.
Todos riram à exceção de Ranec. Ele urrou. Quando a estrofe foi repetida pelo grupo, o em geral retraído, Wymez ficou vermelho diante da brincadeira gentil. O hábito do fabricante de ferramentas, de tirar proveito das Reuniões de Verão para compensar sua vida de inverno, essencialmente celibatária, era bem conhecido.
Jondalar se divertia com a provocação e brincadeiras, tanto quanto os outros. Era exatamente o tipo de coisa que seu povo costumava fazer. Mas, a princípio, Ayla não compreendeu a situação inteiramente, ou o humor, principalmente ao notar o embaraço de Deegie. Depois, ela viu que havia riso e sorrisos de bom humor, e as zombarias eram bem recebidas. Começava a compreender o humor verbal, e o próprio riso era contagioso. Ela também sorriu da estrofe dirigida a Wymez.
Talut começou o refrão de sílabas cantadas de novo, quando todos se calaram. As pessoas se juntaram a ele, adivinhando agora.
Hus-na, dus-na, teesh-na, keesh-na.
Pec-na, sec-na, ha-na-nya!
Talut olhou para Ayla, depois com um sorriso presunçoso, começou.
“Quem quer o afeto cálido de Ayla?
Dois gostariam de partilhar suas cobertas de pele.
Quem será o raro escolhido?
Preto ou branco, a escolha é dela.”
Ayla ficou contente por ser incluída na brincadeira, e embora não tivesse certeza de entender completamente o significado da estrofe, corou de entusiasmo porque era sobre ela. Refletindo sobre a conversa da noite anterior, pensou que o preto e branco deviam se referir a Ranec e Jondalar.
O riso deleitado de Ranec confirmou sua suspeita, mas o sorriso forçado de Jondalar a incomodou. Ele não se divertia agora.
Então, Barzec aproveitou o refrão e até o ouvido não-treinado de Ayla detectou uma qualidade excelente e distinta no timbre e tom de sua voz. Ele também sorriu para Ayla, indicando quem seria o sujeito de sua estrofe provocante.
“Como Ayla escolherá uma cor?
O preto é raro, mas o branco também
Como Ayla escolherá um amante?
Dois podem aquecer suas cobertas à noite!”
Barzec olhou para Tulie, enquanto todos repetiam seu poema, e ela o recompensou com um olhar de ternura e amor. Jondalar, contudo, franziu a testa, incapaz de sequer fingir que se divertia com o rumo da provocação.
Não gostava da idéia de dividir Ayla com ninguém, principalmente com o atraente escultor.
Ranec pegou o refrão em seguida, e os outros se juntaram a ele depressa.
Hus-na, dus-na, teesh-na, keesh-na.
Pec-na, sec-na, ha-na-nya!
A princípio, não olhou para ninguém, querendo manter algum suspense. Depois lançou um largo sorriso radiante a Talut, o instigador da canção provocante, e todos riram antecipadamente, esperando que Ranec tomasse como tema aquele que deixara os outros embaraçados.
“Quem é grande e alto e forte e sábio?
O bruto de cabelo ruivo, dono do Acampamento do Leão
Quem maneja uma ferramenta do seu tamanho?
Talut, o amigo de toda mulher!”
O chefe grandalhão berrou diante da alusão, enquanto os outros gritavam a estrofe pela segunda vez. Depois, ele retomou o refrão. Enquanto regressavam ao Acampamento do Leão, a canção ritmada determinou passo, e o riso aliviou o peso de carregar de volta o fruto de sua caçada.
Nezzie saiu da habitação comunal e deixou a cortina cair atrás de si. Olhou para a margem oposta do rio. O sol estava baixo no céu ocidental, preparando-se para mergulhar num colchão de nuvens perto do horizonte Ergueu os olhos para a encosta, sem saber ao certo por quê. Realmente, não esperava os caçadores de volta, ainda; tinham partido apenas na véspera e, provavelmente, ficariam fora duas noites, no mínimo. Alguma coisa a fez levantar os olhos de novo. Havia movimento no alto da trilha que dava às estepes?
- É Talut! - gritou, vendo o vulto familiar recortado contra o céu. Enfiou a cabeça para dentro da moradia e berrou: - Estão de volta! Talut e o resto, estão de volta! - Depois correu e subiu a encosta ao encontro deles.
Todos saíram correndo da habitação para saudar os caçadores que regressavam. Ajudaram a tirar os pesados fardos das costas dos que tinham não apenas caçado, mas carregado os produtos de seus esforços para casa. Porém, a visão que causou maior surpresa foi a da égua arrastando um fardo muito maior do que qualquer pessoa poderia carregar. As pessoas se reuniram ao redor, quando Ayla descarregou ainda mais dos cestos. A carne e outras partes dos bisões foram trazidas imediatamente para o interior da moradia, passadas de mão em mão e estocadas.
Ayla certificou-se de que os cavalos estavam bem depois de todos terem entrado, retirando os arreios de Whinney e o cabresto de Racer. Embora parecesse não sofrer qualquer conseqüência por passar as noites fora, sozinhos, a mulher ainda sentia uma ponta de preocupação por deixá-los todas as tardes, quando entrava na habitação comunal. Enquanto o tempo permanecesse razoavelmente bom, não importava. Um pouco de frio não a incomodava, mas aquela era a estação das mudanças inesperadas. E se uma tempestade desabasse? Onde os animais iriam ficar, então?
Ela ergueu a cabeça com uma ruga de preocupação na testa. Nuvens altas e finas, em tons brilhantes, corriam pelo céu. O sol se pusera não há muito tempo atrás, e deixara uma panóplia de cor viva seguindo-o. Ela observou até os matizes desaparecerem e o azul-claro ficar acinzentado.
Quando Ayla entrou, ouviu um comentário sobre ela e a égua, exatamente antes de empurrar a cortina interna que levava à fogueira de cozinhar. As pessoas estavam sentadas ao seu redor, relaxando, comendo e conversando, mas a conversa cessou quando ela apareceu. Ela se sentiu embaraçada ao passar na primeira fogueira, com todos olhando para ela Então, Nezzie lhe entregou um prato de ossos e a conversa recomeçou. Ayla começou a se servir. Depois, parou para olhar à volta. Onde estava a carne de bisão que acabavam de trazer? Não havia sinal dela em lugar algum. Ela sabia que devia ter sido guardada, mas onde Ayla empurrou para trás a pesada pele exterior de mamute e procurou primeiro os cavalos. Segura de que estavam bem, procurou Deegie e sorriu à sua aproximação. Deegie tinha-lhe prometido mostrar, com as peles frescas de bisão, como os Mamutoi preparavam e curtiam as peles. Ayla se interessava, particularmente, como coloriam o couro de vermelho, igual à túnica de Deegie. Jondalar havia dito que o branco era sagrado para ele; o vermelho era sagrado para Ayla porque era sagrado para o Clã. Uma pasta de tingir pele vermelho-ocre misturada com gordura, de preferência gordura de urso de caverna, era utilizada na cerimônia de dar nome; um pedaço de ocre vermelho era o primeiro objeto que entrava num saquinho amuleto, dado à época em que o totem de uma pessoa se tornava conhecido. Do início ao fim da vida, o ocre vermelho era usado em muitos rituais, inclusive o último, o funeral. O saquinho que continha as raízes usadas para fazer a bebida sagrada era a única coisa vermelha que Ayla já possuíra e, depois do seu amuleto, era o seu maior tesouro.
Nezzie saiu da moradia carregando um grande pedaço de couro manchado pelo uso, e viu Ayla e Deegie juntas.
- Oh, Deegie. Eu procurava alguém que me ajudasse - disse ela. - Pensei em fazer um grande assado para todos. A caçada dos bisões teve tanto sucesso que Talut disse que devíamos fazer uma festa para celebrar. Quer preparar isto para cozinhar? Coloquei carvão quente no buraco próximo à grande fogueira, e pus a armação sobre ele. Há um saco de esterco seco de mamute lá para colocar nos carvões. Mandarei Danug e Latie buscarem água.
- Sempre ajudarei a fazer um dos seus assados, Nezzie.
- Posso ajudar? - indagou Ayla.
- E eu - disse Jondalar que acabava de se acercar para falar com Ayla e ouvira a conversa.
- Podem ajudar-me a trazer um pouco de comida para fora - disse Nezzie ao se virar para entrar novamente.
Eles a seguiram em direção às arcadas de presa de mamute que estavam ao longo das paredes no interior da habitação comunal. Ela afastou uma cortina bastante dura e pesada de pele de mamute, que não havia sido tosada. A camada dupla de gordura avermelhada, com seu agasalho penugento e pêlo exterior longo, estava voltada para fora. Uma segunda cortina pendia atrás dela e quando foi empurrada, sentiram uma brisa fria. Olhando o espaço fracamente iluminado, viram um grande buraco, do tamanho de um quarto pequeno. Tinha cerca de 1 metro de profundidade abaixo do nível do solo, com a terra nua da encosta formando altas paredes, e estava quase cheio de pedaços e nacos congelados e carcaças menores de carne.
- Estocagem! - exclamou Jondalar, segurando as pesadas cortinas enquanto Nezzie descia. -
Guardamos carne congelada para o inverno também, mas não tão convenientemente fechada.
Nossos abrigos são construídos sob as saliências de penhascos, ou na frente de algumas cavernas.
Mas é difícil manter a carne congelada lá, dai nossa carne ficar no exterior.
- O Clã conserva a carne congelada na estação fria escondida sob pilhas de pedras - disse Ayla, entendendo agora o que acontecera com a carne de bisão que trouxeram da caçada.
Nezzie e Jondalar expressaram surpresa. Nunca pensaram na gente do Clã estocando carne para o inverno, e ainda estavam espantados quando Ayla mencionou atividades que pareciam tão avançadas, tão humanas. Mas os comentários de Jondalar sobre o local onde vivia tinham surpreendido Ayla. Ela havia imaginado que todos os Outros viviam no mesmo tipo de moradia e não compreendeu que as habitações de terra eram construções tão raras para ele quanto para ela.
- Não temos muitas pedras aqui para fazer esconderijos - disse Talut, em sua voz retumbante. Levantaram a cabeça para o gigante de cabelos ruivos que se acercava. - Deegie me disse que resolveu fazer um assado, Nezzie - disse ele com um sorriso satisfeito. - Achei que devia vir ajudar.
- Esse homem sente o cheiro de comida antes de ela estar cozida! - exclamou Nezzie rindo baixinho, enquanto remexia na escavação abaixo.
Jondalar ainda se interessava pelos locais de armazenagem.
- Como a carne fica congelada assim? Dentro da habitação é quente - falou.
- No inverno todo o solo se congela como rocha, mas derrete-se o suficiente para ser escavado no verão. Quando construímos uma moradia, escavamos o suficiente para atingir o solo que está sempre congelado, para recintos de estocagem. Eles manterão o alimento frio mesmo no verão, embora nem sempre congelado. No outono, assim que o tempo fica frio lá fora, o solo começa a congelar. Então, a carne congelará nos buracos e começamos a estocar para o inverno. A pele de mamute mantém o calor dentro e o frio fora - explicou Talut. - Exatamente como faz em relação ao mamute - ajuntou com um sorriso.
- Talut, pegue isto aqui - disse Nezzie, estendendo um naco duro, congelado, marrom-avermelhado, com uma camada espessa de gordura amarelada de um lado.
- Eu pego - ofereceu-se Ayla, estendendo as mãos para a carne. Talut agarrou as mãos de Nezzie e embora ela não fosse, de modo algum, uma mulher miúda, o homem robusto a ergueu como se fosse uma criança, tirando-a do buraco.
- Você está com frio. Terei de aquecê-la - disse ele, colocando os braços à volta dela, pegando-a no colo e acariciando-lhe o pescoço com o nariz.
- Pare com isso, Talut. Ponha-me no chão! - zangou-se ela, embora o rosto brilhasse de prazer.
- Tenho trabalho a fazer, não é o momento certo...
- Diga-me o momento certo e a porei no chão, então.
- Temos visitas - protestou ela, mas envolveu o pescoço do homem com os braços e cochichou-lhe ao ouvido.
- E uma promessa! - exclamou o homem grande, pousando-a no chão suavemente e dando-lhe tapinhas nos quadris largos, enquanto a mulher ruborizada endireitava as roupas e tentava recuperar sua dignidade.
Jondalar riu para Ayla e passou o braço por sua cintura
Novamente, pensou Ayla, eles fazem um jogo, dizendo uma coisa com as palavras e outra coisa com seus atos. Mas, desta vez, compreendeu o humor e o forte amor oculto partilhados por Talut e Nezzie. De repente, compreendeu que eles revelavam amor sem serem óbvios também, como o Clã fazia, dizendo uma coisa que significava outra. Com o novo insight, um conceito importante assumiu o seu lugar, o que esclareceu e resolveu muitas questões que a tinham incomodado, ajudando-a a compreender melhor a graça.
- Esse Talut! - exclamou Nezzie, tentando soar severa, mas seu sorriso satisfeito desmentia o tom de voz. - Se não tem nada a fazer, pode ajudar a pegar as raízes, Talut - Depois, acrescentou à jovem mulher.
- Eu lhe mostrarei onde guardamos, Ayla. A Mãe foi generosa neste ano, foi uma boa estação e conseguimos muitas.
Deram a volta a um estrado de dormir até outro arco com cortina.
- Raízes e frutas são estocadas mais alto - falou Talut aos visitantes, afastando outra cortina e mostrando-lhes cestas carregadas de tubérculos nodosos, de pele marrom, amiláceos; cenouras pequenas, silvestres de cor amarela-clara; hastes inferiores e suculentas de tábuas e tifáceas; e outros produtos estocados a nível do solo, ao redor da borda de um buraco mais fundo. - Duram mais se forem mantidas frias, porém o congelamento as deixa macias. Mantemos as peles armazenadas também, até alguém estar pronto para prepará-las, e alguns ossos para fabricar ferramentas e um pouco de marfim para Ranec. Ele diz que o congelamento deixa o marfim mais fresco e mais fácil de trabalhar. Marfim extra e ossos para as fogueiras são estocados na área da entrada e em buracos lá fora.
- O que me faz lembrar que quero um joelho de mamute para o assado. Sempre dá sabor e paladar - disse Nezzie, enquanto enchia uma grande cesta com verduras diversas. - Agora, onde coloquei aquelas flores secas de cebola?
Sempre achei que paredes de pedra eram necessárias para sobre viver ao inverno, para a proteção do pior dos ventos e tempestades - disse Jondalar, com a voz cheia de admiração. - Construímos abrigos no interior de cavernas, contra as muralhas, mas vocês não têm cavernas. Nem sequer têm árvores abundantes para madeira a fim de construir abrigos. Fizeram tudo com mamutes!
- Por isto a Fogueira do Mamute é sagrada. Caçamos outros animais, porém nossa vida depende do mamute - disse Talut.
- Quando fiquei com Brecie e o Acampamento do Salgueiro, ao sul daqui, não vi nenhuma construção como esta.
- Conhece Brecie também? - interrompeu Talut. Brecie e algumas pessoas do acampamento tiraram meu irmão e eu da areia movediça.
- Ela e minha irmã são velhas amigas - disse Talut -, e aparentadas, por causa do primeiro homem de Tulie. Crescemos juntos. Chamam seu local de verão de Acampamento do Salgueiro, mas sua casa é o Acampamento do Alce. As moradias de verão são mais leves, não como esta. O Acampamento do Leão é uma habitação de inverno. O Acampamento do Salgueiro vai muitas vezes ao mar Beran a fim de pescar e pegar mariscos e sal para negociar. O que vocês faziam lá?
- Thonolan e eu atravessávamos o deita do Grande Rio Mãe. Ela salvou nossas vidas...
- Deveria contar essa história mais tarde. Todos quererão ouvir a respeito de Brecie - disse Talut.
Ocorreu a Jondalar que a maior parte de suas histórias era também sobre Thonolan. Quer quisesse ou não, teria que falar sobre seu irmão. Não seria fácil, mas teria que se acostumar com isso, se pretendia dizer alguma coisa.
Atravessaram o espaço da Fogueira do Mamute que, exceto pela passagem central, era delimitada por divisões de osso de mamute e cortinas de couro, como todas as fogueiras. Talut notou o arremessador de lanças de Jondalar.
- Vocês dois deram uma demonstração e tanto - disse o chefe. - Aquele bisão foi detido imediatamente.
- Isto pode fazer mais do que viu - falou Jondalar, parando para pegar o implemento. - Com ele, posso atirar uma lança mais firmemente e mais longe.
- Verdade? Talvez possa nos dar outra demonstração - disse Talut.
- Eu gostaria, mas devíamos subir às estepes, a fim de ter uma noção melhor do alcance. Acho que ficará surpreso - disse Jondalar, virando-se depois para Ayla: - Por que não traz o seu, também?
Do lado de fora, Talut viu sua irmã dirigindo-se ao rio e gritou para a chefe que eles iam ver a nova maneira de Jondalar arremessar lanças. Começaram a subir a encosta e quando chegaram às planícies abertas, a maior parte do acampamento se reunira a eles.
- A que distância pode jogar uma lança, Talut? - perguntou Jondalar, quando chegaram a um local provável para a exibição. - Pode me mostrar?
- Claro. Mas por quê?
- Porque quero lhe mostrar que posso arremessar mais longe - replicou Jondalar.
Riso geral seguiu-se à sua afirmação.
- E melhor escolher outra pessoa para desafiar. Sei que é um homem grande e forte, provavelmente, mas ninguém é capaz de atirar uma lança mais longe que Talut – aconselhou Barzec. - Por que não mostra a ele, Talut? Dê-lhe uma chance de ver o que irá enfrentar. Então, poderá competir em sua própria categoria. Eu poderia ser um bom adversário, talvez até mesmo Danug.
- Não - disse Jondalar com um brilho nos olhos. Aquilo se tornava uma competição, realmente.
- Se Talut é o melhor, então Talut o fará. E aposto que posso arremessar uma lança mais longe... a não ser que eu não tenha nada para apostar. Na verdade, com isto - prosseguiu Jondalar, levantando o implemento estreito, liso, feito de madeira-, aposto que Ayla pode atirar uma lança mais distante e mais depressa e com maior precisão do que Talut.
Houve um burburinho de admiração entre o acampamento reunido, em resposta à afirmação de Jondalar. Tulie lançou um olhar a Ayla e a Jondalar. Estavam relaxados demais, confiantes demais.
Devia ser claro para eles que não se igualavam a seu irmão. Ela duvidava de que sequer fossem adversários à sua altura. Era quase tão alta quanto o homem de cabelos louros e possivelmente mais forte, embora o braço comprido de Jondalar talvez lhe desse vantagem. O que sabiam eles que ela ignorava? Deu um passo à frente.
- Eu lhe darei algo para apostar - disse ela. - Se vencer, dar-lhe-ei o direito de fazer uma reivindicação razoável, e se estiver dentro do meu alcance, eu a concederei.
- E se eu perder?
- Você me concederá a mesma coisa.
- Tulie, você está certa de que quer apostar uma reivindicação futura? - perguntou Barzec à companheira, com a testa franzida de preocupação. As condições não-definidas eram um alto risco, invariavelmente exigindo mais do que o pagamento usual. Não tanto porque o vencedor fizesse, em geral, exigências grandes, embora isto acontecesse, mas porque o perdedor precisava estar certo de que a aposta fora cumprida e de que não haveria qualquer reivindicação posterior. Quem sabia o que aquele estranho poderia pedir?
- Contra uma reivindicação futura? Sim – retrucou, ela. Mas ela não disse que acreditava não poder perder, de um jeito ou de outro, porque se ele ganhasse, se realmente fizesse o que dizia, eles teriam acesso a uma nova e valiosa arma. Se ele perdesse, ela lhe faria uma reivindicação.
- O que diz, Jondalar?
Tulie era arguta, mas Jondalar sorria. Ele já apostara reivindicações futuras antes; sempre acrescentavam graça ao jogo e interesse nos espectadores. Queria partilhar o segredo de sua descoberta. Desejava ver como seria aceita e como funcionaria numa caçada comunal. Era o próximo passo lógico para testar sua nova arma de caça. Com um pouco de experimentação e prática, qualquer pessoa poderia usá-la. Essa era a beleza da coisa. Mas levava tempo para se treinar e aprender a nova técnica, que exigiria entusiasmo ardente. A aposta ajudaria a criar isso... E ele teria uma reivindicação futura sobre Tulie. Não duvidava disso.
- De acordo! - exclamou ele.
Ayla observava a ação. Não compreendia bem a aposta, exceto que havia competição envolvida, mas sabia que aconteciam mais coisas sob a superfície.
- Vamos trazer alguns alvos para cá e também alguns marcadores - disse Barzec, encarregando-se da competição. - Druwez, você e Danug vão buscar alguns ossos compridos para marcos.
Ele sorriu, observando os dois meninos descerem correndo a encosta.
Danug, tão parecido com Talut, ultrapassava o outro garoto em altura, embora fosse apenas um ano mais velho, mas com treze anos; Druwez começava a revelar uma musculatura rija, compacta, semelhante à constituição física de Barzec.
Barzec estava convencido de que o rapazola e a pequena Tusie eram a prole de seu espírito, enquanto Deegie e Tarneg eram, provavelmente, do de Darnev. Não estava seguro sobre Brinan.
Oito anos desde o seu nascimento, mas ainda era difícil dizer. Talvez Mut tivesse escolhido algum outro espírito, não um dos dois homens da Fogueira dos Auroques. Ele se parecia com Tulie, e o cabelo era ruivo como o do seu irmão, mas Brinan tinha sua própria aparência. Da mesma forma que Darnev tivera. Barzec sentiu um nó na garganta, agudamente consciente, por um instante, da ausência de sua companheira. Não era a mesma coisa sem Darnev, pensou ele. Depois de dois anos, ele ainda sofria tanto quanto Tulie.
Quando os postes de osso da perna de mamutes - com rabos de raposa vermelha amarrados a eles, e cestas tecidas com capim brilhantemente tingido, invertidas no topo - foram levantados para marcar a linha de arremesso, o dia começava a dar a impressão de comemoração. Começando a cada poste, emaranhados de capim comprido, ainda em crescimento, foram amarrados juntos a intervalos, criando uma vereda larga. As crianças corriam para cima e para baixo, na linha de arremesso, pisando o capim e delineando o espaço ainda mais. Outros trouxeram lanças. Depois, alguém teve a idéia de encher um velho catre com capim e estrume seco de mamute, que foi então marcado com figuras a carvão negro para usar como alvo móvel.
Durante os preparativos, que pareciam tornar-se mais e mais elaborados por acordo mútuo, Ayla começou a fazer uma refeição matinal para Jondalar, Mamut, e ela própria. Breve, incluiria todos da Fogueira do Leão e assim Nezzie pôde preparar o assado. Talut ofereceu sua bebida fermentada para o jantar, o que fez todos sentirem que era uma ocasião especial, já que, usualmente, só oferecia a bebida a hóspedes e quando havia celebração. Depois, Ranec anunciou que prepararia seu prato especial, o que deixou Ayla espantada ao saber que ele cozinhava e agradou a todos os outros. Tornec e Deegie disseram que se iam ter uma “festa”,... Eles também poderiam fazer alguma coisa. Era um palavra que Ayla não compreendia, mas que foi saudada com mais entusiasmo ainda do que o prato especial de Ranec.
Quando a refeição da manhã terminou e tudo foi limpo, a moradia ficou vazia. Ayla foi a última a sair. Deixando a cortina da arcada exterior cair atrás de si, percebeu que estavam no meio da manhã. Os cavalos tinham se acercado um pouco mais e Whinney sacudiu a cabeça e relinchou, saudando a mulher quando ela apareceu. As lanças tinham sido deixadas nas estepes, mas ela havia trazido sua funda, e a segurava com uma bolsa de pedras pequenas e redondas que escolhera em um leito de cascalho perto da curva do rio. Ela não tinha uma correia na cintura ao redor de sua pesada parka para guardar a funda, e nenhuma dobra adequada num agasalho onde carregar os projeteis. A túnica e parka que usava eram folgadas.
Todo o acampamento se envolveu na competição; quase todas as pessoas já se encontravam no alto da encosta, esperando com ansiedade. Ela começou a subir também, e viu Rydag esperando com paciência que alguém o visse e o carregasse até o alto, mas aqueles que normalmente o faziam - Talut, Danug e Jondalar - já estavam nas estepes.
Ayla sorriu para a criança e se dirigiu a ela para carregá-la. Então, teve uma idéia. Girando, assobiou para Whinney. A égua e o potro galoparam até ela e pareciam satisfeitos por vê-la. Ela percebeu, então, que não havia passado muito tempo com eles, recentemente. Havia muitas pessoas que ocupavam o seu tempo. Decidiu sair para uma cavalgada todas as manhãs, ao menos enquanto o tempo se mantivesse bom. Depois, pegou Rydag e o colocou no dorso da égua para que Whinney o carregasse até o alto do aclive íngreme. - Segure na crina para não cair para trás - avisou Ayla.
Ele concordou com um gesto de cabeça, agarrou a crina espessa e escura na parte posterior do pescoço do animal da cor do feno e soltou um grande suspiro de felicidade.
A tensão no ar era palpável quando Ayla atingiu o local de arremesso das lanças. Fez com que compreendesse que, apesar de todas as festividades, a competição se tornara um negócio sério. A aposta a transformara em mais do que uma demonstração. Ela deixou Rydag montado em Whinney, para que tivesse uma boa visão das atividades, e permaneceu silenciosa ao lado dos dois animais para conservá-los calmos. Estavam mais à vontade perto daquelas pessoas agora, mas a égua sentia a tensão, ela sabia, e Racer sempre percebia o humor da mãe.
As pessoas rodopiavam na expectativa, algumas atirando suas lanças no campo bem pisado. Não fora marcada hora especial para o início da competição, no entanto, como se alguém houvesse dado um sinal, todos perceberam o momento exato de deixar o caminho livre e se calar. Talut e Jondalar estavam de pé entre os dois postes observando o local. Tulie se encontrava ao lado deles. Embora Jondalar houvesse dito, originalmente, que podia apostar que até Ayla seria capaz de atirar uma lança mais longe que Talut, parecia uma coisa tão forçada que o comentário fora evidentemente ignorado e, das linhas laterais, ela observava com ávido interesse.
As lanças de Talut eram maiores e mais compridas do que qualquer outra, como se seus músculos fortes precisassem de algo com peso e volume para atirar, mas, recordou Ayla, as lanças dos homens do Clã eram ainda mais pesadas e volumosas, se não mais compridas. Ayla reparou em outras diferenças também. Ao contrário das lanças do Clã, feitas para arremessar, estas, bem como as dela e de Jondalar, eram feitas para atravessar o ar, e todas eram guarnecidas de penas, apesar de o Acampamento do Leão parecer preferir três penas amarradas à extremidade dos fustes, enquanto Jondalar usava duas. As lanças que ela fizera para si enquanto vivia sozinha no vale tinham pontas aguçadas, endurecidas ao fogo, semelhantes àquelas que vira no Clã. Jondalar havia moldado e aguçado ossos para pontas de lanças e prendeu-as a hastes. Os caçadores de mamutes pareciam preferir lanças com ponta de sílex.
Envolvida em sua observação cuidadosa das lanças que várias pessoas seguravam, ela quase não viu o primeiro arremesso de Talut. Ele recuara alguns passos e, com um impulso rápido, atirara sua lança com movimento poderoso. A lança passou zunindo pelos observadores e aterrissou com um baque sólido, com a ponta quase enterrada no solo e o fuste vibrando sob o impacto. O acampamento admirado não deixou dúvida sobre o que pensava da proeza de seu chefe. Mesmo Jondalar estava surpreso. Ele suspeitara de que o arremesso de Talut seria longo, mas o homem grande havia excedido de muito as suas expectativas. Não era de espantar que as pessoas houvessem duvidado de sua afirmação. Jondalar avaliou a distância com alguns passos para sentir o percurso que teria que vencer e voltou à linha de arremesso. Segurando o arremessador de lanças horizontalmente, pousou a extremidade traseira da haste da lança no encaixe que percorria a extensão do mecanismo e ajustou um buraco escavado da extremidade da lança no pequeno gancho saliente, na extremidade de trás do arremessador. Colocou seus dois primeiros dedos nas alças de couro na extremidade dianteira, o que lhe permitiu, lança e o arremessador num bom ponto de equilíbrio. Correu com o terreno até a lança ereta de Talut, puxou para trás e arremessou.
Ao fazê-lo, a extremidade traseira do arremessador de lanças se ergueu, eficazmente, aumentando de mais 60 centímetros a extensão do seu braço e ajuntando o ímpeto da força extra ao impulso do arremesso. Sua lança assobiou ao passar pelos espectadores e depois, para surpresa de todos, ultrapassou a lança ereta do chefe, e bem, por boa margem. Aterrissou horizontalmente e escorregou um pouco para frente em vez de se fincar no solo. Com o mecanismo, Jondalar havia duplicado sua própria distância anterior e, embora não tivesse conseguido duplicar a distância do arremesso de Talut, o havia ultrapassado por boa margem.
De repente, antes que o acampamento pudesse respirar de novo e marcar a diferença entre os dois arremessos, outra lança percorreu o trajeto. Tulie, surpresa, olhou para trás e viu Ayla na linha de arremesso, o arremessador de lanças ainda na mão. Ela virou a cabeça a tempo de ver a lança aterrissar. Embora o arremesso de Ayla não se igualasse ao de Jondalar, a jovem havia ultrapassado o lançamento potente de Talut, e a expressão no rosto de Tulie era de pura incredulidade.
- Você tem uma reivindicação futura em relação a mim, Jondalar - declarou Tulie. - Admito que talvez lhe tenha dado uma chance extrema para vencer Talut, mas nunca teria acreditado que a mulher pudesse fazê-lo também. Eu gostaria de ver esse... Ah... Como é que chama?
- Arremessador de lança. Não sei que outro nome lhe possa dar. Tirei a idéia de Ayla, quando eu a observava com sua funda, um dia. Fiquei pensando, se ao menos eu pudesse arremessar tão longe a minha lança, e com tanta rapidez, e tão bem quanto ela lança uma pedra com sua funda... Então, comecei a pensar em como fazê-lo - falou Jondalar.
- Falou sobre a perícia dela antes. Ela é tão boa assim, realmente? - perguntou Tulie.
Jondalar sorriu:
- Ayla, por que não pega sua funda e mostra a Tulie?
A testa de Ayla se enrugou. Ela não estava habituada a exibições. Havia aperfeiçoado seu atributo em segredo, e depois que lhe permitiram, de má vontade, caçar, só saía sozinha. Tanto para o Clã quanto para ela era desagradável que utilizasse uma arma de caça. Jondalar foi o primeiro que caçou com ela, e o primeiro a vê-la exibir sua perícia autodidata. Ela observou um instante o homem sorridente. Ele estava relaxado, confiante. Não conseguiu detectar qualquer indício avisando-a para recusar.
Ela sacudiu a cabeça concordando e foi buscar sua funda e a sacola de pedras com Rydag, a quem ela as entregara quando resolveu atirar sua lança. O menino sorriu-lhe, montado em Whinney, sentindo uma parte de excitação, encantado com a agitação que ela provocara.
Ela olhou ao redor em busca de alvos. Reparou nos ossos de costela de mamute eretos e fez pontaria neles primeiro. O som ressoante, quase musical de pedras atingindo os ossos não deixou dúvidas de que ela havia acertado nos postes, mas isso era fácil demais. Ayla olhou ao redor tentando encontrar outra coisa para mirar. Estava habituada a procurar pequenos animais e aves para caçar, não objetos em que atirar pedras.
Jondalar sabia que ela podia fazer muito mais do que acertar em postes e, lembrando-se de uma tarde durante o último verão, seu sorriso tornou-se mais amplo enquanto olhava à sua volta, depois deu uns chutes soltando alguns torrões.
- Ayla - chamou.
Ela se voltou e, abaixando os olhos para o campo de arremesso, viu-o de pé com as pernas separadas, as mãos nos quadris, e um torrão de pedra equilibrado em cada ombro. Ela franziu atesta. Ele havia feito algo semelhante alguma vez, antes, com duas pedras, e ela não gostava de vê-lo correr riscos. As pedras de uma funda podiam ser fatais. Mas, quando ela pensou a respeito, teve que admitir que era mais perigoso, aparentemente, do que na realidade. Dois objetos imóveis deviam ser um alvo fácil para ela. Não havia perdido um arremesso como aquele em anos. Por que falharia agora, somente porque acontecia que um homem sustentava os objetos - o homem que amava?
Fechou os olhos, respirou fundo, depois sacudiu a cabeça concordando de novo. Pegando duas pedras da bolsa a seus pés, no chão, juntou as duas extremidades da tira de couro e ajustou uma das pedras no bolso gasto, no meio, segurando a outra pedra em posição. Depois, levantou os olhos.
Uma imobilidade nervosa pairou e encheu os espaços vazios ao redor dos espectadores. Ninguém falou. Parecia que ninguém sequer respirava. Tudo estava silencioso, com exceção da tensão gritante no ar.
Ayla se concentrou no homem com os torrões sobre os ombros. Quando começou a mover-se, todo o acampamento se inclinou para frente, tenso. Com o movimento sutil e a graça flexível de uma caçadora experiente que aprendeu a mostrar sua intenção o mínimo possível, a jovem girou o braço e fez voar a primeira pedra.
Mesmo antes de a pedra alcançar seu alvo, ela aprontava a segunda. O torrão duro sobre o ombro direito de Jondalar explodiu com o impacto da pedra mais resistente.
Então, antes que qualquer pessoa tivesse consciência de que ela a havia lançado, a segunda pedra seguiu a primeira, pulverizando o fragmento de solo de loesse marrom-acinzentado sobre o ombro esquerdo do homem, numa nuvem de poeira. Aconteceu tão depressa que alguns dos espectadores sentiram como se não tivessem visto o arremesso, ou fosse um truque de algum tipo.
Era um truque, um truque de habilidade que poucos poderiam repetir. Ninguém ensinara Ayla a usar uma funda. Ela aprendera sozinha, observando secretamente os homens do clã de Brun, e pelo método das tentativas, e pela prática. Ela desenvolvera a técnica de arremesso duplo e rápido de pedras, como meio de defesa depois que errou um disparo uma vez e quase não conseguiu escapar do ataque de um lince. Ela ignorava que a maioria das pessoas teriam dito que isso era impossível; não houvera ninguém para lhe falar.
Embora não o percebesse, era duvidoso que jamais encontrasse alguém que se igualasse à sua perícia, e isso não tinha a menor importância para ela. Competir com outra pessoa para ver quem era melhor não lhe interessava. Sua única competição era consigo mesma; seu único desejo era superar sua própria marca. Conhecia suas possibilidades e quando pensava em uma nova técnica, como o arremesso de duas pedras ou caçar a cavalo, tentava várias abordagens e quando encontrava uma que parecia funcionar, treinava-a até poder executá-la.
Em toda atividade humana poucas pessoas, através de concentração e treinamento, e desejo profundo, podem tornar-se tão hábeis que excedam todas as outras. Ayla era mesmo uma expert com sua funda.
Houve um momento de silêncio enquanto as pessoas respiravam; depois, murmúrios de surpresa.
Em seguida, Ranec começou a bater nas próprias coxas com as mãos. Logo, todo o acampamento aplaudia da mesma maneira. Ayla não tinha certeza do que aquilo significava e olhou para Jondalar. Ele inclinava a cabeça com prazer, e ela começou a perceber que o aplauso era sinal de aprovação.
Tulie aplaudia também, embora de forma um pouco mais contida do que alguns outros, não querendo parecer impressionada demais, embora Jondalar tivesse certeza de que ela o estava.
- Se acham que aquilo foi uma coisa espetacular, observem isto! - disse ele, abaixando-se para pegar mais dois torrões de terra. Atirou os dois torrões ao ar de uma só vez. Ayla desfez um e depois o outro em uma explosão de poeira e terra caindo. Ele lançou ao ar mais dois, e ela os explodiu antes de atingirem o solo.
Os olhos de Talut brilhavam de excitação.
- Ela é boa! - exclamou ele.
- Você atira dois para cima - disse-lhe Jondalar. Depois, encontrou os olhos de Ayla e pegou mais dois torrões e ergueu-os para mostrá-los a ela. Ela enfiou a mão na sacola e tirou-a, segurando quatro pedras, duas em cada mão. Seria preciso uma coordenação excepcional apenas para preparar e atirar quatro pedras com uma funda, antes que quatro torrões de terra lançados ao ar caíssem novamente ao solo, mas fazê-lo com exatidão suficiente para atingi-los seria um desafio que, certamente, testaria sua habilidade. Jondalar ouviu Barzec e Manuv apostarem entre si; Manuv apostou em Ayla. Depois de salvar a vida da pequena Nuvie, ele estava seguro de que Ayla era capaz de fazer qualquer coisa.
Jondalar lançou os torrões para cima, um após o outro, com sua mão direita firme, enquanto Talut lançava mais dois torrões ao ar, o mais alto possível.
Os dois primeiros, um de Jondalar, e outro de Talut, foram atingidos em sucessão rápida. A poeira choveu da colisão, mas Ayla precisou de tempo extra para passar as pedras adicionais de uma das mãos para a outra. O outro torrão de Jondalar caía e o de Talut se movia mais lentamente ao se aproximar do topo de seu arco, antes que Ayla estivesse pronta para usar a funda de novo. Ela mirou o alvo mais baixo, ganhando velocidade ao descer, e atirou-lhe uma pedra com sua funda.
Observou a pedra atingir o alvo, esperando mais tempo do que deveria para estender a mão, mais uma vez, para a extremidade solta da funda. Teria que se apressar.
Com um movimento veloz, Ayla colocou a última pedra na funda, e em seguida, mais depressa do que se poderia acreditar, lançou-a novamente, despedaçando o último torrão pouco antes de ele alcançar o solo.
O acampamento irrompeu em gritos de aprovação e congratulações, e palmas, batendo as mãos nas coxas.
- Foi uma exibição e tanto, Ayla! - exclamou Tulie, a voz cálida, elogiosa. - Acho que nunca vi ninguém fazer uma coisa assim.
- Agradeço - respondeu Ayla, corada de prazer pela resposta da chefe, assim como por sua façanha. Mais pessoas se aglomeraram à sua volta, cheia de elogios. Ela sorriu timidamente e depois olhou para Jondalar, sentindo-se um pouco constrangida com toda a atenção recebida. Ele falava a Wymez e Talut, que tinha Rugie aos ombros e Latie ao seu lado. E viu Ayla olhá-lo e sorriu, mas continuou a conversar.
- Ayla, como aprendeu a manejar uma funda assim? - perguntou Deegie.
- E onde? Quem lhe ensinou? - indagou Crozie.
- Eu gostaria de aprender a fazer isso - acrescentou Danug, com timidez. O rapazola alto estava de pé atrás dos outros, olhando para Ayla com adoração. Na primeira vez em que a vira, ela lhe provocara estímulos jovens. Ele achou que era a mulher mais bonita que já havia visto, e Jondalar, a quem admirava, tinha muita sorte. Mais depois do seu passeio a cavalo e, agora, da exibição de perícia dela, seu interesse incipiente desabrochara, de súbito, numa paixão amadurecida.
Ayla enviou-lhe um sorriso hesitante.
- Talvez nos instrua, quando você e Jondalar nos mostrarem seu arremessador de lanças - sugeriu Tulie.
- Sim. Eu não me importaria em saber como usar uma funda desse jeito, mas o arremessador de lanças parece interessante, realmente, se for razoavelmente preciso - ajuntou Tornec.
Ayla recuou. As perguntas e a aglomeração a deixavam nervosa.
- O arremessador de lanças é preciso - disse ela, recordando quanto diligentemente ela e Jondalar tinham treinado com o implemento. Nada era acurado por si mesmo.
- É sempre assim. A mão e o olho fazem o artista, Ayla - falou Ranec, estendendo a mão para a dela e encarando-a. - Por acaso, sabia como estava bonita e graciosa? Você é uma artista com uma funda.
Os olhos escuros que fixavam os dela forçaram-na a perceber a forte atração e arrancaram da mulher existente nela uma resposta tão antiga quanto a própria vida. Mas seu coração bateu com um aviso também; aquele não era o homem certo. Não era o homem que ela amava. O sentimento que Ranec provocava nela era inegável, porém de natureza diferente.
Ela desviou os olhos e procurou freneticamente por Jondalar... E o achou. Ele os fitava e seus olhos de vivo azul estavam repletos de fogo e gelo, e de dor.
Ayla puxou a mão, libertando-a da de Ranec e retrocedeu. Era demais. Todas as perguntas e o grupo de gente e emoções incontroláveis esmagavam-na. Seu estômago se apertou em um nó, o peito se oprimiu, a garganta doeu; ela precisava se afastar. Viu Whinney com Rydag montado ainda e, sem pensar, agarrou o saco de pedras com a mão que ainda segurava a funda enquanto corria em direção à égua.
Montou de um salto e passou um braço protetor ao redor do garoto enquanto se inclinava à frente. Com os sinais de pressão e movimento, e a comunicação sutil, inexplicável entre animal e mulher, Whinney sentiu a necessidade de Ayla escapar e, dando um salto inicial, galopou pelas planícies abertas, rapidamente. Racer seguiu a mãe, acompanhando-a sem dificuldade.
As pessoas do Acampamento do Leão surpreenderam-se. A maioria não imaginava por que Ayla correra para a égua, e somente alguns a tinham visto cavalgar com energia. A mulher, o cabelo comprido e louro esvoaçando ao vento, agarrada ao dorso da égua que galopava, era uma visão assombrosa e terrível, e mais de uma pessoa teria trocado, alegremente, de lugar com Rydag.
Nezzie sentiu um vislumbre de preocupação por ele, mas sentindo que Ayla não o deixaria ferir-se, relaxou.
O menino ignorava por que lhe tinha sido concedido aquele prazer raro, mas seus olhos brilhavam de deleite. Embora a excitação apertasse-lhe um pouco o coração, com o braço de Ayla à sua volta, ele não sentia medo, somente um assombro ofegante por estar correndo ao vento.
A fuga da cena de sua infelicidade e a sensação e som familiares da égua aliviaram a tensão de Ayla. Ao relaxar, notou o coração de Rydag batendo contra seu braço com seu som grave, indistinto, peculiar e teve um instante de preocupação. Perguntou-se se havia sido prudente ao levá-lo consigo, e depois compreendeu que a batida do coração, apesar de anormal, não estava indevidamente acentuada.
Ela reduziu a velocidade do animal e, fazendo um largo círculo, voltou. Quando se aproximaram da pista de arremesso, passaram próximos a duas ptármigas escondidas no capim alto, cuja plumagem malhada de verão ainda não estava totalmente mudada para o branco do inverno. Os cavalos as levantaram. Por hábito, quando subiram ao ar, Ayla aprontou sua funda, abaixou depois os olhos e viu que Rydag tinha duas pedras na mão, tiradas da bolsa que segurava diante de si. Ela as pegou e, guiando Whinney com as coxas, derrubou uma das aves gordas que voava baixo, e depois a outra.
Fez Whinney parar e, segurando Rydag, escorregou das costas da égua com o garoto nos braços.
Colocou-o no solo e recuperou as aves. Torceu-lhes os pescoços e, com algumas hastes fibrosas de feno ereto, amarrou-as juntas pelos pés emplumados. Embora pudessem voar rapidamente e para longe quando queriam, as ptármigas não voavam para o sul. Em vez disso, com o inverno rigoroso, desenvolviam-se penas brancas nelas que camuflavam e aqueciam seus corpos e faziam sapatos adequados para a neve a seus pés. Elas suportavam a estação difícil, alimentando-se de sementes e brotos e, quando havia nevasca, escavavam pequenas cavernas na neve para esperar que a intempérie passasse.
Ayla colocou Rydag sobre o dorso da égua, de novo.
- Quer segurar as ptármigas? - perguntou por um sinal.
- Você deixa? - respondeu ele ao sinal, sua alegria pura revelando-se em mais do que seus sinais manuais. Ele jamais correra velozmente somente pelo prazer de fazê-lo; pela primeira vez na vida sentiu a sensação. Nunca havia caçado ou compreendido, realmente, os sentimentos complexos que vinham do exercício de inteligência e perícia na busca do seu sustento e do seu povo, ou família.
Isso era o mais perto a que já chegara; o mais perto a que poderia chegar.
Ayla sorriu, colocou as aves sobre a cernelha de Whinney, diante de Rydag, depois se virou e começou a caminhar em direção ao campo de arremesso. Whinney a seguiu. Ayla não tinha pressa de voltar, ainda estava aborrecida recordando o olhar irado de Jondalar. Por que ele ficara tão zangado? Em um momento ele lhe sorria, satisfeito... Quando todos se reuniam à sua volta. Mas quando Ranec... Ela corou, lembrando-se dos olhos escuros, da voz agradável. Outros! Pensou, sacudindo a cabeça como se quisesse clarear sua mente. Não compreendo esses Outros!
O vento soprando de suas costas atirava anéis de cabelo comprido em seu rosto. Aborrecida, ela os afastava com a mão. Ela havia pensado várias vezes sobre trançar o cabelo, como o havia usado quando vivia sozinha no vale, mas Jondalar gostava dele solto. Assim ela o deixava caído. Era um aborrecimento, às vezes. Depois, com uma ponta de irritação, notou que ainda segurava a funda na mão porque não tinha lugar para colocá-la, nenhuma correia adequada para enfiá-la. Não era sequer capaz de carregar a sacola de medicamentos, com aquelas roupas que usava, porque Jondalar gostava delas; ela sempre a havia amarrado à tira de couro que mantinha sua capa fechada.
Ergueu a mão para empurrar o cabelo de sobre os olhos novamente e então notou a funda. Parou, e afastando o cabelo dos olhos, enrolou a funda flexível de couro ao redor da cabeça. Enfiando a ponta solta embaixo, sorriu, satisfeita consigo mesma. Parecia funcionar. Seu cabelo ainda lhe caía solto pelas costas, mas a funda mantinha-o longe dos olhos, e sua cabeça parecia ser um bom local para levar a funda.
A maioria das pessoas imaginou que o salto fugitivo de Ayla sobre Whinney e a cavalgada rápida terminando com a morte das ptármigas eram parte de sua exibição com a funda. Ela se conteve para não corrigi-las, mas evitou olhar para Jondalar e Ranec.
Jondalar sabia que estava aborrecida quando se virou e correu, e tinha certeza de que a culpa fora dele. Ele lamentava e se censurou mentalmente, porém tinha dificuldade em enfrentar aquelas emoções desconhecidas e confusas, e não sabia como dizer a Ayla. Ranec não percebera a profundidade da infelicidade de Ayla. Sabia que provocava algum sentimento nela e suspeitava de que isso talvez houvesse contribuído para sua corrida desconcertada em direção à égua, mas achou suas ações ingênuas e encantadoras. Encontrava-se cada vez mais atraído por ela e se perguntava quão forte seria o sentimento dela pelo grande homem louro.
As crianças subiam e desciam o local de arremesso novamente, correndo, quando Ayla voltou.
Nezzie veio pegar Rydag e levou as aves também. Ayla liberou os cavalos. Eles se afastaram e começaram a pastar. Ayla ficou para observar, quando um desacordo amistoso levou várias pessoas a uma competição informal de arremesso de lanças, o que, em seguida, as conduziu a uma atividade além de seu campo de experiência. Jogaram um jogo. Ela entendia as competições, disputas que testavam as aptidões necessárias - quem corria mais ou atirava uma lança mais longe -, mas não uma atividade cujo objetivo parecia ser simplesmente diversão, com a prova ou aperfeiçoamento de habilidades essenciais, incidentais.
Trouxeram várias argolas da moradia. Eram mais ou menos do tamanho que se ajustaria a uma coxa, e feitas de tiras de couro cru molhado, trançadas e postas a secar para endurecer, depois envolvidas apertadamente com gramíneas. Dardos emplumados e aguçados - lanças pequenas, mas sem pontas de osso ou sílex - também eram parte do equipamento.
As argolas eram roladas ao solo e atiravam-se dardos nelas. Quando alguém detinha uma argola lançando um dardo através de sua abertura e cravando-o no solo, gritos e aplausos com tapas nas coxas demonstravam aprovação. O jogo, que também envolvia palavras de contagem e aquela coisa de apostar. Tanto homens quanto mulheres jogavam, mas revezavam-se rolando as argolas e atirando os dardos, como se fossem adversários.
Finalmente, chegou-se a um término. Várias pessoas se dirigiram à habitação. Deegie, corada de entusiasmo, estava entre elas. Ayla se reuniu ao grupo.
- Este dia parece ter-se tornado festa - disse Deegie. - Jogos, competições, e acho que teremos um verdadeiro banquete. O assado de Nezzie, a bebida de Talut, o prato de Ranec. O que vai fazer com as ptármigas?
- Gosto de cozinhá-las de modo especial. Acha que devo?
- Por que não? Daria ao banquete outro prato especial.
Antes de chegarem à moradia, eram evidentes os preparativos para a festa nos odores deliciosos de alimentos que se estendiam até o lado de fora em promessa torturante. O assado de Nezzie era amplamente responsável. Cozinhava calmamente no grande couro de cozinha, naquele momento aos cuidados de Latie e Brinan, embora todos parecessem envolvidos, de alguma forma, com a preparação de alimentos. Ayla se interessava no arranjo de cozinhar o assado e vira Nezzie e Deegie o prepararem.
Num grande caldeirão que fora escavado próximo a uma fogueira, carvões em brasa foram colocados sobre cinzas acumuladas por uso anterior, que revestiam o fundo. Uma camada de esterco seco, pulverizado, de mamute foi derramada sobre os carvões, e sobre isso fora colocado um grande pedaço de couro cru de mamute sustentado por uma armação, e cheio de água. Os carvões ardendo sob o esterco começaram a aquecer a água, mas, quando o estrume pegou fogo, já havia sido queimado suficiente combustível fazendo com que o couro não descansasse mais sobre ele, mas fosse seguro pela armação. O líquido que atravessava lentamente o couro, embora fervesse, o impedia de incendiar-se. Quando o combustível sob o couro de cozinhar ardeu totalmente, o assado foi mantido em fervura pela adição de pedras incandescentes do rio aquecidas previamente na fogueira, uma tarefa da qual algumas crianças se ocupavam.
Ayla depenou as duas ptármigas e as estripou, usando uma pequena faca de sílex. Não tinha cabo, mas à parte de trás havia sido retocada, era rombuda para evitar que o usuário se cortasse e fora feito um furo atrás da ponta. Era segura com o polegar e o dedo indicador a cada lado, e o indicador no furo, facilitando o seu manejo. Não era uma faca para trabalho pesado, somente para cortar carne ou couro, e Ayla só havia aprendido a usá-la depois que chegara, mas a achava muito conveniente.
Ela sempre havia cozido suas ptármigas numa cavidade ladeada por pedras, em que acendia um fogo e permitia que se apagasse antes de as aves serem colocadas no buraco e cobertas. No entanto, não era fácil encontrar pedras grandes naquela região, e ela resolveu adaptar a cavidade da estufadeira para seu uso. Era a estação errada para as folhas que gostava de utilizar - tussilagem, urtigas, fedegosa - e para ovos de ptármiga, ou teria recheado a cavidade com elas, mas algumas das ervas em sua sacola de remédios, usadas com critério, também eram boas para tempero, tanto quanto para curar, e o feno em que envolvera as aves somava um odor sutil e próprio. Talvez não fosse exatamente o prato favorito de Creb quando ela terminasse, mas achava que as ptármigas teriam bom sabor.
Quando acabou de limpar as aves, entrou e viu Nezzie na primeira fogueira acendendo um fogo na grande lareira.
- Gostaria de cozinhar as ptármigas na cavidade, como você faz o assado. Posso usar os carvões cortados para queimar? - perguntou Ayla.
- Claro. Precisa de mais alguma coisa?
- Tenho ervas secas. Gosto de folhas frescas nas aves. Mas é estação errada.
- Pode olhar no local de estocagem. Há algumas outras plantas que pode pensar em usar, e temos sal - ofereceu Nezzie.
Sal, pensou Ayla. Não cozinhava com sal desde que deixara o Clã.
- Sim, gostaria de sal. Talvez plantas. Vou olhar. Onde encontro carvão?
- Eu lhe darei o carvão, assim que isto estiver adiantado.
Ayla observou Nezzie acender o fogo, preguiçosamente a princípio, sem prestar muita atenção, mas depois ficou intrigada. Sabia, mas não havia pensado realmente a respeito antes, que eles não tinham muitas árvores. Queimavam osso para combustível, e osso não queimava muito facilmente. Nezzie produzira uma pequena brasa de outra fogueira, e com ela incendiara urna felpa de vagens de estramônio colhidas para fazer iscas para fogo. Acrescentara esterco seco, que formou uma chama mais forte e mais quente e, depois, pequenas lascas e raspas de osso. Não pegaram fogo bem.
Nezzie soprou para que o fogo se mantivesse, enquanto movia um pequeno instrumento que Ayla não notara antes. Ayla ouviu um leve som de vento assobiando, notou algumas cinzas rodopiando e viu a chama se tornar mais viva. Com a chama avivada, as lascas de osso começaram a queimar nas bordas, incendiando-se depois. E, de repente, Ayla compreendeu a fonte de algo que a estivera atormentando, algo que mal tinha notado, mas que a incomodava desde sua chegada ao Acampamento do Leão. O cheiro da fumaça era diferente.
Ela havia queimado esterco seco, ocasionalmente, e estava habituada ao odor forte e penetrante de sua fumaça, mas seu primeiro combustível fora de origem vegetal; estava acostumada ao cheiro de fumaça de lenha. O combustível utilizado pelo Acampamento do Leão era de origem animal. O odor de osso queimando tinha uma característica diferente, uma qualidade que lembrava o cheiro de uma carne deixada tempo demasiado ao fogo. Em combinação com o esterco seco, que também usavam em grandes quantidades, um odor diferente, forte, impregnava todo o acampamento. Não era desagradável, mas desconhecido, o que lhe provocava leve inquietação. Agora, que identificara a causa, uma certa tensão indefinida diminuiu.
Ayla sorriu enquanto observava Nezzie acrescentar mais osso, e ajustar a pequena alavanca que o fazia ficar mais quente.
- Como faz isso? Perguntou ela. - Esquenta tanto o fogo?
- O fogo também precisa respirar, e o vento é a respiração do fogo. A Mãe nos ensinou isso quando fez as mulheres zeladoras da fogueira. Pode vê-lo quando sopra o fogo e ele se aquece mais. Escavamos um fosso de sob a fogueira até o exterior para trazer o vento para dentro. A vala é revestida com os intestinos de um animal que se enchem de ar antes de secar, depois são cobertos com osso antes de se colocar a terra de volta. A vala para esta fogueira sai por aquele lado, sob as esteiras de capim. Está vendo?
Ayla olhou para o local assinalado e balançou a cabeça afirmativamente.
- Entra aqui - continuou a mulher, mostrando-lhe um chifre oco de bisão projetando-se de uma abertura ao lado do buraco do fogo, que era mais baixo do que o nível do solo. - Mas nem sempre a gente quer a mesma quantidade de vento. Depende da intensidade com que está soprando lá fora e de quanto fogo se quer. Você bloqueia o vento ou o libera
- concluiu Nezzie, mostrando-lhe a manivela amarrada a um registro feito de omoplata.
A idéia parecia bastante simples, mas era uma invenção engenhosa, uma verdadeira conquista técnica, e essencial para a sobrevivência. Sem ela, os Caçadores de Mamutes não poderiam viver nas estepes subárticas, exceto em alguns locais isolados, apesar de toda a abundância de caça. No máximo, seriam visitantes sazonais. Numa terra quase desprovida de árvores e com os invernos rigorosos só conhecidos quando as geleiras avançam sobre a terra, a lareira de ar artificial lhes permitia queimar osso, o único combustível em quantidades suficientes para ocupação de ano inteiro.
Depois de Nezzie acender o fogo, Ayla examinou os recintos de estocagem para ver se havia alguma coisa que lhe agradasse para rechear as ptármigas. Ficou tentada por alguns embriões secos de ovos de pássaros, mas provavelmente teriam de ser postos de molho e ela ignorava quanto tempo isto levaria. Pensou em usar cenouras silvestres ou as ervilhas de vagens de astrágalo, mas mudou de idéia.
Então, viu o recipiente entrelaçado que ainda continha a papa de cereais e verduras que ela havia cozido àquela manhã. Fora posta de lado para o almoço por desejo de todos e havia engrossado e consolidado. Ela provou. Sem sal, as pessoas preferiam sabores distintos, picantes, e ela havia temperado a papa com salva e hortelã, e adicionado beldroega, cebolas e cenouras silvestres para serem misturadas ao centeio e à cevada.
Com um pouco de sal, pensou, e as sementes de girassol que vira num local de estocagem, e as groselhas... E talvez a unha-de-cavalo e frutos de roseira de sua sacola de remédios, talvez conseguisse um recheio interessante para as ptármigas. Ayla preparou e recheou as aves, envolveu-as em feno recém-cortado e enterrou-as num buraco com alguns carvões de osso, cobrindo-os com cinzas. Depois, foi ver o que as outras pessoas faziam.
Havia muita atividade perto da entrada da moradia e a maior parte do acampamento se reunira ali.
Ao se aproximar mais, viu as grandes pilhas de hastes de cereais colhidas. Algumas pessoas debulhavam, pisavam, malhavam e trilhavam maços de hastes para libertar o grão da palha e cascas. Outras removiam o joio que restava, atirando ao ar o grão de uma bandeja achatada de joeirar, feita de palha de salgueiro, para que as cascas voassem longe. Ranec colocava o cereal num pilão feito de osso de pé de mamute esvaziado, prolongado por uma parte de osso da perna. Ele pegou uma presa de mamute, cortada transversalmente, que servia como mão de almofariz, e começou a socar os grãos.
Barzec logo tirou sua parka de pele e, de pé, em posição oposta a Ranec, pegou alternadamente a presa de mamute, de forma ao trabalho se dividir para trás e para frente, entre os dois. Tornec começou a bater palmas acompanhando o ritmo e Manuv captou-o com um refrão repetitivo, cantado:
I-yah wo-wo, Ranec socando grãos, yah!
I-yah wo-wo, Ranec socando grãos, neh!
Depois, Deegie entrou com a cadência alternativa, em harmonia com uma frase contrastante.
Neh neh neh neh, Barzec torna a coisa difícil, yah!
Neh neh neh neh, Barzec torna a coisa difícil, nah!
Imediatamente outros bateram com as mãos nas coxas e vozes masculinas cantaram com Manuv, enquanto as mulheres se juntavam a Deegie. Ayla sentiu o ritmo forte e cantarolou baixinho, não inteiramente certa, sobre participar, mas divertindo-se.
Depois de certo tempo, Wymez, que havia tirado a parka, se aproximou mais de Ranec e, ficando a seu lado, substituiu-o sem falhar uma batida. Manuv foi igualmente rápido para mudar o refrão e, na batida seguinte, cantou um novo verso:
Nah nah we-ye, Wymez pega o moedor, yoh!
Quando Barzec pareceu cansado, Druwez tirou-o dele e Deegie mudou sua frase. Depois, Frebec teve a sua vez.
Pararam, então, para verificar os resultados e derramaram o grão em pó numa cesta de joeirar, feita de folhas trançadas de tifáceas, sacudindo-a. Depois, colocaram mais grão no pilão de osso, mas desta vez Tulie e Deegie pegaram o pilão de presa de mamute. Manuv inventou um refrão para ambas, mas cantou a parte feminina numa voz de falsete que fez todos rirem. Nezzie tomou o lugar de Tulie e, num impulso, Ayla colocou-se ao lado de Deegie, o que provocou sorrisos e gestos de aprovação de cabeça.
Deegie abaixou a presa e soltou-a. Nezzie estendeu a mão e ergueu-a enquanto Ayla ocupava o lugar de Deegie. Ayla ouviu um “ih!” Quando o pilão foi batido de novo com força e agarrou a haste de marfim espessa, ligeiramente curvada. Era mais pesada do que ela esperava, mas levantou-a e ouviu Manuv cantar:
A -yah wa-wa, Ayla é bem-vinda aqui, nah!
Ela quase deixou cair a presa de mamute. Não esperava o gesto espontâneo de amizade e, na batida seguinte, quando todo o acampamento, tanto os homens quanto as mulheres, cantou juntou o verso, ficou tão comovida que teve que pestanejar para esconder as lágrimas. Era mais do que uma simples mensagem de afeto e amizade; era aceitação. Ela encontrara os Outros, e eles a tinham acolhido bem.
Tronie substituiu Nezzie e, depois de certo tempo, Fralie fez um movimento na direção delas, mas Ayla sacudiu a cabeça negativamente e a mulher grávida recuou, concordando prontamente. Ayla ficou contente por Fralie ter agido assim, mas também sentiu sua suspeita confirmada de que Fralie não se sentia bem. Continuaram a triturar o grão até Nezzie detê-las para derramá-lo na cesta e tornar a encher o pilão.
Desta vez, Jondalar deu um passo à frente para revezar na tarefa tediosa e difícil de moer o grão manualmente, que se tornava mais fácil pelo esforço comum e diversão. Mas franziu a testa quando Ranec avançou também. De repente, a tensão entre o homem de pele escura e o visitante louro carregou o ambiente amistoso com uma tendência oculta e sutil de inimizade.
Quando os dois homens, alternando a presa pesada entre si, começaram a retomar o ritmo, todos o sentiram. Enquanto continuaram a acelerar, as cantigas morreram, mas algumas pessoas começaram a bater os pés, e o ruído se tornou mais alto e agudo. lmperceptivelmente, Jondalar e Ranec aumentaram a força juntamente com o ritmo e, em vez de um trabalho de esforço mútuo, se tornou uma competição de força e vontade. O pilão era golpeado com tanta força por um homem, que saltava para o outro agarrá-lo e batia novamente, baixando.
O suor gotejava de suas testas, escorria pelos rostos e penetrava nos olhos. Empapava suas túnicas enquanto continuavam instigando um ao outro, mais depressa e duramente, esmagando o pilão grande e pesado no grão, um após o outro, para trás e para frente. Parecia que continuaria para sempre, mas eles não desistiriam. Respiravam com dificuldade, mostrando sinais de esforço e fadiga, mas recusavam-se a parar. Nenhum dos dois queria ceder para o outro; era como se preferissem morrer primeiro.
Ayla estava fora de si. Eles empurravam com demasiada força. Olhou para Talut com pânico. Talut balançou a cabeça para Danug e os dois avançaram em direção aos homens teimosos que pareciam determinados a se matar.
- É hora de ceder a vez a outro! - trovejou Talut, enquanto afastava Jondalar do caminho e agarrava o pilão. Danug tirou-o de Ranec no ricochete.
Os dois homens estavam tão atordoados pela exaustão, que mal pareciam entender que a competição terminara quando cambalearam, afastando-se, arquejando em busca de ar. Ayla quis correr para ajudá-los, mas a indecisão a manteve onde estava. Sabia que, de alguma forma, ela era a causa da luta deles, e não importava a qual deles se dirigisse primeiro, o outro perderia o prestígio. As pessoas do acampamento estavam preocupadas também, mas relutavam em oferecer auxílio. Temiam que, se expressassem sua preocupação, estariam reconhecendo que a competição entre os dois homens era mais que um jogo, e dariam crédito a uma rivalidade que ninguém estava preparado para levar tão a sério.
Enquanto Jondalar e Ranec começavam a recuperar-se, a atenção se desviou para Talut e Danug, que ainda amassavam o grão - e fazendo uma competição disso. Uma competição amigável, mas não menos intensa. Talut sorria para a cópia jovem de si mesmo enquanto esmagava o pilão com o marfim sobre o osso. Danug, sem sorrir, golpeava-o de volta com determinação implacável.
- Muito bem, Danug! - gritou Tornec.
- Ele não tem chance - contra-atacou Barzec.
- Danug é mais jovem - falou Deegie. - Talut desistirá primeiro.
- Ele não tem o vigor de Talut - discordou Frebec.
- Ainda não tem a força de Talut, mas Danug tem vigor - falou Ranec. Afinal, tinha conseguido respirar suficientemente bem para acrescentar o comentário. Embora ainda sofresse de cansaço, viu a competição como uma forma de fazer sua disputa com Jondalar parecer menos que o esforço sério e fatal que havia sido.
- Vamos, Danug! - gritou Druwez.
- Pode conseguir! - acrescentou Latie, envolvida pelo entusiasmo, embora não estivesse certa se dirigia a Danug ou Talut.
De repente, com um golpe duro de Danug, o osso do pé estalou.
- Já chega! - esbravejou Nezzie, removendo o conteúdo do pilão.
- Não é preciso socar tão duramente até quebrar o almofariz. Agora, precisamos de um novo e acho que você deve fazê-lo, Talut.
- Acho que tem razão! - exclamou Talut, inclinando a cabeça de leite. - Foi um bom competidor, Danug. Você se tornou forte enquanto esteve fora. Viu o garoto, Nezzie?
- Veja isto! - exclamou Nezzie, removendo o conteúdo do almofariz. - Este grão se tornou pó! Eu o queria apenas partido. Para secá-lo tostá-lo e estocá-lo. Não posso tostar este para conservá-lo.
- Que tipo de grão é? Perguntarei a Wymez, mas acho que o povo de minha mãe fazia alguma coisa do grão pulverizado - disse Ranec. - Levarei um pouco, se ninguém mais o quiser.
- É trigo, em sua maioria, mas há também centeio e aveia mistura Tulie já tem o suficiente para pequenos pães de grãos moídos de que todo mundo gosta, têm apenas que ser cozidos. Talut queria algum grão misturar ao amido da raiz de tabua para sua bebida. Mas, pode ficar todo ele, se quiser. Trabalhou para isso.
- Talut também. Se ele quiser um pouco, pode ficar-disse Ranec;
- Use o que quiser, Ranec. Levarei o que sobrar - falou Talut
O amido da raiz de tabua que tenho empapado está começando a fermentar. Não sei o que aconteceria se eu pusesse isto nele, mas poderia ser interessante tentar e ver.
Ayla observava Jondalar e Ranec para assegurar-se de que estavam bem. Quando viu Jondalar tirar a túnica suada, esparrinhar água sobre si e entrar na habitação, notou que não sofrera qualquer conseqüência prejudicial. Então, sentiu-se um pouco tola por se preocupar tanto com ele. Era um homem forte, vigoroso, afinal de contas, com certeza um pouco de esforço não lhe faria mal, nem a Ranec, tampouco. Mas evitou os dois. Estava confusa pelas ações deles, e pelos próprios sentimentos, e queria algum tempo para pensar.
Tronie saiu da porta em arco da habitação, parecendo aflita. Segurava Hartal sobre um dos quadris, e um prato de osso, raso, carregado de cestas e implementos sobre o outro. Ayla correu até ela.
- Ajudo? Posso carregar Hartal? - perguntou.
- Oh, faria isso? - disse a jovem mãe, entregando o bebê a Ayla.
- Todo mundo andou cozinhando e preparando comida especial hoje e eu queria fazer algo para a festa também, mas acabei me distraindo. E depois Hartal acordou. Eu lhe dei de comer, mas ele não está com vontade de dormir de novo, ainda.
Tronie encontrou um local para se espalhar perto da grande fogueira externa. Segurando o bebê, Ayla observou Tronie derramar sementes de girassol descascadas no prato de osso, raso, tirando-as de uma das cestas. Com um pedaço de osso da canela - Ayla achou que vinha de um rinoceronte lanoso -, Tronie amassou as sementes até formarem uma pasta. Depois de amassar mais algumas porções de sementes, ela encheu outra cesta com água. Pegou duas lascas retas de osso, que tinham sido esculpidas e moldadas para essa finalidade e, com uma das mãos, habilmente, puxou pedras quentes para cozinhar, do fogo. Com um silvo e uma nuvem de vapor, afundou as pedras na água, tirou outras esfriadas e acrescentou mais algumas quentes até haver fervura. Então, acrescentou a pasta de girassol. Ayla estava curiosa.
O cozimento liberou o óleo das sementes e, com uma concha grande, Tronie tirou a nata e derramou-a em outro recipiente, desta vez feito de casca de vidoeiro. Quando havia escumado tanto quanto possível, ajuntou cereal silvestre partido de alguma variedade indistinguível e pequenas sementes de quenopódio escuro à água fervente, temperando-a com ervas, e ajuntou mais pedras de cozinhar para mantê-la fervendo. Os recipientes de vidoeiro foram postos de lado para esfriar até que a manteiga de semente de girassol solidificasse. Ela deixou Ayla provar da ponta da concha e esta concluiu que era uma delícia.
- E especialmente gostosa nos bolos de Tulie - disse Tronie. - Por isto eu queria fazê-la. Enquanto tinha água fervente, pensei que também poderia fazer alguma coisa para o café de amanhã. Ninguém tem muita vontade de cozinhar de manhã, depois de uma grande festa, mas as crianças, no mínimo, gostam de comer. Muito obrigado por me ajudar com Hartal.
- Não agradeça, é um prazer. Há muito tempo que não carrego um bebê - disse Ayla, e compreendeu que era verdade. Encontrou-se olhando atentamente para Hartal, comparando-o, em sua mente, com os bebês do Clã. Hartal não tinha sobrancelhas totalmente desenvolvidas, mas tampouco os bebês do Clã as tinham. Sua testa era mais reta e a cabeça mais redonda, mas não eram, realmente, tão diferentes naquela tenra idade, pensou, exceto que Hartal ria e soltava risadinhas e arrulhava, e os bebês do Clã não produziam tantos sons.
O bebê começou a se agitar um pouco quando sua mãe foi lavar os implementos. Ayla o sacudiu em seu joelho, depois mudou sua posição até ficar olhando para ele. Conversou com ele e observou sua resposta interessada. Isso o satisfez por algum tempo, mas não muito. Quando se aprontou para chorar de novo, Ayla assobiou para ele. O som o surpreendeu e ele parou para ouvir. Ela tornou a assobiar, desta vez imitando o canto de uma ave.
Ayla havia passado muitas longas tardes, quando estava sozinha em seu vale, treinando gritos e trinados de pássaros. Tornara-se tão adepta de imitar pássaros cantando, que algumas variedades atendiam ao seu assobio, porém essas aves não eram exclusivas do vale.
Ao assobiar para entreter o bebê, algumas aves pousaram perto, e começaram a bicar os grãos e sementes que tinham caído das cestas de Tronie. Ayla as viu, assobiou de novo e estendeu um dedo. Depois de alguma cautela inicial, um corajoso tentilhão pousou em seu dedo.
Cuidadosamente, com assobios que acalmavam e intrigavam a pequena criatura, Ayla pegou-o e aproximou-o mais para que o bebê o visse. Uma risadinha deleitada e um dedo rechonchudo estendido o assustaram.
