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OS CATADORES DE CONCHAS - P.2 / Rosamunde Pilcher
OS CATADORES DE CONCHAS - P.2 / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CATADORES DE CONCHAS

Segunda Parte

 

                             AMBROSE

A oficial Wren (*) ajeitou seus papéis e desenroscou a tampa de sua caneta-tinteiro.

- Agora. Stern, precisamos decidir em que Categoria inscrevê-la.

Sentada do outro lado da mesa, Penelope olhava para ela. A mulher tinha dois galões azuis na manga e cabelos bem tosados. Seu colarinho e a gravata eram tão rígidos e apertados. que pareciam a ponto de sufocá-la; usava relógio masculino e, ao seu lado, em cima da mesa. havia uma cigarreira de couro e um pesado isqueiro dourado. Penelope identificou outra Srta. Pawson e começou a encará-la com simpatia.

- Você tem alguma qualificação?

- Não. Acho que não.

- Taquigrafia? Datilografia?

- Não.

- Grau universitário?

- Não.

 

(*) Mulher que faz parte do Women's Royal Naval Service. (N. da T.)

 

- Você deve me tratar por "Senhora".

- Senhora.

A oficial Wren pigarreou, desconcertada pela expressão ingênua e sonhadora dos olhos castanhos da nova classificada Wren. Ela usava uniforme, porém não lhe caía bem; era demasiado alta, tinha pernas muito compridas e seu cabelo era um desastre, macio, escuro e apanhado em um frouxo coque, que não parecia muito bem-feito nem seguro.

- Presumo que tenha freqüentado uma escola, não?

Quase esperava ouvir a Wren Stern responder que havia estudado em casa, com uma refinada preceptora. Ela parecia esse tipo de jovem. Daquelas que aprendiam um pouco de francês, pintura em aquarela e não muita coisa mais. No entanto, a Wren Stern respondeu:

- Freqüentei.

- Internatos?

- Não. Externatos. A escola da Srta. Pritcher, quando morávamos em Londres, e depois a escola secundária local, quando fomos viver em Porthkerris. Fica na Cornualha - acrescentou, com gentileza.

A oficial Wren sentiu que precisava de um cigarro.

- É a primeira vez que deixa sua casa?

- É.

- Você deve me tratar por "Senhora".

- Senhora.

A oficial Wren suspirou. Sem dúvida, a Wren Stern ia ser um daqueles problemas. Culta, medianamente instruída e inteiramente inútil.

- Você sabe cozinhar? - perguntou, sem maiores esperanças.

- Não muito bem.

Não havia alternativa.

- Neste caso, acho que teremos de colocá-la como camareira.

Wren Stern sorriu agradavelmente, parecendo satisfeita por, finalmente, terem chegado a uma decisão.

- Perfeitamente.

A oficial Wren registrou algumas anotações no formulário e depois tornou a enroscar a tampa de sua caneta. Penelope aguardou o que aconteceria em seguida.

- Creio que é tudo.

Penelope levantou-se, porém a oficial Wren ainda não terminara.

- Stern, o seu cabelo. Tem que fazer algo a respeito.

- O quê? - perguntou Penelope.

- Ele não deve tocar seu colarinho, compreenda. São regulamentos da Marinha. Por que não vai ao cabeleireiro e manda cortá-lo?

- Eu não quero cortá-lo.

- Bem... então, faça algum esforço. Procure acostumar-se a fazer um coque mais firme e apertado.

- Oh, sim. Tudo bem.

- Pode ir agora.

Ela saiu.

- Adeus. - A porta ia se fechando atrás dela, mas tornou a abri-la, para acrescentar: - Senhora.

Ela foi designada para a Real Escola de Artilharia Naval, no HMS Excellent, em Whale Island. Seu posto era o de camareira mas, talvez porque "falasse adequadamente", foi tornada Camareira dos Oficiais, isto significando que trabalharia no alojamento e salão de oficiais: arrumando mesas, servindo drinques, comunicando às pessoas que alguém as esperava ao telefone, polindo talheres e servindo as refeições. Além do mais, antes do escurecer, tinha que fazer uma ronda por todos os camarotes e providenciar o black-out (*), batendo às portas e, se houvesse alguém no interior, dizendo “Permissão para apagar o navio, senhor". De fato, era uma copeira magnífica, e como copeira recebia um soldo de trinta xelins por quinzena. A cada duas semanas tinha que comparecer à formação para pagamento, permanecendo em fila até sua hora de fazer continência para o rabugento Chefe da Pagadoria -que dava a impressão de odiar as mulheres e provavelmente as odiava mesmo - dizer seu nome e receber o magro envelope amarelado.

Pedir permissão para apagar as luzes do navio era apenas parte de uma linguagem inteiramente nova que tivera de aprender, para isto passando uma semana no posto de treinamento. Quarto de dormir era camarote; o chão, o convés; quando ia trabalhar, estava indo para bordo; um fazer e refazer significava metade do dia; e se alguém discutia com uma amiga, isto tinha o nome de romper com alguém. Entretanto, como ela não tinha qualquer amiga com quem discutir, jamais houve oportunidade para empregar esta expressão marinheira.

(*) Obscurecimento de luzes, defesa antiaérea em tempo de guerra. (N. da T.)

 

Whale Island era realmente uma ilha, tendo-se que cruzar uma ponte para se chegar lá, um detalhe muito excitante, dando a impressão de que se ia para bordo de um navio, mesmo não se indo. Muitíssimo tempo atrás, a ilha ganhara vida como um banco de lodo no meio do porto de Portsmouth, porém agora era um grande e importante estabelecimento para instrução naval, com terreno de exercícios, galpão para treinamentos, uma igreja, molhes e gigantescas baterias, onde os homens praticavam. A parte administrativa e de alojamentos ficava em um setor de prédios de belos tijolos vermelhos. Os alojamentos do convés inferior eram quadrados e despretenciosos, como edifícios públicos, mas o Salão de Oficiais era bastante grande, uma mansão rural, tendo o campo de futebol como sua área de terreno.

O barulho era incessante. Cometas ecoavam e apitos soavam, enquanto ordens crepitantes eram transmitidas diariamente pelo sistema de alto-falantes. Homens em treinamento iam para toda parte em passo acelerado, suas botas fazendo tump-tump-tump no macadame. No terreno para exercícios, suboficiais gritavam até a apoplexia, bradando ordens para atemorizados esquadrões de jovens marinheiros, que se esforçavam ao máximo para entender as complexidades do exercício de ordem unida. A cada manhã, tinha lugar o hasteamento da bandeira do Comando, com a Banda da Marinha Real estrondeando os ares com os hinos "Braganza" e "Corações de Carvalho". Quem fosse apanhado fora dos edifícios, enquanto a White Ensign (*) era içada ao mastro, tinha que se virar de frente para ela, ficar perfilado e prestando continência, até tudo terminar.

Os alojamentos das Wren, para onde Penelope fora designada, ficava em um hotel requisitado no extremo norte da cidade. E lá, ela dividia um camarote com mais cinco jovens, todas dormindo em beliches. Uma das moças tinha um CC terrível, mas como nunca se lavava, isso não era de admirar. Os alojamentos ficavam a três quilômetros de Whale Island, porém nenhum transporte fora providenciado e não havia ônibus, de maneira que Penelope ligou para Sophie, pedindo a ela que lhe mandasse sua velha bicicleta da escola. Sophie prometeu enviá-la. Colocaria a bicicleta em um trem e Penelope a recolheria na estação de Portsmouth.

 

(*) Bandeira distintiva da Marinha Real Britânica, desde 1864. (N. da T.)

 

- E como está você, meu bem?

- Tudo certo. - Era horrível ouvir a voz de Sophie e não estar com ela. - E você, como está? Como vai papai?

- A Srta. Pawson tem ensinado a ele como usar um extintor de incêndio, para pequenos focos de fogo. É do tipo que tem uma espécie de estribo, para ser firmado com o pé, enquanto é usado.

- E Doris? E os meninos?

- Ronald entrou para o time de futebol. E achamos que Clark está com sarampo. Ah! Estou com anêmonas no jardim.

- Já?

Penelope gostaria de vê-las. Queria estar lá. Era horrível pensar neles todos em Carn Cottage e não estar lá também. Era duro recordar seu delicioso quarto para uma só pessoa, com as cortinas agitando-se à brisa marinha e os fachos do farol cruzando as paredes.

- Você está feliz, meu bem?

Entretanto, antes que Penelope pudesse responder, o telefone começou a fazer pip-pip-pip, e a ligação foi cortada. Ela recolocou o fone no gancho, satisfeita pela ligação interrompida antes de ter tempo para responder, porque não estava feliz. Sentia-se solitária, com saudades de casa e entediada. Não se ajustava àquele estranho mundo novo e temia jamais ajustar-se. Devia ter preferido ser enfermeira, trabalhar em terra ou ir fabricar munições - qualquer coisa, exceto seguir aquela dramática e impulsiva decisão que a deixara neste angustioso transe, que parecia permanente.

O dia seguinte era quinta-feira. Estavam em fevereiro, a temperatura continuava fria, porém o sol brilhava o dia inteiro e, às cinco horas, finalmente encerrado o expediente, Penelope deixou a ilha, fez continência para o Oficial de Guarda e cruzou a estreita ponte. A maré estava alta e, à claridade que se esbatia, Portsdoum Hill parecia sedutoramente rural. Quando sua bicicleta chegasse, talvez fosse capaz de fazer passeios solitários, encontrar um lugarzinho relvado para se sentar. No momento, com as horas vazias do anoitecer estendendo-se à sua frente, ela se perguntou se disporia de dinheiro suficiente para ir ao cinema.

Um carro descia a ponte, atrás dela. Continuou andando. O carro diminuiu a marcha e rodou ao lado dela, um pequeno e bonito M.G., com a capota armada.

- Para onde está indo?

Por um momento, Penelope não acreditou que a pergunta lhe tivesse sido dirigida. Era a primeira vez que qualquer homem falava com ela, exceto para dizer que queria ervilhas e cenouras ou para pedir uma dose de gim. Entretanto, não havendo mais ninguém por perto, tinha que ser com ela. Já o tinha reconhecido. Era o Sub-tenente Keeling, alto, de cabelos escuros e olhos azuis. Sabia que ele estava no Curso de Artilharia, porque no Salão de Oficiais usava as perneiras, calças de flanela branca e cachecol branco, o que era o traje regulamentar para oficiais sob instrução. Agora, no entanto, ele estava com uniforme de dia, parecia alegre e despreocupado. Era um homem disposto a se divertir.

- Para os alojamentos das Wren. A Wrermery.

Inclinando-se, ele abriu a porta.

- Entre aí. Eu lhe dou uma carona.

- Está indo para aquele lado?

- Não, mas posso ir.

Penelope sentou-se ao lado dele e bateu a porta. O carrinho disparou para diante e ela precisou segurar o casquete para que não voasse.

- Já vi você por aí, não? Seu trabalho é no Salão de Oficiais.

- Exatamente.

- Está gostando?

- Não muito.

- Então, por que aceitou o trabalho?

- Não tinha qualificações para outra coisa.

- É a sua primeira designação?

- É. Só comecei há um mês atrás.

- O que acha da Marinha?

Ele parecia tão entusiasmado, que Penelope não teve coragem de responder que a odiava.

- É interessante. Estou começando a me acostumar.

- Mais ou menos como um internato, não?

- Nunca estive em colégio interno, portanto, não sei dizer.

- Como se chama?

- Penelope Stern.

- Eu sou Ambrose Keeling.

Não houve tempo para muito mais. Em cinco minutos estavam lá, entrando pelos portões dos alojamentos das Wren e parando diante da entrada, com rangidos no cascalho solto do chão, o que fez a Suboficial de Controle espiar por sua janela com desaprovador cenho franzido.

Ele desligou o motor.

- Muito obrigada - disse Penelope, virando-se para abrir a porta do carro.

- O que vai fazer pelo resto da tarde?

- Sinceramente, nada.

- Eu também. Que tal um drinque no Clube dos Suboficiais?

- O que... agora?

- Isso. Agora! - Os olhos azuis dele dançaram alegremente.

- Será uma sugestão tão desastrosa?

- Não... nem um pouco. Apenas... - Nos clubes dos oficiais não era permitida a presença de subalternos em uniforme, terei que entrar e ficar à paisana.

Era outra coisa que aprendera no Posto de Treinamento - chamar trajes civis de "trajes à paisana". Sentiu-se orgulhosa, por recordar todas aquelas normas e regulamentos.

- Tudo bem. Eu espero, enquanto troca de roupa.

Ela o deixou lá, em seu carrinho, acendendo um cigarro para matar o tempo. Entrou no prédio e subiu a escada, dois degraus a cada vez, sem querer perder um só momento, aterrada em pensar que, se demorasse muito, ele perderia a paciência e iria embora, sem nunca mais dirigir-lhe a palavra.

Em seu camarote, tirou rapidamente o uniforme e o jogou sobre o beliche; lavou o rosto e as mãos, retirou os grampos da cabeça e deixou o cabelo solto. Escovando-o, apreciou o peso confortador e familiar sobre os ombros. Era como estar livre novamente, ser ela própria de novo, e sentiu que a confiança retomava. Abrindo o guarda-roupa comunal, tirou dele o vestido que Sophie lhe dera no Natal e o velho casaco de pele de rato almiscarado, que Tia Ethel quisera doar para uma quermesse, mas que ela salvara para si mesma. Encontrou um par de meias ainda não desfiadas e seus melhores sapatos. Não precisava de bolsa, porque não tinha dinheiro algum e jamais usara pintura. Tomou a disparar para baixo, assinou o Livro de Regulamento e saiu pela porta.

- Estava quase escuro agora, mas ele continuava lá, sentado em seu carrinho, ainda fumando o mesmo cigarro.

- Desculpe ter demorado tanto - disse, sem fôlego, sentando-se ao lado dele.

- Tanto! - Ele riu, jogou fora o resto do cigarro. – Nunca vi uma mulher tão rápida. Já me preparava para esperar no mínimo meia hora.

O fato de ele ter-se disposto a esperar tanto foi surpreendente e gratificante para Penelope. Sorriu para ele. Esquecera de usar um pouco de perfume, e esperava que o cheiro de naftalina do casaco da Tia Ethel passasse despercebido.

- É a primeira vez que fico sem uniforme, desde que me alistei.

Ele ligou o motor.

- E como se sente? - perguntou.

- No céu!

Foram para o Clube dos Suboficiais, em Southsea, ele a levou para o andar de cima e sentaram-se no bar. Keeling perguntou-lhe o que queria beber. Penelope não sabia ao certo o que pedir, de maneira que ele se decidiu por dois gins com suco de laranja. Ela não contou que jamais havia bebido gim antes.

Quando as bebidas chegaram, os dois conversaram e foi tudo muito fácil. Penelope contou que morava em Porthkerris e que seu pai fora para lá por ser artista, mas que agora deixara de pintar.

Contou também que sua mãe era francesa.

- Oh, então isto explica - disse ele.

- Explica o quê?

- Não sei ao certo. É algo sobre você. Notei imediatamente. Olhos escuros. Cabelos escuros. Você é diferente de todas as outras. Wrens.

- Sou três metros mais alta.

- Não é isso, embora eu goste de mulheres altas. Uma espécie de... - Ele deu de ombros, tomando-se também bastante gaulês. - ... je ne sais quoi. Já morou na França?

- Não. Fiquei lá uma temporada. Certo inverno, tivemos um apartamento em Paris.

- Fala francês?

- Naturalmente.

- Tem irmãos?

- Nenhum.

- Eu também.

Ele lhe falou sobre si mesmo. Tinha vinte e um anos. Seu pai, que dirigia os negócios da família, algo a ver com publicações, havia falecido quando ele tinha dez anos. Após deixar a escola, tinha ido trabalhar na mesma firma editorial, porém não pretendia passar a vida em um escritório... Além disso, havia uma guerra iminente... e então se alistara na Marinha. Sua mãe viúva morava em um apartamento em Knightsbridge, em Wilbraham Place, mas com a eclosão da guerra fora residir em um hotel rural, em um remoto recanto de Devon.

- É melhor que ela fique lá, fora de Londres. Não é muito forte e, se o bombardeio começar, será mais um estorvo aqui, do que uma ajuda.

- Há quanto tempo você está em Whale Island?

- Um mês. Espero ficar lá mais umas duas semanas, dependendo dos exames. Artilharia é meu último curso. Graças a Deus, já deixei para trás Navegação, Torpedos e Sinalização.

- E para onde irá?

- Ficarei uma semana final na Escola Divisional, e então estarei no mar.

Terminaram os drinques e ele pediu uma segunda rodada. Em seguida, passaram para o refeitório e jantaram. Depois do jantar, rodaram por Southsea um pouco e então, como Penelope teria que estar nos alojamentos às dez e meia, ele a levou para lá.

- Muito obrigada - disse Penelope.

Entretanto, as palavras formais não chegaram a expressar a gratidão que sentia, não apenas pela noitada juntos, mas por ele ter aparecido quando mais precisava, por agora possuir um amigo e não ter mais de sentir-se solitária.

- Você está livre no sábado? - perguntou ele.

- Sim.

- Tenho entradas para um concerto. Gostaria de ir?

- Oh... - Ela podia sentir o sorriso, incontido, espalhando-se por seu rosto. - Eu adoraria!

- Então, virei apanhá-la. Por volta das sete. E, Penelope... lembre-se de pegar um passe para chegar tarde.

O concerto foi em Southsea. Arme Zeigler e Webster Booth, cantando canções como "Somente uma rosa" e "Se você fosse a única garota no mundo".

Haja o que houver, sempre recordarei

A encosta ensolarada da montanha...

Ambrose segurou sua mão. Naquela noite, quando a levou de volta, Ambrose parou o carro um pouco antes dos alojamentos, em uma ruazinha sossegada, e então a tomou nos braços, com casaco cheirando a naftalina e tudo. Beijou-a. Penelope nunca havia sido beijada por um homem, teria que aprender, mas dentro em pouco encontrou o jeito e não achou aquilo desagradável, de maneira alguma. De fato, a proximidade dele, sua pura masculinidade, o cheiro refrescante da pele despertaram dentro dela uma reação física que foi uma experiência inteiramente nova. Um despertar, lá muito no fundo. Uma dor que não era uma dor.

- Penelope, querida, você é a criatura mais deliciosa do mundo!

Entretanto, por sobre o ombro dele, Penelope divisou o relógio no painel do carro. Dez e vinte e cinco. Soltou-se dos braços dele com relutância, erguendo a mão automaticamente para compor o cabelo em desordem.

- Tenho que ir - disse. - Não posso chegar atrasada.

Ele suspirou, também a largando com relutância.

- Maldito relógio! Maldito horário!

- Sinto muito.

- Você não tem culpa. Apenas, teremos que fazer outro tipo de planos.

- Que tipo de planos?

- Vou ter uma curta folga de fim de semana. E você? Poderia arranjar uma também?

- Neste fim de semana?

- Exatamente.

- Posso tentar.

- Podíamos ir até a cidade. Assistir a um espetáculo. Passar a noite fora.

- Oh, que idéia maravilhosa! Ainda não tive nenhuma folga. Tenho quase certeza de conseguir uma.

- A única coisa é... - Ele pareceu preocupado. - Minha mãe alugou seu apartamento para um sujeito enfadonho do Exército, de modo que não podemos ficar lá. Acho que eu poderia ir para meu clube, mas...

Era formidável poder resolver os problemas dele.

- Iremos para minha casa.

- Sua casa?

Penelope começou a rir.

- Não a minha casa em Porthkerris, seu tolo! Estou falando de minha casa em Londres.

- Você tem uma casa em Londres?

- Tenho. Na Rua Oakley. Não há qualquer dificuldade. Tenho uma chave e tudo.

Sim, não haveria qualquer dificuldade.

- A casa é sua?

Ela continuava rindo.

- Não propriamente minha. É de papai.

- E eles não se incomodarão? Seus pais, quero dizer.

- Incomodar-se? Ora, por que se incomodariam?

Ele pensou em dizer-lhe por que, mas decidiu calar-se. Mãe francesa e pai artista... Boêmios. Ambrose jamais conhecera boêmios, mas começava a perceber que agora encontrara uma.

- Tem razão – assegurou, apressadamente, mal podendo acreditar em sua boa sorte.

- Bem, você parecia tão surpreso...

- Talvez tivesse ficado - admitiu ele, mas então sorriu, da maneira mais sedutora que pôde. – Enfim, talvez deva parar de ficar surpreendido com você. Talvez devesse aceitar o fato de que nada feito por você me surpreenderia.

- E uma boa coisa?

- Não pode ser ruim.

Ambrose então a levou para os alojamentos, deu-lhe um beijo de despedida, e ela entrou. Estava tão bestificada e incapaz, que esqueceu de assinar o livro e foi chamada à ordem pela Wren de plantão, em irascível estado de ânimo, porque o jovem marinheiro por quem se enrabichara tinha levado outra garota ao cinema.

Penelope conseguiu a folga, e Ambrose fez seus planos. Um amigo, tenente da Reserva de Voluntários da Marinha Real, possuidor de invejáveis ligações no mundo teatral, conseguira garantir duas entradas para The Dancing Years, no Teatro de Drury Lane. Ele conseguiu também um pouco de gasolina com um amigo, e outro colega ingênuo emprestou-lhe cinco libras. O meio-dia do sábado seguinte encontrou-o passando com seu carro pelos portões do alojamento das Wren, até parar diante da entrada. em exibicionista manobra com cascalhos voando. Para uma Wren que passava, ele pediu que fosse boazinha e encontrasse a Wren Stern, dando-lhe o recado de que o Subtenente Keeling já chegara e a esperava. Os olhos dela arregalaram -se um pouco diante do elegante carrinho e seu atraente ocupante, mas Ambrose estava acostumado a ser admirado, de maneira que achou não ser mais do que obrigação dela sua visível inveja e admiração.

"Nada feito por você me surpreenderia", havia dito garrulamente a Penelope, mas quando ela por fim apareceu, teve que ficar espantado, pois a viu de uniforme, carregando o velho casaco de pele e uma sacola de couro pendurada ao ombro. Nada mais do que isso.

- Onde está sua bagagem? - perguntou quando ela entrou no carro, enovelando o casaco no espaço entre os pés.

- Aqui - respondeu Penelope, erguendo a sacola.

- Sua bagagem é isso? Bem, nós vamos ficar fora o fim de semana. Iremos ao teatro. Não pretende usar seu vistoso uniforme o tempo todo, pretende?

- É claro que não, mas acontece que estou indo para casa. Há roupas lá. Encontrarei alguma coisa para vestir.

Ambrose pensou em sua mãe, que gostava de comprar um traje para cada ocasião, depois levando duas horas preparando-se.

- E quanto a uma escova de dentes?

- Minha escova de dentes e a de cabelos estão na sacola. É todo de que preciso. Muito bem, vamos para Londres ou não?

Era um belo dia ensolarado; um dia para escapar e aproveitar, para passar o fim de semana com uma pessoa de quem se gostasse realmente. Ambrose ganhou a estrada que ia para Portsdoum Hill e, no alto, Penelope olhou para Portsmouth, dando-lhe adeus alegremente. Passaram por Purbrook, cruzaram a região de Doums até Petersfield e, ali, decidiram que estavam com fome, pararam e entraram em um pub. Ambrose pediu cerveja e uma solícita mulher preparou-lhes sanduíches, guarnecidos com um pouquinho de couve-flor muito tenra e amarela, tirado de um pote de picles.