Então, para sua surpresa, Ayla ouviu aplausos. O som de mãos batendo em coxas a fez erguer a cabeça e ver os rostos da maioria das pessoas do acampamento sorrindo para ela.
- Como faz isso, Ayla? Conheço algumas pessoas que imitam uma ave, ou um animal, mas você o faz tão bem que os engana - disse Tronie.
- Nunca encontrei ninguém com tanto domínio sobre os animais.
Ayla corou, como se tivesse sido apanhada fazendo alguma coisa... Incorreta, apanhada no ato de ser diferente. Apesar de todos os sorrisos e aplausos, ela se sentia pouco à vontade. Não sabia como responder à pergunta de Tronie. Ignorava como explicar que, quando você está inteiramente sozinha, tem todo o tempo do mundo para treinar um assobio semelhante ao som de um pássaro. Quando não existe ninguém no mundo ao seu lado, um cavalo ou até mesmo um leão lhe podem servir de companhia. Quando você não sabe se existe alguém no mundo como você, procura contato com alguma coisa viva sempre que pode.
Houve calmaria nas atividades do Acampamento do Leão no inicio da tarde. Embora sua maior refeição do dia fosse, geralmente, mais ou menos ao meio dia, a maior parte das pessoas não fez a refeição do meio-dia, ou aproveitou as sobras da manhã, na expectativa de uma festa que prometia ser deliciosa, apesar de não ter sido planejada. As pessoas relaxavam; algumas cochilavam, outras vigiavam a comida de vez em quando, poucas falavam em voz baixa, mas havia uma sensação de excitação no ar e todo mundo esperava uma noite especial.
Dentro da habitação comunal, Ayla e Tronie ouviam Deegie, que lhes contava os detalhes de sua visita ao Acampamento de Branag, e os preparativos para a sua união. Ayla ouvia com interesse, a princípio, mas quando as duas jovens Mamutoi começaram a falar sobre este parente ou aquela amiga, nenhum deles seu conhecido, ela se levantou com um comentário sobre verificar as ptármigas e saiu. A conversa de Deegie sobre Branag e seu próximo matrimônio fez Ayla pensar em sua relação com Jondalar. Ele havia dito que a amava, mas nunca propusera uma união com ela, ou falara de matrimônio e ela se perguntou por quê.
Dirigiu-se à cavidade onde as aves cozinhavam, verificou, para ter certeza de que podia sentir o calor, depois viu Jondalar com Wymez e Danug a um lado, onde geralmente trabalhavam, longe das trilhas que as pessoas normalmente usavam. Ela sabia sobre o que falavam e, mesmo se ignorasse, poderia ter adivinhado. O espaço estava cheio de pedaços grandes e lascas aguçadas de sílex, e vários nódulos enormes da pedra útil jaziam no solo perto dos três fabricantes de ferramentas. Ela se perguntara, muitas vezes, como podiam passar tanto tempo falando sobre sílex.
Com certeza, deviam ter dito tudo o que havia para dizer agora.
Embora não fosse perita, até Jondalar chegar Ayla havia feito suas próprias ferramentas de pedra, que serviam adequadamente às suas necessidades. Quando era jovem, observara muitas vezes Droog, o fabricante de ferramentas do Clã, e aprendera a imitar suas técnicas. Mas Ayla soubera, desde a primeira vez que vira Jondalar trabalhar, que a habilidade dele ultrapassava de longe a dela e, enquanto havia uma semelhança em gosto pelo artesanato e talvez mesmo em capacidade relativa, os métodos de Jondalar e as ferramentas que criava eram muito mais perfeitos que os do Clã. Ela estava curiosa sobre os métodos que Wymez utilizava, e tivera a intenção de perguntar se podia vê-lo trabalhar, um dia. Resolveu que aquele era um bom momento.
Jondalar a percebeu no instante em que saiu da habitação comunal, mas tentou não demonstrá-lo.
Estava certo de que ela o andara evitando desde sua exibição de funda nas estepes, e não queria forçar sua corte, se ela não o desejava por perto. Quando ela começou a caminhar na direção deles, Jondalar sentiu um grande nó de ansiedade no estômago, temeroso de que ela mudasse de idéia, ou de que apenas parecesse vir na direção deles.
- Se não incomodo, queria ver fabricar ferramentas - disse Ayla
- Claro. Sente-se - disse Wymez com um sorriso de boas-vindas.
Jondalar relaxou visivelmente; sua testa enrugada ficou lisa e a rigidez de seus maxilares desapareceu. Danug tentou dizer alguma coisa quando ela se acomodou ao seu lado, mas a presença de Ayla o deixou sem fala. Jondalar notou o olhar de adoração de Danug e conteve um sorriso de indulgência. Ele havia desenvolvido um afeto sincero pelo garoto, e sabia que o amor de criança não era ameaça para ele. Era capaz de se sentir como um irmão mais velho protetor.
- Sua técnica é usada comumente, Jondalar? - perguntou Wymez continuando, obviamente, uma discussão que Ayla interrompera.
- Mais ou menos. A maioria das pessoas separa as lâminas de parte principal preparada para fazer outras ferramentas. Buris, facas, padeiras ou pontas para lanças menores.
- E as lanças maiores? Você caça mamutes?
- Alguns - respondeu Jondalar. - Não nos especializamos no que vocês fazem. As pontas para lanças maiores são feitas de osso... geralmente usamos a perna dianteira do veado. Um buril é usado para modelá-la, tanto encaixes no esboço geral e trabalhando até se partir e libertar-se. Depois, é raspada até a forma correta com uma raspadeira posta sobre no de uma lâmina. Podem-se tornar pontas fortes, aguçadas com arenito malhado.
Ayla, que o havia ajudado a fazer as pontas de lança de osso usavam, estava impressionada com a sua eficácia. Eram longas e a fortes, penetravam profundamente quando as lanças eram arremessadas com força, principalmente com o arremessador de lanças. Muito mais leves que as que ela havia usado, que eram iguais à lança pesada do Clã, as lanças de Jondalar destinavam-se completamente a serem arremessadas, não impulsionadas.
- Uma ponta de osso penetra fundo - disse Wymez. - Se você atingir um ponto vital, é uma morte rápida, mas não há muito sangue. É acertar num local vital de um rinoceronte ou mamute. O pêlo é alto, se você acertar entre as costelas ainda há muita gordura e músculo para atravessar. O olho é um bom alvo, mas é pequeno, e sempre em movimento. Um mamute pode ser morto com uma lança na garganta, porém, isso é perigoso. Você tem que chegar muito perto. Uma ponta de lança de sílex das aguçadas. Atravessa mais facilmente a pele dura e faz sangrar, e isso enfraquece o animal. Se puder fazer o animal sangrar, os intestinos e a bexiga os melhores locais para mirar.
Não é tão rápido, mas é muito mais fácil;
Ayla estava fascinada. A fabricação de ferramentas era bastante interessante, porém, ela jamais caçara mamutes.
- Tem razão - falou Jondalar -, mas como você faz preparar uma grande de lança, reta? Não importa a técnica utilizada para separar lâmina, ela sempre é curva. Essa é a natureza da pedra. Não pode arremessar uma lança com a ponta curva, pois perderia a precisão, perderia a tração, e provavelmente a metade de sua força. É por isso que as pontas de sílex são pequenas. Quando lasca o suficiente do lado inferior para moldar uma ponta reta, não sobra grande coisa.
Wymez sorria, concordando com um balanço de cabeça.
- É verdade, Jondalar, mas deixe-me lhe mostrar uma coisa.
O homem mais velho pegou de trás de si urna trouxa pesada embrulhada em couro e abriu-a. Pegou uma grande cabeça de machado, uma pedra gigantesca do tamanho de uma malho, feita de um nódulo inteiro de sílex. Tinha uma ponta arredondada e fora moldada em uma extremidade grossa cortante que terminava em ponta.
- Estou certo de que fez algo como isto. Jondalar sorriu
- Sim, tenho feito machados, mas nada tão grande assim. Deve ser para Talut.
- Sim, eu ia pôr um cabo de osso comprido para Talut. Ou talvez, Danug - disse Wymez, sorrindo para o jovem. - Estes são usados para quebrar ossos de mamute ou cortar presas. É preciso um homem forte para manejar um. Talut o pega como vara. Acho que, agora, Danug já pode fazer o mesmo.
- Ele pode. Pode cortar suportes para mim - disse Ayla, olhando para Danug com simpatia, o que provocou um rubor e sorriso tímido. Ela também havia feito e usado machados manuais, mas não daquele tamanho.
- Como faz um machado? - continuou Wymez
- Em geral, começo partindo uma lasca grossa com um martelo de pedra e retocando os dois lados para dar-lhe um gume e urna ponta.
- O povo da mãe de Ranec, os Aterianos, fazem uma ponta de lança com um retoque de duas faces. Duas faces? Partida dos dois lados, como um machado? Para que fique razoavelmente reta, você teria que começar com uma grande lasca para fazer uma lâmina, não uma lasca fina. Isso não seria desajeitado demais para uma ponta de lança?
- Era um pouco grossa e pesada, mas um aperfeiçoamento claro de um machado. E muito eficaz para os animais que caçavam. É verdade, contudo. Para perfurar um mamute ou rinoceronte, precisa-se de uma ponta de sílex que seja longa e reta, e resistente, e fina. Como você faria isso? - Interrogou Wymez.
De duas faces. É o único jeito. Em uma lança grossa assim, seu usar retoque de pressão simples, para remover raspas finas de ambos os lados - disse Jondalar, pensativo, tentando imaginar como faria tal arma - mas isso exigiria um controle tremendo.
- Exatamente, o problema é controle, e a qualidade da pedra.
- Sim. Teria que ser fresca. Dalanar, o homem que me ensinou, vive Perto de um rochedo exposto de greda que apresenta sílex na superfície do terreno. Talvez parte dessa pedra desse resultado. Mas, mesmo assim, seria demais. Fizemos alguns bons machados, mas não sei como faria uma ponta e lança decente dessa maneira.
Wymez estendeu a mão para outro embrulho envolto em couro bom e macio. Abriu-o com cuidado e exibiu várias pontas de sílex.
Os olhos de Jondalar arregalaram-se, surpresos. Ergueu o olhar a Wymez, depois para Danug que sorria com orgulho por seu mentor, e em seguida pegou uma das pontas. Virou-a em suas mãos ternamente, quase acariciando a pedra belamente trabalhada.
O sílex tinha aspecto escorregadio, uma qualidade lisa, não muito oleosa, e uma luminosidade que cintilava das muitas facetas à luz do sol. O objeto tinha a forma de uma folha de salgueiro, com simetria quase perfeita em todas as dimensões, e estendia-se pelo comprimento total de sua mão, da base da palma até as pontas dos dedos. Começando em ponta em uma extremidade, espalhava-se pela largura de quatro dedos no meio, depois voltava a estreitar-se em uma ponta na extremidade oposta. Virando-o sobre o gume, Jondalar viu que não tinha, realmente, a característica forma arqueada das ferramentas em lâmina. Era perfeitamente reta, com uma parte transversal com espessura quase igual à do seu dedo mínimo.
Ele sentiu o fio profissionalmente. Muito aguçado, apenas ligeiramente denticular, pelas marcas das muitas lascas pequenas removidas. Correu os dedos levemente pela superfície e sentiu os pequenos sulcos deixados pelas inúmeras lascas, que tinham sido destacadas, para dar à ponta de sílex uma forma tão exata, excelente
- - É bonita demais para ser usada como arma - disse Jondalar - E uma obra de arte.
- Esta não é usada como arma - falou Wymez, satisfeito pelo elogio do colega artesão - Eu a fiz como modelo para mostrar a técnica.
Ayla esticava o pescoço para ver as ferramentas de primoroso artesanato descansando no couro macio, sobre o terreno, sem ousar tocá-las. E... Jamais vira pontas de lança tão lindamente fabricadas. Eram de vários tamanhos e tipos. Além das pontas em forma de folhas, havia pontas assimétricas que se afilavam muito de um lado em direção a uma tíbia saliente, que seria inserida em um cabo de forma a poder ser usada como uma faca, e pontas mais simétricas com um espigão centralizado, que podiam ser pontas de lança ou facas de outro tipo.
- Quer examiná-las de mais perto? - perguntou Wymez.
Os olhos de Ayla brilharam com assombro, e ela pegou cada uma, segurando-as como se fossem pedras preciosas. E quase eram.
- Sílex é... Liso, vivo - disse Ayla. - Nunca vi sílex como este, antes.
Wymez sorriu.
- Descobriu o segredo, Ayla - falou. - É isto que torna estas pontas possíveis de fazer.
- Tem sílex como este por perto? - perguntou Jondalar, incrédulo.
- Também nunca vi nenhum igual a este.
- Não, infelizmente não. Oh, podemos conseguir sílex de boa qualidade. Um grande acampamento ao norte vive perto de uma boa mima sílex. É onde Danug esteve, mas esta pedra foi especialmente tratada... Fogo.
- Pelo fogo!? - exclamou Jondalar.
- É, pelo logo. O calor altera a pedra. O calor é que a torna macia... - Wymez olhou para Ayla - . . .E tão viva. O calor é que dá qualidades especiais à pedra. - Enquanto falava, pegou um nódulo de sílex que mostrava sinais definidos de ter estado no fogo. Estava sujo de fuligem e queimado, e o córtex exterior gredoso era de tom muito mais escuro quando se abriu com um golpe de um malho. - Da primeira vez, foi um acidente. Um pedaço de sílex caiu na fogueira. Era um fogo vivo forte, sabe como é preciso um fogo forte para queimar um osso?
Ayla concordou com um gesto de cabeça, consciente. Jondalar encolheu os ombros, não havia prestado muita atenção, mas já que Ayla parecia saber, aceitava-o de boa vontade.
- Eu ia rolar o sílex e tirá-lo, mas Nezzie resolveu que já que estava ali, daria um bom suporte para um prato pegar gordura derretida de um assado que ela preparava. Resultou que a gordura se incendiou, e estragou uma boa travessa de marfim. Eu a substitui para ela, já que acabou sendo um golpe de sorte. Mas quase joguei fora à pedra, no início. Estava toda queimada e evitei usá-la até ficar com pouco material. Da primeira vez em que a quebrei, abrindo-a, pensei que estava imprestável. Vejam, podem ver por que motivo - disse Wymez, dando um pedaço a cada um deles.
- O sílex está mais escuro e tem aquele aspecto escorregadio - disse
- Aconteceu que fazia experiência com pontas de lanças aterianas tentando melhorar sua técnica.
Já que estava apenas pesquisando novas idéias, pensei que não importava se a pedra fosse imperfeita. Mas, assim que comecei a trabalhar com ela, notei a diferença. Ocorreu pouco depois de que voltei. Ranec ainda era um menino. Eu a tenho aperfeiçoado desde então.
- Que tipo de diferença notou? - perguntou Jondalar.
- Você vai experimentar, Jondalar, e verá.
Jondalar ergueu seu malho, uma pedra oval, denteada e lascada pelo uso, que se acomodava confortavelmente em sua mão, e começou a tirar a harmonia do córtex gredoso em sua preparação para trabalhá-lo.
- Quando o sílex é aquecido fortemente antes de ser trabalhado - continuou Wymez enquanto Jondalar labutava -, o controle sobre o material é muito maior. As lascas muito pequenas, muito mais finas e longas, podem ser removidas aplicando-se pressão. Você pode fazer a pedra assumir quase todas as formas que desejar.
Wymez envolveu a mão esquerda com um pequeno pedaço de couro para protegê-la dos gumes aguçados, depois colocou outro pedaço de Sílex, recentemente partido de um dos nacos queimados, em sua mão esquerda para demonstração. Com a mão direita, ergueu um pequeno retocador ósseo afilado. Colocou a extremidade pontiaguda do osso contra a quina do sílex e empurrou com um movimento forte para a frente e Para baixo, separando uma lasca pequena, comprida, achatada de pedra. Ele a manteve erguida. Jondalar pegou o retocador, e depois experimentou por conta própria, bastante surpreso, claramente, e satisfeito com os resultados.
Jondalar.
- Tenho que mostrar isto a Dalanar! É inacreditável! Ele aperfeiçoou alguns dos processos... Tem um jeito natural para trabalhar com a pedra, como você, Wymez. Mas você quase pode alisar esta pedra. Isto é causado pelo calor?
Wymez sacudiu a cabeça afirmativamente.
- Não diria que se pode polir a pedra. E pedra morta, não tão fáceis de moldar quanto o osso, mas se você souber trabalhar a pedra, o aquecimento facilita o trabalho.
- Gostaria de saber o que aconteceria com percussão indireta... Tentou usar um pedaço de osso ou chifre com uma ponta a fim de dirigir a força do golpe de um malho? Poderá conseguir lâminas muito mais longas e finas assim.
Ayla pensou que Jondalar tinha um dom natural para trabalhar a pedra também. Porém, mais que isso, sentiu em seu entusiasmo e desejo instantâneo de dividir aquela descoberta maravilhosa com Dalanar, e ansioso de ir para casa.
Em seu vale, quando ela hesitara em encarar os Outros desconhecidos havia pensado que Jondalar queria apenas ir embora para estar com outras pessoas. Ela jamais havia compreendido bem, antes, quão forte o desejo do homem de voltar ao seu lar. Surgiu como uma revelação, insight; ela sabia que ele jamais poderia ser realmente feliz em outro lugar.
Embora sentisse uma falta desesperada de seu filho e das pessoas que amava, Ayla não sentira saudades de casa no sentido em que Jondalar se sentia afetado, como um desejo de voltar para um local familiar, onde as pessoa eram conhecidas e os costumes confortáveis. Ela soubera, quando deixar o Clã, que jamais voltaria. Para eles, ela estava morta. Se a vissem, pensariam que era um espírito maligno. E agora, ela sabia que não voltaria a viver com eles, mesmo se pudesse. Embora estivesse com o Acampamento Leão apenas pouco tempo, já se sentia mais à vontade e em casa do que todos aqueles anos que vivera com o Clã. Iza tivera razão. Ela não era do Clã. Ela nascera dos Outros.
Perdida em pensamento, Ayla não ouvira parte da discussão posterior. Escutando Jondalar dizer o seu nome, voltou ao presente.
-... Acho que a técnica de Ayla deve ser próxima da deles. Foi lá que aprendeu. Vi algumas de suas ferramentas, mas nunca as vi feitas antes dela me mostrar. Não lhes falta habilidade, mas há um grande passo entre pré-fabricar um buril intermediário e um cerne, e essa é a diferença entre uma pesada ferramenta lascada e uma ferramenta fina, de lâmina leve.
Wymez sorriu e concordou com um gesto de cabeça.
- Agora, se ao menos pudéssemos encontrar uma maneira de - uma lâmina reta. Não importa como, o gume de uma faca nunca é afiado depois que foi retocado.
- Tenho pensado nesse problema - disse Danug, dando uma contribuição ao debate. - Que tal talhar um encaixe de osso ou chifre e colar em pequenas lâminas? Bastante pequenas para serem quase retas?
Jondalar refletiu um instante.
- Como as faria?
- Não poderia começar com um cerne pequeno? - sugeriu Danug, um pouco hesitante.
- Talvez dê certo, Danug, mas um cerne pequeno pode ser difícil para se trabalhar - falou Wymez. - Pensei em começar com uma lâmina maior e parti-la em outras menores...
Ainda falavam sobre sílex, percebeu Ayla. Nunca pareciam cansar-se disso. O material e seu potencial nunca deixavam de fasciná-los. Quanto mais aprendiam, mais estimulado ficava o seu interesse. Ela era capaz de apreciar sílex e a fabricação de ferramentas, e pensou nas pontas de lança que Wymez lhes mostrara, mais finas do que jamais vira, tanto por sua beleza quanto por seu uso. Mas ela jamais ouvira o assunto discutido em detalhes tão exaustivos. Então, recordou seu fascínio pelo saber médico e magia de cura. As ocasiões que passara com Iza, e Uba, quando a curandeira lhes estava ensinando, estavam entre as mais felizes recordações.
Ayla viu Nezzie saindo da habitação e levantou-se para saber se podia ajudar. Embora os três homens sorrissem e fizessem comentários quando ela se afastou, imaginou que sequer reparariam que ela se fora.
Isso não era inteiramente verdade. Apesar de nenhum dos homens fazer comentários em voz alta, houve uma pausa em sua conversa enquanto a observavam afastar-se.
É uma mulher jovem e bonita, pensou Wymez. Inteligente e instruída e interessada em muitas coisas. Se fosse Mamutoi, teria um Preço de Noiva elevado. Imagine que status traria para seu companheiro e passaria para os filhos.
Os pensamentos de Danug seguiam o mesmo caminho, embora não estivesse tão claramente formados em sua mente. Idéias vagas sobre Preço de Noiva e matrimônios, e até companheirismo lhe ocorreram, mas não pensou que teria uma chance. Queria apenas, principalmente, estar perto dela.
Jondalar a queria mais ainda. Se pudesse inventar uma desculpa razoável, ter-se levantado e a seguido. No entanto, temia apertar demais o cerco. Lembrou-se de seus sentimentos quando as mulheres tentavam fazê-lo amá-las com demasiado empenho. Em vez disto, ele quisera evitá-las, e sentira pena delas. Não queria a piedade de Ayla. Queria o seu amor.
Uma náusea sufocante de bílis subiu-lhe à garganta quando viu o homem de pele escura sair da habitação de terra e sorrir para Ayla. Tentou engolir, controlar a cólera e a frustração que sentia.
Jamais conhecera ciúme igual e odiou-se por isso. Estava certo de que Ayla o detestaria, ou pior, sentiria pena dele, se soubesse como se sentia. Estendeu a mão para um grande nódulo de sílex e, com seu malho, despedaçou-o. A pedra se estragou, entremeada com a greda esfarelada de seu córtex externo, mas Jondalar continuou golpeando-a, partindo-a em pedaços cada vez menores.
Ranec viu Ayla vindo da área dos quebradores de sílex. A atração e excitação crescentes que ele sentia todas as vezes em que a via não podiam ser flagelada Fora atraído desde o início pela perfeição de forma que ela apresentava a seu senso estético, não apenas como mulher bonita para se olhar, mas em sua graça sutil, não-estudada, de movimentos. Ele possuía olhos sagazes para tal detalhe e não conseguia detectar a menor pose ou afetação. Ela se comportava com um autodomínio, uma confiança destemida, que pareciam tão totalmente naturais que ele sentia que ela devia ter nascido assim, e isso gerava uma qualidade que ele só podia definir como presença.
Lançou-lhe um sorriso cálido. Não era um sorriso que se podia ignorar facilmente, e Ayla o retribuiu com igual afeto.
- Seus ouvidos se fartaram de conversa sobre sílex? - perguntou Ranec, dando à frase um tom levemente pejorativo. Ayla percebeu a nuança, mas não ficou muito certa do seu significado, embora pensasse que pretendia ser engraçado, e que era uma piada.
- Sim. Falam de sílex. De fazer lâminas e ferramentas. Pontas lanças. Wymez fabrica pontas bonitas.
- Ah, ele exibiu seus tesouros, não é? Tem razão, são bonitas. Tenho certeza se ele sabe disso, mas Wymez é mais do que um artesão, um artista.
Uma ruga franziu a testa de Ayla. Lembrou-se de que ele usara aquela palavra para descrevê-la quando usou sua funda, e estava incerta sobre se entendia a palavra do jeito que ele a empregava.
- Você é artista? - ela indagou.
Ele fez uma careta esquisita. A pergunta tocara no âmago de toda questão sobre a qual ele tinha fortes sentimentos.
Seu povo acreditava que a Mãe primeiro havia criado um mundo espiritual e os espíritos de todas as coisas nele eram perfeitos. Então os espíritos deram origem a cópias vivas de si mesmos para povoar o lugar comum. O espírito era o modelo, o padrão de que decorriam todas, mas nenhuma cópia podia ser tão perfeita quanto o original; nem os próprios espíritos eram capazes de fazer cópias perfeitas, dai cada um ser diferente.
As pessoas eram únicas, estavam mais próximas da Mãe do que outros espíritos. A Mãe deu à luz uma cópia de Si Mesma e chamou-a de Mulher-Espírito. Depois, fez com que o Homem-Espírito nascesse de seu útero exatamente como cada homem nascia de uma mulher. Então, a Grande, fez com que o espírito da mulher perfeita se misturasse ao espírito do homem perfeito, e assim nascessem muitos filhos de espíritos diferentes. Mas, A Própria escolhia que espírito de homem se unia a uma mulher antes que Ela soprasse Sua força vital na boca da mulher para que engravidasse. para alguns de seus filhos, mulheres e homens, a Mãe dava dádivas especial.
Ranec se referia a si mesmo como entalhador, um fabricante de objetos talhados à semelhança de coisas vivas ou espirituais. Fizeram objetos úteis. Personificavam espíritos vivos, tornavam-nos imagináveis, e eram ferramentas essenciais para certos ritos, necessários à cerimônias realizadas pelos mamutois. Aqueles que criavam esses objetos eram muito estimados; eram artistas talentosos que a Mãe escolhera. Muita gente pensava que todos os entalhadores, na verdade, todas as pessoas capazes de criar ou decorar objetos para torná-los algo mais do que simplesmente utilidades, eram artistas, mas na opinião de Ranec nem todos os artistas eram igualmente dotados, ou talvez não dessem atenção igual ao seu trabalho. Os animais e figuras que faziam eram toscos. Ele achava que essas representações eram um insulto aos espíritos e à Mãe que os criou.
No ponto de vista de Ranec, o melhor e mais perfeito exemplo de alguma coisa era belo, e tudo o que fosse bonito era o melhor e mais perfeito exemplo do espírito; era a sua essência. Essa era a sua religião. Além disso, no âmago de sua alma estética, sentia que essa beleza possuía um valor intrínseco próprio e acreditava que havia um potencial para a beleza em tudo. Enquanto algumas atividades ou objetos podiam ser simplesmente funcionais, sentia que qualquer pessoa que se aproximava da perfeição em qual quer atividade era um artista, e os resultados continham a essência de beleza. Mas a arte estava tanto na atividade quanto nos resultados. As obras de arte não eram apenas o produto terminado, mas o pensamento, da ação, o processo que as criava.
Ranec procurava a beleza, quase como uma busca sagrada, com suas mãos experientes, mas ainda mais com seus olhos inatamente sensíveis. Sentia uma necessidade de cercar-se dela e começava a visualizar Ayla como obra de arte, como a melhor e mais perfeita expressão de mulher de que era capaz de conceber. Não era apenas sua aparência que a fazia bonita. A beleza não era uma figura estática; era essência, era espírito, era aquilo que animava. Era mais bem expressa em movimento, comportamento, realização. Uma mulher bonita era uma mulher dinâmica e completa. Embora ele não o dissesse em tantas palavras, Ayla começava a representar para ele uma encarnação perfeita da Mulher-Espírito original. Era a essência de mulher, a essência de beleza.
O homem escuro com os olhos risonhos e o espírito irônico que aprendera a usar para mascarar seus anseios profundos esforçava-se para criar perfeição e beleza em seu próprio trabalho. Por seus esforços, era aclamado por seu povo como o melhor entalhador, um artista de real distinção mas, como muitos perfeccionistas, jamais estava totalmente satisfeito com suas criações. Não se referia a si mesmo como artista.
- Sou um entalhador - disse a Ayla. Depois, porque viu o seu aturdimento, acrescentou: - Algumas pessoas chamam qualquer escultor de artista. - Hesitou um instante, perguntando-se como ela julgaria seu trabalho e disse depois: - Gostaria de ver algumas esculturas minhas?
- Sim - respondeu ela.
A franqueza simples de sua resposta o deteve um momento. Depois, ele atirou a cabeça para trás e riu alto. Claro, o que mais ela diria? Com os olhos enrugados de deleite chamou-a para o interior da moradia.
Jondalar os viu atravessar a entrada em arco juntos e sentiu um peso descer sobre ele. Fechou os olhos e abaixou a cabeça, tristemente.
O homem alto e atraente jamais havia sofrido por falta de atenção feminina, mas do momento em que lhe faltava compreensão da qualidade que o fazia tão sedutor, não tinha confiança em sua atração. Era um fabricante de ferramentas, mais à vontade com o físico do que o metais melhor em aplicar sua inteligência considerável na compreensão de - técnicos de pressão e percussão sobre sílica homogênea, cristalina - Percebia o mundo em termos físicos.
Expressava-se fisicamente também; era melhor com as mãos do que com palavras. Não que falasse mal, apenas não era especialmente dotado com as palavras. Havia aprendido a contar uma história suficientemente bem, mas não era rápido com respostas desembaraçadas e réplicas divertidas. Era um homem sério e reservado, que não gostava de falar sobre si mesmo, embora fosse um ouvinte sensível, que atraía confidências dos outros. Em casa, fora famoso como um excelente artesão, mas as mesmas mãos que podiam moldar tão cuidadosamente a pedra dura em boas ferramentas também eram hábeis nos caminhos de um corpo de mulher. Foi outra expressão de sua natureza física e, embora não tão abertamente também fora famoso por isso. As mulheres o perseguiam e inventavam-, piadas sobre a sua “outra” habilidade.
Era uma arte que aprendera, como aprendera a moldar sílex. Sabia onde tocar, era receptivo e acessível a sinais sutis, e sentia prazer em compartilhar, prazer. Suas mãos, olhos, o corpo inteiro falavam com mais eloqüência do que quaisquer palavras que pronunciasse.
Jondalar desenvolvera afeto e carinho genuínos por algumas mulheres e gostava delas fisicamente, porém não amou até encontrar Ayla, e não se sentia confiante de que ela o amasse verdadeiramente.
Como poderia ela? Ela não tinha parâmetro de comparação. Fora ele o único homem que ela conheceu chegarem ali. Ele reconhecia que o escultor era um homem de honra e consideráveis, e via os sinais de crescente atração por Ayla. Sabia que, se homem fosse capaz, Ranec poderia conseguir o amor de Ayla. Jondalar havia viajado por metade do mundo antes de encontrar uma mulher que pudesse amar. Agora, que a encontrara, afinal, iria perdê-la tão cedo?
Mas, merecia ele perdê-la? Podia trazê-la de volta consigo, sabendo como seu povo pensava em relação a mulheres como ela? Apesar de todo o seu ciúme, começava a se perguntar se era a pessoa certa para ela. Disse a si mesmo que queria ser justo com ela mas, no fundo de seu coração perguntou-se se suportaria o estigma de amar a mulher errada, novamente Danug percebeu a angústia de Jondalar e olhou para Wymez, perturbado. Wymez apenas sacudiu a cabeça afirmativamente, com astúcia. também amara uma mulher de exótica beleza, um dia, mas Ranec era o de sua fogueira, e atrasado para achar uma mulher e se fixar e criar família com ela.
Ranec conduziu Ayla à Fogueira da Raposa. Embora ela a houvesse atravessado várias vezes todos os dias, evitara, propositadamente, olhares curiosos aos alojamentos privados; era um costume de sua vida com o Clã que aplicava no Acampamento do Leão. No projeto da casa comum da habitação de terra, a privacidade não era tanto uma questão de portas fechadas quanto de consideração, respeito e tolerância mútua.
- Sente-se - disse ele, guiando-a para um estrado de cama, juncado de peles macias, suntuosas. Ela olhou ao redor, agora que era aceitável que satisfizesse a sua curiosidade. Embora dividissem uma fogueira, os dois homens que viviam em lados opostos do corredor central tinham espaços disponíveis que eram unicamente individuais.
Do outro lado da fogueira, a área do fabricante de ferramentas tinha uma aparência de indiferente simplicidade. Havia um estrado de cama com almofada estofada e peles, e uma cortina de couro amarrada ao acaso, acima, que parecia não ter sido solta durante anos. Algumas roupas penduradas em cabides e mais peças estavam empilhadas sobre uma parte do estrado de cama, estendendo-se ao longo da parede, além da divisão na cabeceira da cama.
A área de trabalho ocupava a maior parte do recinto, definida por lascas, nacos e pedaços quebrados de sílex, cercando um osso de pé de mamute usado tanto como assento quanto como bigorna. Vários retocadores e martelos de osso e pedra estavam em evidência sobre a extensão do estrado de cama, ao seu pé. Os únicos objetos decorativos eram uma estatueta de marfim da Mãe em um nicho na parede e, pendurado ao seu lado, um cinto intrincadamente decorado de onde pendia uma saia de capim seco e murcho. Ayla notou, sem perguntar, que pertencera à mãe de Ranec.
Em contraste, o lado do entalhador era de um bom gosto suntuoso. Ranec era um colecionador, mas muito seletivo. Tudo era escolhido com cuidado, e exibido de forma a mostrar suas melhores qualidades e a complementar o todo com uma riqueza textural. As peles na cama convidavam ao toque e gratificavam o contato com maciez excepcional. As cortinas dos dois lados, caindo em pregas cuidadosas, eram de pele de veado aveludada, de uma cor castanho-amarelada escura, e tinham um odor fraco, mas agradável, da madeira de pinho pulverizada, que lhes dava sua cor. O chão era coberto com esteiras de algum capim aromático tecido primorosamente com desenhos coloridos.
Numa parte do estrado de cama havia cestas de vários tamanhos e formatos; as maiores continham roupas arrumadas para mostrar trabalho decorativo em contas, ou desenhos com penas e pele. Em algumas das cestas e pendendo de cabides, estavam braceletes e pulseiras de marfim esculpido e colares de dentes de animais, conchas de moluscos de água doce, conchas marinhas, tubos cilíndricos de pedra calcária, pingentes e contas de marfim colorido e, realçando entre eles, âmbar. Uma grande lasca de presa de mamute, esculpida com desenhos geométricos incomuns, estava na parede. Mesmo as armas de caça e as roupas de passeio que pendiam de cabides Somavam ao efeito global.
Quanto mais ela olhava, tanto mais ela via, mas os objetos que pareciam se projetar e prender sua atenção eram uma estatueta da Mãe lindamente feita de marfim, em um nicho, e as esculturas perto de sua área de trabalho.
Ranec a observava, notando onde seus olhos se fixavam, e sabendo o que ela via. Quando os olhos de Ayla pousaram nele, Ranec sorriu. Sentou-se à sua bancada. O osso da canela de um mamute fincado no solo fazia com que a articulação do joelho, achatada, levemente côncava, chegasse à altura do seu peito quando ele se sentava sobre uma esteira, no chão. Na superfície de trabalho horizontal, curva, entre uma variedade de buris instrumentos de sílex similares a cinzéis que ele usava para esculpir, esta. uma escultura não-terminada de uma ave.
- Esta é a peça em que estou trabalhando - disse ele, observando a expressão da jovem enquanto lhe estendia o trabalho.
Ela aninhou, com cuidado, a escultura de marfim nas mãos, olhou-o, depois virou-a e a examinou com mais atenção. Em seguida, parecendo intrigada, virou-a de um lado e depois, novamente, para o outro.
- É ave quando olho deste lado - disse a Ranec -, mas agora... Segurou a escultura do outro jeito -... É urna mulher!
- Maravilhoso! Você percebeu logo. E uma coisa que tenho tentado fazer. Queria mostrar a transformação da Mãe, Sua forma espiritual. Quero mostrá-la quando Ela assume Sua forma de ave para voar daqui para o. mundo espiritual, mas ainda como a Mãe, como mulher. Para incorporar as duas formas ao mesmo tempo!
Os olhos escuros de Ranec brilharam, estava tão excitado que quase não podia falar rápido o bastante. Ayla sorriu do seu entusiasmo. Era um lado dele que ela não vira antes. Em geral, ele parecia muito mais desprendido, mesmo quando ria. Por um momento, Ranec a remeteu a Jondalar, quando desenvolvia a idéia para o arremessador de lanças. Franziu a testa sob o pensamento. Aqueles dias de verão no vale pareciam muito distantes. Agora, Jondalar quase nunca sorria ou, se o fazia, ficava zangado no instante seguinte. Ela teve uma sensação repentina de que Jondalar não gostaria de ela estar ali, conversando com Ranec, ouvindo sua satisfação e excitação, e isso a deixou infeliz e um pouco zangada.
- Ayla, aí está você - disse Deegie, atravessando a Fogueira da Raposa. - Vamos começar a música. Venha. Você também, Ranec.
Deegie havia reunido a maior parte do Acampamento do Leão pelo caminho. Ayla reparou que ela carregava o crânio de mamute, Tornec omoplata pintada com linhas vermelhas ordenadas e formas geométricas e que Deegie havia usado a palavra desconhecida de novo. Ayla e acompanharam-na até o lado de fora.
Nuvens leves corriam num céu que escurecia no norte e o vento se intensificava, partindo a pele dos capuzes e parkas. Mas ninguém reunido em círculo pareceu notá-lo.
A fogueira, que fora construída com montes de terra e algumas pedras para tirar proveito do vento norte, estava mais viva à medida que mais ossos e lenha eram postos nela, mas o fogo era uma presença invisível dominada pelo brilho cintilante que descia a oeste.
Alguns ossos grandes, que pareciam ter sido deixados jazendo casualmente por perto, assumiram um propósito definido quando Deegie e Tornec reuniram a Mamut e sentaram-se sobre eles. Deegie abaixou o crânio fixado de forma que não ficasse fincado ao solo, mas fosse sustentado na frente e atrás por outros ossos grandes. Tornec segurou a omoplata pintada em posição vertical, e bateu em vários locais com um implemento em forma de martelo feito de chifres, ajustando levemente a posição.
Ayla estava assombrada com os sons que produziam, diferentes dos que ouvira no interior. Havia uma sensação de ritmos de tambor, mas estes sons tinham tonalidades diversas, como nada do que havia escutado antes, ainda que possuíssem uma qualidade familiar persistente. Em variabilidade, os tons lhe lembravam sons de vozes, como aqueles que ela vez por outra cantarolava baixinho, consigo mesma, se bem que mais definidos. Será que isso era música?
De repente, soou uma voz. Ayla se virou e viu Barzec, com a cabeça atirada para trás, emitindo um alto grito ululante que penetrou no ar. Ele abaixou a voz para um vibrado grave que provocou quantidade enorme de emoção, dando um nó na garganta de Ayla, e terminou com uma rajada de ar aguda, alta, que de alguma forma conseguiu deixar uma pergunta em suspenso. Em resposta, os três músicos iniciaram uma batida rápida nos ossos de mamute, que repetia o som que Barzec havia emitido, combinando-o em tom e sentimento de uma maneira que Ayla não conseguia explicar.
Prontamente os outros participaram do canto, não com palavras, mas com tons e sons vocais, acompanhados com os instrumentos de osso de mamute. Depois de certo tempo, a música variou e, gradualmente, assumiu uma qualidade diferente. Tornou-se mais lenta, mais deliberada, e os tons provocaram uma sensação de tristeza. Fralie começou a cantar em voz aguda, agradável, desta vez com palavras. Contou a história de uma mulher que perdeu o companheiro, e cujo filho morrera. Comoveu Ayla profundamente, fê-la pensar em Durc e trouxe-lhe lágrimas aos olhos Quando levantou a cabeça, viu que não estava sozinha, mas encontrava-se muito emocionada quando reparou em Crozie, com um olhar perdido, impassível, o rosto idoso sem expressão, mas com lágrimas escorrendo-lhe pelas faces.
Enquanto Fralie repetia as últimas frases da canção, Tronie se juntava a ela, e depois Latie. Na repetição seguinte a frase mudou e Nezzie e Tulie, cuja voz era um contralto rico e grave, cantaram com elas. A frase variou uma vez mais, mais vozes somaram-se às delas, e a música mudou de personagem novamente. Tornou-se a história da Mãe, e uma lenda do povo, O mundo espiritual e seus primórdios. Quando as mulheres chegaram ao Ponto em que o Homem-Espírito nasceu, os homens participaram, a musica alternou-se entre as vozes dos homens e das mulheres, e um espírito amistoso de competição tomou conta deles.
A música se tornou mais rápida, mais rítmica. Em uma explosão de exuberância, Talut tirou sua pele de passeio e se colocou no centro do circulo - com os pés em movimento, os dedos estalando. Entre risos, gritos de aprovação, pés batendo ao solo, palmas de mão batendo nas coxas, Talut foi encorajado a uma dança atlética de chutes e saltos altos, ao compasso da música. Barzec, para não ser vencido, juntou-se a ele. Sua dança de rápidos movimentos mais elaborados, provocou mais gritos aplausos. Antes de parar, chamou Wymez, que recuou a princípio, mas depois, animado pelos outros, começou uma dança cujos movimentos tinham um caráter distintamente diferente para eles.
Ayla ria e gritava com o resto das pessoas, gostando do canto, da música e da dança, mas principalmente do entusiasmo e diversão que a enchiam de sensações boas. Druwez saltou com uma exibição ágil de acrobacia, depois Brinan tentou imitá-lo. Sua dança não tinha a elegância da donii - mais velho, mas foi aplaudido por seus esforços, o que encorajou o filho mais velho de Fralie, a juntar-se a ele. Então Tusie resolveu queria dançar. Barzec, com um sorriso tolo, segurou-lhe as mãos na mão e dançou com ela. Talut, tirando a idéia de Barzec, encontrou Nezzie e a trouxe para o círculo. Jondalar tentou convencer Ayla a participar, E ela recuou. Então, vendo Latie observar os dançarmos com olhos brilhantes cutucou-o para que dançasse com ela.
- Quer me ensinar os passos, Latie? - pediu ele.
Ela lançou um sorriso grato ao homem alto, o sorriso de Talut, pensou Ayla, novamente, e pegou as duas mãos de Jondalar quando se movera em direção aos outros. Era esguia para seus doze anos, e se movia graciosamente. Comparando-a com as outras mulheres, com uma visão de forasteira, Ayla achou que ela seria, um dia, uma mulher muito atraente.
Mais mulheres entraram na dança e, quando a música mudou novamente, quase todo mundo se movia sob sua cadência. As pessoas começaram a cantar, e Ayla se sentiu puxada para a frente, a fim de dar as mão e formar um circulo. Com Jondalar de um lado e Talut do outro, ela movia para frente e para trás, e rodopiava, dançando e cantando, enquanto a música os impelia cada vez mais depressa.
Por fim, com um último grito, a música terminou. As pessoas riam falavam, inspiravam, os músicos e os dançarmos igualmente.
- Nezzie! A comida ainda não está pronta? Senti seu odor o dia inteiro, e estou faminto! - gritou Talut
- Olhem para ele - disse Nezzie, sacudindo a cabeça para o seu grandalhão. - Não parece estar faminto? - As pessoas riram. - Sim, a comida está pronta. Estávamos esperando apenas que todos estivesse prontos para comer
- Sim, estou pronto - disse Talut.
Enquanto algumas pessoas iam buscar seus pratos, aquelas que tinham cozinhado trouxeram a comida para fora. Os pratos de cada pessoa eram bem individuais. As travessas eram, em geral, de ossos chatos, pélvicos ou do ombro do bisão ou veado, as xícaras e tigelas podiam ser tecidas, cestas pequenas à prova d’água ou, às vezes, os ossos frontais em forma de cuia de veados, com os chifres removidos. Conchas de moluscos e outros bivalves, negociadas, juntamente com o sal, por pessoas que visitavam ou viviam perto do mar, eram usadas para pratos menores, conchas, e as menores, para colheres.
Ossos pélvicos de mamutes eram bandejas e travessas. A comida era servida com grandes conchas esculpidas de osso ou marfim, ou galhada, ou chifre, e com peças retas casualmente manipuladas como tenazes. Pinças retas menores eram utilizadas para comer juntamente com as facas de sílex. O sal, raro e especial em região tão interior, era servido separadamente, de uma concha de molusco incomum e bonita.
O assado de Nezzie estava tão suculento e delicioso quanto o aroma anunciara que estaria, complementado pelos pequenos pães de cereal moído de Tulie, que foram colocados no assado quente para cozinhar. Embora duas aves não fossem grande coisa para alimentar o acampamento faminto, todos provaram as ptármigas de Ayla. Cozidas no forno de chão, estavam tão tenras que se despedaçavam. Sua combinação de temperos, apesar de incomum ao paladar dos Mamutoi, foi bem recebida pelo Acampamento do Leão. Comeram tudo. Ayla concluiu que gostava do recheio de grãos.
Ranec trouxe seu prato perto do fim da refeição, surpreendendo a todos porque não era sua especialidade costumeira. Em vez disso, passou bolinhos fritos. Ayla experimentou um, depois estendeu a mão para outro.
- Como faz? - perguntou. - É tão bom!
- A menos que tenhamos uma competição todas às vezes, acho que não será fácil fazer os bolinhos novamente. Usei o cereal em pó, misturei-o à gordura de mamute, depois acrescentei uvas-do-monte, convenci Nezzie a me ceder um pouco do seu mel, e cozinhei-os em pedras quentes. Wymez disse que o povo de minha mãe usava gordura de javali para cozinhar, mas não tinha certeza de como o faziam. Já que não me recordo de ter visto um javali em dia nenhum, achei melhor optar pela gordura de mamute.
- O gosto é quase o mesmo - disse Ayla -, mas nada é tão saboroso como isto. Desmancha na boca. - Depois encarou especulativamente o homem de pele escura e olhos negros e cabelo muito crespo que era, apesar de sua aparência exótica, tão Mamutoi quanto outro qualquer do Acampamento do Leão.
- Por que cozinha?
- Por que não? - Ele riu. - Somos apenas dois na Fogueira da Raposa, e gosto de cozinhar, embora fique contente de comer da fogueira de Nezzie quase sempre. Por que pergunta?
- Os homens do Clã não cozinham.
- Muitos homens não cozinham, se não precisam.
- Não. Os homens do Clã não são capazes de cozinhar. Não sabem como. Não têm cabeça para a cozinha. - Ayla não estava segura de ser clara, mas Talut se aproximou, então, servindo doses de sua bebida fermentada e ela notou que Jondalar a espiava, tentando não parecer aborrecido.
- Mas você se superou. É o melhor assado que já comi.
- Exagerando de novo. Diz isso para eu não chamar você de glutão.
- Ora, Nezzie - disse Talut pousando seu prato. Todos sorriam, trocando olhares significativos.
- Quando digo que você é a melhor, falo com sinceridade. - Ele a pegou no colo e roçou o nariz em seu pescoço.
- Talut! Seu grande urso! Ponha-me no chão!
Ele fez como ordenado, mas acariciou-lhe o seio e mordiscou-lhe o lóbulo da orelha.
- Acho que tem razão. Quem precisa de mais assado? Acho que terminarei o jantar com você.
Não consegui uma promessa antes? - respondeu ele com fingida inocência.
- Talut! Você é tão mau quanto um touro enfurecido!
- Primeiro sou um carcaju, depois um urso, e agora sou um auroque.
- Riu, soltando um berro. - Mas você é a leoa. Venha para a minha fogueira - disse ele, fazendo gestos como se fosse pegá-la no colo e carregá-la até a habitação.
De repente, ela cedeu e riu.
- Oh, Talut! Como a vida seria monótona sem você!
Talut sorriu e o amor e compreensão em seus olhos, quando se encararam, disseminavam o seu afeto. Ayla sentiu o lampejo, e no fundo sua alma teve a impressão de que sua união viera de aprenderem a aceitar um ao outro como eram, durante uma vida inteira de experiências partilhadas.
Mas o contentamento deles trouxe a ela pensamentos inquietantes. -- que conheceria, algum dia, essa aceitação? Compreenderia alguém tão bem Permaneceu sentada ruminando seus pensamentos, fitando o outro lado do rio, e dividiu um momento de silêncio com os outros, enquanto a amplitude da paisagem vazia encenava uma exibição espantosa.
As nuvens ao norte tinham aumentado seu território quando o Acampamento do Leão terminou sua festa, e apresentavam suas superfícies refletoras a um sol que se punha rapidamente. Num esplendor flagrante glória, proclamavam seu triunfo através do horizonte distante, ostentando sua vitória com estandartes fulgurantes de escarlate e laranja - negligenciando o aliado sombrio, a outra parte do dia. A exibição majestosa de cores voadoras, resplandecente em seu esplendor cor de bronze, era uma celebração de curta vida. A marcha inexorável da noite esgotava o brilho volátil, e vencia as tonalidades ígneas convertendo-se em tons carmins e cornalina. O rosa flamejante que esvanecia-se em alfazema enfumaçada sobrepujado por púrpura acinzentada, e afinal cedeu ao negro fuliginoso. O vento ficou mais forte com a aproximação da noite, e o calor e proteção da moradia de terra acenavam. Na luz que enfraquecia, pratos individuais eram limpos por cada pessoa com areia e lavados com água. O resto do assado de Nezzie foi colocado em uma tigela e a grande pele de cozinhar foi limpa do mesmo jeito e pendurada sobre a armação para secar. Dentro, a roupa de passeio foi tirada e pendurada em cabides e as fogueiras foram atiçadas e avivadas. Hartal, o bebê de Tronie, alimentado e satisfeito, foi dormir rapidamente, mas a menina de três anos, Nuvie, lutando para manter os olhos abertos, queria reunir-se aos outros que começavam a se agrupar na Fogueira do Mamute. Ayla a pegou no colo e segurou-a quando deu passos incertos, depois carregou-a de volta a Tronie, completamente adormecida, antes que a jovem mãe sequer deixasse sua fogueira.
Na Fogueira da Garça, Ayla reparou que o filho de dois anos de Fralie, Tasher, queria mamar, apesar de ter comido do prato da mãe. Ele se agitou e choramingou, o que convenceu Ayla de que o leite da mãe secara. Acabara de adormecer, quando começou uma discussão entre Crozie e Frebec, acordando-o. Fralie, cansada demais para gastar energia zangando-se, pegou-o ao colo, mas Crisavec, de sete anos, estava carrancudo.
Ele saiu com Brinan e Tusie quando eles passaram. Encontraram Rugie e Rydag, e as cinco crianças, mais ou menos da mesma idade, começaram imediatamente a falar com sinais manuais e palavras, rindo baixinho. Amontoaram-se num estrado de cama vazio, próximo ao que Ayla dividia com Jondalar.
Druwez e Danug estavam juntos, próximos à Fogueira da Raposa. Latie se encontrava perto, de pé, mas ou eles não a tinham visto, ou não falaram com ela. Ayla a viu dar meia-volta e, afinal, com a cabeça baixa, arrastar os pés ao andar devagar em direção às crianças mais novas. A menina ainda não era uma mulher jovem, Ayla adivinhava, mas não estava longe disso. Era uma época em que as meninas queriam ter outras meninas para conversar, mas não havia garotas de sua idade no Acampamento do Leão, e os meninos a ignoravam.
- Latie, senta comigo? - perguntou ela. Latie se alegrou e acomodou-se ao lado de Ayla.
O resto das pessoas da Fogueira dos Auroques atravessou a habitação comunal ao longo do corredor. Tulie e Barzec se reuniram a Talut, que conferenciava com Mamut. Deegie sentou-se do outro lado de Latie e sorriu-lhe.
- Onde está Druwez? - perguntou. - Eu sempre soube que, se quisesse encontrá-lo, tinha apenas que achar você.
- Oh, ele está conversando com Danug - disse Latie. - Agora, estão Sempre juntos. Fiquei muito contente quando meu irmão voltou, pensei que nós três teríamos tanto sobre o que falar... Mas eles querem somente falar um com o outro.
Deegie e Ayla trocaram um olhar, e uma expressão sagaz passou de uma para a outra. Chegara a época em que as amizades feitas em criança tinham desaparecido. Ela estendeu uma tigela de osso e observou Talut enchê-la com a bebida. Ela não gostara muito da bebida da primeira vez que provou, mas todos pareciam gostar tanto que achou melhor experimentar de novo.
Depois de Talut servir a todos, ele pegou seu prato e foi se servir do assado pela terceira vez.
- Talut! Vai comer mais? - falou Nezzie, no tom de não muita censura que Ayla começava a reconhecer, como a forma de Nezzie dizer que estava contente com o grande chefe. Precisavam ser examinadas sob nova luz, e adaptadas aos padrões dos relacionamentos adultos, quando se conheceriam como mulheres e homens mas essa fase podia ser muito confusa e solitária.
Ayla havia sido exclui e afastada, de uma forma ou de outra, durante a maior parte de sua vida. Ela entendia o que significava ser solitária, mesmo quando cercada por pessoas que a amavam. Mais tarde, em seu vale, ela encontrara um meio fácil de aliviar uma solidão desesperada, e recordou o anseio e nos olhos da garota sempre que olhava para os cavalos.
Ayla fitou Deegie, depois Latie para incluí-la na conversa.
- Um dia muito ocupado. Muitos dias assim. Preciso de ajuda. Poderia me ajudar, Latie? - perguntou Ayla.
- Ajudar? Claro. O que quer que eu faça?
- Antes, eu escovava os cavalos todos os dias, cavalgava. Agora, não tenho tanto tempo, mas os cavalos precisam. Pode me ajudar? Eu mostro como e você me ajuda.
Os olhos de Latie se arregalaram e arredondaram.
- Quer que a ajude a tomar conta dos cavalos? - indagou em sussurro surpreso. - Oh, Ayla, eu posso?
- Pode. Enquanto eu ficar aqui, será uma grande ajuda - respondeu Ayla.
Todos se tinham reunido na Fogueira do Mamute. Talut e Tulie e Outros falavam sobre a caçada dos bisões com Mamut. O velho havia realizado a Busca, e discutiam se devia fazê-la novamente. Como a caçada tivera tanto sucesso, perguntavam-se se outra seria possível breve. Ele concordou em tentar.
O grande chefe serviu mais doses de sua bebida fermentada, que fizera do amido de raízes de tifáceas, enquanto Mamut se preparava para a Busca, e encheu a tigela de Ayla. Ela tomou a maior parte da bebida que ele lhe dera lá fora, mas sentiu-se um pouco culpada por jogar um pouco fora. Desta vez cheirou-a, agitou-a algumas vezes, respirou fundo e engoliu-a. Talut sorriu e tomou-a também.
Encheu a tigela de Ayla mais vez, quando passou e a encontrou vazia. Ela não queria, mas era tarde mais para recusar. Fechou os olhos e engoliu depressa a bebida forte. Acostumava-se mais ao paladar, mas ainda não podia compreender por todos pareciam gostar tanto da bebida.
Enquanto esperava, sentiu uma tonteira, os ouvidos zuniram, e percepções se toldaram. Não notou quando Tornec começou uma batida ritmada tonal sobre o osso de omoplata de mamute; em vez disso, parecia acontecer dentro dela. Ayla sacudiu a cabeça e tentou prestar atenção. Concentrou-se em Mamut e observou-o engolir alguma coisa, e teve uma vaga sensação de que não era segura. Quis detê-lo, mas permaneceu onde estava. Ele era Mamut, devia saber o que fazia.
O homem velho, alto e magro, com a barba branca e cabelo comprido branco sentou-se de pernas cruzadas atrás de outro tambor de caveira. Ergueu um martelo de osso e, após uma pausa para ouvir, tocou com Tornec. Depois, começou uma canção cantada. O canto foi entoado pelos outros e prontamente, a maior parte das pessoas ficou profundamente envolvida numa seqüência hipnotizável que consistia de frases repetitivas, cantadas em uma batida vibrante com pouca variação do tom, alternando com rufos de tambor arrítmicos que tinham mais mudança de tom do que as vozes. Outro tocador de tambor juntou-se a eles, mas Ayla só percebeu que Deegie não estava mais ao seu lado.
O som dos tambores combinava com a batida na cabeça de Ayla. Depois, achou que ouvia mais do que apenas o canto e os rufos dos tambores. Os tons instáveis, as cadências diversas, as alterações de altura e volume na batida dos tambores começaram a sugerir vozes, vozes que falavam, dizendo algo que ela quase era capaz de compreender, mas não inteiramente. Tentou concentrar-se, esforçou-se para ouvir, mas sua mente não estava clara e, quanto mais tentava, mais distante da compreensão pareciam ficar as vozes dos tambores. Por fim, ela desistiu. Cedeu à tonteira que parecia tragá-la.
Então, ouviu os tambores e subitamente foi arrastada para longe.
Ela viajava rapidamente pelas planícies congeladas e desertas. Na paisagem árida estendida sob ela, os aspectos mais distintos quase se encontravam envolvidos por um véu de neve soprado pelo vento. Lentamente, tornou-se ciente de que não estava sozinha. Um companheiro viajante contemplava a mesma cena e, de forma inexplicável, exercia um grau de controle sobre sua velocidade e direção.
Então, fracamente, como uma aura de farol distante, um ponto de referência, ela ouviu vozes cantando e tambores falando. Num instante de nitidez, ouviu uma palavra pronunciada em destacado vibrante que aproximava, se não reproduzia exatamente, a altura, tom e ressonância de uma voz humana.
Zzlloooow. Depois, novamente, Zzlloooow heeerrrr.
Sentiu sua rapidez diminuir e, abaixando os olhos, viu alguns bisões amontoados no abrigo de uma margem de rio elevada. Os grandes animais permaneciam em resignação estóica sob a nevasca impelida pelo vento, a neve agarrando-se aos pêlos emaranhados, as cabeças abaixadas como se forçadas pelos chifres negros maciços que se estendiam. Somente o vapor soprando dos focinhos em seus rostos distintamente entorpecidos dava uma pista de que viviam, eram seres vivos, e não características da região.
Ayla sentiu-se arrastada para mais perto, suficientemente próxima para contá-los e notar animais isolados. Um filhote dava alguns passos para se aninhar junto à mãe; uma velha vaca, cujo chifre esquerdo estava quebrado na ponta, sacudia a cabeça e bufava; um touro escavava o terreno, empurrando a neve para um lado, focinhando depois a porção exposta de capim murcho. Ouviu-se um uivo a distância; talvez, do vento.
A paisagem se ampliou de novo quando eles recuavam, e ela vislumbrou quadrúpedes silenciosos movendo-se com firmeza e determinação. O rio corria entre afloramentos idênticos abaixo dos bisões reunidos. Rio acima, a planície aluvial onde os bisões procuraram abrigo estreitava-se entre margens altas e o rio corria por um desfiladeiro escarpado de rocha recortada, derramando-se depois em cachoeiras e pequenas cascatas. A única saída era um desfiladeiro rochoso, íngreme, um escoadouro para enchentes primaveris, que levava de volta às estepes.
Hhooomme.
A prolongada vogal da palavra ressoava no ouvido de Ayla com vibrações intensificadas, e ela se movia de novo, correndo pelas planícies.
- Ayla! Está bem? - perguntou Jondalar.
Ayla sentiu um sobressalto espasmódico deslocar seu corpo. Então, abriu os olhos para ver um outro par, muito azul, fitando-a com uma ruga de preocupação na testa.
- Hum... Sim, acho que sim.
- O que aconteceu? Latie disse que você caiu sobre a cama, depois ficou rígida e em seguida começou a se agitar. Então, adormeceu, e ninguém foi capaz de acordá-la.
- Não sei...
- Você veio comigo, Ayla, é claro. - Ambos se voltaram ao ouvir a voz de Mamut.
- Fui com você? Aonde? - interrogou Ayla.
O velho lançou-lhe um olhar penetrante. Ela está assustada, Não é de admirar, ela não esperava aquilo. E muito amedrontador da primeira vez, quando se está preparado, mas não pensei em prepará-la. Não suspeitei de que sua capacidade natural fosse tão grande. Ela nem sequer utilizou os somuti. Seu dom é poderoso demais. Deve ser treinada, para sua própria proteção, mas quanto posso lhe dizer agora? Não quero que pense em seu talento como um fardo que deve carregar a vida toda. Quero que saiba que é uma dádiva, embora envolva grande responsabilidade... Mas Ela, em geral, não concede Suas Dádivas àqueles que não podem aceitá-las. A Mãe deve ter um propósito especial para esta jovem.
- Onde acha que fomos, Ayla? - perguntou o velho feiticeiro.
- Não tenho certeza. Lá fora... Eu estava sob uma nevasca e vi bisão... Com chifre quebrado... Perto do rio.
- Viu claramente. Fiquei surpreso quando a senti comigo. Mas devia ter compreendido que talvez acontecesse, eu sabia que você possuía potencial. Tem um dom, Ayla, mas precisa de treinamento, de orientação.
- Um dom? - perguntou Ayla, sentando-se. Sentiu um calafrio e por um instante, um choque de medo. Não queria dom algum. Queria, apenas um companheiro e filhos, como Deegie ou outra mulher qualquer.
- Que tipo de dom, Mamut?
Jondalar viu seu rosto pálido. Ela parece tão assustada, e tão vulnerável, pensou, abraçando-a.
Queria apenas abraçá-la, protegê-la e amá-la. Ayla aconchegou-se ao calor do homem e sentiu sua apreensão. Mamut notou as interações sutis e ajuntou-as às suas considerações sobre a jovem mulher misteriosa que aparecera subitamente no meio deles. Por que, pensou, no meio deles?
Não acreditava que fosse o acaso que conduzira Ayla ao Acampamento do Leão. Casualidade ou coincidência não figuravam largamente em sua concepção do mundo. Mamut estava convencido de que tudo tinha um propósito, uma orientação dirigente, uma razão por existir, quer ele compreendesse ou não qual era, e estava seguro de que a Mãe tinha uma razão para dirigir Ayla até eles. Ele fizera algumas adivinhações sagazes sobre ela, e agora que sabia mais sobre sua formação, perguntava-se se parte do motivo por que ela havia sido enviada para eles, era ele mesmo. Sabia que era provável que ele, mais do que ninguém, a compreendesse.
- Não estou certo sobre que tipo de dom, Ayla. Uma dádiva da Mãe pode adquirir diversas formas. Parece que você tem um dom para a cura. provavelmente, seu jeito com os animais também é um dom.
Ayla sorriu. Se a magia de cura que ela aprendera com Iza era um dom, não se importava com isso. E se Whinney e Racer e Neném eram dádivas da Mãe, ela era grata. Já acreditava que o Espírito do Grande Leão da Caverna enviara-os a ela. Talvez a Mãe tivesse algo a ver com aquilo, também.
- E pelo que soube hoje, diria que tem um dom para a Busca. A Mãe tem sido generosa com Suas Dádivas a você - disse Mamut.
A testa de Jondalar enrugou-se de preocupação. Atenção demais de Doni não era necessariamente desejável. Tinham-lhe dito, muitas vezes, o quão dotado ele era; não lhe dera muita felicidade. De repente, lembrou-se das palavras do velho curandeiro de cabelos brancos que servira a Mãe pelo povo dos Sharamudoi. O Shamud lhe dissera, uma vez, que a Mãe o favorecera tanto que nenhuma mulher era capaz de recusá-lo, nem sequer a Própria Mãe o faria - que esse era seu dom -, mas preveniu-o para ser cauteloso. Dádivas da Mãe não eram uma bênção pura, sempre colocavam a pessoa em dívida com Ela. Isso significava que Ayla estava em dívida com a Mãe?
Ayla não tinha certeza se gostava muito da última dádiva.
- Não conheço Mãe, ou dádivas. Acho que o Leão da Caverna, meu totem, enviou Whinney.
Mamut pareceu surpreso.
- O Leão da Caverna é seu totem?
Ayla notou sua expressão e recordou como havia sido difícil para o Clã acreditar que uma mulher pudesse ter um poderoso totem masculino protegendo-a.
- Sim. Mog-ur me disse. O Leão da Caverna me escolheu e me marcou. Eu lhe mostro - explicou Ayla. Ela desatou a tira de couro da Cintura das calças e abaixou a roupa o suficiente para expor a coxa esquerda e as quatro cicatrizes paralelas feitas por uma garra aguçada, prova do seu encontro com um leão de caverna.
As marcas eram antigas, cicatrizadas havia muito tempo, observou Mamut. Ela devia ser muito jovem. Como uma menina havia escapado de um leão de caverna?
- Como conseguiu essa marca? - indagou ele.
- Não lembro... Mas tive sonho.
- Um sonho? - encorajou-a Mamut, interessado.
- Ele volta, às vezes. Estou em um lugar escuro, pequeno. A luz de uma abertura pequena. Então... - fechou os olhos e alguma coisa bloqueia a luz. Fico assustada. Depois, a grande pata do leão aparece, com garras afiadas. Eu grito, acordo.
- Tive um sonho sobre leões de caverna recentemente - Mamut. - É por isso que me interessei tanto por seu sonho. Sonhei com um bando de leões de caverna, tomando sol nas estepes num dia quente verão. Havia dois filhotes. Um deles, uma fêmea, tentava brincar com macho, um animal grande com crina avermelhada. Ela estendeu a pata; e bateu-lhe no rosto gentilmente, mais como se quisesse apenas tocá-lo. Grande macho a empurrou para um lado, depois a manteve segura com a pata dianteira abaixada e lambeu-a com sua comprida língua grossa.
Tanto Jondalar quanto Ayla ouviam, seduzidos.
- Então, de repente - continuou Mamut -, houve uma perturbação. Um rebanho de renas correu diretamente até eles. A princípio, pensei que atacavam... Muitas vezes os sonhos têm significado mais profundo do que parecem... Mas estas renas estavam em pânico, e quando viram os leões se espalharam. No processo, o irmão da fêmea foi atropelado. Quando terminou, a leoa tentou fazer o pequeno macho se erguer, mas não consegui reanimá-lo. Então, afinal, ela partiu somente com a pequena fêmea e o resto do bando.
Ayla estava sentada em estado de choque.
- O que há, Ayla? - interrogou Mamut.
- Neném! Neném era irmão. Persegui renas, caçando. Depois tirei o pequeno filhote, ferido. Levei para a caverna, curei-o, criei-o como bebê.
- O leão da caverna que você criou tinha sido pisado pelas renas? Foi a vez de Mamut sentir um choque. Aquilo não podia ser apenas coincidência ou semelhança de local. Aquilo tinha um significado importante Ele havia sentido que o sonho do leão da caverna deveria ser interpreta por seus valores simbólicos, mas havia mais significado ali do que ele imaginara. Ultrapassava a Busca, ia além de sua experiência anterior. Ele teve que pensar profundamente a respeito, e sentia que precisava saber mais.
- Ayla, se não se importa de responder...Foram interrompidos por uma discussão em voz alta.
- Você não se importa com Fralie! Nem sequer pagou um Preço Noiva decente! - guinchou
Crozie.
- E você não se importa com nada senão o seu status! Estou cansado de ouvir sobre o Preço de Noiva baixo. Paguei o que você pediu, quanto mais ninguém pagaria.
- O que quer dizer, ninguém mais pagaria? Você me suplicou por isso e disse que cuidaria dela e de seus filhos. Disse que me acolheria bem em sua fogueira.
- E não a acolhi? Não? - gritou Frebec.
- Chama isso de me acolher bem? Quando mostrou seu respeito? Quando me honrou como mãe?
- Quando você me mostrou respeito? Você questiona tudo o que digo!
- Se dissesse, alguma vez, uma coisa inteligente, ninguém precisaria discutir. Fralie merece mais. Olhe para ela, cheia de bênção da Mãe...
- Mamãe, Frebec, por favor, parem de brigar - interrompeu Fralie.
- Só quero descansar...
Ela parecia abatida e pálida, e preocupava Ayla. À medida que a discussão aumentava, a curandeira que havia nela compreendia como a briga infelicitava a mulher grávida. Levantou-se e foi impelida à Fogueira da Garça.
- Não vêem que Fralie está preocupada? - disse Ayla quando a velha e o homem pararam apenas o tempo suficiente para que ela falasse. - Ela precisa de ajuda, vocês não ajudam. Fazem Fralie ficar doente. Não é bom discutir, para mulher grávida. Faz com que ela perca o bebê.
Tanto Crozie quanto Frebec a olharam, surpresos, mas Crozie se recuperou depressa.
- Está vendo, eu não lhe disse? Não se importa com Fralie. Nem se quer deixa que ela fale com esta mulher que sabe alguma coisa a respeito. Se ela perder o bebê, a culpa será sua!
- O que ela sabe a respeito? - escarneceu Frebec. - Criada por um bando de animais sujos, o que pode ela saber de remédios? Depois, traz animais para cá. Ela não passa de um animal, ela mesma! Você tem razão, não deixarei Fralie perto desta abominação. Quem sabe que espíritos malignos ela trouxe para esta moradia? Se Fralie perder o bebê, será culpa dela! Ela e seus cabeças-chatas amaldiçoados pela Mãe!
Ayla recuou, cambaleando, como se recebesse um golpe físico. A força do ataque vituperativo tirou-lhe o ar e deixou o resto do acampamento sem fala. No silêncio de aturdimento, ela arquejou um grito estrangulado, soluçante, virou-se e saiu correndo da moradia. Jondalar agarrou sua parka e a dele e correu atrás.
Ayla empurrou a pesada cortina da entrada exterior em arco e saiu para o vento que uivava. A tempestade sinistra que ameaçara o dia inteiro não trouxe chuva ou neve, mas rugia com feroz intensidade além das paredes grossas da habitação de terra. Sem barreira para deter sua rajada selvagem, a diferença em pressões atmosféricas causada pelas grandes muralhas de gelo glacial ao norte gerava ventos com força de furacão através das vastas estepes descampadas.
Ela assobiou para Whinney e ouviu um relincho próximo como resposta. A égua e seu filhote apareceram, saindo da escuridão do lado protegido da habitação comunal.
- Ayla! Espero que não pretenda cavalgar nesta ventania - disse Jondalar, saindo da habitação.
- Tome, eu trouxe sua parka. Está frio aqui fora. Já deve estar congelando.
- Oh, Jondalar, não posso ficar aqui! - gritou ela.
- Vista sua parka, Ayla - insistiu ele, ajudando-a com a vestimenta sobre a cabeça. Depois, tomou-a nos braços. Ele havia esperado uma cena como a que Frebec acabara de fazer, havia muito tempo. Ele sabia que aconteceria, provavelmente, quando ela falou tão francamente sobre o seu background. - Não pode partir agora. Não neste vendaval. Para onde vai?
- Não sei, não importa - soluçou ela. - Para longe daqui.
- E Whinney? E Racer? Não é bom estarem aqui fora neste tempo.
Ayla se agarrou a Jondalar sem resposta mas, em outro nível de consciência, ela havia observado que os animais procuraram abrigo perto da habitação de terra. Aborrecia-a não ter uma caverna para lhes oferecer ou proteção contra o mau tempo, como estavam acostumados. E Jondalar tinha razão. Ela não podia partir, possivelmente, numa noite como aquela.
- Não quero ficar aqui, Jondalar. Assim que o tempo melhorar quero voltar ao vale.
- Se quiser, Ayla, voltaremos. Depois que melhorar. Mas, agora, vamos entrar novamente.
- Veja, quanto gelo está sobre seus pêlos - disse Ayla, tentando afastar com a mão os sincelos de gelo que pendiam, emaranhados, sobre o pêlo comprido e entrelaçado de Whinney. A égua bufou, levantando uma nuvem fumegante de vapor quente no ar frio da manhã que se dissipou rapidamente sob a ação do vento cortante. A tempestade havia cessado, mas as nuvem baixas ainda pareciam ameaçadoras.
- Mas os cavalos ficam sempre do lado de fora no inverno. E não vivem em cavernas, Ayla - falou Jondalar, tentando parecer razoável,
- E muitos morrem no inverno, embora permaneçam em lugares abrigados, quando o tempo é ruim. Whinney e Racer sempre tiveram local quente e seco quando o quiseram. Não vivem com um bando ...estão habituados a ficar fora o tempo todo. Isto não é um bom lugar par eles... e também não é bom lugar para mim. Você disse que podíamos embora a qualquer momento. Quero voltar para o vale.
- Ayla, não fomos bem recebidos aqui? A maioria das pessoas não foi bondosa e generosa?
- Sim, fomos bem acolhidos. Os Mamutoi tentam ser generosos com seus hóspedes, mas somos apenas visitantes aqui, e é hora de partir.
A testa de Jondalar tinha uma ruga de preocupação quando baixou a cabeça e arrastou seu pé.
Queria dizer uma coisa, mas não sabia exatamente como.
- Ayla... Ah... Eu lhe disse que algo assim talvez acontecesse se você... Se você contasse sobre... Ah... Sobre as pessoas com quem viveu. A maioria não tem a mesma opinião... Que você... Sobre elas. - Levantou a cabeça.
- Se não tivesse dito nada...
- Eu teria morrido se não fosse o Clã, Jondalar! Está dizendo que eu devia me envergonhar do povo que cuidou de mim? Acha que Iza era menos humana que Nezzie? - esbravejou Ayla.
- Não, não, eu não quis dizer isso, Ayla. Não estou dizendo que você devia se envergonhar, estou dizendo apenas... Isto é... Não precisa falar deles com pessoas que não compreendem.
- Não estou certa de que você compreenda. Sobre quem você acha que eu devia falar quando as pessoas perguntam quem sou? Quem é meu povo? De onde venho? Não sou mais Clã... Broud amaldiçoou-me; para eles, estou morta... mas desejaria poder ser! Ao menos, aceitaram-me, afinal, como curandeira. Não me impediriam de ajudar alguém que precisasse de auxílio. Sabe como é terrível ver essa mulher, Fralie, sofrer, e não ter permissão para ajudar? Sou uma curandeira, Jondalar! - exclamou com um grito de desamparo e frustração, e voltou-se para o cavalo, zangada.
Latie saiu pela entrada da habitação de terra e se aproximou ansiosa mente ao ver Ayla com os cavalos.
- O que posso fazer para ajudar? - perguntou, sorrindo largamente. Ayla recordou o oferecimento que ela fizera para ajudar na tarde anterior, e tentou se controlar.
- Agora, acho que não preciso de ajuda. Não vou ficar, voltarei para o vale, imediatamente - disse, falando na língua da menina.
Latie ficou arrasada.
- Oh... Bem... Acho que estou atrapalhando, então - disse, começando a voltar para a arcada da entrada.
Ayla notou o desapontamento dela.
- Mas, cavalos precisam de pêlo escovado. Cheio de gelo. Quem sabe você possa ajudar hoje?
- Oh, sim! - a garota voltou a sorrir. - O que posso fazer?
- Vê, ali, no terreno perto da moradia, talos secos?
- Quer dizer, este cardo? - perguntou Latie, pegando uma haste rija com a parte superior redonda, espinhosa, seca.
- Sim, peguei na margem do rio. À parte de cima dá uma boa escova. Quebre, assim. Enrole a mão com pequeno pedaço de couro. E mais fácil de segurar - explicou Ayla. Depois, guiou a menina até Racer e mostrou-lhe como devia segurar o cardo para limpar o emaranhado pêlo do Potro. Jondalar permaneceu próximo para manter o animal calmo até ele se acostumar com a menina estranha, enquanto Ayla voltava a quebrar e escovar o gelo agarrado a Whinney.
A presença de Latie fez cessar temporariamente a conversa de Ayla sobre partir, e Jondalar ficou grato por isso. Sentia que havia dito mais do que deveria e não falou de forma adequada. Agora, procurava palavras.
Não queria que Ayla partisse naquelas circunstâncias. Talvez ela jamais quisesse deixar o vale novamente se fosse embora agora. Embora a amasse muito, não sabia se poderia suportar passar o resto de sua vida sem ela e viver com qualquer outra pessoa. Tampouco acreditava que ela fosse disso. Tem convivido tão bem, pensou ele. Ela não teria dificuldade em lugar algum, mesmo com os Zelandonii. Se, ao menos, ela não falasse mas, tem razão. O que deve dizer quando alguém pergunta qual é o seu povo? Ele sabia que se a levasse para casa consigo, todos perguntariam.
- Você sempre escova os pêlos deles para tirar o gelo, Ayla? - interrogou Latie.
- Não, nem sempre. No vale, os cavalos entram na caverna quando há mau tempo. Aqui, não existe lugar para cavalos - replicou Ayla. - Eu partirei breve. Voltarei para o vale quando o tempo melhorar.
Dentro da moradia, Nezzie havia atravessado a fogueira de cozinhar. e o vestíbulo, a caminho da saída mas, quando se acercou do arco exterior, ouviu-os falando lá fora e parou para escutar. Ela temia que Ayla talvez desejasse partir depois do contratempo da noite anterior, e isso significava que não haveria mais aulas de linguagem por sinais para Rydag e o acampamento. A mulher já notava a diferença na forma como as pessoas o tratavam, agora, que podiam falar-lhe. Exceto Frebec, claro. Lamento ter pedido a Talut para convidá-los a juntar-se a nós... pensou consigo mesma, exceto que, onde Fralie estaria agora, se eu não o tivesse feito? Ela não está bem; esta gravidez é difícil para ela.
- Por que tem que partir, Ayla? - perguntou Latie. - Podíamos fazer um abrigo para eles aqui.
- Ela tem razão. Não seria difícil construir uma tenda ou alpendre, ou alguma coisa perto da entrada para protegê-los das piores neves e ventos - ajuntou Jondalar.
- Acho que Frebec não gosta de ter animal tão perto - disse Ayla.
- Frebec é só uma pessoa, Ayla - falou Jondalar.
- Mas Frebec é Mamutoi. Eu não sou.
Ninguém refutou sua declaração, mas Latie corou, envergonhada de seu acampamento.
Dentro, Nezzie correu de volta à Fogueira do Leão. Talut, que acabava de acordar, pôs de lado as peles, pendurou as grandes pernas sobre a beira do estrado-cama e sentou-se. Coçou a barba, estendeu os braço amplamente e abriu a boca num bocejo terrível. Depois, fez uma careta de dor e segurou a cabeça com as mãos por um instante. Ergueu os olhos, Nezzie e sorriu mansamente.
- Bebi demais a noite passada - anunciou ele. Levantando-se, tendeu a mão para a túnica e vestiu-a.
- Talut, Ayla está planejando partir assim que o tempo melhorar disse Nezzie.
O homem grande franziu as sobrancelhas.
- Eu temia isso. E pena. Eu esperava que passassem o inverno conosco.
- Não podemos fazer nada? Por que o mau humor de Frebec deveria afastá-los quando todos querem que fiquem?
- Não sei o que podemos fazer. Falou com ela, Nezzie?
- Não. Ouvi-a falando lá fora. Disse a Latie que não havia lugar para abrigar os animais aqui, e eles estavam acostumados a entrar em sua caverna quando o tempo estava ruim. Latie disse que podíamos fazer um abrigo e Jondalar sugeriu uma tenda ou algo perto da entrada. Então, Ayla falou que achava que Frebec não gostaria de ter um animal tão perto, e sei que ela não falava dos cavalos.
Talut se dirigiu à entrada e Nezzie o seguiu.
- Provavelmente, poderíamos fazer algo para os cavalos - disse ele -, mas, se ela quiser ir, não podemos obrigá-la a ficar. Ela não é sequer Mamutoi, e Jondalar é Zel... Zelan... o que quer que seja.
Nezzie o deteve.
- Não podíamos fazê-la Mamutoi? Ela diz que não tem povo. Podíamos adotá-la, depois você e Tulie realizariam a cerimônia para que entrasse para o Acampamento do Leão.
Talut refletiu.
- Não estou certo, Nezzie. Não se pode fazer alguém Mamutoi. Todos teriam que concordar e precisaríamos de boas razões para explicar ao Conselho, na Reunião de Verão. Além disso, você disse que ela está de partida - falou Talut. Depois, afastou a cortina para um lado e se apressou em direção à vala.
Nezzie ficou fora do arco de entrada, observando as costas de Talut e depois mudou a direção do olhar para a mulher alta e loura que escovava o pêlo espesso do cavalo cor de feno. Parando para estudá-la cuidadosamente, Nezzie se perguntou quem era ela, realmente. Se Ayla perdera a família na península ao sul, podiam ter sido Mamutoi. Vários acampamentos passavam o verão perto do mar Beran, e a península não ficava muito distante mas, de algum modo, a mulher mais velha duvidava disso. Os Mamutoi sabiam que era território dos cabeças-chatas e, como regra, permaneciam distantes. E havia alguma coisa nela que não parecia ser de uma Mamutoi. Talvez sua família tivesse sido Sharamudoi, aquelas pessoas do rio, a oeste, com quem Jondalar havia ficado, ou talvez Sungaea, o povo que vivia ao nordeste, mas ela não sabia se eles viajavam tanto para o sul, até o mar. Talvez seu povo houvesse sido estrangeiro, viajando de algum outro lugar.
Era difícil dizer, mas uma coisa era certa. Ayla não era cabeça-chata... e no entanto, eles a aceitaram.
Barzec e Tornec saíram da habitação, seguidos de Danug e Druwez. Fizeram saudações matinais e Nezzie, da maneira como Ayla lhes ensinara; isso estava ficando comum no Acampamento do Leão e Nezzie o encorajava. Rydag saiu em seguida, fez seu cumprimento e sorriu para ela. Nezzie acenou e retribuiu o sorriso, mas quando ela o abraçou, seu sorriso desaparecera. Rydag não parecia bem. Estava ofegante e pálido, e parecia mais cansado que o usual. Talvez estivesse doente.
- Jondalar! Aí está você - disse Barzec. - Fiz um daqueles arremessadores vamos experimentá-lo lá nas estepes. Eu disse a Tornec que um pouco de exercício o ajudaria a melhorar da dor de cabeça, porque bebeu demais ontem à noite. Quer ir conosco?
Jondalar lançou um olhar a Ayla. Não era provável que resolvessem alguma coisa naquela manhã, e Racer parecia muito feliz pela atenção que Latie lhe dava.
- Muito bem, vou buscar o meu - disse Jondalar.
Enquanto esperavam, Ayla observou que Danug e Druwez pareciam evitar os esforços de Latie para conseguir sua atenção, embora o garoto ruivo e desengonçado sorrisse timidamente para ela. Latie vigiava o irmão e o primo com olhar infeliz quando eles se afastaram com os homens.
- Podiam ter-me chamado para ir também - resmungou ela, baixinho, voltando-se depois com determinação para escovar Racer.
- Quer aprender a atirar lanças, Latie? - perguntou Ayla lembrando-se dos dias passados, quando ela observava a partida dos caçadores, desejosa de poder ir com eles.
- Podiam ter-me chamado. Sempre venço Druwez em arcos, mas eles nem mesmo olharam para mim - disse Latie.
- Eu mostrarei, Latie, se quiser. Depois dos cavalos escovados - disse Ayla.
Latie ergueu os olhos para Ayla. Lembrou-se das exibições surpreendentes da mulher com a funda e o arremessador de lança, e notara o riso de Danug para ela. Então, um pensamento lhe ocorreu.
Ayla tentava chamar a atenção para si mesma, ela ia em frente, apenas, e fazia o que queria, mas era tão boa no que fazia, que as pessoas prestavam atenção nela.
- Eu gostaria que me mostrasse, Ayla - falou. Depois, perguntando após uma pausa: - Como conseguiu ficar tão boa? Quero dizer, com funda e o arremessador de lanças.
Ayla refletiu um instante e disse depois:
- Eu queria muito, e treino... muito.
Talut veio subindo do rio, o cabelo e barba molhados, os olhos semi cerrados.
- Oh, minha cabeça - disse ele, com gemido exasperado.
- Talut, por que molhou a cabeça? Ficará doente, com este tempo. - disse Nezzie.
- Estou doente. Afundei a cabeça na água fria para tentar me livra desta dor de cabeça. Oh!
- Ninguém o obrigou a beber tanto. Vá para dentro e se enxugue.
Ayla olhou para ele com preocupação, um pouco surpresa de Nezzie tivesse tão pouca pena dele.
Ela também se sentira um pouco de com dor de cabeça ao acordar. Teria sido por causa da bebida? A bebida fermentada de que todos gostavam tanto?
Whinney levantou a cabeça e se agitou. Depois, lhe deu um relincho.
O gelo sobre o pelo dos animais não lhes fazia mal, embora uma quantidade grande pudesse pesar. Mas gostavam de ser escovados e da atenção, e a égua notara que Ayla havia parado, perdida em seus pensamentos;
- Whinney, pare com isso. Quer apenas mais atenção, não é? - disse ela, usando a forma de comunicação que empregava, em geral, com o animal.
Latie, embora já houvesse ouvido antes, estava ainda um pouco assombrada com a imitação perfeita do som de voz do cavalo que Ayla fazia e reparou na linguagem de sinal, agora que estava mais acostumada a ela, embora não estivesse segura de compreender os gestos.
- E capaz de falar com cavalos! - exclamou a menina.
- Whinney é amiga - disse Ayla, pronunciando o nome da égua da forma que Jondalar fazia, porque as pessoas do acampamento pareciam mais à vontade ouvindo uma palavra em lugar de um relincho. - Por muito tempo, foi minha única amiga. - Deu tapinhas carinhosos na égua, depois examinou o pêlo do potro e acariciou-o também. - Acho que chega de escovar. Agora, pegamos o arremessador de lanças e vamos treinar.
Entraram na habitação de terra, passando por Talut, que tinha aparência infeliz, a caminho da quarta fogueira. Ayla pegou seu arremessador e um punhado de lanças e, a caminho da saída, notou o resto do chá de milefólio que ela preparara para sua dor de cabeça matinal. A uma bela seca da flor e as folhas quebradiças e frágeis da planta ainda se agarravam a uma haste que crescera junto ao cardo. O milefólio, picante e aromático quando fresco, que crescera perto do rio, perdia sua força com a chuva e o sol, mas lembrou-se de alguns que havia preparado e secado anteriormente. Ela teve uma perturbação de estômago juntamente com a dor de cabeça, por isto decidiu usá-lo também, assim como a casca de salgueiro.
Talvez ajudasse Talut, pensou, embora pelos seus lamentos, ela se perguntasse se o preparado de ergotina, que fazia para dores de cabeça particularmente fortes, seria melhor. Era um remédio muito forte, no entanto.
- Tome isto, Talut. Para dor de cabeça - disse ela a caminho da saída.
Ele sorriu sem vontade, pegou a tigela e bebeu, não esperando grande coisa, mas contente pela compaixão que ninguém mais parecia disposto a lhe oferecer.
A mulher loura e a menina subiram juntas a encosta, dirigindo-se à trilha pisada onde as competições tinham ocorrido. Quando chegaram ao terreno plano das estepes, viram que os quatro homens que tinham subido antes treinavam em uma extremidade; elas se dirigiram ao lado oposto.
Whinney e Racer as seguiram. Latie sorriu para o potro castanho-escuro quando abanou o rabo para ela e sacudiu a cabeça. Depois, ele se pôs a pastar ao lado da mãe, enquanto Ayla mostrava a Latie como arremessar Uma lança.
- Segure assim - começou Ayla, pegando o estreito implemento de madeira que tinha cerca de 60 centímetros de comprimento em posição horizontal. Ela colocou o primeiro e segundo dedos de sua mão direita nas alças de couro. - Depois, coloque a lança - continuou, descansando a haste da lança, talvez de 1,8 metro de comprimento, em um bojo escavado na extensão do implemento.
Ela ajustou o gancho, esculpido como uma escora, na extremidade da lança, tomando cuidado para não esmagar penas. Então, mantendo a lança firme, puxou-a para trás e arremessou-a, A longa extremidade livre do arremessador se ergueu, acrescentando impulso e força, e a lança voou com velocidade e potência. Ela deu o implemento a Latie.
- Assim? - indagou a menina, segurando o arremessador da maneira como Ayla havia explicado. - A lança descansa nesta cavidade, coloco os dedos através das alças para segurá-la e ponho a ponta contra esta parte de trás.
- Ótimo. Arremesse agora.
Latie jogou a lança a boa distância.
- Não é difícil - disse ela, satisfeita consigo mesma.
- Não, não é difícil arremessar lanças - concordou Ayla. - E difícil fazer a lança chegar ao lugar onde você quer que chegue.
- Quer dizer, ser precisa. Como fazer o dardo entrar na argola.
Ayla sorriu.
- Sim. É necessário prática para fazer o dardo passar por argola. - Viu Frebec acercando-se para olhar o que os homens faziam e, de repente, ela se tornou consciente de sua fala.
Ainda não fala corretamente. Precisava treinar, pensou. Mas, por que isso era importante Ela não ia ficar.
Latie treinou enquanto Ayla lhe dava instruções, e as duas se entreteram tanto, que não perceberam que os homens se tinham acerca e parado de treinar para observá-las.
- Muito bem, Latie! - gritou Jondalar depois que ela atingiu o se alvo. - Talvez você se torne melhor do que todo mundo! Acho que e; garotos cansaram de treinar e quiseram vir ver você, em vez disso.
Danug e Druwez pareciam embaraçados. Havia alguma verdade provocação de Jondalar, mas o sorriso de Latie era radiante.
- Serei melhor que todo mundo. Vou treinar até ser - disse ela.
Resolveram que tinham treinado o suficiente para um dia e descer de volta à habitação de terra.
Quando se aproximaram da arcada de presa de mamute, Talut saía apressado.
- Ayla! Aí está você. O que havia naquela bebida que me deu? Interrogou ele, avançando na direção dela.
Ela recuou um passo.
- Milefólio com um pouco de alfafa e uma pequena folha de framboesa e...
- Nezzie! Ouviu isso? Descubra como ela faz a bebida. Fez minha dor de cabeça desaparecer! Sinto-me um homem novo! - Olhou ao redo - Nezzie?
- Ela desceu até o rio com Rydag - disse Tulie. - Ele parecia -”cansado esta manhã, e Nezzie achou que ele não devia ir longe demais. ele disse que queria ir com ela... Não estou certa sobre o sinal.., ou talvez que queria estar com ela... Eu disse que iria para ajudar a carregá-lo, o para trazer a água de volta. Estou a caminho.
O comentário de Tulie atraiu a atenção de Ayla por mais de um motivo. Ela sentiu preocupação com a criança, porém, mais que isso, detectou uma mudança clara na atitude de Tulie em relação ao menino. Agora, ele era Rydag, não apenas “o menino”, e ela falava sobre o que ele havia dito para ela, Rydag se tornara pessoa.
- Bem... - Talut hesitou, surpreso por um momento ao saber que Nezzie não se encontrava nas adjacências; depois, censurando-se por esperar que estivesse. Riu baixinho. - Você me dirá como se faz à bebida, Ayla?
- Sim, direi.
Parecia encantado.
- Se vou preparar a bebida fermentada, então, tenho que ter um remédio para a manhã seguinte.
Ayla sorriu. Apesar de todo o tamanho, havia alguma coisa encantadora no enorme chefe de cabelo vermelho. Ela não tinha dúvida de que ele poderia ser temível, se encolerizasse. Era tão ágil e rápido, quanto forte e, certamente, não lhe faltava inteligência, mas havia ternura nele. Ele resistia à cólera. Embora não fosse contra fazer uma piada à custa de outra pessoa, ria muito freqüentemente, também, de suas próprias fraquezas. Enfrentava os problemas humanos de sua gente com preocupação verdadeira e sua compaixão se estendia além de seu próprio acampamento.
De repente, um lamento agudo chamou a atenção de todos para o rio.
O primeiro olhar de Ayla a fez descer correndo a encosta; várias pessoas a seguiram. Nezzie estava ajoelhada, inclinada sobre um pequeno vulto, gemendo angustiada. Tulie estava de pé ao seu lado, parecendo confusa e indefesa. Quando Ayla chegou, viu Rydag inconsciente.
- Nezzie? - com a expressão, indagou o que ocorrera.
- Subíamos a encosta - explicou Nezzie. - Ele começou a ter problema para respirar. Resolvi que era melhor carregá-lo, mas enquanto colocava o saco de água no chão, ouvi-o gritar de dor.
Quando ergui os olhos, ele jazia ali, assim.
Ayla se ajoelhou e examinou Rydag com cuidado, colocando a mão e depois o ouvido sobre seu peito, tocando-lhe o pescoço perto do maxilar. Fitou Nezzie com olhos perturbados, depois se voltou para a chefe.
- Tulie, carregue Rydag para a habitação, para a Fogueira do Mamute. Depressa! - ordenou.
Ayla voltou correndo à frente e atravessou rapidamente as arcadas. Correu até o estrado ao pé de sua cama e remexeu seus pertences até encontrar uma bolsa incomum feita de pele inteira de lontra. Virou seu conteúdo sobre a cama e procurou entre a pilha de pacotes e pequenos sacos que continha, examinando a forma do recipiente, a cor e o tipo de corda que o mantinha fechado, e o número e espaço dos nós em cada pacote.
Sua mente disparava. É o coração dele, sei que o problema é o coração dele. Não parecia bem. O que devo fazer? Não sei muito sobre o coração. Ninguém no clã de Brun tinha problemas de coração. Devo recordar o que Iza explicou E aquela outra curandeira na Reunião de Clãs. Havia duas pessoas em seu acampamento com problemas cardíacos. Pense primeiro, dizia sempre Iza, o que está exatamente errado. Ele está pálido e inchado. Tem dificuldade para respirar e sente dor. Seu batimento é fraco. Seu coração deve trabalhar mais, fazer maiores esforços. O que é melhor? Talvez, a datura? Acho que não. E o heléboro? Beladona? Meimendro-negro? Dedaleira? Dedaleira... folhas de dedaleira. E muito forte. Pode matá-lo. Mas ele morrerá sem alguma coisa forte o bastante para fazer seu coração trabalhar novamente. Então, quanto usar? Devo fervê-la ou fazer uma infusão? Oh, queria lembrar o modo como Iza fazia. Onde está minha dedaleira? Não tenho nenhuma?,.
- Ayla, o que há? - Ela ergueu a cabeça e viu Mamut ao seu lado.
- E Rydag... Seu coração. Vão trazer o menino e procuro... Planta. Haste comprida... Flores penduradas... Purpúreas, manchas vermelhas dentro. Folhas grandes, como pele, do lado de baixo. Faço coração... Bater Sabe? - Ayla se sentia sufocada por sua falta de vocabulário, mas ela havia sido mais clara do que imaginava.
- Claro, a digital purpúrea, dedaleira é outro nome. E muito forte...
- Mamut observou Ayla fechar os olhos e respirar fundo.
- E, mas necessária. Preciso pensar, quanto... Aqui está a sacola! Iza disse para ficar sempre com ela.
Neste instante, Tulie entrou carregando o menino. Ayla tirou uma pele de sua cama, colocou-a ao solo perto do fogo, e ordenou à mulher que deitasse ali. Nezzie estava atrás de Tulie, e todos se amontoavam ao redor.
- Nezzie, tire a parka. Abra as roupas. Talut, há gente demais aqui, abra espaço - ordenou Ayla, sem sequer compreender que ela dava ordens. Abriu a pequena bolsa de couro que segurava e cheirou o conteúdo Ergueu os olhos para o velho feiticeiro, preocupada. Depois, com um olhar à criança inconsciente, seu rosto endureceu com determinação. - Mais preciso de fogo forte. Latie, pegue pedras para cozinhar, tigela de e outra para beber.
Enquanto Nezzie desapertava as roupas do menino, Ayla amontoou mais peles para colocar atrás dele e levantar sua cabeça. Talut fazia as pessoas do acampamento recuarem para dar ar a Rydag, e espaço para Ayla trabalhar. Latie avivava ansiosamente o fogo que Mamut havia feito, tentando fazer as pedras se aquecerem mais depressa.
Ayla verificou o pulso de Rydag. Era difícil de achar. Colocou o ouvido sobre o peito do menino.
Sua respiração era baixa e forçada. Ele precisava de ajuda. Ela recuou a cabeça para abrir sua passagem de ar. Depois colou a boca à dele para insuflar os pulmões do garoto, como fizera com Nuvie.
Mamut a observou por algum tempo. Ela parecia muito jovem para ter tanta habilidade para curar e, com certeza, houvera um instante de indecisão, mas este passara. Agora ela estava calma, concentrada na criança dando ordens com segurança, tranqüila.
Ele sacudiu a cabeça concordando consigo mesmo, depois se sentou atrás do tambor de crânio de mamute e começou uma cadência media acompanhada por um canto baixo que, estranhamente, teve o efeito de aliviar parte da tensão que Ayla sentia. O canto de cura foi rapidamente entoado pelo resto do acampamento; aliviava as tensões e todos sentiram que contribuíam de forma benéfica. Tornec e Deegie entraram para o grupo com seus instrumentos, depois Ranec apareceu com anéis que chocalhavam, feitos de marfim. A música dos tambores, o canto e a vibração dos anéis não eram altos ou dominantes mas, ao contrário, tranqüilos e vibrantes.
A água já fervia. Ayla mediu uma quantidade de folhas de dedaleira secas na palma da mão e espalhou-as na água que borbulhava na tigela. Esperou, então, deixando as folhas se encharcarem e tentou permanecer calma, até, afinal, a cor e seu senso intuitivo lhe dizerem que estava pronta a infusão. Derramou uma parte em uma tigela. Depois, colocou a cabeça de Rydag em seu colo e fechou os olhos um momento. Aquele medicamento não devia ser usado negligentemente. A dosagem errada mataria a criança e a força das folhas de cada planta variava.
Ayla abriu os olhos para ver dois outros de um azul vivo, cheios de amor e preocupação, retribuindo-lhe o olhar, e lançou a Jondalar um sorriso fugaz de gratidão. Levou a tigela à boca e mergulhou nela a língua, testando a força do preparado. Depois, levou a bebida amarga aos lábios da criança.
Ele engasgou ao primeiro gole, mas despertou ligeiramente. Tentou sorrir para Ayla, em sinal de reconhecimento, mas fez uma careta de dor, em vez disso. Ela o fez beber mais, devagar, enquanto observava cuidadosamente suas reações: mudanças na cor e temperatura da pele, o movimento dos olhos, a profundidade de sua respiração. As pessoas do Acampamento do Leão também observavam, com ansiedade. Não tinham compreendido quanto a criança passara a significar para elas até sua vida ser ameaçada. Ele havia crescido na companhia deles, era um deles e, fazia pouco tempo, começaram a entender que Rydag não era diferente de ninguém.
Ayla não estava certa de quando o ritmo e o canto cessaram, mas o som calmo de Rydag respirando profundamente soou como grito de vitória no silêncio absoluto da habitação cheia de tensão.
Ayla notou um rubor leve quando ele respirou fundo pela segunda vez, e sentiu sua apreensão decrescer um pouco. A música recomeçou com um compasso diferente, uma criança gritou, vozes murmuraram. Ela pousou a cuia, verificou a pulsação no pescoço dele, sentiu-lhe o peito. Ele respirava com mais facilidade e menos dor. Ela ergueu a cabeça para Nezzie ela viu sorrindo para ela através de olhos cheios de lágrimas. Não estava sozinha.
Ayla segurou o menino até ter certeza de que ele descansava confortavelmente, e segurou-o depois somente porque tinha vontade. Se ela se micerrasse os olhos, quase poderia esquecer as pessoas do acampamento. Quase era capaz de imaginar aquele menino, tão parecido com seu filho, Como a criança a quem dera realmente à luz. As lágrimas que molharam-lhe a face eram tanto por si própria, pelo filho que ansiava ver, quanto pela criança em seus braços.
Afinal, Rydag adormeceu. A provação havia exigido muito dele e de Ayla também. Talut pegou-o ao colo e carregou-o para sua cama. E Jondalar a ajudou a levantar-se. Ele a abraçou, enquanto ela se aconchegava a ele, sentindo-se extenuada e grata pelo apoio.
Havia lágrimas de alívio nos olhos da maioria das pessoas do acampamento reunido, mas era difícil encontrar palavras apropriadas. Não sabiam o que dizer à jovem mulher que salvara a criança.
Enviaram sorrisos, sacudiram a cabeça de forma aprovadora, tocaram-na com carinho, murmuraram alguns comentários, pouco mais que simples sons do que suficiente para Ayla. Naquele momento, ela se sentiria mal com palavras de gratidão ou elogio em demasia.
Depois de Nezzie certificar-se de que Rydag estava confortavelmente acomodado, foi falar com Ayla.
- Pensei que ele tinha morrido. Não acredito que esteja apenas dormindo - disse ela. - Esse remédio foi bom.
Ayla concordou com um gesto de cabeça.
- É, mas forte. Porém, ele deve tomar todos os dias um pouco, não muito. Deve tomar com outro remédio. Eu misturarei para ele. Você como chá, mas ferve um pouco primeiro. Eu mostrarei. Darei a ele pequena tigela de manhã, outra antes de dormir. Ele vai urinar mais à noite... Até a inchação diminuir.
- Esse remédio fará com que fique bom, Ayla? - perguntou Nezzie com voz esperançosa.
Ayla estendeu a mão para a dela e encarou-a.
- Não, Nezzie. Nenhum remédio pode curar Rydag - respondeu com voz firme onde havia uma ponta de tristeza.
Nezzie balançou a cabeça, concordando. Ela soubera o tempo todo mas o medicamento de Ayla realizara uma recuperação tão milagrosa ela não pudera deixar de ter esperança.
- Remédio ajudará. Rydag se sentirá melhor, sem tanta dor - continuou Ayla. - Mas não tenho muito, deixei a maior parte dos remédios no vale. Não pensei que ficaríamos longe muito tempo.
Mamut conhece a dedaleira, talvez tenha alguma.
Mamut falou:
- Meu talento é para Busca, Ayla. Tenho pouco dom para a cura mas o Mamut do Acampamento do Lobo é um bom curandeiro. Podem mandar alguém perguntar se ele tem alguma, depois que o tempo melhora No entanto, isso levará alguns dias.
Ayla esperava ter suficiente quantidade do estimulante de feito de folhas de dedaleira, para durar até alguém poder conseguir ir porém, desejava ainda mais ter o resto de seu preparado consigo. Não estava segura em relação aos métodos de outra pessoa. Ela sempre era mui cuidadosa em secar as grandes folhas encrespadas devagar, num local fresco e seguro longe do sol, para reter o máximo possível do princípio ativo. Verdade, desejava ter todos os seus remédios de ervas cuidadosamente parados, mas ainda estavam estocados em sua pequena caverna no vale Exatamente como Iza fizera, Ayla sempre carregava sua sacola de remédios de pele de lontra, que continha algumas raízes e cascas de árvores, folhas, flores, frutas e sementes. Mas isso era pouco mais do que primeiros socorros para ela. Possuía uma farmacopéia inteira em sua caverna, embora tivesse vivido sozinha e lá não encontrasse uso para os remédios.
Era o treinamento e o hábito que a fizeram juntar plantas medicinais quando apareciam nas estações passageiras. Era quase tão automático quanto andar. Em seu ambiente, ela conhecia muitos outros usos para os vegetais, desde fibras para cordas até alimento, mas eram as propriedades medicinais que a interessavam mais. Mal podia passar por uma planta, que sabia possuir propriedades medicinais, sem pegá-la, e ela conhecia centenas delas.
Estava tão familiarizada à vegetação, que plantas desconhecidas sempre a intrigavam. Procurava semelhanças com plantas conhecidas e entendia as categorias dentro de classificações mais amplas. Era capaz de identificar tipos e famílias relacionados, mas sabia bem que a aparência similar não significava necessariamente reações iguais, e experimentava cautelosamente em si mesma, provando e testando com saber e experiência.
Também era cuidadosa com as doses e métodos de preparação. Ayla sabia que uma infusão, preparada pelo derramamento de água fervente sobre várias folhas, flores ou framboesas e frutas semelhantes, deixando- as maceradas, extraía as essências e princípios aromáticos e voláteis. A fervura, que causava cozimento, extraía os princípios resinosos, amargos, extrativos, e era mais eficaz sobre materiais duros como cascas de árvores, raízes e sementes. Ela sabia como extrair as resinas, goma e óleos essenciais de uma erva, como fazer cataplasmas, emplastros, tônicos, xaropes, ungüentos ou pomadas utilizando gorduras ou agentes para engrossar. Sabia como misturar ingredientes, e como tonificar ou diluir, segundo a necessidade.
O mesmo processo de comparação que se aplicava aos vegetais revelava as semelhanças entre animais. O conhecimento de Ayla do corpo humano e de suas funções era o resultado de uma longa história de conclusões tiradas de ensaio e erro, e de uma compreensão ampla da anatomia animal proveniente de retalhar os animais caçados. Seu relacionamento com os seres humanos podia ser visto quando acidentes ou danos eram sofridos.
Ayla era botânica, farmacêutica e médica; sua magia consistia de um saber esotérico que passou e se aperfeiçoou de geração após geração, durante centenas, milhares, talvez milhões de anos de colhedores e caçadores, cuja própria existência dependia de um conhecimento profundo da terra onde viviam e de seus produtos.
Desta fonte inacabável de história não-registrada, passada a ela por meio do treinamento que recebera de Iza, e ajudada por um dom analítico inato e uma percepção intuitiva, Ayla podia diagnosticar e tratar a maior parte das doenças e males. Com uma lâmina de sílex aguçada como navalha, ela realizava até mesmo pequenas cirurgias ocasionalmente, mas a sua medicina dependia mais dos complexos princípios ativos de plantas medicinais. Era hábil e seus remédios, eficazes, mas ela não podia realizar uma grande cirurgia para corrigir um defeito congênito do coração.
Enquanto observava o menino adormecido que parecia tanto com seu filho, Ayla sentiu gratidão e alívio enormes por saber que Durc, forte e saudável ao nascer - mas isso não diminuía a dor de ter que dizer a Nezzie que nenhum remédio podia curar Rydag.
Depois, à tarde, Ayla vasculhou seus embrulhos e sacolas de ervas para preparar a mistura que havia prometido a Nezzie fazer. Mamut a observava em silêncio, de novo. Agora, quase ninguém poderia ter dúvida de sua capacidade de curar, incluindo Frebec que tinha que reconhecê-lo, embora, talvez não quisesse ainda admiti-lo, e Tulie, que não havia falado mas que, o velho sabia, fora bastante cética a respeito. Ayla parecia ser uma jovem comum, bastante atraente mesmo para seus velhos olhos, mas estava convencido de que havia muito mais poder nela do que qualquer pessoa imaginava; ele duvidava de que ela própria conhecesse a extensão total do seu potencial.
Que vida difícil - e fascinante - ela tem vivido, refletiu ele. Ela parece tão jovem, mas já é muito mais velha em experiência do que a maioria das pessoas serão, um dia. Quanto tempo viveu com eles? Como ela se tornara tão perita na medicina deles? Perguntou-se. Ele sabia que tal conhecimento não era em geral ensinado a uma pessoa estranha, e ela forasteira, mais do que a maioria das pessoas poderia compreender havia seu dom inesperado para a Busca.
Que outros dons jaziam ocultos. Que saber ainda não fora usado? Que segredos, não revelados?
Sua força vem à tona numa crise; ele se lembrou como Ayla havia dado ordens a Tulie e Talut. Até a mim, pensou com um sorriso, e ninguém rejeitou. A liderança é um dom natural nela. Que adversidade provou para ter tal presença tão jovem? A Mãe tem planos para ela, estou certo disso, mas e o rapaz, Jondalar? Certamente, é bem dotado, mas seus talentos não são extraordinários. Qual é o propósito Dela para ele?
Ela afastava os pacotes de ervas quando, de repente, Mamut examinou com mais atenção a bolsa de remédios de pele de lontra. Era familiar podia fechar os olhos e quase viu uma tão semelhante, que lhe trouxe uma torrente de recordações.
- Ayla, posso ver isso? - pediu, querendo ver mais de perto.
- Isto? Minha bolsa de remédios? - indagou ela.
- Sempre me perguntei como eram feitas.
Ayla entregou-lhe a bolsa incomum, notando os inchaços de artrite nas mãos longas, finas, velhas.
O idoso feiticeiro examinou a sacola cuidadosamente. Mostrava sinal de uso; Ayla devia tê-la, havia muito tempo. Fora feita, não por costura ou juntando pedaços, mas da pele de um único animal. Em vez de cortai a barriga da lontra, que era a maneira comum de tirar a pele de um animal, somente a garganta fora cortada, deixando a cabeça presa por uma tira costas. Os ossos e entranhas eram extraídos através do pescoço e o envoltório do cérebro era esvaziado, ficando um pouco achatado. Toda a era, então, tratada e pequenos buracos tinham sido feitos a intervalos, redor do pescoço, com uma sovela de pedra, para que uma corda passasse através deles como cordão. O resultado era uma bolsa de pele de lontra macia, impermeável, com os pés e rabo ainda intactos, e a cabeça usada como tampa.
Mamut lhe devolveu o objeto
- Você fez isso?
- Não. Iza fez. Era curandeira do clã de Brun, minha... Mãe. Ensinou-me desde garotinha, onde as plantas cresciam, como fazer remédios, como usar os medicamentos. Ela estava doente, não foi à Reunião de Clãs Brun precisava de curandeira. Uba era jovem demais, eu era a única.
Mamut concordou com um gesto de cabeça, depois encarou-a com olhar penetrante.
- Que nome acabou de dizer?
- Minha mãe? Iza?
- Não,o outro.
Ayla refletiu um instante
- Uba?
- Quem é Uba?
- Uba... é irmã. Não irmã verdadeira, mas como irmã para mim. É filha de Iza. Agora, é curandeira... e mãe de..
- Esse é um nome comum? - interrompeu Mamut em uma voz que continha uma ponta de excitação,
- Não... acho que não... Creb deu nome a Uba. A mãe da mãe de Iza tinha o mesmo nome. Creb e Iza tinham a mesma mãe
- Creb! Diga-me, Ayla, este Creb tinha um braço defeituoso e mancava?
- Sim - respondeu Ayla, intrigada. Como Mamut sabia?
- E havia um outro irmão? Mais jovem, porém forte e saudável.
Ayla franziu a testa diante das perguntas ansiosas de Mamut
- Sim, Brun. Era o líder
- Santa Mãe! Não acredito! Agora compreendo
- Eu não compreendo - disse Ayla.
- Ayla, venha. Sente-se. Quero lhe contar uma história
Ele a conduziu a um local perto da fogueira, próximo à sua cama. Empoleirou-se na beira do estrado, enquanto ela se sentava sobre uma esteira no chão e erguia os olhos, na expectativa.
- Certa vez, muitos e muitos anos atrás, quando eu era muito jovem. Tive uma estranha aventura que mudou minha vida - começou Mamut. Ayla sentiu um formigamento estranho, repentino, exatamente sob a pele e teve a sensação de que quase sabia o que ele ia dizer
- Manuv e eu somos do mesmo acampamento. O homem que sua mãe escolheu para companheiro era meu primo. Crescemos juntos e, como os jovens fazem, falávamos sobre fazer uma jornada juntos, mas no verão em que íamos viajar, ele adoeceu. Ficou muito doente. Eu estava ansioso para partir, planejávamos a viagem havia anos e esperava que ele melhorasse, mas a doença perdurava. Afinal, perto do fim do verão, resolvi viajar sozinho. Todos me aconselharam o contrário, mas eu estava inquieto.
“Planejáramos margear o mar Beran, e depois seguir o litoral leste do grande mar do Sul, quase do mesmo modo que Wymez fez. Mas, a estação já terminava e, assim, resolvi tomar um atalho através da península com conexão leste para as montanhas”.
Ayla balançou a cabeça afirmativamente. O clã de Brun usara aquela rota para a Reunião de Clãs.
- Não contei a ninguém sobre o meu plano. Era terra dos cabeças-chatas e eu sabia que encontraria muitas objeções. Pensei que, se fosse cauteloso, poderia evitar qualquer contato, mas não contava com o dente. Ainda não estou certo sobre como aconteceu. Eu caminhava por uma margem elevada de um rio, quase um penhasco, e a próxima coisa que me lembro foi que escorreguei e caí.
Devo ter ficado inconsciente por algum tempo. Era fim de tarde quando voltei a mim. Minha cabeça doía e nada estava muito claro, porém, pior estava meu braço. O osso estava deslocado e o braço... Quebrado, e eu sentia muita dor.
“Cambaleei ao longo do rio por algum tempo, inseguro sobre meu destino. Eu havia perdido meu bornal e nem sequer pensava em procurá-lo Não sei por quanto tempo caminhei, mas estava quase escuro quando vi afinal, uma fogueira. Não refleti que estava na península. Quando vi algumas pessoas perto dela, encaminhei-me em sua direção”.
“Posso imaginar a surpresa quando tropecei no meio delas, mas naquele momento eu estava tão desvairado que ignorava onde me encontrava. Minha surpresa aconteceu mais tarde. Despertei num ambiente desconhecido, sem imaginar como havia chegado ali. Quando descobri um cataplasma na minha cabeça e meu braço numa tipóia, lembrei-me de ter caído e pensei em como tivera sorte por ter sido encontrado por um acampamento com um bom curandeiro, e então a mulher apareceu. Talvez possa imaginar Ayla, como fiquei chocado ao descobrir que estava no acampamento de um clã”.
A própria Ayla sentia um choque
- Você! Você é o homem com o braço quebrado? Conhece Creb Brun? - perguntou Ayla, incrédula.
Uma onda de emoção a invadiu e lágrimas saíram dos cantos de seu olhos. Era como uma mensagem do seu passado.
- Ouviu falar de mim?
- Iza me contou que, antes de nascer, a mãe de sua mãe curou um homem com um braço quebrado. Homem dos Outros. Creb também contou. Disse que Brun me deixou ficar com o Clã porque aprendeu com esse homem... Com você, Mamut... Que os Outros também são homens - Ayla se calou, fitou o rosto enrugado, de cabelos brancos, do velho vulnerável. - Iza caminha no mundo dos espíritos agora. Ela não era nascida quando você apareceu... E Creb... Era menino, não ainda escolhido por Ursus. Creb era velho quando morreu... Como você ainda vive?
- Eu tenho me perguntado por que a Mãe resolveu me conceder tanto tempo. Acho que Ela acabou de me dar uma resposta.
- Talut? Talut, está dormindo? - cochichou Nezzie ao ouvido do grande chefe enquanto o sacudia.
- Hein? O que há? - perguntou ele, despertando abruptamente.
- Psiu, não acorde todo mundo. Talut, não podemos deixar Ayla ir embora, agora. Quem cuidará de Rydag da próxima vez? Acho que devíamos adotá-la, torná-la parte de nossa família, torná-la Mamutoi.
Ele levantou a cabeça e viu os olhos brilhantes de Nezzie, um reflexo dos carvões em brasa da fogueira limitada.
- Sei que gosta do menino, Nezzie. Eu também gosto. Mas seu amor por ele é motivo para tornar uma estranha um de nós? O que eu diria aos Conselhos?
- Não se trata apenas de Rydag. Ela é curandeira. Uma boa curandeira. Os Mamutoi têm tantas curandeiras que possamos nos dar ao luxo de deixar uma tão boa partir? Veja o que aconteceu em apenas poucos dias. Ela salvou Nuvie, impedindo que se asfixiasse até morrer... Sei que Tulie disse que isso podia ser somente uma técnica que Ayla aprendera, mas sua irmã não pode dizer o mesmo sobre Rydag. Ayla sabia o que fazia. Era medicina de Cura. Ela está certa em relação a Fralie, também. Até eu posso ver que esta gravidez é difícil para ela, e toda essa discussão e brigas não ajudam. E sua dor de cabeça?
Talut sorriu.
- Isso foi mais do que mágica de Cura, foi surpreendente!
- Psiu! Acordará todos! Ayla é mais do que curandeira. Mamut diz que ela é uma buscadora não-treinada também. E veja seu jeito com os animais, eu não duvidaria que seja, além disso, uma chamadora. Pense que benefício seria um acampamento se ela não apenas pudesse buscar animais, para caçar, mas também chamar os animais para ela?
- Você não sabe, Nezzie. Está apenas supondo.
- Bem, não tenho que supor em relação à sua perícia com aquelas armas. Você sabe que ela conseguiria um bom Preço de Noiva se fosse Mamutoi, Talut. Com tudo o que ela tem para oferecer, diga-me, o que acha que ela valeria como filha de sua fogueira?
- Hum... Se fosse Mamutoi, e a filha da Fogueira do Leão... Mas, talvez ela não queira se tornar Mamutoi, Nezzie. E o rapaz, Jondalar? É claro que existe um sentimento forte entre eles.
Nezzie havia pensado nisso por algum tempo e estava pronta:
- Pergunte a ele também.
- Os dois! - explodiu Talut, sentando-se.
- Ei, fale baixo!
- Mas ele tem um povo. Diz que ele é Zel... Zel... o que quer que seja.
- Zelandonii - cochichou Nezzie. - Mas seu povo vive muito distante daqui. Por que ele desejaria fazer uma viagem tão longa se pode encontrar um lar conosco? Pode lhe perguntar de qualquer forma, Talut. Aquela arma que ele inventou pode ser um motivo suficiente para satisfaze os Conselhos. E Wymez diz que ele é um perito fabricante de ferramentas Se seu irmão lhe der uma recomendação, sabe que os Conselhos não negarão.
- É verdade... mas, Nezzie - falou Talut, deitando-se de novo - como sabe que eles quererão ficar?
- Não sei, mas você pode perguntar, não pode?
A manhã estava no meio quando Talut saiu da habitação comunal e Ayla e Jondalar afastando os cavalos do acampamento. Não havia mas o gelo claro ainda perdurava em manchas de branco cristal, e suas cabeças eram coroadas por vapor a cada exalação. A estática serpenteava ar seco e gelado. A mulher e o homem estavam vestidos para o com parkas de pele e capuzes amarrados com firmeza ao redor dos pescoços e calças de pele que eram enfiadas em sapatos, e estes presos ao redor da beirada das calças, e amarrados.
- Jondalar! Ayla! Vão embora? - gritou ele, correndo para alcançá-los.
Ayla respondeu afirmativamente com um gesto de cabeça, o que' o sorriso de Talut desaparecer, e Jondalar explicou:
- Vamos apenas levar os cavalos para fazer exercício. Vejo você depois de meio-dia.
Deixou de mencionar que também procuravam um pouco de privacidade, um local em que pudessem ficar a sós por algum tempo a fim de discutir, sem interrupção, se voltariam para o vale de Ayla. Ou, em vez na cabeça de Jondalar, convencer Ayla a desistir de ir.
- Ótimo. Eu gostaria de providenciar algumas sessões de treinamento com aqueles arremessadores de lanças quando o tempo melhorar. Eu gostaria de ver como funcionam e o que eu faria com um deles - falou Talut.
- Acho que talvez fique surpreso - replicou Jondalar, sorrindo - ao ver como funcionam bem.
- Não sozinhos. Estou certo de que funcionam bem, com qualquer um de vocês, mas é preciso certa habilidade, e talvez não haja muito tempo para treinar antes da primavera. - Talut fez uma pausa, refletindo,
Ayla esperava, a mão sobre a cernelha da égua, bem abaixo de sua curta, dura. Uma luva de pele grossa com separação apenas para o r pendia por um cordão da manga de sua parka. O cordão era puxado cima por meio da manga, por uma alça na parte de trás do pescoço, descendo pela outra manga e preso à outra luva. Com o cordão preso a e se fosse necessário a agilidade da mão nua, as luvas podiam ser tiradas rapidamente, sem medo de perdê-las. Numa terra de frio muito rigoroso e ventos fortes, uma luva perdida podia significar uma mão perdida, ou uma vida perdida. O potro bufava e cabriolava com excitação, e se jogava contra Jondalar, impacientemente. Pareciam ansiosos para se pôr a caminho, esperavam que ele terminasse apenas por cortesia; Talut sabia disso. Resolveu, de qualquer maneira, prosseguir.
- Nezzie conversou comigo na noite passada, e esta manhã falei com alguns outros. Seria útil ter alguém por perto para nos mostrar como usar essas armas de caça.
- Sua hospitalidade tem sido mais que generosa. Sabe que eu ficaria feliz em mostrar a qualquer um como usar o arremessador de lanças. É muito pouco por tudo o que tem feito - disse Jondalar.
Talut sacudiu a cabeça, concordando, depois continuou.
- Wymez me disse que você é um ótimo quebrador de sílex, Jondalar Os Mamutoi sempre podem utilizar alguém que possa fabricar ferramentas de boa qualidade. E Ayla tem muitos talentos que beneficiariam o acampamento. Não é apenas perita com o arremessador de lanças e sua funda... você tinha razão... - virou-se de Jondalar para Ayla - ...ela é uma curandeira. Gostaríamos que vocês ficassem.
- Eu esperava passar o inverno com vocês, Talut, e agradeço seu oferecimento, mas não estou seguro do que Ayla sente a respeito - respondeu Jondalar, sorrindo, sentindo que o oferecimento de Talut não poderia ter sido feito em melhor ocasião. Como poderia ela partir agora? Com certeza o convite de Talut significava mais que a maldade de Frebec
Talut continuou, dirigindo suas palavras à jovem.
- Ayla, você não tem povo agora e Jondalar mora distante, talvez mais longe do que deseja viajar, se puder encontrar um lar aqui. Gostaríamos que vocês dois ficassem, não apenas durante o inverno, mas sempre. Convido-os a se tornarem um de nós e falo por mais pessoas além de mim.
Tulie e Barzec desejariam adotar Jondalar na Fogueira dos Auroques, e Nezzie e eu queremos que se torne a filha da Fogueira do Leão. Já que Tulie é chefe, e eu sou chefe, isso lhes daria uma posição elevada entre os Mamutoi.
- Quer dizer que deseja nos adotar? Quer que nos tornemos Mamutoi? - deixou escapar Jondalar, um pouco aturdido e corado de surpresa.
- Você me quer? Quer me adotar? - perguntou Ayla. Ela ouvira a conversa, a testa enrugada em concentração, não inteiramente segura de que acreditava no que escutava. - Quer fazer Ayla de Nenhum Povo, Ayla dos Mamutoi?
- Sim. - O homem grande sorriu.
Jondalar procurava palavras. Hospitalidade para visitantes talvez fosse uma questão de costume e de orgulho, mas nenhum povo tinha o costume de convidar estranhos para se juntarem à sua tribo, e família, sem séria reflexão.
- Eu...- hum... Não sei o que dizer... - falou ele. - Estou muito honrado. Ser convidado é um grande elogio.
- Sei que precisam de algum tempo para pensar a respeito. Os dois -disse Talut. - Eu ficaria surpreso, se não pensassem. Não mencionamos isso a todas as pessoas do acampamento e o acampamento inteiro deve concordar, mas isso não deve ser problema com tudo o que vocês trazem, e Tulie e eu falamos por vocês. Eu queria lhes perguntar primeiro. Se concordarem convocarei uma reunião.
Observaram, em silêncio, o grande chefe voltar à habitação de terra Tinham planejado encontrar um lugar para conversar, cada um esperando resolver os problemas que, sentiam, tinham começado a surgir entre si. convite inesperado de Talut havia acrescentado uma dimensão inteiramente nova aos seus pensamentos, às decisões que precisavam tomar, na verdade às suas vidas. Sem dizer palavra, Ayla montou Whinney e Jondalar subiu atrás dela. Com Racer acompanhando-os, começaram a subir a encosta atravessaram o campo aberto, cada um perdido em seus pensamentos.
Ayla estava comovida de forma indescritível com o convite de Talut Quando ela vivia com o Clã, muitas vezes se sentiu alienada, mas isso t era nada em comparação ao vazio doloroso, à desesperada solidão que conhecera sem eles. Desde o momento em que deixou o Clã até o instante eu que Jondalar chegou, pouco mais do que uma estação antes, ela estivera sozinha. Não tivera ninguém, nem a sensação de relacionamento íntimo nem lar, família ou povo, e sabia que jamais veria seu clã novamente. Por causa do terremoto que a deixara órfã, antes de ser encontrada pelo Clã, o terremoto no dia em que foi expulsa, deu à sua separação um sentido profundo de irrevogabilidade.
Sustentando seu sentimento, havia um medo elementar enorme, u combinação do terror primordial de terra deslocada e o sofrimento convulsivo de uma menina pequena que perdera tudo, até sua lembrança daqueles a quem havia pertencido. Não existia nada que Ayla temesse ma; do que movimentos de deslocamentos de terra. Sempre pareciam assinale mudanças tão abruptas e violentas em sua vida quanto as mudanças ocasionavam na terra. Era quase como se a própria terra lhe dissesse o esperar... ou estremecesse de piedade.
Mas, depois da primeira vez em que ela perdeu tudo, o Clã tornara-si seu povo. Agora, se quisesse, poderia ter um povo de novo. Podia tornar-si Mamutoi; não estaria sozinha.
Mas, e Jondalar? Como ela poderia escolher um povo diferente c' dele? Será que ele quereria ficar e se tornar Mamutoi? Ayla duvidava. Lava segura de que ele queria voltar a seu próprio lar. Mas ele temera todos os Outros se comportassem em relação a ela como Frebec o í Ele não queria que ela falasse do Clã. E se ela fosse com ele e não a aceitassem? Talvez o povo de Jondalar fosse como Frebec. Ela não deixar de mencioná-los, como se Iza e Creb e Brun e seu filho fossem pessoas quem devesse se envergonhar. Ela não teria vergonha das pessoas amava.
Será que ela queria ir para o lar de Jondalar e arriscar-se a ser trata como animal? Ou desejava permanecer ali, onde era querida e aceita?' Acampamento do Leão havia até recebido uma criança mista, como filho... De repente, um pensamento lhe ocorreu. Se tinham aceitado um aceitariam outra? Uma criança que não era fraca ou doente? Que era capa de aprender a falar? O território dos Mamutoi se estendia até o mar Beran. Talut não dissera que alguém tinha um Acampamento do Salgueiro ali? Península onde o Clã vivia não era muito além. Se ela se tornasse Mamute. Talvez, um dia, pudesse... Mas, e Jondalar? E se ele partisse? Ayla sentiu uma dor forte na boca do estômago ao pensar nisso. Ela suportaria viver sem Jondalar? Perguntou-se enquanto lutava com sentimentos diversos.
Jondalar também lutava com desejos conflitantes. Mal considerou o oferecimento que lhe foi feito, exceto que desejava encontrar um motivo para recusar que não ofendesse Talut e os Mamutoi. Ele era Jondalar, dos Zelandonii, e sabia que seu irmão tivera razão. Jamais poderia ser outra coisa.
Queria ir para casa, mas era uma dor importuna, mais do que uma grande urgência. Era impossível pensar em quaisquer outros termos. Seu lar era tão distante que levaria um ano para viajar até ele.
Seu turbilhão mental era sobre Ayla. Embora jamais lhe houvesse faltado parceiras dispostas, a maioria mais do que desejosa de formar um laço mais duradouro, ele nunca havia conhecido uma mulher que quisesse tanto quanto Ayla. Nenhuma das mulheres de seu povo, e nenhuma das que encontrara em suas viagens, fora capaz de provocar nele aquele estado que vira em outros, mas não havia, ele mesmo, sentido, até encontrá-la. Amava-a mais do que imaginava ser possível. Ela era tudo o que sempre desejava em uma mulher, e mais ainda. Não suportava o pensamento de viver sem ela.
Mas também sabia o que significava desonrar-se. E as qualidades dela que o atraíam - sua combinação de inocência e sabedoria, de honestidade e mistério, de autoconfiança e vulnerabilidade - eram o resultado das mesmas circunstâncias, que poderiam levá-lo novamente a sentir a dor da infelicidade e exílio.
Ayla fora criada pelo Clã, pessoas diferentes de forma inexplicável. Para a maioria das pessoas que ele conhecia, aqueles que Ayla chamava de Clã não eram seres humanos. Eram animais, mas não como os outros animais criados pela Mãe para suas necessidades. Embora não admitidas, as semelhanças entre eles eram reconhecidas, porém as óbvias características humanas do Clã não provocavam sentimentos íntimos de fraternidade. Em vez disso, eram vistos como ameaça e suas diferenças eram enfatizadas. Para pessoas como Jondalar, o Clã era considerado como uma espécie bestial indescritível, nem sequer incluída no panteão de criações da Grande Mãe Terra, como se houvesse sido gerada de algum grande mal insondável.
Havia, porém, maior reconhecimento de sua humanidade mútua em ação do que em palavra. A raça de Jondalar havia ido para o território do Clã não há muitas gerações antes, ocupando freqüentemente bons locais para viver, perto de áreas de caça e forragem abundante, e obrigando o Clã a ir para outras regiões. Mas, exatamente como bandos de lobos dividem um território entre si e defendem-no mutuamente, não de outros animais de rapina ou predatórios, a aceitação dos limites dos territórios de cada um era um acordo tácito de que eram da mesma espécie.
Quando percebeu seu sentimento por Ayla, Jondalar viera a compreender que toda vida era uma criação da Grande Mãe Terra, inclusive Os cabeças-chatas. Mas, embora a amasse, estava convencido de que Ayla Seria rejeitada por seu povo. Era mais do que sua ligação com o Clã que a tornava pária. Seria considerada como abominação indescritível, que c condenada pela Mãe, porque havia dado à luz um filho de espíritos mistos, parcialmente animal e parcialmente humano.
O tabu era comum. Todas as pessoas que Jondalar havia conhecido c suas viagens acreditavam nisso, embora algumas mais firmemente que outras, Certas pessoas nem sequer admitiam a existência de um filho ilegítimo, outra pensavam na situação como piada desagradável. Por isto, ficara tão chocado ao encontrar Rydag no Acampamento do Leão. Estava certo de que não foi fácil a Nezzie e, na verdade, ela suportara o impacto de dura crítica e preconceito. Somente alguém serenamente confiante e seguro de sua posição poderia ousar encarar seus difamadores e, por fim, a humanidade e compaixão genuínas de Nezzie prevaleceram. Mas até Nezzie não mencionara o filho perdido a quem Ayla lhe falara, quando tentava persuadir os outros a aceitar. Ayla ignorava o sofrimento de Jondalar quando Frebec a tinha ridicularizado, embora ele houvesse esperado mais motejos. No entanto, s sofrimento era mais do que apenas empatia por ela. Todo o confronto colérico lhe lembrou outra época, quando suas emoções o tinham desencaminhado, e expôs uma dor profunda e enterrada. Porém, pior ainda, sua reação inesperada. Isso causava sua angústia agora. Jondalar ainda revirava de culpa porque, por um momento, se sentira mortificado por e ligado a ela quando Frebec gritou sua acusação. Como podia ele amar mulher e sentir vergonha dela?
Desde a época terrível de sua juventude, Jondalar lutara para se controlar, mas parecia incapaz de conter os conflitos que o atormentava agora. Queria levar Ayla para casa consigo. Desejava que ela conhecesse Dalanar e o povo de sua caverna, e sua mãe, Marthona, e seu irmão velho, e irmã mais nova, e seus primos, e Zelandonii. Queria que eles a recebessem bem, para fixar sua própria fogueira com ela, um local onde pudesse ter filhos que talvez fossem do seu espírito. Não havia mais ninguém na terra que ele quisesse, no entanto, se encolhia sob o pensamento do desprezo que cairia sobre ele, talvez, por trazer para casa tal mulher e relutava em expô-la a isso.
Especialmente, se não fosse necessário. Ao menos, se ela não falasse sobre o Clã, ninguém saberia. No entanto, o que poderia dizer quando alguém perguntasse quem era o seu povo? De onde ela vinha? As pessoas que a criaram eram as únicas que conhecia, a menos... Que ela aceitasse o oferecimento de Talut. Então, poderia ser Ayla dos Mamutoi, exatamente como se houvesse nascido entre eles. A maneira peculiar de Ayla pronunciar algumas palavras seria apenas um sotaque.
Quem sabe? Pensou. Talvez ela seja Mamutoi. Seus pais podiam ser. Ela ignora quem eram.
Mas, se ela se tornar Mamutoi, talvez resolva ficar. E se o fizer? Seria capaz de ficar? Poderia aprender a aceitar este povo como o meu? Thonolan o fez. Será que ele amou Jetamio mais do que amo Ayla? Mas, Sharamudoi eram o seu povo. Ela nasceu e lá foi criada. Os Mamutoi não. são o povo de Ayla, mais do que são o meu. Se ela pudesse ser feliz aqui poderia ser feliz com os Zelandonii. Mas, se ela se tornar um deles, talvez não queira ir para casa comigo. Não teria dificuldade em encontrar alguém aqui... Estou certo de que Ranec não se importaria, de modo algum.
Ayla o sentiu apertá-la possessivamente, e perguntou-se por que motivo. Notou uma fila de galharia quebrada à frente, pensou que ali havia um riacho e apressou Whinney nessa direção. Os cavalos farejaram a água e não precisaram de muito estímulo. Quando chegaram à corrente, Ayla e Jondalar desmontaram e procuraram um local confortável para sentar.
O curso d’água tinha um espessamento nas margens que, sabiam, era apenas o começo. O limite branco que fora construído, camada após camada, fora das águas escuras ainda redemoinhando no centro, cresceria até o término da estação, e se fecharia até a corrente turbulenta ficar imóvel, mantida em suspensão até o ciclo mudar. Então, as águas irromperiam novamente em manifestação de liberdade.
Ayla abriu uma pequena, bolsa de couro, cru, em que havia colocado comida para ambos, um pouco de carne-seca que achava ser de auroques, e uma cestinha de uvas-do-monte e ameixas ácidas.
Tirou um nódulo cinza brônzeo, de pirita e um pedaço de sílex para fazer uma pequena fogueira a fim de ferver água para o chá. Jondalar maravilhou-se de novo com a facilidade com que ela fez o fogo com a pirita. Era magia, um milagre. Ele jamais vira algo assim antes de conhecê-la.
Nódulos de pirita - pedras-de-fogo - espalhavam-se pela praia rochosa do vale de Ayla. Sua descoberta de que uma centelha quente sobrevivia o suficiente para acender um fogo, e podia ser tirada de uma pirita golpeando-a com sílex, fora um acidente, mas Ayla estava pronta para aproveitá-la. Seu fogo se apagara. Ela sabia como fazer uma fogueira pelo processo trabalhoso que a maioria das pessoas usava, torcendo um pau contra uma base, ou plataforma, de madeira até a fricção provocar calor suficiente para produzir brasa ardente. Assim, ela compreendeu como aplicar o princípio quando pegou um pedaço de pirita, por engano, em vez de seu martelo de pedra de moldar sílex, e conseguiu a primeira fagulha.
Jondalar havia aprendido a técnica com Ayla. Trabalhando com sílex, ele produzira pequenas centelhas muitas vezes, mas pensava nelas como o espírito vivo da pedra liberado como parte do processo. Não lhe ocorreu tentar fazer uma fogueira com as fagulhas. Mas, então, ele não se encontrava sozinho num vale, lutando para sobreviver; em geral, estava cercado de pessoas que quase sempre tinham um fogo aceso. As centelhas que produzia apenas com sílex usualmente não tinham vida bastante para acender um fogo, de qualquer forma. Foi a combinação casual de Ayla, de sílex e pirita que criou a centelha que podia converter-se em fogo. Ele entendeu imediatamente o valor do processo e das pedras-de-fogo, contudo, e os benefícios a serem usufruídos pela capacidade de fazer fogo tão depressa e facilmente.
Enquanto comiam, riram das cabriolas de Racer atraindo sua mãe para uma brincadeira de “venha me pegar” e, depois, dos dois cavalos rolando de costas, as pernas dando chutes no ar, sobre uma margem arenosa protegida do vento e aquecida pelo sol. Evitaram cuidadosamente qualquer assunto.
- Latie gostaria de ver os dois cavalos brincando desse jeito, eu... - disse Jondalar.
- É. Ela gosta de cavalos, não é?
- Gosta de você também, Ayla. Tornou-se uma admiradora. - hesitou, depois continuou: -
Muitas pessoas gostam de você e a admira aqui. Não precisa, realmente, voltar para o vale e viver sozinha, não.
Ayla abaixou os olhos para a tigela em suas mãos, girou o resto de conteúdo com os resíduos das folhas, e bebeu um gole pequeno.
- É um alívio ficar a sós novamente. Eu não sabia como poderia sentir bem afastando-me de todos, e há algumas coisas na caverna dos que eu gostaria de ter. Mas, você tem razão. Agora, que conheci os Ouros, não quero viver sozinha o tempo todo. Gosto de Latie, Deegie e Tornec... E Nezzie, de todos... Exceto Frebec.
Jondalar suspirou com alívio. A primeira e maior barreira fora ultrapassada.
- Frebec é apenas um. Não pode deixar uma pessoa estragar tudo Talut... E Tulie... Não teriam feito o convite para ficarmos se não gostassem de você, e não sentissem que você tinha alguma coisa valiosa para oferece.
- Você tem uma coisa valiosa para oferecer, Jondalar. Quer ficar se tornar um Mamutoi?
- Eles foram bondosos conosco, muito mais do que a hospitalidade exige. Eu poderia ficar, certamente durante o inverno, e até mais tempo e ficaria feliz em lhes dar qualquer coisa que pudesse.Mas eles não necessitam de meu trabalho como quebrador de sílex. Wymez é muito melhor do que eu, e em breve Danug será igualmente bom. E já lhes mostrei o arremessador de lanças. Viram como é feito. Com prática, poderiam usá-lo, basta apenas quererem. E sou Jondalar dos Zelandonii...
Calou-se e seus olhos assumiram uma expressão vaga como se vissem através de uma grande distância. Depois, tornou a desviar o olhar, de volta e sua testa se franziu enquanto tentava pensar em alguma explicação.
- Devo voltar... Um dia... Ao menos para contar à minha mãe a morte do meu irmão... E dar a Zelandonii a chance de encontrar seu rito e guiá-lo até o mundo seguinte. Eu não poderia me tornar Jondalar dos Mamutoi sabendo disso, não posso esquecer minha obrigação.
Ayla olhou-o atentamente. Sabia que ele não queria ficar. Não por causa de obrigações, embora, ele pudesse senti-las. Ele queria ir para casa.
- E você? - perguntou Jondalar, tentando manter o tom de voz expressão neutros. - Quer ficar e tornar-se Ayla dos Mamutoi?
Ela fechou os olhos, procurando uma forma de se expressar, sentindo que não sabia palavras suficientes, ou as palavras certas, ou que palavras não eram suficientes.
- Desde que Broud me amaldiçoou, não tenho tido povo, Jondalar. Tenho-me sentido vazia por isso. Gosto dos Mamutoi e os respeito. Sinto-me bem com eles. O Acampamento do Leão é... Como o clã de Brun... A maioria das pessoas é boa. Não sei quem era meu povo antes do Clã, acho que nunca saberei, mas às vezes, à noite, penso... Gostaria que fosse Mamutoi.
Ela olhou firmemente para o homem, para o cabelo louro liso contra a pele escura do capuz, para o rosto atraente que ela achava tão bonito, embora ele lhe tivesse dito que essa não era a palavra adequada para um homem, para seu corpo forte, sensível, e mãos grandes, expressivas, e os olhos azuis que pareciam tão ansiosos e perturbados.
- Mas, antes dos Mamutoi você chegou. Tirou o vazio de mim e encheu-me de amor. Quero estar com você, Jondalar.
A ansiedade abandonou os olhos de Jondalar, substituída agora pelo afeto tranqüilo a que ela estava acostumada no vale, e depois pelo desejo magnético, arrebatador, que fazia o corpo de Ayla responder com um desejo próprio. Sem qualquer vontade consciente, ela foi impelida para ele, sentiu sua boca encontrar a dela e seus braços cercarem-na.
- Ayla, minha Ayla, amo-a tanto - gritou ele num soluço estrangulado, cheio de angústia e alívio.
Manteve-a apertada ao peito, mas suavemente, enquanto permaneciam sentados ao solo, como se não quisesse soltá-la nunca, mas tivesse medo de que ela se libertasse. Afrouxou seu abraço o suficiente para levantar o rosto de Ayla para o seu, e beijou-lhe a testa, e os olhos, e a ponta do nariz. Depois, a boca, e sentiu seu desejo crescer. Estava frio, não tinham um lugar onde se abrigar ou aquecer, mas ele a queria.
Ele desatou o cordão do capuz de Ayla, e encontrou seu pescoço, enquanto as mãos enfiavam-se sob sua parka e túnica e descobriam a pele cálida e seios fartos, com os mamilos duros, eretos. Um gemido baixo escapou dos lábios de Ayla quando ele os acariciou, apertando e puxando firmemente. Jondalar desfez o laço do cordão das calças de Ayla, e enfiou a mão sob elas encontrando o púbis. Ela fez pressão contra ele, quando Jondalar tocou a fenda quente, úmida, e sentiu latejar, contrair-se.
Depois, ela procurou, sob a parka e túnica de Jondalar, o seu cordão e desatou-o. Estendeu a mão até o membro rijo, palpitante, e esfregou as mãos ao longo de seu fuste. Ele soltou um suspiro alto de prazer quando ela se inclinou e tomou-o na boca. Ela sentiu a pele lisa com a língua, e tomou posse dele o máximo possível. Depois, empurrou-o para fora e tomou-o de novo, ainda esfregando o fuste quente, curvado, com as mãos.
Ela o ouviu gemer, começar a gritar e depois respirar fundo e afastá-la gentilmente.
- Espere, Ayla, quero você - disse ele.
- Eu teria que tirar minha calça e protetor dos pés para isso – falou ela.
- Não, não precisa, está frio demais aqui. Vire-se. Lembra?
- Como Whinney e seu garanhão - cochichou Ayla.
Ela se virou e se pôs de joelhos. Por um instante, a posição a fez remenção dos pensamentos que estavam em suas mentes, mas o riso deixou-os a ambos, e o isolamento e privacidade lhes recordaram os dias intimidade no vale. Quando tomavam chá quente, estavam prontos a s aventurar em assuntos mais difíceis.
- O riacho ainda tem água...
- Quero estar com você.
Recordar, não Whinney e seu garanhão ansioso, mas Broud, quando fora agachada ao chão e forçada. O toque amoroso de Jondalar, todavia, não e a mesma coisa. Abaixou o cinto, desnudando as nádegas firmes e uma abertura que acenava para ele como uma flor para as abelhas, com suas pétalas macias e profunda garganta rosada. O convite era quase excessivo, sentiu uma onda de pressão que doía, desejando libertar-se. Após um instante para se conter, ele se curvou mais para mantê-la aquecida enquanto acariciava as nádegas macias, e explorava a cavidade convidativa e sulcos e dobras de umidade cálida e prazer com seu toque gentil, experiente, os gritos de Ayla e uma nova fonte de calor lhe dizerem que não se contivesse mais.