Prosseguiram depois de alimentados, cruzando Haslemere, Farnham e Guildford. Entraram em Londres por Hammersmith, desceram King's Road e chegaram à Rua Oakley, beatificamente familiar, com a Ponte Alberto em uma das extremidades, as gaivotas, o cheiro salitrado e lamacento do rio, o som dos apitos dos barcos.

- É aqui.

Ele estacionou o M. G., desligou o motor e ficou espiando, com certo respeito, para a alta fachada da casa, dignificada em sua situação um pouco acima da rua.

- É esta a casa?

- É. Sei que os gradis precisam de pintura, mas não tivemos tempo. Naturalmente, é enorme para nós, mas não ocupamos por completo. Venha, eu lhe mostro.

Apanhando a sacola e o casaco ela o ajudou a baixar a capota do carro para o caso de chover. Feito isto ele pegou a mochila e ficou espiando, cheio de grata antecipação à espera de que Penelope subisse os impressivos degraus marginados de pilares até a grande porta principal, tirasse uma chave da sacola e a desse para ele. Sentiu-se ligeiramente decepcionado quando, em vez disto, ela correu para a área da escada que conduzia ao porão. Ambrose a seguiu, fechando o portão atrás deles, e viu que não era uma área deprimente, mas bastante agradável, com paredes brancas, uma lata de lixo vermelho-vivo e inúmeros vasos de cerâmica que, sem dúvida no verão borbulhariam de gerânios, madressilvas e pelargônios.

A porta tinha a mesma cor da lata de lixo. Ele esperou, enquanto Penelope a abria. Então, seguiu-a cautelosamente ao interior e viu-se em uma clara e arejada cozinha, diferente de qualquer outra já vista. Não que tivesse visto muitas. Sua mãe jamais ia à cozinha, exceto para dizer a Lily, a cozinheira e faz-tudo na casa, quantas pessoas viriam almoçar no dia seguinte. Como ela nunca passara tempo algum em sua cozinha e, certamente, tampouco trabalhara lá, a decoração de tal aposento não lhe exigia cuidados. Ambrose o recordava como um lugar inconveniente e nada acolhedor, tomado pela penumbra, com paredes pintadas de verde-garrafa, impregnado do cheiro de madeira molhada, desprendido do escorredor de pratos. Quando não estava carregando carvão, preparando refeições, espanando móveis ou servindo à mesa, Lily ocupava um quarto ao lado da cozinha, mobiliado com uma cama de armação de ferro e uma cômoda envernizada de amarelo. Ela precisava pendurar suas roupas em um cabide preso atrás da porta e, se quisesse tomar um banho, antes de envergar seu melhor uniforme de tecido preto, com avental de musselina, tinha que ser no meio da tarde, quando ninguém mais precisava do banheiro. Iniciada a guerra, Lily estarrecera a Sra. Keeling, trocando seu posto de cozinheira pelo emprego em uma fábrica de munições. A Sra. Keeling não encontrou quem quisesse substituí-la, e a deserção de Lily havia sido um dos motivos que a tinham desiludido, forçando-a a retirar-se para o insípido e remoto Devon, onde permaneceria durante a guerra.

Esta cozinha, no entanto... Ambrose largou sua mochila e olhou em volta. Viu a comprida mesa, de tampo bem esfregado, a variedade de cadeiras em estilos diferentes, o aparador de pinho, carregado de pratos, canecas e tigelas em cerâmica pintada. Panelas de cobre, lindamente ordenadas por tamanho, pendiam de uma viga acima da estufa, juntamente com raminhos de ervas e flores secas do jardim. Havia uma poltrona de vime, uma cintilante geladeira branca e uma funda pia de porcelana branca abaixo da janela, de tal maneira, que qualquer pessoa impelida a lavar pratos e panelas, ao mesmo tempo divertia-se vendo os pés dos transeuntes passando pela calçada da rua. O chão era lajeado, tendo espalhados sobre ele vários tapetinhos de junco entretecido, e o cheiro era de alho e ervas, como em alguma épicerie rural francesa.

Ele mal podia acreditar em seus olhos.

- Esta é a sua cozinha?

- É o nosso aposento para-tudo. Moramos aqui embaixo.

Ambrose então percebeu que o porão tomava todo o comprimento da casa, de um extremo a outro, com portas-janelas dando para um jardim verde jante. Não obstante, era dividido em dois apartamentos distintos, através de uma ampla e encurvada passagem em arco, da qual pendiam pesados cortinados, em um padrão que ele não reconheceu como obra de William Morris.

- Naturalmente - prosseguiu Penelope, deixando o casaco e a sacola em cima da mesa da cozinha -, quando a casa foi construída, todo este espaço era apenas uma enfiada de despensas e quartos de depósito, que papai derrrubou e fez o que chamamos de sala do jardim. Só que a usamos como sala de estar. Venha ver.

Ambrose tirou o quepe e a seguiu. Passando por sob o arco, viu a lareira aberta, montada com vivos ladrilhos italianos, o piano de armário, o gramofone antiquado. Grandes e muito usados sofás e poltronas espalhavam-se por ali, frouxamente cobertos por uma variedade de cretones desbotados ou xales de seda, guarnecidos com belas almofadas em tapeçaria. As paredes eram brancas, servindo de pano de fundo para livros, enfeites, fotografias... recordações de anos a fio, pensou ele. O espaço que sobrava era preenchido por quadros, em cores tão vibrantes e ensolaradas, que Ambrose quase podia sentir o calor escapando daqueles terraços lajeados, daqueles jardins efervescentes, em negros sombreados.

- São telas de seu pai?

- Não. Temos apenas três telas dele, mas estão na Cornualha. Papai tem artrite nas mãos, compreenda. Há anos deixou de trabalhar. Estas aí foram pintadas por seu grande amigo Charles Rainier. Os dois trabalharam juntos em Paris, antes da última guerra, e ficaram muito amigos. Os Rainier moram na casa mais maravilhosa que se possa imaginar. Fica bem no sul da França. Muitas vezes passamos temporadas com eles... íamos no carro... veja aqui tirando uma foto da prateleira. Penelope a passou para ele, a fim de que a examinasse. - Lá estamos nós, a caminho...

Ambrose viu o pequeno e costumeiro grupo familiar, certamente fazendo pose para a foto. Penelope de rabo-de-cavalo, com um reduzido vestidinho de algodão. Ela e seus pais, foi o que imaginou, juntamente com alguma amiga da família. Entretanto, o que mais lhe chamou a atenção foi o carro.

- Um antigo Bentley, de quatro litros e meio! - exclamou Ambrose, sem conseguir ocultar a reverência da voz.

- Isso mesmo. Papai o adora. Exatamente como o Sr. Toad, em O vento nos salgueiros. Quando está dirigindo, ele tira seu chapéu preto e coloca um capacete de couro para motorista, recusando-se a levantar a capota. Se chove, ficamos todos encharcados.

- Vocês ainda têm o carro?

- É claro que temos. Papai nunca se desfaria dele.

Ela tomou a colocar a foto no lugar. Instintivamente, os olhos de Ambrose retomaram às telas encantadas de Charles Rainier. Não conseguia pensar em nada mais glamoroso do que passear descuidadamente pelo sul da França, na época de antes da guerra, dirigindo um Bentley de 4 1/2 litros, que rumava para um mundo ensolarado, perfumado com resina de pinheiros, refeições ao ar livre e a delícia de nadar no Mediterrâneo. Pensou em vinho, bebido sob uma treliça de parreiras. Em demoradas e preguiçosas sestas, atrás de persianas descidas para refrescar o ambiente. Pensou em amor no entardecer, em beijos doces como uvas.

- Ambrose!

Despertado do devaneio, Ambrose olhou para ela. Penelope lhe sorriu com inocência, tirou o casquete do uniforme, jogou-o em uma poltrona e, ainda perdido e envolvido por sua própria fantasia, ele a imaginou tirando também todo o resto - e então poderia fazer amor com ela, ali e naquele momento, em um daqueles grandes e convidativos sofás.

Deu um passo para ela, mas já era tarde, pois Penelope se tinha virado e começava a puxar o ferrolho das portas-janelas. O feitiço se rompera. O ar frio penetrou o aposento, e ele suspirou, seguindo-a obedientemente para o friorento dia londrino, a fim de lhe ser mostrado o jardim.

- Você precisa ver... é enorme, porque há muitos e muitos anos, as pessoas que moravam na casa ao lado venderam sua parte de jardim a papai. Agora, sinto pena de quem mora lá. Ficaram apenas com um patiozinho horrível. O muro do fundo do jardim é muito antigo, creio que seja Tudor; imagino que um dia possa ter sido algum pomar da realeza, um jardim aprazível ou coisa assim.

Era realmente um enorme jardim, com relva, sebes, canteiros e uma pérgula bamba.

- O que é o galpão? - perguntou ele.      

- Não é um galpão. Ali fica o estúdio de Londres de meu pai. Infelizmente, não posso mostrá-lo a você, porque não tenho a chave. Enfim, está apenas cheio de telas e tintas, de móveis de jardim e camas de armar. Papai é um terrível guardador de coisas. Aliás, todos nós somos. Nenhum de nós joga coisas fora. Sempre que vem a Londres, papai diz que vai fazer uma faxina em seu estúdio, mas fica só na promessa. Acho que é uma espécie de nostalgia. Ou então, preguiça pura. - Ela tiritou. - Está frio aqui fora, não? Vamos entrar e então lhe mostrarei o resto.

Calado, ele a seguiu. Sua expressão de polido interesse não denotava o torvelinho que lhe ia na mente, a qual trabalhava a todo vapor, como uma máquina de calcular, computando bens. Porque, apesar da surrada penúria e do inconvencional arranjo daquela antiga casa londrina, ele ficara profundamente impressionado por seu tamanho e grandeza, tendo decidido que era infinitamente preferível ao perfeito e elegante apartamento de sua mãe.

Ao mesmo tempo, Ambrose refletia nos fiapos de informação que Penelope deixara escapar, despreocupadamente, como se não tivessem importância, sobre sua família e o estilo de vida que levavam, maravilhosamente romântico e boêmio. Em comparação, o dele parecia francamente insípido e estereotipado. Criado em Londres, com férias anuais em Torquay ou Frinton, escola, depois a Marinha. Esta aliás, até agora fora simplesmente um prolongamento da escola, com um pouco de treinamento de vez em quando. Ainda não estivera no mar e nem estaria, enquanto não concluísse os cursos Penelope, no entanto, era cosmopolita. Vivera em Paris; sua família não possuía apenas esta casa de Londres, mas ainda outra na Cornualha. Ambrose pensou na casa da Cornualha. Ultimamente, lera Rebeca, de Daphne du Maurier, e imaginava a tal casa como algum Manderley; algo vagamente elizabetano, talvez, com uma alameda de entrada medindo um quilômetro e meio, marginada de hortências. O pai dela era um artista famoso, a mãe era francesa. Quanto a ela, parecia achar a coisa mais natural ir ficar com amigos no sul da França, viajando em um Bentley de 4 1/2 litros. O Bentley de 4 1/2 litros o enchia de inveja, como nada mais o faria. Sempre sonhara com um carro assim, um símbolo de status que faria as cabeças se virarem, que proclamava opulência e masculinidade, sendo lançado apenas um toque de excentricidade, para intensificar o sabor.

Agora, refletindo em tudo aquilo e ansioso por saber mais, Ambrose foi atrás dela, cruzou o porão, subiu por uma escada apertada e escura. Através de outra porta, chegaram ao saguão principal da casa, espaçoso e elegante, com uma bela parte envidraçada acima da porta, em forma de leque, por onde penetrava a claridade. Uma ampla escadaria, de degraus baixos, encurvava-se para o andar de cima. Atordoado por tal inesperada grandeza, ele olhou em volta.

- Acho que está tudo muito deteriorado - admitiu ela, como que se desculpando. Na opinião de Ambrose, ali nada havia de deteriorado. - E aquela horrível, enorme mancha desbotada no papel de parede é onde costumava ficar “Os catadores de conchas”. É a tela favorita de papai. Como não queria que fosse bombardeada, eu e Sophie a embalamos e a levamos para a Cornualha. Sem ela, a casa não parece mais a mesma.

Ambrose caminhou para a escada, ansioso por subir e ver mais.

- Só iremos até aqui - disse Penelope. Abriu uma porta. - Este é o quarto de meus pais. Acho que devia ter sido uma sala de refeições, e dá para o jardim. Aqui fica o meu, dando para a rua. E o banheiro. Aqui é onde minha mãe guarda seu aspirador de pó. Nada mais.

A viagem de inspeção terminara. Ambrose voltou para o pé da escada e ficou lá parado, espiando para o alto.

- Quem mora no resto da casa?

- Um bocado de gente. Os Hardcastle, em seguida os Clifford e os Friedmarm, no sótão.

- Inquilinos - disse Ambrose.

A palavra ficou engasgada em sua garganta, por ser uma que sua mãe sempre proferira com o maior desdém.

- Sim, suponho que sejam. É formidável. É como termos amigos por perto, o tempo todo. Aliás, isso me lembra uma coisa. Devo ir contar a Elizabeth Clifford que estamos aqui. Tentei ligar para ela, mas o número estava ocupado e acabei esquecendo de ligar novamente.

- Vai contar a ela que também estou aqui?

- Naturalmente que sim. Vem comigo? Ela é um amor de pessoa. Você vai adorá-la.

- Não. Prefiro não ir.

- Então, por que não volta à cozinha e põe uma chaleira no fogo? Poderemos tomar uma xícara de chá ou outra coisa. Verei se consigo um pedaço de bolo ou qualquer coisa com Elizabeth. Depois do chá, daremos uma saída para comprar ovos, pão... Caso contrário, nada teremos para comer no desjejum.

Penelope parecia uma garotinha, brincando de dona-de-casa.

- Tudo bem.

- Não me demoro.

Ela o deixou e correu escada acima com suas pernas longas. Ambrose ficou parado no saguão, vendo-a subir. Mordeu o lábio. Em geral tão seguro de si, agora experimentava aquela incerteza nada familiar, a incômoda suspeita de que, vindo ali, à casa de Penélope, de algum modo perdera o controle da situação. Era perturbador, porque nada semelhante já lhe acontecera na vida. Havia ainda a horrenda premonição de que a singular mescla de ingenuidade e sofisticação de Penelope bem poderia ter sobre ele o mesmo efeito tremendamente forte do martini seco, que o deixava de pernas bambas e incapaz.

O grande fogão da cozinha estava apagado, porém havia uma chaleira elétrica que ele encheu de água e ligou à tomada. A obscuridade da tarde de fevereiro adensara-se, e o enorme aposento penumbroso esfriara, mas a lareira da sala de estar fora preparada com gravetos e papel. Ele a acendeu com seu isqueiro, observou os gravetos pegarem fogo e então acrescentou um pouco de carvão tirado de um balde de cobre, mais um ou dois troncos. Quando Penélope desceu a escada às carreiras, o fogo já queimava bem, e a chaleira cantava.

- Oh, que homem esperto! Você acendeu a lareira! Isto sempre deixa tudo mais agradável. Não havia bolo algum, mas consegui um pouco de pão e margarina. Oh, está faltando uma coisa...- Ela franziu a testa, procurando adivinhar o que seria, então descobriu. - O relógio! Claro, está sem corda! Dê corda no relógio, Ambrose. Ele faz um tique-taque muito reconfortante.

Era um relógio antigo, no alto da parede. Ambrose puxou uma cadeira, trepou nela, abriu o vidro do relógio, acertou os ponteiros e deu corda, com a enorme chave. Enquanto se ocupava nisto, Penelope abria armários, tirava xícaras e pires, encontrava um bule de chá.

- Esteve com sua amiga? - perguntou ele, descendo da cadeira.

- Não, ela não estava, mas fui até o sótão e estive com Lalla Friedmarm. Fiquei muito contente em vê-la, porque andava um pouco preocupada com eles. São refugiados, um casal judeu jovem, de Munique. Passaram coisas terríveis. Da última vez que vi Willi, pensei que ele fosse ter um colapso nervoso. - Penelope pensou em contar a Ambrose que se juntara às Wrens por causa de Willi, mas depois decidiu o contrário. Não tinha certeza de que ele entenderia. - Enfim, ela agora está bem melhor, conseguiu um novo emprego e vai ter um bebê. É uma pessoa maravilhosa. Dá aulas de música; portanto, deve ser incrivelmente inteligente. Importa-se em tomar seu chá sem leite?

Depois do chá, caminharam até King's Road, encontraram uma mercearia, fizeram algumas compras e voltaram à Rua Oakley. Era quase noite fechada, de modo que fecharam bem todas as cortinas para black-out e ela arrumou as camas com lençóis limpos, enquanto ele permanecia sentado, vendo-a ocupar-se naquilo.

- Você pode dormir em meu quarto. Eu dormirei na cama de meus pais. Gostaria de tomar um banho, antes de trocar de roupa? Sempre há bastante água quente. Ou quer um drinque?

Ambrose aceitou as duas coisas. Tornaram a descer para o porão, ela abriu um aparador e de lá tirou uma garrafa de Gordon's, uma de Dewar's e uma outra sem rótulo, contendo algo estranho que cheirava a amêndoas.

- De quem é tudo isto? - perguntou ele.

- De papai.

- Ele não se incomodará se eu beber?

Penelope olhou para ele com perplexidade.

- Ora, mas é para isso que estão aí! Para os amigos.

Aquele era um novo terreno, mais uma vez. Sua mãe servia sherry em copinhos, mas se ele quisesse gim, tinha que providenciá-lo. Agora, evitou quaisquer comentários, limitando-se a despejar para si mesmo uma generosa dose de uísque. Levando o copo na mão e sua mochila na outra, subiu a escada e foi para o quarto que Penelope lhe destinara. Era estranho, tirar as roupas naquele ambiente feminino e desconhecido. Enquanto se despia, examinou ligeiramente os arredores, como um gato pondo-se à vontade: olhou para fotos, sentou na cama, examinou os títulos dos livros na estante. Esperava encontrar Georgette Heyer e Ethel M. Dell, mas o que viu foi Virginia Woolf e Rebecca West. Não apenas uma boêmia, mas também intelectual... Isto o deixou sentindo-se sofisticado. Usando seu robe Noel Coward e carregando toalha de banho, os apetrechos para se barbear e o copo de uísque, atravessou o saguão. No banheiro entulhado, fez a barba, depois encheu a banheira e ensaboou-se um pouco. A banheira era curta para suas pernas muito compridas, porém a água estava fervendo. De volta ao quarto, tornou a vestir-se, acrescentando ao uniforme uma camisa engomada, uma gravata negra de cetim, de Gieves, e suas melhores botas Wellington de meio cano, dando-lhes brilho com um lenço. Escovou o cabelo, virou a cabeça de um lado e de outro para admirar seu perfil e então, satisfeito, recolheu o copo vazio, tornando a descer a escada.

Penelope desaparecera, talvez para encontrar algo que vestir no guarda-roupa da mãe. Ambrose esperava que ela não o envergonhasse. À claridade da lareira, a sala de estar parecia satisfatoriamente romântica. Serviu-se de outro uísque e examinou as pilhas de disco para vitrola. A maioria era de música clássica, mas encontrou Cole Porter, imprensado entre Beethoven e Mahler. Colocou o disco na vitrola antiquada e deu corda.

Você é o máximo,

Você é o Coliseu,

Você é o máximo,

Você é o Museu do Louvre...

Ambrose começou a dançar, de olhos semicerrados, enlaçando uma parceira imaginária. Depois do cinema e de jantarem em algum lugar, talvez fossem a um clube noturno. O Embassy ou o Bag of nails. Se seu dinheiro não desse, provavelmente aceitariam um cheque. Com um pouco de sorte, ainda haveria fundos no banco.

- Ambrose.

Não a vira chegar. Levemente embaraçado por ser surpreendido em sua ligeira pantomima, virou-se para ela. Penelope caminhou para ele, incerta sobre a própria aparência, esperando algum comentário, ansiosa em ser aprovada. Ambrose, contudo, naquele momento estava sem fala porque, à luz suave da lâmpada e da lareira, ela estava linda. O vestido que finalmente desencavara devia ter estado em moda cinco anos antes. Era de chiffon creme. Salpicado de flores purpúreas e escarlates. A saia rodada ajustava-se bem à cintura e aos quadris esguios, para então desdobrar-se em gomos. O corpete tinha pequeninos botões na frente, havendo uma espécie de pelerine curta, em camadas, esvoaçando a cada movimento, semelhante a asas de borboleta. Ela havia penteado os cabelos para cima, revelando a alongada e perfeita linha do pescoço e ombros, assim como um notável par de brincos, pendentes, em prata e coral. Também aplicara um pouco de batom coral e cheirava deliciosamente.

- Seu perfume é estonteante - disse ele.

- Chanel Número 5. Encontrei um pouquinho, no fundo de um frasco. Achei que poderia estar um tanto rançoso...

- Nem pense nisto!

- Acha que... estou bem? Experimentei uns seis vestidos, mas achei que este era o melhor. É terrivelmente antigo e fica um pouco curto, porque sou mais alta do que Sophie, mas...

Ambrose largou a bebida e estendeu a mão.

- Venha cá.

Ela foi, colocou a mão na dele. Ele a tomou nos braços e a beijou muito delicada e ternamente, não querendo que nada prejudicasse o elegante penteado dela ou sua modesta maquilagem. O batom tinha um sabor adocicado. Ambrose recuou ligeiramente e sorriu para aqueles olhos cálidos e escuros.

- Eu quase desejaria que não tivéssemos de sair - disse.

- Nós voltaremos - respondeu ela, e o coração dele saltou de esperança.

O filme The Dancing Years foi muito romântico, triste e totalmente irreal. Havia uma porção de camponesas e camponeses em trajes do Tirol. As canções eram lindas, os personagens apaixonavam-se uns pelos outros e depois renunciavam corajosamente a seu amor, afastando-se para sempre. Em cinqüenta por cento das vezes, as músicas eram valsas. Terminado o filme, eles saíram para a rua escura como breu, rodaram por Piccadilly e foram jantar no Quaglino's. Uma banda tocava e casais dançavam na pista minúscula, todos os homens uniformizados, assim como boa parte das moças.

Bum! Bum!

Porque meu coração faz bum!

Eu e meu coração fazemos bum-parati-bum

O tempo inteiro!

Entre os pratos, Ambrose e Penelope também dançaram, porém não foi realmente uma dança, já que o espaço mal permitia ao casal ficar em pé no mesmo lugar, transferindo o peso do corpo de um dos pés para o outro. Entretanto, estava ótimo, porque se enlaçavam, os rostos se tocavam e, de vez em quando, Ambrose a beijava no ouvido, murmurando algo ousado.

Eram quase duas da madrugada quando retomaram à Rua Oakley. De mãos dadas, contendo o riso, tatearam o caminho por entre a compacta escuridão, através do portão de ferro forjado e depois descendo os altos degraus de pedra.

- Quem se preocupa com bombas? - disse Ambrose. -Podemos morrer do mesmo jeito, dando cabeçadas por aí, nesta escuridão!

Penelope desligou-se dele, encontrou a chave, a fechadura, e finalmente conseguiu abrir a porta. Ambrose passou por ela, penetrando a morna e aveludada escuridão. Ouviu-a fechar a porta atrás deles, e então, quando ficou seguro para fazê-lo, ela acendeu a luz.