Então, ele separou os dois montículos gêmeos e guiou sua virilidade para ela e pronta para a entrada profunda e desejosa de sua feminilidade, com todo prazer agonizante que provocou um grito dilacerante de ambos. Ele recuou quase inteiramente, e penetrou de novo, puxando-a para si, e deleitou-se e... Seu amplexo profundo. Mais uma vez retirou-se e penetrou repetidamente até que, afinal, em uma grande explosão, a liberação gloriosa aconteceu.
Após alguns golpes que prolongaram o limite final, e ainda no fundo da calidez da mulher, ele passou os braços em volta dela e fez os dois rolarem de lado. Manteve-a perto, cobrindo-a com o seu corpo um momento, enquanto descansavam.
Afinal, separaram-se e Jondalar se sentou. O vento era mais forte, Jondalar lançou um olhar para as nuvens maciças com apreensão.
- Devia me limpar um pouco - disse Ayla, levantando-se. - Esta calças novas são de Deegie.
- Quando voltarmos, pode deixá-las fora para congelar e depois...
- Está ficando muito rápida com as palavras, mulher. Terei dificuldade de me igualar a você, em minha própria língua! - Ele colocou os braços em volta da cintura de Ayla, e abaixou os olhos até ela, um olhar cheio de amor e orgulho. - Você é boa com a linguagem, Ayla. Mal acredito como aprende depressa. Como faz isso?
- Tenho que aprender. Este é meu mundo, agora. Não tenho povo. Estou morta para o Clã, não posso voltar.
- Poderia ter um povo, poderia ser Ayla dos Mamutoi. Se quiser. Quer?
- Ainda assim, poderá estar comigo. Só porque alguém adota você não significa que não poderá partir... Um dia. Podíamos ficar aqui... Por algum tempo. E se algo me acontecesse... Sabe, poderia... talvez não fosse mau ter um povo. Pessoas que a querem.
- Você quer dizer que não se importaria?
- Importar-me? Não, claro que não, se é isso que você quer.
Ayla pensou notar alguma hesitação, mas ele parecia sincero.
- Jondalar, sou apenas Ayla. Não tenho povo. Se fosse adotada, teria alguém. Seria Ayla dos Mamutoi. - Ela recuou, afastando-se dele. - Preciso pensar sobre isso.
Ela deu meia-volta e caminhou para o fardo que carregara. Se vou partir com Jondalar breve, eu não deveria concordar, refletiu. Não seria justo. Mas, ele disse que gostaria de ficar. Por algum tempo. Talvez, depois que viver com os Mamutoi mude de idéia e queira fazer daqui o seu lar. Ela se perguntou se estava tentando encontrar uma desculpa.
Enfiou a mão na parka em busca do seu amuleto e enviou um pensamento ao seu totem. “Leão da Caverna, eu gostaria que houvesse uma maneira de saber o que é certo. Amo Jondalar, mas quero ter um povo, também. Talut e Nezzie querem adotar-me, querem me fazer a filha da Fogueira do Leão... do Leão. E do Acampamento do Leão! Oh, Grande Leão da Caverna, será que você tem guiado meus passos o tempo todo, e eu não prestei atenção?
Ela girou sobre os calcanhares. Jondalar ainda estava de pé onde ela o deixara, observando-a em silêncio.
- Já resolvi! Vou fazer isso! Vou ser Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutoi!
Ela notou a ruga fugidia em seu rosto antes de ele sorrir.
- Ótimo, Ayla. Fico contente por você.
- Oh, Jondalar. Será certo? Será que tudo dará certo?
- Ninguém pode responder a isso. Quem poderia saber? - disse ele, aproximando-se, com um olhar erguido para o céu que escurecia. - Espero que sim... Para nós dois. - Agarraram-se um ao outro por um instante. - Acho que devemos voltar.
Ayla estendeu a mão para a bolsa de couro cru a fim de arrumar as coisas nela, mas algo atraiu sua atenção. Pôs um joelho em terra, e pegou uma substância sólida dourada. Esfregando-a, examinou-a com atenção.
- Está gelada, Ayla!
- Eu sei. Andarei depressa.
Caminhando com cuidado sobre o gelo, agachou-se perto da água e lavou-se com as mãos. Ao retroceder um passo na margem, Jondalar por trás e enxugou-a com a pele de sua parka.
- Não quero que isso congele - disse ele com um largo sorriso, quanto lhe dava tapinhas com a pele e depois a acariciava.
- Acho que saberá mantê-la bastante quente - disse ela com um sorriso, amarrando o cordão e endireitando sua parka.
Aquele era o Jondalar que ela amava. O homem que era capaz de fazê-la sentir-se ardente e trêmula por dentro com um olhar apenas, ou com o toque de suas mãos; o homem que conhecia seu corpo melhor do que ela e podia trazer à tona sentimentos que ela ignorava existir; o homem que a fizera esquecer o sofrimento da primeira penetração forçada de Broud e lhe ensinou o que eram os prazeres, e como deveriam ser. O Jondalar que ela amava era brincalhão, e carinhoso, e amoroso. Era assim que ele havia sido no vale, e agora, quando estavam sozinhos. Por que ele era tão diferente no Acampamento do Leão?
Completamente encerrado dentro da pedra lisa, que começara a se aquecer sob o toque, estava um inseto de asas.
- Jondalar! Veja isto. Já viu algo igual?
Jondalar pegou a substância sólida, olhou-a com atenção,encarou Ayla com espanto.
- É âmbar. Minha mãe tem um igual, e lhe dá grande valor. Ela talvez seja ainda mais valioso. - Viu que Ayla o fitava, parecendo surpreendida. Não achou que havia dito alguma coisa tão surpreendente assim O que é, Ayla?
- Um sinal. E um sinal do meu totem, Jondalar. O espírito do ui Leão da Caverna está me dizendo que tomei a decisão certa. Ele quer eu me torne Ayla dos Mamutoi!
A força dos ventos se intensificou quando Ayla e Jondalar cavalga de volta, e embora fosse apenas pouco mais de meio-dia, a luz do sol enfraquecida pelas nuvens de solo seco de loesse levantando-se do terreno congelado. Mal podiam ver o caminho através da poeira soprada pelo vento. Os relâmpagos estalavam ao redor deles no ar seco e gelado, e o trovão bombava e retumbava. Racer empinou, amedrontado, quando um n tilou e um estalo de trovão soou próximo. Whinney bufava nervoso.
Desmontaram para acalmar o potro, e continuaram a pé, conduzindc dois animais.
Quando chegaram ao acampamento, ventos tempestuosos arrastas um vendaval de poeira que escurecia o céu e crestava suas peles. Ao se aç ximarem da habitação de terra, um vulto emergiu da obscuridade cr. pelo vento, segurando-se em algo que se agitava e retorcia como se tiv vida.
- Aí estão vocês. Eu começava a me preocupar - gritou Talut do uivo e do trovão.
- O que está fazendo? Podemos ajudar? - perguntou Jc
- Fizemos um alpendre para os cavalos de Ayla quando parec viria uma tempestade. Eu não sabia que seria uma tempestade seca. O v derrubou o alpendre. Acho que é melhor trazer os animais para deni Podem ficar na área da entrada - disse Talut.
- Isso acontece muitas vezes? - perguntou Jondalar, agarrando L extremidade do grande couro que deveria ter sido uma proteção contJ vento.
- Não. Alguns anos não temos qualquer tempestade seca. Ela sará assim que tivermos neve - disse Talut -, e então, teremos apena vasca! - terminou com uma risada. Enfiou-se, abaixado, na comunal, depois manteve afastada a pesada cortina de couro de para que Ayla e Jondalar pudessem levar os cavalos para dentro.
Os cavalos estavam nervosos por entrar no local estranho cheiC odores tão pouco conhecidos, mas gostavam menos ainda da ruidosa tania, e confiavam em Ayla. O alívio foi imediato assim que saíran vento, e acalmaram-se depressa. Ayla se sentiu grata a Talut por sua pi cupação com eles, embora um pouco surpresa. Ao atravessar a segun.
o vento ainda assolava fora da habitação de terra, chocalhando as cober turas sobre os buracos de saída da fumaça e inchando as pesadas cortinas. gajadas repentinas enviavam poeira voando, e faziam com que o fogo na fogueira de cozinhar se avivasse. As pessoas estavam reunidas em grupos casuais ao redor do espaço da primeira fogueira, terminando a refeição da 0 tomando chá de ervas, esperando que Talut começasse.
Por fim, ele se levaniou e deu largos passos em direção à Fogueira do Leão. Quando voltou, carregava um bastão de marfim, mais alto do que ele, grosso na parte inferior, afinando ao alto. Era decorado com um ob jeto pequeno, com raios como uma roda, que fora preso ao bastão a um terço mais ou menos do comprimento, de cima para baixo. Penas de garça brancas estavam presas à metade superior, formando um leque em semi círculo, enquanto entre os raios da metade inferior sacos enigmáticos, marfim esculpido e pedaços de pele oscilavam de tiras de couro. Exami nando melhor, Ayla viu que o bastão era feito de uma única e comprida presa de mamute que, por algum método desconhecido, havia sido endi reitada. Como, perguntou-se Ayla, alguém conseguira tirar a curva de uma presa de mamute?
Todos silenciaram e voltaram sua atenção para o chefe. Ele olhou para Tulie e ela balançou a cabeça afirmativamente. Depois, ele bateu a extremidade do bastão no solo quatro vezes.
- Tenho um assunto sério a apresentar ao Acampamento do Leão - começou Talut. - Uma coisa que diz respeito a todos, portanto, falo com o Bastão Falante, para que todos ouçam com atenção e ninguém interrompa. Quem desejar falar sobre este assunto pode pedir o Bastão Falante.
Houve um murmúrio de excitação enquanto as pessoas endireitavam O corpo e ficavam atentas.
- Ayla e Jondalar vieram para o Acampamento do Leão não há muito tempo. Quando contei os dias que estiveram aqui, fiquei surpreso Por ter sido tão pouco tempo. Eles já se sentem como velhos amigos, como Se pertencessem ao acampamento. Acho que a maioria de vocês sente o mesmo. Por causa de sentimentos tão afetuosos de amizade por nosso pa rente, Jondalar, e sua amiga Ayla, eu esperava que eles prolongassem sua Visita e pretendia convidá-los a passar o inverno aqui. Mas, no curto tempo 4Ue estiveram aqui, mostraram mais do que amizade. Os dois trouxeram conhecimento e perícia valiosos, e os ofereceram a nós sem reserva, como fossem um de nós.
. “Wymez recomenda Jondalar como um hábil trabalhador em sílex. partilhado seu conhecimento livremente com Danug e Wymez. Mais 4 isso, trouxe consigo uma nova arma de caça, um arremessador de lanças aumenta tanto o alcance quanto a força de uma lança.
cada, Ayla notou como ela estava fria. Os grãos de poeira que a picavam 3 distraído, mas a
temperatura abaixo de zero e o vento forte a ti am gelado até os ossos.
Houve gestos afirmativos de cabeça e comentários de aprovação, e Ayla observou, de novo, que os Mamutoi raramente permaneciam sentados em silêncio, mas expressavam-se com comentários em participação ativa.
- Ayla traz muitos dons incomuns - continuou Talut. - Ela é hábil e precisa com o arremessador de lanças e com sua própria arma, a funda. Mamut diz que ela é uma buscadora, embora sem treinamento, e Nezzie acha que pode ser também uma chamadora. Talvez não, mas é verdade c é capaz de fazer com que cavalos lhe obedeçam, e permitam que ela monte. Ela até nos ensinou a falar sem palavras, o que nos ajudou a preender Rydag de uma nova maneira. Mas, talvez, o mais importante: e. é uma curandeira. Já salvou as vidas de duas crianças.., e tem um maravi Ihoso remédio para dores de cabeça!
O último comentário provocou uma onda de riso.
- Os dois trazem tanto, que não quero que o Acampamento do Leã ou os Mamutoi os percam.
Pedi-lhes para ficar conosco, não apenas rante o inverno, mas sempre. Em nome de Mut, Mãe de Todos... - Talu bateu uma vez no solo com o bastão, firmemente - . . .peço que eles s juntem a nós, e que vocês os aceitem como Mamutoi.
Talut fez um gesto afirmativo de cabeça para Ayla e Jondalar. se levantaram e aproximaram-se com a formalidade de uma cerimônia parada. Tulie, que esperara a um lado, acercou-se para ficar de pé ao lado do irmão.
- Peço o Bastão Falante - disse ela.
Talut o passou para ela.
- Como chefe feminina do Acampamento do Leão, declaro que con cordo com os comentários de Talut. Jondalar e Ayla seriam adições valiosai ao Acampamento do Leão, e aos Mamutoi. - Encarou o homem alto louro. - Jondalar - falou, batendo o Bastão Falante três vezes -, Tr' e Barzec o convidaram a ser um filho da Fogueira dos Auroques. Falamo por você. O que diz, Jondalar?
Ele se acercou dela, segurou o bastão que lhe foi oferecido e bateu- três vezes.
- Sou Jondalar da Nona Caverna dos Zelandonii, filho de Marth ex-líder da Nona Caverna, nascido na fogueira de Dalanar, líder dos 1 zadonii - começou ele.
Desde que era uma ocasião formal, resolveu usar seu discurso mais e. rimonioso e citar seus primeiros laços, o que provocou sorrisos e sinais aprevadores de cabeça. Todos os nomes estrangeiros davam um aspecto exótici e importante à cerimônia. - Estou grandemente honrado por seu convite, mas devo ser jus e dizer que tenho grandes obrigações. Um dia preciso voltar para os landonii. Tenho que contar à minha mãe sobre a morte de meu irmão, preciso contar a Zelandoni, nosso Mamut. Assim, poderá ser feita r Busca do seu espírito, para guiá-lo para o mundo dos espíritos. Não qt partir. Quero ficar com vocês, meus amigos e parentes, por quanto tempi puder. - Jondalar devolveu o bastão a Tulie.
- Estamos tristes por não poder entrar para nossa fogueira, Jondalar, mas compreendemos suas obrigações. Tem o nosso respeito. Do momento em que somos parentes, através de seu irmão que era companheiro de Tholie, é bem-vindo, para ficar o tempo que desejar - falou Tulie, depois passou o Bastão Falante para Talut
Ayla - disse Talut, batendo o bastão três vezes no sdo -, Nezzie e eu queremos adotá-la como filha da Fogueira do Leão. Falamos por você Como você fala?
Ayla pegou o bastão e bateu-o no chão três vezes.
- Sou Ayla. Não tenho povo. Estou honrada e feliz por ser convidada a me tornar uma de vocês. Eu sentiria orgulho em ser Ayla dos Mamutoi - disse ela, em uma fala cuidadosamente ensaiada.
Talut pegou novamente o bastão e bateu-o quatro vezes.
- Se não há objeções, encerrarei esta reunião especial...
- Peço o Bastão Falante - disse uma voz da audiência
Todos pareceram surpresos ao ver Frebec se acercar
Ele pegou o bastão do chefe, bateu-o três vezes
- Não concordo. Não q.uero Ayla - disse
As pessoas do Acampamento do Leão silenciaram, aturdidas. Depois, houve um tumulto de surpresa e choque. O chefe havia apadrinhado Ayla, com a chefe plenamente de acordo. Embora todos conhecessem os sentimentos de Frebec por Ayla, ninguém mais parecia compartilhá-los. E ainda mais, Frebec e a Fogueira da Garça mal pareciam em posição de objetar Tinham sido aceitos pelo Acampamento do Leão recentemente, depois de vários Outros acampamentos os terem recusado, somente porque Nezzie e Talut argumentaram em seu favor. A Fogueira da Garça tivera um elevado Status, antes, e existiram pessoas em outros acampamentos que quiseram apadrinhá-los, mas sempre houvera dissidentes, e não podia haver dissidente algum. Todos tinham que concordar. Afinal, parecia ingratidão de Frebec opor-se ao chefe depois do apoio que este lhe dera, e ninguém esperara isso, menos ainda Talut.
O alvoroço morreu rapidamente quando Talut tirou o Bastão Falante de Frebec, ergueu-o e sacudiu-o, invocando o seu poder.
- Frebec tem o bastão. Que ele fale - disse Talut, devolvendo o bastão de marfim.
Frebec bateu no solo três vezes e continuou:
- Não quero Ayla porque acho que ela não ofereceu o suficiente para Se tornar uma Marnutoi. - Houve uma objeção dissimulada a esta declaração, especialmente depois das frases e'ogiosas de Talut, mas não o suficiente para interromper o orador - Convidamos qualquer estranho pára para uma visita a se tornar um Mamutoi?
Mesmo com a limitação do Bastão Falante, era difícil para o acampamento evitar falar
- O que quer dizer com “ela não tem nada a oferecer”? E sua habilidade para a caça? - gritou Deegie, com justa raiva. Sua mãe, a chefe não aceitara Ayla à primeira vista. Somente após cuidadoso exame concordara com Talut. Como o tal Frebec podia se opor?
- E daí, se ela caça? Todos que caçam se tornam um de nós? - desafiou Frebec. - Essa não é uma boa razão. Ela não caçará por muito r' tempo, de qualquer maneira. Não, depois que tiver filhos.
- Ter filhos é mais importante! Isso lhe dará mais status - esbravejou Deegie.
- Acha que não sei disso? Nem sequer sabemos se ela pode ter f e, se não tiver filhos, não terá grande valor, afinal de contas. Mas não falávamos de filhos, falávamos sobre caçar. Só porque ela caça, não é L bom motivo para torná-la Mamutoi - argumentou Frebec.
- E o arremessador de lanças? Não pode negar que é uma arma valor, e ela é boa nisso e já mostrou aos outros como usá-lo - disse Tornec.
- Ela não trouxe a arma. Foi Jondalar, e ele não se juntará a
Danug falou:
- Talvez ela seja uma buscadora, ou uma chamadora. Pode fazer cavalos obedecerem-lhe, e chega até a montá-los.
- Cavalos são alimentos. A Mãe quis que nós caçássemos os cavalos e não vivêssemos com eles. Nem sequer estou certo se é correto mon E ninguém tem certeza sobre o que ela é. Talvez seja uma buscadora, ta uma chamadora. Talvez seja a Mãe na terra, mas talvez não. Desde qua' “talvez” é uma razão para tornar alguém um de nós? - Ninguém 1 capaz de objetar a isso. Frebec começava a se divertir e a gostar da atenção que recebia.
Mamut olhava para Frebec com alguma surpresa. Embora o feiticeiro discordasse totalmente dele, tinha que reconhecer que os argumentos Frebec eram inteligentes. Era pena que fossem mal dirigidos.
- Ayla ensinou Rydag a falar, quando ninguém imaginava que e fosse capaz - gritou Nezzie, entrando na discussão.
- Falar! - escarneceu ele. - Pode chamar um bando de sinais manuais de “falar”, se quiser, mas eu não. Não imagino nada mais estúpido que fazer gestos inúteis para um cabeça-chata. Não é razão para a tá-la. No máximo, é motivo para não aceitá-la.
- E apesar do óbvio, suponho que ainda não acredita que ela é uma curandeira - comentou Ranec.
- Compreende, espero, que se expuis Ayla, talvez lamente quando não houver ninguém para ajudar Fralie a à luz?
Ranec sempre havia sido uma anomalia para Frebec. Apesar de ter elevado status e fama como escultor, Frebec não sabia o que fazer homem de pele escura, e se sentia pouco à vontade perto dele. Frebec sempre tivera a sensação de que Ranec era desdenhoso ou caçoava dele quando usava aquele tom de ironia sutil. Não gostava daquilo, e além disso, havia alguma coisa provavelmente anormal naquela pele negra.
- Está certo, Ranec - disse Frebec em voz baixa. - Não creio que ela seja uma curandeira. Como alguém que cresceu com aqueles animais poderia aprender a ser curandeira? E Fralie já teve bebês. Por que seria diferente desta vez? A menos que ter essa mulher-animal aqui lhe traga má sorte. Esse menino cabeça-chata já diminui o status do acampamento. Não vêem isso. Ela apenas o diminuirá mais. Por que alguém quereria uma mulher criada por animais? E o que as pessoas pensariam se alguém viesse aqui e encontrasse cavalos dentro de uma habitação? Não, não quero uma mulher-animal que viveu com os cabeças-chatas, sendo membro do Acampamento do Leão.
Houve um grande alvoroço sobre estes comentários a respeito do Acampamento do Leão, mas Tulie ergueu a voz acima do tumulto.
- Qual sua base para dizer que o status deste acampamento de cresceu? Rydag não tira meu status de mim, ainda sou uma voz de liderança no Conselho de Irmãs. Talut tampouco perdeu sua posição.
- As pessoas estão sempre dizendo “esse acampamento com o menino cabeça-chata”. Eu me envergonho de dizer que sou membro - gritou Frebec.
Tulie mostrou sua altura ao lado do homem de constituição bastante franzina.
- Pode ir embora quando quiser - falou, a voz muito fria.
- Agora, veja o que fez - gritou Crozie. - Fralie está esperando um filho, e irá obrigá-la a partir, neste frio, sem ter lugar algum para onde ir. Por que concordei com sua união? Por que acreditei que alguém que pagou um Preço de Noiva tão baixo, seria suficientemente bom para ela? Minha pobre filha, pobre Fralie...
Os lamentos da velha foram abafados pelo nível geral do ruído das vozes coléricas e discussões de que Frebec era o alvo. Ayla deu meia-volta e caminhou para a Fogueira do Mamute. Notou que Rydag observava a reunião com grandes olhos tristonhos, da Fogueira do Leão, e dirigiu-se a ele, então. Sentou-se ao seu lado, escutou-lhe o coração e olhou para ele com atenção, a fim de se certificar de que ele estava bem. Depois, sem tentar conversar, porque não sabia o que dizer, pegou-o ao colo. Manteve-o ali, balançando-o para diante e para trás, cantarolando uma salmodia monótona, baixinho. Ela havia ninado seu filho assim, outrora, e depois, sozinha em sua caverna do vale, muitas vezes havia-se balançado para dormir da mesma maneira.
- Ninguém respeita o Bastão Falante? - esbravejou Talut, dominando o resto do furor. Seus olhos brilhavam. Ele estava zangado. Ayla nunca o havia visto tão zangado, mas ela admirou seu autocontrole quando voltou a falar: - Crozie, não expulsaríamos Fralie para o frio e você insulta a mim e ao Acampamento do Leão sugerindo que o faríamos.
A velha olhou para o chefe de boca escancarada. Ela não pensava, realmente, que eles expulsariam Fralie. Estivera apenas reprovando Frebec não imaginara que aquilo seria tomado como insulto. Ela teve a decência de corar de vergonha, o que surpreendeu algumas pessoas, mas ela compreendia os melhores pontos de comportamento aceito. O status de Fralie afinal, viera dela em primeiro lugar. Crozie era muito estimada por si - pria, ou havia sido, até perder tanto, e tornar todos ao seu redor, e e mesma, tão infelizes. Ela ainda podia reivindicar a distinção, se não a queza.
- Frebec, talvez sinta embaraço por ser um membro do Acampamento do Leão disse Talut -, mas se este acampamento perdeu qualquer status, é porque foi o único acampamento que o aceitou.
Como Tu' disse, ninguém o está forçando a ficar. E livre para partir quando quis mas não o expulsaremos, não com uma mulher doente que terá um f neste inverno. Talvez não tenha estado perto de mulheres grávidas muita vezes, antes, mas quer compreenda ou não, a doença de Fralie é mais c gravidez. Até eu sei disso.
“Mas essa não é a razão por que convoquei esta reunião. Não impo sua opinião, ou a nossa, ainda é um membro do Acampamento do Lc Eu declarei meu desejo de adotar Ayla na minha fogueira, de torná-la 1. mutoi. Mas, todos devem concordar, e você se opôs.
Agora, Frebec estava constrangido. Uma coisa era se sentir importan1 objetando e contrariando todo mundo, mas Talut acabava de lhe lembrá como se sentira humilhado e desesperado, quando tentava encontrar r acampamento para estabelecer nova fogueira, com sua valiosa nova r lher, que era mais desejável e lhe trouxera mais status do que jamais tive na vida.
Mamut observava-o de perto. Frebec nunca fora particularmei ilustre. Tinha pouco status, desde que sua mãe possuía pouco para lhe nenhuma realização para seu crédito, e poucas qualidades ou dons ó de qualquer mérito verdadeiro. Não era odiado, mas tampouco era r amado. Parecia ser um homem bastante medíocre, de capacidade mc.
Mas mostrava habilidade na argumentação. Embora falsos, seus a sentimentos tinham lógica. Talvez ele tivesse mais inteligência do que se pensara e, aparentemente, tinha aspirações elevadas. Unir-se a Fralie fora uma grande proeza para um homem como ele. Ele deveria ser observado com mais atenção.
Mesmo fazer uma proposta a uma mulher como ela revelava certa e ousadia. O Preço de Noiva era a base do valor econômico entre os Mamut as noivas eram o padrão da moeda. A posição de um homem em sua sociedade originava-se da mulher que lhe dera à luz e da mulher ou mulher que fosse capaz de atrair - por status, habilidade na caça, ou - dom ou charme - para viver com ele.
Encontrar uma mulher de s vado, desejosa de tornar-se sua mulher, era como descobrir grandes riquezas, e Frebec não ia deixá-la escapar.
Mas, por que ela o havia aceitado? pensou Mamut. Certamente, havia outros homens que tinham feito propostas; Frebec havia somado às dificuldades dela. Ele tinha tão pouco a oferecer, e Crozie era tão desagradável que o acampamento de Fralie os havia expulsado, e o acampamento de Frebec os tinha recusado. Depois, os outros acampamentos, um após o outro, os havia recusado, mesmo com uma mulher grávida, de alto status. E todas às vezes, por seus sentimentos de pânico, Crozie piorava as coisas, repreendendo-o e censurando-o, e tornando-os ainda menos desejáveis.
Frebec fora grato ao Acampamento do Leão quando este dissera sim, mas fora um dos últimos que ele havia tentado. Não porque não tivessem posição elevada, mas porque eram considerados como tendo uma variedade incomum de membros. Talut tinha a capacidade de ver o incomum como especial, mais do que como estranho. Ele havia conhecido o status durante a vida inteira, procurava algo mais, e encontrou-o no incomum. Veio a sentir prazer naquela qualidade e encorajou-a no seu acampamento. O próprio Talut era o maior homem que alguém já vira, não somente entre os Mamutoi, mas também entre os povos vizinhos. Tulie era a maior e mais forte mulher. Mamut era o homem mais velho. Wymez era o melhor britador de sílex, Ranec não apenas o homem mais escuro, mas o melhor escultor. E Rydag era a única criança cabeça-chata. Talut queria Ayla, que era muito estranha com os seus cavalos, e sua habilidade e dons, e não se importaria com Jondalar, que viera do local mais distante.
Frebec não queria ser incomum, especialmente desde que se via unicamente como o mais insignificante de todos. Procurava ainda posição entre os comuns, e começara tornando o mais comum uma virtude. Era Mamutoi, portanto, melhor do que todos que não o eram, melhor do que alguém diferente. Ranec, com sua pele escura - e seu- espírito mordaz, satírico - não era, realmente, Mamutoi. Nem sequer nascera entre eles, mas Frebec sim, e era certamente melhor do que aqueles animais, aqueles cabeças-chatas. O menino que Nezzie amava tanto não tinha status algum desde que sua mãe era uma cabeça-chata.
E Ayla, que veio com os seus cavalos e seu desconhecido alto, já havia atraído o desdenhoso Ranec, que todas as mulheres queriam apesar da sua diferença, ou por causa dela. Ela nem sequer olhara para Frebec, como se soubesse que ele não era nada que valesse a sua atenção. Não importava que ela fosse hábil, ou talentosa, ou bonita; ele era, seguramente, melhor do que ela; ela não era uma Mamutoi, e ele era um deles. E além disso, ela vivera com os cabeças-chatas. Agora, Talut queria torná-la uma Mamutoi.
Frebec sabia que ele era a causa da cena desagradável que irrompera. Havia provado que era importante o bastante para mantê-la fora, mas havia encolerizado, mais do que nunca, o grande chefe, e era um pouco assustador ver o grande urso tão zangado. Talut podia pegá-lo do chão e parti-lo ao meio. No mínimo, Talut podia fazê-lo ir embora. Então, por quanto tempo ele manteria sua mulher de status elevado?
No entanto, apesar de toda a sua cólera controlada, Talut tratava Frebec com mais respeito do que estava acostumado a receber. Seus comentários não tinham sido ignorados ou deixados de lado.
- Se suas objeções são razoáveis, não importa - continuou Tr'“ friamente. - Acredito que ela tem tantos dons incomuns que podia trazer benefícios para nós. Você duvidou disso, e disse que ela não tem nada c valor a oferecer. Não sei o que poderia ter oferecido, possivelmente, uma pessoa não pudesse discutir, se desejasse...
- Talut - disse Jondalar -, desculpe minha interrupção enquanto está segurando o Bastão
Falante, mas acho que sei de uma coisa que i pode ser discutida.
- Sabe?
- Sim, acho que sim. Posso falar a sós com você?
- Tulie, quer segurar o bastão? - disse Talut, caminhando depois para a Fogueira do Leão com Jondalar. Um murmúrio de curiosidade c seguiu.
Jondalar se acercou de Ayla e lhe falou. Ela sacudiu a cabeça, concordando, e colocando Rydag no chão, levantou-se e correu para a Fogueira do Mamute.
- Talut, quer apagar todos os fogos? - disse Jondalar.
- Todos? - Talut franziu atesta. - Está frio lá fora, e ventoso. poderia ficar frio aqui dentro, rapidamente.
- Eu sei, mas acredite-me. Valerá a pena. Para Ayla demonstrar i da melhor maneira, é necessário
estar escuro. Não ficará frio por mui tempo.
Ayla voltou com algumas pedras nas mãos. Talut desviou o olhar d jovem para Jondalar, e de novo para ela. Depois, sacudiu a cabeça, dando. Sempre se podia fazer um fogo de no mesmo que e esforço. Voltaram para a fogueira de cozinhar, e 1 falou com ililie, c particular. Havia alguma discussão, e Mamut foi chamado; depois Tlilie conversou com Barzec. Barzec fez sinal a Druwez e Danug, e todos os três v... tiram parkas, pegaram cestas grandes, entrelaçadas apertadamente, e saíran
O murmúrio da conversa estava repleto de excitação. Alguma coisa especial acontecia e o acampamento se encontrava cheio de expectativa quase da forma como ficava antes de uma cerimônia especial. Não esperavam consultas secretas e uma demonstração misteriosa.
Barzec e os meninos voltaram rapidamente com cestas cheias de barro Depois, começando na extremidade da Fogueira dos Auroques, m os carvões empilhados ou pequenos fogos de sustentação em cada um buracos de fogo e derramaram o barro solto sobre eles para abafar chamas.
As pessoas do acampamento ficaram nervosas quando compreenderam o que ocorria.
A medida que a habitação comunal escurecia com cada fogueira ç era apagada, todos pararam de falar e a habitação ficou em silêncio. O vento além das paredes uivava mais alto, e as rajadas eram mais frias e traziam consigo um frio mais forte e ameaçador. O fogo era apreciado e compreerdido, mesmo se tido como certo, às vezes, mas sabiam que sua vida dependia dele quando viram as fogueiras se apagando.
Afinal, somente o fogo da grande fogueira de cozinhar permaneceu:
Ayla tinha seus materiais de fazer fogo prontos ao lado da lareira e, então, com um gesto afirmativo de cabeça de Talut, Barzec, sentindo o momento dramático, derramou a terra sobre o fogo enquanto as pessoas arquejavam.
Num instante, a moradia estava imersa na escuridão. Não era apenas ausência de luz, mas plenitude de escuridão. Um negrume sufocante, inflexível, profundo ocupava todo espaço vazio. Não havia estrelas, orbe cintilante, ou nuvem nacarada, luminosa. Não se podia ver a mão levada à frente dos olhos. Não havia dimensão, ou sombra, ou vulto de preto sobre preto. O sentido da visão perdeu todo o seu valor.
Uma criança gritou e foi acalmada pela mãe. Depois, ouviram-se respiração, ruído de passos arrastados, e uma tosse. Alguém falou em voz baixa e a resposta foi dada por outro, de voz mais grave. O odor de osso queimado era forte, mas estava misturado a inúmeros outros cheiros, fragrâncias e aromas: couro curtido, alimento que se encontrava cozido, e alimento estocado, esteiras de capim, ervas secas e o odor de gente, de pés e corpos e hálitos quentes.
O acampamento esperava no escuro, pensando. Não exatamente assustado, mas um pouco apreensivo. Parecia ter-se passado um longo tempo, e eles começaram a ficar inquietos. O que demorava tanto?
A escolha do momento fora deixada por conta de Mamut. A segunda natureza do velho feiticeiro era criar efeitos dramáticos, e quase um instinto conhecer exatamente o momento certo. Ayla sentiu um tapinha em seu ombro. Era o sinal por que esperava. Tinha um pedaço de pirita em uma das mãos, sílex na outra e havia no chão, à sua frente, uma pequena pilha de lanugem de estramônio. Na escuridão total da habitação, ela fechou os olhos e respirou fundo, depois golpeou a pirita com o sílex.
Uma grande centelha brilhou e, na escuridão total, a pequenina claridade iluminou exatamente a jovem ajoelhada ao chão por um momento, provocando um arquejo surpreso e sons de espanto do acampamento. Depois, apagou-se. Ayla golpeou de novo, desta vez mais perto da isca que preparara. A centelha caiu sobre o material rapidamente inflamável. Ayla inclinou-se mais para soprar, e em um instante, converteu-se em chamas, e ela ouviu os “ahs” e “ohs” e exclamações de pasmo.
Ela alimentou pequenas aparas de galhos de uma pilha próxima, e quando se incendiaram, gravetos e galhos maiores. Depois, sentou-se e observou enquanto Nezzie retirava a terra e cinzas da fogueira de cozinhar e transferia a chama para ela. Regulando o registro do cano que trazia o vento do exterior, ela começou a queimar o osso. A atenção das pessoas do acampamento tinha-se concentrado no processo, mas depois de o fogo ser avivado, compreenderam quão pouco tempo fora necessário para isso. Era magia! O que ela havia feito para criar um fogo tão depressa?
Talut bateu o Bastão Falante três vezes com a extremidade grossa.
- Agora, alguém tem mais objeções contra Ayla se tornar uma Mamutoi e um membro do
Acampamento do Leão? - perguntou.
- Ela nos mostrará como fazer essa mágica? - indagou Frebec.
- Ela não apenas mostrará como prometeu dar uma de suas pedras-de-fogo para cada fogueira deste acampamento - replicou Talut.
- Não tenho mais objeções - disse Frebec.
Ayla e Jondalar vasculharam seus sacos de viagem para reunir todas as piritas que tinham com eles e escolheram seis das melhores. Ela havia tornado a acender os fogos de cada fogueira na noite anterior, mostrando-lhes o processo, mas estava cansada e era tarde demais para procurar pedras-de-fogo em seus bornais antes de ir dormir.
As seis pedras, amarelo-acizentadas com brilho metálico, faziam uma pequena pilha, insignificante, sobre o estrado da cama, no entanto uma delas fora a causa da diferença entre a aceitação e rejeição de Ayla. Ao ver as pedras, ninguém imaginaria que magia jazia oculta na alma daquelas rochas.
Ayla as pegou e, segurando-as nas mãos, ergueu os olhos a Jondalar.
- Se todos me queriam, por que deixariam que uma só pessoa me mantivesse de fora? - perguntou.
- Não estou certo - disse ele -, mas todos em um grupo como este têm que conviver com os demais. Se uma pessoa realmente não gosta de outra, isto pode causar muito problema, especialmente quando o tempo mantém as pessoas dentro de casa durante muitos dias. As pessoas acabam tomando partido, discussões podem levar a brigas, e alguém pode ficar ferido, ou pior. Isso leva à cólera e então, alguém quer se vingar. Às vezes, a única maneira de evitar mais tragédia é separar o grupo... Ou pagar um preço alto e enviar o encrenqueiro embora...
Sua testa se franziu com o sofrimento, enquanto ele fechava os olhos por um instante e Ayla se perguntou qual seria o motivo de sua tristeza.
- Mas Frebec e Crozie discutem o tempo todo, e as pessoas não gostam disso - falou ela.
- O resto do acampamento sabia sobre isso antes de os aceitar, ou ao menos fazia alguma idéia. Todos tiveram a chance de dizer não, por isto ninguém pode culpar ninguém. Uma vez tendo concordado com alguma coisa, você tende a sentir que deve resolver o caso, e sabe que é apenas durante o inverno. E mais fácil fazer mudanças no verão.
Ayla sacudiu a cabeça, concordando. Não estava inteiramente certa de que ele queria que ela se tornasse Mamutoi, mas mostrar a pedra-de-fogo fora idéia dele, e funcionara. Os dois caminharam para a Fogueira do Leão a fim de entregar as pedras. Talut e Tulie conversavam. Nezzie e Mamut falavam alguma coisa ocasionalmente, porém ouviam mais que outra coisa.
- Aqui estão as pedras-de-fogo que prometi - disse Ayla quando perceberam sua aproximação.
- Podem dar as pedras hoje.
- Oh, não! - exclamou Tulie. - Hoje não. Vou guardá-las para a cerimônia. Falávamos justamente sobre isso. Elas serão parte das dádivas. Temos que lhes dar um valor para podermos planejar o que mais será necessário dar. Elas devem ter um valor muito alto, não só por si mesmas, mas para negociar, e pelo status que darão a você.
- Que dádivas? - perguntou Ayla.
- Quando alguém é adotado - explicou Mamut -, é costume trocar presentes. A pessoa que é adotada recebe presentes de todos e, em nome da fogueira que a está adotando, são distribuídas dádivas para o resto das fogueiras do acampamento. Podem ser pequenas, apenas uma troca de prenda, ou muito valiosas. Depende das circunstâncias.
- Acho que as pedras-de-fogo têm valor suficiente para ser um presente para cada fogueira - disse Talut.
- Talut, eu concordaria com você se Ayla fosse Mamutoi e seu valor estivesse estabelecido - disse Tulie -, mas neste caso, estamos tentando fixar seu Preço de Noiva. O acampamento se beneficiará se pudermos justificar um valor elevado para ela. Desde que Jondalar recusou ser adotado, ao menos por enquanto... - O sorriso de Tulie, mostrando que não tinha qualquer animosidade por ele, era quase um galanteio, mas de forma alguma recatado. Expressava, simplesmente, a convicção de que ela era atraente e desejável. - Ficarei feliz em contribuir com alguns presentes para a distribuição.
- Que tipo de presentes? - perguntou Ayla.
- Oh, apenas presentes... Podem ser muitas coisas - disse Tulie. - As peles são bonitas, e roupas... Túnicas, calças, botas ou o couro para fazê-las. Deegie faz couro lindamente tingido. Âmbar e conchas, e contas de marfim para colares e ornamentos de roupas. Presas longas de lobos e outros carnívoros são bastante valiosas. Da mesma forma, esculturas de marfim. Sílex, sal... É bom dar alimento, principalmente quando pode ser estocado. Qualquer coisa bem-feita, cestas, esteiras, cintos, facas. Acho importante dar tanto quanto possível. Assim, quando todos mostrarem os presentes na Reunião, parecerá que você tem uma abundância, para exibir seu status. Não importa, realmente, se a maior parte for doada por Talut e Nezzie para você.
- Você e Talut e Nezzie não têm que dar por mim. Eu tenho coisas para dar - disse Ayla.
- Sim, claro, tem as pedras-de-fogo. E são muito valiosas, mas não causam muita impressão. Mais tarde, as pessoas compreenderão seu valor, porém, as primeiras impressões fazem diferença.
- Tulie tem razão - falou Nezzie. - A maioria das jovens passa anos acumulando e fazendo presentes para dar em seus matrimônios, ou se são adotadas.
- Muitas pessoas são adotadas pelos Mamutoi? - indagou Jondalar.
- Não forasteiros. - respondeu Nezzie -. Mas os Mamutoi adotam, muitas vezes, outros Mamutoi. Todo acampamento precisa de uma irmã ou irmão para ser a chefe ou o chefe, mas nem todo homem tem sorte suficiente de ter uma irmã como Tulie. Se alguma coisa acontece a um ou outro, Ou se um jovem ou uma jovem desejam começar um novo acampamento, uma irmã ou irmão podem ser adotados. Mas, não se preocupe. Tenho muitas coisas que você pode dar, Ayla, e mesmo Latie ofereceu algumas de suas coisas para Ayla dar.
- Mas tenho coisa para dar, Nezzie. Tenho coisas na caverna do vale - falou Ayla. - Passei anos fazendo essas coisas.
- Não é necessário voltar... - disse Tulie, pensando consigo mesma que, o que quer que Ayla tivesse seria muito primitivo, com seu background de cabeça-chata. Como ela poderia dizer à jovem que seus presentes não seriam, provavelmente, adequados? Poderia ser inconveniente.
- Quero voltar - insistiu Ayla. - Preciso de outras coisas. Minhas plantas que curam. Alimento estocado. E alimento para os cavalos. - Voltou-se para Jondalar. - Quero voltar.
- Acho que podemos. Se nos apressarmos e não pararmos pelo caminho, creio que poderíamos... se o tempo melhorar.
- Em geral, depois da primeira onda de frio como esta, temos tempo bom - falou Talut. - E imprevisível, contudo. Pode mudar a qualquer momento.
- Bem, se tivermos tempo bom, talvez corramos o risco de voltar ao vale - disse Jondalar e foi recompensado por um dos belos sorrisos de Ayla.
Havia outras coisas que ele queria, também. Aquelas pedras-de-fogo tinham causado boa impressão, e a praia rochosa na curva do rio no vale de Ayla estivera cheia delas. Um dia, esperava ele, voltaria e partilharia com seu povo tudo o que havia aprendido e descoberto: as pedras-de-fogo, o arremessador de lanças e, para Dalanar. O truque de Wymez de aquecer sílex. Um dia...
- Voltem depressa - gritou Nezzie, acenando com a palma virada para si, e dando adeus.
Ayla e Jondalar retribuíram o aceno. Estavam montados, os dois, em Whinney, com Racer amarrado a uma corda, atrás, e olharam para o povo do Acampamento do Leão que se reunira para vê-los partir. Ayla, excitada como estava por voltar ao vale que fora seu lar durante três anos, sentiu uma ponta de tristeza ao deixar aquela gente que já parecia uma família.
Rydag, de pé a um lado de Nezzie, e Rugie do outro, agarravam-se à mulher enquanto acenavam.
Ayla não pôde deixar de notar quão pouca semelhança existia entre eles. Uma era uma pequena imagem de Nezzie, o outro parcialmente Clã. No entanto, tinham sido criados como irmão e irmã.
Com um repentino insight, Ayla lembrou-se de que Oga havia amamentado Durc, juntamente com seu próprio filho, Grev, os dois, irmãos de leite. Grev era totalmente Clã e Durc apenas parcialmente; a diferença entre eles fora igualmente grande.
Ayla fez pressão com as pernas sobre Whinney e mudou de posição, como sua segunda natureza, mal pensando que guiava a égua. Viraram-se e começaram a subir a encosta.
A viagem de volta não foi de lazer, como havia sido quando deixaram o vale. Viajavam firmemente, sem fazer excursões secundárias exploratórias, ou desvios para caçar, nem paradas prematuras para relaxar ou usufruir prazeres. Esperando regressar, tinham observado pontos de referência quando vinham do vale, alguns afloramentos, terras altas e formações rochosas, vales e riachos, porém, a mudança de estação havia alterado a paisagem.
Em parte, a vegetação mudara o seu aspecto. Os vales protegidos onde pararam tinham assumido uma variação de estação que provocava uma sensação inquietante de desconhecido. O salgueiro e o vidoeiro ártico tinham perdido as folhas e seus galhos raquíticos, tremendo ao vento, pareciam murchos e sem vida. Coníferas - espruce branco, lanço, pinheiro - vigorosas e arrogantes em sua força verde-cristalizada, eram proeminentes, em vez disso, e mesmo as plantas anãs isoladas nas estepes, contorcidas pelo vento, ganhavam substância, comparativamente. Porém, mais confusas eram as mudanças nos contornos da superfície daquela terra frígida peri glacial, realizadas pela permafrost.
Permafrost - camada do solo permanentemente gelada qualquer parte da crosta terrestre, da superfície ao leito rochoso profundo, que permanece congelada o ano inteiro, foi causada naquela terra distante das regiões polares, há tanto tempo atrás, por camadas de gelo que abarcaram o continente - com 1,5 quilômetro ou 2, ou mais de altura. Uma interação complexa de clima, superfície e condições subterrâneas criou e manteve o solo congelado. O sol influenciou, e a água parada, vegetação, densidade de solo, vento e neve.
As temperaturas anuais médias somente alguns graus mais baixas do que aquelas que, mais tarde, conservariam as condições temperadas, eram suficientes para provocar a invasão da terra por geleiras maciças e a formação da permafrost mais ao sul. Os invernos eram longos e frios, e tempestades ocasionais traziam neve forte e nevascas intensas, mas a queda de neve durante a estação era relativamente pouca, e muitos dias eram claros. Os verões eram curtos, com poucos dias quentes, tão quentes que desvirtuavam a proximidade de qualquer massa glacial, mas em geral eram nublados e frios, com pouca chuva.
Embora uma porção do solo estivesse sempre congelada, a permafrost não era permanente, nem condição imutável; era tão inconstante e caprichosa quanto as estações. Nos rigores do inverno, quando havia um congelamento sólido por toda parte, a terra parecia passiva, dura e estéril, mas não era o que aparentava. Quando a estação mudava, a superfície amaciava somente algumas polegadas onde a cobertura espessa do terreno, ou solos densos, ou sombra demasiada resistiam ao calor suave do verão. Mas a camada ativa se degelava vários metros sobre encostas ensolaradas de cascalho bem seco, com pouca vegetação.
No entanto, a camada fofa era uma ilusão. Sob a superfície, a garra de ferro do inverno ainda imperava. O gelo impenetrável dominava e, com o degelo e as forças da gravidade, os solos saturados e seu fardo de rochas e árvores deslocavam-se, deslizavam e corriam através da camada de solo lubrificada pela água ainda congelada, abaixo. Aconteciam quedas e desmoronamentos quando a superfície se aquecia e, onde o degelo de verão não encontrava saída, apareciam brejos, pântanos e lagos.
Quando o ciclo mudava uma vez mais, a camada ativa acima do solo congelado endurecia de novo, mas sua aparência fria e gelada disfarçava um coração inquieto. As pressões e cargas extremas provocavam deslocamento, compressão e deformação. O terreno congelado se partia e rachava e, depois, se enchia de gelo que, para aliviar a pressão, era expulso como gelo cuneiforme. As pressões enchiam os buracos de lama e faziam com que o lodo fino crescesse em bolhas de aluvião e borbulhas congeladas. Quando a água gelada se expandia, montes e colinas de gelo lodoso - “pingos” - projetavam-se de terras baixas, pantanosas, alcançando alturas de 60 metros e diâmetros de mais de 100 metros.
Quando Ayla e Jondalar voltaram sobre seus passos, descobriram que o relevo da paisagem havia mudado, tornando os pontos de referência enganadores. Alguns riachos que pensavam recordar tinham desaparecido. Tinham congelado mais perto de sua nascente e secado corrente abaixo.
Colinas de gelo apareceram onde não havia nenhuma antes, originárias de brejos de verão e terras baixas pantanosas onde subsolos densos, de textura fina, provocavam uma drenagem pobre. Filas de árvores cresciam em talik - ilhas de camadas não-congeladas cercadas por permafrost - dando, às vezes, uma impressão falsa de um pequeno vale, onde não conseguiram se lembrar de ter visto um.
Jondalar não estava familiarizado com o terreno geral e mais de uma vez recorreu à melhor memória de Ayla. Quando estava insegura Ayla se guia à orientação de Whinney. A égua a havia trazido para casa mais de uma vez antes, e parecia saber aonde ia. Às vezes, cavalgando os dois a égua, outras revezando-se ou caminhando para que o animal descansasse, avançaram até serem obrigados a parar para passar a noite. Então, acamparam simplesmente com uma pequena fogueira, sua tenda de couro e peles de dormir. Cozinharam cereal partido, seco, fazendo uma papa, e Ayla fermentou uma bebida quente de ervas.
De manhã, tomaram chá quente para aquecer enquanto se preparavam para continuar, e durante o caminho comeram carne moída seca e amoras secas misturadas com gordura e com a forma de bolinhos. Exceto por uma lebre que Ayla caçou, acidentalmente, com sua funda, não caçaram. Mas suplementaram os alimentos que Nezzie lhes dera para a viagem, com as sementes ricamente oleosas e nutritivas das pinhas do pinheiro-manso, juntadas em locais onde pararam e atiradas ao fogo para se abrir com um estalo.
À medida que o terreno à sua volta mudava, tornando-se rochoso e mais acidentado, com ravinas e desfiladeiros íngremes, Ayla sentia uma excitação crescente. O território tinha algo familiar, como a paisagem ao sul e oeste do seu vale. Quando viu um escarpado com um padrão especial de coloração nas camadas, seu coração saltou.
- Jondalar! Veja! Veja aquilo! - gritou, apontando. - Estamos quase lá!
Até Whinney parecia excitada, e acelerou o passo, sem precisar ser instigada. Ayla observou, à procura de outro ponto de referência, um afloramento de pedra com uma forma distinta, que lhe lembrava uma leoa agachada. Quando o encontrou, viraram para o norte até chegarem à beira e uma encosta escarpada juncada de cascalho e rochas soltas. Pararam e olharam da borda. Ao fundo, um riacho, correndo em direção leste, cintilava ao sol enquanto se derramava sobre pedras.
Desmontaram e desceram com cuidado. Os cavalos partiram, depois pararam para beber água. Ayla encontrou as pedras projetando-se da água, com apenas um espaço amplo para pular, que sempre havia usado. Tomou um gole de água também, quando alcançaram o lado oposto.
- A água está mais doce aqui. Veja como está clara! - exclamou ela.
- Não está enlameada, pode-se ver o fundo. E veja, Jondalar, os cavalos estão aqui!
Jondalar sorriu afetuosamente diante da exuberância de Ayla, sentindo uma sensação semelhante, embora mais amena, de chegada ao lar à vista do comprido vale familiar. Os ventos fortes e gelo das estepes pincelavam a cavidade protegida com um toque mais claro, e até desprovida de folhas de verão, uma vegetação mais rica e viçosa era aparente. A encosta escarpada, que acabavam de descer, precipitava-se para uma muralha de pedra pura, enquanto avançava descendo em direção ao vale, à esquerda. A larga orla de moita cerrada e árvores ladeava a margem oposta do riacho que corria ao longo de sua base. Depois, atinava em uma campina de feno dourado ondulando sob o sol da tarde. O campo plano de capim alto subia gradualmente para as estepes à direita, mas estreitava-se e se tornava mais escarpado na extremidade distante do vale, até se tornar a outra muralha de uma garganta estreita.
Na metade da descida, um pequeno bando de cavalos de estepe tinha parado para pastar e olhava para eles. Um deles relinchou. Whinney sacudiu a cabeça e respondeu. O grupo os observou se acercarem, até estarem bem próximos. Então, quando o estranho odor dos seres humanos continuou a progredir, eles deram meia-volta juntos e, com cascos soando no terreno e rabos abanando, galoparam, subindo a encosta suave para as estepes descampadas acima. Os dois seres humanos montados em um dos animais que traziam, pararam para vê-los partir. O mesmo fez o potro amarrado a uma corda.
Racer, com a cabeça erguida e as orelhas levantadas, seguiu os cavalos até onde era possível.
Depois, ficou parado com o pescoço esticado e as narinas abertas, vigiando-os. Whinney relinchou para ele enquanto recomeçavam a descer o vale e ele voltou e seguiu a mãe.
Quando se apressaram, subindo a corrente em direção à extremidade estreita do vale, puderam ver o riacho fazendo uma curva abrupta ao redor de uma muralha saliente e uma praia rochosa, à direita. Do lado oposto havia uma grande pilha de pedras, madeira trazida pela corrente, e ossos, chifres, e presas de todo tipo. Alguns eram esqueletos das estepes, outros eram restos de animais apanhados em enchentes, carregados rio abaixo, e atirados contra a muralha.
Ayla mal podia esperar. Escorregou das costas de Whinney e subiu correndo uma trilha estreita e íngreme, ao lado da pilha de ossos, em direção ao alto da muralha, que formava uma saliência em frente a uma cavidade diante do penhasco rochoso. Ela quase correu para dentro, mas controlou-se no último minuto.
Aquele era o lugar onde havia vivido sozinha e sobrevivera porque nunca, por um momento sequer, esquecera de ficar alerta em relação a um perigo possível. As cavernas não eram usadas apenas por homens. Acercando-se, sorrateira, ao longo da muralha exterior, ela tirou a funda da cabeça e parou para pegar alguns pedaços de rocha.
Cuidadosamente, examinou o interior. Viu apenas escuridão, mas seu olfato detectou um odor leve de madeira queimada há muito tempo atrás, e um cheiro um pouco mais recente de carcaju. Mas, esse também era antigo. Ela entrou pela abertura e deixou seus olhos se habituarem à luz fraca.
Depois, olhou ao redor.
Sentiu a pressão de lágrimas enchendo seus olhos e lutou para contê-las, em vão. Ali estava, a sua caverna. Estava em casa. Tudo era tão familiar, no entanto, o local onde vivera durante tanto tempo parecia abandonado e esquecido. A luz que entrava pela abertura acima da entrada, mostrava-lhe que seu olfato estava certo, e uma inspeção mais atenta provocou um arquejo de tristeza. A caverna estava uma bagunça. Um animal, talvez mais de um, havia entrado realmente, e deixara a evidência espalhada por toda parte. Ela não tinha certeza de quanto dano fora causado.
Jondalar apareceu na entrada, então. Acercou-se, seguido por Whinney e Racer. A caverna também fora o lar da égua, e o único que Racer conhecera até chegarem ao Acampamento do Leão.
- Parece que tivemos um visitante - disse ele quando viu o estrago.
- Este lugar está uma confusão!
Ayla suspirou longamente e limpou uma lágrima.
- É melhor eu fazer um fogo e acender tochas, para podermos ver o quanto foi danificado. Mas, primeiro, é melhor eu descarregar Whinney para ela poder descansar e pastar.
- Acha que devemos soltá-los assim? Racer parecia estar pronto para seguir aqueles cavalos. Talvez devêssemos prendê-los - disse Jondalar, hesitante.
- Whinney sempre andou solta - disse Ayla, sentindo-se um pouco chocada. - Não posso prendê-la, ela é minha amiga. Ela fica comigo porque quer. Uma vez, ela foi viver com um bando de cavalos, quando queria um garanhão, e senti muita falta dela. Eu não sabia o que faria se não tivesse Neném. Mas ela voltou. Ela ficará e, se o fizer, Racer também fará o mesmo, ao menos até crescer. Neném me deixou. Racer talvez me deixe também, como os filhos deixam as fogueiras das mães quando crescem. Mas cavalos são diferentes de leões. Acho que se ele se tornar um amigo, como Whinney, talvez fique.
Jondalar balançou a cabeça afirmativamente.
- Muito bem, você os conhece melhor do que eu. - Afinal, Ayla era uma perita. A única perita quando se tratava de cavalos. - Por que eu não faço o fogo e você livra Whinney de seus fardos, então?
Enquanto ia aos locais onde Ayla sempre guardara os materiais para fazer um fogo e madeira, sem compreender quão familiar a caverna se tornara para ele no curto verão que vivera ali com ela, Jondalar se perguntou como poderia fazer, de Racer, um bom amigo. Ele ainda não compreendia completamente como Ayla se comunicava com Whinney, de forma que ela ia para onde Ayla desejava quando cavalgavam, e permanecia perto, embora tivesse liberdade para ir embora. Talvez ele jamais aprendesse, mas gostaria de tentar. Ainda assim, até aprender, não faria mal prender Racer a uma corda, ao menos quando viajavam por locais onde poderia haver outros cavalos.
Um exame da caverna e de seu conteúdo contou a história. Um carcaju ou uma hiena, Ayla não podia dizer qual, desde que ambos tinham estado na caverna em ocasiões diferentes, e seus rastros estavam misturados, havia atacado um dos esconderijos de carne-seca e acabado com ela. Uma cesta de cereal que pegaram para Whinney e Racer, que havia ficado bastante exposta, fora mastigada em vários lugares. Uma variedade de pequenos roedores - a julgar pelos rastros - ratazanas, lagômios, esquilos, gerbos e hamsters grandes - tinha levado os alimentos e quase não restava uma só semente Encontraram um ninho repleto com o saque sob uma pilha de feno próxima, porém, a maior parte das cestas de cereais e raízes e frutas secas, que tinham sido colocadas em buracos feitos no chão de terra da caverna, ou protegidas por pilhas de pedras postas sobre elas, sofreram muito menos dano.
Ayla ficou contente por terem decidido colocar as peles e couros macios que ela fizera, durante anos, em uma cesta forte e escondê-la em um monte de pedras. A grande pilha de pedras se mostrara resistente aos animais saqueadores, porém o couro deixado exposto, restos das roupas que Ayla fizera para Jondalar e para ela própria antes de partirem, fora despedaçado. Outro monte de pedras que continha, entre outras coisas, um recipiente de couro cru cheio de gordura, cuidadosamente derretida estocada em pequenas porções semelhantes a salsichas, de intestinos de veados, fora alvo de assaltos repetidos. Um canto da bolsa de couro cru havia sido dilacerado por dentes e garras, uma salsicha aberta, mas o monte de pedras havia resistido.
Além de atacar o alimento estocado, os animais tinham rondado outras áreas de armazenagem, derrubado grande quantidade de xícaras e tigelas de madeiras feitas à mão e polidas, arrastado cestas e esteiras entrelaçadas e tecidas em desenhos e padrões sutis, defecado em vários locais e, em geral, destruído tudo o que encontraram. Mas o dano real era muito menor do que parecera a princípio, e tinham ignorado essencialmente a grande farmacopéia de Ayla, de remédios de ervas secas e conservadas.
À noite, Ayla se sentia muito melhor. Tinham feito limpeza e colocado a caverna em ordem, determinado que a perda não era muito grande, cozinhado e feito uma refeição e até explorado o vale para ver que mudanças tinham ocorrido. Ayla sentiu-se finalmente à vontade com um fogo na lareira, peles de dormir espalhadas sobre feno limpo na vala vazia que havia usado como cama, e Whinney e Racer confortavelmente instalados em seu lugar do outro lado da entrada.
- E difícil acreditar que estou de volta - disse ela, sentando-se numa esteira diante do fogo, ao lado de Jondalar. - Sinto como se tivesse ficado longe uma vida inteira, mas não foi tanto assim.
- Não, não foi muito tempo.
- Aprendi muito, talvez seja por isto que parece muito tempo. Foi bom você ter-me convencido a ir com você, Jondalar, e estou contente por termos conhecido Talut e os Mamutoi. Sabia que eu tinha medo de encontrar os Outros?
- Eu sabia que você se preocupava com isso, mas tinha certeza de que assim que conhecesse algumas pessoas, gostaria delas.
- Não era apenas conhecer pessoas. Era conhecer os Outros. Para o Clã, era isto o que eles eram e, embora me tivessem dito, a vida toda, que eu nascera dos Outros, ainda pensava em mim como Clã. Mesmo quando fui amaldiçoada e soube que não poderia voltar, tinha medo dos Outros. Depois que Whinney veio viver comigo, foi pior. Eu não sabia o que fazer. Temia que eles não me deixassem ficar com ela, ou a matassem para se alimentar. E tinha medo de que não me permitissem caçar. Eu não queria viver com pessoas que não me deixassem caçar, se eu quisesse, ou que talvez me obrigassem a fazer alguma coisa que eu não queria fazer - falou Ayla.
De repente, a lembrança de seus temores e ansiedades encheram-na de desconforto e energia nervosa. Ela se levantou e caminhou até a boca da caverna, afastou o pesado protetor contra o vento e saiu para o topo da muralha saliente que formava um amplo pórtico para a caverna. Estava frio e claro lá fora. As estrelas, rijas e cintilantes, brilhavam no céu escuro com uma força tão intensa quanto o vento. Ela se abraçou e esfregou os braços enquanto caminhava para a extremidade da saliência.
Começou a tremer e sentiu uma pele envolvendo seus ombros; virou-se para encarar Jondalar. Ele a tomou nos braços e ela se aninhou no seu calor.
Ele se inclinou para beijá-la, depois disse:
- Está frio aqui fora. Volte para dentro.
Ayla o deixou conduzi-la para o interior, mas parou em seguida ao couro pesado, que usara como quebra-ventos desde seu primeiro inverno.
- Esta era minha tenda... Não, a tenda de Creb - corrigiu-se. - Ele nunca a usou, no entanto. Era a tenda que usei quando fui uma das mulheres escolhidas para acompanhar os homens em suas caçadas, a fim de retalhar a carne e ajudar a carregá-la. Mas não me pertencia, pertencia a Creb. Trouxe comigo quando parti porque achei que Creb não se importaria. Não podia perguntar a ele. Estava morto, mas não me teria visto, se estivesse vivo. Acabara de ser amaldiçoada. - As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto, embora ela não parecesse notá-las. - Eu estava morta, mas Durc me viu. Ele era pequeno demais para saber que não devia me ver. Oh, Jondalar, eu não queria deixá-lo! - Ela soluçava agora. - Mas eu não podia trazê-lo comigo, eu não sabia o que poderia me acontecer.
Ele hesitava sobre o que dizer, ou fazer. Por isto, abraçou-a apenas e a deixou chorar.
- Quero ver Durc de novo. Toda vez que vejo Rydag penso em Durc. Eu queria que ele estivesse aqui comigo, agora. Eu gostaria que nós dois fôssemos adotados pelos Mamutoi.
- Ayla, é tarde. Está cansada. Venha para a cama - disse Jondalar, levando-a para as peles de dormir. Mas se sentia inquieto. Tal pensamento era irreal e ele não queria encorajá-la.
Ela se virou, obediente e deixou que ele a guiasse. Em silêncio, ele a ajudou a tirar as roupas, depois sentou-a e empurrou-a suavemente para trás, e cobriu-a com as peles. Colocou mais lenha e empilhou os carvões na lareira para que durassem mais. Depois, se despiu rapidamente, e enfiou-se na cama ao lado dela. Abraçou-a e beijou-a suavemente, mal tocando-lhe os lábios com os dele.
O efeito foi atormentador e ele sentiu a resposta trêmula de Ayla. Com o mesmo toque leve, quase fazendo cócegas, ele começou a beijar-lhe o rosto; as faces, os olhos fechados e depois os lábios macios e carnudos novamente. Estendeu a mão e inclinou o maxilar de Ayla para trás e acariciou-lhe o pescoço da mesma maneira. Ayla se obrigou a jazer imóvel e, em vez de sentir cócegas, arrepios de um fogo esquisito acompanharam o toque rápido de Jondalar e puseram fim ao seu humor tristonho.
As pontas dos dedos dele traçaram a curva do ombro de Ayla e deslizaram pelo comprimento do seu braço. Depois, lentamente, com um toque sutil, subiu a mão pelo interior do braço da jovem. Ela estremeceu com um espasmo que encheu cada nervo com expectativa rápida. Enquanto seguia o contorno do corpo de Ayla descendo a mão experiente, examinou o mamilo macio. Este se ergueu pronto e firme, enquanto um choque intenso de prazer a percorria.
Jondalar não pôde resistir e se inclinou para tomá-lo na boca. Ela o apertou contra si enquanto ele sugava e puxava e mordiscava, sentindo uma umidade cálida entre as coxas enquanto as sensações agudas enviavam ferroadas correspondentes bem no fundo. Ele sentiu o odor da pele da jovem e também uma plenitude arrebatadora em seus rins ao pressentir que ela estava pronta. Ele jamais parecia capaz de conseguir o suficiente dela, e Ayla parecia estar sempre pronta para ele. Nenhuma vez, que ele se lembrasse, ela o rejeitara. Não importavam as circunstâncias, dentro ou fora de casa, em peles quentes ou chão frio, sempre que ele a queria, ela estava ali para ele, não apenas aquiescendo, mas como parceira ativa, desejosa. Somente durante seu período mensal é que ficava um pouco reprimida, como se sentisse timidez, e ele se controlava, respeitando seus desejos.
Quando estendeu a mão para acariciar-lhe a coxa e ela se abriu para ele, Jondalar sentiu uma tal urgência que poderia tê-la possuído no mesmo instante, mas queria que o ato durasse. Estavam num local quente e seco, sozinhos e, provavelmente, pela última vez em todo o inverno. Não que ele hesitasse na habitação comunal dos Mamutoi, mas estarem sozinhos, os dois, dava uma qualidade especial de liberdade e intensidade a seus prazeres. A mão dele encontrou-lhe a umidade, depois seu pequeno e ereto centro de prazer, e ele ouviu a respiração dela explodir em arquejos e gritos quando a acariciou e friccionou. Desceu mais a mão e penetrou com dois dedos, explorando-lhe as profundezas, enquanto ela arqueava as costas e gemia. Oh, como ele a desejava, pensou, mas ainda não!
Ele soltou-lhe o mamilo e descobriu-lhe a boca, levemente aberta. Beijou-a com firmeza, amando o toque sensual lento da língua que encontrou a dele, quando procurava a dela. Ele recuou por um momento, para exercitar algum controle antes de ceder inteiramente ao próprio impulso esmagador e à bela, ávida mulher que amava. Examinou-lhe o rosto até ela abrir os olhos.
A luz do dia os olhos dela eram cinza-azulados, a cor do sílex, mas agora estavam escuros e tão cheios de desejo e amor que a garganta de Jondalar doeu com a sensação que surgiu das profundezas de seu ser. Ele tocou-lhe a face com a parte de trás da ponta do dedo indicador, contornou-lhe o maxilar e correu-o pelos lábios dela. Não se fartava de olhá-la, tocá-la, como se quisesse gravar seu rosto na memória. Ela ergueu a cabeça para ele, para olhos tão vividamente azuis que pareciam violáceos sob a luz da lareira, e tão irresistíveis com seu amor e desejo que ela quis fundir-se neles. Se quisesse, não teria sido capaz de recusá-lo, e ela não queria.
Ele a beijou, depois desceu a língua cálida pelo pescoço e pela depressão entre os seios. Com as duas mãos, segurou-lhe as mamas, procurou um mamilo e sugou-o. Ela massageou os ombros dele e braços, gemendo suavemente enquanto ondas de uma sensação de dormência atravessavam-lhe o corpo.
Ele percorreu-lhe o corpo com a boca, molhou-lhe a cavidade do umbigo com a língua e sentiu depois a textura de pêlo macio. Ela arqueou um pouco o corpo, num convite e, com a língua sensível e úmida, ele encontrou o topo da fenda e depois o pequeno centro de prazer. Ela gritou quando ele o alcançou.
Ela se sentou, então, enroscando-se até encontrar o membro rijo dele, tomou-o na boca o máximo possível, enquanto suas mãos se estendiam até os testículos macios.
Ele sentiu a pressão crescer, o ímpeto dos rins, e as pulsações latejantes do membro pleno, enquanto provava-lhe o sexo e tornava a descobrir suas dobras e arestas e também sua profundidade adorável. Quase não conseguia o bastante. Queria tocar cada parte de Ayla, provar cada parte, queria mais e mais dela, sentia sua calidez e sua sensação arrebatadora, e as duas mãos da jovem movendo-se para cima e para baixo por seu dardo longo e cheio. Ele ansiava por penetrá-la.
Com supremo esforço, ele se afastou, virou-se e encontrou novamente a fonte de sua feminilidade, explorou-a com mãos experientes. Depois se inclinou para seu centro, focinhando-o até a respiração de Ayla se converter em espasmos e gritos. Ela sentiu o aparecimento, o crescimento de tensão rara e inexprimível. Chamou-o, estendeu as mãos para ele, e depois ele se ergueu entre as coxas da mulher e, com um tremor de expectativa e controle penetrou-a, afinal, e exultou em sua afetuosa acolhida.
Ele se controlara durante tanto tempo que levou um momento para gozar. Penetrou-a de novo, profundamente, deleitando-se com a mulher maravilhosa que era capaz de aceitar todo o seu tamanho. Com desembaraço, Jondalar investiu outra vez, e repetiu o ato, mais depressa, alcançando níveis mais altos, enquanto ela se erguia para encontrá-lo, movendo-se em harmonia com ele, golpe a golpe. Em seguida, com gritos agudos, ele sentiu a onda vindo, surgindo dentro dela, e eles investiram na arrancada final esmagadora de energia e prazer, e alívio.
Ambos estavam esgotados demais, sensualmente exaustos, para se mover. Ele estava espalhado sobre ela, mas Ayla sempre amara essa parte, o peso do corpo de Jondalar sobre o seu. Ela sentiu o seu fraco odor, nele, lembrando-se de como fora amada e por que estava tão deliciosamente entorpecida. Ainda sentia a pura maravilha inesperada dos prazeres. Ayla não soubera que seu corpo podia experimentar tanto deleite e júbilo. Ela só conhecera a degradação de ser possuída com ódio e desprezo. Até surgir Jondalar, ela ignorava que existisse outra maneira.
Ele afinal se ergueu, beijando-lhe um dos seios e acariciando-lhe o umbigo com o nariz, enquanto recuava e se levantava. Depois, ela ficou de pé também e se dirigiu para os fundos, deixando cair algumas pedras de cozinhar no fogo.
- Quer pôr um pouco de água naquela cesta de cozinhar, Jondalar? Acho que a bolsa grande de água está cheia - disse ela a caminho do canto distante da caverna que ela usava quando estava frio demais para sair, a fim de fazer suas necessidades.
Quando voltou, pegou as pedras quentes do fogo como havia aprendido com os Mamutoi, e deixou-as cair na água que estava em uma cesta à prova d’água. As pedras sibilaram e soltaram vapor enquanto aqueciam a água. Ela as pegou e recolocou-as no fogo, acrescentando outras que estavam quentes.
Quando a água ferveu, ela tirou algumas porções de água com uma concha, colocou numa bacia de madeira e, de seu suprimento de ervas, adicionou algumas flores secas de ceanoto, tipo lilás. Um perfume forte, aromático encheu o ar e, quando mergulhou uma tira macia de couro, a solução de saponina espumou levemente. Mas não precisaria lavagem e deixaria somente um aroma agradável. Ele a observou de pé perto do fogo enquanto ela enxugava o rosto e lavava o corpo, deleitando-se com sua beleza, enquanto ela se movia, e desejando poder recomeçar.