O silêncio era profundo. Acima deles, os outros ocupantes da casa dormiam profundamente. Apenas o tique-taque do relógio perturbava a quietude, ou o passar de um carro, na rua lá fora. O fogo que ele acendera estava quase apagado, mas Penelope foi até o

outro extremo do aposento, a fim de atiçar as brasas e acender um abajur. Além da arcada, a sala de estar foi inundada de luz, como um palco preparado, após o pano ter acabado de subir. Primeiro ato. Primeira cena. Faltavam apenas os atores.

Ambrose não foi imediatamente ao encontro dela, sentia-se agradavelmente ébrio, mas chegara ao ponto em que se sabia necessitado de outro drinque. Foi até a garrafa de uísque e serviu-se de uma dose, enchendo o copo com soda do sifão. Em seguida, apagando a luz da cozinha, passou ante a claridade crepitante da lareira e rumou para o enorme sofá almofadado e a jovem que tinha desejado a noite inteira.

Ela se ajoelhara diante da lareira, perto do calor do fogo. Havia tirado os sapatos. Quando o sentiu chegar, virou a cabeça e sorriu. Era tarde, devia estar cansada, porém os olhos escuros cintilavam, o rosto parecia iluminado.

- Por que o fogo é uma espécie de companhia? - falou. - É como ter-se outra pessoa ao lado.

- Fico feliz pelo contrário. Falo da outra pessoa, claro.

- Ela estava relaxada, tranqüila.

- Foi uma noite ótima. Muito divertida.

- Ainda não terminou.

- Ambrose sentou-se em uma ampla poltrona baixa. Largou o copo e disse:

- Seu cabelo está todo errado.

- Por que está errado?

- Está arrumado demais para amar.

Ela riu, depois ergueu as mãos e começou lentamente a desfazer o elegante coque. Ele a contemplou em silêncio, observando o clássico gesto feminino de erguer os braços, a diáfana pelerine do vestido caindo contra o pescoço esguio, como um pequeno cachecol. Removido o último grampo, ela sacudiu a cabeça, e a comprida massa de cabelos escuros, como um apanhado de fios de seda, caiu sobre seus ombros.

- Agora sou eu outra vez – disse.

Da cozinha, o velho relógio bateu duas suaves e sonoras badaladas.

- Duas da madrugada - disse Penelope.

- Uma boa hora. A hora certa.

Ela tornou a rir, como se qualquer coisa que ele dissesse só lhe pudesse dar alegria. Estava muito quente, perto do fogo alto da lareira. Ambrose deixou o copo em uma mesinha e tirou a túnica. Depois puxou o nó da gravata e o deixou frouxo, desabotoando o colarinho apertado da camisa engomada. Levantando-se, ficou em pé junto dela e a ajudou a levantar-se. Beijou-a, enterrando o rosto na profusão limpa e perfumada da cabeleira escura, as mãos tateando, por baixo da seda fina do vestido, a esbeltez do corpo jovem, as costelas, as batidas firmes do coração. Ergueu-a nos braços - para uma moça tão alta, ela era singularmente leve - e a depositou no sofá. Ela continuava rindo, jazendo ali com aqueles cabelos mágicos espalhados inteiramente sobre as almofadas surradas. O coração dele agora batia como um tambor, cada nervo de seu corpo gritando pela necessidade dela. Por vezes, durante seu curto relacionamento com ela, Ambrose se vira questionando se Penelope seria ou não virgem, porém agora não queria mais saber, isso deixara de importar. Sentado ao lado dela, começou, muito delicadamente, a desabotoar os pequeninos botões da frente do vestido. Ela ficou quieta, complacente, não tentando detê-lo, e quando ele começou a beijá-la novamente, sua boca, seu pescoço, seus seios macios e arredondados, sua resposta, tudo foi cheio de doçura e aceitação.

- Você é tão bonita...

Após ter dito isto, Ambrose percebeu, com certa surpresa, que havia falado instintivamente, as palavras brotando do coração.

- Você também é bonito - respondeu Penelope.

Passou os braços fortes e jovens à volta do pescoço dele, puxando-o para baixo. Tinha a boca aberta e pronta para ele. Ambrose então soube que toda ela estava, simplesmente, à sua espera.

A lareira chamejava, aquecendo-os, iluminando seu amor. No fundo do subconsciente dele surgiram lembranças despertas, lembranças de um quarto de criança à noite, as cortinas cerradas - imagens da infância há muito perdidas. Nada que prejudicasse, nada que perturbasse. Segurança. E também este mesmo senso fugidio de exultação. Entretanto, em algum ponto à beira desta exultação, havia ainda uma vozinha de senso comum.

- Querida...

- Sim? - Um sussurro. - Sim?

- Você está bem?

- Se estou bem? Oh, sim muito bem!

- Eu a amo.

- Oh! - Não mais que um exalar. - Meu amor...

Em meados de abril, com certa surpresa para Penelope, que não tinha a menor prática em tais assuntos, ela foi informada pelas autoridades de que tinha direito a uma semana de folga. Em vista disto, apresentou-se no gabinete da Suboficial de Regulamentos, formando fila com uma infinidade de outras Wrens. Chegada a sua vez, solicitou um passe ferroviário para Porthkerris.

A suboficial era uma alegre senhora da Irlanda do Norte. Tinha rosto sardento e ruivos cabelos anelados, parecendo muito interessada ao ouvir Penelope dizer sua destinação.

- Isso fica na Cornualha, não, Stern?

- Fica.

- É lá que você mora?

- É.

- Garota de sorte!

Ela entregou o passe, Penelope agradeceu e saiu dali, aferrada ao seu bilhete para a liberdade.

A viagem de trem foi interminável. De Portsmouth a Bath. De Bath a Bristol. De Bristol a Exeter. Em Exeter, teve que esperar uma hora e então embarcar no vagaroso trem parador que a levaria à Cornualha. Não se importou. No trem imundo, ficou sentada em um banco junto à janela, espiando através da vidraça suja de fuligem. Chegaram a Dawlish, onde teve sua primeira visão de relance do mar; somente o Canal Inglês (*) mas, ainda assim, melhor do que nada. Plymouth e a Ponte Saltash, mais o que parecia metade da Marinha Britânica ancorada no estreito. Em seguida, a Cornualha e todas as pequenas estações de parada, com seus nomes românticos e religiosos. Após Redruth, ela deixou a vidraça da janela descer em sua correia de couro e debruçou-se para fora, não querendo perder o primeiro vislumbre do Atlântico, as dunas e as ondas se quebrando na distância. Então, o trem rodou pelo Viaduto Hayle, e ela avistou o estuário, inchado com as águas da maré alta. Tirou sua bagagem do depósito acima do banco e ficou em pé no corredor, enquanto faziam a última curva e passavam para o entroncamento.

 

(*) English Charmel, para os ingleses. Para nós, Canal da Mancha. (N. da T.)

 

Eram agora oito e meia, quase noite. Abrindo a pesada porta, ela desembarcou agradecida, arrastando a mala atrás de si, com o casquete enfiado no bolso da túnica. O ar era cálido, suave e refrescante. O sol poente enviava compridos raios ao longo da plataforma e, emergindo de seu clarão, papai e Sophie foram ao encontro dela.

Era indescritivelmente maravilhoso estar em casa. A primeira coisa que ela fez foi voar ao andar de cima, arrancar o uniforme e vestir algo adequado - uma velha saia de algodão, uma blusa que sobrara do colégio e um cardigã cerzido. Nada mudara, o quarto continuava exatamente como o tinha deixado, apenas mais arrumado e reluzindo de limpeza. Quando, de pernas nuas, correu escada abaixo, foi para ir de aposento em aposento, em minuciosa inspeção, querendo certificar-se de que ali também tudo continuava exatamente como antes. Continuava.

Bem, praticamente. O retrato de Sophie, pintado por Charles Rainier, que outrora ocupava o lugar de honra acima da lareira na sala de estar, havia sido removido para posição menos importante, em seu posto original substituído por “Os catadores de conchas”, que finalmente chegara de Londres, após inúmeros e inevitáveis atrasos. Era grande demais para a sala e ali não havia claridade suficiente para fazer justiça à intensidade de seu colorido mas, ainda assim, continuava muitíssimo atraente.

Também os Potter tinham mudado - para melhor. Doris perdera as curvas rechonchudas e ficara bastante esbelta. Deixara de oxigenar os cabelos, que agora mostravam metade oxigenada e metade castanho-ruça, incrivelmente semelhante ao pêlo sarapintado de um pônei. Ronald e Clark haviam crescido e perdiam a magreza, a palidez de meninos criados na cidade. Seus cabelos também estavam grandes, e sua fala cockney (*) agora apresentava subtons do puro linguajar da Cornualha. Os patos e as galinhas haviam duplicado. Uma velha galinha ficara choca e, sem que ninguém percebesse, havia chocado uma bela ninhada em um carrinho de mão, quebrado e esquecido na espessura de um maciço de amoreiras silvestres. Penelope queria apenas absorver tudo que acontecera desde aquele dia - que agora parecia imensuravelmente distante - quando tomara o trem para Portsmouth. Lawrence e Sophie não a decepcionaram. O Coronel Trubshot estava dirigindo o PCRA (Precauções Contra Raides Aéreos) e se tornara uma inconveniência para todos. O Hotel The Sands havia sido requisitado e estava pululando de soldados. A velha Sra. Treganton - a senhora idosa e de porte nobre da cidade, além de atemorizante dama com pendentes nas orelhas - amarrara um avental à cintura e estava encarregada da Cantina Militar. Havia arame farpado na praia, e estavam sendo construídas edificações quadradas de concreto, eriçadas de armas sinistras, no correr de toda a costa. A Srta. Preedy desistira das aulas de dança e agora lecionava ginástica, em uma escola para meninas que tinham sido evacuadas de Kent. Quanto à Srta. Pawson, tropeçara em seu extintor de incêndio durante o black-out e quebrara a perna.

 

(*) Dialeto de um bairro londrino. (N. da T.)

 

Quando, finalmente, eles esgotaram todas as novidades, esperaram ouvir o que a filha teria também para contar, cada detalhe de sua nova - e para ambos inimaginável - vida. Entretanto, Penelope não queria falar sobre isso. Não queria contar aos pais. Não queria nem pensar em Whale Island e Portsmouth. Nem mesmo queria pensar em Ambrose. Cedo ou tarde, naturalmente, acabaria falando. Só que não agora. Não nesta noite. Tinha uma semana pela frente. Aquilo podia esperar.

A partir do topo da colina, a terra se expunha, dormitando à ensolarada e morna tarde de primavera. Para o norte, a grande baía cintilava em azul, salpicada de douradas moedas de sol. Trevose Head estava brumosa, um seguro sinal de que o bom tempo continuaria. Para o sul, encurvava-se a outra baía, com o monte e seu castelo. No espaço intermediário, havia campos de cultivo, estradinhas marginadas de altas sebes e prados cor de esmeralda, nos quais

o gado pastava por entre os afloramentos de granito. O vento era brando, perfumado de tomilho, sendo os únicos sons um latido ocasional de algum cão ou o agradável rangido de um trator distante.

Ela e Sophie haviam caminhado os oito quilômetros desde Carn Cottage. Seguiam pelos caminhos estreitos que subiam para a charneca, onde as sebes relvosas apareciam pontilhadas de prímulas silvestres, com flores-de-cuco e celidônias irrompendo das margens, em uma profusão de rosa-vivo e amarelo. Por fim, tinham chegado aos degraus que cruzavam a cerca e, depois deles, continuaram a subida pela trilha turfosa que serpenteava através de maciços de sartas e samambaias, conduzindo ao topo da montanha - aos rochedos cobertos de liquens e altos como penedos, de cima dos quais, milhares de anos antes, os homenzinhos que habitavam aquela terra antiga tinham vigiado os barcos de velas quadradas dos fenícios, entrando na baía, lá ancorando e mercadejando seus tesouros do Oriente pelo precioso estanho.

Agora, cansadas da longa caminhada, elas descansavam. Sophie, deitada de costas em uma nesga de turfa, com um braço sobre os olhos, protegendo-se do clarão do sol. Penelope sentou-se ao lado dela, os cotovelos descansando nos joelhos, o queixo na mão.

Muito alto no céu, voou acima delas um avião, mais semelhante a um pequenino brinquedo prateado. As duas olharam para cima e ficaram espiando seu trajeto.

- Não gosto de aviões - disse Sophie. - Lembram-me da guerra.

- Você nunca a esqueceu?

- Às vezes, procuro esquecer. Finjo que nunca aconteceu. É fácil fingir, em um dia como este.

Penelope estirou a mão e arrancou um tufo de relva.

- Não aconteceu grande coisa por enquanto, não acha?

- Sim.

- Acredita que irá, acontecer?

- Sem a menor dúvida.

- Você se preocupa por isso?

- Eu me preocupo por causa de seu pai. Porque ele anda preocupado. Já passou por tudo isso antes.

- Então, você...

- Não como foi com ele. Nunca como foi com ele.

Penelope jogou fora o tufo de relva e estirou a mão para arrancar outro.

- Sophie.

- O que é?

- Eu vou ter um bebê.

O som do avião morreu, absorvido pela imensidade estival do céu. Sophie espreguiçou-se, depois se sentou lentamente. Penélope virou a cabeça para encontrar os olhos da mãe, e viu naquele rosto jovem e queimado de sol uma expressão que só poderia ser descrita como do mais profundo alívio.

- Era isto que estava querendo dizer para nós?

- Vocês sabiam?

- É claro que sim! Tão reticente, tão silenciosa... Alguma coisa devia estar errada. Por que não nos contou antes?

- Não tem nada a ver com estar envergonhada ou apreensiva. Eu apenas queria contar na hora certa. Queria ter tempo para falar a respeito.

- Estive tão preocupada! Sentia que você era infeliz, talvez lamentando o que fez ou que estivesse com algum problema.

Penelope queria rir.

- E não estou?

- Ora,é claro que não há problema algum!

- Sabe de uma coisa? Você é sempre uma surpresa para mim.

Sophie ignorou o comentário. Mostrou-se prática.

- Está certa de que espera um filho?

- Certíssima.

- Procurou um médico?

- Não preciso. Por outro lado, o único médico que posso procurar em Portsmouth é o da Marinha e eu não quis consultá-lo.

- Para quando será o bebê?

- Novembro.

- E quem é o pai?

- Um subtenente. De Whale Island. Está fazendo o Curso de Artilharia. Chama-se Ambrose Keeling.

- Onde está ele agora?

- Ainda lá. Não passou nos exames e, por causa disso, terá que fazer todo o curso novamente. Isso tem o nome de "segunda categoria”.

- Que idade ele tem?

- Vinte e um anos.

- Sabe que você está grávida?

- Não. Eu quis contar primeiro para você e papai.

- Vai contar a ele?

- É claro que vou. Quando voltar.

- O que ele dirá?

- Não faço a menor idéia.

- Isto dá a impressão de que não o conhece muito bem.

- Eu o conheço o suficiente. - Muito abaixo, no vale, um homem caminhava por um campo de cultivo com um cão em seus calcanhares, abria um portão e começava a subir a encosta, onde pastavam suas vacas leiteiras. Penelope reclinou-se sobre os cotovelos e o ficou espiando. O homem usava uma camisa vermelha e o cão corria em círculo à volta dele. - Compreenda, você tinha razão, sobre eu estar infeliz. No começo, quando fui designada para Whale Island, não pensava que me sentiria tão infeliz. Eu era como um peixe fora d'água. Sentia saudade de casa e estava solitária. No dia em que me alistei, pensei que estava empunhando uma espada e que iria lutar, juntamente com todos os outros, porém minhas tarefas limitaram-se a servir pratos de verduras no refeitório, fechar cortinas de black-out e morar na companhia de um bando de mulheres, com as quais nada tenho em comum. E nada havia que pudesse fazer a respeito. Não tinha escapatória. Então, conheci Ambrose e, daí em diante, tudo começou a ficar melhor.

- Não imaginei que fosse tão ruim assim.

- Eu não lhe contei. De que adiantaria?

- Se tiver um bebê, será obrigada a deixar as Wrens?

- Sim, serei desligada. Provavelmente com desonra.

- Você se importaria?

- Se me importaria? Mal posso esperar para sair de lá!

- Penelope... você engravidou de propósito?

- Céus, não! Afinal, não estava desesperada a esse ponto. Não foi nada disso. Apenas, aconteceu. Sem qualquer premeditação.

- Você sabe... certamente sabe... que a gente pode tomar precauções.

- E claro, mas pensei que o homem sempre fazia isso.

- Oh, minha querida! Nunca imaginei que fosse tão ingênua! Que mãe desleixada tenho sido...

- Nunca pensei em você como mãe. Sempre a considerei uma irmã.

- Bem, então tenho sido uma irmã desleixada. - Sophie suspirou. - O que faremos agora?

- Ir para casa e contar a papai, suponho. Então, voltarei para Portsmouth e contarei a Ambrose.

- Pretende casar com ele?

- Se ele quiser, sim.

Sophie pensou a respeito. Então, disse:

- Imagino que deva sentir uma forte afeição por esse rapaz, pois do contrário, não estaria esperando um filho dele. Conheço-a bem o suficiente para saber. Entretanto, não deve casar com ele apenas por causa do bebê.

- Você casou com papai, quando eu estava a caminho.

- Sim, mas eu o amava. Sempre o amei. Não podia conceber minha vida sem ele. Casado comigo ou não, eu jamais o deixaria.

- Se eu casar com Ambrose, vocês irão ao meu casamento?

- Nada no mundo nos deixaria fora disso.

- Eu gostaria de que estivessem presentes. E então, depois...quando ele terminar seu curso em Whale Island, será enviado ao mar. Posso voltar para casa, ficar com você e papai? Ter o bebê em Carn Cottage?

- Ora, mas que pergunta! O que mais você faria?

- Suponho que poderia tornar-me uma decaída profissional porém não seria de meu gosto.

- De qualquer modo, você não daria para isso.

Penelope se sentia repleta de agradecido amor.

- Eu sabia que você reagiria assim. Seria horrível ter uma mãe como a dos outros!

- Se eu fosse como a mãe dos outros, talvez fosse uma pessoa melhor. Na verdade, não sou boa a esse ponto. Sou egoísta. Penso apenas em mim mesma. Esta guerra horrível começou, e as coisas vão ficar muito ruins, antes que tudo termine. Filhos serão mortos - e também filhas, pais e irmãos, porém penso apenas no quanto fico grata por você estar vindo para casa. Senti demais a sua falta. Enfim, agora ficaremos juntas novamente. Por pior que sejam as coisas, pelo menos estaremos juntas.

Com um drinque forte na mão, Ambrose telefonou para a mãe.

- The Coombe Hotel - respondeu uma voz de mulher, muito gentil.

- A Sra. Keeling pode atender?

- Se esperar um momento, irei chamá-la. Creio que está no saguão.

- Obrigado.

- Quem digo a ela que está ligando?

- Seu filho. Subtenente Keeling.

- Perfeitamente.

Ele esperou.

- Alô?

- Mamãe!

- Oh, querido! Que bom ouvir você! De onde está ligando?

- De Whaley. Mamãe, ouça. Tenho algo a dizer para você.

- Espero que sejam boas notícias.

- Sim, notícias esplêndidas. - Ele pigarreou. - Vou me casar.

Silêncio total.

- Mamãe?

- Sim, ainda estou ouvindo.

- Você está bem?

- Sim. Estou, é claro. Você disse que vai se casar?

- Isso mesmo. No primeiro sábado de maio. No cartório de Registros de Chelsea. Você pode vir?

Era como se ele a convidasse para alguma festinha.

- Bem... quando? ...quem? ...Oh, céus, você me deixou nervosa!

- Não é preciso ficar nervosa. O nome dela é Penelope Stern. Tenho certeza de que simpatizará com ela - acrescentou, sem muita esperança.

- M-mas... quando foi que tudo isto aconteceu?

- Apenas aconteceu. Por isto liguei para você. Para dar-lhe a notícia imediatamente.

- E... e quem é ela?

- É uma Wren. - Ambrose tentava pensar em algo que tranqüilizasse a mãe. - Seu pai é um artista. Na Cornualha. - Silêncio novamente. - Eles têm uma casa na Rua Oakley.

Ambrose pensou em mencionar o Bentley 4 1/2 litros, porém sua mãe nunca fora grande entendida em carros.

- Querido, lamento parecer tão pouco entusiasmada, porém você é tão jovem... sua carreira...

- Há uma guerra em andamento, mamãe...

- Eu sei. Sei disso mais do que ninguém.

- Virá ao nosso casamento?

- Sim, sim, é claro... Passarei aí o fim de semana. Ficarei no The Basil Street.

- Ótimo. Então, poderá conhecê-la.

- Oh, Ambrose...

A voz dela soava absolutamente lacrimosa.

- Lamento tê-la apanhado de surpresa, mas... não se preocupe. - O telefone fez pip-pip-pip. - Você vai adorá-la - insistiu ele.

Desligou rapidamente, antes que a mãe tivesse tempo para implorar-lhe que colocasse mais moedas no telefone.

Deixada com um telefone zumbindo na mão, Dolly Keeling o restituiu lentamente ao gancho.

De trás de sua pequena secretária debaixo da escada, onde estivera simulando somar uma conta, mas de fato ouvindo cada palavra, a Sra. Musspratt ergueu os olhos e sorriu inquisitivamente, a cabeça de lado, como um pássaro de olhos vivos.

- Espero que tenham sido boas notícias, Sra. Keeling.

Dolly procurou recompor-se, jogou a cabeça ligeiramente para um lado e assumiu uma expressão de jubiloso entusiasmo.

- Foram excitantes. Meu filho vai casar!

- Oh, mas é esplêndido! Que romântico! Esses bravos jovens! Quando será?

- O que disse?

- Quando será o feliz evento?

- Dentro de duas semanas. No primeiro sábado de maio. Em Londres.

- E quem é a jovem felizarda?

Aquela mulher estava curiosa demais. Dolly decidiu pô-la em seu devido lugar.

- Ainda não tive o prazer de conhecê-la - replicou com dignidade. - Obrigada por me ter chamado, Sra. Musspratt.

Dolly deixou a mulher entregue às suas contas e retomou ao saguão dos residentes.

Anos antes, o The Coombe Hotel havia sido residência particular, tendo o atual saguão como sala de estar. Aquele aposento possuía um alto aparador de lareira em mármore branco, circundando uma pequena grade protetora do fogo, com vários abaulados sofás e poltronas, forrados em linho branco salpicado de rosas cor-de-rosa. Algumas aquarelas também pendiam bem alto nas paredes. Uma janela de balcão fechado dava para o jardim. Este há muito deixara de ser cuidado, desde o início da guerra. A Sra. Musspratt fazia o que podia com o aparador de grama, porém o jardineiro partira para a guerra, de modo que agora os canteiros estavam tomados pelas ervas daninhas.

Oito moradores permanentes residiam naquele hotel-pensão, mas quatro haviam cerrado fileira como a elite, o núcleo da pequena comunidade. Dolly pertencia a este grupo. Os restantes eram Lady Beamish e um casal, o Coronel e a Sra. Fawcett Smythe. Juntos, costumavam jogar bridge ao anoitecer, reivindicavam as melhores cadeiras junto à lareira ou no saguão e as melhores mesas na sala de refeições, perto da janela. Os outros contentavam-se com os recantos friorentos, onde a claridade mal dava para ler, e com as mesas que ficavam no caminho para a porta da despensa. Entretanto, eram tão tristes e oprimidos, afinal de contas, que ninguém pensava em sentir pena deles. O Coronel e a Sra. Fawcett Smythe tinham

vindo de Kent para Devon. Ambos estavam na casa dos setenta anos. O Coronel passara a maior parte da vida no Exército e, portanto, sabia perfeitamente dizer a todos o que o tal Hitler faria em seguida, além de dar sua própria interpretação aos fiapos de notícias que surgiam nos jornais, com relação a armas secretas e ao movimento dos navios de guerra. Era um homem baixote, de pele tostada de sol, com um bigode eriçado, mas compensava a pouca altura exibindo um vozeirão de campo de treinamento militar e um porte de soldado perfilado em continência. Sua esposa tinha cabelos ralos e sedosos, sendo inteiramente despersonificada. Estava sempre tricotando. Dizia "Sim, querido" e concordava com tudo quanto o marido dissesse, uma boa coisa para todos, porque quando contrariado, o Coronel Fawcett Smythe ficava com o rosto corado, parecendo prestes a ser vitimado por uma apoplexia.