Ela deu a Jondalar um pedaço de pele absorvente de coelho e lhe passou a bacia. Enquanto ele se limpava - era um costume que ela desenvolvera depois que Jondalar chegara, que ele adotou - examinou novamente suas ervas, contente por ter todo o seu suprimento disponível. Selecionou combinações individuais para um chá para cada um deles. Para ela, começou com sua fibra dourada usual e raiz de antílope, perguntando-se, novamente, se devia parar de tomá-lo e ver se um bebê começaria a crescer dentro dela. Apesar das explicações de Jondalar, ela ainda acreditava que era um homem, não os espíritos, que dava origem ao desenvolvimento da vida. Mas, qualquer que fosse a causa, a magia de Iza parecia funcionar, e sua maldição de mulher, ou melhor, seu período mensal, como Jondalar chamava, ainda vinha regularmente. Seria bom ter um bebê nascido de prazeres com Jondalar, pensou ela, mas talvez fosse melhor esperar. Se ele resolver tornar-se um Mamutoi também, então, talvez.
Em seguida, procurou cardo para seu chá, um fortificante do coração e respiração, e bom para o leite materno, mas resolveu usar, em vez disso, damiana, que ajudava a manter os ciclos da mulher em equilíbrio. Depois, selecionou trevo-dos-prados e frutos da roseira para a saúde geral e sabor. Para Jondalar, pegou jinsão, para resistência, energia e equilíbrio do homem. Acrescentou labaçal amarelo, um tônico e purificador; depois, raiz de alcaçuz, porque notara que Jondalar franzia atesta, o que normalmente era sinal de que estava preocupado ou estressado por algum motivo, e para adoçar a bebida. Também colocou umas gotas de camomila, também para os nervos.
Pôs em ordem e arrumou as peles novamente, e deu a Jondalar sua tigela, a de madeira que ela fizera e de que ele gostava tanto. Depois, com um pouco de frio, os dois voltaram para a cama, terminaram seu chá e se aconchegaram um ao outro.
- Você cheira bem, como flores - disse ele, respirando no ouvido de Ayla e mordiscando o lóbulo de sua orelha.
- Você também.
Ele a beijou, suavemente; depois, prolongou o beijo com mais sentimento.
- O chá estava bom. O que havia nele? - perguntou, beijando seu pescoço.
- Apenas camomila e algumas coisas para que se sinta bem e para que tenha força e resistência. Não sei os nomes que dá a todas elas.
Ele a beijou, então, com mais ardor e ela respondeu. Ele se ergueu sobre um cotovelo e abaixou os olhos para ela.
- Ayla, tem idéia de como você é surpreendente?
Ela sorriu e sacudiu a cabeça.
- Todas as vezes que quero você, está pronta para mim. Jamais me deixou de lado ou me rejeitou, embora quanto mais eu a possuo, mais pareça querer você.
- Isso é surpreendente? Que eu deseje você tantas vezes quanto você me queira? Você conhece meu corpo melhor do que eu, Jondalar. Você me fez sentir prazeres que eu não sabia que existiam. Por que não iria querer você sempre que me quer?
- Mas, para a maioria das mulheres, há alguns momentos em que não estão dispostas, ou apenas não lhes convém. Quando está um frio intenso lá fora nas estepes, ou na margem úmida de um rio, quando a cama quente se encontra a alguns passos de distância. Mas você nunca diz não. Nunca diz “espere”.
Ela fechou os olhos e, quando os abriu, havia uma leve ruga em sua testa.
- Jondalar, fui criada assim. Uma mulher do Clã nunca diz não. Quando um homem lhe faz o sinal, onde quer que ela esteja, ou o que quer que esteja fazendo, pára e responde à necessidade dele. Qualquer homem, mesmo se ela o odiar, como eu odiava Broud. Jondalar, você só me dá alegria e prazer. Adoro quando me quer, a qualquer hora, em qualquer lugar. Se você me quer, não há momento em que eu não esteja pronta para você. Sempre quero você. Eu amo você.
Ele a abraçou, de repente, e apertou-a tanto que ela mal podia respirar.
- Ayla, Ayla - gritou num sussurro rouco, a cabeça enterrada no pescoço da jovem -, pensei que jamais me apaixonaria. Todos encontravam uma mulher para companheira, para fazer uma fogueira e uma família. Eu estava envelhecendo, apenas. Até Thonolan encontrou uma mulher na Jornada. Por isto ficamos com os Sharamudoi. Conheci muitas mulheres. Gostei de muitas mulheres, mas havia sempre alguma coisa que faltava. Pensei que era eu. Pensei que a Mãe não me deixaria amar. Achei que era meu castigo.
- Castigo? Por quê? - perguntou Ayla.
- Por... Por algo que aconteceu muito tempo atrás.
Ela não pressionou. Isso também fazia parte de sua educação.
Uma voz o chamou, a voz de sua mãe, porém distante, hesitante através de um vento intermitente. Jondalar estava em casa, mas o lar era estranho; familiar, contudo, desconhecido. Ele estendeu a mão para o lado. O local estava vazio! Em pânico, levantou-se de um salto, completamente desperto.
Olhando ao redor, Jondalar reconheceu a caverna de Ayla. O protetor contra o vento à entrada havia-se soltado numa extremidade e agitava-se ao vento. Rajadas de ar frio entravam na pequena caverna, mas o sol penetrava pela entrada e um buraco acima dela. Ele vestiu rapidamente calças e túnica, e notou então a xícara fumegante de chá perto da lareira e, a seu lado, um graveto novo com sua casca removida.
Ele sorriu. Como ela fazia aquilo? Pensou. Como ela conseguia sempre ter chá quente pronto e esperando por ele quando acordava? Ao menos ali, na caverna de Ayla, ela o fazia. No Acampamento do Leão havia sempre alguma coisa acontecendo, e as refeições eram geralmente divididas com os outros. Ele tomava sua bebida matinal tão freqüentemente na Fogueira do Leão ou na fogueira de cozinhar, como na Fogueira do Mamute, e depois uma outra pessoa sempre se juntava a eles. Lá ele não notou se Ayla tinha sempre uma bebida quente esperando por ele quando acordava mas, quando refletiu a respeito, percebeu que sim. Nunca era do feitio de Ayla falar sobre aquilo. A bebida sempre estava lá, apenas, como tantas outras coisas que ela fazia para ele, sem ter que jamais pedir.
Ele pegou a xícara e bebeu um gole. Havia hortelã no chá - ela sabia que ele gostava de hortelã de manhã -, camomila também, e algo mais que não podia discernir exatamente. O chá tinha cor avermelhada, quem sabe, frutos da roseira?
Como é fácil voltar aos velhos hábitos, pensou. Sempre fora um jogo para ele tentar adivinhar o que havia no chá da manhã de Ayla. Pegou o graveto e mastigou uma ponta enquanto saía, e usou a ponta mastigada para limpar os dentes. Encheu a boca com um gole de chá enquanto caminhava para a saliência das rochas para urinar. Atirou fora o graveto e cuspiu o chá. Depois, ficou de pé, à borda, meditando, observando sua corrente fumegante fazer um arco em direção ao solo.
O vento não era forte e o sol matinal, refletindo na rocha de cor clara, dava impressão de calor. Ele atravessou a superfície acidentada até a ponta protuberante e olhou o riacho abaixo. O gelo se amontoava ao longo de suas margens, mas o rio ainda corria rapidamente ao redor da curva acidentada, que mudava a sua costumeira direção sul para o leste, por alguns quilômetros, antes de voltar ao seu curso para o sul. A sua esquerda, o vale tranqüilo se estendia ao lado do rio e ele reparou em Whinney e Racer pastando por perto. A paisagem rio acima, à sua direita, era inteiramente diversa. Além da pilha de ossos, ao pé da muralha, e da praia rochosa, altos paredões de pedra se fechavam e o rio corria no fundo de uma garganta profunda. Ele se lembrou de ter subido o rio a nado, uma vez, até onde pudera ir, até a base de uma queda d’água agitada.
Viu Ayla surgir quando ela subiu a trilha escarpada e sorriu.
Onde esteve?
Mais alguns passos e sua pergunta foi respondida sem que ela dissesse uma palavra. Ela carregava duas ptármigas gordas, quase brancas, pelos pés emplumados.
- Eu estava plantada aí, onde você está, quando as vi na campina. - disse Ayla, mostrando as aves. - Achei que seria bom ter carne fresca, para variar. Fiz um fogo na minha cavidade de cozinhar, lá na praia. Vou depenar as aves e começar a cozinhá-las depois que acabarmos a refeição da manhã. Oh, aqui está outra pedra-de-fogo que encontrei!
- Há muitas na praia? - interrogou ele.
- Talvez não tantas quanto antes. Tive que procurar esta.
- Acho que descerei até lá, mais tarde, e procurarei mais algumas.
Ayla entrou para acabar de preparar a refeição da manhã que incluía cereais cozidos com mirtilos vermelhos que encontrara ainda presos a arbustos sem folhas. As aves não deixaram muitos, e ela teve que escolher, diligentemente, para reunir alguns punhados, mas estava contente por tê-los colhido.
- Era isso! - exclamou Jondalar quando terminava outra xícara de chá. - Você pôs mirtilos vermelhos no chá! Hortelã, camomila, e mirtilos vermelhos.
Ela sorriu, concordando, e ele ficou feliz consigo mesmo por ter solucionado a pequena charada.
Depois da refeição matinal, os dois desceram para a praia e enquanto Ayla preparava as aves para assar no forno de pedras, Jondalar começou a procurar os pequenos nódulos de pirita de ferro que se espalhavam pela praia. Ele ainda procurava quando ela subiu de volta à caverna. Ele também encontrou pedaços de sílex de bom tamanho e os separou. No meio da manhã, acumulara uma pilha de pedras-de-fogo e estava entediado de fitar a praia rochosa. Caminhou ao redor da muralha saliente e vendo a égua e o potro a alguma distância, vale abaixo, dirigiu-se a eles.
Quando se aproximou mais, notou que os dois olhavam na direção das estepes. Vários cavalos se encontravam no alto da encosta, também olhando para eles. Racer deu alguns passos em direção ao bando selvagem, com o pescoço arqueado e o focinho tremendo. Jondalar reagiu sem pensar.
- Vamos, saiam daqui! - gritou, correndo na direção deles, sacudindo os braços.
Os cavalos, surpresos, saltaram para trás, relinchando e bufando, e se afastaram depressa. O último, um garanhão castanho, investiu contra o homem; depois, recuou como se desse um aviso, antes de galopar atrás dos outros.
Jondalar se virou e caminhou de volta na direção de Whinney e Racer. Ambos estavam nervosos. Também tinham ficado espantados e sentido o pânico da cavalhada. Jondalar deu tapinhas carinhosos em Whinney e pôs o braço em volta do pescoço de Racer.
- Tudo bem, garoto - disse ao potro -, eu não queria assustar você. Só não queria que eles o atraíssem para segui-los, antes de termos uma chance para nos tornarmos bons amigos. - Coçou e alisou o animal com afeto. - Imagine como seria cavalgar um garanhão como aquele castanho - refletiu alto. - Seria difícil montá-lo, e ele também não me deixaria coçá-lo assim, não é? O que eu teria que fazer para que me deixe montá-lo e ir aonde eu quiser? Quando devo começar? Devo tentar montar você agora, ou esperar? Você ainda não é totalmente adulto, mas será, breve. E melhor eu perguntar a Ayla. Ela deve saber. Whinney sempre parece compreendê-la. Pergunto-me se me entende, Racer?
Quando Jondalar voltou à caverna, afinal, Racer o seguiu, dando-lhe encontrões, alegremente, e focinhando sua mão, o que agradou muito ao homem. O potro parecia querer ser amigo. Racer seguiu Jondalar durante todo o caminho de volta e subiu a trilha até a caverna.
- Ayla, tem alguma coisa que eu possa dar a Racer? Algum grão? - perguntou Jondalar assim que entrou.
Ayla estava sentada perto da cama com uma variedade de pilhas e montes de objetos espalhados ao seu redor.
- Por que não dá a ele algumas daquelas pequenas maçãs daquela tigela ali? Eu examinei algumas - disse ela -, e aquelas estão amassadas.
Jondalar pegou um punhado das frutas pequenas, redondas, e deu-as a Racer, uma de cada vez.
Depois de mais algumas carícias no potro, Jondalar caminhou até Ayla. Foi seguido pelo cavalo amistoso.
- Jondalar, tire Racer daí! Pode pisar em alguma coisa!
Ele se virou e esbarrou no potro.
- Já chega, Racer - disse o homem, voltando com ele para o outro lado da abertura da caverna, onde o jovem animal e sua mãe costumavam ficar. Mas quando Jondalar quis se afastar, foi seguido de novo. Levou outra vez Racer para o seu lugar, mas não teve sorte em fazê-lo ficar. - Agora que ele se mostra tão amigo, como o faço parar?
Ayla estivera observando as cabriolas, sorrindo.
- Pode tentar pôr um pouco d’água em sua tigela, ou algum grão em sua tina de comida.
Jondalar fez as duas coisas, e quando o cavalo se distraiu o suficiente, afinal, voltou para perto de Ayla, atento às suas costas para certificar-se de que o potro não estava mais atrás dele.
- O que está fazendo? - perguntou.
- Estou tentando resolver o que levar comigo e o que abandonar aqui - explicou ela. - O que acha que devo dar a Tulie na cerimônia de adoção? Tem que ser uma coisa especialmente bonita.
Jondalar examinou as pilhas e montes de coisas que Ayla fizera para se ocupar, durante as noites vazias e invernos rigorosos e longos que passara sozinha na caverna. Mesmo quando vivia com o Clã, ela se tornara respeitada pela sua habilidade e qualidade do seu trabalho e, durante os anos que passara no vale, tivera pouco mais a fazer. Dedicou tempo extra e atenção cuidadosa a cada plano, para que durasse. Os resultados eram evidentes.
Ela pegou uma tigela de uma pilha. Era enganadoramente simples. Quase perfeitamente circular e fora feita de uma única peça de madeira. A qualidade do acabamento era tão delicada que quase parecia ter vida. Ela lhe contara como fazia as tigelas. O processo era essencialmente o mesmo que qualquer dos que ele conhecia; a diferença era o cuidado e atenção ao detalhe. Primeiro, ela estriava a forma rústica com uma enxó de pedra, depois esculpia melhor com uma faca de sílex. Com uma pedra arredondada e areia, aplainava tanto o interior quanto o exterior até quase não se sentir uma ondulação sequer, e dava um acabamento final à peça com um polimento feito com cavalinha.
Suas cestas, quer tecidas frouxamente ou impermeáveis, possuíam a mesma qualidade de simplicidade e perícia artesanal. Não se usavam corantes ou cores, mas o interesse textural fora criado pela mudança do modo de entrelaçamento e pela utilização de variações de cor natural das fibras. As esteiras tinham a mesma característica. As espirais de corda e cordões de nervos e córtex, não importava de que tamanho fossem, eram iguais e uniformes, assim como as longas tiras cortadas numa espiral de um único couro.
O couro cru que ela curtia era macio e flexível, porém, mais que todo, ele estava impressionado com as peles. Era uma coisa tornar a pele de veado maleável raspando a superfície áspera da pele no exterior, assim como raspando o interior mas, com a sobra de pele, os couros eram normalmente mais duros. Os de Ayla eram não somente suntuosos no lado da pele, mas aveludados e macios e fofos no interior.
- O que vai dar a Nezzie? - perguntou ele.
Alimento, como aquelas maçãs, e recipientes para guardá-las.
- É uma boa idéia. O que pensava dar a Tulie?
- Ela tem muito orgulho do couro de Deegie, por isso, acho que não lhe darei couro, e não quero lhe dar alimento, como a Nezzie. Nada prático demais. Ela é a chefe. Deve ser uma coisa especial para usar, como âmbar ou conchas, mas não tenho nada especial assim - disse Ayla.
- Tem, sim.
- Pensei em dar-lhe o âmbar que encontrei, mas é um sinal do meu totem. Não posso dar.
- Não falo do âmbar. Provavelmente, ela tem muito âmbar. Dê-lhe pele. Foi a primeira coisa que ela mencionou.
- Mas ela deve ter muitas peles também.
- Não tão bonitas e especiais como as suas, Ayla. Somente uma vez na vida eu vi uma coisa como elas. Tenho certeza de que ela nunca viu. A pele que vi foi feita por uma cabeça-chata - uma mulher do Clã.
À noite, Ayla havia tomado algumas decisões duras, e o acúmulo de anos de trabalho estava dividido em duas pilhas. A maior seria abandonada, juntamente com a caverna e o vale. A menor era tudo o que levaria consigo... E suas lembranças. Foi um processo angustioso, às vezes agonizante, que a fez sentir-se vazia. Seu estado de espírito passou para Jondalar, que se encontrou pensando mais em seu lar e seu passado e sua vida, do que o fizera por muitos anos. Sua mente continuou desviando-se para recordações dolorosas que ele pensava ter esquecido, e desejava poder esquecer. Perguntou-se por que motivo se lembrava agora.
A refeição noturna foi silenciosa. Fizeram comentários esporádicos, e muitas vezes ficaram calados, cada um ocupado por seus pensamentos particulares.
- As aves estão deliciosas, como sempre - disse Jondalar.
- Creb gostava delas assim.
Ela havia mencionado aquilo antes. As vezes ainda era difícil de acreditar que ela aprendera tanto com os cabeças-chatas com quem vivera. Quando ele pensava a respeito, contudo, se perguntava: por que eles não saberiam cozinhar tão bem quanto qualquer outra pessoa?
- Minha mãe é boa cozinheira. Provavelmente, ela também gostaria das aves.
Jondalar estivera pensando muito na mãe, ultimamente, refletiu Ayla. Ele disse que acordara, naquela manhã, sonhando com ela.
- Quando eu era criança, havia alimentos especiais que ela gostava de cozinhar.., quando não estava ocupada com os assuntos da caverna.
- Assuntos da caverna?
- Ela era a líder da Nona Caverna.
- Você me disse isso, mas eu não compreendi. Quer dizer que ela era como Tulie? Uma chefe?
- Sim, algo parecido. Mas não havia Talut, e a Nona Caverna é muito maior do que o Acampamento do Leão. Muito mais pessoas. - Ele parou, fechou os olhos, concentrado. - Talvez quatro pessoas para cada uma.
Ayla tentou pensar sobre quantas pessoas seriam, depois decidiu que solucionaria isso mais tarde, com marcas no solo, mas perguntou-se como tantas pessoas podiam viver juntas o tempo todo. Parecia ser quase suficiente para uma Reunião de Clãs.
- Não havia mulheres líderes no Clã - disse ela.
- Marthona se tornou líder depois de Joconnan. Zelandoni me disse que ela era uma parte tão grande de sua liderança que, depois que morreu, todos se voltaram para ela. Meu irmão, Joharran, nasceu na fogueira dele. Ele é líder agora, mas Marthona ainda é uma conselheira... ou era, quando parti.
Ayla franziu a testa. Ele havia falado deles antes, mas ela não compreendera bem todos os seus relacionamentos.
- Sua mãe era companheira de... Como disse? Joconnan?
- Era.
- Mas você sempre fala de Dalanar.
- Nasci na fogueira dele.
- Então, sua mãe foi companheira de Dalanar também.
- Sim. Ela já era líder quando se uniram. Eram muito íntimos, as pessoas ainda contam histórias sobre Marthona e Dalanar, e cantam canções tristes sobre o seu amor. Zelandoni me contou que eles se gostavam muito. Dalanar não queria dividi-la com a caverna. Ele passou a odiar o tempo que ela passava em seus deveres de liderança, mas ela sentia que tinha uma responsabilidade. Por fim, eles se separaram e ele partiu. Mais tarde, Marthona fez uma nova fogueira com Willomar, e deu à luz Thonolan e Folara. Dalanar viajou para o nordeste, descobriu uma mina de sílex e conheceu Jerika. E fundou ali a Primeira Caverna dos Lanzadonii. - Ficou calado por algum tempo. Parecia sentir necessidade de falar sobre sua família. Assim, Ayla ouviu, embora ele repetisse algumas coisas que já contara antes. Ela se levantou, serviu o resto do chá, acrescentou lenha ao fogo e depois se sentou sobre as peles na beira da cama. Observou a luz trêmula das chamas mover sombras através do rosto pensativo de Jondalar.
- O que significa, Lanzadonii? - perguntou.
Jondalar sorriu.
- Significa apenas... pessoas... filhos de Doni... filhos da Grande Mãe Terra que vivem no nordeste, para ser exato.
- Você viveu lá, não? Com Dalanar?
Ele fechou os olhos. Seu maxilar se moveu enquanto cerrava os dentes e sua testa se contorcia de dor. Ayla havia visto aquela expressão antes e refletiu. Ele havia falado sobre aquela fase de sua vida durante o verão, mas aborrecia-o e ela sabia que ele se reprimia. Ela sentiu uma tensão no ar, uma grande pressão crescendo e concentrando-se em Jondalar, como uma dilatação da terra aprontando-se para explodir de grandes profundezas.
- Sim, vivi lá - disse ele -, durante três anos. - Ficou de pé em um salto, de repente, derramando o chá e caminhou para a parede do fundo da caverna com passos largos. - O Mãe, foi terrível! - Encostou o braço erguido na parede e pousou a cabeça nele, no escuro, tentando manter-se controlado. Por fim, voltou, abaixou os olhos para o local molhado onde o líquido penetrara no solo de terra dura e pousou um dos joelhos no chão para pegar a tigela. Revirou-a nas mãos e fitou o fogo.
- Foi tão ruim assim viver com Dalanar? - perguntou Ayla, afinal.
- Viver com Dalanar? Não. - Parecia surpreso com o que ela dissera. - Não foi isso que foi ruim. Ele ficou contente em me ver, recebeu-me bem em sua fogueira, ensinou-me minha ocupação juntamente com Joplaya, tratou-me como adulto... e jamais disse uma palavra a respeito.
- A respeito do quê?
Jondalar respirou fundo:
- Da razão por que fui mandado para lá - falou, e olhou para a tigela em sua mão.
Enquanto o silêncio crescia, a respiração dos cavalos enchia a caverna, e os ruídos altos do fogo ardendo e estalando ressoavam nas paredes de pedra. Jondalar pousou a tigela e se levantou.
- Sempre fui grande para minha idade e mais amadurecido do que outros de minha idade - começou ele, atravessando a extensão do espaço vazio ao redor do fogo e voltando novamente. - Amadureci jovem. Não tinha mais de onze anos quando a donii apareceu-me pela primeira vez num sonho... e ela tinha o rosto de Zolena.
Lá estava o nome dela de novo. A mulher que havia significado tanto para ele. Jondalar falara sobre ela, mas apenas brevemente e com tristeza evidente. Ayla não compreendera o que causara tanta angústia nele.
- Todos os jovens a queriam para sua mulher-donii, todos a queriam para ensiná-los. Eles deviam querê-la, ou alguém como ela... - ele se virou e encarou Ayla - ...mas não se esperava que a amassem! Sabe o que significa apaixonar-se por sua mulher-donii?
Ayla sacudiu a cabeça.
- Ela deve lhe mostrar, lhe ensinar, ajudá-lo a compreender a grande Dádiva da Mãe, para prepará-lo quando chegar sua vez de converter uma menina em mulher. Todas as mulheres devem ser mulheres-donii ao menos uma vez, quando são mais velhas, exatamente como todos os homens devem partilhar os Primeiros Ritos de uma jovem, ao menos uma vez. É um dever sagrado em honra de Doni. - Ele abaixou os olhos. - Mas uma mulher-donii representa a Grande Mãe; você não se apaixona, nem a quer como companheira. - Tornou a levantar os olhos para Ayla. - Entende isso? É proibido. É como se apaixonar por sua mãe, como querer sua irmã por companheira. Desculpe-me, Ayla. É quase como querer uma cabeça-chata para companheira!
Ele se virou e em poucos passos encontrava-se à entrada. Afastou o quebra-vento para um lado, depois curvou os ombros, mudou de idéia e voltou. Sentou-se ao lado dela com o olhar perdido na distância.
- Eu tinha doze anos e Zolena foi minha mulher-donii e eu a amei. E ela me amou. A princípio, era apenas o fato de que ela parecia saber exatamente como me agradar mas, depois, foi mais. Eu podia falar-lhe sobre qualquer coisa; gostávamos de estar juntos. Ela me ensinou sobre as mulheres, sobre o que lhes agradava e aprendi bem porque a amei e quis agradá-la. Amava satisfazê-la. Não pretendíamos nos apaixonar, nem sequer dissemos um ao outro, no começo. Depois, tentamos guardar segredo. Mas eu a queria para minha companheira. Queria viver com ela, queria que seus filhos fossem filhos da minha fogueira.
Ele pestanejou e Ayla viu uma umidade brilhante nos cantos de seus olhos enquanto ele fitava o fogo.
- Zolena dizia sempre que eu era muito jovem, que ia esquecer. A maioria dos homens tem no mínimo quinze anos, antes de começar a procurar seriamente uma mulher para companheira. Não me sentia jovem demais, mas não importava o que eu queria. Não podia tê-la. Ela era minha mulher-donii, minha conselheira e professora, e não devia deixar que eu me apaixonasse por ela. Culparam-na mais do que a mim, porém isso piorou a coisa. Ela não teria sido acusada, de modo algum, se eu não tivesse sido tão estúpido! - exclamou Jondalar, explodindo. - Outros homens também a queriam. Sempre. Quer ela os quisesse ou não. Um a estava sempre importunando... Ladroman. Ela havia sido sua mulher-donii há alguns anos antes. Imagino que não posso culpá-lo por desejá-la, mas ela não se interessava mais por ele. Ele começou a nos seguir, vigiando-nos. Então, uma vez, encontrou-nos juntos. Ameaçou-a, disse que, se ela não fosse com ele, contaria a todos sobre nós.
“Ela tentou rir dele, disse para que fosse em frente, não havia nada a contar, ela era apenas minha mulher-donii. Eu devia ter feito o mesmo, mas quando ele caçoou de nós com palavras que disséramos em particular, encolerizei-me. Não... não fiquei zangado apenas. Descontrolei-me e bati nele”.
Jondalar afundou o punho no solo ao seu lado, depois outra vez e mais outra.
- Eu não podia parar de bater nele. Zolena tentou deter-me. Finalmente teve que chamar alguém para me afastar. Foi bom ela ter feito isso. Acho que o teria matado.
Jondalar se levantou e começou a caminhar de um lado para o outro novamente.
- Então, tudo veio a público. Cada detalhe sórdido. Ladroman contou tudo, em público... diante de todos. Fiquei constrangido ao descobrir por quanto tempo ele nos vigiara e o quanto ouvira. Zolena e eu fomos interrogados... - corou apenas ao lembrar - ...e denunciados, mas odiei ela ter sido responsabilizada. O que piorou tudo foi eu ser filho de minha mãe, a líder da Nona Caverna, e eu a desgracei. Toda a caverna estava em tumulto.
- O que ela fez? - perguntou Ayla.
- Fez o que devia. Ladroman estava muito ferido, havia perdido vários dentes. Isso dificultava a mastigação e as mulheres não gostam de homens sem dentes. Minha mãe teve que pagar uma multa enorme por mim, como indenização e, quando a mãe de Ladroman insistiu, ela concordou em me mandar embora.
Ele se calou e fechou os olhos. A testa estava franzida com a dor da recordação.
- Chorei aquela noite. - A confissão era obviamente difícil para ele. - Eu não sabia para onde iria. Não sabia que mamãe enviara um mensageiro a Dalanar para pedir-lhe para me aceitar.
Ele respirou e continuou:
- Zolena partiu antes de mim. Ela sempre se sentira atraída pelas zelandonia, e se reuniu Aquelas Que Servem a Mãe. Também pensei em servir, talvez como escultor... achei que tinha algum talento para a escultura, naquela época. Mas Dalanar mandou um recado e a próxima coisa que me dei conta foi de Willomar me levando para os Lanzadonii. Eu realmente não conhecia Dalanar. Ele partiu quando eu era criança e só o via nas Reuniões de Verão. Eu não sabia o que esperar, mas Marthona fez o que era certo.
Jondalar parou de falar e se sentou perto do fogo de novo. Então, pegou um galho partido, seco e quebradiço, e juntou-o às chamas.
- Antes de eu viajar, as pessoas me evitavam, insultavam-me - continuou ele. - Algumas afastavam os filhos quando eu estava perto, para que não ficassem expostos à minha má influência, como se olhar para mim os corrompesse. Sei que merecia aquilo, o que fizéramos fora terrível, mas eu queria morrer.
Ayla esperou em silêncio, observando-o. Não compreendia inteiramente os costumes de que ele falava, mas sofria por ele com uma empatia nascida de sua própria dor. Ela também havia desafiado tabus e pago duras conseqüências, mas tirara uma lição disso. Talvez porque ela fosse tão diferente, para começar, havia aprendido a questionar se o que fizera havia sido realmente tão mau. Ela viera a compreender que não era errado, para ela, caçar com funda ou lança ou qualquer coisa que quisesse, só porque o Clã acreditava que era errado as mulheres caçarem, e não se odiava porque enfrentara Broud contra toda tradição.
- Jondalar - falou, sofrendo por ele quando o homem abaixou a cabeça, derrotado, e recriminando-se -, você fez uma coisa terrível... - ele concordou com um gesto de cabeça -... Quando espancou um homem. Mas, o que você e Zolena fizeram que era errado? - perguntou.
Ele a encarou, admirado com a pergunta. Havia esperado menosprezo, desdém, o tipo de desprezo que sentia por si próprio.
- Não compreende. Zolena era minha mulher-donii. Desonramos a Mãe. Nós A ofendemos. Foi vergonhoso.
- O que foi vergonhoso? Ainda não sei o que vocês fizeram que foi tão errado.
- Ayla, quando uma mulher assume o aspecto da Mãe, para ensinar a um jovem, tem uma grande responsabilidade. Ela o está preparando para a virilidade, para ser o criador de mulher. Doni fez responsabilidade do homem abrir uma mulher, aprontá-la para receber os espíritos mistos da Grande Mãe Terra, de modo que a mulher possa tornar-se mãe. l um dever sagrado. Não é um relacionamento comum, rotineiro, que qualquer um pode ter em qualquer momento, não é uma coisa a se considerar com negligência - explicou Jondalar.
- Você considerou-a com negligência?
- Não! Claro que não!
- Então, o que fez de errado?
- Profanei um rito sagrado. Apaixonei-me...
- Apaixonou-se. E Zolena se apaixonou. Por que isso era errado? Esses sentimentos não o fazem sentir-se bem e animado? Não planejou isso. Aconteceu apenas. Não é natural se apaixonar por uma mulher?
- Mas não essa mulher - protestou Jondalar. - Você não compreende.
- Tem razão, não compreendo. Broud me forçou. Foi cruel e odioso, e foi isso que deu prazer a ele. Depois você me ensinou o que os prazeres deveriam ser, não dolorosos, mas excitantes e bons. Amar você também me faz sentir bem e animada. Pensei que o amor sempre fazia a pessoa se sentir assim, mas agora você me diz que pode ser errado amar alguém, e pode causar grande sofrimento.
Jondalar pegou outro pedaço de lenha e o colocou no fogo. Como fazê-la entender? Você pode amar sua mãe também, mas não quer que seja sua companheira, e não quer que sua mulher-donii tenha os filhos de sua fogueira. Ele não sabia o que dizer, mas o silêncio era forçado.
- Por que deixou Dalanar e voltou? - perguntou Ayla após algum tempo.
- Minha mãe mandou-me... Não, foi mais que isso. Eu queria voltar. Por melhor que Dalanar fosse para mim, por mais que eu gostasse de Jerika e de meu primo, Joplaya, não era o meu lar. Eu não sabia se podia regressar um dia. Estava muito preocupado com minha volta, mas queria ir. Jurei nunca mais me descontrolar, jamais me encolerizar outra vez. Ficou contente por ir para casa?
- Não era a mesma coisa, mas, depois dos primeiros dias, foi melhor do que eu imaginava. A família de Ladroman deixara a Nona Caverna e, sem ele lá para lembrar a todos, as pessoas esqueceram o caso. Não sei o que eu teria feito se ele ainda estivesse lá. Era bem terrível nas Reuniões de Verão. Todas as vezes que o via, lembrava-me da desgraça. Houve muito falatório quando Zolena voltou um pouco mais tarde. Eu tinha medo de revê-la, mas queria fazer isso. Não podia evitar, Ayla, mesmo depois de tudo aquilo, acho que ainda a amava. - Seu olhar suplicava compreensão.
Ele se levantou de novo e começou a andar de um lado para o outro.
- Mas ela havia mudado muito. Já havia subido nas categorias das zelandonia. Era realmente Uma Que Serve a Mãe. Não quis acreditar, no início. Queria ver o quanto ela mudara, ver se sentia alguma coisa por mim, ainda. Queria estar sozinho com ela, e planejei como fazer isso. Esperei até o festival seguinte para Honrar a Mãe. Ela devia ter adivinhado. Tentou evitar-me, depois mudou de idéia. Algumas pessoas ficaram escandalizadas no dia seguinte, embora fosse inteiramente adequado partilhar prazeres com ela num festival. - Ele riu com desdém. - Não precisavam preocupar-se. Ela disse que ainda se importava comigo, queria o melhor para mim, mas não era a mesma coisa. Não me desejava mais, realmente.
“A verdade é disse ele com amarga ironia - que ela se importa comigo, acho. Somos bons amigos agora, mas Zolena sabia o que queria... e conseguiu-o. Não é Zolena agora. Antes de eu iniciar minha jornada, ela se tornou Zelandoni, Primeira entre Aquelas Que Servem a Mãe. Parti com Thonolan pouco depois. Creio que foi por isso que parti”.
Caminhou para a entrada de novo e ficou lá, de pé, olhando para fora, por cima da parte superior do protetor contra ventos consertado. Ayla ergueu-se e se reuniu a ele. Ela fechou os olhos, sentindo o vento no rosto, e ouviu a respiração uniforme de Whinney e a mais nervosa de Racer. Jondalar respirou fundo, depois voltou e se sentou em uma esteira perto do fogo, mas não fez menção de dormir. Ayla o seguiu, pegou a grande sacola de água e virou um pouco numa cesta de cozinhar.
Depois, colocou algumas pedras no fogo para esquentar. Ele não parecia pronto para dormir ainda. Não terminara.
- A melhor coisa ao voltar para casa foi Thonolan - disse ele, retomando o fio da história. - Ele crescera enquanto eu estava fora, e depois que voltei nos tornamos bons amigos e começamos a fazer muitas coisas juntos...
Jondalar se interrompeu e seu rosto se encheu de tristeza. Ayla recordou como a morte do irmão fora dura para ele. Ele se curvou ao lado dela, os ombros vergados, esgotado e exausto, e ela compreendeu que provação fora, para ele, falar sobre o passado. Ela não estava certa sobre o que provocara o assunto, sabia que alguma coisa estivera crescendo dentro dele.
- Ayla, ao voltar, acha que podemos encontrar... O lugar onde Thonolan foi... morto? - perguntou ele, virando-se para ela, os olhos brilhantes e a voz trêmula.
- Não estou segura, mas podemos tentar. - Ela acrescentou mais pedras à água e pegou ervas calmantes.
De repente, ela se lembrou, com toda a preocupação e medo que sentira então, da primeira noite de Jondalar na caverna, quando não tinha certeza se ele viveria. Ele havia chamado o irmão e, embora ela não houvesse compreendido as palavras, entendeu que queria ver o homem que estava morto.
Quando ela o fez compreender, afinal, ele passara sua dor torturante nos braços dela.
- Naquela primeira noite, sabe quanto tempo fazia que eu chorava? - perguntou ele, surpreendendo-a, quase como se soubesse o que ela estivera pensando mas, depois, ele andara falando sobre Thonolan. - Não chorava desde então, desde que minha mãe me disse que eu tinha que ir embora. Ayla, por que ele teve que morrer? - disse, com voz suplicante, tensa. - Thonolan era mais jovem que eu! Não devia ter morrido tão novo! Eu não podia suportar saber que ele morrera. Depois que comecei, parecia incapaz de parar. Não sei o que teria feito se você não estivesse aqui, Ayla. Nunca lhe disse isso antes. Acho que estava envergonhado porque... Porque perdi o controle de novo.
- Não há vergonha na dor, Jondalar... Ou no amor.
Ele desviou o olhar dela.
- Acha que não? - A voz dele tinha um vislumbre de desprezo por si mesmo. - Mesmo quando você o usa em seu benefício e magoa outra pessoa?
Ayla franziu a testa, intrigada.
Ele se virou e encarou o fogo novamente.
- No verão, depois que regressei, fui escolhido na Reunião de Verão para Primeiros Ritos. Fiquei preocupado, a maioria dos homens fica. Você se preocupa em machucar uma mulher, e não sou um homem pequeno. Há sempre testemunhas para verificar que uma moça foi aberta, mas também para ver se não foi machucada, realmente. Você se preocupa porque, talvez, não será capaz de provar sua virilidade, e terão que encontrar outro homem no último instante, e você ficará envergonhado. Podem acontecer muitas coisas. Tenho que agradecer a Zelandoni. - Seu riso era sarcástico. - Ela fez exatamente o que uma mulher-donii deve fazer. Ela me aconselhou... E ajudou-me.
“Mas, pensei em Zolena naquela noite, não na Zelandoni que ela desejava ser. Então, vi a garota assustada e compreendi que ainda estava mais preocupada do que eu. Realmente, ela ficou com medo quando me viu pronto, pleno. Muitas mulheres ficam, na primeira vez. Mas lembrei-me do que Zolena me ensinou, como fazê-la ficar pronta, como limitar-me e controlar-me, como lhe dar prazer. O resultado foi maravilhoso, porque a vi mudar de garota assustada para uma mulher entregue, desejosa. Ela ficou tão grata, e tão amorosa... senti que a amei, naquela noite”.
Fechou os olhos, a testa com a ruga de dor que Ayla havia visto tanto, recentemente. Depois, tornou a erguer-se de um salto e a caminhar para lá e para cá.
- Nunca aprendo! No dia seguinte, eu sabia que não a amava, realmente, mas ela me amava! Ela não devia se apaixonar por mim, mais do que eu devia apaixonar-me por minha mulher-donii. Devia torná-la mulher, ensinar-lhe sobre os prazeres, não fazer com que me amasse. Tentei não ferir seus sentimentos, mas pude notar seu desapontamento quando a fiz compreender, afinal.
Ele voltava da abertura da caverna com passos largos, e deteve-se diante da jovem, e quase gritou para ela.
- Ayla, é um ato sagrado fazer de uma menina, uma mulher, um dever, uma responsabilidade, e cometi nova profanação! - Começou a andar. - Não foi a última vez. Disse a mim mesmo que jamais faria aquilo novamente, mas aconteceu do mesmo jeito na vez seguinte. Prometi a mim mesmo que não aceitaria mais o papel, não o merecia. Mas da próxima vez que me escolheram, não pude dizer não. Eu o queria. Escolheram-me com freqüência e comecei a esperar por aquilo, pelos sentimentos de amor e afeto naquela noite, embora eu me odiasse no dia seguinte por usar as jovens mulheres e o rito sagrado da Mãe em meu benefício.
Ele parou e se agarrou a um dos suportes da armação de secar ervas de Ayla, e abaixou os olhos para ela.
- Mas, depois de dois anos, compreendi que algo estava errado e soube que a Mãe me castigava. Os homens da minha idade encontravam companheiras, fixavam-se, exibiam os filhos de suas fogueiras. Mas eu não conseguia encontrar uma mulher para amar assim. Conheci muitas mulheres. Gostava delas por sua companhia e seus prazeres, mas somente senti amor quando não devia, nos Primeiros Ritos... E somente naquela noite - curvou a cabeça.
Ele levantou os olhos, surpreso, quando ouviu um riso suave.
- Oh, Jondalar! Mas você amou. Você me ama, não ama? Não compreende? Não estava sendo punido, esperava por mim. Eu lhe disse que meu totem o guiou a mim, talvez a Mãe também o tenha feito, mas você teve que percorrer um longo caminho. Teve que esperar. Se tivesse amado antes, nunca teria vindo. Nunca me teria encontrado.
Aquilo podia ser verdade? Perguntou-se ele. Queria acreditar que sim. Pela primeira vez, em anos, sentiu o fardo, que pesava sobre seu espírito, mais leve e uma expressão de esperança atravessou-lhe o rosto.
- E Zolena, minha mulher-donii?
- Acho que não foi errado amá-la, mas mesmo que tenha sido contra seus costumes, você foi punido, Jondalar. Foi mandado embora. Está acabado agora. Não precisa ficar recordando isso, castigando-se - Mas, as jovens nos Primeiros Ritos, que...
A expressão de Ayla endureceu.
- Jondalar, sabe como é terrível ser forçada, a primeira vez? Sabe o que é odiar e ter que suportar o que não é um prazer, mas uma coisa dolorosa e feia? Talvez você não devesse se apaixonar por aquelas mulheres, mas deve ter sido um sentimento maravilhoso para elas serem tratadas gentilmente, sentir os prazeres que você sabe dar tão bem, e se sentirem amadas na primeira vez. Se deu a elas mesmo um pouco do que me deu, então, deu a elas uma bela lembrança para levarem consigo a vida inteira. Oh, Jondalar, você não magoou as jovens. Fez exatamente o que era certo. Por que acha que foi escolhido tantas vezes?
O fardo de vergonha e desprezo por si próprio que ele havia carregado no fundo de si mesmo durante tanto tempo começou a desaparecer. Pensou que talvez existisse uma razão para sua vida, que suas experiências dolorosas da infância tinham algum propósito. Na catarse da confissão, ele viu que talvez suas ações não tivessem sido tão desprezíveis quanto imaginara, que talvez ele fosse útil - e queria ser útil.
Mas a bagagem emocional que arrastara consigo durante tanto tempo era difícil de desfazer. Sim, afinal, havia encontrado uma mulher para amar, e era verdade que ela era tudo que ele sempre quisera, mas e se a levasse para casa e ela dissesse a alguém que fora criada por cabeças-chatas? Ou pior, que tinha um filho misto? Uma abominação? Seria ele insultado, novamente, juntamente a ela, por trazer uma mulher assim? Corou sob o pensamento.
Era justo para ela? E se a desprezassem e a injuriassem? E se ele não ficasse ao lado dela? E se deixasse que eles se comportassem assim? Estremeceu. Não, pensou. Ele não os deixaria fazer tal coisa a Ayla. Ele a amava. Mas, e se deixasse?
Por que Ayla era a mulher que ele encontrara para amar? Sua explicação parecia simples demais. Sua crença de que a Grande Mãe o estava punindo por seu sacrilégio não podia ser deixada de lado tão facilmente. Talvez Ayla tivesse razão, talvez Doni o houvesse conduzido até ela, mas será que não era um castigo que aquela bela mulher que ele amava não fosse mais aceitável para seu povo, do que a primeira mulher que ele amara? Será que não era ironia que aquela mulher que ele encontrara, afinal, fosse uma pária, que dera à luz uma abominação?
Mas os Mamutoi tinham crenças semelhantes e não expulsaram Ayla. O Acampamento do Leão ia adotá-la, mesmo sabendo que ela fora criada pelos cabeças-chatas. Até tinham acolhido uma criança mista. Talvez ele não devesse tentar levá-la para casa. Talvez ela fosse mais feliz se ficasse.
Talvez ele devesse ficar também, deixar que Tulie o adotasse e se tornar um Mamutoi. Sua testa se enrugou. Mas ele não era Mamutoi. Era Zelandonii. Os Mamutoi eram boas pessoas e seus costumes eram semelhantes, mas não eram o seu povo. O que ele podia oferecer a Ayla ali? Não tinha parentesco nem família entre aquelas pessoas. Mas, o que ele podia lhe oferecer se a levasse para casa?
Estava indeciso entre tantos caminhos que, de repente, se sentiu exausto. Ayla viu seu rosto flácido, os ombros curvados.
- É tarde, Jondalar. Beba um pouco disto e vamo-nos deitar - disse ela entregando-lhe uma xícara.
Ele concordou com um gesto de cabeça, tomou a bebida quente, tirou as roupas e arrastou-se para as peles. Ayla deitou-se ao lado dele, observando-o até as rugas de sua testa desaparecerem e sua respiração se tornar profunda e regular, mas o sono demorou mais a chegar para ela. A infelicidade de Jondalar a perturbou. Ela ficou contente por ele lhe ter contado sobre si mesmo e sua vida quando mais jovem. Ela acreditava, havia muito tempo, que alguma coisa no fundo dele lhe causava grande angústia, e talvez falar a respeito aliviasse parte de seu sofrimento. Mas alguma coisa ainda o incomodava. Ele não lhe contara tudo, e ela se sentia inquieta ao pensar nisso.
Ficou acordada, tentando não perturbá-lo, desejando dormir. Quantas noites havia passado sozinha naquela caverna, incapaz de dormir? Então, lembrou-se do manto. Escorregando silenciosamente para fora da cama, vasculhou sua trouxa e pegou um pedaço velho de couro macio, e encostou-o ao rosto. Era uma das poucas coisas que ela trouxera do entulho da caverna do Clã, antes de partir. Ela o usara para ajudar a carregar Durc quando bebê, e para sustentá-lo sobre seu quadril quando era um pouco maior. Ela não sabia por que trouxera o pedaço de couro. Não fora necessidade, contudo, mais de uma vez, quando estava sozinha, ela se havia embalado com ele para dormir. Mas não desde a chegada de Jondalar.
Ela enrolou o couro velho e macio em uma bola, colocou-a sobre o ventre e enrolou-se nela.
Depois, fechou os olhos e foi dormir.
- É muita coisa, mesmo com o travois e cestas sobre Whinney. Preciso de dois cavalos para levar tudo isto! - exclamou Ayla, examinando a pilha de trouxas e objetos bem amarrados que desejava levar consigo. - Terei que deixar mais coisas aqui, mas já examinei tudo tantas vezes, não sei mais o que abandonar. - Olhou ao redor, tentando encontrar alguma coisa que lhe desse uma idéia para a solução do seu dilema.
A caverna parecia abandonada. Tudo que era útil e que não iam levar fora colocado de volta aos buracos de estocagem e montes de pedras, só para o caso de quererem voltar, um dia, embora nenhum dos dois acreditasse que o fizessem. Tudo o que estava à vista era uma pilha de refugos.
Até o suporte de secar ervas de Ayla se encontrava vazio.
- Você tem dois cavalos. É pena que não possa usar ambos - disse Jondalar, vendo os dois animais em seu lugar, perto da entrada, mascando feno.
Ayla examinou os cavalos, especulativamente. O comentário de Jondalar a fizera pensar.
- Ainda penso nele como o filhote de Whinney, mas Racer está quase tão grande quanto a mãe.
Talvez ele possa levar uma carga pequena.
Jondalar se interessou imediatamente.
- Tenho me perguntado quando ele seria bastante grande para fazer algumas das coisas que Whinney faz, e como você o ensinaria a fazê-las. Quando montou Whinney pela primeira vez? E o que fez você pensar nisso, em primeiro lugar?
Ayla sorriu.
- Eu só estava correndo com ela, um dia, desejando poder correr mais rapidamente e, de súbito, ocorreu-me a idéia. Ela ficou um pouco assustada no começo e galopou, mas me conhecia. Quando se cansou, parou e não pareceu se importar. Foi maravilhoso! Era correr como o vento!
Jondalar a observava enquanto ela recordava sua primeira cavalgada, os olhos brilhando e a respiração ofegante com a excitação da lembrança. Ele se sentira da mesma maneira quando Ayla o deixou montar Whinney pela primeira vez, e ele partilhou a sua excitação. Foi tomado de um repentino desejo por ela. Nunca deixava de se surpreender por ser capaz de, tão fácil e inesperadamente, ser levado a querê-la. Mas, o pensamento de Ayla estava em Racer.
- Pergunto-me quanto tempo levaria para ele se acostumar a carregar alguma coisa. Eu montava Whinney antes de começar a fazê-la carregar alguma coisa, ou seja, não levou muito tempo. Mas, se ele começasse com um pequeno fardo, talvez se habituasse mais depressa a levar um cavaleiro mais tarde. Vejamos se encontro alguma coisa com que treinar.
Ela vasculhou a pilha de refugo, tirando peles, algumas cestas, pedras extras que usava para lixar tigelas e ferramentas de britar sílex, e as varetas que marcara para saber quantos dias passara no vale.
Fez uma pausa, um instante, segurando uma vareta, e colocou cada dedo de uma das mãos sobre as primeiras marcas, como Creb lhe havia mostrado tanto tempo atrás. Ela engoliu em seco pensando em Creb. Jondalar havia usado as marcas nas varetas para confirmar o tempo que ela estivera ali, e para ajudá-la a colocar, em suas palavras de contagem, o número de anos de sua vida. Tinha dezessete anos então, no início do verão; no fim do inverno ou primavera, teria mais um ano. Ele havia dito que tinha 21 anos, e rindo, se chamou de velho. Ele iniciara sua jornada há três anos antes, na mesma época em que ela deixara o Clã.
Ela reuniu tudo e se dirigiu para fora, assobiando para que Whinney e Racer seguissem-na. No campo, ambos passaram algum tempo alisando e coçando o potro. Depois, Ayla pegou um couro.
Deixou que o animal o cheirasse e mastigasse, e esfregou-o com ele. Em seguida, colocou-o sobre seu lombo, e deixou-o pender. O potro agarrou a ponta do couro com os dentes e puxou-o, depois entregou-o a Ayla para brincar um pouco mais. Ela tornou a colocar o couro em seu dorso. Da vez seguinte, Jondalar colocou o couro sobre o lombo do animal, enquanto Ayla pegou uma longa tira de couro enroscada e se ocupou com ela, fazendo alguma coisa. Colocaram o couro sobre Racer e deixaram que o puxasse mais algumas vezes. Whinney relinchou, bufou, observando com interesse, e recebeu alguma atenção também.
Da vez seguinte em que Ayla colocou o couro sobre Racer, pôs também uma longa tira de couro, estendeu a mão sob o potro para agarrar a ponta solta, e amarrou o couro com ela. Desta vez, quando Racer foi puxar o couro com os dentes, ele não saiu imediatamente. A princípio, ele não gostou e tentou tirá-lo corcoveando, mas depois encontrou uma ponta solta e começou a arrancá-la com os dentes até puxá-la de sob a tira. Pôs-se a deslocá-la com os dentes até desatá-la. Pegou o couro com os dentes e deixou-o cair aos pés de Ayla, depois arrancou atira. Ayla e Jondalar riram, enquanto Racer empinava, a cabeça erguida, parecendo orgulhoso de si mesmo.
O potro permitiu que Jondalar amarrasse o couro nele de novo e caminhou com ele no dorso, antes de começar a brincar de puxá-lo e tirá-lo. Então, parecia estar perdendo o interesse. Ayla amarrou o couro sobre ele de novo e o potro deixou-o ficar enquanto ela o acariciava e lhe falava. Depois, ela estendeu a mão para o mecanismo de treinamento que havia construído, duas cestas amarradas juntas, de modo que pendesssem de ambos os lados, com pedras para adicionar peso, e varas projetando-se como as extremidades dianteiras de paus de travois.
Ela o colocou ao longo do dorso de Racer. Ele abaixou as orelhas e virou a cabeça para olhar. Não estava acostumado com peso sobre o dorso, mas tinha sido dirigido e puxado tantas vezes em sua vida, que estava habituado a sentir alguma pressão e peso. Não era uma experiência totalmente estranha, porém, mais importante, ele confiava na mulher, e sua mãe também. Ela deixou o carregador de cestas no local enquanto acariciava e coçava e falava com o potro e, depois, tirou-o com a tira e o couro. Ele o cheirou de novo, depois o ignorou.
- Talvez tenhamos que ficar um dia a mais para que ele se acostume, e ainda repetirei tudo mais uma vez, mas acho que dará certo - disse Ayla, sorrindo de prazer enquanto voltavam a pé à caverna. - Talvez não puxe uma carga sobre paus, como Whinney faz, mas acho que Racer poderá carregar alguma coisa sobre o dorso.
- Só espero que o tempo permaneça bom por mais alguns dias - disse Jondalar.
- Se não tentarmos cavalgar, podemos colocar um feixe de feno onde sentamos, Jondalar. Eu o amarrei bem firme - disse Ayla, gritando para o homem que dava uma última busca à procura de pedras-de-fogo na praia rochosa, abaixo. Os cavalos também estavam na praia. Whinney, equipada com a carga do travois e cestas além de um fardo volumoso coberto de pele em sua anca, esperava pacientemente. Racer estava mais arisco em relação às cestas penduradas em seus flancos, e o pequeno fardo amarrado sobre seu dorso. Ainda não estava acostumado a carregar qualquer carga, mas o cavalo de estepe era a raça original, um cavalo robusto, resistente, acostumado a viver no deserto e excepcionalmente forte.
- Pensei que fosse trazer cereal para eles. Por que quer feno? Há mais capim lá fora do que todos os cavalos podem comer.
- Mas quando neva muito ou, pior, quando o gelo forma uma crosta na superfície, é difícil para eles chegar ao capim, e cereal demais pode fazê-los inchar. E bom ter suprimento de feno à mão para alguns dias. Os cavalos podem morrer de fome no inverno.
- Você não deixaria aqueles cavalos morrerem de fome, mesmo se tivesse que quebrar o gelo e cortar o capim você mesma, Ayla - disse Jondalar com uma risada-, mas não me importo de andarmos ou montarmos. - Seu sorriso desapareceu ao levantar os olhos para o céu azul, claro. - De qualquer maneira, levaremos mais tempo para voltar do que levamos para chegar aqui, com os cavalos carregados como estão.
Segurando na mão mais três pedaços das pedras de aparência inócua, Jondalar começou a subir a trilha escarpada para a caverna. Quando chegou à entrada, encontrou Ayla de pé, fixando o interior com lágrimas nos olhos. Ele colocou as piritas numa bolsa perto de sua mochila e, em seguida, foi ficar de pé ao lado dela.
- Este era o meu lar - disse ela, vencida pela perda quando a finalidade da mudança lhe ocorreu.
- Este era o meu lugar. Meu totem me conduziu para cá, deu-me um sinal. - Estendeu a mão para a bolsinha de couro que usava em volta do pescoço. - Eu estava só, mas fiz o que queria fazer aqui, e o que tinha que fazer. Agora, o Espírito do Leão da Caverna quer que eu vá embora.
- Ergueu os olhos para o homem alto, ao seu lado. - Acha que voltaremos, um dia?
- Não - respondeu ele. Havia um tom de depressão em sua voz. Ele olhava a pequena caverna, mas via outro local e outra época. - Mesmo se voltar ao mesmo local, não é o mesmo.
- Então, por que você quer voltar agora, Jondalar? Por que não ficar aqui, tornar-se um Mamutoi?
- Não posso ficar. É difícil de explicar. Sei que não será o mesmo local, mas os Zelandonii são meu povo. Quero mostrar-lhes as pedras-de-fogo. Quero mostrar-lhes como caçar com o arremessador de lanças. Quero que vejam o que pode ser feito com o sílex que foi aquecido. Todas estas coisas são importantes e valiosas e podem trazer muitos benefícios. Quero que meu povo as conheça. - Abaixou o olhar para o solo e sua voz era um sussurro: - Quero que me vejam e achem que valho a pena.
Ela observou os olhos perturbados, expressivos, e desejou poder remover o sofrimento que via ali.
- O que eles pensam é tão importante? Não é mais importante você saber que tem valor? - disse ela.
Então, recordou que o Leão da Caverna era seu totem também, escolhido pelo Espírito do animal poderoso exatamente como ela havia sido. Sabia que não era fácil viver com um totem poderoso, os testes eram difíceis, mas as dádivas e o saber interior sempre valiam a pena. Creb lhe havia dito que o Grande Leão da Caverna nunca escolhia alguém que não valesse a pena.
Em vez da mochila menor, de um só ombro dos Mamutoi, colocaram sacos de viagem pesados, semelhantes ao que Jondalar usara antes, destinados ao uso sobre as costas, com tiras de couro sobre os ombros. Certificaram-se que os capuzes de suas parkas estavam livres para serem colocados ou tirados. Ayla havia acrescentado correias presas à testa, que podiam ser usadas para apoio adicional, se quisessem, embora em geral ela dispensasse a correia em favor do uso da sua funda enrolada ao redor da cabeça. Seu alimento, materiais para acender um fogo, tenda e peles de dormir estavam guardados dentro.
Jondalar também carregava dois nódulos de sílex, de bom tamanho, escolhidos cuidadosamente entre vários que encontrara na praia, e uma bolsa cheia de pedras-de-fogo. Numa alça presa ao seu flanco, ambos carregavam lanças e arremessadores de lanças. Ayla levava várias pedras de atirar em uma bolsa e, sob a parka, presa a uma tira de couro que amarrava ao redor da túnica, estava sua sacola de remédios de pele de lontra.
O feno que Ayla havia convertido num fardo redondo, encontrava-se amarrado à égua. Ela fez uma avaliação crítica dos dois animais, verificando suas pernas, postura, conduta para ter certeza de que não estavam sobre carregados. Com um último olhar do alto da trilha escarpada, começaram a descer o vale extenso. Whinney seguindo Ayla, Jondalar puxando Racer por uma corda. Atravessaram o riacho perto das alpondras. Ayla pensou em retirar parte da carga de Whinney para facilitar-lhe a subida da encosta de cascalho, mas a égua robusta o fez sem grande dificuldade.
Uma vez no alto das estepes ocidentais, Ayla seguiu um caminho diferente do da vinda. Ela fez uma curva errada, depois retrocedeu, até encontrar o que procurava. Por fim, alcançaram um desfiladeiro emparedado, salpicado por grandes pedras pontiagudas, que tinham sido aparadas de muralhas de granito cristalino pelo gume cortante do gelo, do calor e do tempo. Observando Whinney em busca de sinais de nervosismo - o desfiladeiro fora, antes, lar de leões da caverna - avançaram, atraídos para a encosta de cascalho solto na extremidade distante.
Quando Ayla os encontrara, Thonolan já estava morto e Jondalar gravemente ferido. Exceto por um pedido ao Espírito do Leão da Caverna para guiar o homem para o outro mundo, ela não tivera tempo para ritos fúnebres, mas não podia deixar o corpo exposto aos animais predatórios. Ela o arrastara até a extremidade, pegando sua lança pesada, do tipo usado pelos homens do Clã, empurrou para o lado uma rocha que reprimia um acúmulo de pedras soltas. Ela se angustiara quando o cascalho cobriu o corpo ensangüentado, sem vida, de um homem que ela não conhecia, e agora, jamais conheceria; um homem como ela, um homem dos Outros.
Jondalar ficou de pé na base da encosta desejando que houvesse alguma coisa que ele pudesse fazer para reconhecer o local onde seu irmão fora enterrado, Talvez Doni já o houvesse encontrado, desde que Ela o chamou para Si tão cedo, mas ele sabia que Zelandoni tentaria encontrar este local de descanso do espírito de Thonolan, e guiá-lo, se pudesse. Mas, como ele poderia dizer a ela onde era o local? Ele nem sequer pudera encontrá-lo.
- Jondalar? - disse Ayla. Ele olhou para ela e reparou que ela tinha uma bolsinha de couro na mão. - Você me disse que seu espírito deveria voltar para Doni. Não conheço os meios da Grande Mãe Terra, só conheço o mundo espiritual dos totens do Clã. Pedi ao meu Leão da Caverna para guiá-lo até lá. Talvez seja o mesmo local, ou talvez sua Grande Mãe saiba sobre esse local, mas o Leão da Caverna é um totem poderoso e seu irmão não está sem proteção.
- Obrigado, Ayla. Sei que fez o melhor que pôde.
- Talvez você não compreenda, exatamente como não compreendo Doni, mas o Leão da Caverna é seu totem também, agora. Ele escolheu você, como me escolheu, e marcou você, como me marcou.
- Você me disse isso antes. Não estou certo do que significa.
- Ele tinha que escolher você, quando o escolheu para mim, Somente um homem com um totem do Leão da Caverna é bastante forte para uma mulher com um totem do Leão da Caverna, mas existe alguma coisa que você deve saber. Creb sempre me dizia que não é fácil viver com um totem poderoso. Seu Espírito testará você, para saber se você tem valor. Será muito difícil, mas você ganhará mais do que sabe. - Ela ergueu a bolsinha. - Fiz um amuleto para você. Não precisa usá-lo à volta do pescoço, como eu faço, mas deve guardá-lo com você. Coloquei um pedaço de ocre vermelho nele, assim poderá conservar uma parte do seu espírito e uma parte do seu totem, mas acho que seu amuleto devia conter mais uma coisa.
Jondalar franziu a testa. Não queria ofendê-la, mas não estava certo de querer aquele amuleto do totem do Clã.
- Acho que devia pegar um pedaço de pedra do túmulo de seu irmão. Uma parte do seu espírito ficará com ele, e você pode levar a pedra de volta a seu povo.
As rugas de consternação se aprofundaram na testa dele. Depois, de repente, desapareceram. Claro! Aquilo talvez ajudasse Zelandoni a encontrar aquele local em um transe. Talvez os totens do Clã valessem mais do que imaginava. Afinal, Doni não criara os espíritos de todos os animais?
- Ayla, como sabe exatamente o que fazer? Como aprendeu tanto onde cresceu? Sim, guardarei isto e porei uma pedra do túmulo de Thonolan na bolsinha - disse ele.
Olhou para a subida íngreme de cascalho solto, contra a muralha em um equilíbrio tênue, criada pelas mesmas forças que partiram os blocos e lâminas de pedra das partes laterais escarpadas do desfiladeiro. De repente, uma pedra, cedendo lugar à força cósmica da gravidade, rolou entre outras e caiu aos pés de Jondalar. Ele a pegou. A primeira vista, parecia ser igual aos outros pedaços pequenos de granito partido e rocha sedimentar. Mas quando a virou, ficou surpreso ao ver uma opalescência brilhante onde a pedra se quebrara. Luzes vermelhas faiscantes cintilavam do centro da pedra branca leitosa, e riscas vivas de azuis e verdes dançavam e resplandeciam ao sol enquanto ele a virava de um lado para o outro.
- Ayla, veja isto - disse ele, mostrando-lhe o pequeno pedaço de opala. - Você jamais adivinharia, pensaria que era somente uma pedra comum, mas veja aqui, onde foi partida. As cores parecem vir do fundo, e são muito vivas. Parece quase ter vida.
- Talvez tenha, ou talvez seja uma parte do espírito de seu irmão - respondeu ela.
Um redemoinho de ar frio enroscou-se sob a beira da tenda baixa; um braço exposto foi trazido, rapidamente, para debaixo de uma pele. Uma brisa cortante assobiou através da abertura; uma ruga de preocupação vincou uma testa adormecida. Uma rajada atingiu a borda da abertura com um estalo agudo e balançou-a para diante e para trás, abrindo caminho para correntes de ar que rugiam e que despertaram completamente Ayla e Jondalar, no mesmo instante. Jondalar amarrou a ponta solta embaixo, mas o vento, aumentando firmemente com a progressão da noite, tornou o sono inquieto e intermitente enquanto arquejava e gemia, arfava e uivava ao redor do pequeno abrigo de couro.
De manhã, lutaram para dobrar o couro da tenda sob o vento tempestuoso e prepararam-se rapidamente, não se dando o trabalho de acender uma fogueira. Em vez disso, beberam água fria do riacho gelado e próximo e comeram alimentos trazidos para a viagem. O vento diminuiu no meio da manhã, mas havia uma tensão na atmosfera que os fez duvidar de que
o pior havia passado.
Quando o vento recomeçou, perto do meio-dia, Ayla notou um aroma novo, quase metálico no ar, mais como uma ausência de odor, do que um odor verdadeiro. Ela fungou, voltando a cabeça, testando, avaliando.
- Há neve no vento - gritou Ayla para ser ouvida acima do rugido. - Posso cheirá-la.
- O que disse? - perguntou Jondalar, mas o vento fustigou suas palavras e Ayla compreendeu seu significado, mais pelas formas que sua boca tomou quando ele falou, do que por ouvi-lo. Ela parou para deixá-lo ficar ao seu lado.
- Posso sentir o cheiro da neve a caminho. Temos que encontrar um lugar onde nos abrigarmos antes de ela chegar - disse Ayla, examinando a extensão ampla, plana, com olhar preocupado. - Mas, onde encontraremos abrigo aqui?
Jondalar estava igualmente preocupado enquanto observava as estepes vazias. Depois, se lembrou do riacho quase congelado perto do local onde tinham acampado na noite anterior. Eles não tinham atravessado, o riacho ainda se encontrava à sua esquerda, não importava quanto serpenteasse. Ele se esforçou para ver através da nuvem de poeira, mas nada estava claro. De qualquer maneira, ele se virou para a esquerda.
- Vamos tentar encontrar aquele riacho - falou. - Talvez haja árvores ou margens altas ao longo dele, que nos darão alguma proteção. - Ayla concordou com um gesto de cabeça, seguindo-o. Whinney tampouco protestou.
A qualidade sutil no ar que a mulher havia detectado, e pensado que era odor da neve, fora um aviso preciso. Pouco tempo depois, uma peneira clara pulverulenta redemoinhou e soprou em um padrão errático, definindo e dando forma ao vento. Imediatamente, deu lugar a flocos maiores que dificultaram ainda mais a visibilidade.
Mas quando Jondalar pensou ter visto o contorno de formas indistintas erguendo-se à frente, e parou para tentar decifrá-las, Whinney avançou e todos seguiram seu comando. As árvores curvadas e um anteparo de moita cerrada marcavam a extremidade de uma cascata. O homem e a mulher podiam agachar-se atrás delas, mas a égua continuou descendo a corrente, até alcançarem uma curva onde a água havia penetrado fundo numa margem de solo firme. Lá, ao lado da ribanceira baixa, fora da força total do vento, Whinney instigou o potro e ficou de pé no exterior para protegê-lo.
Ayla e Jondalar retiraram depressa os fardos dos animais e armaram sua pequena tenda quase sob os pés da égua. Depois, arrastaram-se para dentro para esperar a tempestade.
Mesmo no abrigo da margem, fora da força direta do vento, a tempestade ameaçava-os. O vendaval atroador soprava de todas as direções ao mesmo tempo, e parecia determinado a encontrar um meio de entrar.
Teve sucesso, muitas vezes. Correntes de ar e rajadas penetraram sob as beiradas ou passaram através de rachaduras no couro que cobria a entrada, ou pelo buraco para saída da fumaça, onde sua cobertura era amarrada, muitas vezes trazendo neve. A mulher e o homem rastejavam sob as peles para se manterem aquecidos, e falavam. Incidentes de sua infância, histórias, lendas, pessoas que conheceram, costumes, idéias, sonhos, esperanças. Jamais pareciam deixar de ter coisas para dizer. Quando a noite chegou, partilharam os prazeres e depois dormiram. Num momento, no meio da noite, o vento parou de atacar a tenda.
Ayla acordou e jazeu com os olhos abertos, examinando o interior obscuro, combatendo um pânico crescente. Ela não se sentia bem, tinha dor de cabeça, e a imobilidade abafada pesava no ar viciado da tenda. Alguma coisa estava errada, mas ela não sabia o que era. Sentia que a situação era familiar, ou uma lembrança, como se ela já houvesse estado ali antes, mas não exatamente isso. Era mais como um perigo que devia reconhecer. Mas o quê? De repente, não suportou mais e sentou-se, puxando as cobertas quentes do homem deitado ao seu lado.
- Jondalar! Jondalar! - Ela o sacudiu, mas não precisava fazê-lo. Ele acordou no momento em que ela se sentou de um salto.
- Ayla! O que é?
- Não sei, alguma coisa está errada!
- Não vejo nada errado - disse ele. Não via, mas alguma coisa, obviamente, incomodava Ayla.
Ele não estava habituado a vê-la tão perto do pânico. Em geral ela era tão calma, tão completamente controlada, mesmo quando se encontrava em perigo iminente. Nenhum predador de quatro patas era capaz de trazer um terror tão abjeto aos seus olhos. - Por que acha que há alguma coisa errada?
- Tive um sonho. Estava em um lugar escuro, mais escuro do que a noite, e eu estava com asfixia,
Jondalar. Não podia respirar!
Uma expressão conhecida de preocupação se espalhou pelo rosto dele quando olhou ao redor da tenda mais uma vez. Não era do temperamento de Ayla amedrontar-se tanto; talvez alguma coisa estivesse errada. Estava escuro na tenda, mas não totalmente. Uma luz fraca penetrava. Nada parecia fora do lugar, o vento não havia quebrado nada, nem partido nenhuma corda. Na verdade, nem sequer ventava. Não havia movimento algum. Tudo estava absolutamente imóvel...
Jondalar afastou as peles, se deslocou até a entrada. Abriu a proteção da tenda, expondo uma parede branca que desmoronou no interior da barraca, mas mostrou apenas mais parede branca além.
- Estamos enterrados, Jondalar! Estamos enterrados na neve! - Os olhos de Ayla arregalavam-se de pavor e sua voz se partiu com o esforço de tentar mantê-la sob controle.
Jondalar estendeu a mão para ela e abraçou-a.
- Está tudo bem, Ayla. Está tudo bem - murmurou, de forma alguma seguro de que estava
- Está tão escuro que não posso respirar!
Sua voz soou estranha, tão distante, como se viesse de muito longe, e ela se tornou flácida em seus braços. Ele a deitou sobre as peles, e notou que seus olhos estavam fechados, mas ainda continuava gritando naquela voz distante, estranha, que estava escuro e não podia respirar. Jondalar estava perdido, assustado por ela, e temendo-a um pouco. Algo estranho acontecia, uma coisa mais do que seu sepultamento na neve, por mais que isso fosse amedrontador.
Ele notou sua mochila perto da abertura, parcialmente coberta pela neve, e fixou-a por um momento. De repente, arrastou-se sobre ela. Afastando a neve, sentiu a alça lateral de couro e encontrou uma lança. Ficando de joelhos, desatou a cobertura do buraco para fumaça que ficava perto do meio. Com a ponta da lança remexeu a neve. Um monte caiu sobre as peles de dormir, e depois a luz do sol e uma rajada de ar fresco atravessaram a pequena tenda.
A mudança em Ayla foi imediata. Ela relaxou visivelmente e logo abriu os olhos.
- O que fez? - indagou.
- Enfiei uma lança através do buraco de fumaça e atravessei a neve. Teremos que escavar para sair daqui, mas a neve pode não estar tão funda quanto parece. - Olhou para ela atentamente, preocupado. - O que aconteceu com você, Ayla? Fiquei nervoso. Você repetia que não podia respirar. Acho que desmaiou.
- Não sei, talvez tenha sido a falta de ar puro.
- Não me pareceu tão ruim assim, não tive grande dificuldade para respirar. E você estava realmente com medo. Acho que nunca a vi tão assustada.
Ayla se sentia pouco à vontade diante do interrogatório dele. Ela se sentia estranha, um pouco tonta ainda, e parecia recordar sonhos desagradáveis, mas não era capaz de explicá-lo.
- Lembro que, uma vez, a neve cobriu a abertura da pequena caverna em que fiquei quando tive que deixar o clã de Brun. Acordei no escuro e o ar estava viciado. Deve ter sido isso.
- Imagino que isso poderia amedrontar você, se acontecesse de novo - disse Jondalar, mas de alguma forma, não acreditava naquilo, e Ayla também não.
O homem grande, de barba ruiva, ainda estava trabalhando lá fora, embora o crepúsculo se convertesse rapidamente em escuridão. Foi o primeiro a ver a estranha procissão no alto da encosta e começando a descer. Primeiro vinha a mulher, avançando com esforço e cansaço através da neve funda, seguida por um cavalo cuja cabeça pendia de exaustão, com uma carga no dorso e arrastando o travois atrás de si. O potro, também carregando fardos, era conduzido por uma corda puxada pelo homem que seguia a égua. Caminhava com mais facilidade, já que a neve fora pisada por aqueles que vinham à frente, embora Jondalar e Ayla tivessem trocado de lugar no trajeto, para descansar um ao outro.
- Nezzie! Estão de volta! - gritou Talut ao começar a subir para encontrá-los, e pisar a neve para Ayla, para os últimos passos da jornada. Ele os conduziu, não para a entrada em arco conhecida, na frente, mas para o meio da habitação comunal. Para surpresa dos recém-chegados, havia sido construída uma nova adição à estrutura durante sua ausência. Era semelhante à sala da entrada, porém maior. Dali, uma outra entrada se abria, diretamente, para a Fogueira do Mamute.
- Isso é para os cavalos, Ayla - anunciou Talut quando entraram, com um largo sorriso de auto-satisfação, diante da expressão de incredulidade assombrada de Ayla. - Eu sabia, depois daquela última tempestade de neve, que um alpendre não seria suficiente. Se você, e seus cavalos, vão viver conosco, precisávamos de alguma coisa mais sólida. Acho que devemos chamar o local de “fogueira dos cavalos”!
As lágrimas encheram os olhos de Ayla. Ela estava cansadíssima, grata por ter chegado, afinal, e se encontrava esmagada. Ninguém jamais tivera tanto trabalho porque a queria. Enquanto vivera com o Clã nunca se sentira totalmente aceita, nunca sentira que pertencia ao lugar. Estava certa de que jamais teriam permitido que ficasse com os cavalos, muito menos, construído uma casa para eles.
- Oh, Talut - falou com emoção na voz. Depois, ergueu os braços, passou-os pelo pescoço de Talut e encostou seu rosto frio contra o dele. Ayla sempre parecera a ele tão reservada, que sua expressão espontânea de afeto foi uma surpresa adorável. Talut a abraçou e deu-lhe tapinhas carinhosos às costas, sorrindo com prazer óbvio e sentindo-se muito presumido.
A maioria do Acampamento do Leão se reuniu à volta deles no novo anexo, dando boas-vindas à mulher e ao homem como se ambos fossem membros maduros do grupo.
- Estávamos ficando preocupados com vocês - disse Deegie -, especialmente depois que nevou.
- Teríamos regressado antes se Ayla não quisesse trazer tanto consigo - disse Jondalar. - Nos últimos dois dias, não estava certo se conseguiríamos chegar.
Ayla já começara a descarregar os cavalos, pela última vez e, enquanto Jondalar a ajudava, os fardos misteriosos despertavam grande curiosidade.
- Trouxe alguma coisa para mim? - perguntou Rugie afinal, fazendo a pergunta em que todos pensavam.
Ayla sorriu para a garotinha.
- Sim, eu trouxe alguma coisa para todos - respondeu ela, fazendo todos se perguntarem que presente ela havia trazido para cada um deles.
- Para quem é isso? - perguntou Tusie, quando Ayla começou a cortar os cordões do pacote maior. Ayla levantou os olhos para Deegie e as duas sorriram, tentando não deixar a irmã mais nova de Deegie notar sua diversão um pouco benevolente, ao ouvir as inflexões e tom de voz de Tulie na voz da filha mais nova.
- Até trouxe alguma coisa para os cavalos - disse Ayla à menina enquanto cortava as últimas cordas e o feixe de feno se escancarou. - Isto é para Whinney e Racer.
Depois de espalhar o feno para os animais, começou a desatar o fardo no travois.
- Devia levar o resto para dentro.
- Não precisa fazer isso agora - falou Nezzie. - Nem sequer tirou suas roupas de passeio. Venha e beba alguma coisa quente, e coma algo também. Tudo ficará bem aqui, por enquanto.
- Nezzie está certa - disse Tulie. Estava tão curiosa quanto o resto do acampamento, mas os pacotes de Ayla podiam esperar. - Vocês dois necessitam de descanso e devem comer alguma coisa. Parecem exaustos - Jondalar sorriu, grato, para a chefe, quando seguiu Ayla ao interior da moradia.
De manhã, Ayla encontrou muitas mãos para ajudá-la a levar os fardos para dentro, mas Mamut havia sugerido tranqüilamente que ela conservasse seus presentes escondidos até a cerimônia daquela noite. Ayla sorriu, concordando, compreendendo rapidamente o elemento de mistério e expectativa que ele implicava, mas suas respostas evasivas às insinuações de Tulie para que lhe mostrasse o que havia trazido aborreceram a chefe, embora não quisesse demonstrá-lo.
Assim que os fardos e trouxas foram empilhados num dos estrados de cama vazios e as cortinas fechadas, Ayla se arrastou para o espaço privado cercado, acendeu três candeias de pedra e espalhou-as para ter boa iluminação, e examinou e arrumou os presentes que trouxera. Fez algumas pequenas mudanças em suas escolhas anteriores, acrescentando ou trocando alguns itens, mas quando apagou as candeias e saiu, fechando as cortinas atrás de si, estava satisfeita.
Saiu pela nova abertura, um espaço ocupado antes por uma parte de um estrado-cama sem uso. O chão do novo anexo era mais alto do que o da habitação de terra, e três degraus largos de 10 centímetros de altura tinham sido feitos para um acesso mais fácil. Ela parou para olhar ao redor do anexo. Os cavalos tinham desaparecido. Whinney estava acostumada a afastar um protetor contra o vento, de pele, com o focinho, e Ayla só lhe mostrara uma vez como se fazia. Racer aprendeu o truque com a mãe. Obedecendo a uma necessidade impulsiva de ver se os animais estavam bem - como uma mãe com os filhos, uma parte de sua mente estava sempre ligada aos cavalos - a jovem atravessou o espaço fechado para a arcada de presa de mamute, empurrou a pesada cortina de pele e olhou para fora.
O mundo havia perdido toda forma e definição; cor firme, sem sombra ou forma se espalhava através da paisagem em dois tons: azul-vivo, vibrante, era o céu sem qualquer sinal de nuvem; e branco, da neve completamente alva, refletindo um resplandecente sol de fim de manhã. Ayla perscrutou contra o brilho do branco; a única evidência da tempestade que reinara durante dias. Devagar, enquanto seus olhos se habituavam à claridade, e uma sensação prévia de distância e profundidade informavam sua percepção, os detalhes se encaixaram. A água, ainda se encrespando no meio do rio, cintilava mais do que as margens brancas cobertas de neve, que se misturavam a cacos de gelo brancos, embotados pela neve, nas margens do rio. Perto, misteriosos montes brancos assumiam as formas de ossos de mamute e pilhas de barro.
Ela avançou alguns passos do lado de fora para verificar na curva do rio onde os cavalos gostavam de pastar, fora do alcance da vista. Estava quente ao sol e a superfície da neve brilhava com um vislumbre de degelo. Os cavalos teriam que escavar a camada profunda, macia e fria para encontrar o capim seco encoberto por ela. Quando Ayla se preparava para assobiar, Whinney apareceu, ergueu a cabeça e a viu. Relinchou uma saudação enquanto Racer surgiu de trás da mãe. Ayla retribuiu o relincho.
Quando a jovem deu meia-volta para ir embora, reparou que Talut a observava com uma expressão peculiar, quase de admiração.
- Como a égua soube que você tinha saído? - perguntou ele.
- Acho que não sabia, mas cavalos têm bom olfato, sentem o cheiro longe. Bons ouvidos também. Ouvem longe. Ela vê tudo o que se move.
O homem grande concordou com um gesto de cabeça. Ela fazia parecer tão simples, tão lógico, mas ainda assim... Ele sorriu, então, contente por eles estarem de volta. Esperava a adoção de Ayla com ansiedade. Tinha muito a oferecer, seria bem-vinda e valiosa entre as mulheres Mamutoi.
Ambos voltaram para o novo anexo e, quando entraram, Jondalar apareceu vindo da moradia comunal.
- Vi que seus presentes estão todos prontos - disse ele, com um largo sorriso enquanto caminhava com passos grandes em sua direção. Gostava da expectativa causada pelos misteriosos pacotes de Ayla e de participar da surpresa. Havia ouvido Tulie expressar preocupação sobre a qualidade dos presentes, mas ele não tinha dúvidas. Seriam incomuns para os Mamutoi, porém, bonito artesanato era bonito artesanato e ele estava certo de que a arte de Ayla seria reconhecida.
- Todo mundo está se perguntando o que você trouxe, Ayla - disse Talut. Ele adorava a expectativa e excitação também, ou mais do que todos.
- Não sei se meus presentes são satisfatórios - disse Ayla.
- Claro que são. Não se preocupe com isso, O que quer que tenha trazido será o bastante. Somente as pedras-de-fogo são suficientes. Mesmo sem as pedras-de-fogo, somente você seria suficiente - disse Talut, depois acrescentando com um sorriso: - Dar-nos razão para ter uma grande comemoração poderia ser suficiente!
- Mas você diz que há trocas de presentes, Talut. No Clã, para uma troca, tinha que se dar uma coisa do mesmo tipo, do mesmo valor. O que pode ser suficiente para dar a você, a todos, que fizeram este lugar para os cavalos? - disse Ayla, olhando à sua volta. - É como uma caverna, mas vocês fizeram. Não sei como as pessoas podem fazer uma caverna como esta.
- Eu também já me perguntei sobre isso - disse Jondalar. – Devo confessar que nunca vi nada igual, e já vi muitos abrigos, abrigos de verão, abrigos construídos no interior de uma caverna ou sob uma saliência rochosa, mas sua habitação é tão sólida quanto a própria rocha.
Talut riu.
- Tem que ser, para se viver aqui, especialmente no inverno. Com a força que o vento sopra, qualquer coisa mais leve seria posta abaixo. - Seu sorriso desapareceu, e uma expressão suave de algo próximo ao amor tomou conta de seu rosto. - A terra dos Mamutoi é terra rica, rica em caça, em peixe, em alimentos que crescem. É uma terra bonita, forte. Eu não queria viver em outro lugar... - O sorriso voltou. - Mas aqui se precisa de abrigos firmes, e não tem muitas cavernas.
- Como faz uma caverna, Talut? Como faz um lugar como este? - interrogou Ayla, lembrando-se de como Brun havia procurado a caverna adequada para seu clã, e como ela se sentira sem lar até encontrar um vale que tinha uma caverna habitável.
- Se quiserem saber, vou contar. Não é um grande segredo! - disse Talut, sorrindo com prazer. Estava encantado com a admiração óbvia deles. - O resto da habitação é feito da mesma maneira, mais ou menos mas, para este acréscimo, começamos medindo uma distância a passo, da parede exterior da Fogueira do Mamute. Quando alcançamos o centro da área que achamos ser de bom tamanho, colocamos uma vara no solo... Era ali que seria a lareira, se resolvêssemos que precisaríamos de um fogo aqui. Depois, medimos a mesma distância com uma corda, amarramos uma ponta à vara, e com a outra ponta marcamos um círculo para saber onde seria a parede.
Talut demonstrou o que explicava, atravessando a distância com passos largos e amarrando uma corda imaginária e uma vara não-existente.
- Em seguida, cortamos a relva e depois a retiramos com cuidado para poupá-la e depois escavamos a extensão do tamanho do meu pé. - Para esclarecer melhor seus comentários, Talut ergueu um pé inacreditavelmente comprido, mas surpreendentemente estreito e bem-feito enfiado em um sapato macio e bem ajustado. - Depois, marcamos a largura da bancada... O estrado que pode ser cama ou depósito... E mais espaço para a parede. Da orla interior da bancada, escavamos mais fundo, cerca de dois ou três pés meus, para aprofundar o meio para o chão. A terra foi empilhada igualmente em toda a volta, no exterior, em uma borda que ajuda a sustentar a parede.
- É preciso escavar muito - disse Jondalar, lançando um olhar ao recinto. - Eu diria que a distância de uma parede à outra é, talvez, de trinta pés seus, Talut.
Os olhos do chefe se arregalaram, surpresos.
- Tem razão! Medi exatamente isso. Como descobriu?
- Um palpite apenas - disse Jondalar, dando de ombros.
Era mais que um palpite era outra manifestação de sua compreensão instintiva do mundo físico.
Ele podia julgar exatamente à distância apenas com os olhos, e media o espaço com as dimensões do próprio corpo. Conhecia a extensão do seu passo e a largura de sua mão, o alcance do seu braço e do seu palmo; podia calcular uma fração contra a espessura do polegar, ou a altura de uma árvore atravessando sua sombra ao sol. Não era uma coisa que soubesse ser um dom com que nascera e desenvolvera com o uso. Nunca lhe ocorreu questionar aquilo.
Ayla também pensou que era muita escavação. Ela havia escavado sua parte de armadilhas e conhecia o trabalho envolvido, e estava curiosa.
- Como cava tanto, Talut?
- Como a pessoa cava? Usamos picaretas para romper o barro, pás para retirá-lo, exceto a relva compacta da superfície. Nós a cortamos com a borda aguçada de um osso achatado.
Sua expressão intrigada deixava claro que ela não entendera. Talvez desconhecesse as palavras para as ferramentas na língua dele, pensou Talut e, saindo pela porta, voltou com alguns implementos. Todos tinham cabos compridos. Um tinha um pedaço de osso de costela de mamute preso a ele, tendo sido raspado até formar uma ponta aguçada em uma extremidade. Parecia uma enxada com uma comprida lâmina curva. Ayla examinou-a cuidadosamente.
- Acho que é como um pau de escavar – disse, ela, olhando para Talut em busca de confirmação.
Ele sorriu.
- Sim, é uma picareta. Às vezes também usamos paus pontudos de cavar. São mais fáceis de fazer quando se está com pressa, mas a picareta é mais fácil de usar.
Depois, ele mostrou-lhe uma enxada feita da larga disposição palmada de um chifre gigante de um megácero, partido no sentido do comprimento através do centro mole, depois moldado e aguçado. Utilizavam os chifres de animais novos; os chifres de um veado maduro gigante podiam atingir 3,3 metros de comprimento, e eram grandes demais. O cabo estava preso por meio de uma corda forte enfiada em três partes de buracos abertos no centro. Era um implemento usado com o lado esponjoso para baixo, não para escavar, mas para retirar e jogar fora o bom solo de loesse solto pela picareta ou, se quisessem, para a neve. Ele também tinha uma segunda enxada, com uma forma mais de concha, feita da parte exterior de marfim lascado de uma presa de mamute.
- São enxadas - disse Talut, dizendo-lhe o nome. Ayla sacudiu a cabeça, concordando. Ela havia usado pedaços achatados de osso e chifres quase da mesma forma, mas suas enxadas não tiveram cabos. - Estou contente porque o tempo permaneceu bom durante certo período depois que vocês partiram - continuou o chefe. - Se estivesse como agora, não teríamos escavado tanto. O terreno já está duro sob a superfície. Ano que vem, poderemos cavar mais fundo e fazer alguns buracos de estocagem também, talvez até um banho de vapor quando voltarmos da Reunião de Verão.
- Não iam caçar novamente, quando o tempo melhorasse? - indagou Jondalar.
- A caçada ao bisão foi muito bem-sucedida, e Mamut não tem tido muita sorte na Busca. Tudo que ele parece encontrar são os poucos bisões que perdemos, e não vale a pena ir atrás deles.
Resolvemos fazer o anexo, em vez disso, para construir um lugar para os cavalos, já que Ayla e sua égua eram tão úteis.
- Picareta e enxada facilitam, Talut, mas é trabalho... Muita escavação - disse Ayla surpresa e um pouco conquistada.
- Tivemos muita gente trabalhando, Ayla. Quase todos acharam que era uma boa idéia e quiseram ajudar... A lhe dar boas-vindas.
A jovem sentiu uma súbita onda de emoção e fechou os olhos para controlar as lágrimas de gratidão que ameaçavam cair. Jondalar e Talut notaram e viraram para o lado por consideração.
Jondalar examinou as paredes, ainda intrigado com a construção.
- Parece que escavaram também entre o estrado - comentou.
- Sim, para os principais esteios - disse Talut, apontando para seis enormes presas de mamute, encravadas na base com ossos menores - partes de espinhas dorsais e falanges - com suas pontas apontadas para o centro Estavam colocados a intervalos regulares ao redor da parede, de ambos os lados dos dois pares de presas de mamute, que eram usadas para as entradas em arco. As presas fortes, longas e curvas eram os principais elementos estruturais da habitação.
Quando Talut, dos Caçadores de Mamutes, continuou a descrever a construção da habitação de terra parcialmente subterrânea, Ayla e Jondalar se tornaram ainda mais impressionados. Era muito mais complexa do que tinham imaginado. A meio caminho entre o centro e os suportes de parede de presas, havia seis estacas de madeira - árvores pontiagudas, desprovidas de casca e bifurcadas no alto. Em volta do exterior do anexo, fixados contra o fundo da borda, crânios de mamute permaneciam eretos no solo, escorados por omoplatas, ilíacos, ossos da espinha dorsal e vários ossos longos estrategicamente colocados, pernas e costelas. A parte superior da parede, consistindo principalmente de omoplatas, ilíacos e presas menores de mamute, unia-se no telhado que era sustentado por vigas de madeira estendidas através e entre o círculo externo de presas, e o círculo interior de estacas. O mosaico de ossos, todos escolhidos deliberadamente e alguns ajustados até a forma conveniente, era encravado e golpeado sobre as presas robustas, criando uma parede curva que se unia como peças engatadas de um quebra-cabeças.
Havia madeira disponível de vales à beira de rios, mas os ossos de mamute eram em maior suprimento para os fins de construção. Os mamutes que eles caçavam, porém, contribuíram somente com pequena porção dos ossos usados. A grande maioria de seus materiais de construção era selecionada de uma pilha de ossos na curva do rio. Alguns ossos vinham mesmo de carcaças, despojadas por animais que se alimentavam de carniça, encontradas nas estepes próximas, mas os pastos abertos eram mais importantes para fornecer materiais de outra variedade.
A cada ano, os rebanhos migratórios de renas deixavam cair seus chifres para dar lugar aos do ano seguinte, e todos os anos eram ajuntados. Para completar a moradia, os chifres das renas eram unidos uns aos outros a fim de fazer um vigamento forte de suportes entrelaçados para um telhado abobadado, deixando no centro uma abertura para a fumaça sair.
Depois, galhos de salgueiros do vale do rio eram amarrados juntos, formando um capacho espesso que era colocado em toda a extensão preso seguramente sobre e ao redor dos chifres, e revestindo a parede de osso a fim de criar uma base vigorosa sobre o telhado e a parede. Em seguida, um telhado de capim ainda mais espesso, sobreposto para desviar a água, era preso aos salgueiros, até o solo. No topo do telhado de capim, havia uma camada de relva compacta. Parte da relva vinha do solo que tinha sido escavado para o acréscimo, e parte da terra próxima.
As paredes de toda a estrutura eram de 60 a 90 centímetros de espessura, mas uma camada final de material permanecia para completar o anexo.
Estavam de pé do lado de fora, admirando a nova estrutura, quando Talut terminou sua explicação detalhada da construção da habitação de terra.
- Eu esperava que o tempo melhorasse - disse ele, fazendo um gesto amplo em direção ao céu azul-claro. - Precisamos terminar isto. Sem terminar, não estou certo de quanto tempo durará.
- Quanto tempo dura uma habitação? - perguntou Jondalar.
- O tempo que eu viver, às vezes mais. Mas habitações de terra são casas de inverno. Em geral, partimos no verão, para a Reunião de Verão e a grande caça ao mamute, e outras viagens. O verão é para viajar, reunir plantas, caçar ou pescar, negociar ou visitar. Deixamos a maior parte de nossas coisas aqui quando partimos, porque voltamos todos os anos. O Acampamento do Leão é nosso lar.
- Se espera que esta parte seja o lar dos cavalos de Ayla por muito tempo, então, é melhor terminarmos enquanto temos chance - interrompeu Nezzie. Ela e Deegie pousaram a grande e pesada pele com água que tinham trazido do rio parcialmente congelado.
Ranec chegou, então, carregando ferramentas de escavar e arrastando uma grande cesta cheia de terra molhada compacta.
- Nunca ouvi falar de ninguém construindo uma moradia, ou mesmo parte dela, tão no fim da estação – disse, ele.
Barzec estava exatamente atrás dele.
- Será um teste interessante - falou, pousando uma segunda cesta de lama escorregadia, que tinham escavado de um determinado local ao longo da margem do rio. Danug e Druwez apareceram então, cada um carregando cestas adicionais da lama úmida.
- Tronie fez um fogo - disse Tulie, pegando a pesada pele de água trazida por Nezzie e Deegie, sozinha. - Tornec e alguns outros estão em pilhando neve para derreter, assim que tivermos a água quente.
- Quero ajudar - disse Ayla, perguntando-se que auxílio poderia prestar. Todos pareciam saber exatamente como agir, mas ela não fazia idéia alguma do que acontecia, muito menos o que poderia fazer para ajudar.
- Sim, podemos ajudar? - perguntou Jondalar.
- Claro, é para o cavalo - comentou Deegie -, mas deixe-me dar alguma coisa minha, velha, para você usar, Ayla. E um trabalho confuso. Talut ou Danug têm algo para Jondalar?
- Encontrarei alguma coisa para ele - disse Nezzie.
- Se estiverem tão dispostos a ajudar depois que terminarmos, podem vir e auxiliar a construir a nova moradia que Tarneg e eu faremos para iniciar nosso acampamento... Depois que eu me unir a Branag - acrescentou Deegie, sorrindo.
- Alguém acendeu fogos nos banhos de vapor? - perguntou Talut.
- Todos quererão limpar-se depois disto, especialmente se vamos ter uma celebração esta noite.
- Wymez e Frebec os acenderam esta manhã. Estão arranjando mais água agora - disse Nezzie.
- Crozie e Mamut saíram com Latie e as crianças para conseguir ramos frescos de pinheiro, a fim de que os banhos tenham um aroma gostoso. Fralie também queria ir, mas não gostei da idéia de ela subindo e descendo colinas. Assim, perguntei-lhe se podia tomar conta de Rydag. Ela está vigiando Hartal também. Mamut está ocupado preparando alguma coisa para a cerimônia desta noite também. Tenho a impressão de que ele está planejando algum tipo de surpresa.
- Oh... Mamut me pediu, quando eu saía, para dizer que os sinais são favoráveis para uma caçada dentro de poucos dias, Talut. Ele quer saber se você deseja que ele faça uma Busca - falou Barzec.
- Os sinais são favoráveis para uma caçada - disse o grande chefe.
- Vejam esta neve! Macia no subsolo, derretendo na superfície. Se conseguirmos um bom congelamento, terá uma crosta de gelo, e os animais sempre ficam presos quando a neve está nesta condição. Sim, acho que seria uma boa idéia.
Todos tinham caminhado em direção à lareira, onde uma grande pele, cheia com água gelada do rio, havia sido apoiada sobre uma armação diretamente sobre as chamas. A água do rio era apenas para iniciar o processo de derretimento da neve que estava depositada. Enquanto derretia, cestas de água eram tiradas e derramadas em outra pele grande, manchada e suja que revestia uma depressão no terreno. A terra especial tirada de uma margem do rio era acrescentada e misturada à água para formar uma massa espessa de argila macia e viscosa.
Várias pessoas subiram no topo do anexo novo, recém-coberto de relva, com cestas à prova d’água da melhor lama, macia e fluida e, com conchas, começaram a derramá-la pelos lados. Ayla e Jondalar observavam, e logo se reuniram aos outros. Mais pessoas, no chão, espalhavam a lama certificando-se de que toda a superfície possuía uma camada espessa.
A argila lisa e firme, lavada e convertida em pequenas partículas pelo rio, não absorveria água. Era impermeável. Chuva, granizo ou neve derretida, nada podia penetrar. Era impermeável, mesmo molhada. À medida que secava, e com uso prolongado, a superfície se tornava bastante dura e era usada com freqüência como um local acessível de estocagem de objetos e implementos. Quando o tempo estava agradável, era um local onde repousar, visitar, expor-se em discussão em voz alta, ou sentar-se tranqüilamente e meditar. As crianças subiam quando os visitantes chegavam, para observar sem estarem no caminho e todos usavam o “poleiro” quando se precisava de uma audiência ou havia alguma coisa para ver.
Misturaram mais argila e Ayla carregou uma cesta pesada para cima, derramando-a sobre a borda e salpicando-se. Não importava, ela já estava coberta de lama, como todo mundo. Deegie tinha razão, era um trabalho sujo. Quando terminaram os lados, afastaram-se da borda e começaram a revestir o topo, mas quando a superfície da abóbada foi coberta por lama molhada e escorregadia, tornou-se traiçoeiro caminhar ali.
Ayla derramou a última lama de sua cesta e observou-a escorregar de vagar para o solo. Virou-se para ir embora, sem olhar com cuidado onde pisava. Antes que se desse conta, seus pés deslizaram. Ela caiu com um chape na argila fresca e macia que acabara de derramar, e foi resvalando e escorregando sobre a borda arredondada do telhado e pela parte lateral do anexo para os cavalos, soltando um grito involuntário.
No instante seguinte, encontrou-se segura por braços fortes exatamente quando atingia o solo e, surpresa, olhou para o rosto sorridente, salpicado de lama de Ranec.
- Essa é uma maneira de espalhar a lama na parte lateral - disse ele, firmando-a, enquanto ela recuperava o equilíbrio. Depois acrescentou, ainda segurando-a: - Se quiser repetir esperarei por você aqui.
Ela sentiu calor no local em que ele tocava a pele fria do seu braço, e estava inteiramente consciente do corpo do homem pressionando contra ela. Seus olhos escuros, brilhantes e penetrantes, estavam cheios de um anseio que provocava uma resposta espontânea do âmago de sua feminilidade. Ela tremeu de leve e sentiu o rosto corar antes de baixar os olhos, e depois se afastar do seu toque.
Ayla lançou um olhar a Jondalar, confirmando o que esperava ver. Ele estava zangado. Seus punhos estavam apertados e as têmporas palpitando. Ela desviou o olhar rapidamente. Agora, compreendia um pouco mais a cólera de Jondalar, entendendo que era uma expressão do medo do homem - temor de perda, temor de rejeição - mas ela sentiu uma ponta de irritação diante da reação dele, apesar de tudo. Não pôde evitar o escorregão, e era grata por Ranec ter estado ali, casualmente, para segurá-la. Corou de novo, lembrando-se de sua resposta ao toque demorado do homem. Também não pudera evitar aquilo.
- Venha, Ayla - disse Deegie. - Talut falou que é suficiente e que os banhos de vapor estão quentes. Vamos limpar esta lama e nos aprontarmos para a celebração. E para você.
As duas jovens entraram na habitação de terra através do novo anexo. Quando chegaram à Fogueira do Mamute, Ayla se virou, de repente, para a outra mulher.
- Deegie, o que é banho de vapor?
- Nunca tomou um?
- Não - respondeu Ayla, balançando a cabeça.
- Oh, você adorará! Também pode tirar as roupas enlameadas na Fogueira dos Auroques. Em geral, as mulheres usam o banho de vapor dos fundos. Os homens gostam deste. - Quando falou, indicou uma arcada além da cama de Manuv enquanto atravessavam a Fogueira da Rena e entravam na Fogueira da Garça.
- Não é para estocagem?
- Achou que todos os recintos laterais eram para estocagem? Imagino que não poderia saber, não é? Você parece tão parte de nós que é difícil lembrar que realmente não está aqui há tanto tempo assim. - Ela parou, então, e virou-se para Ayla. - Estou contente porque será um de nós, acho que você estava destinada a isso.
Ayla sorriu timidamente.
- Também estou contente, e feliz por você estar aqui, Deegie. E bom conhecer mulher... jovem.., como eu.
Deegie sorriu também.
- Eu sei. Gostaria que você tivesse vindo antes. Irei embora depois do verão. Quase detesto ir. Quero ser chefe do meu próprio acampamento, como minha mãe, mas sentirei falta dela e de você, e de todos.
- Vai para muito longe?
- Não sei, não resolvemos ainda - respondeu Deegie.
- Por que ir para longe? Por que não construir uma moradia nova aqui perto?
- Não sei. A maioria das pessoas não faz isso, mas acho que eu poderia fazer. Não pensei nisso - disse Deegie, com uma estranha expressão de surpresa. Depois, quando chegaram à última fogueira da habitação comunal, ela ajuntou: - Tire essas roupas sujas e deixe-as empilhadas aqui.
Deegie e Ayla despiram as roupas enlameadas. Ayla podia sentir o calor irradiando-se de trás de uma cortina de couro vermelho, suspensa de uma arcada bastante baixa de presa de mamute, na parede mais ao fundo da estrutura. Deegie se agachou e entrou primeiro. Ayla a seguiu, mas parou um instante antes de entrar com a cortina afastada para um lado, tentando ver o interior.
- Entre depressa e feche a cortina! Está deixando o calor escapar! - gritou uma voz do interior fumegante, fracamente iluminado, um pouco enfumaçado.
Ela se apressou, deixando a cortina cair em seu lugar atrás dela, mas em vez de frio, sentiu o calor assaltá-la. Deegie conduziu-a por uma escada rústica feita de ossos de mamute, colocada contra a parede de barro de uma escavação que tinha cerca de 90 cm de profundidade. Ayla ficou de pé no fundo, sobre um chão coberto por uma pele macia, profundamente estacada, esperando que seus olhos se adaptassem, depois olhou ao redor. O espaço que havia sido escavado era de cerca de dois metros de largura e três de comprimento. Consistia de duas partes circulares unidas, cada uma com um teto abobadado baixo - de onde ela estava em pé, cerca de apenas 7 ou 10 centímetros acima de sua cabeça.
Carvões quentes de osso espalhados pelo chão da parte maior brilhavam intensamente. As duas jovens atravessaram a porta menor para se reunirem às outras e Ayla viu que as paredes, eram cobertas por peles e o chão do espaço maior era revestido com ossos de mamute espaçados cuidadosamente. Dava-lhes um local para caminhar acima dos pedaços de carvões ardentes. Mais tarde, quando derramaram água no chão para fazer vapor, ou para lavar, a água escorreu para a terra abaixo dos ossos, o que mantinha os pés acima da lama.
Havia mais carvões empilhados na lareira, no centro. Eles forneciam calor e a única fonte de luz, exceto um esboço desmaiado de luz do dia ao redor do buraco de fumaça coberto. Mulheres nuas encontravam-se ao redor da lareira, sentadas em bancos improvisados, feitos de ossos achatados estendidos através de outros suportes de osso de mamute. Recipientes de água se alinhavam ao longo de uma parede. Cestas grandes, fortes, entrelaçadas, impermeáveis, continham água fria, enquanto o vapor vinha dos estômagos de grandes animais sustentados por armações de chifres. Alguém pegou uma pedra em brasa da lareira com dois ossos chatos e deixou-a cair em um dos estômagos cheios de água. Uma nuvem de vapor com aroma de pinheiro se elevou e envolveu o recinto.
- Aqui, sente-se entre Tulie e eu - disse Nezzie, movendo seu corpo robusto para um lado, e abrindo espaço. Tulie se afastou para o lado oposto. Era uma mulher grande também, mas a maior parte do seu tamanho era pura massa muscular, embora sua forma feminina plena não deixasse dúvidas quanto ao seu sexo.
- Quero tirar um pouco de lama primeiro - disse Deegie. - Provavelmente, Ayla também quer.
Viram quando ela escorregou?
- Não. Você se machucou, Ayla? - perguntou Fralie, parecendo preocupada e levemente pouco à vontade com sua gravidez adiantada.
Deegie riu antes que Ayla pudesse responder.
- Ranec a pegou e não pareceu infeliz a respeito, tampouco. - Houve sorrisos e gestos aprovadores de cabeça.
Deegie pegou uma bacia de crânio de mamute, misturou água quente e fria nela, tirando acidentalmente um ramo de pinheiro da água quente e de um montículo escuro, uma substância mole, separando um punhado para Ayla e outro para si mesma.
- O que é isto? - perguntou Ayla, sentindo a textura luxuriosamente macia e sedosa do material.
- Lã de mamute - disse Deegie. - O pêlo oculto que desenvolvem no inverno. Eles o perdem em grandes maços, toda primavera, através do comprido pêlo exterior. Fica preso em arbustos e árvores. Às vezes, você pode encontrá-lo no solo. Mergulhe na água e use para retirar a lama.
O cabelo também está enlameado - disse Ayla -, deve ser lavado.
- Lavaremos mais tarde, depois de suar um pouco.
Lavaram-se em ondas de vapor, depois Ayla se sentou entre Deegie e Nezzie. Deegie se recostou e fechou os olhos, suspirando satisfeita, mas Ayla, perguntando-se por que elas estavam sentadas juntas, suando, observou todas no recinto. Latie, sentada do lado oposto a Tulie, sorriu para ela. Ayla lhe retribuiu o sorriso.
Houve movimento à entrada. Ayla sentiu um vento frio e compreendeu como ela estava quente. Todas olharam para ver quem chegava. Rugie e Tusie desceram, seguidas por Tronie, segurando Nuvie.
- Tive que amamentar Hartal - disse Tronie. - Tornec queria levá-lo para um banho de vapor e eu não o queria bisbilhotando.
Ayla se perguntou se não havia permissão para os homens irem ali, nem mesmo os bebês machos?
- Todos os homens estão no banho de vapor, Tronie? Talvez eu deva ir buscar Rydag - falou Nezzie.
- Danug o levou. Acho que os homens decidiram que queriam todos os machos desta vez - disse Tronie. - Mesmo as crianças.
- Frebec levou Tasher e Crisavec - disse Tusie.
- Já é hora de ele se interessar mais por aqueles meninos - resmungou Crozie. - Não foi essa a única razão por que você se uniu a ele, Fralie?
- Não, mãe, não foi à única razão.
Ayla ficou surpresa. Jamais ouvira Fralie discordar da mãe antes, mesmo brandamente. Ninguém mais pareceu notar. Talvez ali, com as outras mulheres, Fralie não tivesse que se preocupar sobre tomar partido. Crozie estava sentada de olhos fechados, recostada; era surpreendente como a filha se parecia com ela. Na verdade, parecia-se demais. Exceto pela barriga de mulher grávida, Fralie estava tão magra que era quase como se tivesse a idade da mãe, observou Ayla. Seus tornozelos estavam inchados. Isso não era bom sinal. Ela gostaria de poder examinar Fralie. Depois, compreendeu que talvez pudesse fazê-lo, ali.
- Fralie, os tornozelos incham muito? - perguntou, um pouco hesitante. Todas se sentaram, eretas, esperando a resposta de Fralie, como se compreendessem, de repente, o que acabara de ocorrer a Ayla. Até Crozie observou a filha sem dizer palavra.
Fralie abaixou os olhos para os pés, parecendo examinar os tornozelos inchados, refletindo. Então, ergueu a cabeça.
- Sim, têm inchado ultimamente - respondeu.
Nezzie soltou um suspiro de alívio audível, alívio que todas as outras sentiram.
- Ainda sente enjôo de manhã? - perguntou Ayla, inclinando-se para frente.
- Não fiquei tão enjoada assim com os dois primeiros.
- Fralie... Deixaria que eu examinasse você?
Fralie olhou para as mulheres, ao seu redor. Ninguém disse uma palavra. Nezzie sorriu e sacudiu a cabeça afirmativamente para ela, insistindo, em silêncio, para que concordasse.
- Muito bem - disse Fralie.
Ayla se levantou depressa, examinou os olhos de Fralie, sentiu o cheiro de seu hálito, tocou-lhe a testa. Estava escuro demais para ver muita coisa, e quente demais no banho de vapor para perceber febre.
- Quer deitar? - pediu Ayla.
Todas saíram do caminho para dar lugar a Fralie. Ayla a apalpou e ouviu, e examinou com meticulosidade e conhecimento óbvio, enquanto as outras observavam com curiosidade.
- Acho mais doente do que de manhã - falou Ayla quando terminou. - Posso preparar alguma coisa, ajudar o alimento à não subir e você se sentirá melhor. Ajudará a inchação. Você vai tomar?
- Não sei - respondeu Fralie. - Frebec vigia tudo o que como. Acho que está preocupado comigo, mas não quer confessar isso. Ele perguntará o que é.
Crozie estava sentada de lábios apertados, reprimindo claramente as palavras que queria dizer, temendo que, se o fizesse, Fralie tomasse o partido de Frebec e recusasse a ajuda de Ayla. Nezzie e Tulie se entreolharam. Não era do temperamento de Crozie treinar tanto autocontrole.
Ayla sacudiu a cabeça afirmativamente:
- Acho que sei um meio.
- Não sei sobre o resto de vocês, mas estou pronta para me limpar e sair - disse Deegie. - O que acha de um rápido mergulho na neve agora, Ayla?
- Acho que seria bom. Estou quente.
Jondalar abriu as cortinas que pendiam fechadas em frente ao estrado-cama que ele dividia com Ayla, e sorriu. Ela estava sentada, com as pernas cruzadas, totalmente nua, a pele rosada e brilhante, escovando o cabelo molhado.
- Sinto-me muito bem - disse ela, sorrindo também. - Deegie disse que eu adoraria o banho de vapor. Você gostou?
Ele subiu na cama ao lado dela, deixando a cortina cair. Sua pele também estava rosada e brilhante, mas ele acabava de se vestir e havia penteado e amarrado o cabelo em uma dava na parte de trás do pescoço. O banho de vapor fora tão repousante que ele até pensara em se barbear, mas apenas aparara a barba, em vez disso.
- Sempre gosto deles - disse ele. Depois, não pôde resistir. Tomou-a nos braços, beijou-a e começou a acariciar-lhe o corpo cálido. Ela respondeu ansiosamente, entregando-se ao abraço dele e Jondalar ouviu um gemido baixo, quando se inclinou para tomar um mamilo na boca.
- Grande Mãe, mulher, você é tentadora - disse ele ao recuar. - Mas o que dirão as pessoas quando começarem a chegar na Fogueira do Mamute para sua adoção e nos encontrarem partilhando prazeres em vez de estarmos vestidos e prontos?
- Podíamos dizer para que voltassem depois - retrucou ela com um sorriso.
Jondalar riu alto.
- Acredito que você diria, não é mesmo?
- Bem, você me deu o sinal, não foi? - disse ela com um sorriso malicioso.
- Meu sinal?
- Você lembra. O sinal que um homem dá a uma mulher quando ele a quer. Você disse que eu sempre saberia, depois me beijou e me tocou assim. Bem, acabou de me dar seu sinal e, quando um homem dá o seu sinal, uma mulher do Clã nunca recusa.
- É realmente verdade que ela nunca recusa? - perguntou ele, ainda não totalmente capaz de acreditar.
- É isso que ensinam a ela, Jondalar. É assim que se comporta uma mulher digna do Clã - respondeu ela, com uma seriedade perfeitamente normal.
- Hum, quer dizer que a escolha é minha? Se eu dissesse vamos ficar aqui e partilhar prazeres, você faria todos esperarem? - Ele tentava ficar sério, mas os olhos piscavam com deleite pelo que considerava a brincadeira particular dos dois.
- Somente se me der o sinal - replicou ela, no mesmo tom.
Ele a tomou nos braços e beijou-a de novo e, sentindo sua pele cálida e uma resposta mais entusiasmada, quase sentiu a tentação de descobrir se ela brincava ou se realmente falava a sério, mas soltou-a com relutância.
- Não se trata do que eu preferia fazer, mas acho melhor deixar você se vestir. As pessoas estarão aqui breve, O que vai usar?
- Não tenho nada, realmente, exceto alguns agasalhos do Clã e o traje que tenho usado, e um par extra de leggings. Gostaria de ter. Deegie me mostrou o que vai vestir. É tão bonito, nunca vi nada igual. Ela me deu uma de suas escovas depois que comecei a escovar o cabelo com cardo - disse Ayla, mostrando a Jondalar a escova dura de pêlo de mamute, enrolada apertadamente em uma extremidade com couro cru para formar o cabo, dando-lhe a forma de uma escova larga e afilada.
- Ela me deu alguns fios de contas e conchas também. Acho que vou usar no cabelo, como ela faz.
- É melhor deixar que se apronte disse Jondalar, abrindo a cortina para sair. Inclinou-se para beijá-la de novo, depois se levantou. Quando a cortina se fechou, ele ficou parado, fitando-a um pouco e uma ruga apareceu em sua testa. Ele gostaria de ter podido ficar com ela, e não ter que se preocupar com outras pessoas. Quando estavam no vale de Ayla, podiam fazer o que queriam, sempre. E ela não estaria se preparando para ser adotada por pessoas que viviam tão longe do seu lar. E se ela quisesse permanecer ali? Ele tinha uma impressão angustiante que, depois daquela noite, nada seria igual.
Ao se virar para afastar-se, Mamut o viu e o chamou. O jovem alto caminhou em direção ao velho feiticeiro.
- Se não estiver ocupado, gostaria de sua ajuda - disse Mamut.
- Ficarei contente em ajudar. O que posso fazer? - perguntou Jondalar.
Mamut lhe mostrou quatro estacas compridas tiradas do fundo de um estrado de estocagem.
Examinando mais de perto, Jondalar viu que não eram de madeira, mas de marfim sólido; presas curvas de mamute que tinham sido moldadas e endireitadas. Depois, o velho lhe deu uma marreta grande, com cabo, de pedra. Jondalar parou para examinar a ferramenta pesada parecida com um martelo, já que nunca havia visto uma igual antes. Era totalmente revestida de couro. Podia sentir que um entalhe circular havia sido chanfrado ao redor da grande pedra e que um junco flexível de salgueiro fora enrolado ao redor do entalhe, depois preso a um cabo de osso. Toda a marreta fora envolvida, então, com couro molhado, não-curtido, que tinha sido apenas raspado para limpar. O couro cru encolhia ao secar, encerrando tanto o cabo quanto a marreta de pedra em couro resistente e duro, mantendo-os assim firmemente unidos.
O feiticeiro o conduziu em direção ao buraco do fogo e, erguendo uma esteira de capim, mostrou-lhe uma escavação, com cerca de 15 centímetros de largura, cheia de pequenas pedras e pedaços de osso. Eles os retiraram. Depois, Jondalar trouxe uma das estacas de marfim e enfiou a extremidade na abertura. Enquanto Mamut a mantinha ereta, Jondalar empilhou as pedras e ossos ao redor da estaca, firmando-os solidamente com a marreta de pedra. Quando a estaca se encontrava firmemente cravada no solo, colocaram outra, e depois outra, em um arco à volta, mas de alguma forma distante, da lareira.
Então o velho pegou um pacote e cuidadosamente, com reverência, desembrulhou-o e retirou uma folha bem enrolada de um material fino, membranoso, de um tipo semelhante ao papel vegetal. Quando se abriu, Jondalar viu que vários animais - um mamute, aves, e um leão da caverna, entre outros - e estranhos desenhos geométricos tinham sido pintados nele. Eles o prenderam em volta das estacas erguidas de marfim, criando uma tela pintada translúcida, afastada da fogueira. Jondalar recuou alguns passos para captar o efeito global; depois, examinou mais de perto, curioso. Os intestinos, depois de abertos, limpos e secos eram geralmente translúcidos, mas aquela tela era feita de alguma outra coisa. Ele pensou saber de que material era, mas não estava seguro.
- A tela não é feita de intestinos, é? Teriam que ser costurados juntos e aquela é uma única peça.
O Mamut concordou com um gesto de cabeça.
- Então, tem que ser a camada de membrana, da parte interior da pele de um animal muito grande, de alguma forma removida inteira.
O velho sorriu.
- Um mamute - falou. - linda fêmea branca de mamute.
Os olhos de Jondalar se arregalaram e ele tornou a olhar para a tela com assombro.
- Cada acampamento recebeu uma parte da fêmea branca, desde que ela entregou seu espírito durante a primeira caçada de uma Reunião de Verão. A maioria dos acampamentos queria alguma coisa branca. Pedi esta, que chamamos de pele irreal. Tem menos substância que qualquer das peças brancas e não pode ser exibida para que todos vejam seu poder óbvio, mas acredito que o que é sutil pode ser mais poderoso. Este é mais que um pequeno pedaço, este cercou o espírito interior do todo.
Brinan e Crisavec irromperam, de repente, no espaço, no meio da Fogueira do Mamute, descendo correndo do corredor das Fogueiras dos Auroques e da Garça, perseguindo um ao outro. Caíram juntos em um monte, lutando, e quase furaram a tela delicada. Mas pararam quando Brinan notou a canela fina de uma perna comprida barrando-lhes a passagem. Eles ergueram os olhos diretamente para o desenho do mamute e ambos arquejaram. Depois, olharam para Mamut. Para Jondalar, o rosto do feiticeiro era sem expressão, mas quando os meninos de sete e oito anos voltaram o olhar para o velho feiticeiro, levantaram-se rapidamente e se esgueiraram com cuidado, caminhando para a primeira fogueira como se tivessem sido severamente censurados.
- Pareciam contritos, quase assustados, mas você não disse uma palavra e nunca tiveram medo de você antes - falou Jondalar.
- Eles viram a tela. Às vezes, quando se considera a essência de um espírito poderoso, pode-se ver o próprio coração.
Jondalar sorriu e concordou com um gesto de cabeça, mas não estava certo de compreender o que o velho feiticeiro queria dizer. Ele fala como um zelandoni, pensou o rapaz, de maneira obscura, como aqueles de sua raça faziam tantas vezes. Mesmo assim, ele não tinha certeza de desejar ver o próprio coração.
Quando os meninos atravessaram a Fogueira da Raposa, fizeram um gesto de cabeça para o escultor, que lhes sorriu. O sorriso de Ranec se tornou mais largo quando voltou sua atenção novamente à Fogueira do Mamute, que estivera observando por algum tempo. Ayla acabava de aparecer, e estava de pé em frente à cortina, puxando sua túnica para endireitá-la. Embora não se pudesse ver em sua pele escura, o rosto de Ranec corou ao ver a moça. Sentiu o coração martelar e uma tensão nos rins.
Quanto mais a via, mais bela ela estava. Os longos raios de sol, infiltrando-se pela abertura para saída da fumaça, dirigiam sua luz cintilante para ela, de propósito, ou assim parecia a Ranec. Ele queria recordar aquele momento, para encher os olhos com a visão de Ayla. Ele pensava nela em hipérbole ardente. Seu cabelo farto, viçoso, caindo em ondas suaves ao redor do rosto, era como uma nuvem dourada brincando com raios de sol; seus movimentos não conscientes de si mesmos possuíam graça suprema. Ninguém conhecia a ansiedade que havia tomado conta dele quando ela partira, ou a felicidade que sentiu por ela estar se tornando Mamutoi. Franziu a testa quando Jondalar a viu, caminhou na direção dela, abraçou-a possessivamente e depois ficou de pé entre eles, bloqueando-lhe a visão.
Eles caminharam juntos até ele quando se dirigiram à primeira fogueira. Ela parou para olhar a tela, com admiração e espanto óbvios. Jondalar a seguiu quando chegaram ao corredor, através da Fogueira da Raposa. Ranec viu Ayla corar com sentimento afetuoso ao vê-lo, antes de abaixar os olhos. O rosto do homem alto ficou rubro quando viu Ranec, também, mas a expressão em seu olhar deixou claro que não havia prazer em sua emoção. Cada homem tentava fazer o outro baixar os olhos quando passaram um pelo outro - o ciúme e raiva violenta de Jondalar eram evidentes, Ranec esforçava-se muito para parecer confiante e cínico. Os olhos de Ranec se dirigiram automaticamente depois para o olhar firme e fixo do homem atrás de Jondalar, o homem que era a essência da espiritualidade para o acampamento e, por alguma razão, se sentiu um pouco desconcertado.
Aproximaram-se da primeira fogueira e saíram pelo vestíbulo de entrada. Ayla começou a compreender por que ela não havia notado os preparativos febris para a festa. Nezzie supervisionava a remoção de folhas murchas e relva fumegante de um buraco para assar, no solo, e os odores que se erguiam faziam todos ficar de água na boca. Os preparativos tinham começado antes de terem ido buscar argila no rio, e a comida estivera cozinhando durante todo o tempo em que trabalharam. Agora, só precisava ser servida ao acampamento de pessoas famintas.
Certa variedade de raízes redondas, amiláceas duras, que se davam bem com cozimento demorado, saíram primeiro, seguidas por cestas de uma mistura de tutano, uva-ursina e uma variedade de sementes partidas e moídas, fedegosa, uma mistura de grãos e sementes oleosas de castanhas. O resultado, após horas de cozimento, era uma consistência compacta como um pudim que retinha a forma da cesta depois que ela era removida e, embora não fosse doce, apesar de as uvas darem-lhe leve sabor de fruta, era deliciosamente rica. Um pernil inteiro de carne de mamute foi trazido em seguida, regado por si mesmo, pelo vapor e espessa camada de gordura, e partindo-se de tão macio.
O sol se punha e um vento cortante fez todos voltarem rapidamente para o interior da moradia, carregando a comida consigo. Desta vez, quando pediram a Ayla que escolhesse primeiro, ela não se mostrou tão tímida. A festa era em sua homenagem e, embora ser o centro das atenções ainda não fosse fácil para ela, estava feliz pelo motivo da celebração.
Deegie veio sentar-se perto dela e Ayla não pôde deixar de encará-la. O cabelo grosso, castanho-avermelhado, de Deegie estava puxado para trás e enrolado num coque que se avolumava ao alto de sua cabeça. Um fio de contas redondas de marfim, cada uma esculpida e furada a mão, havia sido enrolado com o cabelo e realçava como foco contrastante. Ela usava um vestido longo e solto, de couro flexível - Ayla achou que era uma túnica comprida - que caía em pregas suaves da cintura com faixa, tingido de marrom-escuro com um acabamento bastante brilhante, polido. Não tinha mangas, mas era largo nos ombros, dando a aparência de mangas curtas. Uma franja de pêlo de mamute comprido, castanho-avermelhado, caía de seus ombros nas costas e de uma pala na frente em forma de “V”, pendendo até abaixo da cintura.
O decote era contornado por uma fila tripla de contas de marfim e ao redor do pescoço ela usava um colar de conchas cônicas, separadas por tubos cilíndricos de cal e pedaços de âmbar. Em volta do braço direito, havia uma pulseira de marfim gravada com um padrão alternativo em ziguezague. O padrão era repetido em tons de vermelho-ocre, amarelo, e marrom no cinto, que era tecido com pêlo de animal, parte dele tingido. Presa ao cinto por uma alça estava uma faca de sílex e cabo de marfim, numa bainha de couro cru e, suspensa de outra alça, a parte inferior de um chifre oco de auroque negro, uma tigela para beber, que era um talismã da Fogueira dos Auroques.
A saia fora cortada enviesada, começando nos lados acima dos joelhos até uma ponta tanto na frente quanto atrás. Três filas de contas de marfim, uma tira de pele de coelho e uma segunda tira de pele que tinha sido unida de dorsos listrados de vários esquilos acentuavam a bainha enviesada e, pendendo dela, havia outra franja do comprido pêlo protetor externo do mamute lanoso, chegando à parte inferior da barriga da perna. Ela não usava perneiras e suas pernas apareciam através da franja, assim como as botas de cano alto, marrom-escuras, tipo mocassim, polidas para ter um brilho impermeável.
Ayla se encontrou perguntando como faziam o couro brilhar. Todas as suas peles e couros possuíam a textura macia natural de pele de gamo. Mas, principalmente, ela apenas fitava Deegie assombrada, e pensou que ela era a mulher mais bonita que já vira.
- Deegie, isso é bonito... E uma túnica?
- Pode chamar de túnica longa. Realmente é um vestido de verão. Eu o fiz para a Reunião do ano passado, quando Branag se declarou a mim pela primeira vez. Mudei de idéia sobre o traje que iria usar. Eu sabia que ficaríamos no interior e, com toda a comemoração, ficará quente.
Jondalar veio reunir-se a elas e era óbvio que ele também achava Deegie muito atraente. Quando sorriu para ela, o carisma que o tornava irresistivelmente sedutor não apenas transmitiu seu sentimento mas, de alguma forma, o intensificou e provocou a resposta invariável. Deegie sorriu afetuosamente e convidativamente para o homem alto e atraente com os vivos olhos azuis.
Talut se aproximou com uma grande travessa de comida à mão. Ayla arquejou, fitando-o. Ele usava um chapéu fantástico, tão alto em sua cabeça, que roçava o teto. Era feito de couro tingido de várias cores, diversos tipos de pele, inclusive um comprido rabo peludo de esquilo pendurado em suas costas, e as extremidades dianteiras de duas presas de mamute relativamente pequenas projetando-se diretamente para cima de ambos os lados de sua cabeça, e reunidas nas pontas como as arcadas de entrada. Sua túnica, que caía até os joelhos, era marrom-escura - ao menos as partes que ela podia ver eram marrons. A frente era tão ricamente ornamentada, com um padrão complexo de contas de marfim, dentes de animais e várias conchas, que era difícil ver o couro.
Além disso, havia ao redor do pescoço de Talut um colar pesado de garras de leão da caverna e um dente canino, entremeados com âmbar e, pendendo dele até o peito, estava uma placa de marfim gravada com marcas enigmáticas. Um cinto largo de couro negro, usado baixo, cercava-lhe a. cintura e se fechava na frente com laços que pendiam em borlas. Pendendo dele por alças estava uma adaga, feita de ponta de presa de mamute alçada e, para maior vantagem, entrecruzando o punho, uma bainha de couro cru com uma faca de sílex de cabo de marfim, e um objeto redondo com a forma de uma roda e divisões como raios de roda, de onde pendiam, por correias, bolsa, alguns dentes caninos e, mais proeminente, a ponta farta do rabo de um leão da caverna. Uma franja de pêlo comprido de mamute que quase varria o chão revelava, quando ele se movia, que suas perneiras eram tão ornamentadas quanto sua túnica.
Sua proteção para os pés, brilhante e preta, era particularmente interessante, não pela ornamentação, porque não havia nenhuma, mas pela falta de qualquer costura visível. Parecia ser uma peça única de couro macio moldado exatamente como seu pé. Era mais um dos enigmas que Ayla queria decifrar, mais tarde.
- Jondalar, vejo que encontrou as duas mais belas mulheres daqui! - exclamou Talut.
- Tem razão - disse Jondalar, sorrindo.
- Eu não hesitaria em apostar que estas duas poderiam sair-se bem em qualquer companhia - continuou Talut. - Você viajou, o que tem a dizer?
- Eu não discutiria isso. Tenho visto muitas mulheres, mas em lugar algum vi mais bonitas do que aqui - falou Jondalar, olhando diretamente para Ayla. Depois, sorriu para Deegie.
Deegie riu. Gostava do papel secundário, mas não havia dúvida sobre onde estava o coração de Jondalar. E Talut sempre lhe fizera elogios extravagantes; ela era sua herdeira e descendente reconhecida, a filha de sua irmã, que era a filha da mãe de Talut. Ele amava os filhos de sua fogueira e os sustentava, mas eram de Nezzie, e os herdeiros de Wymez, irmão dela. Ela havia adotado Ranec também, desde que a mãe dele morrera, o que o tornava filho da fogueira de Wymez e seu legítimo descendente e herdeiro, mas isso era uma exceção.
Todas as pessoas do acampamento receberam bem a oportunidade de exibir sua elegância e Ayla se esforçava para não encarar uma ou outra. Suas túnicas eram de comprimentos diversos, com ou sem mangas, e em cores variadas, com decorações individuais. Os homens tendiam a usar túnicas mais curtas, mais pesadamente ornamentadas e, em geral, usavam um acessório na cabeça, de algum tipo. As mulheres eram usualmente favoráveis à bainha em forma de “V”, embora a de Tulie fosse mais como uma camisa cintada usada sobre perneiras. Era coberta, com desenhos intrincados e artísticos, por contas, conchas, dentes, marfim esculpido e, principalmente, pesados pedaços de âmbar. Embora não usasse chapéu, seu cabelo estava tão primorosamente arranjado e ornamentado que era como se usasse um.
Entre todas as túnicas, porém, a de Crozie era a mais incomum. Em vez de terminar em ponta na frente, era cortada enviesada em toda a frente, com uma ponta arredondada do lado direito e um corte arredondado do esquerdo. Mais surpreendente, ainda, era sua cor. Era branca, não branco-gelo ou marfim, mas realmente branca e com franja e ornamentação, entre outras coisas, de penas brancas da grande garça do norte.
Até as crianças estavam vestidas para uma cerimônia. Quando Ayla viu Latie de pé na ponta do grupo que rodopiava ao seu redor e de Deegie, pediu a Latie para se aproximar e mostrar seu traje, convidando-a, na verdade, para se reunir a elas. Latie comentou, a caminho, que Ayla usava as contas e conchas que Deegie lhe dera, e achava que ia tentar usá-las daquela forma. Ayla sorriu. Ela não fora capaz de pensar numa maneira de usá-las e, por fim, apenas as torcera juntas e as enrolara ao redor da cabeça, na extensão da testa, do modo como levava sua funda. Latie foi rapidamente incluída na brincadeira geral e corou quando Wymez disse-lhe que ela estava bonita - um cumprimento extravagante de um homem lacônico. Assim que Latie se reuniu ao grupo, Rydag a imitou depressa. Ayla levou-o ao colo. Sua túnica era do mesmo modelo que a de Talut, porém muito menos ornamentada. Ele não poderia carregar o peso. O traje de cerimônia de Talut pesava várias vezes mais o que Rydag pesava. Poucas pessoas seriam capazes de usar apenas seu enfeite de cabeça.
Mas Ranec demorou a aparecer. Ayla notou, várias vezes, a sua ausência e procurou-o mas, quando o viu, foi apanhada de surpresa. Todos tinham gostado de mostrar a Ayla seus trajes de festa só para ver a reação dela. Ranec a estivera observando e quis produzir um efeito especialmente memorável. Assim, voltou à Fogueira da Raposa para mudar de roupa. Ele estivera observando da Fogueira do Leão e esgueirou-se para o lado dela enquanto Ayla estava entretida na conversa. Quando ela virou a cabeça, de repente, ele estava ali e, pelo olhar aturdido da mulher, ele percebeu que havia conseguido o efeito desejado.
O corte e estilo de sua túnica eram raros; seu corpo afunilado e mangas largas em leque davam-lhe uma aparência distintamente diferente e traíam a origem estrangeira da roupa. Não era uma túnica Mamutoi. Era uma que ele havia comprado - e pago caro - mas sabia que precisava tê-la desde o primeiro momento em que a vira. Um homem dos acampamentos do norte tinha feito uma expedição de negócios, alguns anos antes, a um povo ocidental que era parente distante dos Mamutoi, e o líder recebera a camisa como símbolo de laços mútuos e de futuras relações amistosas. Ele não estava inclinado a cedê-la, mas Ranec fora tão persistente e afinal lhe oferecera tanto que ele não conseguiu recusar.
A maioria dos trajes usados pelas pessoas do Acampamento do Leão tinham sido tingidos em tons de marrom, vermelho vivo e amarelo-escuro, e pesadamente decorados com contas de marfim levemente coloridas, dentes, conchas marinhas e âmbar, realçados por peles e penas. A túnica de Ranec era de um marfim-creme, quase tão claro, porém mais rico do que o verdadeiro branco, e ele sabia que fazia um contraste surpreendente com sua pele escura, mas ainda mais assombrosa era a ornamentação. Tanto à frente quanto as costas da camisa foram usadas como fundo para um trabalho feito com espinhos de porco-espinho e cordões fortes que tinham sido tingidos com cores fortes, vivas, primárias.
Na frente da camisa, estava um retrato abstrato de uma mulher sentada, feito de um arranjo de círculos concêntricos em tons de vermelho, laranja, azul, preto e marrom; um conjunto de círculos representava seu ventre, dois mais eram seus seios. Arcos de círculos no interior de círculos representavam os quadris, ombros e braços. A cabeça era um desenho baseado em um triângulo, com um queixo pontudo e o alto achatado, e linhas enigmáticas em vez de feições. No meio dos círculos do seio e do estômago, obviamente destinados a representar o umbigo e os mamilos, estavam granadas vermelhas, vivas, e uma linha de pedras coloridas - turmalinas verdes e rosas, granadas vermelhas, águas-marinhas - tinha sido presa ao longo do alto achatado da cabeça. À parte de trás da camisa mostrava a mesma mulher vista por trás, com porções de círculos ou círculos concêntricos representando as nádegas e ombros. A mesma série de cores se repetia várias vezes ao redor das pontas em sino das mangas.
Ayla apenas fitou, incapaz de falar. Até Jondalar estava surpreso. Ele havia viajado muito, conhecera povos diferentes com muitas formas diversas de se trajar, tanto para fins diários quanto cerimoniais. Havia visto bordado de espinhos e compreendia e admirava o processo de tingir e costurar, mas jamais vira uma roupa tão imponente ou colorida antes, em sua vida.
Quando ela se levantou, todos começaram a retirar a comida, raspar pratos e preparar-se para a cerimônia. Durante o longo inverno próximo, várias festas e cerimônias aconteceriam para acrescentar interesse e mudança a um período relativamente inativo - a Celebração de Irmãos e Irmãs, a Festa da Longa Noite, a Competição do Riso, vários festivais e comemorações em honra da Mãe -, mas a adoção de Ayla era uma ocasião inesperada e, por isto, todos a receberam melhor ainda.
Enquanto as pessoas começavam a se deslocar para a Fogueira do Mamute, Ayla preparou os materiais para fazer fogo, como Mamut havia pedido. Depois, ela esperou, de repente, sentindo-se nervosa e excitada. A cerimônia geral lhe havia sido explicada e também o que esperavam dela, mas ela não fora criada com os Mamutoi. Atitudes aceitas e padrões de comportamento não eram sua segunda natureza e, embora Mamut parecesse compreender e tentasse acalmar seus temores, ela se preocupava por fazer, talvez, algo inadequado.
Estava sentada numa esteira perto do fogo, observando as pessoas. Com o rabo do olho, viu Mamut beber alguma coisa de um só gole. Notou que Jondalar estava sentado em seu estrado-cama, sozinho. Tinha aspecto preocupado e não parecia muito feliz, e ela se encontrou perguntando se estava fazendo a coisa certa ao se tornar uma Mamutoi. Fechou os olhos e enviou um pensamento silencioso ao seu totem. Se o Espírito do Leão da Caverna não quisesse, teria ele lhe dado um sinal?
Ela notou que a cerimônia estava para começar quando Talut e Tulie
- Ayla - disse Nezzie, tirando-lhe o prato -, Mamut quer vê-la, - se aproximaram e ficaram de pé a cada lado dela e Mamut derramou cinzas frias sobre o último fogo que ardia na habitação. Embora houvesse acontecido antes, e o acampamento soubesse o que esperar, aguardar no escuro pelo fogo era uma experiência enervante. Ayla sentiu a mão em seu ombro e produziu a faísca para um coro de suspiros aliviados.
Quando o fogo estava bem vivo, ela se levantou. Talut e Tulie deram um passo à frente, cada um de um lado da jovem, cada um segurando uma comprida haste de marfim. Mamut estava de pé atrás de Ayla.
- Em nome de Mut, a Grande Mãe Terra, estamos aqui para dar boas-vindas a Ayla na habitação do Acampamento do Leão dos Mamutoi. - começou Tulie. - Mas fazemos mais do que acolher esta mulher no Acampamento do Leão.
Ela chegou aqui como estranha, queremos fazê-la uma de nós, fazê-la Ayla dos Mamutoi.
Talut continuou:
- Somos caçadores do grande mamute lanudo que a Mãe nos deu para usar. O mamute é alimento, é roupa, é abrigo. Se honrarmos Mut, Ela fará com que o Espírito do Mamute se renove e volte a cada estação. Se desonrarmos a Mãe, um dia, ou deixarmos de apreciar o Dom do Espírito do Mamute, este partirá e jamais voltará. Assim nos contaram.
- O Acampamento do Leão é como o grande leão da caverna; cada um de nós caminha sem medo e com orgulho. Ayla também caminha, destemida e orgulhosa. Eu, Talut, da Fogueira do Leão, chefe do Acampamento do Leão, ofereço a Ayla um lugar entre os Mamutoi no Acampa mento do Leão.
- É uma grande honra que lhe é oferecida. O que a faz merecedora? - gritou uma voz entre o grupo reunido. Ayla reconheceu a voz de Frebec e ficou contente por lhe terem dito que isso faria parte da cerimônia.
- Ayla provou seu valor pelo fogo que estão vendo. Ela descobriu um importante mistério, uma pedra de onde se pode tirar fogo, e ofereceu esta magia gratuitamente, a cada fogueira - respondeu Tulie.
- Ayla é uma mulher de muitos dons, de muitos talentos - acrescentou Talut à resposta. - Salvando a vida, ela demonstrou seu valor como hábil curandeira. Ao trazer alimento, provou seu valor como caçadora hábil com uma funda, e com uma nova arma que trouxe consigo quando veio, um arremessador de lanças. Pelos cavalos além daquela arcada, ela provou seu valor como domadora de animais. Ela traria estima para qualquer fogueira, e valor para o Acampamento do Leão. Ela é merecedora dos Mamutoi.
- Quem fala por esta mulher? Quem será responsável por ela? Quem lhe oferecerá o parentesco da fogueira? - gritou Tulie, em voz alta e clara, olhando para o irmão. Mas antes de Talut poder replicar, outra voz falou.
- O Mamut fala por Ayla! O Mamut será responsável! Ayla é uma filha da Fogueira do Mamute! - disse o velho feiticeiro, com a voz mais grave, forte e dominadora do que Ayla jamais julgara possível.
Arquejos surpresos e conversas sussurrantes foram ouvidas no espaço obscuro. Todos pensavam que ela seria adotada pela Fogueira do Leão. Aquilo era inesperado... Ou não? Ayla nunca dissera ser feiticeira, ou que queria ser; não se comportava como pessoa familiarizada com o desconhecido e ignorado; não estava treinada para controlar poderes especiais. No entanto, era curandeira. Tinha domínio extraordinário sobre os cavalos, e talvez outros animais. Talvez fosse uma buscadora, talvez até uma chamadora. Ainda assim, a Fogueira do Mamute representava a essência espiritual daqueles filhos da Terra que se chamavam de caçadores de mamutes. Ayla não era capaz, se quer, de expressar-se totalmente em sua língua, ainda. Como alguém que não conhecia seus costumes, e que desconhecia Mut, poderia compreender as necessidades e desejos da Mãe para eles?
- Talut ia adotá-la, Mamut - disse Tulie. - Por que deveria ela ir para a Fogueira do Mamute? Ela não se tem dedicado a Mut, e não está treinada para Servir à Mãe.
- Eu não disse que ela estava treinada, ou que estará um dia, Tulie, embora seja mais dotada do que pode imaginar e acho que o treinamento seria muito indicado, para o bem dela. Não disse que ela será uma filha da Fogueira do Mamute. Eu disse que ela é uma filha da Fogueira do Mamute.
Ela nasceu nela, oferecida pela própria Mãe. Se ela resolver ser treinada ou não, é uma escolha que só ela pode fazer, mas não importa nada. Ayla não tem que se dedicar, está fora de suas mãos. Treinada ou não, sua vida Servirá à Mãe. Falo por ela, a menos que queira, não a aceitarei para treinamento. Quero adotá-la como a filha da minha fogueira.
Enquanto Ayla ouvia o velho, sentiu um arrepio repentino. Não gostava da idéia de que seu destino estava traçado, fora de suas mãos, escolhido para ela quando nascera. O que ele queria dizer com “ela fora oferecida pela Mãe, que sua vida Serviria à Mãe”? Seria ela escolhida pela Mãe também? Creb havia-lhe dito, quando ele explicava sobre totens, que havia uma razão por que o Espírito do Grande Leão da Caverna a escolhera. Disse que ela precisaria de proteção poderosa. O que significava ser escolhida pela Mãe? Era por isto que precisava de proteção? Ou significava que, se ela se tornasse Mamutoi, o Leão da Caverna não seria mais seu totem? Não a protegeria mais? Era um pensamento inquietante. Ela não queria perder seu totem. Agitou-se, tentando afastar a sensação de premonição.
Se Jondalar estivera sentindo inquietação em relação à adoção de Ayla, aquela súbita virada nos eventos o deixou menos à vontade, ainda. Ele ouviu os comentários baixos das pessoas que o cercavam e se perguntou se era verdade que ela estava destinada a se tornar um deles. Talvez ela tivesse até sido Mamutoi antes de se perder, se Mamut dizia que ela nascera na Fogueira do Mamute.
Ranec estava totalmente feliz. Quisera que Ayla se tornasse um deles mas, se fosse adotada pela Fogueira do Leão, seria irmã dele. Ranec não desejava ser irmão dela. Queria unir-se a ela, e irmão e irmã não podiam unir-se. Já que ambos seriam adotados e, obviamente não tinham a mesma mãe, ele estava preparado para encontrar outra fogueira que o adotasse a fim de poder perseguir seu desejo, tanto quanto odiaria desistir de seus laços com Nezzie e Talut. Mas se ela fosse adotada pela Fogueira do Mamute, ele não precisaria fazê-lo. Estava particularmente contente porque ela seria adotada como a filha de Mamut, e não como uma dedicada a Servir, embora nem isso o detivesse.
Nezzie estava um pouco desapontada; já sentia como se Ayla fosse uma filha. Porém, mais importante para Nezzie era que Ayla ficasse com eles e, se Mamut a queria, isso a tornaria ainda mais aceitável no Conselho da Reunião de Verão. Talut lançou-lhe um olhar e, quando ela concordou com um gesto de cabeça, ele cedeu a Mamut. Tulie tampouco tinha qualquer objeção. Os quatro conferenciaram depressa e Ayla concordou. Por alguma razão que não podia definir exatamente, agradou-lhe ser a filha de Mamut.
Quando a habitação escurecida silenciou de novo, Mamut ergueu a mão, a palma virada para trás, de frente para ele.
- A mulher Ayla quer dar um passo à frente?
O estômago de Ayla se revolveu e os joelhos fraquejaram quando se acercou do velho.