Lady Beamish era ainda melhor. Entre todos, era a única que não tinha medo de bombas, tanques ou qualquer coisa que os nazistas pudessem descarregar sobre ela. Tinha mais de oitenta anos, era alta e corpulenta, de cabelos grisalhos presos em um coque atrás da cabeça e dois olhos cinzentos inapelavelmente frios. Costumava mancar um pouco (segundo revelara a uma impressionada platéia, aquilo resultara de um acidente de caça) e precisava caminhar com ajuda de uma forte bengala. Quando não estava em movimento, deixava este objeto ao lado da poltrona, onde invariavelmente atrapalhava quem passasse por perto, fosse fazendo os outros tropeçarem ou chocando-se dolorosamente contra suas canelas. Havia sido com relutância que concordara em aguardar o fim da guerra no Coombe Hotel, mas sua casa em Hampshire fora requisitada pelo Exército e, pressionada duramente, a família por fim a convencera a transferir-se para Devon. "Posta para pastar", resmungava ela constantemente, "como algum velho cavalo de guerra".

O marido de Lady Beamish havia sido um graduado membro do Serviço Civil da Índia, tendo ela vivido grande parte da vida naquele grande subcontinente, a jóia da coroa do Império Britânico, à qual sempre se referia como "Inja". Dolly pensava freqüentemente que Lady Beamish devia ter sido uma torre de resistência para o esposo, reinando em garden parties e, nos momentos difíceis, arquitetando saídas oportunas. Não era difícil imaginá-la, armada apenas com sola topi e uma sombrinha de seda, subjugando uma multidão de nativos turbulentos com aqueles olhos de cera ou, se os brigões se recusassem a ser subjugados, convocando as senhoras e fazendo-as rasgarem sua anáguas para servir de ataduras.

Esperavam Dolly como ela os deixara, reunidos à volta do diminuto fogo da lareira. A Sra. Fawcett Smythe tricotava. Lady Beamish jogava paciência em sua mesa portátil, e o Coronel continuava em pé, de costas para a lareira, aquecendo os fundilhos e inclinando-se para estirar os joelhos reumáticos, como um policial de palco.

- Tudo bem - disse Dolly, tomando a ocupar sua poltrona.

- De que se tratava? - perguntou Lady Beamish, colocando um valete preto sobre uma dama vermelha.

- Era Ambrose. Anunciava seu casamento.

A notícia apanhou o Coronel desprevenido, com as pernas arqueadas. Foi-lhe preciso certa concentração, a fim de colocá-las retas novamente.

- Bem, macacos me mordam! - exclamou ele.

- Oh, que excitante! - balbuciou a Sra. Fawcett Smythe.

- Quem é a moça? - perguntou Lady Beamish.

- Ela é... ela é filha de um artista.

Lady Beamish deixou caírem os cantos da boca.

- Filha de um artista? - exclamou, em total desaprovação.

- Tenho certeza de que deve ser muito famoso - disse a Sra. Fawcett Smythe, consoladoramente.

- Como se chama ela?

- Rum... Penelope Stern.

- Penelope Stein? - perguntou o Coronel, cuja audição nem sempre era confiável.

- Oh, céus, não! - Todos tinham muita pena dos pobres judeus, é claro, porém era inimaginável que o filho de algum deles se casasse com um. - É Stern.

- Nunca ouvi falar de algum artista chamado Stern – disse o Coronel, como se imaginasse que Dolly pretendia enganá-lo.

- Eles têm uma casa na Rua Oakley. E Ambrose disse que vou adorar sua noiva.

- Quando será o casamento?

- No começo de maio.

- Você irá?

- É claro que estarei lá. Preciso telefonar para o The Basil Street e reservar um quarto. Talvez chegue um pouco mais cedo e dê uma espiada nas lojas, a fim de encontrar algo para vestir.

- A cerimônia será muito prolongada? - perguntou a Sra. Fawcett Smythe.

- Não. Vai ser no Cartório de Registros de Chelsea.

- Oh, céus...

Dolly sentiu-se impelida a tomar o partido do filho. Não podia permitir que qualquer deles a lamentasse.

- Bem, estamos em guerra, compreendem, e com Ambrose tendo que ir para o mar a qualquer momento... talvez seja o mais prático... embora eu deva dizer que sempre sonhei para ele um casamento realmente belo na igreja, com um arco de espadas. Enfim, não pôde ser - suspirou, dando corajosamente de ombros. - C'est la guerre!

Lady Beamish prosseguiu com seu jogo de paciência.

- Onde foi que ele a conheceu?

- Ambrose não me disse, mas ela é uma Wren.

- Bem, já é alguma coisa - comentou Lady Beamish.

Enviou a Dolly um olhar agudo e significativo ao dizer isto. Entretanto, Dolly se deu ao cuidado de não interceptar a mensagem. Lady Beamish sabia que ela estava com apenas quarenta e quatro anos. Dolly lhe falara um pouco sobre as próprias fragilidades, as tremendas dores de cabeça (ela as chamava de enxaquecas) que a deixavam abatida, nos momentos mais oportunos; havia ainda o problema com suas costas, deflagrado durante a execução de qualquer tarefa doméstica simples, como fazer a cama ou uma sessão na tábua de passar roupa. Trabalhar com extintores de incêndio ou dirigir uma ambulância era algo simplesmente fora de questão. Contudo, ainda assim Lady Beamish não se mostrou solidária e, de tempos em tempos, fazia comentários ferinos sobre "espertalhões" e pessoas que “não controlavam seu peso".

- Se Ambrose a escolheu - declarou Dolly firmemente para todos eles - é porque deve ser encantadora. Além disso - acrescentou - eu sempre quis ter uma filha.

Não era verdade. No andar de cima, em seu quarto, sozinha e não observada, podia ser ela própria, deixar de lado todas as simulações. Tomada por autopiedade e solidão, dilacerada pelo ciúme do amor rejeitado, procurou consolo em sua caixa de jóias e em seu guarda-roupa, entulhado de roupas caras e femininas. Inspecionava uma pequena peça, depois outra. Os chiffons suaves e as lãs macias deslizavam sob suas mãos. Tirou do armário um vestido transparente e foi até o espelho de corpo inteiro, segurando a peça diante dela. Era um de seus trajes favoritos. Sempre se sentira muito bonita nele. Linda. Seus olhos encontraram os de sua imagem no espelho. Estavam cheios de lágrimas. Ambrose. Amando outra mulher que não ela. Casando com ela. Deixou o vestido cair na banqueta acolchoada, atirou-se na cama e chorou.

O verão chegara. Londres impregnava-se do perfume das flores. O sol se mostrava, em cálida bênção, banhando calçadas e tetos, refletindo-se das curvaturas prateadas dos balões de barragem flutuando no alto. Era maio; uma sexta-feira; meio-dia. Abrigada no The Basil Street Hotel, Dolly Keeling sentou-se no sofá junto da janela aberta do saguão do primeiro andar, e aguardou a chegada do filho e sua noiva.

Quando ele chegou, subindo os degraus de dois em dois, de quepe na mão, parecendo maravilhosamente atraente em seu uniforme, ela se sentiu cheia de felicidade, não apenas por vê-lo, mas porque também parecia ser apenas seu. Talvez tivesse vindo dizer-lhe que decidira interromper tudo aquilo, que afinal de contas não pretendia mais casar-se. Ansiosa, ela se levantou e foi ao encontro dele.

- Olá, mamãe...

Ele parou para beijá-la. A altura do filho era um dos prazeres de Dolly, porque a deixava sentindo-se vulnerável e indefesa.

- Meu querido... onde está Penelope? Pensei que viriam juntos.

- E viemos. Partimos de Pompey esta manhã, mas ela queria trocar o uniforme, de maneira que a deixei na Rua Oakley e vim para cá. Penelope logo estará aqui.

A ligeira esperança morreu quase ao nascer mas, ainda assim, ela teria Ambrose para si um pouco mais. Aliás, estando sozinhos, a conversa seria mais fácil.

- Bem, então só nos resta esperá-la. Vamos sentar e você me contará tudo que irá acontecer. - Dolly captou o olhar do garçom, pediu um sherry para si mesma e um gim para Ambrose. –Rua Oakley. Os pais dela estão lá?

- Não. Estas são as más notícias. O pai dela está com bronquite. Penelope só ficou sabendo ontem à noite. Eles não poderão vir para o casamento.

- Oh, mas certamente a mãe virá, não?

- Ela disse que tem de ficar na Cornualha, cuidando do velho garotão. Porque ele é realmente velho. Setenta e cinco anos. Acho que não querem correr nenhum risco.

- Bem, mas parece terrível... somente eu no casamento...

- Penelope tem uma tia que mora em Putney, além de alguns amigos chamados Clifford. Eles estarão presentes. É o bastante.

As bebidas chegaram e foram postas na conta de Dolly. Os dois ergueram os copos.

- Estava ansioso por vê-la -disse Ambrose.

Dolly sorriu complacentemente, certa de que os outros ocupantes do saguão do hotel olhavam para eles, atentos ao belo e jovem Oficial de Marinha e à bonita mulher que parecia nova demais para ser sua mãe.

- E quais são os seus planos?

Ele lhe contou. Finalmente fora aprovado em seus exames de Artilharia, ficaria uma semana na Escola Divisional e então seria mandado para o mar.

- E sua lua-de-mel?

- Não haverá lua-de-mel. Casado amanhã, passando a noite na Rua Oakley e, no domingo, retomando a Portsmouth.

- E quanto a Penelope?

- Vou embarcá-la no trem para Porthkerris, na manhã de domingo.

- Porthkerris? Ela não voltará para Portsmouth com você?

- Não. Realmente. - Mordendo a unha do polegar, ele espiou pela janela, como se algo absorvente estivesse prestes a acontecer na rua mais abaixo. O que não era verdade. - Ela tem um curto período de folga.

- Oh, céus! Que pouco tempo ficarão juntos!

- Não temos alternativas.

- Bem, suponho que não.

Ela se virou para pousar o copo de sherry na mesa, e então viu a jovem chegar ao alto da escada, parar lá, hesitar, olhar em volta e procurar alguém. Uma jovem muito alta, de compridos cabelos escuros repuxados da testa - o penteado de uma colegial, liso e sem sofisticação. O rosto de compleição delicada, com olhos escuros em órbitas fundas, era extraordinário pela própria falta de maquilagem; o brilho da pele não empoada, a boca pálida, as sobrancelhas escuras, naturais, não demarcadas pela pinça, e de forte desenho. Naquele dia quente, usava roupas mais convenientes para um feriado no campo, do que para um jantar formal em um hotel de Londres. Um vestido de algodão vermelho-escuro com bolinhas brancas e um cinto branco à volta da cintura estreita. Sandálias brancas nos pés e... Dolly precisou olhar de novo, para ter certeza... sim, não usava meias! Afinal, quem seria aquela jovem? E por que olhava na direção deles? Por que se encaminhava para lá? E, sorrindo...?

Oh, santo Deus! Ambrose se levantava da mesa.

- Mamãe - dizia ele - esta é Penelope.

- Olá - disse Penelope.

Dolly mal conseguiu manter o queixo sem cair. Podia sentir a boca que se abria, mas logo a colocou no lugar e transformou a careta em um sorriso esfuziante. Sem meias. Sem luvas. Sem bolsa de mão. Sem chapéu. Sem meias! Só esperava que o chefe dos garçons não barrasse a entrada deles no restaurante.

- Minha querida...

As duas cumprimentaram-se com um aperto de mão. Ambrose ocupou-se em trazer mais uma cadeira e fazer sinal para o garçom. Penelope sentou-se à plena claridade da janela e fitou Dolly com um olhar desconcertante, por ser franco e direto. Está me examinando, disse Dolly para si mesma, e conheceu a alfinetada do ressentimento. Ela não tem o direito de encarar a futura sogra, de despertar este aborrecido disparar em meu coração. Dolly esperara juventude, acanhamento, insegurança, qualquer coisa. Tudo, menos isto.

- Foi um prazer conhecê-la... já sei que fizeram uma boa viagem, de Portsmouth até aqui. Ambrose me contava...

- O que quer beber, Penelope?

- Uma laranjada ou qualquer coisa. Com gelo, se possível.

- Não prefere um sherry? Um copo de vinho? - sugeriu Dolly, procurando tentá-la, ainda sorrindo para cobrir seu embaraço.

- Não. Estou com calor e muita sede. Apenas uma laranjada.

- Bem, encomendei uma garrafa de vinho para o almoço. Teremos que fazer o nosso pequeno brinde.

- Obrigada.

- Lamentei saber que seus pais não poderão estar aqui amanhã.

- É mesmo uma pena, mas papai apanhou uma bronquite, não quis ir para a cama e começou a espirrar. Agora, o médico o mandou ficar em repouso por uma semana.

- Não há mais ninguém para cuidar dele?

- Além de Sophie, é o que quer dizer?

- Sophie?

- Minha mãe. Eu a chamo de Sophie.

- Oh, entendo. Exatamente. Não há mais ninguém que possa tomar conta de seu pai?

- Somente Doris, uma moça evacuada de Londres, que mora conosco. Entretanto, ela tem dois filhos e precisa ficar de olho neles. Por outro lado, papai é um paciente difícil; Doris não teria a menor paciência com ele.

Dolly fez um ligeiro gesto com as mãos.

- Suponho que vocês, como todos nós, agora estão sem empregados.

- Nós nunca tivemos empregados - disse Penelope. - Oh, obrigada, Ambrose, está ótimo.

Penelope apanhou o copo da mão dele, bebeu metade do conteúdo no que parecia um só gole e depois o deixou sobre a mesa.

- Nunca tiveram? Nunca houve ninguém para ajudá-los nos trabalhos domésticos?

- Sempre foi assim. Sem empregados. Volta e meia havia alguém para dar uma ajuda, porém nunca empregados fixos.

- E quem cozinha?

- Sophie. Ela adora cozinhar. É francesa. Cozinha maravilhosamente bem.

- E os trabalhos domésticos?

Penelope pareceu ligeiramente despreocupada, como se nunca houvesse considerado as tarefas caseiras.

- Não sei. Sempre acabam sendo feitos. Cedo ou tarde.

- Bem... - Dolly permitiu-se uma risadinha, leve e mondaine. - Tudo soa muito encantador. E boêmio. Espero que, dentro em breve, eu tenha o prazer de conhecer seus pais. Agora, falemos sobre amanhã. O que vai usar para seu casamento?

- Não sei.

- Não sabe?

- Não pensei nisso. Qualquer coisa, suponho.

- Oh, mas então precisa fazer algumas compras!

- Francamente, não. Não pretendo fazer qualquer compra. Há coisas sobrando, na Rua Oakley. Encontrarei o que vestir.

- Encontrará o que...

Penelope riu.

- Receio que eu não seja uma pessoa muito preocupada com roupas. Em minha casa, ninguém tem essas preocupações. Por outro lado, nunca jogamos nada fora. Sophie tem algumas coisas bonitas, deixadas na Rua Oakley. Esta tarde, eu e Elizabeth Clifford vamos fazer um bom inventário do que existe por lá. – Penélope olhou para Ambrose. - Não fique tão inquieto, Ambrose. Não o decepcionarei.

Ele sorriu parvamente. Dolly disse para si mesma que sentia pena do pobre rapaz. Nem um olhar amoroso, um toque de ternura, nem um beijo rápido foram trocados entre ele e aquela extraordinária jovem com quem seu filho decidira casar-se. Estariam apaixonados? Seria possível se amarem e, ainda assim, continuarem se portando de modo tão despreocupado? Por que Ambrose se casaria com ela, se não estivesse apaixonado? Porque que Ambrose se casaria...?

Seus pensamentos tateantes chegaram a uma possibilidade tão aterradora que, mal emergiu, foi logo sufocada. Então, timidamente, a mesma idéia tomou a emergir.

- Ambrose me disse que você irá para casa no domingo.

- É, eu vou.

- Está de folga?

Ambrose olhava para Penelope, tentando atrair-lhe a atenção. Dolly percebia a manobra mas, aparentemente, o mesmo não se dava com a moça. Ela simplesmente permaneceu quieta, continuando a parecer calma e despreocupada.

- Sim, por um mês.

- Ficará em Whale Island?

Ambrose começou a agitar a mão e, finalmente, como se não imaginasse o que mais fazer com ela, pousou-a em cima da boca.

- Não, estou sendo desligada.

Ambrose deixou escapar um ruidoso suspiro.

- Para sempre?

- É, para sempre.

- Isso é rotineiro? - perguntou Dolly, orgulhosa de si mesma, ainda sorrindo, mas em voz gélida.

Penelope sorriu também.

- Não - respondeu.

Talvez decidindo que a situação não ficaria pior do que já estava, Ambrose levantou-se.

- Vamos comer alguma coisa. Estou morrendo de fome.

Muito dona de si, lentamente, Dolly levantou-se da cadeira, recolheu a bolsa de mão e as luvas brancas. Em pé, baixou os olhos para a futura esposa de Ambrose, para seus olhos escuros e abundante cabeleira no mesmo tom, para sua beleza sem cuidados.

- Não tenho certeza de deixarem Penelope entrar no restaurante - disse. - Segundo me parece, ela não está usando meias.

- Oh, pelo amor de Deus... eles nem perceberão!

Ambrose parecia irritado e impaciente, mas Dolly sorriu para si mesma, sabendo que a raiva dele era dirigida, não para ela, mas para Penelope, por ter deixado o gato escapar do saco.

Ela está grávida, disse para si mesma, encabeçando a fila, ao saírem do saguão para o refeitório. Ela o encurralou, capturou-o. Meu filho não a ama. Ela o está forçando ao casamento.

Depois do almoço, Dolly escusou-se. Ia subir para se deitar um pouco. Uma dor de cabeça tola, explicou a Penelope, com apenas um toque de acusação na voz. Precisava ser cautelosa. O menor excitamento... Penelope pareceu um pouco constrangida, porque o almoço nem chegara a ser divertido, mas respondeu que compreenderia perfeitamente; que veria Dolly no Cartório de Registros, no dia seguinte; que fora um almoço delicioso, muitíssimo obrigada. Dolly entrou no arcaico elevador e subiu, como uma ave engaiolada.

Os dois a espiaram subir. Quando percebeu que a mãe não poderia mais ouvi-los, Ambrose se virou para Penelope.

- Por que, raios, tinha que contar para ela?

- O quê? Que estou grávida? Eu não contei. Ela adivinhou.

- Ela não precisaria adivinhar!

- Sua mãe ficaria sabendo, cedo ou tarde. Por que não agora?

- Porque... bem, coisas assim a perturbam.

- Foi por isso que ela ficou com dor de cabeça?

- Sim, claro que foi... - Os dois começaram a descer a escada. Tudo está começando da maneira errada!

- Então, sinto muito. Só que, sinceramente, não entendo que isso faça alguma diferença. Por que interessaria a ela? Vamos casar-nos e, afinal, acho que tudo isto só diz respeito a nós dois!

Ele não sabia o que responder. Se Penelope podia ser tão obtusa, então não havia explicação. Em silêncio, emergiram para o sol aconchegante e desceram a rua, até onde ele estacionara o carro.

Ele pousou a mão em seu braço. Sorria.

- Oh, Ambrose, você está mesmo aborrecido? Ela acabará conformada. São águas que passam debaixo da ponte, como sempre diz papai. Incomoda por alguns dias, mas tudo passa e terminará esquecido. Por outro lado, assim que o bebê chegar, ela ficará encantada. Toda mulher anseia pelo primeiro neto e o enche de vontades.

Ambrose, no entanto, não parecia tão certo. Rodaram a alguma velocidade por Pavilion Road, depois desceram a King's Road e entraram na Rua Oakley. Quando ele freou diante da casa, Penelope perguntou:

- Você vai entrar? Venha e conheça Elizabeth. Irá adorá-la.

Ele não aceitou a proposta. Disse que tinha outras coisas a fazer. Tornaria a vê-la no dia seguinte.

- Tudo bem. - Penelope estava tranqüila e não discutiu. Beijou-o saiu do carro e bateu a porta. - Tenho que ir agora, descobrir um vestido de noiva para mim.

Ele sorriu, relutante. Viu-a subir os degraus correndo e entrar pela porta da frente. Penelope acenou e desapareceu de vista. Ambrose ligou o carro, fez uma manobra em U e rodou velozmente pelo trajeto que viera. Cruzou Knightsbridge e entrou no parque. Estava muito quente, mas havia frescura debaixo das árvores. Estacionou o carro e caminhou um pequeno trecho, encontrou um banco e sentou-se. As árvores farfalhavam à brisa, e o parque estava cheio de agradáveis sons de verão... eram vozes de crianças e trinados de pássaros, tendo o contínuo rumor do trânsito londrino como música de fundo.

Sentia-se taciturno e desalentado. Penelope tinha razão, ao dizer que não importava. que a mãe dele se acostumaria à idéia de um casamento forçado - porque, de fato, o que mais era aquele casamento? - mas ele sabia muito bem que Dolly jamais esqueceria e que provavelmente nunca perdoaria. Era muito azar os Stern não poderem vir para o casamento no dia seguinte. Eles, com seus conceitos liberais e atitudes boêmias, talvez conseguissem equilibrar a situação. Mesmo que Dolly não aderisse à sua maneira de pensar, pelo menos perceberia a existência de outros pontos de vista.

Segundo Penelope, os pais dela não estavam nem um pouco aborrecidos sobre o iminente bebê, muito pelo contrário – haviam ficado excitados, tendo deixado claro, através da filha, que Ambrose de maneira alguma tinha a obrigação de tomá-la uma mulher honesta.

Ao saber que era um pai em perspectiva, ele tivera a sensação de que um buraco se abrira sob seus pés. Ficara abalado, chocado e furiosamente irritado - consigo mesmo, por se deixar apanhar na clássica e temida armadilha, mas também com Penelope, por havê-lo capturado.

"Você está bem?", ele havia perguntado, e ela respondera: "Oh, sim, estou muito bem" mas, no calor do momento, com uma coisa e outra, os dois simplesmente não haviam insistido sobre os respectivos sentimentos. Não obstante, ela havia sido muito terna.

- Não precisaremos casar-nos, Ambrose - havia garantido. - Por favor, não pense que tem essa obrigação.

Durante todo o tempo, parecera tão calma e despreocupada sobre toda aquela situação lamentável, que ele se vira rapidamente considerando as possibilidades do outro lado da moeda. Afinal, talvez tudo não fosse tão ruim como imaginava. As coisas poderiam ter sido bem piores. A sua maneira estranha, ela era bonita. E bem-nascida. Penelope não era qualquer jovenzinha comum, conhecida em algum pub da Portsmouth, mas a filha de pais bem situados na vida, apesar de inconvencionais. Além disso, pais donos de bens. Aquela casa da Rua Oakley não era de se jogar fora e, havendo ainda uma propriedade na Cornualha, esta última era decididamente um prêmio extra. Ele se viu velejando pelo estreito de Helford. E, no fim da estrada, sempre havia a possibilidade de herdar um Bentley 4 1/2 litros.