- Quer ser uma dos Mamutoi? - perguntou ele.
- Sim - cochichou ela, a voz partindo-se.
- Honrará Mut, a Grande Mãe, venerará todos os seus Espíritos e, especialmente, nunca ofenderá o Espírito do Mamute; fará um esforço para ser digna dos Mamutoi, para trazer honrarias ao Acampamento do Leão e sempre respeitará Mamut e o significado da Fogueira do Mamute?
- Sim - ela mal podia dizer mais. Não estava segura sobre o que de veria fazer para realizar tudo aquilo, mas com certeza, tentaria.
- Este acampamento aceita esta mulher? - perguntou Mamut ao grupo.
- Nós a aceitamos - responderam juntos.
- Existe alguém aqui que a recuse?
Houve longa pausa e Ayla não tinha certeza se Frebec não iria objetar, mas ninguém retrucou.
- Talut, chefe do Acampamento do Leão, quer gravar a marca? - entoou Mamut.
Quando Ayla viu Talut tirar a faca da bainha, seu coração bateu de pressa. Aquilo era inesperado. Ela ignorava o que ele faria com a faca, mas, o que quer que fosse, ela estava certa de que não iria gostar. O grande chefe pegou o braço de Ayla, levantou sua manga, e pousou a faca de sílex; depois, cortou rapidamente em linha reta o seu braço, fazendo sangrar. Ayla sentiu a dor, mas não se retraiu. Com o sangue ainda molhando a faca, Talut fez uma marca reta no pedaço de marfim pendurado como placa em volta de seu pescoço, que Mamut segurava, fazendo uma estria avermelhada. Depois, Mamut pronunciou algumas palavras que Ayla não compreendeu. Ela não percebeu que ninguém as entendeu, também.
- Ayla faz parte, agora, do povo do Acampamento do Leão, uma entre os caçadores de Mamute - disse Talut. - Esta mulher é e será sempre Ayla dos Mamutoi.
Mamut pegou uma pequena tigela e derramou um líquido que ardia sobre o corte em seu braço - ela compreendeu que era uma solução anti-séptica para limpar -, depois ele a fez virar-se de frente para o grupo.
- Bem-vinda seja, Ayla dos Mamutoi, membro do Acampamento do Leão, filha da Fogueira do Mamute. - Fez uma pausa, acrescentando: - Escolhida do Espírito do Grande Leão da Caverna.
O grupo repetiu as palavras e Ayla compreendeu que era a segunda vez em sua vida que ela havia sido acolhida, aceita, e feita membro de um povo cujos costumes mal conhecia. Fechou os olhos, ouvindo as palavras ecoarem em sua mente. Depois, lhe ocorreu. Mamut havia incluído o seu totem! Embora ela não fosse Ayla do Clã, não havia perdido seu totem! Ainda estava sob a proteção do Leão da Caverna. Porém, ainda mais: ela não era Ayla de Nenhum Povo; ela era Ayla dos Mamutoi.
- Você sempre pode reivindicar o abrigo da Fogueira do Mamute, onde quer que esteja, Ayla. Por favor, aceite esta lembrança, filha da minha fogueira - disse Mamut enquanto retirava um bracelete de marfim esculpido com linhas em ziguezague do braço e prendia as extremidades furadas no braço de Ayla, exatamente abaixo do corte. Então, deu-lhe um abraço afetuoso.
Ayla tinha lágrimas nos olhos quando foi para o estrado-cama, onde seus presentes estavam expostos, mas ela os afastou antes de pegar uma tigela de madeira. Era redonda, forte, mas de finura uniformemente requintada. A tigela não exibia desenho pintado ou esculpido, somente um padrão sutil de fibras da madeira, mas com equilíbrio simétrico.
- Por favor, aceite o presente da tigela de remédio da filha da fogueira, Mamut - disse Ayla. - E, se permite, a filha da fogueira encherá a tigela todos os dias com remédio para articulações doloridas dos dedos e braços e joelhos.
- Ah, eu daria boas-vindas a algum alívio da minha artrite neste inverno - disse ele com um sorriso, pegando a tigela e passando-a a Talut, que a examinou, sacudiu a cabeça aprovando, e passou-a a Tulie.
Tulie examinou-a de forma crítica, primeiro julgando que era um objeto simples porque não tinha o desenho adicional, nem pintado, nem esculpido, a que estava acostumada. Mas ao olhar com mais atenção, correndo as pontas dos dedos sobre o acabamento notavelmente liso, notando a forma perfeita e a simetria, teve que admitir que era realmente uma obra artesanal muito bem-feita, talvez a melhor do seu tipo que ela já vira. Quando a tigela foi passada de mão em mão, despertou interesse e curiosidade sobre os outros presentes que Ayla trouxera, já que cada pessoa começou a se perguntar se todos os presentes seriam igualmente belos e raros.
Talut avançou em seguida e deu a Ayla um grande abraço. Depois, presenteou-a com uma faca de sílex de cabo de marfim, em uma bainha de couro cru tingido de vermelho, que era esculpida com um desenho intrincado, semelhante à faca que Deegie usava em seu cinto. Ayla pegou a faca, retirou-a da bainha e suspeitou imediatamente de que a lâmina havia sido feita, provavelmente, por Wymez, e desconfiou de que Ranec esculpira e moldara o cabo.
Ayla trouxe uma pilha pesada de pele escura para Talut. Ele sorriu largamente quando sacudiu a capa feita de uma pele inteira de bisão e colocou-a sobre os ombros. A cabeleira espessa e a capa aos ombros faziam o homem grande parecer ainda maior do que era, e ele gostou do efeito. Depois, notou a maneira como a capa se prendia aos seus ombros e descia em dobras flexíveis, e examinou com mais atenção o interior macio e maleável do manto que aquecia.
- Nezzie! Veja isto - disse ele. - Já viu pele mais macia? E aquece. Acho que não quero que isto se transforme em coisa alguma, nem mesmo uma parka! Vou usar exatamente como está!
Ayla sorriu diante do deleite de Talut, satisfeita por seu presente ser tão admirado. Jondalar estava recuado, observando acima de várias cabeças que se amontoavam para ver, divertindo-se com a reação de Talut também. Ele a havia previsto, mas era bom ver que suas expectativas se tornavam reais.
Nezzie deu um abraço afetuoso em Ayla, e depois um colar de conchas combinadas e gradualmente em espiral, cada uma separada, por pequenas partes cuidadosamente serradas, dos ossos duros e ocos das pernas da raposa ártica e, pendurado como um pingente na frente, um grande dente canino de um leão de caverna. Ayla o segurou enquanto Tronie o amarrava nas costas. Depois, ela abaixou os olhos e admirou-o, erguendo o dente do leão de caverna e se perguntando como conseguiram fazer a abertura através da raiz.
Ayla afastou para um lado a cortina em frente ao estrado e trouxe uma cesta com tampa muito grande, e colocou-a aos pés de Nezzie. Parecia bastante simples. Nenhum capim de que fora feita havia sido tingido, e nenhum padrão colorido de desenhos geométricos ou figuras estilizadas de aves ou animais enfeitava os lados da tampa. Mas, examinando melhor, a mulher notou o desenho sutil, e viu como fora feito com perícia. Ela sabia que era impermeável o bastante para ser uma cesta de cozinhar.
Nezzie ergueu a tampa e examinou-a e todo o acampamento notou a sua surpresa. A cesta, dividida em partes por casca de vidoeiro flexível estava cheia de alimentos. Havia pequenas maçãs consistentes, cenouras silvestres doces e apimentadas, descascadas, raízes nodosas de amendoim, cerejas secas estocadas em buracos, botões de hemerocales secos, mas ainda verdes, ervilhaca redonda, verde, seca na vagem, cogumelos secos, hastes secas de cebolas verdes, e algumas porções e folhas secas não-identificáveis. Nezzie riu calorosamente para Ayla ao examinar a seleção. Era um presente perfeito.
Tulie se acercou em seguida. Seu abraço de boas-vindas não deixou de ser afetuoso, porém foi mais formal, e sua apresentação do presente dado a Ayla, embora não exatamente feita com um floreio, demonstrou um sentido adequado de cerimônia. O presente era um pequeno recipiente, primorosamente decorado. Fora esculpido na madeira, na forma de uma pequena caixa com os cantos arredondados. Desenhos de peixe foram esculpidos e pintados nela e pedaços de concha também colados sobre ela. O desenho total dava a impressão de água cheia de peixes e plantas submarinas. Quando Ayla levantou a tampa, encontrou a finalidade de uma caixa tão valiosa. Estava cheia de sal.
Ela fazia alguma idéia do valor do sal. Quando fora criada com o Clã, que vivia perto do mar Beran, ela havia aceito o sal como algo natural. Era bastante fácil de obter, e alguns dos peixes eram até defumados com ele, mas no interior, quando ela vivera em seu vale, não havia sal, e ela levara algum tempo para se acostumar com isso. O Acampamento do Leão era mais distante do mar do que o seu vale. O sal, assim como conchas marinhas, tinha que ser transportado por longa distância. No entanto, Tulie havia-lhe dado a caixa inteira de sal. Era presente caro e raro.
Ayla se sentiu adequadamente atemorizada quando exibiu seu presente para a chefe, e esperava que Jondalar estivesse certo ao sugerir o que seria apropriado. A pele que ela escolhera era de um leopardo da neve, um que tentara roubar-lhe um animal caçado no inverno em que ela e Neném aprendiam a caçar juntos. Ela havia planejado assustá-lo para que se afastasse mas o leão de caverna adolescente tinha outras idéias. Ayla havia aturdido o felino maduro, embora pequeno, com urna pedra de sua funda quando parecia que aconteceria uma luta, e depois resolvera tudo com outra pedra.
O presente foi obviamente inesperado, e os olhos de Tulie mostraram seu prazer, mas somente quando sucumbiu à tentação de atirar ao redor dos ombros a pele luxuriante e grossa de inverno, notou sua qualidade única, a mesma qualidade que Talut observara na sua. Era inacreditavelmente macia do lado de dentro. Em geral, as peles eram mais rijas do que o couro Por sua natureza, a pele só podia ser trabalhada de um lado com as raspadeiras usadas para esticar e amaciar. Enquanto o método dos Mamutoi para preservar peles tornava o material mais resistente e duradouro do que o de Ayla, que era coberto apenas de gordura, também tornava o couro menos macio e flexível. Tulie ficou mais impressionada do que esperara, e resolveu que descobriria qual era o método de Ayla.
Wymez se aproximou com um objeto enrolado em urna pele macia. Ela abriu e prendeu a respiração. Era uma ponta de lança magnífica, como as que ela admirara tanto. Brilhava à luz do fogo como uma pedra preciosa facetada, e era muito valiosa. O presente de Ayla para ele era uma esteira de capim resistente para ele sentar-se quando trabalhava. A maior parte do trabalho de entrelaçamento de Ayla em cestas e esteiras não tinha desenhos coloridos mas, no último inverno, em sua caverna, ela começara a experimentar capins diferentes que tinham variações de cor naturais. O resultado, em combinação com seus padrões comuns de tecer, foi uma esteira com um padrão sutil, mas nitidamente estrelado. Ela ficara bastante satisfeita quando fez a esteira e, quando escolhia os presentes, os raios pontiagudos projetando-se do centro lembraram-lhe as belas pontas de lança de Wymez, e a textura entrelaçada era sugestiva das pequenas estrias de lascas de madeira que ele descarnava. Ela se perguntou se ele notaria.
Depois de examinar o presente, ele lhe enviou um dos seus raros sorrisos.
- Isto é bonito, lembra-me o trabalho feito pela mãe de Ranec. Ela entendia de tecer com capins mais do que todos os que conheci. Imagino que deveria guardá-la, pendurá-la na parede, mas em vez disso, vou usá-la. Sentarei nela enquanto trabalho. Ajudará a lembrar-me do meu propósito. - Seu abraço de boas-vindas não possuía nada da reserva de sua maneira de falar. Ela compreendeu que, sob o aspecto tranqüilo, Wymez era um homem de afeição amistosa e sentimento perceptivo.
Não havia seqüência especial, ou ordem, para dar os presentes, e a próxima pessoa que Ayla notou, de pé perto do estrado, esperando para chamar sua atenção, foi Rydag. Ela se sentou perto dele e retribuiu seu abraço forte. Depois, ele abriu a mão e estendeu um comprido tubo redondo, o osso oco da perna de uma ave, com buracos feitos nele. Ela pegou-o e virou-o nas mãos, incerta sobre seu propósito. Ele o pegou de novo, levou-o à boca e soprou. O apito emitiu um som alto, agudo. Ayla experimentou-o e sorriu. Depois, ela lhe deu um capuz impermeável de carcaju para o frio, feito no estilo do Clã, mas ela sentiu uma dor lancinante quando ele o colocou. Ele a recordava demais Durc.
- Eu lhe dei um apito como esse, para me chamar quando precisar de mim. Às vezes, ele não tem força suficiente para gritar, mas consegue soprar o apito - explicou Nezzie -, mas ele mesmo fez esse.
Deegie a surpreendeu com o traje que ela planejara usar naquela noite. Quando viu a expressão nos olhos de Ayla diante do traje, resolveu dá-lo a ela. Ayla ficou sem palavras, e apenas fitou o presente até seus olhos se encherem de lágrimas.
- Nunca tive nada para vestir que fosse tão bonito.
Então, deu seu presente a Deegie, uma pilha de cestas e várias tigelas de madeira lindamente acabadas, de vários tamanhos, que podiam ser usadas como xícaras ou para sopas, ou mesmo para cozinhar, para que Deegie usasse em sua fogueira depois que se unisse a Branag. Em uma região em que a madeira era relativamente rara e o osso e marfim mais comumente usados para utensílios, as tigelas eram um presente especial. Ambas estavam encantadas, e se abraçaram com o afeto de irmãs.
Frebec, para mostrar que não lhe dava um presente decente de má vontade, deu-lhe um par de botas de pele de cano alto, decoradas e encanudadas perto da parte superior, e ela ficou contente por ter escolhido uma de suas melhores peles de rena para ele. O pêlo da rena era oco, um tubo minúsculo cheio de ar, e naturalmente, isolante. A pele de verão era a mais quente e mais leve, a mais prática e confortável para se usar durante o tempo frio, nas caçadas e, portanto, a mais valiosa. Das peças que ela lhe deu podia-se fazer um traje completo de túnica e calças, que seriam tão quentes, que seria necessário apenas uma única vestimenta externa, mesmo durante o tempo mais frio, liberando-o de peso volumoso. Ele observou a maciez de suas peles terminadas, como os outros tinham feito, mas não fez comentário a respeito e seu abraço de boas-vindas foi frio.
Fralie deu-lhe luvas de pele para combinar com as botas e Ayla presenteou a mulher grávida com uma bela tigela de cozinhar de madeira, cheia com uma bolsa de folhas secas.
- Espero que goste deste chá, Fralie - disse, encarando-a, como se quisesse enfatizar as palavras.
- E bom tomar uma xícara de manhã, assim que acordar, e talvez outra de noite, antes de dormir.
Se gostar, eu lhe darei mais quando este terminar.
Fralie concordou com um gesto de cabeça enquanto se abraçavam. Frebec olhou para elas desconfiado, mas Ayla estava apenas dando um presente, e ele mal poderia reclamar do presente que o mais novo membro do Acampamento do Leão dera a Fralie, não é? Ayla não estava inteiramente feliz com as circunstâncias. Ela preferiria cuidar de Fralie direta e abertamente, mas o subterfúgio era melhor do que não ajudá-la de modo algum, e Fralie se recusava a ficar numa situação, em que talvez parecesse que ela fazia uma escolha entre sua mãe e seu companheiro.
Crozie avançou em seguida e balançou a cabeça aprovadoramente para Ayla. Depois, entregou-lhe uma pequena sacola de couro, unida dos lados por uma costura e fechada na parte superior. A bolsa era tingida de vermelho, lindamente decorada com pequenas contas de marfim, e bordada em branco com triângulos de vértices voltados para baixo. Pequenas penas de garça branca estavam enfileiradas ao redor da borda circular do fundo. Ayla a admirou, mas quando não fez qualquer menção de abri-la, Deegie lhe disse para fazê-lo. Dentro havia cordões e correntes feitos de lã de mamute, tendões, peles de animais e fibras vegetais, tudo cuidadosamente tecido em círculos ou em volta de pequenas falanges de osso. O saco de costura também continha lâminas aguçadas e sovelas para cortar e furar. Ayla ficou encantada. Ela desejava aprender o método dos Mamutoi fazerem e decorarem roupas.
Tirou de seu estrado uma pequena tigela de madeira com uma tampa bem ajustada e entregou-a à velha. Quando Crozie a abriu, olhou para Ayla com expressão intrigada. Estava cheia de puro sebo branco marmorizado, amolecido - gordura animal sem sabor, incolor, sem odor que havia sido derretida em água fervente. Ela cheirou e sorriu, mas ainda estava intrigada.
- Faço água de rosa, de pétalas... Misturo... Com outras coisas - começou a explicar Ayla.
- Imagino que é isto que faz cheirar bem, mas para o que é? - perguntou Crozie.
- E para as mãos, rosto, cotovelos, pés. E bom, amacia - disse Ayla, pegando uma pequena quantidade e esfregando-a na mão velha, enrugada, seca, rachada da mulher. Depois da mão esfregada, Crozie tocou-a, em seguida fechou os olhos e sentiu lentamente a pele mais macia. Quando a velha abriu os olhos, Ayla achou que eles brilhavam mais, embora não houvesse nenhuma lágrima à mostra, mas quando a mulher lhe deu um abraço forte de boas-vindas, Ayla sentiu-a tremendo por dentro.
Cada presente trocado fazia todos esperarem o próximo com maior ansiedade, e Ayla estava gostando tanto de dar quanto de receber. Seus presentes eram tão incomuns para eles, quanto os deles o eram para ela, e era tão divertido ver seus presentes bem-aceitos quanto se sentir desarmada pelos presentes que lhe eram dados. Ela jamais se sentira tão especial, nunca a tinham feito sentir-se tão bem acolhida, tão querida. Se ela se permitisse pensar nisso, lágrimas de alegria ameaçariam rolar.
Ranec se demorava, esperando que todos os outros tivessem trocado presentes com Ayla. Queria ser o último, assim seu presente não seria confundido com os outros. Entre todos os presentes especiais e únicos que ela recebera, ele queria que o seu fosse o mais lembrado. Ayla colocava suas coisas sobre o estrado que estava tão cheio quanto quando ela começara, quando viu o presente que havia escolhido para Ranec. Teve que refletir um momento antes de compreender que não trocara presentes com ele, ainda. Com o presente nas mãos, ela se virou para olhar para ele, somente para se encontrar diante dos dentes de seu sorriso provocante.
- Esqueceu de um para mim? - perguntou ele. Ele estava de pé tão perto, que ela podia ver as grandes pupilas negras e, pela primeira vez, fracas riscas de luz convergentes dentro dos olhos castanhos-escuros - seus olhos escuros penetrantes, transparentes, sedutores. Ela sentiu um calor emanando dele que a desconcertou.
- Não, ah... Não esqueci... Aqui está - disse ela, lembrando-se que o presente estava em suas mãos e erguendo-o. Ele abaixou os olhos e estes mostraram seu prazer diante das peles espessas, viçosas, brancas, de inverno, de raposas árticas, que ela lhe estendeu. O momento de hesitação lhe deu a chance de se recompor e, quando ele tornou a olhá-la, os olhos de Ayla tinham um sorriso provocante. - Acho que você esqueceu.
Ele riu, tanto porque ela foi muito rápida em entender e participar de sua brincadeira, quanto porque isso lhe dava uma abertura apropriada para apresentar seu presente.
- Não, não esqueci. Aqui - disse ele e exibiu um objeto que estivera escondendo atrás das costas. Ela olhou para a peça de marfim esculpido aninhada nas mãos dele, e quase não acreditou no que viu. E mesmo quando ele a liberou das peles brancas que segurava, ela não estendeu a mão para o presente. Tinha quase medo de tocar nele. Ergueu a cabeça para Ranec com assombro genuíno.
- Ranec - ela respirou, estendendo as mãos então, hesitando. Ele teve que colocá-lo em suas mãos e depois ela o segurou como se fosse quebrar. - É Whinney! É como pegar Whinney e fazê-la menor - exclamou ela, virando o primoroso cavalo de marfim esculpido, com uns 7 centímetros no máximo de comprimento, nas mãos. Um toque de cor fora aplicado à escultura: amarelo-ocre sobre o pêlo, e preto nas pernas, na crina rígida e ao longo do dorso até o rabo para combinar com o colorido de Whinney. - Veja, as orelhas pequenas, exatamente iguais. E os cascos e o rabo. Até sinais, como o seu pêlo. Oh, Ranec, como faz isso?
Ranec não poderia se sentir mais feliz quando lhe deu um abraço de boas-vindas. A reação de Ayla foi exatamente aquela que ele esperava, até sonhara, e a expressão de amor nos olhos dele quando a encarou era tão óbvia que trouxe lágrimas aos olhos de Nezzie. Ela lançou um olhar a Jondalar e notou que ele tinha visto também. A angústia surgiu no semblante dele. Ela sacudiu a cabeça, sabiamente.
Depois da troca de todos os presentes, Ayla foi até a Fogueira dos Auroques com Deegie a fim de vestir seu novo traje. Desde que Ranec comprara a camisa estrangeira, Deegie tentara igualar a cor.
Afinal, chegara perto, e do couro cor de creme ela fizera uma túnica de mangas curtas e decote em “V” com bainha também em “V”, e perneiras para combinar, cintada com cordões de cores vivas tecidos a mão, semelhantes às cores dos desenhos da camisa. O verão passado ao ar livre deixou a pele de Ayla bastante bronzeada e seu cabelo louro mais claro, quase da cor do couro. O traje caía tão bem nela como se houvesse sido feito sob encomenda.
Com a ajuda de Deegie, Ayla recolocou o bracelete de marfim de Mamut; depois, acrescentou a faca de bainha vermelha de Talut e o colar de Nezzie, mas quando a jovem Mamutoi sugeriu que ela tirasse o saquinho de couro gasto, manchado, encrespado, de volta do pescoço, Ayla recusou com veemência.
- E meu amuleto, Deegie. Contém o Espírito do Leão da Caverna, do Clã, meu. Pequenas peças, como a escultura de Ranec é Whinney em tamanho menor. Creb me disse que se eu perdesse meu amuleto, o totem não poderia me achar. Eu morreria - tentou explicar Ayla.
Deegie refletiu por um momento, olhando para Ayla. Todo o efeito era estragado pelo saquinho de couro encardido. Mesmo a correia ao redor do pescoço estava gasta, mas isso lhe deu uma idéia.
- Ayla, o que faz quando fica gasta? Essa tira de couro parece que vai se partir breve - disse Deegie.
- Faço saquinho novo e correia nova.
- Então, não é o saquinho que é tão importante, mas o que há dentro dele, não é?
- É...
Deegie olhou ao redor e, de repente, localizou o saco de costura que Crozie havia dado a Ayla. Ela o pegou, esvaziou-o de seus conteúdos com cuidado em um estrado, e estendeu-o a Ayla.
- Há alguma razão para não usar isto? Podemos prendê-lo a um fio de contas... Um dos seus cabelos será ótimo... E você poderá colocar ao redor do pescoço.
Ayla pegou o saco bonito, decorado, da mão de Deegie examinou-o, passou depois a mão em volta do velho saquinho familiar de couro e teve a sensação de conforto que o amuleto do Clã lhe dava. Mas ela não era mais do Clã. Não perdera seu totem. O Espírito do Leão da Caverna ainda a protegia, e os sinais que recebera ainda eram importantes, mas agora ela era Mamutoi.
Quando Ayla voltou para a Fogueira do Mamute era, em cada centímetro, uma mulher Mamutoi, bela, bem-vestida, de status elevado e valor óbvio, e todos os olhos mostraram expressões aprovadoras pelo mais novo membro do Acampamento do Leão. Mas dois pares de olhos mostravam mais que aprovação. Amor e desejo brilhavam em olhos escuros, sorridentes, cheios de ansiosa esperança, não menos que em olhos miseravelmente infelizes de um tom de azul incrivelmente vivo.
Manuv, com Nuvie ao colo, sorriu afetuosamente para Ayla quando ela passou para guardar suas outras roupas e ela sorriu com alegria. Também, tão cheia de júbilo e felicidade que imaginou não ser capaz de contê-las. Ela era Ayla dos Mamutoi e faria tudo o que pudesse para ser uma entre eles, integralmente. Então, viu Jondalar falando com Danug, somente de costas, mas sentiu seu regozijo desaparecer. Talvez fosse a postura dele, ou a maneira como estavam seus ombros, mas algo em um nível subconsciente a fez parar. Jondalar não estava feliz. Mas, o que ela poderia fazer a respeito naquele momento?
Ela se apressou para pegar as pedras-de-fogo. Mamut lhe havia dito para esperar até mais tarde antes de dá-las. Uma cerimônia apropriada investiria as pedras de importância própria e acentuaria seu valor. Ela pegou os nódulos pequenos, cinza-amarelados, de colorido metálico de pirita de ferro e levou-os com ela para a fogueira. No caminho, passou por trás de Tulie que conversava com Nezzie e Wymez, e ouviu-a dizer:
- . . .Mas eu não imaginava que ela possuía tantos bens. Vejam as peles, apenas. A pele de bisão e as de raposa branca, e esta do leopardo da neve.., Não se vêem muitas delas por aí...
Ayla sorriu enquanto sua sensação de alegria voltava. Seus presentes tinham sido aceitos e apreciados.
O velho feiticeiro não estivera ocioso. Enquanto ela trocara de roupa, Mamut fez o mesmo. Seu rosto estava pintado com linhas em ziguezague que acentuavam e realçavam sua tatuagem, e ele usava como capa a pele de leão da caverna, o mesmo leão da caverna cujo rabo Talut exibia. O colar de Mamut era feito de pequenas partes ocas da presa de um mamute pequeno, entremeadas com dentes caninos de vários animais diferentes, incluindo um leão da caverna que combinava com o dela.
- Talut planeja uma caçada, assim vou fazer uma Busca - disse-lhe o feiticeiro. - Junte-se a mim, se puder... E quiser. De qualquer maneira, prepare-se.
Ayla concordou com um gesto de cabeça, mas seu estômago se revolveu.
Tulie aproximou-se da fogueira e lhe sorriu.
Eu não sabia que Deegie ia lhe dar essa roupa - disse ela. - Não estou certa de que aprovaria antes; ela trabalhou arduamente no traje, mas devo admitir que fica muito bem em você, Ayla.
Ayla sorriu apenas, incerta sobre como responder.
- Foi por isso que eu dei, mãe - disse Deegie, aproximando-se com seu instrumento de caveira. - Eu tentava descobrir o processo para conseguir que o couro terminado resultasse tão claro. Sempre posso fazer outro traje.
- Estou pronto - anunciou Tornec quando chegou com seu instrumento de osso de mamute.
- Ótimo. Podem começar assim que Ayla entregar as pedras - disse Mamut. - Onde está Talut?
- Está servindo sua bebida - respondeu Tornec, sorrindo -, e com grande generosidade. Ele disse que quer que esta seja uma celebração adequada.
- E será! - exclamou o grande chefe. - Aqui está, Ayla, eu lhe trouxe uma taça. Afinal, você é a razão para esta comemoração!
Ayla provou a bebida, ainda achando que o sabor fermentado não era muito do seu gosto, mas todos os Mamutoi pareciam gostar. Ela resolveu que aprenderia a gostar também. Queria ser um deles, fazer o que faziam, gostar do que gostavam. Bebeu. Talut tornou a encher sua taça.
- Talut lhe dirá quando deve começar a dar as pedras, Ayla. Produza uma faísca pelo atrito antes de dar cada uma delas - instruiu Mamut. Ela concordou com um gesto de cabeça, olhou para a taça em sua mão, depois bebeu o conteúdo, balançando a cabeça diante da bebida forte e pousou a taça para pegar as pedras.
- Ayla, agora, pertence ao Acampamento do Leão - disse Talut assim que todos se sentaram -, mas ela tem mais um presente. Para cada fogueira, uma pedra de fazer fogo. Nezzie é a zeladora do Acampamento do Leão. Ayla lhe dará a pedra-de-fogo para ela guardar.
Ao caminhar em direção a Nezzie, Ayla esfregou a pirita de ferro com sílex, produzindo uma faísca brilhante, e depois lhe entregou a pedra.
- Quem é o zelador da Fogueira da Raposa? - continuou Talut enquanto Deegie e Tornec começaram a bater nos seus instrumentos de osso.
- Eu. Ranec é o zelador da Fogueira da Raposa.
Ayla lhe deu uma pedra e feriu-a. Mas, quando lhe entregou a pedra, ele cochichou em voz cálida:
- As peles de raposa são as mais macias e bonitas que já vi. Eu as porei em minha cama e pensarei em você todas as noites, quando sentir sua maciez contra minha pele nua. - Tocou-lhe o rosto de leve, apenas, com as costas das mãos, mas ela sentiu o contato como um choque físico.
Recuou, confusa, enquanto Talut perguntava pelo zelador da Fogueira da Rena, e teve que ferir a pedra-de-fogo duas vezes antes de conseguir uma centelha para Tronie. Fralie recebeu a pedra pela Fogueira da Garça e, quando Tulie pegou a sua, e Ayla deu uma a Mamut para a Fogueira do Mamute, ela se sentia tonta e desejando muito sentar-se perto do fogo onde Mamut indicou.
Os tambores começaram a produzir seu efeito. O som era calmante e compulsivo ao mesmo tempo. A habitação estava escura - um fogo pequeno e difuso através da tela era a única claridade. Ela podia ouvir uma respiração próxima, e olhou para ver de onde vinha. Agachado perto da fogueira estava um homem - ou era um leão? A respiração se tornou um rugido baixo, quase, mas não exatamente - para seu ouvido perceptivo - como o rugido de advertência de um leão da caverna. O rufo de tambor vocalizado retomou o som, dando-lhe ressonância e profundidade.
De repente, com uma rosnadela selvagem, a figura do leão saltou, e a silhueta de um leão percorreu a tela. Mas, quase parou de um salto em uma resposta sobressaltada à reação não-intencional de Ayla. Ela desafiou o leão sombrio com um rugido tão realista e tão ameaçador, que provocou um arquejo na maior parte das pessoas presentes. A silhueta recuperou sua postura de leão e respondeu com o rugido tranqüilo de um leão que recuava. Ayla expressou uma rosnadela irada de vitória, depois começou uma série de “hnk, hnk, hnk”, roncos que diminuíram como se o leão estivesse se afastando.
Mamut sorriu consigo mesmo. Seu leão é tão perfeito que enganaria um leão, pensou, satisfeito por ela ter-se unido a ele espontaneamente. Ayla não sabia por que o fizera, exceto que, depois de seu primeiro desafio improvisado, era divertido falar como um leão com Mamut. Ela não havia feito nada parecido desde que Neném deixara o seu vale. Os tambores tinham captado e realçado a cena, mas agora acompanhavam o vulto que se movia sinuosamente pela tela. Ela estava bastante próxima para ver que era Mamut quem produzia a ação, mas mesmo ela foi envolvida pelo efeito. Ela se perguntou, no entanto, como o velho normalmente rígido e artrítico era capaz de se mover com tanta facilidade. Então, lembrou-se de vê-lo engolindo alguma coisa antes, e desconfiou de que devia ter sido um analgésico forte. Provavelmente, ele sofreria as conseqüências no dia seguinte.
De súbito, Mamut saltou de trás da tela e se agachou perto do tambor de caveira de mamute. Bateu nele rapidamente por curto tempo, depois parou abruptamente. Ergueu uma taça que Ayla não notara, bebeu e aproximando-se da jovem, ofereceu-lhe a bebida. Sem nem sequer refletir a respeito, Ayla tomou um pequeno gole, depois outro, embora o sabor fosse forte, almiscarado e desagradável. Encorajada pelos tambores ruidosos, ela começou a sentir logo os efeitos.
As chamas saltitantes atrás da tela davam aos animais pintados nela uma sensação de movimento. Ela foi atraída por eles, concentrou ali toda a sua atenção, e ouviu somente ao longe as vozes do acampamento começando a cantar. Um bebê chorou, mas o som parecia vir de um outro mundo, enquanto era atraída pelo estranho movimento ondulante dos animais na tela. Eles pareciam quase tão vivos quanto a música dos tambores a enchia de cascos que martelavam, de bezerros que gritavam, de mamutes que trombeteavam.
Então, não estava mais escuro. Em vez disso, um sol brumoso olhava para uma planície nevoenta. Um pequeno rebanho de bois almiscarados estava amontoado, uma nevasca rodopiando à sua volta. Quando ela se precipitou, sentiu que não estava sozinha. Mamut se encontrava com ela. A cena mudou. A tempestade passara, mas demônios da neve levados pelo vento gemiam através das estepes como aparições fantasmáticas. Ela e Mamut se afastaram do deserto desolador. Então, ela viu alguns bisões de pé, estoicamente, no lado abrigado de um vale estreito, tentando permanecer fora do alcance do vento. Ela corria à frente, disparando ao longo do vale do rio que atravessava ravinas profundas. Eles acompanharam um afluente que se estreitava num desfiladeiro de muralhas escarpadas à frente, e ela viu a trilha secundária familiar que subia o leito seco de um riacho periódico.
E depois, ela se encontrava num local escuro, os olhos abaixados para uma pequena fogueira e pessoas reunidas ao redor de uma tela. Ouviu um canto lento, uma repetição contínua de som. Quando pestanejou e viu os rostos toldados, percebeu Nezzie e Talut e Jondalar fitando-a com expressões preocupadas.
- Você está bem? - perguntou Jondalar, falando Zelandonii.
- Sim, sim. Estou bem, Jondalar. O que aconteceu? Onde eu estava? Você terá que me contar.
- Como se sente? - indagou Nezzie. - Mamut sempre gosta deste chá, depois.
- Estou bem - falou ela, sentando-se e aceitando a xícara.
Ela se sentia bem. Um pouco cansada, um pouco tonta, mas bem.
- Acho que não foi tão assustador para você desta vez, Ayla - disse Mamut, aproximando-se.
Ayla sorriu.
- Não, não estou assustada, mas o que fazemos?
- Nós buscamos. Achei que você era uma buscadora. Por isto é a filha da Fogueira do Mamute - disse ele. - Você tem outros dons naturais, Ayla, mas precisa de treinamento, - Ele viu a ruga na testa dela. - Não se preocupe com isso, agora. Há tempo para pensar a respeito mais tarde.
Talut serviu mais bebida fermentada a Ayla e alguns outros, enquanto Mamut lhes contou sobre a Busca, onde foram, o que encontraram. Ela engoliu depressa - não parecia tão ruim assim-, depois se esforçou para ouvir, mas a bebida pareceu subir-lhe à cabeça rapidamente. Sua mente vagou e ela notou que Deegie e Tornec ainda tocavam seus instrumentos, mas com sons tão ritmados e atraentes que ela teve vontade de se mover com eles. A música a fez recordar a Dança das Mulheres do Clã, e ela achou difícil se concentrar em Mamut.
Sentiu que alguém a observava, e olhou ao redor. Perto da Fogueira da Raposa, viu Ranec fitando-a. Ele sorriu e ela retribuiu-lhe o sorriso. De repente, Talut enchia sua taça novamente. Ranec avançou e ofereceu sua taça para Talut enchê-la. Este acedeu, depois voltou à discussão.
- Não está interessada nisto, está? Vamos ali, onde Deegie e Tornec estão tocando - disse Ranec em voz baixa, inclinando-se perto do ouvido dela.
- Acho que não, eles falam sobre caça. - Ayla se voltou para a discussão séria, mas havia perdido tanto que não sabia em que ponto eles estavam, e eles não pareciam notar se ela ouvia ou não.
-Não perderá nada. Eles nos contarão tudo depois. Ouça aquilo - falou, calando-se em seguida para que ela ouvisse os sons musicais vibrantes vindos do lado oposto da fogueira. - Não prefere ver como Tornec o faz? Ele é muito bom, realmente.
Ayla se inclinou para o som, atraída pela batida ritmada. Lançou um olhar ao grupo que fazia planos, depois fitou Ranec e sorriu larga e radiantemente.
- Sim, prefiro ver Tornec! - exclamou, sentindo-se satisfeita consigo mesma.
Quando se levantaram, Ranec, de pé perto dela, a deteve.
- Deve parar de sorrir, Ayla - disse ele, o tom sério e severo.
- Por quê? - perguntou ela com grande preocupação, o sorriso desaparecendo, indagando-se o que fizera de errado.
- Porque você é tão encantadora quando sorri, que me faz perder o fôlego - disse Ranec, e era sincero, mas ajuntou: - E como falarei com você se estiver sem ar?
O sorriso de Ayla voltou diante do elogio. Depois, a idéia de Ranec arquejar em busca de ar por causa do seu sorriso a fez rir baixinho. Era uma brincadeira, claro, pensou ela, embora não tivesse absoluta certeza de que ele brincava. Caminharam em direção à nova entrada para a Fogueira do Mamute.
Jondalar os observou enquanto se aproximavam. Ele andara se divertindo com os ritmos e a música enquanto esperava por ela, mas não gostou de ver Ayla caminhando na direção dos músicos com Ranec. Sentiu o ciúme crescer em sua garganta e teve uma necessidade urgente de atacar com violência o homem que ousava assediar a mulher que ele amava. Mas Ranec, apesar de sua aparência totalmente diferente, era Mamutoi e pertencia ao Acampamento do Leão. Jondalar era apenas um hóspede. Eles se poriam ao lado de seu membro e ele estava sozinho. Tentou exercer controle e raciocinar. Ranec e Ayla apenas caminhavam juntos. Como ele podia objetar a isto?
Ele tinha sentimentos confusos sobre a adoção de Ayla desde o início. Queria que ela pertencesse a algum grupo de pessoas porque ela o desejava e, admitiu, ele, porque assim ela seria mais aceitável para o seu povo. Ele vira como ela ficara feliz quando trocaram presentes e ficou satisfeito por ela, mas se sentiu distante e mais preocupado que nunca porque, talvez, ela não quisesse partir. Perguntou-se se ele devia ter permitido sua própria adoção, afinal.
Sentira-se parte da adoção de Ayla no começo. Mas, agora, sentia-se como forasteiro, mesmo em relação a Ayla. Ela era uma entre eles. Aquela era a sua noite, a sua celebração, sua e do Acampamento do Leão. Ele não lhe havia dado presente e não recebera um em troca. Sequer pensara nisso, embora agora quisesse tê-lo feito. Mas ele não tinha presentes para dar a ela ou a ninguém. Havia chegado ali sem nada, e não passara anos fazendo e juntando coisas. Aprendera muitas coisas em suas viagens e acumulara conhecimento, mas não tivera oportunidade para se beneficiar, ainda, de suas aquisições.
Com uma carranca sombria, Jondalar observou-a sorrindo e rindo com Ranec, sentindo-se como um intruso indesejável.
Quando a discussão foi interrompida, Talut distribuiu mais de sua bebida fermentada, feita do amido de raízes de tifáceas e vários outros ingredientes, com os quais fazia experimentos constantes. As festividades centralizadas em Deegie e Tornec se tornaram mais animadas. Eles tocaram música, as pessoas cantaram, às vezes sozinhas, em outras, juntas. Alguns dançaram, não o tipo de dança vivo que Ayla havia visto antes, lá fora, mas uma forma sutil de movimento corporal feito de pé num único local, acompanhando o compasso muitas vezes com canto também.
Ayla reparou em Jondalar muitas vezes, um pouco retraído, e caminhou em sua direção em diversas oportunidades, mas alguma coisa sempre a interrompia. Havia muita gente e todo mundo parecia querer chamar sua atenção. Ela não estava inteiramente auto-controlada, devido à bebida de Talut, e sua concentração era facilmente interrompida.
Ela tomou o lugar de Deegie uma vez, tocando o tambor com coragem e entusiasmo, e recordou alguns dos ritmos do Clã. Eram complexos, distintos e, para o Acampamento do Leão, incomuns e intrigantes. Se Mamut tinha alguma dúvida sobre as origens de Ayla, as lembranças despertadas por sua música a eliminou completamente.
Depois, Ranec ficou de pé e dançou e cantou uma canção divertida, cheia de insinuações e duplos sentidos sobre os prazeres de dádivas, dirigida a Ayla. Provocou sorrisos largos e olhares maliciosos, e foi suficiente para fazer Ayla corar. Deegie lhe mostrou como dançar e cantar a resposta satírica mas, no fim, onde um vislumbre de aceitação ou rejeição devia terminá-la, Ayla parou. Ela não podia fazer nem uma coisa nem outra. Não compreendia exatamente as sutilezas da brincadeira e, embora não fosse sua intenção encorajá-lo, não queria que ele pensasse que ela não gostava dele, tampouco. Ranec sorriu. A canção, disfarçada como humorística, era muitas vezes usada como meio, que preservava a dignidade, de descobrir se o interesse era mútuo. Nem mesmo uma recusa clara o teria detido; ele a considerava nada menos que promissora.
Ayla estava tonta com a bebida, o riso e a atenção. Todos queriam envolvê-la, todos queriam falar-lhe, ouvi-la, abraçá-la e se sentirem íntimos. Ela não se lembrava de ter-se divertido tanto alguma vez, ou de ter-se sentido tão excitada e amistosa, ou tão querida. E todas as vezes que olhava ao redor encontrava um sorriso sedutor, radiante, e olhos escuros penetrantes concentrados nela.
À medida que a noite passava, o grupo começou a diminuir. As crianças adormeceram e foram levadas para a cama. Fralie fora dormir mais cedo, por sugestão de Ayla, e o resto da Fogueira da Garça a seguiu pouco depois. Tronie queixando-se de dor de cabeça - ela não se sentia bem àquela noite - foi para a sua fogueira para amamentar Hartal e adormeceu. Jondalar também se esgueirou e saiu, então. Estendeu-se no estrado-cama esperando por Ayla e observando-a.
Wymez ficou incomumente loquaz depois de algumas taças da bebida de Talut, e contou histórias e fez comentários provocantes, primeiro, a Ayla, depois a Deegie, em seguida, a todas as mulheres. Tulie começou a achá-lo interessante, de repente, depois de todo aquele tempo e retribuiu as provocações e brincadeiras. Acabou convidando-o a passar a noite na Fogueira dos Auroques consigo e Barzec. Ela não dividira sua cama com um segundo homem desde a morte de Darnev.
Wymez resolveu que poderia ser uma boa idéia deixar a fogueira de Ranec e talvez não fosse tolice deixar que soubessem que uma mulher podia escolher dois homens. Ele não estava cego para a situação que se desenvolvia, embora duvidasse que Ranec e Jondalar pudessem chegar a qualquer acordo. Mas a mulher grande parecia particularmente atraente naquela noite, e ela era uma chefe de alto valor, que tinha muito status para outorgar. Quem poderia dizer que mudanças ele quereria fazer, se Ranec decidisse alterar a composição da Fogueira da Raposa?
Não muito depois de os três se dirigirem para o fundo da habitação, Talut provocou Nezzie para acompanhá-lo à Fogueira do Leão. Deegie e Tornec se envolveram com testes com seus instrumentos, excluindo todos os outros, e Ayla pensou ouvir alguns de seus ritmos. Depois, compreendeu que ela e Ranec conversavam sozinhos, e ficou constrangida.
- Acho que todos foram dormir - disse ela, com a voz um pouco arrastada. Ela sentia os efeitos da bebida fermentada, e se movia para frente e para trás no mesmo lugar. A maioria das luzes tinha-se apagado, e o fogo morria.
- Talvez devêssemos - disse ele, sorrindo. Ayla sentiu o convite não-falado brilhando em seus olhos, e foi atraída por ele, mas não sabia o que fazer.
- Sim, estou cansada - disse ela, começando a caminhar para sua cama.
Ranec segurou-a pela mão e a deteve
- Ayla. Não vá. - Seu sorriso desaparecera, e o tom de voz era insistente. Ela se virou e, no instante seguinte, os braços de Ranec a abraçavam e sua boca era exigente sobre a dela. Ayla entreabriu os olhos e a resposta do homem foi imediata. Ele a beijou toda, a boca, o pescoço, abaixo do pescoço. Suas mãos se estenderam para os seios dela, depois acariciaram-lhe os lábios, e as coxas, e tomaram seu montículo, como se ele não pudesse se saciar dela e a quisesse, inteira, imediatamente. Choques inesperados de excitação a percorreram. Ele a puxou para si e ela sentiu um volume duro e quente contra seu corpo, e um súbito calor próprio, entre as pernas.
- Ayla, quero você. Venha para minha cama - disse ele com insistência e domínio.
Com complacência inesperada, ela o seguiu.
Durante toda à noite, Jondalar havia observado a mulher que amava rir e brincar e dançar com seu novo povo e, quanto mais observava, mais se sentia um estranho. Mas era o escultor atencioso de pele escura, em particular, que o irritava. Ele queria dar vazão à sua cólera, avançar e levar Ayla para longe, mas aquele agora era o seu lar, aquela era à noite de sua adoção. Que direito tinha ele de interferir em sua comemoração? Ele só podia fingir que aceitava, se não que sentia prazer, mas estava infeliz e foi para o estrado-cama desejando o esquecimento no sono que não vinha.
Do espaço escuro, cercado, Jondalar observou Ranec abraçar Ayla e conduzi-la em direção à sua cama e sentiu um choque de incredulidade. Como Ayla podia ir com outro homem quando ele a esperava? Nenhuma mulher escolhera outro homem quando ele a queria, e aquela era a mulher que ele amava! Sentiu vontade de saltar da cama, agarrá-la, e dar um soco na boca sorridente de Ranec.
Depois, imaginou o sangue e dentes quebrados e recordou a agonia e vergonha do exílio. Aqueles não eram sequer seu povo. Certamente o expulsariam, e na noite fria e gelada das estepes peri-glaciais não havia lugar aonde ir. E como ele poderia ir para algum lugar sem Ayla?
Mas ela havia feito sua escolha. Ela escolhera Ranec, e era direito dela escolher qualquer um que quisesse. Somente porque Jondalar estava esperando não significava que Ayla tivesse que ir para ele, e não fora. Ela escolheu um homem do seu povo, um homem Mamutoi, que cantava e dançava e namorava com ela, e com quem ela havia rido e se divertido. Podia culpá-la? Quantas vezes ele havia escolhido alguém com quem rira e se divertira?
Mas, como ela fora capaz de fazer aquilo? Era a mulher que ele amava! Como ela pudera escolher outro homem, quando ele a amava? Jondalar se angustiou e desesperou, mas o que podia fazer?
Nada, a não ser engolir sua náusea amarga de ciúme e ver a mulher que amava acompanhar outro homem à cama.
Ayla não pensava claramente, sua mente estava confusa devido à bebida de Talut, e não havia dúvida de que se sentia atraída por Ranec, mas essas não foram às razões para ter ido com ele. Ela teria ido, de qualquer maneira. Ayla fora criada pelo Clã. Foi ensinada a ceder, sem discutir, a qualquer homem que lhe ordenasse, que lhe desse o sinal de que desejava ter relações com ela.
Se qualquer homem do Clã desse o sinal a qualquer mulher, ela devia prestar o serviço, assim como lhe trazer água ou alimento. Embora se levasse na conta de uma cortesia pedir, em primeiro lugar, os favores de uma mulher ao seu companheiro, ou ao homem com quem estava unida, isto não era uma exigência, e seria considerado coisa natural. Um homem devia mandar em sua companheira, mas não exclusivamente. O elo entre uma mulher e um homem era naturalmente benéfico, compassivo, e muitas vezes, após algum tempo, afetuoso, mas era inconcebível demonstrar ciúme ou qualquer outra emoção forte. Uma mulher não se tornava menos companheira de um homem porque prestara um pequeno favor a outro homem; e ele não amava menos os filhos de sua companheira. Ele assumia certa responsabilidade por eles, em termos de cuidado e treinamento, mas sua caça fornecida ao seu Clã, e todo alimento colhido ou caçado, eram divididos.
Ranec havia dado a Ayla o que ela viera a interpretar como o “sinal” dos Outros, uma ordem para satisfazer suas necessidades sexuais. Como qualquer mulher adequadamente criada pelo Clã, nunca lhe ocorreu recusar. Ela olhou uma vez na direção de sua cama, mas não viu os olhos azuis cheios de choque e sofrimento. Teria ficado surpresa, se os visse.
O ardor de Ranec não esfriara quando caminharam para a Fogueira da Raposa, mas ele estava mais controlado porque Ayla se encontrava dentro de seus limites, embora mal pudesse acreditar nisso. Sentaram-se no estrado-cama de Ranec. Ela notou as peles brancas que havia dado a ele. Começou a desatar seu cinto, mas Ranec a deteve.
- Quero despi-la, Ayla. Sonhei com isto, e quero que seja exatamente assim - falou Ranec.
Ela encolheu os ombros, satisfeita. Já havia notado que Ranec era diferente de Jondalar, de certa forma, e estava curiosa. Não era uma questão de julgar que homem era melhor, apenas observar as diferenças.
Ranec olhou para ela durante algum tempo.
- Você é tão bonita - disse ele, afinal, e se inclinou para beijá-la. A boca era macia, embora pudesse endurecer quando a beijava com ardor. Ela reparou na mão escura contornada pela pele branca, e esfregou o braço dele suavemente. A pele dele era igual a qualquer outra.
Ele começou tirando as contas e conchas que ela tinha no cabelo; depois, correu a mão pelos cabelos, e os trouxe até seu rosto para senti-los e cheirá-los.
- Bonita, tão bonita... - sussurrou.
Desamarrou seu colar e depois o novo saquinho do amuleto, e os colocou cuidadosamente ao lado das contas na bancada de estocagem perto da cabeceira da cama. Em seguida, desatou o cinto de Ayla, levantou-se e puxou-a para que ficasse de pé ao seu lado. De repente, ele lhe beijava a face e o pescoço de novo, e apalpava-lhe o corpo sob a túnica, como se não pudesse esperar. Ayla sentiu a excitação do homem. Os dedos dele acariciando-lhe o mamilo enviavam uma corrente de sensações através dela. Ela se inclinou para ele, entregando-se.
Ele parou, então e, respirando fundo, ergueu a túnica por cima da cabeça, e dobrou-a com cuidado ao lado das outras coisas de Ayla. Em seguida, apenas olhou para ela, como se tentasse memorizá-la. Virou-a de um lado, depois do outro, enchendo os olhos como se eles, também, precisassem de satisfação.
- Perfeitos, perfeitos. Olhe para eles, cheios, no entanto bem-feitos, perfeitos - disse ele, correndo a ponta do dedo levemente ao longo do perfil do seio. Ela fechou os olhos e estremeceu com o toque terno. De súbito, uma boca morna sugava-lhe um mamilo e ela sentiu um choque no fundo de si mesma. - Perfeitos, tão perfeitos... - murmurou ele, mudando para o outro seio. Pressionou o rosto entre eles; depois, com as duas mãos os manteve juntos e sugou os dois bicos ao mesmo tempo, produzindo pequenos ruídos de grunhidos deleitados. Ela arqueou o pescoço para trás e fez pressão contra ele, sentindo ondas gêmeas de emoção; depois, estendeu a mão até a cabeça do homem e, reparando no cabelo tão abundante e crespo, deixou que suas mãos usufruíssem a experiência nova.
Ainda estavam de pé quando ele recuou e olhou-a com um sorriso no rosto, enquanto desatava o cordão da cintura e abaixava as perneiras dela. Não conseguiu resistir e sentiu a textura do cabelo crespo e louro, e tomou o púbis com as mãos em taça para tocar a umidade cálida; depois, a fez sentar-se. Removeu rapidamente sua camisa e colocou-a ao lado da dela; em seguida, ajoelhou-se diante da jovem e retirou um sapato tipo mocassim para uso caseiro.
- Sente cócegas? - perguntou.
- Um pouco. Na ponta.
- Que tal isso? - ele esfregou-lhe o pé, suave, mas firmemente, aplicando pressão no peito do pé.
- E bom. - Ele lhe beijou o peito do pé. - E bom - repetiu ela com um sorriso.
Ele retribuiu o sorriso, depois tirou o outro sapato de Ayla, e esfregou-lhe o pé. Puxou as perneiras e colocou-as com os sapatos e as outras coisas da jovem. Tomando-lhe as mãos, ele a fez ficar de pé novamente, de modo que ela permanecesse nua sob a última luz dos carvões que se apagavam na Fogueira do Mamute. Ele a virou novamente, de frente e de costas, olhando-a.
- O Mãe! Tão bonita, tão perfeita. Exatamente como eu sabia que seria - cantarolou ele, mais para si mesmo do que para ela.
- Ranec, não sou bonita - censurou ela.
- Devia se ver, Ayla. Então, não diria isso.
- E bom você dizer, é bom pensar assim, mas não sou bonita - insistiu Ayla.
- E mais bela do que todas que já vi.
Ela concordou, apenas, com um gesto de cabeça. Ele podia pensar assim, se quisesse. Ela não poderia impedi-lo.
Depois de encher os olhos, ele começou a tocar primeiro, levemente, todo o corpo da jovem, contornando-o com as pontas dos dedos, de ângulos diferentes. Então, com mais detalhe, traçou a estrutura muscular sob a pele. De súbito, ele parou e tirou o resto das roupas, deixando-as onde caíram, e tomou-a nos braços, querendo sentir o corpo de Ayla com o dele. Ela o sentiu também, seu corpo quente, compacto, musculoso, seu membro endurecido, ereto e palpitante. Ela inalou seu agradável odor masculino. Ele beijou-lhe a boca, depois o rosto e pescoço, mordiscando-lhe os ombros com dentadas suaves que a fizeram estremecer, e murmurou num sussurro:
- Tão bonita, tão perfeita... Ayla, quero-a de todas as maneiras. Quero ver você e tocá-la e abraçá-la. O Mãe, tão bonita!
As mãos de Ranec estavam sobre os seios dela de novo, e sua boca sobre os mamilos, sugando, depois mordiscando, depois sugando os dois, produzindo seus sons baixos de prazer. Ele tomou um dos seios na boca, tentando sugá-lo o máximo possível; depois avançou para o outro. Ajoelhou-se diante dela, roçou o nariz por seu umbigo, e passou os braços ao redor das pernas da mulher e do par de nádegas, macias e redondas, acariciando-as e depois, a fenda entre elas. Cheirou-lhe o pêlo louro e, levemente, provocantemente, encontrou-lhe a rachadura com uma língua molhada. Ela gemeu e ele sentiu sua resposta trêmula...
Ele se levantou, então, e deitou-a na cama, sobre as peles muito macias, luxuosas, aconchegantes. Ele se arrastou para o lado dela, beijou-a com lábios macios, que mordiam, e não dentes, sugou e mordiscou-lhe os seios e, com a mão, acariciou e apalpou-lhe as dobras e gretas do sexo. Ela gemeu e gritou enquanto ele parecia tocar todos os pontos, ao mesmo tempo.
Ele pegou a mão dela e colocou-a sobre seu órgão firme, cheio, ingurgitado. Ela se sentou, enroscou-se e esfregou a face contra ele, para deleite de Ranec. À luz fraca, ela podia ver o contorno de sua mão clara contra o negrume dele. Ele tinha a pele lisa. Seu odor de homem era diferente, contudo, semelhante, mas diferente, e seus pêlos eram como arame e encarapinhados. Ele gemeu com um doce êxtase ao sentir uma umidade cálida encerrar seu membro e uma sensação devastadora, irresistível. Aquilo era mais do que ele imaginara, mais do que ousara sonhar. Pensou que jamais conseguiria conter-se quando ela começou a usar técnicas que havia aprendido tão recentemente, a língua envolvendo-o depressa, puxando-o e libertando-o, acrescentando golpes firmes ao membro ereto.
- Oh, Ayla, Ayla! Você é Ela! Eu sabia que era. Você me honra.
De repente, ele se sentou.
- Quero você, e não posso esperar. Por favor, agora - disse num sussurro rouco, contido.
Ela rolou e se abriu para ele. Ranec montou e penetrou, emitindo um grito prolongado e trêmulo. Depois, ele recuou e tornou a avançar, uma vez e outra e mais outra, sua voz crescendo em volume a cada investida. Ayla curvou o corpo para encontrá-lo, tentando uma harmonia com os seus movimentos.
- Ayla, estou pronto. Aqui está - gritou ele, retesando-se, em seguida. De repente, gemeu um grande suspiro de alívio, penetrou-a e libertou-a por mais algumas vezes e relaxou sobre ela. Ayla levou muito mais tempo para relaxar.
Depois de algum tempo, Ranec ergueu o corpo, libertou-se e rolou de lado, e levantando-se sobre um cotovelo, abaixou o olhar para Ayla.
- Temo não ter sido tão perfeito quanto você - disse ele.
Ela franziu a testa.
- Não compreendo esse perfeito, Ranec. O que é perfeito?
- Foi rápido demais. Você é tão maravilhosa, tão perfeita naquilo que faz, fiquei pronto cedo demais. Não podia esperar e acho que não foi tão perfeito para você - disse ele.
- Ranec, esta é a dádiva do prazer, não é?
- Sim, é um dos seus nomes.
- Acha que não foi prazer para mim? Eu tive prazeres. Muitos.
- Muitos, mas não o prazer perfeito. Se puder esperar acho que, com um pouco de tempo, estarei pronto novamente.
- Não é necessário.
- Talvez não seja necessário, Ayla, mas eu quero - disse ele, inclinando-se para beijá-la. - Eu quase poderia agora - acrescentou, acariciando-lhe o seio, o ventre e estendendo a mão até o púbis. Ela saltou sob o toque e ainda tremia. - Lamento, você estava quase pronta. Se eu tivesse conseguido conter-me um pouco mais...
Ela não respondeu. E beijava-lhe o seio, friccionando a pequena saliência dentro da fenda e, num instante, ela estava novamente pronta. Movia os quadris, pressionando-o contra ele, gritando. De repente, com uma onda e um grito veio o alívio, e ele sentiu um calor úmido. Ela relaxou então.
Sorriu para ele.
- Acho que, agora, são prazeres perfeitos - falou.
- Não exatamente, mas talvez da próxima vez. Espero que tenhamos muitas próximas vezes, Ayla - replicou ele, deitado de lado, próximo a ela, com a mão descansando sobre o ventre da jovem.
Ela franziu a testa, sentindo-se confusa. Perguntou-se se entendia mal alguma coisa.
Na penumbra, ele podia ver sua mão escura sobre a pele clara, e sorriu. Ele sempre gostara do contraste entre sua cor escura e o branco da pele das mulheres que amava. Deixava uma impressão que nenhum outro homem podia causar, e as mulheres notavam isso. Sempre comentavam e jamais o esqueciam. Estava contente porque a Mãe resolvera lhe dar aquela cor escura. Tornava-o diferente, incomum, inesquecível. Gostava da sensação do ventre de Ayla sob sua mão também, porém, ainda mais, gostava de saber que ela estava ali, ao lado dele, em sua cama. Ele havia esperado por aquele momento, desejado, sonhado e, mesmo agora, com ela ali, parecia-lhe impossível.
Um pouco depois, ele subiu a mão até os seios dela, acariciou-lhe um mamilo e sentiu-o endurecer. Ayla tinha começado a cochilar, estava cansada e com um pouco de dor de cabeça e, quando ele roçou o nariz em seu pescoço e depois pousou a boca sobre a dela, ela compreendeu que ele a queria, tinha-lhe dado novamente o sinal. Sentiu um instante de aborrecimento e, por um momento, teve necessidade de recusar. Ficou surpresa, quase chocada e despertou completamente. Ele estava-lhe beijando o pescoço, alisando-lhe o ombro e braço, sentindo depois a plenitude e redondeza de seus seios. Quando ele levou um mamilo à boca, ela não estava mais aborrecida. Sensações agradáveis percorreram-lhe as profundezas, alcançando seu local de prazer perfeito. Ele mudou para o outro seio, afagando a ambos e sugando cada um de uma vez, produzindo seus ruídos de prazer no fundo da garganta.
- Ayla, bela Ayla - murmurou. Depois, se sentou e olhou-a na cama dele. - O Mãe! Não acredito que esteja aqui. Tão adorável! Desta vez será perfeito, Ayla. Desta vez, sei que será perfeito.
Jondalar jazia rígido na cama, o maxilar apertado, querendo desesperadamente usar os punhos fechados contra o escultor, mas forçando-se a não se mover. Ela havia olhado diretamente para ele, depois se virara e fora com Ranec. Toda vez que fechava os olhos, via o rosto de Ayla olhando diretamente para ele, depois afastando-se.
É sua escolha! É sua escolha, continuou repetindo a si mesmo. Ela disse que o amava, mas como poderia saber? Claro, ela podia ter gostado dele, até o amado quando estavam sozinhos no vale; ela não conhecia mais ninguém, então. Ele era o primeiro homem que conhecera. Mas, agora, que encontrara outros homens, por que não amaria outro? Tentou convencer-se de que era justo para ela conhecer outros e fazer sua escolha, mas não podia esquecer que naquela noite ela havia escolhido outro homem.
Desde que voltara de sua estada com Dalanar, o homem alto, musculoso, quase belamente atraente, pudera escolher suas mulheres. Uma expressão convidativa de seus olhos irresistíveis, e qualquer mulher que quisesse seria sua. Na verdade, elas faziam tudo o que era possível para encorajá-lo. Seguiam-no, perseguiam-no, desejavam que ele as convidasse. E ele o fazia, mas nenhuma mulher fora capaz de igualar a lembrança de seu primeiro amor, ou derrotar o fardo de culpa por ele. Agora, a única mulher no mundo que havia encontrado, afinal, a única mulher que amava, estava na cama de outro.
O simples pensamento de que ela havia escolhido outro provocava sofrimento, mas quando ele ouviu os sons inconfundíveis de sua partilha de prazeres com Ranec, abafou um gemido, deu socos na cama e sua agonia dobrou. Era como um carvão ardente fervendo em seu estômago. Seu peito estava apertado, a garganta queimava, ele respirava em arquejos sufocados como se vapor enfumaçado o abafasse. A pressão fez rolar lágrimas dos cantos de seus olhos embora ele as contivesse, fechando os olhos tão apertadamente quanto possível.
Afinal terminou e, quando ele teve certeza, relaxou um pouco. Mas então recomeçou e ele não pôde suportar. Levantou-se de um salto, permaneceu um momento indeciso, depois saiu correndo em direção ao novo anexo. As orelhas de Whinney se ergueram e ela se voltou para ele, enquanto passava e atravessava a arcada externa para sair.
O vento o jogou contra a habitação de terra. O frio repentino tirou-lhe o ar e despertou-o para que tomasse consciência dos arredores. Olhou para a margem oposta do rio congelado e viu nuvens cruzando a lua, arrastando bordas em farrapos. Afastou-se alguns passos do abrigo. Rajadas de vento penetraram em sua túnica e, parecia, em sua pele e músculos até os ossos. Voltou ao interior, tremendo, caminhou lentamente pelo local dos cavalos e entrou de novo na Fogueira do Mamute. Retesou-se escutando, e nada ouviu a princípio. Depois vieram os sons de respiração, e gemido, e grunhido. Ele olhou para seu estrado-cama e depois virou-se para o anexo, sem saber que rumo tomar. Não podia suportá-lo ali dentro; não sobreviveria lá fora. Afinal, não resistiu. Tinha que sair. Agarrando suas peles de dormir em viagem, atravessou novamente a passagem em arco para o anexo dos cavalos.
Whinney bufou e agitou a cabeça, e Racer, que jazia deitado, levantou a cabeça do solo e saudou Jondalar suavemente. O homem se dirigiu aos animais, abriu as peles ao chão, ao lado de Racer, e deitou-se nelas. Estava frio no anexo, mas não tão frio quanto lá fora. Não havia vento, algum calor se infiltrava, e os cavalos geravam mais. E a respiração deles abafava os sons de outra respiração pesada. Mesmo assim, ele permaneceu acordado a maior parte da noite, sua mente recordando sons, repetindo cenas reais e imaginárias, uma e outra vez.
Ayla acordou quando as primeiras réstias de luz do dia penetraram através de rachaduras ao redor do buraco de saída da fumaça. Ela estendeu a mão para o outro lado da cama em busca de Jondalar e ficou desconcertada ao encontrar Ranec. Com a lembrança da noite anterior veio o conhecimento de que teria uma forte dor de cabeça; os efeitos da bebida fermentada de Talut. Esgueirou-se para fora da cama, pegou as roupas que Ranec havia arrumado tão bem, e correu para a própria cama. Jondalar tampouco estava ali. Ela olhou ao redor, para as outras camas da Fogueira do Mamute. Deegie e Tornec dormiam em uma e ela se perguntou se eles tinham partilhado os prazeres. Depois, lembrou-se que Wymez fora convidado para a Fogueira dos Auroques e que Tronie não se sentia bem. Talvez Deegie e Tornec tivessem apenas achado mais conveniente dormir ali. Não importava, mas ela se perguntou onde Jondalar estaria.
Recordou que não o havia visto depois que a noite anterior havia avançado. Alguém disse que ele fora dormir, mas onde estava ele agora? Reparou novamente em Deegie e Tornec. Ele também devia estar dormindo em uma fogueira diferente, pensou. Ficou tentada a verificar, mas ninguém mais parecia estar acordado e de pé, e ela não queria despertar nenhum deles. Sentindo-se inquieta, rastejou até a cama vazia, puxou as peles ao seu redor, e depois de algum tempo, adormeceu de novo.
Da vez seguinte que acordou, a cobertura do buraco de fumaça fora afastada para um lado e a brilhante claridade do dia resplandecia no interior. Ela começou a levantar-se, sentiu forte dor latejante na cabeça, e voltou a deitar-se, fechando os olhos. Ou estou muito doente, ou isto é resultado da bebida de Talut, pensou. Por que as pessoas gostam de beber se isto as faz ficar doentes? Depois, refletiu sobre a celebração. Ela não tinha uma lembrança exata de tudo, mas recordava os ritmos tocados, a dança e o canto, embora não soubesse realmente como. Ela havia rido muito, até de si mesma, ao descobrir que tinha pouca voz para cantar, não se importando, de forma alguma, por ser o centro de atenção. Isso não era do seu feitio. Normalmente, preferia permanecer nos bastidores e observar, e fazer seu aprendizado e treinamento em particular. Teria sido a bebida que mudara sua tendência natural e fizera com que fosse menos cuidadosa? Mais ousada? Seria por isso que as pessoas bebiam?
Ela tornou a abrir os olhos e depois se levantou com muito cuidado, segurando a cabeça. Urinou na cesta noturna caseira - uma cesta entrelaçada apertadamente, cheia, até a metade, do esterco seco, pulverizado, de animais de pasto das estepes, que absorvia líquido e matéria fecal. Ela se lavou com água fria. Depois, avivou o fogo e ajuntou pedras quentes de cozinhar. Vestiu-se com a roupa que havia feito antes de chegar ali, pensando nela agora como um traje simples, comum, embora, quando o fizera, parecesse a ela muito exótico e complexo.
Ainda se movendo com cuidado, tirou vários pacotes de sua bolsa de remédios e misturou casca de salgueiro, milefólio, betônica e camomila em quantidades diversas. Derramou água fria na cesta de cozinhar que usava para o chá da manhã, acrescentou pedras quentes até a água ferver, depois o chá. Em seguida, agachou-se diante do fogo e fechou os olhos enquanto esperava o chá ficar pronto. De repente, levantou-se abruptamente e se pôs de pé, sentindo a cabeça latejar, mas ignorando o fato, e pegou novamente a bolsa de remédios.
Quase esqueci, pensou, tirando os embrulhos das ervas anticoncepcionais secretas de Iza. Quer as ervas ajudassem seu totem a expulsar o espírito do totem de um homem, como Iza acreditava, ou de alguma forma resistissem à essência de um órgão masculino, como ela suspeitava, não queria correr o risco de engravidar naquele momento. Tudo estava muito incerto. Ela quisera um bebê de Jondalar, mas enquanto esperava pelo chá, começou a pensar que aparência teria um bebê que fosse uma mistura de Ranec e sua. Seria como ele? Como ela? Ou teria um pouco de ambos? Provavelmente de ambos... Como Dure e Rydag. Eram mistos. Um filho escuro de Ranec pareceria diferente também, exceto, pensou, com uma ponta de amargura, que ninguém o chamaria de abominação, ou o consideraria um animal. Ele seria capaz de falar e rir e chorar, como as outras pessoas.
Sabendo como Talut apreciara seu remédio para dor de cabeça da última vez em que ele tomara sua bebida fermentada, Ayla fez uma quantidade suficiente para várias pessoas. Depois de beber sua porção, saiu à procura de Jondalar. O novo anexo que levava ao exterior, diretamente da Fogueira do Mamute, estava provando ser uma conveniência e, por alguma razão, ela ficou contente por não ter que atravessar a Fogueira da Raposa. Os cavalos estavam lá fora mas, quando percorreu o recinto, notou a pele de dormir em viagem, de Jondalar, enrolada ao lado da parede e se perguntou, ao passar, como a pele fora parar ali.
Ao afastar a cortina para o lado e atravessar o segundo arco, viu Talut, Wymez e Mamut conversando com Jondalar, de costas para ela.
- Como vai a cabeça, Talut? - perguntou ela, acercando-se.
- Está me oferecendo o seu remédio mágico da manhã seguinte?
- Estou com dor de cabeça e fiz um chá. Há mais lá dentro - disse ela; depois se virou para Jondalar com um sorriso largo e feliz, agora que o havia encontrado.
Por um instante, seu sorriso teve idêntica resposta, mas somente por um instante. Depois, o semblante de Jondalar ficou sombrio, com uma ruga na testa, e os olhos cheios de uma expressão que ela jamais vira ali antes. O sorriso de Ayla a abandonou.
- Também quer chá, Jondalar? - interrogou, confusa e perturbada.
- Por que acha que preciso? Não bebi demais na noite passada, mas imagino que você não reparou - replicou ele com voz tão fria e distante que ela mal reconheceu.
- Onde esteve? Procurei por você, antes, mas não estava na cama.
- Você também não - disse ele. - Acho que pouco lhe importava saber onde eu estava. - Ele se virou e afastou-se. Ela olhou para os outros três homens. Viu embaraço no rosto de Talut. Wymez parecia pouco à vontade, mas não inteiramente infeliz. Mamut tinha uma expressão que ela não foi capaz de decifrar.
- Ah... Acho que vou tomar o chá que ofereceu - disse Talut, inclinando-se depressa para entrar na habitação.
- Talvez eu também deva tomar uma xícara - falou Wymez e seguiu-o.
O que fiz de errado?, Pensou Ayla e a inquietação que sentia se converteu, ao crescer, em um nó duro de sofrimento na boca do seu estômago.