Não. Ele tinha feito a coisa certa. Quando sua mãe superasse o ligeiro choque de descobrir que Penelope estava grávida, tudo correria bem. Por outro lado, havia uma guerra em andamento. Podia explodir a qualquer momento e durar bastante; eles não enfren tariam muito tempo de convivência ou nem mesmo viveriam juntos, enquanto a guerra não terminasse. Ambrose não tinha a menor dúvida de que sobreviveria. Não tendo imaginação vívida, não era perturbado por pesadelos de explosões na casa das máquinas, de morrer afogado ou congelar até a morte, nos mares invernais do Atlântico. E mais tarde, quando tudo terminasse, provavelmente se sentiria mais tentado a assumir o papel de chefe de família, do que no momento presente.

Remexeu-se no banco, de encosto duro e francamente desconfortável. Pela primeira vez, reparou nos namorados que jaziam a apenas alguns metros dali, abraçados sobre a relva amassada. Aquilo lhe deu uma esplêndida idéia. Levantando-se, caminhou de volta ao carro, rodou para fora do parque, contornou Marble Arch e desembocou nas ruas sossegadas de Bayswater. Estava assobiando baixinho.

Não fico alto com champanha,

Beber simplesmente não me excita,

mas, então, diga por que será verdade...

Estacionou junto ao meio-fio, diante de uma casa de fachada alta e respeitável e, por uma escada para o porão, dirigiu-se a uma área cheia de flores. Apertou a campainha da porta amarela. Estava arriscando, naturalmente, mas às quatro da tarde, ela costumava estar por ali, tirando uma soneca, movimentando-se em sua cozinha minúscula ou, então, desocupada. Valia a pena arriscar. Ela abriu a porta, com os cabelos louros em desalinho e um negligê rendado jogado recatadamente sobre os ombros, escondendo os seios arredondados e tentadores. Angie. A mesma que lhe tirara a virgindade quando ele tinha dezessete anos, e para quem Ambrose desde então se voltava, em momentos problemáticos.

- Oh! - O rosto dela ficou radioso de alegria. – Ambrose!

Homem nenhum seria mais bem recebido.

- Olá, Angie.

- Há séculos que não o vejo! Pensei que, a esta altura, você estaria em alto mar. - Ela estendeu um braço roliço e maternal.

- Não fique parado aí fora. Vamos, entre!

Foi o que ele fez.

Quando Penelope abriu a porta da frente na Rua Oakley. Elizabeth Clifford debruçou-se na balaustrada da escada e chamou por ela. Penelope subiu.

- E então, como correu tudo?

- Não muito bem. - Penelope sorriu. - Ela não podia ser pior. Toda enchapelada. enluvada e furiosa porque eu não usava meias. Disse que não teríamos permissão para entrar no restaurante, porque eu estava sem meias, mas é claro que entramos.

- Ela desconfia de que você vai ter um bebê?

- Sim. Não lhe contei diretamente, mas ela intuiu sem perda de tempo. Sem a menor dúvida. Aliás, foi melhor assim. Ambrose ficou furioso. Mas achei não ser nada demais ela saber.

- Sim, acho que sim - disse Elizabeth mas, no fundo do coração, lamentava a pobre mulher. Pessoas jovens, até mesmo Penelope, podiam ser terrivelmente insensíveis e sem percepção. – Quer uma xícara de chá ou outra coisa qualquer?

- Mais tarde, eu adoraria um chá. Escute, preciso encontrar alguma coisa para vestir amanhã. Gostaria que me ajudasse.

- Andei remexendo em uma velha arca... - Elizabeth encabeçou o trajeto para seu quarto, onde uma boa quantidade de peças de roupa amarrotadas e em frangalhos empilhava-se sobre a enorme cama de casal que ela dividia com Peter. - Este aqui não é uma graça? Comprei-o para ir a Hurlingham... Acho que foi em novecentos e vinte e um quando Peter estava em sua fase de jogar críquete. - Ela havia apanhado um vestido do alto da pilha; era de linho creme, muito fino; cintura longa, sem forma, de bainha costurada a mão. - Parece um tanto encardido, mas posso lavá-lo e passá-lo, deixando-o pronto para amanhã. E, veja, tem até sapatos combinando - você não adora fivelas de diamantes?... Sem falar nas meias cor de carne...

Penelope pegou o vestido e foi com ele até o espelho, erguendo-o diante do corpo, observando com olhos semicerrados e virando a cabeça para um e outro lado, a fim de captar o efeito.

- A cor é adorável, Elizabeth. Parece trigo maduro. Não se incomodaria mesmo de emprestá-lo?

- Seria um prazer.

- E o que me diz de um chapéu? Acho que terei de usar um. Ou pentear o cabelo para cima, qualquer coisa assim.

- Também teremos que arranjar uma anágua. O vestido é tão fino, que chega a ser transparente. Mostraria suas pernas.

- Oh, sim, minhas pernas não podem ser mostradas! Dolly Keeling teria um ataque...

As duas começaram a rir. Ainda rindo, Penelope despiu seu vestido de algodão vermelho e enfiou o de linho claro pela cabeça, começando a sentir-se bastante alegre. Dolly Keeling era uma dor de cabeça, porém ela ia casar com Ambrose, não com a mãe dele. Assim, que diferença fazia o que pensasse aquela dama a seu respeito?

O sol brilhava; O céu estava azul. Tendo feito o desjejum na cama, Dolly Keeling levantou-se às onze horas. Embora não tendo desaparecido de todo, sua dor de cabeça melhorara bastante. Ela tomou um banho, arrumou os cabelos, fez a maquilagem. Tudo isto demorou muito, pois era importante que se mostrasse jovem e impecável ao mesmo tempo. Esperava eclipsar todos os presentes, até a noiva. Após ajeitar no lugar o último cílio, levantou-se, tirou o negligê transparente e vestiu seu elegante traje. Era um vestido de seda lilás, com um casaco frouxo e esvoaçante do mesmo tecido. Um fino chapéu de aba, feito de palha, diminuía-lhe o rosto, e era preso por uma fita de gorgorão lilás. Seus sapatos de salto, muito altos e finos, as compridas luvas brancas, a bolsa de mão em couro branco. O último reflexo no espelho a tranquilizou e ergueu seu moral. Ambrose ficaria orgulhoso dela. Tomou duas últimas aspirinas, perfumou -se em Houbigant e desceu para o saguão.

Ambrose a esperava, parecendo deslumbrante em seu uniforme mais elegante, perfumado como se acabasse de sair de algum barbeiro de luxo, o que realmente acontecera. Havia um copo vazio na mesa ao seu lado e, quando beijou a mãe, ela sentiu o conhaque em seu hálito. O coração dela oprimiu-se, penalizada pelo pobre rapaz pois, afinal de contas, ele estava apenas com vinte e um anos, sendo natural que ficasse nervoso.

Desceram para a rua e tomaram um táxi até King's Road. Durante o trajeto, Dolly segurou a mão de Ambrose, apertadamente, entre seus pequenos dedos enluvados de branco. Não falaram. Qualquer conversa seria dispensável agora. Havia sido uma boa mãe para ele... mulher nenhuma teria feito mais. E quanto a Penelope... bem, era melhor que certas coisas não fossem ditas.

O táxi parou diante do imponente prédio da municipalidade de Chelsea. Os dois saíram para a calçada quente e varrida pela brisa. Ambrose pagou a corrida. Enquanto ele fazia isto, Dolly procurou ajeitar-se, alisando a saia, tocando o chapéu para ter certeza de que estava seguramente ancorado no lugar. Depois olhou em volta. A alguns metros de distância, outra pessoa esperava. Era uma figurinha bizarra, ainda mais miúda do que ela, com as pernas mais finas que Dolly já vira, calçadas em meias de seda preta. Os olhos das duas encontraram-se. Mogueada, Dolly virou o rosto rapidamente, porém já era tarde, pois a outra mulher encaminhava-se em sua direção, o rosto animado de ansiosa antecipação. Chegando perto de Dolly, ela lhe agarrou o punho com força, proclamando:

- Você deve ser da família Keeling. Adivinhei logo. Adivinhei em seguida, assim que lhe pus os olhos em cima!

Dolly arquejou, certa de estar sendo atacada por uma lunática. Ambrose acabava de pagar a corrida e, ao se virar, ficou tão chocado quanto a mãe.

- Perdão, mas...

- Eu sou Ethel Stern. Irmã de Lawrence Stern. - Ela vestia um casaco escarlate de numeração infantil, com muitos babados e ornatos. Na cabeça, tinha uma enorme boina de veludo preto. - Tia Ethel para você, meu rapaz!

Largando o braço de Dolly, ela apontou a mão na direção de Ambrose. Quando ele não a tomou imediatamente, uma terrível incerteza cobriu o rosto enrugado de Tia Ethel.

- Não me digam que interpelei a família errada?

- Não. Não, claro que não. - Ele corara ligeiramente, constrangido pelo encontro e pela incrível aparência dela. - Como vai? Eu sou Ambrose e esta é minha mãe, Dolly Keeling.

- Logo vi que não podia estar enganada. Fiquei esperando durante horas - prosseguiu ela, tagarelamente. Seus cabelos eram pintados de acaju escuro, e a confusa maquilagem era desastrosa, como se a tivesse feito com os olhos fechados. As sobrancelhas pintadas não combinavam muito bem, e o batom escuro começava a infiltrar-se nas rugas da pele, ao redor da boca. -Geralmente sempre chego atrasada em tudo, de maneira que hoje me esforcei ao máximo e, como não podia deixar de ser, cheguei cedo demais. - Imediatamente, sua expressão alterou-se para uma da mais profunda tragédia. Aquela mulher assemelhava-se a um pequeno palhaço; o macaquinho do tocador de realejo. - Santo Deus, não é absolutamente terrível o que aconteceu ao pobre Lawrence? Coitado, deve ter ficado tão desapontado!

- Imagino - disse Dolly fracamente. - Estávamos muito ansiosos por conhecê-lo.

- Ele sempre aprecia uma viagem a Londres. Agarra qualquer desculpa esfarrapada para vir...

Ele se interrompeu subitamente, emitindo uma exclamação esganiçada que deixou Dolly apavorada, ainda mais ao vê-la agitando os braços no ar. Dolly viu o táxi que chegava, vindo da direção contrária, de cujo interior agora emergiam Penelope e, presumivelmente, o casal Clifford. Estavam todos rindo, e Penelope parecia relaxada por completo, sem o menor toque de nervosismo.

- Olá! Aqui estamos nós! Uma cronometragem perfeita, não? Tia Ethel, que prazer tornar a vê-la... Olá, Ambrose. - Ela lhe deu um beijo rápido. - Você ainda não conhece os Clifford. Bem, estes são o Professor e a Sra. Clifford. Peter e Elizabeth. E esta é a mãe de Ambrose...

Todos pareceram satisfeitos, trocaram apertos de mão e disseram "Como vai?" Dolly sorria e assentia, mostrava-se encantadora, enquanto seus olhos ocupados iam de um rosto a outro, nada perdendo, fazendo a costumeira e instantânea avaliação.

Penelope dava a impressão de estar usando uma fantasia mas, ainda assim, parecia enlouquecedoramente bela - estonteante e distinta. Era muito alta e esbelta e, conforme Dolly percebeu, aquele comprido e fouxo vestido creme, uma herança de família, servia apenas para acentuar aquela invejável elegância. Prendera os cabelos em um coque frouxo atrás da cabeça e usava um enorme chapéu de palha verde-seco, coroado de margaridas.

A Sra. Clifford, por sua vez, assemelhava-se a uma preceptora aposentada, provavelmente muito intelectual e inteligente, mas trajada sem a menor elegância. O Professor estava ligeiramente mais bem-vestido (enfim, para um homem era sempre mais fácil

apresentar-(se bem trajado), com um temo de flanela cinza risca-de-giz e camisa azul. Era alto e magro, de faces encovadas, ascético. Bastante atraente, sob uma perspectiva erudita. Dolly não foi a única a achá-lo atraente. Pelo canto do olho, viu Tia Ethel cumprimentá-lo com um forte abraço, pendurada ao pescoço dele e erguendo para trás uma perna pequenina e velha, como alguma soubrette em uma comédia musical. Perguntou-se se a Tia Ethel não seria vítima de uma loucura branda, e desejou que isso não fosse hereditário na família.

Finalmente, Ambrose conseguiu organizar o grupo, dizendo que se não se apresentassem logo, ele e Penelope encontrariam seu guichê fechado. Tia Ethel ajeitou a boina na cabeça, e o grupo entrou a apressadamente no prédio, para a cerimônia. Esta foi feita com grande rapidez, tendo terminado antes que Dolly encontrasse um momento para levar aos olhos seu lencinho orlado de rendas. Então, tomaram a sair com a mesma pressa e encaminharam-se para o Ritz, onde Peter Clifford, seguindo instruções vindas da Cornualha, havia reservado uma mesa para o almoço.

Para melhorar qualquer situação, nada como uma refeição deliciosa, acompanhada de champanha farto, oferta de um urbano anfitrião. Todos, até mesmo Dolly, começaram a relaxar, embora Tia Ethel continuasse fumando sem parar durante todo o almoço e contasse anedotas questionáveis, dobrando-se de rir muito antes de chegar ao final hilariante. O Professor se mostrou encantador e cortês, disse para Dolly que apreciava seu chapéu, enquanto a Sra. Clifford pareceu realmente interessada pela vida no The Coombe Hotel, querendo saber tudo sobre as pessoas que lá moravam. Dolly lhe contou, deixando escapar o nome de Lady Beamish algumas vezes. Penelope tirou seu chapéu verde-seco e o pendurou no encosto da cadeira. Ambrose foi muito gentil, levantando-se para uma breve saudação, e referindo-se a Penelope como sua esposa, o que motivou alguns aplausos dos presentes. Foi uma boa comemoração sob todos os aspectos e, ao terminar, Dolly tinha a impressão de que fizera amigos para o resto da vida.

Enfim, tudo o que é bom tem de terminar e, por fim, relutantemente, chegou o momento de recolherem seus pertences, arrastarem para trás as pequenas cadeiras douradas, levantarem-se e tomarem o rumo de seus respectivos destinos - Dolly para o The Basil Street Hotel, e os Clifford para um concerto ao anoitecer, no Albert Hall. Tia Ethel retomaria a Putney, e o jovem casal iria para a Rua Oakley.

Foi enquanto estavam no saguão, ligeiramente estonteados pela bebida e esperando pelos táxis que finalmente os dispersariam, que ocorreu o evento condenando para sempre o relacionamento de Penelope com sua sogra. Atordoada pelo champanha, sentindo-se

magnânima e sentimental, Dolly tomou as mãos de Penelope nas suas e, erguendo os olhos para ela, disse:

- Minha querida, agora que você é esposa de Ambrose, eu gostaria que me chamasse de Marjorie.

Penelope pestanejou, um tanto perplexa. Parecia engraçado, chamar a sogra de Marjorie, quando se sabia perfeitamente que o nome dela era Dolly. Entretanto, já que ela queria assim...

- Está bem. É claro que farei isso.

Penelope inclinou-se e beijou a face macia e perfumada, que lhe era tão graciosamente oferecida.

Assim, durante um ano, ela a chamou de Marjorie. Escrevendo para agradecer um presente de aniversário, "Querida Marjorie..." era como iniciava a carta. Ligando para The Coombe Hotel, a fim de dar notícias de Ambrose, "Oh, Marjorie, quem está falando é Penelope", costumava dizer.

Somente após transcorridos muitos meses, quando então era muito tarde para voltar atrás, ela percebeu que Dolly realmente lhe havia dito, no saguão do Ritz, "Minha querida, eu gostaria que me chamasse de Madre".

Na manhã de domingo, Ambrose levou Penelope até a estação de Paddington, a fim de embarcá-la no Riviera, para a Cornualha. Como sempre, o trem estava atopetado de militares, marinheiros e soldados, mochilas, máscaras contra gases e capacetes de metal. Era impossível reservar um assento, mas Ambrose encontrou uma vaga em um canto, que ocupou com a bagagem dela, a fim de que outra pessoa não a reclamasse.

Voltaram à plataforma para a despedida. Era difícil encontrarem as palavras, porque de repente tudo era estranho e novo; tinham-se tornado marido e mulher, sem saberem o que era esperado deles. Ambrose acendeu um cigarro e começou a fumar, observando a plataforma de um e outro lado, enquanto consultava o relógio. Penelope ansiava pelo apito do guarda, porque assim o trem partiria, encerrando tudo aquilo.

- Odeio despedidas - disse ela, com certa irritação.

- Terá de se acostumar.

- Não sei quando tornarei a vê-lo. Dentro de um mês, quando voltarei a Portsmouth para meu desligamento, acha que já terá ido embora?

- É o mais provável.

- Para onde o mandarão?

- Ninguém sabe. Para o Atlântico, talvez. Ou Mediterrâneo.

- O Mediterrâneo seria ótimo. Pelo menos, é ensolarado.

- É verdade.

Outra pausa.

- Eu gostaria que papai e Sophie tivessem vindo ontem. Assim, você poderia conhecê-los.

- Quando eu conseguir alguma folga decente, talvez vá até a Cornualha por alguns dias.

- Oh, vá mesmo!

- Espero que tudo corra bem. Com o bebê, quero dizer.

Ela ruborizou-se ligeiramente.

- Tenho certeza de que tudo correrá bem.

Ele tomou a olhar para o relógio. Ela disse, um tanto enervada:

- Eu lhe escreverei. Você precisa...

O apito do guarda varou o ar nesse momento. Imediatamente, teve seqüência o pequeno pânico de costume. Portas foram batidas, vozes gritavam, um homem chegou às carreiras, alcançando o trem no último segundo possível. Ambrose deixou cair o cigarro, esmagou-o com o salto, inclinou-se para beijar a esposa, embarcou-a no trem e bateu a porta atrás dela. Penelope baixou a janela e debruçou-se para fora. O trem começou a rodar.

- Você escreverá e me dirá seu novo endereço, Ambrose?

Um pensamento extraordinário ocorreu a ele.

- Eu não sei o seu endereço!

Ela começou a rir. Ambrose agora corria, acompanhando o trem.

- É Carn Cottage! - gritou ela, acima do barulho das rodas nos trilhos. - Caro Cotagge, Porthkerris.

O trem agora corria mais depressa do que ele, e Ambrose foi diminuindo sua corrida até parar, ficar no mesmo lugar e acenar em despedida. O trem fez a curva da plataforma e, expelindo vapor, escondeu um do outro. Penelope se fora. Dando meia-volta, Ambrose iniciou a longa caminhada de volta à plataforma deserta.

Carn Cottage. A mansão elizabetana que sonhara para si mesmo, o barco a vela no Rio Helford - tudo se embaciara e dissolvera, perdido para sempre. Carn Cottage. "Chalé do Penedo". Soava decepcionantemente vulgar, e ele não pôde deixar de sentir que, de algum modo, havia sido logrado.

Não obstante, sentia-se sossegado. Ela se fora. Sua mãe voltara para Devon e tudo estava seguramente encerrado. Agora, tudo o que tinha a fazer era voltar a Portsmouth e reassumir suas funções. De maneira curiosa, enquanto caminhava para seu carro no estacionamento, percebeu que ansiava por retomar à rotina, à vida militar e à companhia dos colegas. De um modo geral, era mais fácil conviver com os homens, do que com as mulheres.

Alguns dias mais tarde, a 10 de maio, os alemães invadiram a França, e a guerra começou a sério.

 

                               SOPHIE

Novembro começava quando eles voltaram a se ver. Após os longos meses de separação, houve um telefonema inesperado. Era Ambrose, ligando de Liverpool. Conseguira alguns dias de folga, ia tomar o primeiro trem disponível e passaria o fim de semana em Carn Cottage.

Ele chegou, ficou e tornou a partir. Devido a várias circunstâncias adversas, a visita foi um desastre total. Antes de mais nada, choveu torrencialmente durante os três dias inteiros. Outra circunstância foi que Tia Ethel, nunca a visitante mais diplomática ou convencional, também estava lá na época. Os outros motivos são demasiado numerosos e desalentadores para serem analisados ou contados.

Encerrada a visita do marido, após ele ter retomado ao seu destróier, Penelope decidiu que tudo havia sido demasiadamente depressivo, para ocupar seus pensamentos com isso. Assim, com a insensibilidade da juventude, aliada à gravidez incipiente, extirpou da mente todo o desagradável episódio. Havia outras coisas mais importantes com que se preocupar.

O bebê chegou no momento previsto, em fins de novembro. Uma menina. Não nasceu em Carn Cottage, como sua mãe, mas no pequenino hospital de Porthkerris. Chegou ao mundo tão depressa, que quando o médico apareceu tudo já havia terminado, o trabalho feito inteiramente por Penelope e a enfermeira Rogers. Após deixar Penelope mais ou menos em ordem, a enfermeira Rogers, como era costumeiro, levou o bebê dali, a fim de lavá-lo, arrumá-lo e vesti-lo com suas diminutas roupas, embrulhando-o no xale de Shetland, que Sophie - nem era preciso dizer - tinha desencavado de alguma gaveta, cheirando fortemente a naftalina.

Penelope sempre tivera suas próprias teorias sobre bebês. Jamais lidara com um, nunca segurara nenhum no colo, mas acreditava implicitamente que qualquer mãe, vendo um filho pela primeira vez, não deixaria de reconhecê-lo no ato. Não poderia ser diferente. Claro que, ao mover a manta para um lado, com um indicador delicado, ao olhar para o novo rostinho. o reconhecimento seria imediato. Nada mais natural.

Entretanto, não foi assim que aconteceu. Quando a enfermeira Rogers finalmente voltou, trazendo o bebê com tanto orgulho como se ela própria o tivesse posto no mundo, quando o depositou ternamente nos braços ansiosos da mãe, Penelope olhou para a criança com absoluta descrença. Gorducha, loura, com olhos azuis que quase se fechavam, bochechuda e com o aspecto geral de um repolho rosado, não se parecia com qualquer pessoa que ela conhecesse. Evidentemente, não tinha qualquer traço de seus pais; não mostrava a menor semelhança com Dolly Keeling. E, quanto aos Stern, era como se nem uma gota de seu sangue corresse por aquelas veias com uma hora de idade.

- Não é uma belezinha? - exclamou a enfermeira Rogers, inclinando-se sobre a cama para admirá-la.

- Sim, é - admitiu Penelope fracamente.

Se houvesse outras mães no hospital, insistiria na possibilidade de uma troca de bebês, acharia que lhe tinham trazido o filho de outra mulher, porém ela era o único caso de maternidade ali dentro, em nada favorecendo aquela probabilidade.

- Veja esses olhinhos azuis! Ela é como uma florzinha! Vou deixá-la com você um momento, enquanto ligo para sua mãe.

Penelope, entretanto, não queria ser deixada a sós com o bebê. Não conseguia pensar em nada para dizer ao pequenino ser.

- Não, por favor, leve-a, enfermeira. Eu poderia deixá-la cair ou fazer qualquer coisa terrível.

Diplomaticamente, a enfermeira não discutiu. Algumas jovens mães eram curiosas e, Deus sabia, ela já tinha visto um bocado.

- Está bem – disse, tomando o pequeno embrulho lanoso nos braços. - Quem é esta gracinha? - falou para o bebê. – Quem é a coisinha linda desta enfermeira?