Mamut a observou, depois disse:
- Acho que você devia vir e falar comigo, Ayla. Mais tarde, quando pudermos ter um instante sozinhos. Talvez seu chá traga inúmeros visitantes à fogueira agora. Por que não come alguma coisa?
- Não estou com fome - respondeu Ayla, o estômago revolvendo-se. Não queria começar com seu novo povo fazendo alguma coisa errada, e perguntou-se por que Jondalar estava tão zangado.
Mamut sorriu de forma tranqüilizadora.
- Devia tentar comer alguma coisa. Há sobra de carne de mamute da sua festa, e acho que Nezzie guardou um daqueles pães cozidos para você.
Ayla balançou a cabeça, concordando. Ao caminhar em direção à entrada principal da habitação comunal, aborrecida e preocupada, procurou os cavalos com a parte de sua mente que estava sempre atenta a eles. Quando os viu, notou que Jondalar se encontrava com eles, e sentiu uma pequena sensação de alívio. Muitas vezes, os animais a tinham confortado quando estava perturbada e, embora não fosse um pensamento completamente formado, ela esperava que Jondalar se sentisse eventualmente melhor ao se voltar para os animais.
Ela atravessou o vestíbulo e entrou na fogueira de cozinhar. Nezzie estava sentada com Rydag e Rugie, comendo. Sorriu ao ver Ayla e se levantou. Apesar de seu corpo amplamente volumoso, Nezzie era ativa e graciosa em seus movimentos e, Ayla suspeitava, provavelmente bastante forte.
- Coma um pouco de carne. Vou buscar o pão que separei para você. E o último - disse Nezzie. - E pegue uma xícara de chá quente, se quiser. E de estramônio e hortelã.
Ayla partiu pedaços do pão firme e úmido para Rydag e Rugie quando se sentou com eles e com Nezzie, mas apenas provou a sua comida.
- Há algo errado, Ayla? - perguntou a mulher, sabendo que havia e imaginando a causa.
Ayla a encarou com olhos perturbados.
- Nezzie, conheço os costumes do Clã, não os costumes dos Mamutoi. Quero aprender, quero ser uma boa mulher Mamutoi, mas não sei quando ajo errado. Acho que fiz alguma coisa errada na noite passada.
- Por que acha isso?
- Quando fui lá fora, Jondalar estava zangado. Acho que Talut não está feliz. Wymez também. Eles se afastaram depressa. Diga-me o que fiz de errado, Nezzie.
Não fez nada de errado, Ayla, a menos que ser amada por dois homens seja errado. Alguns homens são possessivos quando nutrem sentimentos fortes por uma mulher. Não querem que elas estejam com outros homens. Jondalar acha que tem direito sobre você e está zangado porque você partilhou a cama de Ranec. Mas não é apenas Jondalar. Acho que Ranec sente o mesmo, e seria tão possessivo como o outro, se pudesse. Eu o criei desde menino, e nunca o vi tão atraído por uma mulher. Acho que Jondalar está tentando não mostrar como se sente, mas nada pode fazer e, se mostrou sua raiva, provavelmente embaraçou Talut e Wymez. Talvez por isto tenham-se afastado, apressados.
“Às vezes, gritamos um bocado, ou provocamos um ao outro. Orgulhamo-nos da hospitalidade e gostamos de ser amistosos, mas os Mamutoi não mostram muito seus sentimentos mais profundos. Pode causar problema. Tentamos evitar disputas, e brigas são desencorajadas. O Conselho de Irmãs censura até mesmo os ataques que os jovens gostam de fazer contra outros povos, como os Sungaea, e estão tentando condená-los. As Irmãs dizem que apenas levam a ataques como resposta, e as pessoas têm sido mortas. Dizem que é melhor negociar com eles do que atacar. O Conselho de Irmãos é mais complacente. A maioria já praticou muitos ataques na juventude e diz que é apenas um meio de usar os músculos jovens e promover alguma excitação para si mesmos”.
Ayla não ouvia mais. A explicação de Nezzie, em lugar de esclarecer alguma coisa, somente a deixava mais confusa. Será que Jondalar estava zangado porque ela respondera ao sinal de outro homem? Isso era motivo para se zangar? Nenhum homem do Clã se envolveria numa resposta emocional desse tipo. Broud foi o único homem que sempre demonstrara o menor interesse por ela e assim mesmo porque sabia que ela odiava isso. Mas muitas pessoas se perguntavam por que ele se incomodava com uma mulher tão feia e recebia bem uma demonstração de interesse de outro homem. Quando pensou a respeito, compreendeu que Jondalar se aborrecera com o interesse de Ranec desde o início.
Mamut apareceu, vindo do vestíbulo, caminhando com visível dificuldade.
- Nezzie, prometi encher a tigela de remédios de Mamut com medicamento para artrite - disse Ayla.
Ela se levantou para ajudá-lo, mas ele acenou, dispensando-a.
- Vá na frente. Eu estarei lá, apenas levarei um pouco mais de tempo.
Ela atravessou depressa a Fogueira do Leão e a Fogueira da Raposa, aliviada por encontrar a última vazia, e ajuntou lenha ao fogo da Fogueira do Mamute. Enquanto procurava entre seus medicamentos, recordou as inúmeras vezes que aplicara cataplasmas e emplastros, e fizera bebidas analgésicas para aliviar as articulações doloridas de Creb. Era um campo de sua medicina que ela conhecia muito bem.
Esperou até Mamut descansar confortavelmente, tomando goles de chá quente depois de ter acabado com a maioria de suas antigas dores, antes de fazer qualquer pergunta. Era calmante para ela, como para o velho feiticeiro, aplicar seu conhecimento, perícia e inteligência na prática de sua arte, e aliviava parte do stress que ela andara sentindo. No entanto, quando pegou uma xícara de chá e sentou-se diante de Mamut, não sabia exatamente por onde começar.
- Mamut, você ficou muito tempo com o Clã? - perguntou, afinal.
- Sim, leva bastante tempo para uma fratura sarar e, na época, eu queria saber mais. Assim, fiquei até eles partirem para a Reunião de Clãs.
- Aprendeu os costumes do Clã?
- Alguns.
- Sabe sobre o sinal?
- Sim, Ayla, sei sobre o sinal que um homem dá a uma mulher. - Fez uma pausa, parecendo refletir, depois continuou: - Eu lhe direi uma coisa que jamais disse antes a alguém. Havia uma jovem que ajudava a cuidar de mim enquanto meu braço consolidava, e depois fui incluído em uma cerimônia de caça e cacei com eles; depois disso, ela me foi dada. Sei qual é o sinal e o que significa. Eu usei o sinal, embora não me sentisse à vontade sobre isso, no início. Era uma mulher cabeça-chata, e não muito atraente para mim, principalmente por eu ter ouvido muitas histórias sobre eles enquanto crescia. Mas eu era jovem e saudável, e esperavam que me comportasse como um homem do Clã.
“Quanto mais tempo eu ficava, mais sedutora ela se tornava.., você não tem idéia de como pode ser atraente ter alguém esperando, para satisfazer qualquer necessidade ou desejo seu. Somente mais tarde descobri que ela tinha um companheiro. Ela era uma segunda mulher, seu primeiro companheiro morrera. Assim, um dos outros caçadores a aceitou, um pouco relutantemente, já que ela vinha de um clã diferente e não tinha filhos. Quando parti, não queria deixá-la lá, mas achei que ela seria mais feliz com um clã do que comigo e meu povo. E não estava certo de como seria recebido quando voltasse se trouxesse uma mulher cabeça-chata comigo. Muitas vezes, tenho-me perguntado o que aconteceu com ela.
Ayla fechou os olhos enquanto as lembranças a inundavam. Parecia estranho aprender coisas sobre seu clã com aquele homem, que ela conhecia havia tão pouco tempo. Ela juntou a história dele com o seu próprio conhecimento sobre a história do clã de Brun.
Ela nunca teve filhos, sempre foi segunda mulher, mas sempre foi aceita por alguém. Morreu no terremoto, antes de eles me encontrarem.
Ele concordou com um gesto de cabeça. Também estava contente por ter uma pequena parte de seu passado revelada.
- Mamut, Nezzie disse que Jondalar está zangado porque dividi a cama com Ranec. É verdade?
- Acho que é.
- Mas Ranec me deu o sinal! Como Jondalar pode estar zangado se Ranec me deu o sinal?
- Onde Ranec aprendeu o sinal do Clã? - perguntou Mamut, surpreso.
- Não o sinal do Clã, o sinal dos Outros. Quando Jondalar encontrou meu vale e ensinou-me os Primeiros Ritos e a Dádiva do Prazer da Grande Mãe Doni, perguntei qual era o seu sinal. Ele colocou a boca na minha, beijou-me. Disse que era assim que eu saberia que ele me queria; mostrou-me o seu sinal. Ranec me deu sinal na noite passada. Então, ele disse “Eu quero você. Venha para minha cama.” Ranec me deu o sinal. Ele deu ordem.
Mamut olhou para o céu e disse:
- Ó Mãe! - Depois, tornou a olhar para ela. Ayla você não compreende. Certamente Ranec lhe deu o sinal de que queria você, mas não era uma ordem.
Ayla olhou para ele com grande aturdimento.
- Não compreendo.
- Ninguém pode mandar em você, Ayla. Seu corpo lhe pertence, é sua escolha. Você decide o que quer fazer e com quem quer fazê-lo. Pode ir para a cama de qualquer homem que escolher, contanto que ele queira... E não vejo muito problema aí... Mas não tem que partilhar prazeres com qualquer homem que não queira. Jamais.
Ela parou para refletir nas palavras dele.
- E se Ranec der ordem de novo? Ele disse que me quer de novo, muitas vezes.
- Não duvido de que queira, mas não lhe pode dar ordem alguma. Ninguém pode mandar em você, Ayla. Não contra a sua vontade.
- Nem o homem que é meu companheiro? Nunca?
- Acho que você não continuaria unida a um homem sob estas circunstâncias, por muito tempo, mas não, nem mesmo seu companheiro pode lhe dar ordens. Seu companheiro não é seu dono. Somente você pode decidir.
- Mamut, quando Ranec me der o sinal, não preciso ir?
- Isso mesmo. - Olhou para a testa franzida de Avia. - Lamenta ter ido para a cama dele?
- Lamentar? - Ela sacudiu a cabeça. - Não. Não lamento. Ranec é... Bom. Não é rude... como Broud. Ranec... Gosta de mim... Faz bons prazeres. Não, não lamento por Ranec. Lamento por Jondalar. Lamento Jondalar estar zangado. Ranec faz bons prazeres, mas Ranec não é... Jondalar.
Ayla virou a cabeça para o lado enquanto se inclinava para o vento uivante, tentando proteger o rosto da rajada fria da neve trazida pela ventania. Cada passo cuidadoso à frente era violentamente combatido por uma força tornada visível apenas pela massa em redemoinho de grãos brancos congelados atirados contra ela. Enquanto a tempestade de neve campeava, ela enfrentava chicotadas de bolinhas que picavam e mantinha os olhos abertos. Depois, se virava e dava mais alguns passos. Fustigada pela tempestade forte, ela olhou de novo. A forma lisa e arredondada à sua frente acenou, e ela ficou aliviada ao tocar, afinal, o sólido arco de marfim.
- Ayla, não devia ter saído nessa tempestade de neve! - exclamou Deegie. - Pode-se perder o caminho a alguns passos além da entrada.
- Mas a tempestade não pára há dias, e Whinney e Racer saíram. Eu queria saber aonde foram.
- Descobriu?
- Sim. Eles gostam de se alimentar em um local na curva do rio. O vento lá não sopra tão forte, e a neve não cobre o capim seco com uma camada muito espessa. O vento sopra do outro lado.
Tenho cereal, mas não tenho mais capim. Os cavalos sabem onde há capim, mesmo quando a nevasca acontece. Darei água aqui, quando eles voltarem - disse Ayla, batendo os pés, e sacudindo a neve da parka que acabava de tirar. Pendurou-a em um cabide perto da entrada para a Fogueira do Mamute, ao entrar.
- Acreditam nisso? Ela saiu. Com este tempo! - anunciou Deegie a várias pessoas reunidas na quarta fogueira.
- Mas, por quê? - perguntou Tornec.
- Os cavalos precisam comer e eu... - começou a responder Ayla.
- Achei que sumiu por muito tempo disse Ranec. - Quando perguntei a Mamut onde você estava, ele disse que a vira entrando na fogueira dos cavalos, mas quando fui ver, você não estava lá.
- Todos começaram a procurar você, Ayla - disse Tronie.
- Então, Jondalar viu que sua parka não estava, e os cavalos tam pouco. Ele achou que você poderia ter saído com os animais - falou Deegie -,então resolvemos que era melhor procurar você lá fora. Quando olhei para ver como estava o tempo, vi você chegando.
- Ayla, devia avisar alguém quando sair com mau tempo - disse Mamut, gentilmente.
- Não sabe que faz as pessoas se preocuparem quando sai em uma nevasca como esta? - falou Jondalar. com tom colérico.
Ayla tentou responder, mas todos falavam ao mesmo tempo. Ela olhou para todos os semblante que a observavam e corou.
- Lamento. Não queria que se preocupassem. Vivi sozinha muito tempo, não tinha ninguém para se preocupar comigo. Eu saía e voltava quando queria, não estou acostumada com as pessoas, com alguém se preocupando - disse ela, olhando para Jondalar, depois para os outros. Mamut viu a testa de Ayla se enrugar quando o homem louro se afastou.
Jondalar se sentiu corar e afastou-se das pessoas que se tinham preocupado com Ayla. Ela estava certa, ela vivera sozinha e cuidara muito bem de si mesma. Que direito tinha ele de discutir suas ações ou censurá-la por não dizer a ninguém que ia sair? Mas ele temera desde o momento em que descobriu que ela não estava e, provavelmente, tivesse saído na nevasca. Ele havia visto mau tempo - invernos onde crescera eram excepcionalmente frios e desolados - mas nunca vira um clima tão rigoroso. Aquela tempestade devastara sem interrupção por metade da estação, segundo parecia.
Ninguém temera mais pela segurança de Ayla do que Jondalar, mas ele não queria mostrar sua profunda preocupação. Estava tendo dificuldades em falar com ela desde a noite da adoção. A princípio, ficara muito magoado por ela ter escolhido outro homem de que ele se afastara, e estava ambivalente em relação aos seus próprios sentimentos. Estava terrivelmente enciumado, no entanto, duvidava de seu amor por ela porque se havia envergonhado por tê-la trazido.
Ayla não partilhara as peles de Ranec outra vez, mas todas as noites Jondalar temia que o fizesse. Isso o deixava tenso e nervoso, e permanecia longe da Fogueira do Mamute até ela estar na cama. Quando, afinal, se juntava a ela no estrado de dormir, dava-lhe as costas e resistia à tentação de tocá-la, temeroso de perder o controle, com medo de ceder e pedir-lhe para amá-lo.
Mas Ayla não sabia por que ele a evitava. Quando tentava falar com ele, Jondalar respondia com monossílabos, ou fingia estar adormecido; quando colocava um braço à volta dele, ele ficava rígido e frio. Parecia-lhe que ele não gostava mais dela, especialmente depois que trouxe peles separadas para dormir, de forma a ele não sentir o toque cauterizador do corpo dela próximo ao dele. Mesmo durante o dia ele ficava longe dela. Wymez, Danug e ele tinham construído uma área para trabalhar no sílex na fogueira de cozinhar e ali ele passava a maior parte das horas do dia - não suportaria trabalhar com Wymez na Fogueira da Raposa, do lado oposto do acesso à cama em que Ayla havia deitado com Ranec.
Pouco tempo depois, quando as investidas amistosas de Ayla tinham sido muitas vezes rejeitadas, ela se tornou confusa e hesitante, e se afastou dele. Somente então, ele começou afinal a compreender que à distância crescente entre eles era culpa sua, mas não sabia como resolver o problema. Apesar de toda a sua experiência e conhecimento sobre mulheres.., não estava acostumado a se apaixonar. Encontrou-se relutando em dizer a Ayla como se sentia em relação a ela. Lembrava-se de jovens seguindo-o declarando-lhe seus sentimentos fortes por ele, quando não sentia o mesmo por elas. Ele ficara pouco à vontade, quisera fugir. Não queria que Ayla se sentisse assim em relação a ele, por isto, conteve-se.
Ranec sabia que eles não estavam partilhando prazeres. Estava dolorosamente consciente de Ayla a cada momento, embora tentasse não deixá-lo óbvio demais. Sabia quando ela ia dormir e quando acordava, o que comia e com quem falava, e passava o maior tempo possível na Fogueira do Mamute. Entre aqueles que ali se reuniam, o humor de Ranec, às vezes, dirigido a um ou outro membro do Acampamento do Leão, era freqüentemente motivo de risadas estridentes. Era escrupulosamente cuidadoso, contudo, para jamais denegrir Jondalar quer Ayla estivesse por perto ou não. O visitante estava ciente da habilidade de Ranec com as palavras, mas tal atributo jamais fora o ponto forte de Jondalar. A musculosidade compacta de Ranec e sua autoconfiança despreocupada tinham o efeito de fazer o homem alto, dramaticamente atraente, sentir-se como grande imbecil.
À medida que o inverno avançava, o mal-entendido não-resolvido de Jondalar e Ayla continuou a piorar. Jondalar temia perdê-la inteiramente para o homem escuro, exótico e envolvente. Continuou tentando convencer-se de que deveria ser justo, e deixá-la fazer a escolha, de que não tinha qualquer direito de fazer exigências. Mas ficava distante porque não queria presenteá-la com uma escolha que lhe daria a chance de rejeitá-lo.
Os Mamutoi não pareciam perturbados pelo mau tempo. Tinham muito alimento estocado e se ocupavam com suas diversões costumeiras de inverno, protegidos e seguros no interior de sua habitação comunal parcialmente subterrânea. Os membros mais velhos do acampamento tendiam a reunir-se ao redor da fogueira de cozinhar, bebericando chá quente, contando histórias, recordando, tagarelando e jogando jogos de azar com pedaços de osso ou carvão esculpido, quando não estavam ocupados com algum projeto. As pessoas mais jovens reuniam-se na Fogueira do Mamute, rindo e pilheriando, cantando e tocando instrumentos musicais, embora houvesse muita mistura entre todos e as crianças fossem bem-vindas em toda parte. Era tempo de lazer; a época de fazer e consertar ferramentas e armas, utensílios e adornos; a época para tecer cestas e esteiras, esculpir marfim, osso e chifre; fazer correias, cordas, cordões e redes, e a época de fazer e enfeitar roupas.
Ayla se interessava em saber como os Mamutoi preparavam seu couro e, principalmente, como o coloriam. Também estava intrigada com o bordado colorido, trabalho com contas e espinhos. As roupas decoradas e costuradas eram algo novo e incomum para ela.
- Você disse que me ensinaria como fazer o couro vermelho depois que eu aprontasse a pele. Acho que a pele de bisão em que estou trabalhando está pronta - falou Ayla.
- Pois bem, eu lhe mostro - disse Deegie. - Vejamos como está a pele.
Ayla se dirigiu ao estrado de estocagem próximo à cabeceira de sua cama, desdobrou uma pele inteira e espalhou-a. Era inacreditavelmente macia ao toque, flexível e quase branca. Deegie a examinou com ar crítico. Ela havia observado o processo de Ayla, sem comentários, mas com grande interesse.
Em primeiro lugar, Ayla cortava a pesada crina rente à pele com faca afiada, enrolando-a depois; deixava-a cair sobre um grande osso liso de perna de mamute e raspava-a, usando a extremidade levemente rombuda de uma lâmina de sílex. Raspava o interior para remover pedaços pendurados de gordura e vasos sangüíneos, e o exterior, contra a disposição do pêlo, retirando a camada externa de pele, que incluía também a superfície do couro. Deegie a teria enrolado e deixado perto do fogo por alguns dias, permitindo que começasse a soltar, a perder o pêlo. Quando estivesse pronta, o pêlo sairia, deixando atrás de si a camada externa de pele que se tornaria à superfície do couro. Para fazer o couro mais macio, como Ayla fizera, ela teria amarrado a peça a uma armação para raspar o pêlo e a superfície.
O passo seguinte de Ayla incorporava uma sugestão de Deegie. Depois de embeber e lavar, Ayla planejara esfregar gordura na pele para amaciá-la, como estava acostumada a fazer. Mas Deegie lhe mostrou como preparar uma papa fina dos miolos em putrefação do animal para molhar a pele, em vez disso. Ayla ficou surpresa e satisfeita com os resultados Podia sentir a mudança na pele, a maciez e elasticidade que o tecido cerebral dava, mesmo enquanto esfregava. Mas era depois de torcer completamente a pele que começava o trabalho. O couro tinha que ser puxado e esticado constantemente enquanto secava, e a qualidade do couro pronto dependia de quão bem se trabalhava a pele nesta fase.
- Tem uma boa mão para couro, Ayla. A pele de bisão é pesada, e esta está muito macia. Parece maravilhosa. Resolveu o que quer fazer com ela
- Não - Ayla sacudiu a cabeça-, mas quero fazer couro vermelho O que acha? Sapatos?
- É bastante pesado para isso, mas o suficientemente macio para uma túnica. Vamos em frente e cobramos o couro. Pode pensar no que fazer com ele mais tarde - disse Deegie enquanto caminhavam juntas para a última fogueira, quando ela perguntou. - O que faria com esse couro agora? Se não fosse colori-lo?
- Eu o poria sobre um fogo bem enfumaçado para não endurecer de novo, se ficar molhado da chuva ou mesmo de nadar - disse Ayla.
Deegie concordou com um gesto de cabeça.
- E isso que eu faria também. Mas o que vamos fazer com o couro fará com que a chuva deslize por ele.
Passaram por Crozie quando atravessaram a Fogueira da Garça, o que lembrou a Ayla uma coisa que ela tivera intenção de perguntar. - Deegie, sabe como fazer o couro branco também? Como a túnica que Crozie usou? Gosto de vermelho, mas depois gostaria de aprender a fazer o branco. Acho que conheço alguém que gostaria de branco.
- É difícil fazer branco, difícil tornar o couro realmente cor da neve. Acho que Crozie poderia lhe mostrar melhor do que eu. Você precisaria de cré. Talvez Wymez tenha algum. O sílex é encontrado no cré e, em geral, os pedaços que ele retira da mina ao norte têm uma cobertura de cré no lado externo - falou Deegie.
As jovens voltaram para a Fogueira do Mamute com alguns pequenos pilões e almofarizes, e vários pedaços de material de colorir vermelho-ocre em diversos tons. Deegie colocou um pouco de gordura para derreter sobre o fogo, depois arrumou os fragmentos coloridos de material perto de Ayla. Havia pedaços de carvão para a cor negra, manganês para preto-azulado, e um brilhante amarelo sulfúreo, em adição a ocres de muitas cores: marrons, vermelhos, castanhos-avermelhados, amarelos. Os pilões eram as formas naturais de tigelas de alguns ossos, tais como o osso frontal de um veado, ou feitos de granito ou basalto, exatamente como eram as candeias de pedra. Os almofarizes eram moldados de osso ou marfim resistente, exceto um que era uma pedra naturalmente alongada.
- Que tonalidade de vermelho quer, Ayla? Vermelho forte, vermelho-sangue, vermelho-terra, vermelho-amarelado; essa é uma espécie de cor do sol.
Ayla não sabia que teria tantas opções.
- Não sei... Vermelho, vermelho respondeu.
Deegie estudou as cores.
- Acho que se pegarmos este – faloti, apanhando um pedaço que era mais um vermelho-vivo, cor de terra -, e acrescentarmos um pouco de amarelo, para avivar mais o vermelho, talvez seja uma cor que você goste.
Ela colocou a pequena massa de ocre vermelho no pilão de pedra e mostrou a Ayla como triturá-la bem fina, depois moeu o pedaço amarelo numa vasilha separada. Em uma terceira vasilha Deegie misturou as duas cores até ficar satisfeita com o tom. Depois ajuntou a gordura quente, que mudou e avivou mais a cor para uma tonalidade que fez Ayla sorrir.
- Sim. Isso é vermelho. Vermelho bonito - disse ela.
Em seguida, Deegie pegou uma comprida costela de veado, que fora cortada no sentido do comprimento, para que o osso poroso interno ficasse exposto na extremidade convexa. Usando o polidor de costela com o lado esponjoso para baixo, da pegou uma pincelada da gordura vermelha resfriada, e esfregou a mistura na pele preparada de bisão, pressionando com força enquanto segurava a pele em sua mão. Enquanto fazia o colorido mineral penetrar nos poros do couro, este adquiria um brilho suave. No couro granulado, a ferramenta de lustrar e os agentes de colorir teriam produzido um acabamento brilhante e áspero.
Depois de observar algum tempo, Ayla pegou outro osso de costela e copiou a técnica de Deegie. Deegie a vigiou, fazendo algumas correções. Quando um canto do couro estava pronto, ela deteve Ayla por um momento.
- Veja - falou, derramando algumas gotas d’água sobre o couro, enquanto mantinha o canto erguido. - Escorre, vê? - A água escorreu em gotas, não deixando marca no acabamento impermeável.
- Já resolveu o que fará com seu pedaço de couro vermelho? - perguntou Nezzie. para mostrar a Rydag e admirá-la novamente, ela própria. Era dela, porque ela havia curtido e tratado do couro, e jamais tivera uma coisa tão grande que fosse vermelha, e o couro resultara notavelmente vermelho. - Vermelho era uma cor sagrada para o Clã. Eu a daria a Creb, se pudesse.
“É o vermelho mais vivo que já vi. Certamente, pode-se ver a pessoa a grande distância, ao usar uma roupa dessa cor.
- Também é macio - Rydag falou por sinais. Ele vinha freqüentemente visitá-la na Fogueira do Mamute e ela lhe dava boas-vindas.
- Deegie me ensinou a fazer ficar macio com miolos, primeiro - falou Ayla, sorrindo para o amigo. - Eu usava gordura antes. Difícil de fazer e mancha, às vezes. Melhor usar miolos de bisão. - Fez uma pausa com expressão pensativa, depois perguntou: - Dará certo com todo animal, Deegie? - Então, quando Deegie concordou com um gesto de cabeça, ela disse:
- Que quantidade deveríamos usar? Quanto para a rena? E para o coelho? - Mut, a Grande Mãe, em sua infinita sabedoria - replicou Ranec em vez de Deegie, com um vislumbre de sorriso -, sempre dá miolos suficientes a cada animal para preservar sua pele.
A risada gutural suave de Rydag intrigou Ayla por um instante; depois ela sorriu:
- Alguns não têm miolos suficientes para não ser apanhados?
Ranec riu e Ayla se juntou a ele, satisfeita consigo mesma por compreender a piada oculta no significado da palavra. Ela se sentia mais à vontade com a língua, agora.
Jondalar acabando de entrar na Fogueira do Mamute, e vendo Ranec e Ayla rindo juntos, sentiu o estômago revolver-se como se desse um nó.
Mamut o viu fechar os olhos como se sofresse. Lançou um olhar a Nezzie
e sacudiu a cabeça.
Danug, que viera atrás do trabalhador de sílex visitante, observou-o parar, agarrar um suporte e abaixar a cabeça. Os sentimentos de Jondalar e Ranec por Ayla e o problema que se desenvolvia por causa deles, eram óbvios para todos, embora a maior parte das pessoas não o reconhecesse. Não queriam interferir, esperando dar aos três espaço para resolver o caso sozinhos. Danug gostaria de poder fazer alguma coisa para ajudar, mas estava desconcertado. Ranec era um irmão, desde que Nezzie o adotara, mas ele gostava de Jondalar e sentia empatia por sua angústia. Ele também tinha sentimentos fortes, embora indefinidos, pelo belo novo membro do Acampamento do Leão. Além dos rubores inexplicáveis e sensações físicas quando ele estava perto de Ayla, sentia uma afinidade por ela. Ela parecia estar tão confusa sobre como controlar a situação quanto ele se sentia, muitas vezes, em relação às novas mudanças e complicações em sua vida.
Jondalar respirou fundo e endireitou o corpo; depois, avançou mais para o interior do recinto. Os olhos de Ayla o seguiram enquanto ele caminhava até Mamut e lhe entregava alguma coisa. Ela os viu trocarem algumas palavras. Depois, Jondalar saiu, rapidamente, sem lhe falar. Ela havia perdido o fio da conversa que tinha lugar à sua volta e, quando Jondalar saiu,
- Não - replicou Ayla. Ela havia desdobrado a pele inteira de bisão ela correu para Mamut, não ouvindo a pergunta que Ranec lhe tinha feito, nem vendo a expressão fugaz de desapontamento no rosto dele. Ele fez uma brincadeira, que ela tampouco ouviu, para encobrir seu desalento. Mas Nezzie, que era sensível às nuanças sutis dos sentimentos mais profundos de Ranec, notou a mágoa em seus olhos, e depois o viu firmar o maxilar e aprumar os ombros com resolução.
Ela queria aconselhá-lo, dar-lhe a contribuição de sua experiência e a sabedoria de seus olhos, mas calou-se. Eles devem solucionar seus destinos, pensou.
Como os Mamutoi viviam em locais acanhados por períodos prolongados de tempo, tinham que aprender a tolerar-se mutuamente. Não havia realmente privacidade na habitação comunal, exceto a privacidade dos pensamentos de cada pessoa, e tinham muito cuidado para não se intrometer nos pensamentos particulares do outro. Evitavam fazer perguntas pessoais, ou insistir em ofertas não-pedidas de ajuda e conselho, ou intervir em disputas, a menos que lhes pedissem, ou se as altercações se tornassem incontroláveis e um problema para todos. Em vez disso, se vissem o desenvolvimento de uma situação perturbadora, tornavam-se silenciosamente disponíveis e esperavam com paciência e indulgência, até haver necessidade de um amigo para discutir preocupações, temores e frustrações. Não eram judiciosos ou altamente críticos, e impunham poucas restrições ao comportamento pessoal se não magoasse ou perturbasse gravemente os outros. Uma solução para um problema era aquela que funcionava e satisfazia todos os envolvidos. Eram gentis com as almas uns dos outros.
- Mamut... - começou Ayla, depois compreendeu que não sabia, exatamente, o que queria dizer. - Ah... Acho que agora é bom momento para fazer remédio para artrite.
- Não faço objeção - disse o velho, sorrindo. - Não passo um inverno tão confortável há muitos anos. Se não por outra razão, estou contente por estar aqui, Ayla. Deixe-me guardar esta faca que ganhei de Jondalar, e me porei em suas mãos.
- Ganhou uma faca de Jondalar?
- Crozie e eu apostávamos com os ossinhos de carneiros. Ele observava e parecia interessado, por isso o convidei a jogar. Ele disse que gostaria, mas nada tinha para apostar. Eu disse que contanto que tivesse sua arte, sempre teria alguma coisa, e que apostaria contra uma faca especial, que eu queria que fosse feita de uma certa maneira. Ele perdeu. Ele devia saber que não se aposta contra Um Que Serve. - Mamut riu baixinho. - Aqui está a faca. Ayla concordou com um gesto de cabeça. Sua resposta satisfez a curiosidade dela, mas gostaria que alguém pudesse lhe contar por que motivo Jondalar não queria falar com ela. O grupo de pessoas que estivera admirando o couro vermelho de Ayla se dispersou e deixou a Fogueira do Mamute, com exceção de Rydag, que se reuniu a Ayla e Mamut. Havia alguma coisa confortadora em vê-la tratando o velho feiticeiro. Ele se acomodou a um canto da cama.
- Primeiro, farei cataplasma quente para você - disse Ayla, e começou a misturar ingredientes em uma vasilha de madeira.
Mamut e Rydag a observaram medir, misturar, esquentar a água.
- O que usa na cataplasma? -. Perguntou Mamut.
- Não conheço seus nomes para as plantas.
- Descreva-as para mim. Talvez eu possa lhe dizer. Conheço algumas plantas e alguns remédios.
Tive que aprender alguns.
- Uma planta, cresce mais alto que o joelho - explicou Ayla, pensando com cuidado sobre a planta. - Tem folhas grandes, não de um verde vivo, mas como poeira sobre elas. As folhas crescem junto com a haste primeiro, depois ficam grandes, em seguida se tornam pontiagudas. Sob a folha, é como pele macia. As folhas são boas para muitas coisas, e as raízes também, especialmente, ossos quebrados.
- Confrey! Deve ser confrey! O que mais há na cataplasma? - Isto é interessante, pensou.
- Outra planta menor, não alcança o joelho. As folhas são como pequenas pontas de lança que Wymez faz, de um verde escuro e brilhante, permanecem verdes no inverno. O galho se projeta das folhas, tem pequenas flores, de cor clara, com pequenas manchas vermelhas dentro. É boa para inflamações, erupções também - disse Ayla.
Mamut sacudia a cabeça.
- As folhas permanecem verdes no inverno, flores manchadas. Acho que não conheço essa. Por que não chamá-la apenas de gualtéria manchada?
Ayla concordou, balançando a cabeça.
- Quer conhecer outras plantas? - perguntou ela.
- Sim, vá em frente e descreva outra.
- Planta grande, maior que Talut, quase árvore. Cresce em terras baixas, perto dos rios. Bagas escuras, purpúreas permanecem na planta mesmo no inverno. Folhas novas são boas para comer, as grandes e velhas são muito fortes, podem causar doença. A raiz seca em cataplasma é boa para inchação, “inchação vermelha” também, e para a dor. Eu coloco bagas secas no chá que faço para sua artrite. Sabe o nome?
- Não, acho que não, mas contanto que você conheça a planta, estou satisfeito - disse Mamut. - Seus remédios para a minha artrite têm ajudado. Você é perita em medicamentos para os idosos.
- Creb era velho. Era coxo e tinha dores de artrite. Aprendi a ajudar com Iza. Depois, ajudei outros no Clã. - Ayla fez uma pausa e ergueu os olhos de sua mistura. - Acho que Crozie também sofre de dores por causa da idade. Quero ajudar. Acha que ela se oporia, Mamut?
- Ela não gosta de admitir as deficiências da idade. Era bela e altiva quando jovem, mas acho que tem razão. Você poderia perguntar a ela, especialmente se puder pensar em uma maneira de não lhe ferir o orgulho É tudo o que lhe resta agora.
Ayla concordou com um gesto de cabeça Quando o preparado estava pronto, Mamut tirou a roupa.
- Quando estiver descansando com o cataplasma - disse Ayla - tenho um pó de raiz de outra planta que quero colocar sobre carvões quentes para que cheire. Você vai suar, e é bom para a dor. Então, antes de dormir esta noite, tenho novo líquido para as juntas..
Suco de maçã e raiz forte...
- Quer dizer rábano-picante? A raiz que Nezzie usa com a comida.
- Acho que sim, com suco de maçã e a bebida fermentada de Talut. Aquecerá a pele por dentro e por fora.
Mamut riu.
Como conseguiu que Talut deixasse você colocar sua bebida fora, sobre a pele, e não no interior?
Ayla sorriu.
- Ele gosta do “remédio mágico da manhã seguinte”. Eu digo que sempre o prepararei para ele - falou ela, enquanto aplicava um cataplasma espesso, viscoso, quente nas articulações doloridas do velho.
Ele se recostou, confortavelmente, e fechou os olhos.
Este braço parece bom - comentou Ayla, trabalhando sobre o braço que fora fraturado. - Acho que foi uma fratura grave.
- Foi uma fratura grave - disse Mamut, abrindo os olhos. Lançou um olhar a Rydag, que assimilava tudo silenciosamente. Mamut nunca falara a ninguém de sua experiência, com exceção de Ayla. Fez uma pausa; depois, balançou a cabeça fortemente, com decisão.
- E hora de você saber, Rydag. Quando eu era um jovem e fazia uma jornada, caí por um penhasco e quebrei o braço. Fiquei tonto, e finalmente, vaguei até chegar a um acampamento de cabeças-chatas, pessoas do Clã. Vivi com elas por algum tempo.
- Por isto você aprende os sinais depressa! - Rydag sorriu. - Achei que era muito esperto.
- Sou muito esperto, rapaz - disse Mamut, sorrindo -, mas também me lembrava de alguns deles, quando Ayla me fez recordar.
O sorriso de Rydag se ampliou. Exceto por Nezzie e o resto de sua família da Fogueira do Leão, ele amava aquelas duas pessoas mais que a tudo no mundo, e nunca fora tão feliz desde que Ayla chegara. Pela primeira vez na vida podia falar, podia fazer as pessoas compreendê-lo, era capaz até de fazer alguém sorrir. Observou Ayla trabalhando em Mamut, e até ele podia reconhecer o conhecimento e dedicação da jovem. Quando Mamut olhou em sua direção, ele fez o sinal:
- Ayla é boa curandeira.
- As curandeiras do Clã são muito inteligentes, ela aprendeu com elas. Ninguém poderia ter feito um trabalho melhor em meu braço. A pele estava esfolada, com terra suja dentro, e aberta, com o osso fraturado projetando-se para fora. Parecia um pedaço de carne. A mulher, Uba, limpou o braço e fixou-o, e sequer inflamou com pus e febre. Pude usá-lo totalmente quando ficou bom, e somente nestes últimos anos senti um pouco de dor de vez em quando. Ayla aprendeu com a neta da mulher que cuidou do meu braço. Disseram-me que ela era considerada a melhor - anunciou Mamut, observando a reação de Rydag.
O garoto olhou para os dois curiosamenle, perguntando-se como podiam conhecer as mesmas pessoas.
- Sim. E Iza era melhor, como sua mãe e avó - disse Ayla, terminando. Ela não prestara atenção à comunicação silenciosa entre o menino co velho. - Ela sabia tudo que a mãe dela sabia, tinha as lembranças da mãe e da avó.
Ayla tirou algumas pedras da fogueira, aproximando-as da cama de Mamut, ergueu alguns carvões em brasa com dois paus e os colocou sobre as pedras. Depois, salpicou raiz pulverizada sobre os carvões. Foi buscar cobertas para Mamut conservar o calor, mas enquanto as enfiava à volta dele, ele se levantou em um cotovelo e olhou para a jovem pensativamente.
- As pessoas do Clã são diferentes de uma forma que a maior parte dos indivíduos não compreende. Não se trata de que não falam, ou de que sua fala é diferente. A maneira como pensam é que é um pouco diversa. Se Uba, a mulher que cuidou de mim, era a avó de sua Iza, e aprendeu das lembranças de sua mãe e avó, como você aprendeu, Ayla? Você não tem as lembranças do Clã.
- Mamut notou um rubor de constrangimento e um rápido arquejo de surpresa antes de Ayla abaixar o olhar. - Ou tem?
Ayla ergueu o olhar para ele de novo, depois abaixou-o.
- Não. Não tenho as lembranças do Clã - respondeu.
- Mas...?
Ayla tornou a encará-lo.
- O que quer dizer, “mas”? - ela perguntou, com a expressão cautelosa, quase assustada. Voltou os olhos para o chão novamente.
- Você não tem as lembranças do Clã, mas... Tem alguma coisa, não é? Alguma coisa do Clã?
Ayla manteve a cabeça inclinada. Como podia ele saber? Ela jamais contara a ninguém, nem mesmo a Jondalar. Ela mal chegava a admitir a si própria, porém, nunca mais fora à mesma depois.
Existiram aqueles momentos que lhe trouxeram inspiração...
- Isso tem algo a ver com sua perícia como curandeira? - indagou Mamut.
Ela levantou os olhos e sacudiu a cabeça.
- Não - retrucou, os olhos suplicando para que ele acreditasse nela.
- Iza me ensinou, eu era muito jovem. Acho que não tinha a idade de Rugie ainda, quando ela começou. Iza sabia que eu não tinha as lembranças, mas fez-me lembrar, fez-me contar-lhe uma e outra vez, até eu não esquecer mais. Ela era muito paciente. Algumas pessoas disseram a ela que era tolice me ensinar. Que eu não conseguiria me lembrar... Era estúpida demais. Ela me disse que não, que eu era apenas diferente. Eu não queria ser diferente. Eu me obriguei a me lembrar. Eu disse a mim mesma, uma e outra vez, mesmo quando Iza não estava ensinando. Aprendi a me lembrar, do meu jeito. Depois, forcei-me a aprender depressa, para que eles não pensassem que eu era tão estúpida assim.
Os olhos de Rydag estavam arregalados, redondos. Mais do que tudo, compreendia exatamente como ela se sentira, mas ignorava que alguma pessoa se tivesse sentido da mesma forma, principalmente alguém como Ayla.
Mamut olhou para ela com assombro.
- Então, decorou as “memórias” do clã de Iza! Isso é uma façanha. Elas recuam de geração a geração, não é?
Rydag ouvia com atenção, pressentindo algo muito importante para ele.
- Sim - disse Ayla -, mas não aprendi todas as suas lembranças. Iza não podia ensinar-me tudo o que sabia. Ela me disse que nem sequer ela sabia quanto conhecimento tinha, mas ensinou-me a aprender. Como testar, como tentar cuidadosamente. Então, quando eu fiquei mais velha, ela disse que eu era sua filha, curandeira de sua linhagem. Perguntei como podia reivindicar sua linhagem? Não era sua verdadeira filha, não era sequer Clã, eu não tinha memórias. Então, ela me disse que eu tinha outra coisa, tão boa quanto as memórias, talvez melhor. Iza achava que eu nascera de uma família de curandeiras dos Outros, da melhor linhagem, como a sua. Por isto eu era curandeira de sua linhagem. Ela disse que eu seria a melhor, um dia.
- Sabe o que ela queria dizer? Sabe o que possui? – perguntou, Mamut.
- Sim, acho que sim. Quando alguém não está bem, vejo o que está errado. Vejo expressão dos olhos, cor do rosto, odor da respiração. Reflito a respeito, às vezes sei apenas olhando, outras vezes, sei o que perguntar. Depois faço remédio para ajudar. Nem sempre é o mesmo remédio. As vezes, remédio novo, como a bebida fermentada no preparado para artrite.
- Talvez sua Iza tivesse razão. Os melhores curandeiros possuem esse dom - disse Mamut.
Depois, um pensamento lhe ocorreu e ele prosseguiu:
- Notei uma diferença entre você e os curandeiros que conheço, Ayla. Você usa remédios de plantas e outros tratamentos para curar. Os curandeiros Mamutoi invocam também o auxílio dos espíritos.
- Não conheço o mundo dos espíritos. No Clã somente, Mog-urs conhecem. Quando Iza queria ajuda dos espíritos, pedia a Creb.
O Mamut a fixou de forma penetrante.
- Ayla, gostaria de ter a ajuda do mundo espiritual?
- Gostaria, mas não tenho mog-ur a quem pedir.
- Não precisa pedir a ninguém. Você pode ser seu próprio mog-ur
- Eu? Um mog-ur? Mas sou uma mulher. Uma mulher do Clã não pode ser um mog-ur - disse Ayla, aturdida com a sugestão.
- Mas você não é uma mulher do Clã. Você é Ayla dos Mamutoi. É a filha da Fogueira do Mamute. Os melhores curandeiros Mamutoi conhecem os caminhos dos espíritos. Você é uma boa curandeira, Ayla, mas como será a melhor se não puder pedir o auxílio do mundo espiritual?
Ayla sentiu um grande nó de ansiedade se apertar em seu estômago. Era curandeira, uma boa curandeira, e Iza dizia que ela seria a melhor algum dia. Agora, Mamut dizia que não poderia ser a melhor sem a ajuda dos espíritos, e ele devia ter razão. Iza sempre pedia a ajuda de Creb, não pedia?
- Mas, não conheço o mundo dos espíritos, Mamut - disse Ayla, sentindo-se desesperada, quase em pânico.
Mamut se inclinou para mais perto dela, sentindo que a ocasião era adequada, e extraindo de alguma fonte interior uma força para compelir.
- Conhece, sim - disse ele, o tom de voz autoritário -, não é verdade, Ayla?
Os olhos da jovem se arregalaram de medo.
- Não quero conhecer o mundo espiritual! - gritou.
- Você teme esse mundo apenas porque não o compreende. Posso ajudá-la a compreender. Posso ajudá-la a usá-lo. Você nasceu para a Fogueira do Mamute, para os mistérios da Mãe, não importa onde tenha nascido ou para onde vá. Não pode fazer nada, está atraída por esse mundo e ele a procura. Não pode fugir, mas, com treinamento e compreensão, é capaz de controlá-lo. Pode fazer os mistérios trabalharem a seu favor. Ayla, não pode lutar contra o destino, e é seu destino Servir à Mãe.
- Sou curandeira! Esse é o meu destino.
- Sim, esse é o seu destino: ser uma curandeira. Mas isso é Servir à Mãe, e um dia, talvez seja chamada para servir de outra maneira. Precisa estar preparada, Ayla, sabe que algumas doenças não podem ser curadas com remédios e tratamento apenas. Como cura alguém que não quer mais viver? Que medicamento dá a alguém à vontade de se recuperar de um acidente grave? Quando alguém morre, que tratamento dá àqueles que ficam?
Ayla inclinou a cabeça. Se alguém tivesse sabido o que fazer por ela quando Iza morreu, talvez não houvesse perdido seu leite e não tivesse que dar seu filho para outras mulheres com filhos, para ser amamentado. Saberia ela o que fazer se isso acontecesse com alguém de quem cuidava? O conhecimento do mundo espiritual a ajudaria, a saber, o que fazer?
Rydag observava a cena tensa sabendo que havia sido esquecido momentaneamente. Temia mover-se, com medo de distraí-los de alguma coisa muito importante, embora não estivesse certo do que fosse.
- Ayla, o que teme? O que aconteceu que a fez se afastar? Conte-me - disse Mamut, a voz persuasiva, e afetuosa.
Ayla ficou de pé, de repente. Pegou as peles quentes e enfiou-as ao redor do velho feiticeiro.
- Deve se cobrir, manter-se aquecido para a cataplasma fazer efeito – disse, ela, obviamente perturbada e preocupada. Mamut jazeu de costas, permitindo que ela completasse o tratamento sem objeção, compreendendo que ela precisava de tempo. Ela começou a andar de um lado para o outro, nervosa e agitada, os olhos vagos fixando o espaço ou alguma cena interior. Ela girou e o encarou.
- Eu não tinha intenção! -.-- exclamou
- Não tinha intenção de quê? - perguntou Mamut
- De entrar na caverna... Ver os mog-urs.
- Quando entrou na caverna, Ayla? - Mamut conhecia as proibições contra mulheres participarem dos rituais do Clã. Ela deve ter feito alguma coisa que não devia, quebrado algum tabu, pensou ele.
- Na Reunião de Clãs.
- Você foi à Reunião de Clãs? Eles fazem uma Reunião uma vez a cada sete anos, não é verdade?
Ayla balançou a cabeça, concordando.
- Há quanto tempo foi essa Reunião?
Ela teve que parar, para pensar a respeito e a concentração abriu um pouco sua mente.
- Durc tinha nascido, então, na primavera. No próximo verão, fará sete anos! No próximo verão, haverá Reunião de Clãs. Clã irá à Reunião, trará Ura de volta. Ura e Durc serão companheiros. Meu filho será homem, logo!
- É verdade, Ayla? Ele terá apenas sete anos quando tiver uma companheira? Seu filho será homem tão cedo? - indagou Mamut.
- Não, não tão jovem. Talvez mais três ou quatro anos. Ele é... como
Druwez. Ainda não é homem. Mas a mãe de Ura me pediu Durc, para Ura.
Ela também é filha de espíritos mistos. Ura viverá com Brun e Ebra. Quando
Durc e Ura tiverem idade suficiente, serão companheiros.
Rydag fitava Ayla, incrédulo. Não entendia claramente todas as implicações, mas uma coisa parecia certa. Ayla tinha um filho, misto como ele, que vivia com o Clã!
- O que aconteceu na Reunião de Clãs sete anos atrás, Ayla? - interrogou Mamut, não querendo deixar o assunto morrer quando parecera tão perto de conseguir que Ayla concordasse em começar o treinamento, embora ela houvesse mencionado alguns pontos intrigantes que ele gostaria de esclarecer. Estava convencido de que não era apenas importante, mas essencial para seu próprio bem, que isto acontecesse.
Ayla fechou os olhos com expressão angustiada.
- lza estava muito doente para ir. Ela disse a Brun que eu era uma curandeira, Brun realizava a cerimônia. Ela me disse como mastigar a raiz para preparar a bebida para os mog-urs. Só disse, não podia me mostrar. Era sagrada... Demais para fazer para treinar, Os mog-urs não me queriam na Reunião de Clãs, eu não era Clã. Mas ninguém mais sabia, somente a linhagem de lza. Afinal, disseram sim. Iza medisse para não engolir o suco, quando mastigasse, para cuspir na tigela, mas eu não consegui, engoli um pouco. Mais tarde, fiquei confusa, entrei na caverna, segui as fogueiras, encontrei os, mog-urs. Eles não me viram, mas Creb viu.
Ela se agitou de novo, andando de um lado para o outro.
- Estava escuro, como um buraco fundo, e eu caía. Ela curvou os ombros, esfregou os braços como se sentisse frio. - Depois, Creb veio, como você, Mamut, porém mais. Ele... Ele... Levou-me consigo.
Ficou em silêncio, então, caminhando. Afinal, parou e falou de novo.
- Depois, Creb ficou zangado e infeliz. E eu... Fiquei diferente. Nunca digo, mas às vezes, penso que volto lá... E fico assustada.
Mamut esperou para ver se ela terminara. Ele tinha alguma idéia do que ela passara. Ele tivera a permissão de estar presente em uma cerimônia do Clã. Eles usavam certas plantas de forma única, e ele havia experimentado algo insondável. Ele havia tentado, mas nunca fora capaz de repetir a experiência, mesmo depois de se tornar Mamut. Ia dizer alguma coisa quando Ayla tornou a falar.
- Às vezes, quero jogar a raiz fora, mas Iza me disse que é sagrada.
Ele levou um instante para registrar o significado das palavras de Ayla. Mas o choque da compreensão quase o fez ficar de pé.
- Está dizendo que tem a raiz com você? - perguntou ele, achando difícil controlar sua excitação.
- Quando parti, trouxe a bolsa de remédios. A raiz está na bolsa, em um saquinho vermelho especial.
- Mas, ainda está boa? Você disse que faz mais de três anos que partiu. Ela não perdeu sua potência durante esse tempo?
- Não, está preparada de modo especial. Depois de a raiz secar, se mantém muito tempo, muitos anos.
- Ayla - começou o Mamut, tentando dizer as palavras corretas-, talvez seja uma sorte você ainda ter a raiz. Sabe, a melhor forma de vencer um temor é enfrentá-lo. Gostaria de preparar essa raiz de novo? Somente para você e eu?
Ayla estremeceu sob o pensamento
- Não sei, Mamut. Não quero, estou assustada.
- Não digo imediatamente - falou ele. - Não até você ter tido algum treinamento e estar preparada para isso. E deveria ser uma cerimônia especial, com significado profundo e importância. Talvez o Festival de Primavera, o começo de nova vida. - Ele a viu estremecer novamente. - E você quem sabe, mas não tem que decidir agora. Tudo o que peço é que me permita iniciar o treinamento e a preparação. Quando a primavera chegar, se não se sentir pronta, poderá dizer não.
- O que é treinamento? - perguntou Ayla.
- Em primeiro lugar, gostaria que aprendesse algumas canções e cânticos, e como usar a caveira de mamute. Depois, há o significado de alguns símbolos e sinais.
Rydag a viu fechar os olhos e enrugar a testa. Esperava que ela concordasse. Ele acabara de saber mais sobre o povo de sua mãe do que nunca antes, mas queria saber mais. Se Mamut e Ayla planejavam uma cerimônia com rituais do Clã, tinha certeza de que saberia.
Quando Ayla abriu os olhos, eles tinham expressão perturbada, mas ela engoliu com dificuldade e depois concordou com um gesto de cabeça.
- Sim, Mamut. Tentarei enfrentar o medo do mundo espiritual, se você me ajudar.
Quando Mamut se deitou outra vez, não notou que Ayla apertava o pequeno saco ornamentado que usava em volta do pescoço.
- Hu, hu, hu! Três! - gritou Crozie, rindo astutamente enquanto contava os discos com o lado marcado para cima, que tinham sido apanhados na tigela entrelaçada e vazia.
- Sua vez de novo - disse Nezzie. Estavam sentadas ao chão, ao lado da abertura circular de solo de loesse seco que Talut utilizara para fazer o mapa de um projeto de caçada. - Ainda faltam sete. Aposto mais dois.
- Ela traçou mais duas linhas na superfície alisada da cavidade de desenhar. Crozie pegou a tigela de vime e sacudiu os sete discos de marfim juntos.
Os discos, que formavam levemente um bojo de forma a balançar sobre uma superfície plana, eram lisos de um lado; o outro lado era esculpido com linhas e coloridos. Crozie, mantendo a grande tigela vazia perto do solo, atirou os discos para o ar. Depois, movendo a cesta com habilidade através da esteira com borda vermelha que limitava o campo de jogo, pegou os discos com a cesta. Desta vez, quatro discos tinham o lado marcado para cima e somente três eram lisos.
- Veja isso! Quatro! Só faltam três. Aposto mais cinco.
Ayla, sentada em uma esteira próxima, bebericava chá de sua xícara de madeira, e observava a velha agitar os discos, juntos, na cesta novamente. Crozie jogou-os para o alto e pegou-os mais uma vez. Agora, cinco discos tinham o lado com marcas esculpidas visível.
- Ganhei! Quer jogar de novo, Nezzie?
- Bem, talvez mais uma vez - disse Nezzie estendendo a mão para a cesta de vime e sacudindo-a. Ela atirou os discos para o alto e pegou-os com a cesta achatada.
- Lá está o olho negro! - gritou Crozie, apontando para um disco que tinha o lado virado para cima colorido de negro. - Você perdeu! Isso faz com que me deva doze. Quer jogar mais?
- Não, você está com muita sorte hoje - disse Nezzie, levantando-se.
- Que tal você, Ayla? - perguntou Crozie. - Quer jogar?
- Não sou boa em jogo - replicou Ayla. - Às vezes, não pego todos os discos.
Ela havia observado o jogo muitas vezes enquanto o frio rigoroso da prolongada estação se tornava pior, mas jogara pouco, e apenas para praticar. Ela sabia que Crozie era uma jogadora séria, que não jogava para treinar apenas, e tinha pouca paciência com jogadores indecisos ou inábeis.
- Bem, que tal o jogo com ossinhos? Não precisa de habilidade para jogá-lo.
- Eu jogaria, mas não sei o que apostar - disse Ayla.
- Nezzie e eu jogamos por marcas e depois acertamos as contas.
- Agora, ou depois, não sei o que apostar.
- Certamente, você tem alguma coisa que pode apostar - falou Crozie, um pouco impaciente para continuar a jogar. - Alguma coisa de valor.
- E você aposta alguma coisa do mesmo valor?
A velha concordou com um gesto de cabeça, bruscamente.
- Claro.
Ayla franziu a testa com concentração.
- Talvez... Peles, ou couro ou algo para fazer. Espere! Acho que sei de uma coisa. Jondalar jogou com Mamut e apostou sua perícia. Ele fez uma faca especial quando perdeu. E bom apostar a perícia, Crozie?
- Por que não? -disse ela. -Vou marcar aqui - ajuntou, alisando a terra com o lado achatado da faca de desenhar. A mulher pegou dois objetos no chão ao seu lado e estendeu-os, um em cada mão. Se adivinhar, consegue uma marca. Se errar, eu ganho um ponto. A primeira que conseguir três pontos ganha o jogo.
Ayla olhou para os dois ossos de metacarpo de um boi almiscarado que ela segurava, um pintado de linhas vermelhas e pretas, o outro liso.
- Devo pegar o liso, não é? - perguntou.
- Exatamente - disse Crozie, com um brilho malicioso nos olhos.
- Está pronta? - Esfregou as palmas uma na outra com os ossinhos dentro, mas olhou para Jondalar, sentado com Danug na área de trabalho em sílex. - Ele é realmente tão bom como dizem? - interrogou, balançando a cabeça na direção do homem.
Ayla lançou um olhar na mesma direção, e viu a cabeça loura de Jondalar inclinada perto da do garoto ruivo. Quando ela virou a cabeça, Crozie tinha as duas mãos atrás das costas.
- Sim. Jondalar é bom - falou.
Crozie tentara, propositadamente, desviar sua atenção para outro lugar, a fim de distraí-la?, Perguntou-se. Olhou para a mulher com cuidado, observando a leve inclinação de seus ombros, a forma como mantinha a cabeça, a expressão do rosto.
Crozie trouxe as mãos para a sua frente, de novo, e estendeu-as, fechadas ao redor dos ossinhos.
Ayla examinou o rosto enrugado, que se tornara vazio e inexpressivo, e as mãos artríticas de nós dos dedos brancos. Uma das mãos se encontrava um pouco mais perto do seu peito? Ayla es colheu a outra.
- Perdeu! - regozijou-se Crozie, ao abrir a mão e mostrar o osso marcado de vermelho e preto. Traçou uma linha curta no local de marcação.
- Está pronta para tentar de novo?
- Estou - respondeu Ayla.
Desta vez, Crozie começou a cantarolar baixinho enquanto esfregava os ossos um no outro, entre as suas palmas. Fechou os olhos, depois olhou para o teto e fitou-o, como se visse alguma coisa interessante perto da abertura para passagem da fumaça. Ayla ficou tentada a erguer os olhos e ver o que era tão fascinante, e começou a acompanhar o olhar de Crozie. Então, lembrou-se do truque sagaz que fora usado para desviar sua atenção antes, e voltou a olhar para a mulher, a tempo de ver a velha astuciosa espiar as palmas das mãos antes de escondê-las atrás das costas. Um sorriso experiente de respeito rancoroso atravessou o seu rosto. O movimento de seus ombros e músculos dos braços dava a impressão de ação entre as mãos escondidas. Crozie pensava que Ayla havia vislumbrado um dos ossos, e trocava-os de mãos? Ou Crozie queria apenas que Ayla pensasse isso?
Ayla refletiu que havia mais naquele jogo do que adivinhação, e era mais interessante jogar do que observar. Crozie lhe mostrou os punhos fechados novamente. Ayla olhou para ela com atenção, mas disfarçadamente Não era educado encarar os outros, em primeiro lugar, e em nível mais sutil, não queria que Crozie soubesse o que ela procurava. Era difícil dizer, a mulher era perita no jogo, mas parecia que o outro ombro estava um pouco mais erguido, e que a outra mão estava um pouco à frente desta vez. Ayla escolheu a mão que pensou que Crozie desejava que escolhesse, a mão errada.
- Ah! Perdeu de novo! - exclamou Crozie, animada, depois ajuntou mais depressa: - Está pronta?
Antes de Ayla concordar com um gesto de cabeça, Crozie tinha as mãos para atrás das costas, e depois à sua frente para que adivinhasse, mas agora, inclinava-se para a frente. Ayla resistiu, sorrindo. A velha sempre mudava alguma coisa, tentando evitar dar algum sinal válido. Ayla escolheu a mão que pensou ser a certa, e foi recompensada com uma marca no local de marcação. Da vez seguinte, Crozie mudou a posição novamente, abaixando as mãos e Ayla errou.
- Três! Eu ganhei! Mas não pode realmente testar sua sorte com uma partida apenas. Quer jogar outra? - perguntou Crozie.
- Quero, gostaria de jogar de novo - respondeu Ayla.
Crozie sorriu, mas quando Ayla adivinhou acertadamente duas vezes seguidas, sua expressão era muito menos simpática. Franziu a testa enquanto esfregava as mãos com os ossinhos nas palmas, pela terceira vez.
Olhe lá! O que é aquilo? - falou Crozie, apontando com o queixo em uma tentativa espalhafatosa de distrair a jovem.
Ayla olhou e quando tornou a olhar para Crozie, a velha sorria outra vez. A jovem não se apressou em esconder a mão que continha o osso vencedor, embora houvesse decidido rapidamente. Não queria que Crozie parecesse preocupada demais, mas havia aprendido a interpretar os sinais inconscientes do corpo, que a mulher fazia quando jogava, e ela sabia em que mão se encontrava o osso liso, tão claramente como se Crozie lhe tivesse contado.
Não teria agradado a Crozie saber que ela se revelava tão facilmente, mas Ayla possuía uma vantagem rara. Estava acostumada a observar e interpretar detalhes sutis de postura e expressão como algo quase instintivo. Eles eram uma parte essencial da linguagem do Clã que comunicava nuanças e matizes de significado. Ela notara que as posturas e movimentos corporais também exprimiam um significado entre aquelas pessoas que se comunicavam, principalmente, com sons verbais, mas que isso não era proposital.
Ayla estivera tão ocupada tentando aprender a linguagem falada de seu novo povo, que não havia feito qualquer esforço verdadeiro para compreender sua linguagem inconsciente, não-falada. Agora, que se sentia à vontade, e embora não exatamente fluente, podia expandir sua comunicação para incluir os predicados da linguagem que não eram considerados, normalmente, parte da fala, O jogo que jogava com Crozie a fez comprender quanto podia aprender sobre seu próprio tipo de pessoa, aplicando o conhecimento e insight que havia aprendido com o Clã. E se o Clã não pudesse mentir por causa da impossibilidade de esconder a linguagem corporal, aqueles que ela conhecera como os Outros poderiam guardar segredos dela, ainda menos. Nem sequer sabiam que estavam “falando”. Ela não era totalmente capaz de interpretar os sinais corporais dos Outros, ainda... Mas estava aprendendo.
Ayla escolheu a mão que continha o osso liso do boi almiscarado, e Crozie, com uma facada de irritação, marcou uma terceira linha para Ayla.
- Agora, a sorte é sua - disse ela. - Como venci uma partida e você outra, podemos dizer que empatamos e esquecer as apostas.
- Não - disse Ayla. - Apostamos a perícia. Você ganha a minha: é medicina. Eu a darei a você. Quero sua arte. -
- Que arte? - perguntou Crozie. - Minha habilidade no jogo? E o que faço de melhor hoje em dia, e você já me venceu, Para que me quer?
- Não, não é o jogo. Quero fazer couro branco - disse Ayla.
Crozie arquejou de surpresa.
- Couro branco?
- Couro branco, como a túnica que usou na adoção.
- Há anos que não faço couro branco - disse Crozie.
- Mas é capaz de fazer?
- Sou. - Os olhos de Crozie suavizaram-se com expressão distante.
- Aprendi em menina, com minha mãe. Em uma época era sagrado para a Fogueira da Garça, ou assim dizem as lendas. Ninguém mais podia usá-lo... - Os olhos da velha endureceram. - Mas isso foi antes de a Fogueira da Garça decair tanto em seu valor que até o Preço de Noiva é uma insignificância. - Olhou duramente para a jovem. - O que é o couro branco para você?
- É bonito - disse Ayla, o que provocou uma nova expressão suave nos olhos de Crozie. - E o branco é sagrado para alguém - terminou, os olhos fixos nas mãos. - Quero fazer uma túnica especial, do modo que alguém gosta. Túnica especial branca.
Ayla não notou Crozie lançar um olhar a Jondalar, que naquele momento olhava para elas, casualmente. Ele desviou o olhar depressa, parecendo embaraçado. A velha sacudiu a cabeça para a jovem, que continuava de olhos baixos.
- E o que ganho por isto? - perguntou Crozie.
- Você me ensinará? - indagou Ayla, erguendo a cabeça e sorrindo. Notou um brilho de cobiça nos olhos da velha, mas alguma coisa mais, também. Algo mais distante eterno. - Farei remédio para artrite - disse ela - como para Mamut.
Quem disse que preciso de remédio? - rebateu Crozie. - Não sou. de forma alguma, tão velha quanto ele
- Não, não é tão velha, Crozie, mas sente dor. Você não diz que sente dor, faz outra queixa, mas eu sei, porque sou curandeira. O remédio não pode curar as articulações e ossos doloridos, nada pode curar a doença, mas é capaz de fazê-la sentir-se melhor. Cataplasma quente facilitará o movimento e inclinação do corpo, e farei remédio para dor, um para de manhã, um pouco para outros momentos - disse Ayla. Depois, percebendo que a mulher precisava de algo para salvar as aparências, acrescentou: - Preciso fazer remédio para você, para pagar minha aposta. E a minha arte.
Bem, acho que devo deixá-la pagar sua aposta - falou Crozie - mas quero mais uma coisa.
- O quê? Eu farei, se puder.
Quero mais daquela gordura que deixa a pele, velha e seca, macia... E jovem - falou em voz baixa.
Depois, endireitou o corpo e declarou: - Minha pele sempre fica rachada no inverno.
Ayla sorriu.
- Eu farei isso. Agora, diga-me qual é a melhor pele para couro branco, e perguntarei a Nezzie o que há nos locais de congelamento.
- Pele de veado. A da rena é boa, embora seja melhor usá-la como pele, para aquecer. Qualquer veado serve, gamo, alce, megáceros. Antes de conseguir a pele, contudo, precisará de outra coisa.
- O quê?
Terá de guardar sua urina.
- Minha urina?
- Isso mesmo. Não apenas sua, mas de qualquer pessoa, embora a sua seja melhor. Comece a recolhê-la agora, mesmo antes de descongelar uma pele de veado. Deve ser deixada onde estiver quente, por algum tempo - falou Crozie.
- Em geral, urino atrás da cortina, na cesta com esterco de mamute e cinzas. E jogada fora. Não use a cesta. Guarde a urina em uma bacia de crânio de mamute ou em uma cesta impermeável.
Algo que não vaze.
- Por que a urina é necessária?
Crozie fez uma pausa e avaliou a jovem diante dela antes de responder.
- Não estou mais jovem - disse, afinal-, e não tenho ninguém exceto Fralie... Em geral, uma mulher transmite sua arte para os filhos e netos, mas Fralie não tem tempo e não se interessa muito em curtir couro... Ela gosta de costura e bordado com contas... E não tem filhas. Seus filhos... Bem, são jovens. Quem sabe? Mas minha mãe me legou o saber, e devo passá-lo.., Para alguém. E trabalho difícil preparar couro cru, mas vi seu trabalho em couro. Mesmo as peles para agasalho e as peles simples que você trouxe mostram habilidade e cuidado, e isso é necessário para fazer o couro branco. Não tenho pensado em fazê-lo, há anos, e ninguém mais mostrou muito interesse, mas você sim. Por isto, eu lhe direi.
A mulher se inclinou para frente e apertou a mão de Ayla.
- O segredo do couro branco está na urina. Isso pode lhe parecer estranho, mas é verdade.
Depois de ser deixada em um local quente por algum tempo, ela muda. Então, se você mergulha peles nela, todos os restos de gordura que possam ter ficado, saem, e quaisquer manchas de gordura. O pêlo sairá mais facilmente, a pele não apodrecerá depressa, e permanece macia mesmo sem curar, ou seja, não ficará queimada pelo sol ou marrom. Na verdade, ela embranquece a pele, ainda não verdadeiramente branca, mas quase. Depois, quando o couro é lavado e torcido várias vezes, e seco, está pronto para a cor branca.
Se alguém lhe houvesse perguntado, Crozie não poderia ter explicado que a uréia, o principal componente da urina, se decompunha, se tornava amoníaco, em um meio quente. Ela sabia apenas que se a urina fosse envelhecida, tornava-se outra coisa. Algo que dissolveria a gordura e agiria como alvejante, e no mesmo processo, ajudaria a preservar o couro do apodrecimento bacteriano. Ela não precisava saber por quê, ou conhecer a amônia, tinha apenas que saber que funcionava.
- Temos crê? - perguntou Crozie.
- Wymez tem. Ele disse que o sílex que acabou de trazer era de um penhasco de calcário, e ainda tem várias pedras cobertas por ele - disse Ayla.
- Por que perguntou a Wymez sobre crê? Como sabia que eu concordaria em lhe mostrar? - indagou Crozie, desconfiada.
- Não sabia. Há muito tempo que ando querendo fazer uma túnica branca. Se você não me mostrasse, eu mesma iria tentar, mas não sabia sobre guardar a urina, e não teria pensado nisso.
Estou feliz porque me mostrará como fazer corretamente - disse Ayla.
- Hmmf - foi o único comentário de Crozie, convencida, mas não querendo admiti-lo. - E certifique-se de que fará aquele sebo macio e branco. - Depois acrescentou: - E faça um pouco para o couro também, acho que seria bom misturá-lo com o crê.
Ayla segurou a cortina de um lado e olhou para fora. O vento de fim de tarde gemia e entoava um canto triste e lúgubre, um acompanhamento adequado para a paisagem monótona e gelada, e o céu cinzento e nublado. Ela ansiava por algum alívio do frio árido, mas a estação opressora parecia que jamais terminaria. Whinney bufou e ela deu meia-volta para ver Mamut entrando na fogueira dos cavalos. Ela lhe sorriu.
Ayla sentira profundo respeito pelo velho feiticeiro desde o início, mas, quando ele havia começado a treiná-la, seu respeito aumentou e se converteu em amor. Parcialmente, ela percebia forte semelhança entre o velho feiticeiro, alto e magro, e o mágico baixo, coxo, de um só olho do Clã, não em aparência, mas no temperamento. Era quase como se tivesse encontrado Creb de novo, ou ao menos sua réplica. Ambos mostravam compreensão e reverência profundas pelo mundo dos espíritos, embora os espíritos que venerassem tivessem nomes diferentes; os dois podiam dominar poderes terríveis, embora cada um fosse fisicamente frágil; e os dois eram sábios em relação às pessoas. Mas, talvez, a razão mais forte para o amor de Ayla fosse que, como Creb, Mamut lhe tinha dado boas-vindas, ajudara-a a compreender, e a aceitara como filha em sua fogueira.
- Eu estava à sua procura, Ayla. Achei que talvez estivesse aqui, com seus cavalos - falou Mamut.
- Eu estava olhando lá para fora, querendo que fosse primavera- disse Ayla.
- Esta é a época em que a maioria das pessoas começa a desejar uma mudança, para ter alguma coisa nova para ver ou fazer. As pessoas ficam entediadas, dormem mais. Acho que é por isto que temos mais festas e comemorações na última pane do inverno. A Competição do Riso será breve. A maioria das pessoas gosta dela.
- O que é Competição do Riso?
- Exatamente o que parece. Todos tentam fazer os outros rir. Algumas pessoas usam roupas engraçadas, ou usam a roupa às avessas, fazem caretas divertidas umas para as outras, fazem truques, mutuamente. E se alguém fica zangado por isto, mais se ri dele então. Quase todo mundo espera a festa com ansiedade, mas nenhuma celebração é aguardada com tanta expectativa quanto o Festival de Primavera. Na verdade, é por este motivo que eu a procurava - disse Mamut. - Há ainda muitas coisas que você deveria aprender antes dele.
- Por que o Festival de Primavera é tão especial? - Ayla não tinha certeza se estava ansiosa a respeito.
- Por muitas razões, imagino. É nossa comemoração mais solene e mais feliz. Marca o fim do frio rigoroso e...
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