A enfermeira Rogers saiu do quarto, com seu avental engomado estalando. Penelope ficou quieta, olhando para o teto. Tinha um bebê. Agora era mãe. A mãe da filha de Ambrose Keeling.

Ambrose.

Para seu desalento, constatou que não era mais possível ignorar ou expulsar da mente tudo que acontecera durante aquele medonho fim de semana. já condenado antes mesmo de começar, porque a projetada visita de Ambrose fora a causa da única briga de verdade que já tivera com a mãe. Com a Tia Ethel, havia saído durante a tarde, para um chá com uma decrépita e antiga conhecida de sua tia, residente em Penzance. Quando voltou para casa, uma

entusiasmada Sophie informou que havia uma agradável surpresa esperando-a no andar de cima. Obedientemente, Penelope seguira a mãe até seu quarto, onde viu, no lugar de sua muito amada cama, uma nova e monstruosa cama de casal, que ocupava todo o espaço disponível. As duas jamais haviam brigado antes, mas, tomada por um acesso de inusitada raiva, Penelope perdera a calma e dissera à mãe que ela não tinha aquele direito, que ali era o seu quarto, que se tratava de sua cama. Além disso, não fora uma agradável surpresa em absoluto, mas uma odiosa surpresa. Não queria uma cama de casal, aquilo era um horror, não dormiria nela, de maneira alguma.

O explosivo temperamento gaulês de Sophie incendiou-se, nivelando-se ao da filha. Não era possível supor-se que homem algum, lutando bravamente em uma guerra, fosse fazer amor com sua esposa em uma cama de solteiro. O que Penelope esperava? Agora era uma mulher casada, não mais uma garotinha. Aquele não era mais o quarto dela mas o quarto deles. Como podia ser tão infantil? Então, Penelope prorrompera em furiosas lágrimas e gritara que estava grávida, que não pretendia fazer amor com ninguém. Por fim, as duas começaram a gritar, uma com a outra, como mulheres de pescadores.

Nunca houvera uma discussão semelhante antes. Aquilo deixou todos perturbados. Papai enfureceu-se com as duas, e os outros moradores da casa andavam na ponta dos pés, como se ali tivesse havido uma explosão. Eventualmente, é claro, mãe e filha fizeram as pazes, desculparam-se e beijaram-se, o assunto não tomando a ser mencionado. Contudo, não era um bom augúrio para a visita de Ambrose. De fato, ao recordar agora, aquilo contribuíra muito para o desastre resultante.

Ambrose. Ela era a esposa de Ambrose.

Seus lábios tremeram. Sentiu o nó, inchando em sua garganta. As lágrimas acumularam-se, marejaram seus olhos e caíram, livres, deslizando por suas faces, encharcando a fronha do travesseiro. Uma vez tendo começado, era impossível parar. Foi como se todas as lágrimas não derramadas durante anos decidissem brotar ao mesmo tempo. Ainda chorava quando sua mãe chegou, irrompendo alegremente pela porta. Sophie vestia as calças compridas de brim vermelho-ferrugem e o blusão de pescador que usava, quando a enfermeira Rogers telefonara. Tinha nos braços uma profusão de margaridas de São Miguel, colhidas apressadamente nos canteiros, enquanto cruzava o jardim.

- Oh, minha querida, garota esperta, não demorou nada com isso... - Deixou as flores caírem sobre uma cadeira e foi abraçar a filha. - A enfermeira Rogers me contou... - Interrompeu-se. A alegria desapareceu de seu rosto, substituída por aguda preocupação. - Penelope! - Sentou-se na beira da cama e segurou a mão da filha. - Minha querida, o que há? Por que está chorando? Foi assim tão difícil, tão ruim?

Incoerente por causa do choro, Penelope balançou a cabeça. Tinha o nariz escorrendo, o rosto vermelho e inchado.

- Tome. - Sempre prática, Sophie entregou-lhe um lenço limpo, perfumado e fresco. - Assoe o nariz, enxugue as lágrimas.

Penelope apanhou o lenço e fez o que lhe era dito. Já se sentia ligeiramente melhor. Bastava ter Sophie ali, sentada ao seu lado, para a situação melhorar. Depois de assoar o nariz e enxugar as lágrimas, fungando um pouco, sentiu-se forte o bastante para acomodar-se em uma posição sentada. Sophie afofou os travesseiros e os virou, a fim de que os lados molhados das fronhas ficassem para baixo.

- Muito bem, agora conte. O que há? Alguma coisa errada com o bebê?

- Não, não se trata do bebê.

- Então, o que é?

- Oh, Sophie, é Ambrose! Eu não amo Ambrose! Nunca devia ter casado com ele!

Pronto, soltara. Tinha dito. O alívio de realmente admitir o fato, de expressá-lo em voz alta, era imenso. Encontrou os olhos da mãe e viu que tinham uma expressão grave, mas, como sempre, Sophie não ficara surpresa nem chocada. Limitou-se a ficar calada por um instante, depois pronunciando o nome, "Ambrose", como se fosse a resposta para algum enigma não resolvido.

- Sim. Agora eu sei. Foi o erro mais terrível que cometi.

- Quando ficou sabendo?

- Naquele fim de semana. Mesmo quando ele saiu do trem e caminhou pela plataforma ao meu encontro, eu já me enchia de apreensão. Era como ver um estranho chegando, alguém que eu não sentia vontade de ver. Não pensei que ia ser assim. Estava um tanto acanhada por tornar a vê-lo, após todos aqueles meses, porém nunca imaginei que seria assim. Quando voltamos de carro para Carn Cottage, comigo sentada ao lado dele, e a tempestade jorrando, procurei fingir que não era nada - apenas um constrangimento entre nós. No entanto, assim que ele entrou em Carn Cottage, adivinhei que era irremediável. Ele estava errado. Tudo estava errado. A casa o rejeitava, Ambrose não se encaixava nela. Depois disso, tudo foi ficando cada vez pior...

- Espero que nada tenha a ver com papai e comigo – disse Sophie.

- Oh, nada, nada! - apressou-se Penelope em tranqüilizá-la. - Vocês foram uns anjos para ele, os dois! Eu é que me portei pessimamente, mas era algo que não estava em mim, você compreende? Eu não podia suportá-lo. Era como ser forçada a ficar ao lado de um perfeito estranho. E como se costuma dizer, fulano de tal está nas vizinhanças, que ótimo, sei que você será gentil com ele. Então, somos gentis, convidamos o fulano para o fim de semana e tudo se transforma em um tédio sufocante. Bem sei que choveu o tempo todo, mas isso não faria diferença. Era ele. Tão sem interesse, tão inútil. Imagine, ele nem mesmo sabia limpar os sapatos! Jamais limpou os próprios sapatos! Além do mais, foi rude com Doris e Ernie, achava que os meninos eram dois diabretes. Ambrose é um esnobe. Não entendia por que todos nos sentávamos à mesa para fazer as refeições juntos. Não compreendia por que Doris, Clark e Ronald não eram banidos para viver na cozinha. Creio que isso me irritou mais do que tudo. Nunca imaginei que ele - que alguém, para ser franca - pudesse pensar tais coisas, que pudesse dizê-las, que fosse tão odioso.

- Meu bem, por justiça, não creio que possa culpá-lo por ter seus pontos de vista. Ele foi criado assim. Nós é que talvez estejamos fora do alinhamento. Sempre conduzimos nossa vida doméstica de maneira inteiramente diversa da de outras pessoas.

Penelope, entretanto, não estava para ser consolada.

- Não se trata apenas dele. Como lhe disse, fui eu também. Portei-me horrivelmente com Ambrose. Não sabia que podia ser uma pessoa tão desagradável com alguém. Simplesmente, eu não o queria lá. Não queria que ele me tocasse. Não o deixei fazer amor comigo.

- Em vista da condição em que você estava na época, isso dificilmente seria de surpreender.

- Ele não pensou assim. Ficou aborrecido e ressentido. - Penelope fitou a mãe com certo desespero. - É tudo culpa minha. Você disse que eu não devia casar, a menos que o amasse de verdade. Não lhe dei ouvidos. No entanto, sei que se pudesse tê-lo trazido a Carn Cottage para conhecer vocês dois, antes de resolvermos casar, então eu nunca teria casado com ele, nem em mil anos!

           Sophie suspirou.

- Sim, é uma pena que não houvesse tempo para isso. Também foi uma pena que eu e papai não pudéssemos ir ao seu casamento. Mesmo no último momento, seria possível você mudar de idéia, voltar atrás. Entretanto, não adianta ficar pensando nisto. Agora é tarde demais.

- Você não gostou dele, gostou, Sophie? Você e papai? Devem ter pensado que eu estava fora de mim, não?

- Não. Nunca pensamos isso.

- O que vou fazer agora?

- Meu bem, no momento não há nada que possa fazer. Exceto, creio eu, crescer um pouco. Não é mais uma criança. Agora tem responsabilidades, tem uma filha. Estamos no meio dessa guerra terrível, seu marido está no mar, com os Comboios do Atlântico. Nada resta a fazer, senão aceitar a situação e seguir em frente. Por outro lado - ela sorriu, recordando - ele nos visitou em um mau momento. Com toda aquela chuva e a Tia Ethel lá em casa, fumando seus cigarros, bebericando seu gim, com seus comentários indesejáveis e inconvenientes. Quanto a você, nenhuma mulher grávida agiria equilibradamente. Talvez seja diferente, da próxima vez que vir Ambrose. Você poderá tem outras idéias.

- Oh, Sophie, como fui idiota!

- Não. Você apenas era jovem, viu-se envolvida em circunstâncias que estavam inteiramente fora de seu alcance para resolver. E agora, faça isso por mim, alegre-se! Sorria, toque a campainha e a enfermeira Rogers trará aqui minha primeira neta, para que eu a conheça. Também vamos esquecer que tivemos esta conversa.

- Vai contar a papai?

- Não. Ele ficaria perturbado e não gosto de vê-lo preocupado.

- Você nunca teve segredos para ele.

- Este será o primeiro.

Não foi apenas Penelope quem ficou perplexa com a aparência do bebê. Vindo ao

hospital no dia seguinte para ver a neta, Lawrence também se mostrou intrigado.

- Meu bem, com quem ela se parece?

- Não faço a menor idéia.

- É muito bonita, mas acho que nada ter a ver com você ou com o pai. Será parecida com a mãe de Ambrose?

- Nem remotamente. Concluí que ela deve ser um atavismo, recuando várias gerações. Talvez seja a imagem viva de algum ancestral morto há muito tempo. Seja o que for, para mim é tudo um mistério.

- Não importa. Ela parece ter vindo plenamente equipada. Isso é tudo que realmente conta.

- Os Keeling já foram informados?

- Sim. Enviei um cabograma para o navio de Ambrose, e Sophie telefonou para o hotel da mãe dele.

Penelope fez uma careta.

- A corajosa e velha Sophie! O que disse Dolly Keeling?

- Parecia encantada. Disse sempre ter esperado que fosse uma garotinha.

- Aposto como está contando para todos os companheiros de hotel e lady Maldita Beamish, que é um bebê de sete meses.

- Oh, se as aparências valem tanto para ela, que mal isso faz? - Lawrence hesitou um instante, depois acrescentando: - Ela disse que seria muita amabilidade sua, se o bebê pudesse ter o nome de Nancy.

- Nancy? Ora, de onde foi que ela tirou esse nome?

- Era o nome da mãe dela. Acho que seria uma boa idéia. Compreenda - ele fez um pequeno e expressivo gesto com a mão - isso ajudaria a endireitar bastante as coisas.

- Tudo bem, ela se chamará Nancy. – Erguendo-se, Penelope espiou para o rosto do bebê. - Nancy. Acho que assenta muito bem nela.

Lawrence, contudo, estava menos preocupado com o nome do bebê, do que com seu comportamento.

- Será que ela vai chorar o tempo todo? Não suporto bebês chorando.

- Oh, papai, é claro que não! Ela é muito sossegada. Apenas mama em sua mãe, dorme e depois acorda para tornar a mamar.

- Que canibalzinha!

- Acha que ela será bonita, papai? Você sempre teve um bom olho para um rosto bonito.

- Será, sem dúvida. Ela é um Renoir. Loura e rosada como uma rosa.

Então, foi a vez de Doris. A maioria dos evacuados, não conseguindo mais suportar o exílio, retomara a Londres aos trancos e barrancos. Doris, Ronald e Clark decidiram ficar; agora eram moradores permanentes de Carn Cottage e faziam parte da família. Em junho, durante a retirada da Força Expedicionária Britânica da França, o marido de Doris, Bert, havia sido morto. A notícia foi levada a eles pelo mensageiro do telégrafo, que partiu em sua bicicleta do Correio de Porthkerris e pedalou colina acima, até Carn Cottage. O rapazinho abriu o portão no muro e cruzou o jardim assobiando, ao encontro de Sophie e Penelope, que arrancavam ervas daninhas dos canteiros.

- Telegrama para a Sra. Potter - anunciou.

Sophie ficou de joelhos, as mãos cobertas de terra, os cabelos caídos obliquamente no rosto e uma expressão que Penelope nunca vira antes.

- Oh, mon Dieu!

Ela pegou o envelope alaranjado, e o rapazinho foi embora. O portão no muro se fechou com uma batida, quando ele saiu.

- Sophie?

- Deve ser o marido dela.

Penelope sussurrou, após um momento:

- O que faremos?

Sophie não respondeu. Limpou a mão no fundilho da calça comprida de algodão e abriu o envelope, usando um polegar com a unha suja de terra. Retirou a mensagem, leu-a e então a dobrou, tornando a enfiá-la no envelope.

- Sim - falou. - Ele está morto. - Sophie levantou-se. - Onde está Doris?

- Lá em cima, no cercado, lavando roupa ou pendurando no varal.

- E os meninos?

- Devem voltar da escola a qualquer momento.

- Devo dizer a Doris, antes de eles chegarem. Se eu não voltar logo, procure mantê-los ocupados. Ela vai precisar de algum tempo. Vai precisar de tempo, antes de contar aos filhos.

- Pobre Doris!

A frase soava dolorosamente inadequada, porém o que mais se poderia dizer?

- Sim, pobre Doris...

- O que ela fará?

O que Doris fez foi imensamente corajoso. Ela chorou, claro, desabafando a raiva e o pesar em uma espécie de tirada contra o marido jovem, que fora tão tolo a ponto de ir para a guerra e ser morto. No entanto, uma vez esgotada a primeira expansão, recompôs-se e, juntamente com Sophie, bebeu uma xícara de chá quente e bem forte, sentadas as duas à mesa da cozinha. Então, seus pensamentos foram inteiramente para os filhos.

- Coitadinhos, como será a vida para eles, sem um pai?

- Crianças recuperam-se em pouco tempo.

- E agora, diabo, como me arranjarei?

- Você dará um jeito.

- Suponho que devo voltar para Hackney. A mãe de Bert... bem, acho que vai precisar de mim. Quererá ver os meninos.

- Acho que você deveria ir. Verificar se está tudo bem com ela. Se estiver, creio que deveria voltar para cá. Os meninos são felizes aqui, fizeram amigos... Seria cruel desenraizá-los agora. Deixe que fiquem com a segurança que possuem atualmente.

Doris olhou para Sophie. Fungou um pouco. Parara de chorar pouco antes, o rosto estava manchado de vermelho e inchado.

- Oh, mas eu não posso simplesmente ficar aqui, até não sei quando!

- Por que não? Você é feliz conosco.

- Não está apenas querendo ser gentil?

- Oh, minha querida Doris, não sei o que faríamos sem você! E os meninos... bem, são como nossos filhos. Sentiríamos muita falta de vocês, se fossem embora!

Doris refletiu no assunto.

- Eu não desejaria mais nada senão ficar aqui. Nunca fui tão feliz na vida. E agora, com Bert morto...

Seus olhos encheram-se novamente de lágrimas.

- Não chore, Doris! Os meninos não devem vê-la chorando.

Precisa mostrar a eles como serem corajosos. Diga-lhes que sintam orgulho do pai, morrendo por semelhante causa, para libertar todos aqueles pobre povos da Europa. Ensine seus filhos a serem bons homens, como foi o pai deles.

- Bert não foi tão bom assim. Às vezes dava motivos para sérios aborrecimentos. - As lágrimas recuaram, e a sombra de um sorriso surgiu no rosto de Doris. - Voltava do futebol para casa, caindo de bêbado; atirava-se na cama sem tirar os sapatos...

- Não esqueça essas coisas - disse-lhe Sophie. - Todas são parte da pessoa que ele era. É bom recordar os maus momentos, bem como os melhores. Afinal de contas, assim é a vida.

Então, Doris ficou. E quando o bebê de Penelope nasceu, mal podia esperar para vê-lo. Uma garotinha. Doris sempre quisera ter uma filha, mas agora, com Bert morto, possivelmente jamais a teria. No entanto, esta garotinha... Ela foi a única a ficar imediatamente enfeitiçada pelo bebê.

- Oooh! Ela é maravilhosa!

- Você acha?

- Penelope, ela é um encanto. Posso segurá-la?

- Claro que pode!

Inclinando-se, Doris tomou a criança em seus braços práticos e capazes. Ficou contemplando-a, com tal expressão de adoração maternal no rosto, que Penelope se sentiu ligeiramente envergonhada, sabendo-se incapaz de uma dedicação tão transparente.

- Nenhum de nós sabe com quem ela se parece.

Doris, no entanto, sabia. Sabia exatamente com quem ela se parecia.

- Ela é o vivo retrato de Betty Grable!

Tão cedo mãe e filha retomaram a Carn Cottage, Doris incumbiu-se de Nancy. Quanto a Penelope, embora atenuando certa culpa ao dizer a si mesma que estava fazendo um bem a Doris, ficou feliz em deixá-la cuidar da menina. Era Doris quem dava banho em Nancy e lavava suas fraldas. Quando Penelope se cansou de amamentá-la, Doris é que preparava as mamadeiras e alimentava o bebê, sentada em uma cadeira baixa, na cozinha aquecida ou ao lado da lareira da sala. Ronald e Clark eram igualmente devotados, trazendo colegas da escola para admirarem a nova moradora da casa. Enquanto o inverno passava lentamente, Nancy desenvolvia-se, exibiu cabelos e dentes, ficou mais gorda do que nunca. Do galpão de ferramentas, Sophie retirou a antiga cadeirinha de Penelope, com rodas altas e correias para firmar seu ocupante. Doris poliu a cadeirinha e, com certo orgulho, empurrava-a pelas colinas de Porthkerris, subindo e descendo ladeiras, entre muitas paradas para exibir Nancy a qualquer transeunte que se mostrasse interessado e a muitos que não se mostravam.

O temperamento de Nancy permaneceu dócil e tranqüilo. Ficava em seu colchãozinho no jardim, dormindo ou observando beatificamente as nuvens que passavam ou os galhos da cerejeira branca, agitando-se à brisa. Quando chegou a primavera, e as flores da cerejeira caíram, suas mantas ficavam salpicadas de pétalas brancas. Em pouco podia ficar em uma esteirinha, querendo alcançar um chocalho. Logo depois já se sentava e esforçava-se em unir dois pegadores de roupa.

Nancy era uma fonte de diversão para Sophie e Lawrence, na mesma medida em que era uma fonte de consolo e alegria para Doris. Quanto a Penelope, responsavelmente brincando com a criança, montando cubos ou virando as páginas de surrados livros ilustrados, decidira para si mesma que sua filha era um tédio completo.

Enquanto isso, além das fronteiras daquele pequeno mundo doméstico, a tormenta da guerra, reverberante e carregada de nuvens negras, ganhava intensidade. A Europa estava ocupada, invadida a amada França de Lawrence, e não se passava um dia em que ele não se angustiasse por aquele país e temesse por velhos amigos. No Atlântico, os submarinos alemães andavam à caça, atacando os lentos comboios de destroires e indefesos navios mercantes. A Batalha da Grã-Bretanha fora vencida, porém a um preço terrível de aviões, pilotos e aeroportos. O Exército, novamente organizado após a França e Dunquerque, tomava posição em Gibraltar e Alexandria, em antecipação à próxima e violenta investida do poderio militar alemão.

E, naturalmente, o bombardeio começara. Os raides intermináveis sobre Londres. Noite após noite, as sirenes de aviso soavam, e noite após noite, as maciças formações de Heinkels, com suas cruzes negras e sinistras, enchiam o espaço com o rugido de seus motores, após cruzado o Canal, vindo da escuridão da França.

Em Carn Cottage, eles ouviam o noticiário cada manhã, e seus corações sangravam por Londres. Em nível mais pessoal, a preocupação de Sophie era pela casa da Rua Oakley e as pessoas que lá moravam. A seu conselho, os Friedmarm se tinham mudado do sótão para o porão. Porém os Clifford continuavam onde sempre haviam estado, no segundo pavimento. Sempre que o noticiário comunicava algum raide (o que acontecia na maior parte das manhãs). Sophie os imaginava mortos, feridos, destroçados ou sepultados em escombros.

- Eles já são velhos demais para suportarem esta horrível experiência -dizia ao marido. - Por que não os convidamos para cá, para morarem conosco?

- Meu bem, nós não temos espaço. E, mesmo que tivéssemos, eles não viriam. Você sabe disso. São londrinos. Jamais sairiam de lá.

- Eu ficaria mais feliz se pudesse vê-los. Falar com eles. Certificar-me de que estão bem.

Dissimuladamente, Lawrence observava sua jovem esposa, sentindo-lhe a inquietude. Durante dois anos ela ficara presa ali, em Porthkerris. Sua Sophie que nunca levava mais de três meses em um só lugar, durante sua vida inteira de casada. E Porthkerris, em tempo de guerra, ficara monótona, triste e vazia, uma cidade muito diferente daquele lugar animado para o qual escapavam alegremente nos verões de antes do conflito. Sophie não estava entediada. Ela jamais se entediava, porém a vida do dia-a-dia fora ficando cada vez mais difícil, enquanto o alimento escasseava, as rações diminuíam e começava a aumentar uma escassez mais aborrecida – xampu, cigarros, fósforos, filmes fotográficos, uísque, gim - qualquer pequeno luxo que contribuísse para amenizar as agruras da existência. Cuidar de uma casa também ia ficando difícil. Para tudo havia filas, e as compras depois tinham que ser carregadas da cidade até o alto da colina, porque nenhum veículo de entrega dispunha mais de gasolina para trabalhar. A gasolina talvez representasse a maior privação de todas. Eles ainda possuíam o velho Bentley, mas o carro passava a maior parte de sua vida nos recessos da Grabney's Garage, simplesmente porque não dispunha de combustível suficiente para rodar mais do que uns poucos quilômetros.

Assim, ele compreendia a inquietude da esposa. Conhecedor profundo das mulheres, ele a compreendia e solidarizava-se. Sabia que Sophie precisava afastar-se deles por alguns dias. Ganhou tempo, esperando uma oportunidade para tocar no assunto, mas parecia que agora nunca estavam sozinhos; a pequenina casa zumbia de atividade e vozes. Doris e os meninos, Penelope e agora o bebê enchiam cada aposento, cada hora desperta e, quando finalmente iam para a cama, à noite, ela estava tão exausta, que já adormecera, quando Lawrence se deitava ao seu lado.

Por fim, certo dia, ele conseguiu surpreendê-la. Estivera desencavando batatas, dolorosamente, porque suas mãos deformadas pela artrite tinham dificuldade em usar a pá e arrancar os tubérculos da terra, mas finalmente enchera uma cesta e a levara para dentro, pela porta dos fundos. Encontrara Sophie sentada à mesa da cozinha, cortando desconsoladamente as folhas de um repolho.

- Batatas - anunciou, deixando-as no chão, ao lado da estufa.

Ela sorriu. Mesmo quando se sentia melancólica, sempre tinha aquele sorriso para ele. Lawrence puxou uma cadeira, sentou-se e olhou para a esposa. Estava magra demais. Havia linhas em tomo de sua boca e à volta dos belos olhos escuros.

- Sozinha finalmente - disse ele. - Onde estão os outros?

- Penelope e Doris levaram as crianças até a praia. Logo estarão chegando para o almoço. - Sophie cortou mais uma ou duas folhas do repolho. - E eu estarei dando isto para comerem... e ouvindo os meninos dizerem que detestam repolho.

- Apenas repolho. Nada mais?

- Macarrão com queijo.

- Você faz o melhor que pode.

- É enfadonho. Enfadonho cozinhar e enfadonho comer. Não os culpo por se queixarem.

- Você tem trabalhado demais - disse ele.

- Não é isso.

- Claro que é! Está cansada e farta.

Ela ergueu o rosto, e os olhos de ambos encontraram-se. Após um momento, Sophie perguntou:

- Está assim tão aparente?

- Só para mim, que a conheço tão bem.

- Oh, estou envergonhada. Sinto raiva de mim mesma. Por que deveria estar descontente? Bem, eu me sinto tão inútil... O que tenho feito? Tranço redes e cozinho refeições. Penso nas mulheres em toda a Europa e me odeio, porém o que posso fazer? E se tiver que enfrentar uma fila por mais uma hora, em busca de uma rabada que outra pessoa acabou de comprar, creio que começarei a ter ataques histéricos.

- Você devia ausentar-se por um dia ou dois.

- Ausentar-me?

- Ir a Londres. Ver sua casa. Ficar com os Clifford. Tranqüilizar-se. - Lawrence colocou a mão sobre a dela, sujando-a com a terra da plantação de batatas. - Ouvimos o noticiário dos bombardeios e ficamos horrorizados, mas o desastre informado é, freqüentemente, pior do que o horror em si. A imaginação desanda, o coração fica opresso pelo medo. No entanto, nada é tão ruim como achamos que seja. Por que não vai a Londres e verifica por si mesma?

Já parecendo mais animada, Sophie considerou o assunto.

- Você iria também?

Ele meneou a cabeça.

- Não, meu bem. Estou velho demais para essa movimentação, mas é justamente dessa movimentação que você precisa. Fique com os Clifford, converse e ria com Elizabeth. Vá fazer compras com ela. Faça Peter levá-la para almoçar no Berkeley ou no L’Ecu de France. Imagino que a comida lá ainda seja excelente, a despeito de toda a escassez atual. Telefone para suas amigas. Vá a um concerto, ao teatro. A vida continua. Mesmo em Londres, em plena guerra. Talvez, especialmente em Londres, em plena guerra.

- E não se incomodará se eu for sem você?

- Eu me incomodarei mais do que poderia exprimir. Nem um momento passará sem que sinta sua falta.

- Por três dias? Acha que suportaria minha ausência por três dias?

- Posso suportar. E, quando voltar, ficará três semanas me contando tudo o que fez por lá.

- Lawrence, eu o amo tanto!

Ele balançou a cabeça, não refutando o que ela havia dito, mas simplesmente dando a entender que Sophie não precisava dizer-lhe. Inclinando-se para a frente, beijou-lhe a boca e então, levantando-se, foi até a pia, lavar a terra das mãos.

Na véspera de tomar o trem para Londres, Sophie foi cedo para a cama. Doris tinha saído, fora dançar na sede da municipalidade, e as crianças já dormiam. Penelope e Lawrence ficaram ouvindo um concerto pelo rádio, mas então ela começou a bocejar, deixou o tricô de lado, deu um beijo de boa-noite no pai e subiu para seu quarto.

A porta do quarto de Sophie estava aberta e havia luz acesa. Penelope enfiou a cabeça pela abertura da porta. Sua mãe estava na cama e lia.

- Pensei que ia mais cedo para a cama, a fim de ter seu sono de beleza!

- Estou excitada demais para dormir. - Ela largou o livro sobre o edredom. Penelope entrou e sentou-se ao seu lado. - Eu gostaria que você fosse comigo.

- Não. Papai tem razão. Você se divertirá mais indo sozinha.

- O que devo trazer para você?

- Não consigo pensar em nada.

- Encontrarei alguma coisa especial. Alguma coisa que nem pensa desejar ter.

- Vai ser ótimo! O que está lendo? - Penelope pegou o livro e leu o título Elizabeth e seu jardim alemão. - Oh, Sophie, você já deve ter lido isto umas cem vezes!

- No mínimo, mas sempre estou relendo. Este livro me consola e tranqüiliza. Faz-me lembrar um mundo que já existiu e que voltará a existir, quando a guerra terminar.

Penelope abriu o livro ao acaso e leu em voz alta:

- "Que mulher feliz eu sou, morando em um jardim, com livros, crianças, pássaros e flores, além de ter tempo de sobra para desfrutá-los!”.

Rindo, ela tomou a largar o livro.

- Você tem todas essas coisas -comentou. - Falta apenas o tempo de sobra. Boa-noite.

As duas se beijaram.

- Boa-noite, minha querida.

Ela telefonou de Londres e a voz era jubilosa, através do fio crepitante.

- Lawrence! Sou eu, Sophie! Como vai você, meu querido? Sim, estou tendo momentos maravilhosos. Você tinha razão, nada está tão ruim como eu pensava que estaria. Sim, claro, há estragos dos bombardeios, enormes buracos em ruas de casas geminadas, como dentes arrancados da boca, mas todos se mostram corajosos, alegres e seguindo em frente, como se nada tivesse acontecido. E a vida continua, mesmo! Fomos a dois concertos, ouvimos Myra Hess na hora do almoço, foi maravilhoso, você adoraria ter ido! Também visitei os Ellington e aquele simpático rapazinho, Ralph, que estudava no Slade; ele agora está na RAF. E a casa está ótima, enfrentando todos esses solavancos, e é tão bom estar de volta, e Willi Friedmarm está plantando verduras na horta...

Ele perguntou, quando encontrou uma folga:

- O que vai fazer esta noite?

- Vamos jantar com os Dickins - eu, Elizabeth e Peter. Você se lembra deles, ele é médico, trabalhava com Peter... não moram perto de Hurlingham?

- E como chegarão lá?

- Oh, de táxi ou metrô. E por falar em metrô, é incrível, as estações estão cheias de gente dormindo. Eles cantam, fazem festas formidáveis e depois todos vão dormir. Oh, meu querido, já estou começando a ouvir os "pips". Preciso desligar. Um beijo para todos. Estarei em casa depois de amanhã!

Naquela noite, Penelope acordou com um forte sobressalto. Alguma coisa - algum som, algum alarme. O bebê, talvez. Teria Nancy chorado? Ficou ouvindo, mas tudo que percebeu foi apenas o disparar amedrontado de seu próprio coração. As batidas tranqüilizaram-se aos poucos. Então, ouviu as pisadas cruzando o patamar, o rangido dos degraus da escada, o clique do interruptor, quando a luz foi acesa. Levantou-se da cama, saiu do quarto e inclinou-se no corrimão da escada. A luz do saguão estava acesa.

- Papai?

Não houve resposta. Ela cruzou o patamar e espiou no quarto dele. A cama estava desarrumada, mas vazia. Voltou ao patamar, hesitante. O que ele estaria fazendo? Teria ficado indisposto? Aguçando os ouvidos percebeu que Lawrence se movia pela sala de estar. Depois, tudo ficou quieto. Seu pai havia acordado, era tudo. Às vezes, quando perdia o sono ele agia da mesma forma: descia para o térreo, acendia a lareira e pegava um livro para ler.

Penelope voltou para a cama. Entretanto, o sono não vinha. Ficou acordada na escuridão, espiando o céu fosco pela janela aberta. Mais abaixo, na praia, a maré murmurava. as ondas sussurravam na areia. Ouvindo os ruídos do mar, ela esperou o alvorecer, de olhos abertos.

Às sete horas, levantou-se e desceu para o térreo. Seu pai tinha ligado o rádio. Havia música. Ele esperava o noticiário do começo da manhã.

- Papai...

Ele ergueu a mão, em um gesto para silenciá-la. A música extinguiu-se. Soou o indicador do tempo.

- “Aqui é Londres falando. Este é o noticiário das sete horas, lido por Alvar Liddell.”

A voz calma, desapaixonada e objetiva, contou a eles o que tinha acontecido. Contou a eles sobre o raide de bombardeio daquela noite, sobre Londres. ...incendiários, minas terrestres, potentes explosivos, tudo havia sido despejado sobre a cidade. Ainda enfrentavam incêndios mas estavam sob controle... as docas tinham sido atingidas...

Penelope estendeu a mão e desligou o rádio. Lawrence ergueu os olhos para ela. Usava seu velho robe, e a barba despontando no queixo cintilava prateada.

- Não pude dormir - disse.

- Eu sei. Ouvi você descer.

- Fiquei aqui sentado, esperando que amanhecesse.

- Já houve outros raides, papai. Está tudo bem! Vou fazer o chá. Não se preocupe. Tomaremos uma xícara de chá e depois ligaremos para a Rua Oakley. Vai estar tudo bem, papai.

Tentaram a ligação, porém a telefonista informou que, após o raide daquela noite, não havia linhas para Londres. Durante toda a manhã, de hora em hora, eles tentaram uma comunicação. Sem êxito.

- Sophie deve estar tentando ligar para nós, papai, assim como estamos tentando ligar para ela. Deve estar tão frustrada e ansiosa como nós, porque sabe que ficamos preocupados.

Entretanto, só por volta de meio-dia, o telefone finalmente soou. Cortando verduras para a sopa, na pia da cozinha, Penelope ouviu a chamada, largou a faca e correu para a sala de estar, enxugando as mãos no avental enquanto isso. Entretanto, sentado ao lado do telefone, Lawrence já atendia. Ela ficou de joelhos ao lado do pai, bem perto, não querendo perder uma palavra da ligação.

- Alô? Aqui é de Carn Cottage. Alô?

Um zumbido, um estalido, um curioso som crepitante e, finalmente:

- Alô?

Entretanto, não era a voz de Sophie.

- Lawrence Stern falando!

- Oh, Lawrence, aqui é Lalla Friedmarm. Sim, Lalla, da Rua Oakley. Não consegui ligar antes. Há mais de duas horas que estou tentanto. Eu...

A voz dela interrompeu-se subitamente, a linha emudeceu.

- O que é, Lalla?

- Você está sozinho?

- Não, Penelope está comigo. É... Sophie, não é?

- Sim. Oh, Lawrence, sim! E os Clifford. Todos eles! Foram todos mortos! Uma bomba caiu diretamente na casa dos Dickins. Nada restou. Fomos até lá para saber, eu e Willi. Esta manhã, como eles não tinham voltado, Willi tentou ligar para os Dickins mas, é claro, foi impossível. Então, fomos até lá, para saber o que tinha acontecido. Já tínhamos ido lá antes, em um Natal, de modo que sabíamos o endereço. Tomamos um táxi, mas depois tivemos de ir

andando...Nada restou.

- E quando chegamos ao fim da rua, estava isolada por cordas; não permitiam que ninguém fosse lá, e os bombeiros ainda trabalhavam. Entretanto, pudemos ver. A casa havia desaparecido. Nada mais havia lá, senão uma enorme cratera. Chamei um policial e falei com ele. Foi muito gentil, mas disse que não havia esperanças. Nenhuma esperança. Lawrence! - Ela começou a chorar. - Todos eles... Mortos! Eu sinto muito. Lamento tanto ter de contar-lhe isto...Nada restou.

- Foi muita gentileza sua ter ido procurá-los. E também muita gentileza ter ligado para cá...

- É a pior coisa que já tive de fazer.

- Eu sei - disse Lawrence. - Imagino.

Ele ficou parado. Após um momento, desligou o telefone, seus dedos contorcidos recolocando o fone desajeitadamente no gancho. Penelope virou a cabeça e a recostou na lã grossa do suéter do pai. O silêncio que se seguiu foi vazio de tudo. Um vácuo.

- Papai...

Ele ergueu a mão, afagou-lhe o cabelo.

- Papai...

Ela ergueu o rosto e o viu balançar a cabeça. Soube que ele apenas queria ficar só. Reparou, então, que seu pai estava velho. Nunca lhe parecera tão velho antes, mas agora sabia que Lawrence Stern jamais seria outra coisa. Levantando-se, saiu da sala e fechou a porta.

Nada restou.

Penelope subiu para o andar de cima e entrou no quarto dos pais. Naquela manhã fantasmagórica, a cama não foi arrumada. As cobertas estavam ainda amarfanhadas, o travesseiro mostrava a impressão funda da cabeça insone de seu pai. Ele soubera. Ambos tinham sabido. Esperançosos, apelando para a coragem, mas cheios de certeza mortal. Os dois tinham sabido.

Nada restou.

Na mesa de cabeceira de Sophie estava o livro que ela ficara lendo à noite, na véspera de sua partida para Londres. Penelope foi até lá e o pegou. Ele se abriu automaticamente em suas mãos, naquela página muito lida, muito relida.

"Que mulher feliz eu sou, morando em um jardim. com livros, crianças, pássaros e flores, além de ter tempo de sobra para desfrutá-los! Às vezes, tenho a sensação de haver sido mais abençoada do que todos os meus semelhantes, por ser capaz de encontrar a felicidade tão facilmente."

As palavras dissolveram-se e ficaram perdidas, como figuras vistas através de uma vidraça lavada pela chuva. Encontrar a felicidade tão facilmente. Sophie não apenas encontrara a felicidade, ela a irradiara. E agora, nada havia restado. O livro escorregou de seus

dedos. Ela caiu sobre a cama e enterrou o rosto lacrimoso no travesseiro de Sophie, sentiu o linho fresco como a pele de sua mãe, ainda com um doce cheiro de seu perfume, como se ela, apenas uns momentos antes, houvesse saído do quarto.

 

                               ROY BROOKNER

Embora sendo um jogador competente e demonstrasse uma incrível velocidade nas quadras de squash, Noel Keeling não era adepto do esforço físico. Nos fins de semana, se instigado por sua anfitriã para uma tarde de cortar árvores ou jardinagem comunal, ele invariavelmente escolhia as tarefas menos árduas, recolhendo pequenos galhos para uma fogueira ou cortando as rosas mortas na ponta dos ramos. Podia oferecer-se para aparar a grama, porém somente se o aparador fosse do tipo que ele pudesse dirigir e fazia questão de que outra pessoa - em geral alguma jovem estonteada - se incumbisse de levar o carrinho de mão, cheio da grama aparada, até a pilha da mistura de adubo. Quando uma situação ficava realmente trabalhosa, com moirões de cerca a serem fincados em solo pedregoso ou um enorme buraco cavado para um arbusto recentemente adquirido, ele aperfeiçoara a arte de esgueirar-se para dentro da casa, onde eventualmente seria descoberto por outros convidados exaustos e indignados, aboletado diante da televisão, assistindo a uma partida de críquete ou golfe, com os jornais dominicais espalhados à sua volta, como folhas soltas.

Em vista disto, ele elaborou seus planos. Passaria todo o sábado simplesmente bisbilhotando, verificando o conteúdo de cada arca, cada caixa, cada cômoda antiga e desconjuntada. (O verdadeiro trabalho pesado, o de arrastar e carregar, o de empilhar velharias debaixo dos dois estreitos lances de escada, podia ser tranqüilamente deixado para o dia seguinte, para o novo jardineiro funcionando como operário, enquanto ele nada mais penoso teria de fazer, além de dar ordens.) Se tivesse êxito em sua vistoria e encontrasse o que

procurava... um, dois ou talvez um maior número dos rústicos esboços a óleo de Lawrence Stern... então agiria com toda a calma. Isto aqui talvez fosse interessante, diria para sua mãe e, dependendo da reação dela, seguiria em frente. Talvez valesse a pena serem examinados por um perito; eu conheço um, Edwin Mundy...

Na manhã seguinte, Noel levantou cedo, preparou um lauto desjejum de bacon, ovos e salsicha, mais quatro torradas e um bule de café forte. Comeu na mesa da cozinha, enquanto via a chuva deslizar vidraça abaixo. Isto o alegrou, porque não haveria chance de sentir-se tentado a sair para o jardim e sua mãe pedir-lhe que fizesse alguma coisa. Quando estava na segunda xícara de café e já plenamente desperto, ela surgiu em seu quimono, parecendo um tanto surpresa ao ver o filho acordado tão cedo em uma manhã de sábado e tão diligente.

- Não vá fazer muito barulho, está bem, meu querido? Eu gostaria que Antonia dormisse o maior tempo possível. Pobre menina, deve estar esgotada!

- Ouvi as duas conversando na madrugada. De que falavam?

- Oh, apenas coisas. - Ela despejou um pouco de café para si mesma. - Escute, Noel, não vá jogar nada fora sem me mostrar primeiro, está bem?

- Nada mais farei, além de verificar o que você entulhou lá em cima. A queima e destruição podem ficar para amanhã. Entretanto, procure ser sensata. Moldes antigos de tricô e retratos de casamento tirados por volta de 1910, decididamente, precisam ser eliminados.

- Odeio pensar no que você irá destruir.

- A gente nunca sabe - disse Noel, sorrindo para ela. - Tudo pode acontecer.

Ele a deixou tomando o café e subiu. Entretanto, antes de começar a trabalhar, uma ou duas dificuldades práticas precisavam ser resolvidas. O sótão tinha apenas uma pequena janela, profundamente incrustada no oitão para o leste, e a única lâmpada, suspensa na viga central do teto, era tão fraca e mortiça, que pouca luminosidade acrescentava à escassa claridade do dia cinzento. Descendo para a cozinha, ele pediu à mãe uma lâmpada mais potente. Ela desentranhou uma, de uma caixa debaixo da escada. Ele a levou para cima e, equilibrando-se em uma cadeira cambaia, substituiu a lâmpada fraca pela mais forte. Entretanto, ao acionar o interruptor, verificou que nem assim havia luz suficiente para levar a cabo a minuciosa investigação que tinha em mente. Um abajur, era do que precisava. Havia um bem ali, um velho abajur de modelo comum, com a cúpula torta e quebrada, mais um comprido fio que se espichava pelo chão, porém sem tomada. Isto significava mais uma viagem ao andar de baixo. Apanhou outra lâmpada potente na caixa de papelão e perguntou à mãe se dispunha de alguma tomada extra. Ela disse que não havia nenhuma. Noel insistiu que

era algo indispensável. Ela respondeu que, neste caso, tirasse alguma de outro aparelho doméstico. Noel precisava de uma chave de fenda. Penelope informou que havia uma em sua gaveta de utilidades e, começando a parecer meio exasperada, apontou-a para ele.

- Aquela ali, Noel! No aparador!

Ele abriu a gaveta e se defrontou com uma confusão de pedaços de fio elétrico, fusíveis, martelos, caixas de tachinhas e tubos achatados de cola. Remexendo entre tudo aquilo, terminou encontrando uma pequena chave de fenda, com a qual removeu a tomada do ferro de passar. Novamente no sótão, adaptou com certa dificuldade a tomada ao fio do velho abajur e, rezando para que fosse comprido o suficiente, arrastou-o escada abaixo, ligando-o na tomada do patamar. Pelo que achava ser a centésima vez, tomou a subir a escada, apertou o interruptor do abajur e soltou um suspiro de alívio, quando a lâmpada acendeu. Facilmente desencorajado pela menor dificuldade, ele se sentia exausto, porém agora tudo ficara iluminado e, finalmente, podia começar.

Por volta do meio-dia, já havia trabalhado até metade do entulhado e empoeirado sótão. Vasculhara três arcas, uma mesa comida de cupim, um caixote de madeira leve que outrora havia trazido chá importado, e duas malas. Havia encontrado cortinas e almofadas, inúmeros copos para vinho embrulhados em papel de jornal, álbuns de fotos, maciços em suas reproduções de sépia, um aparelho de chá para boneca, uma pilha de fronhas amareladas pela idade e tão surradas, que dispensavam qualquer conserto. Vira livros de contabilidade encadernados em couro, as entradas meticulosamente escritas em desbotada e floreada caligrafia; montes de cartas, amarradas com fitas; tapeçarias inacabadas, nas quais estavam enfiadas agulhas enferrujadas, e algumas instruções para o manejo da última invenção, um aparelho para limpar facas. Em certo momento, ao deparar com uma grande caixa de papelão, fechada com adesivos, sentiu a esperança brotar. Com mãos trêmulas de excitação, arrancara os adesivos, mas encontrara apenas várias aquarelas pintadas por amador, feitas por só Deus sabia quem, e representando as Dolomitas. O desapontamento foi imenso, mas ele reuniu energias para prosseguir em sua tarefa. Havia penas de avestruz e xales de seda com longas franjas; toalhas de mesa bordadas, com as dobras amareladas; quebra-cabeças e peça de tricô inacabadas. Encontrou um tabuleiro de xadrez, mas nenhuma peça; cartas de baralho uma edição Burke's Landed Gentry, de 1912.

Em toda a sua busca, nada tinha encontrado que remotamente possuísse alguma semelhança com a obra de Lawrence Stern.

Soaram pisadas nos degraus. Noel se encarapitara em uma banqueta, empoeirado, sujo e desconsolado lendo um exemplar de "Dicas para a Dona-de-Casa", onde era ensinado como lavar meias pretas de lã. Erguendo os olhos, viu Antonia, no alto dos degraus. Usava jeans, tênis e um suéter branco. Pela mente dele passou o pensamento de que era lamentável ela ter cílios tão claros, porque seu corpo era francamente sensacional.

- Olá -disse ela, parecendo tímida e especulativa, como se relutasse em perturbá-lo.

- Olá - respondeu Noel, fechando o livro com uma pancada seca e o deixando cair no chão, a seus pés. - Quando foi que emergiu?

- Por volta das onze horas.

- Eu a acordei?

- Não. Não ouvi coisa alguma. - Antonia aproximou-se, esgueirando-se por entre todos aqueles objetos penosamente vasculhados. - Como está indo com o trabalho?

- Devagar. A idéia geral é separar o joio do trigo. Tentar eliminar tudo que represente risco de incêndio.

- Não imaginava que fosse tão difícil assim. - Ela parou para olhar em volta. - De onde veio tudo isto?

- É uma boa pergunta. Dos sótãos da casa da Rua Oakley. E de outros sótãos, de outras casas, recuando através dos séculos, a julgar pela aparência das coisas. Deve ser hereditária esta incapacidade absoluta de jogar coisas fora.

Inclinando-se, Antonia recolheu um xale de seda escarlate.

- Isto é bonito. - Ajeitou-o em torno dos ombros, ordenando as franjas emaranhadas. - O que acha?

- Bizarro.

Ela retirou o xale, dobrando-o com cuidado.

- Penelope me pediu para perguntar se você quer comer alguma coisa.

Noel olhou para o relógio e, com surpresa, viu que era meio-dia e meia. O tempo lá fora não clareara, e ele estivera tão concentrado em sua tarefa, que perdera inteiramente a noção das horas. Percebeu que não apenas tinha fome, como também sede. Saltou da banqueta e ficou em pé.

- O que agora preciso, mais do que tudo, é de um gim-tônica.

- Vai voltar ao sótão à tarde?

- Não tenho alternativa. Do contrário, isto nunca terminará.

- Se quiser, posso vir ajudar.

Noel, entretanto, não a queria por peno... não queria ninguém espiando o que fazia.

- É muita gentileza sua, mas acho melhor continuar sozinho, trabalhando em meu próprio ritmo. Venha... -Ele a instigou a descer a escada. - Vejamos o que a mãe fez para o almoço.

Pelas seis e meia da tarde, a longa vistoria terminara, e Noel já sabia que não acertara o alvo. Os sótãos de Podmore's Thatch não continham tesouro algum. Nem um só croqui de Lawrence Stern fora encontrado, e todo o projeto havia sido pura perda de tempo. Ruminando tão amarga verdade, ele se postou em pé, de mãos nos bolsos, contemplando a confusão que era tudo quanto tinha conseguido. Cansado e sujo, sem mais esperanças, seu estado de ânimo passou para o ressentimento. Isto era dirigido principalmente para sua mãe, a culpada de tudo. Provavelmente, em um ou outro momento, ela destruíra os esboços ou os vendera por alguns níqueis, não sendo descartada a hipótese de tê-los dado para alguém. Sua despreocupada generosidade, juntamente com aquela mania de esquilo, continuamente juntando coisas inúteis, sempre o deixara fora de si. Agora, Noel deixou que sua fúria lavrasse, queimando-o silenciosamente. Seu tempo era precioso, e perdera um dia inteiro vasculhando os destroços do naufrágio, de quantas gerações só Deus saberia, simplesmente porque ela nunca se dera ao trabalho de fazer aquilo sozinha.

Agora, com a raiva de mil demônios, por um momento chegou a pensar em abandonar o navio e seguir a rota de fuga normalmente designada para os fins de semana Uma Estrela, que era recordar de súbito um premente compromisso em Londres, dar adeus e voltar para casa.

Entretanto, isto não era mais possível. Já tinha ido longe demais e também falara além da conta. Ele é que começara tudo (casa insegura, risco de incêndio, seguro inadequado etc.) e também falara a Olivia sobre a possível existência dos esboços. A esta altura, embora certo de que tais esboços não existiam, podia imaginar os ferinos comentários de Olivia se ele desse o fora, deixando o trabalho incompleto. Apesar de sua insensibilidade, Noel recusava a perspectiva das cáusticas reprimendas de sua inteligente irmã.

Nada havia a fazer. Teria que ficar ali. Enfurecido, chutou para o lado uma cama quebrada de boneca e, apagando as luzes, desceu para o térreo.

A chuva parou durante a noite, e as nuvens carregadas dispersaram-se, empurradas por um leve vento de sudoeste. A manhã de domingo mostrou um céu claro e tranqüilo, a quietude quebrada apenas pelo coro dos trinados de pássaros. Foi isto que despertou Antonia. Os primeiros raios do sol entravam enviesados em seu quarto, através da janela aberta, pousavam aquecidos no tapete e destacavam as rosas em tonalidade rosa-vivo, no tecido das cortinas. Ela saiu da cama e foi inspecionar o dia, debruçando-se com os braços nus no peitoril da janela e aspirando o ar úmido, impregnado do cheiro de musgo. O teto de colmo era tão baixo, que lhe roçava o alto da cabeça. Ela viu o orvalho cintilando na relva e os dois tordos que trinavam no castanheiro -a suave cerração de uma perfeita manhã de primavera.

Eram sete e meia da manhã. Chovera durante todo o dia anterior, e eles não haviam saído. Ainda não refeita dos traumas e viagens, Antonia nada mais desejaria do que um dia dentro de casa. Fora deixada a sós junto à lareira, com as gotas de chuva escorrendo nas vidraças e as luzes acesas, por ser o dia tão penumbroso. Tinha encontrado um livro, uma obra de Elizabeth Jane Howard que ainda não lera e, depois do almoço, aninhando-se no sofá, mergulhou na leitura. Penelope surgia de quando em quando, a fim de colocar mais uma tora no fogo da lareira ou procurar seus óculos. Mais tarde, juntou-se a Antonia, não para tagarelar e sim para ler os jornais. Mais tarde ainda, preparou chá e o trouxe. Sozinho no sótão, Noel ficara lá o dia inteiro, para finalmente aparecer, exibindo o que evidentemente era um péssimo estado de ânimo.

Isto deixou Antonia pouco à vontade. Ela e Penelope estavam então na cozinha, preparando o jantar em franca camaradagem, mas bastou um olhar para Noel e espalhou-se uma sensação de inevitabilidade, uma certeza de que seu descontentamento poderia destruir a inteira harmonia do dia.

Na verdade, tudo referente a Noel a deixava pouco à vontade. Ele possuía a mesma vitalidade morena de Olivia, seu linguajar animado, porém nada tinha da calidez da irmã. Fazia Antonia sentir-se insossa e deslocada, sendo-lhe difícil encontrar coisas para dizer a ele, coisas que não fossem banais nem tediosas. Quando ele cruzou a porta da cozinha, de rosto carregado como uma tormenta e uma mancha de sujeira num lado do rosto, a fim de encher um copo com uma generosa dose de uísque puro e questionar a mãe sobre o motivo de haver trazido tanto lixo da Rua Oakley para Gloucestershire, as pernas de Antonia tremeram, ante a perspectiva de uma cena ou, pior ainda, de um noite de silencioso carrancismo. Penelope, entretanto, enfrentou a situação à sua maneira, não se deixando provocar pelo ataque e deixando claro que o filho não levaria a melhor.

- Preguiça, suponho - respondeu aereamente. - Foi mais fácil enfiar tudo empacotado no caminhão de mudanças, do que decidir que destino dar a tanta coisa. Eu já tinha bastante o que fazer, sem ter que selecionar todos aqueles livros e cartas velhas.

- Certo, mas quem iniciou a coleção de inutilidades?

- Não faço a menor idéia.

Derrotado, silenciado pelo bom humor da mãe, ele despejou todo o uísque no fundo da garganta, e imediatamente ficou mais relaxado. Chegou a esboçar um breve sorriso.

- Você é a mulher mais impossível do mundo - disse para a mãe.

Ela aceitou isto também.

- Sei disso muito bem, mas nem todos nós somos perfeitos. Pense apenas no quanto sou boa em outras coisas. Como cozinhar refeições para você e ter sempre a bebida certa no aparador. Caso se lembre, a mãe de seu pai nunca deixava nada em seu aparador, exceto garrafas de sherry, que tinha um sabor de uvas-passas.

Ele franziu a testa, desgostoso ao evocar aquilo.

- O que há para o jantar?

- Truta assada com amêndoas, batatas frescas e framboesas com creme. Não menos do que você merece. Alem disso, pode escolher uma garrafa de vinho adequada, beber seu drinque lá em cima e tomar um banho. - Ela sorriu para o filho, porém, os olhos escuros eram penetrantes. - Tenho certeza de que precisará de um, após toda essa trabalheira.

Assim, afinal de contas a noite havia sido tranqüila. Cansados, foram todos cedo para a cama, e Antonia dormiu a noite inteira. Agora, com a vitalidade da juventude e, pela primeira vez em muitos dias, voltava a sentir-se ela mesma novamente. Queria ir lá fora, correr pelo gramado, encher os pulmões de ar puro e fresco. A manhã de primavera esperava, e Antonia sabia que precisava fazer parte dela.

Vestiu-se, desceu para o térreo, apanhou uma maçã na tigela sobre o aparador da cozinha, passou pela estufa de plantas e saiu ao jardim. Comendo a maçã, atravessou o gramado. O orvalho umedeceu seus tênis de lona, os quais deixaram uma trilha de pegadas sobre a grama úmida. Passou abaixo do castanheiro, cruzou a passagem pela cerca-viva e viu-se no pomar. Uma trilha rústica serpenteava pelo gramado sem trato e já pontilhado de brotos de narcisos, passava junto aos restos de uma fogueira e contornava uma sebe de pilriteiros, podada recentemente. Um pouco além, ela chegou até o rio, correndo fundo e estreito entre margens altas. Acompanhou a corrente, abaixo de um arco de salgueiros. Quando os salgueiros rarearam, o rio seguiu em frente, através de amplos prados úmidos, cheios de gado pastando; mais além, as encostas suaves subiam para o céu. Havia ovelhas nas pastagens altas e, na distância, um homem com um cão em seus calcanhares subia a ladeira na direção daqueles animais.

Agora, Antonia aproximava-se da aldeia. Na curva da estrada, estavam a velha igreja com sua torre quadrada e os chalés edificados em pedras douradas. A fumaça subia reta no ar imóvel, brotando de chaminés e lareiras acesas pouco antes. O sol subia no céu cristalino e seu débil calor arrancava da ponte um cheiro de creosoto. Era um cheiro agradável. Ela se sentou na ponte, deixando penduradas as pernas úmidas, e terminou de comer a maçã. Atirou o miolo com as sementes na água corrente e limpa, depois o ficou vendo ir embora, até desaparecer para sempre.

Decidiu que Gloucestershire era inteiro e poeticamente belo, excedendo tudo quanto havia imaginado. E Podmore's Thatch era perfeito, sendo Penelope ainda mais do que tudo. Apenas estar com Penelope fazia uma pessoa sentir-se em calma e segurança, como se a vida - ultimamente quase insuportável, de tão vazia e melancólica - ainda tivesse algo excitante e contivesse alegrias futuras. "Você pode ficar aqui o tempo que quiser", ela havia dito para Antonia. Em si, o convite era uma tentação, mas ela sabia ser impossível. Por outro lado, o que pretendia fazer?

Estava com dezoito anos. Não tinha família, lar nem dinheiro, tampouco tendo qualificações para exercer alguma profissão. Durante aqueles poucos dias passados em Londres, fizera confidências a Olivia.

- Nem mesmo sei o que eu quero fazer. Isto é, nunca senti grande vocação por alguma coisa. Seria bem mais fácil se sentisse. E mesmo que me decidisse subitamente a ser uma secretária, médica ou contabilista, aprender essas profissões custa muito dinheiro.

- Eu poderia ajudá-la - dissera Olivia.

Antonia ficara imediatamente agitada.

- De maneira alguma, nem pense nisto! Você não tem qualquer responsabilidade comigo.

- De certa forma, acho que tenho. Você é a filha de Cosmo. E eu não estava pensando tanto em preencher cheques polpudos, mas sim que poderia ajudá-la de outras maneiras. Posso apresentá-la a pessoas. Nunca pensou em ser modelo?

Modelo. Antonia ficara boquiaberta de espanto.

- Eu? Ora, jamais poderia ser modelo! Não tenho beleza alguma!

- Para ser modelo, não precisa ser bonita. Basta ter as medidas certas de corpo, e você as tem.

- Impossível! Fico muito constrangida, com uma máquina fotográfica apontando para mim.

Olivia riu.

- O tempo a fará superar isso. Tudo que precisa é de um bom fotógrafo, alguém que lhe infunda confiança. Já vi isso acontecer antes. Patinhos feios transformados em cisnes.

- Não eu!

- Não seja tão tímida. Nada há de errado com seu rosto, à exceção desses cílios tão claros. Por outro lado, eles são incrivelmente espessos e longos. Não sei por que não usa rímel!

Aqueles cílios eram a maior fonte de vergonha para Antonia e, ouvindo Olivia mencioná-los, ela enrubesceu de constrangimento.

- Já tentei, Olivia, mas não posso. Sou alérgica a esses produtos ou coisa assim. Minhas pálpebras incharam, depois as faces, fiquei com o rosto inteiramente vermelho, os olhos começaram a lacrimejar e toda a tinta negra me escorreu dos olhos. É um desastre, mas nada posso fazer sobre isso.

- Por que não os tinge?

- Tingir?

- Sim. Tingir de preto. Em um salão de beleza. Então, todos os seus problemas terminariam.

- E eu não seria alérgica à tintura?

- Não acredito. Enfim, você terá que descobrir. Seja como for, isto agora não vem ao caso. Estamos falando de você arranjar um emprego como modelo fotográfico. Apenas por um ou dois anos. Ganharia um bom dinheiro e poderia economizar algum. Então, quando tiver decidido o que fazer, poderá contar com algum capital, será independente. De qualquer modo, reflita nisso durante sua permanência em Podmore's Thatch. Comunique-me o que decidiu e eu providenciarei as fotos.

- Você é muito generosa.

- De maneira alguma. Apenas prática.

Considerando o caso objetivamente, até que não era má idéia. A perspectiva de realmente fazer tal trabalho deixara Antonia alarmada, mas se pudesse ganhar algum dinheiro nessa profissão, certamente valeria a pena submeter-se ao constrangimento e a ter o rosto pesado de maquilagem. Além disso, por mais que pensasse, não conseguia imaginar alguma coisa que realmente quisesse fazer. Gostava muito de cozinhar, de jardinagem, plantar coisas e colher frutas - durante os dois anos passados com Cosmo em Ibiza, pouco mais fizera além disso -, mas era impossível progredir grande coisa como colhedora de frutas profissional. Por outro lado, não a seduzia a perspectiva de trabalhar em um escritório, muito menos em uma loja, um banco ou hospital. Assim sendo, qual era a alternativa?

Na torre da igreja, através do vale, um sino começou a badalar, infundindo uma espécie de melancólica tranqüilidade ao pacífico cenário. Antonia pensou em outros sinos: sinos de cabras em Ibiza, discordantes, badalando no início das manhãs, pelos áridos campos pedregosos que circundavam a casa de Cosmo. E o cantar dos galos, os grilos cricrilando na escuridão... todos os sons de Ibiza, desaparecidos para sempre, mergulhados no passado. Ela pensou em Cosmo e, pela primeira vez, tal pensamento não lhe encheu os olhos de lágrimas. O pesar era uma carga terrível mas, pelo menos, era possível deixá-lo à beira da estrada e seguir em frente. Antonia dera apenas alguns passos, mas já podia virar a cabeça, olhar para trás e não chorar. Isto nada tinha a ver com esquecer. Era apenas aceitação. Nada volta a parecer tão ruim, depois que o aceitamos.

O sino da igreja soou por uns dez minutos, cessando em seguida abruptamente. O silêncio que se seguiu ficou impregnado dos pequenos sons da manhã. A água fluindo, os berros do gado, os meés distantes das ovelhas. Um cão latiu. O motor de um carro roncou. Antonia percebeu que estava furiosamente faminta. Levantando-se saiu da ponte e começou a refazer seus passos, encaminhando-se para Podmore's Thatch e o desjejum. Ovos cozidos, talvez, pão tostado, manteiga e chá forte. A simples idéia de tão deliciosa comida a encheu de satisfação. Despreocupadamente feliz, pela primeira vez em semanas, ela começou a correr, abaixando a cabeça ao passar sob os galhos pendentes dos salgueiros, de coração leve e livre, como uma criança a quem estava prestes a acontecer algo maravilhoso.

Quando alcançou a sebe de pilriteiros e o portão que dava para o pomar de Penelope. estava sem fôlego, acalorada pelo exercício. Ofegando, reclinou-se no portão por um instante, depois o abriu e passou para o outro lado. Ao fazer isto um movimento lhe prendeu a atenção e, erguendo os olhos, viu um homem conduzindo um carrinho de mão pela trilha sinuosa que levava para fora do jardim, naquele momento passando sob o varal para roupa lavada de Penelope, entre a macieira vetusta e as pereiras. Era um rapaz, alto, de pernas compridas. Não Noel. Uma outra pessoa.

Antonia fechou o portão. O clique da fechadura chamou a atenção do estranho, que olhou para ela.

- Bom-dia! - disse ele em voz bem alta.

Continuou empurrando o carrinho pela grama crescida, a roda rangendo, necessitada de óleo. Antonia ficou parada, vendo-o aproximar-se. À altura dos restos da fogueira, ele parou, largou o carrinho e endireitou as costas, enquanto a observava. Usava jeans desbotados e manchados, enfiados em botas de borracha, e um suéter velho e frouxo sobre uma camisa azul-vivo. A gola da camisa fora erguida em torno do pescoço, e os olhos dele mostravam a mesma tonalidade azul forte, incrustados fundo no rosto, sem pestanejar, as faces curtidas pelo tempo.

- Que lindo dia - disse o rapaz.

- Tem razão.

- Foi dar um passeio?

- Só cheguei até a ponte.

- Você deve ser Antonia.

- Sim, sou eu mesma.

- A Sra. Keeling me disse que você ia chegar.

- Não sei quem é você.

- Sou o jardineiro. Danus Muirfield. Vim dar uma ajuda hoje. Na limpeza do sótão. Queimar tudo que for imprestável.

O carrinho de mão continha algumas caixas de papelão, jornais velhos e um forcado. Pegando o comprido cabo do forcado, ele começou a remexer as cinzas da fogueira anterior, puxando-as para o lado a fim de limpar um trecho seco de solo.

- Há uma montanha de coisas para queimar - informou Antonia. - Subi ontem até o sótão e vi a quantidade.

- Não importa; temos o dia inteiro para isso.

Ela gostou de ouvi-lo falar no plural. Aquilo parecia incluí-la, ao contrário da fria rejeição de Noel, quando se oferecera para ajudar. Agora, começava a sentir-se não apenas parte de todo o projeto, mas também bem-vinda.

- Ainda não fiz o desjejum, mas assim que comer alguma coisa, virei dar-lhe uma ajuda.

- A Sra. Keeling está na cozinha, cozinhando ovos.

Antonia sorriu.

- Eu tinha esperanças de que fossem ovos cozidos.

Ele não correspondeu ao sorriso.

- Pois então, vá comê-los - disse. Enfiou os dentes do forcado na terra negra e se virou para recolher um monte de jornais. - Não se pode ter um dia de trabalho duro, com o estômago vazio.

Com as mãos enluvadas em couro de porco firmemente aferradas ao volante de seu carro, Nancy Chamberlain rodou pelas ensolaradas Cotswolds em direção a Podmore's Thatch, para o almoço de domingo com a mãe. Estava bem-humorada e seu estado de ânimo do momento era resultante de vários fatores. O dia inesperadamente radioso era um deles. O céu muito azul não a afetara apenas, mas também sua família, pois as crianças não tinham discutido durante o desjejum. George fizera uma ou duas piadas sobre suas salsichas da manhã de domingo, e até a Sra. Croftway se tinha oferecido para levar os cães em sua caminhada à tarde.

Sem a tarefa de um lauto almoço de domingo para preparar, sobrara tempo para tudo. Tempo para Nancy demorar-se em maiores cuidados com sua aparência (estava usando seu melhor costume e a blusa de crepe da China, com laço no pescoço), tempo para levar Melanie e Rupert de carro até a casa dos Wainwright; tempo para acenar a George, quando ele partiu para sua reunião diocesana e, até mesmo, tempo para ir à igreja. Ir à igreja sempre deixava Nancy sentindo-se boa e piedosa, da mesma forma como comparecer a comitês dava-lhe uma sensação de importância. Assim, desta vez, a imagem que fazia de si mesma nivelava-se a suas ambições. Era uma bem organizada senhora residente no campo, com filhos convidados a passarem o dia na companhia de amigos adequados, um marido envolvido em atividades meritórias e empregados dedicados.

Tudo isto a enchia de uma insincera e desacostumada confiança, de maneira que, enquanto dirigia, ia planejando exatamente o que faria e diria no transcorrer da tarde. No momento oportuno, sozinha com a mãe, talvez durante o café, abordaria o tema dos quadros de Lawrence Stern. Mencionaria o preço absurdo alcançado pela tela As aguadeiras, e apontaria a falta de visão em não aproveitarem os preços do mercado, que agora estavam no ápice. Viu-se fazendo isto argumentando tranqüilamente, deixando bem claro que pensava apenas no melhor para sua mãe.

Vender. Apenas os painéis, naturalmente, que estavam pendurados, inobservados e não apreciados, no patamar junto ao quarto de Penelope. Não “Os catadores de conchas”. De maneira alguma se desfariam dessa tela, tão amada e fazendo tanto parte da vida de sua mãe, mas, ainda assim, Nancy citaria George e se mostraria muito prática. Poderia sugerir uma nova avaliação do quadro e a possibilidade de um outro seguro. Suscetível como era a respeito de seus bens, Penelope certamente não faria objeções a uma preocupação tão sensata e filial.

A estrada sinuosa chegou ao alto da montanha e, abaixo, no vale, foi revelada a aldeia de Temple Pudley, cintilando como uma pederneira à luz do sol. Havia poucos indícios de atividade, excetuando-se o fio escuro de fumaça de fogueira, brotando do jardim de sua mãe. Nancy estivera tão absorvida em seus planos para vender os painéis e nas resultantes centenas de milhares de adoráveis libras, que havia esquecido o verdadeiro propósito do fim de semana, isto é, a faxina no sótão de Podmore's Thatch e a eliminação de todas as coisas imprestáveis que lá se achavam. Ela esperava não ser convocada para nenhum trabalho sujo. Não estava trajada adequadamente para fogueiras.

Momentos mais tarde, quando o relógio da igreja badalava a meia hora, Nancy rodava pelo portão da casa de sua mãe e estacionava o carro ao lado da porta aberta. Viu o velho Jaguar de Noel parado junto à garagem, uma bicicleta não familiar recostada contra a parede da casa e uma miscelânea de objetos impróprios para o fogo, evidentemente expurgados do sótão e à espera de serem jogados fora. Algumas balanças para pesar bebês, um carrinho de bonecas faltando uma roda, uma ou duas cabeceiras de cama em metal e dois urinóis lascados. Nancy esgueirou-se por entre tudo aquilo e entrou na casa.

- Mamãe?

Como sempre, a cozinha estava impregnada de odores deliciosos, carneiro assado, hortelã picada, um limão recém-cortado em rodelas. Nancy recordou a infância e as maciças refeições que, então, eram preparadas na enorme cozinha no porão da Rua Oakley. O desjejum que fizera parecia ter acontecido muitas horas antes; ela começou a ficar com água na boca.

- Mamãe?

- Estou aqui!

Nancy a encontrou na estufa de plantas, não fazendo alguma coisa, mas parada e em pé, mergulhada em fundos pensamentos. Penelope não se vestira para uma ocasião especial, como ela; estava usando suas roupas mais velhas. Uma saia de brim surrada e desbotada, uma camisa de algodão com a gola esfiapando e um cardigã cheio de cerzidos, com as mangas erguidas até os cotovelos. Nancy largou a bolsa de mão em couro de lagarto, retirou as luvas e

aproximou-se para beijar a mãe.

           - O que está fazendo? - perguntou-lhe.

- Tentando decidir onde almoçaremos. Ia arrumar a mesa na sala de refeições, mas então pensei, com um dia tão lindo, por que não almoçarmos aqui? Além do mais é maravilhosamente aquecido, mesmo com a porta aberta para o jardim. Admire minhas frésias! Não estão lindas? Que bom ver você, e como está elegante! E então, o que acha? Devemos comer aqui? Noel pode trinchar a carne na cozinha e todos carregaremos nossos pratos. Creio que será divertido. O primeiro piquenique do ano e, estando todos tão empoeirados, de qualquer maneira, assim seria mais fácil.

Nancy espiou na direção do pomar, contemplando a coluna de fumaça que surgia acima da sebe de alfeneiros e subia para o céu límpido.

- Como vai indo tudo?

- Uma verdadeira explosão. Todos trabalhando duro.

- Não você, espero.

- Eu? Ora, nada mais fiz, além de preparar o almoço.

- E a moça... Antonia?

Nancy pronunciou o nome friamente. Ainda não perdoara Olivia e Penelope pela presença da jovem e só esperava que aquele arranjo fosse um fracasso total. Entretanto, suas esperanças foram baldadas.

- Está em pé desde que amanheceu e logo se atirou ao trabalho, assim que terminou o desjejum. Noel está no sótão, dando ordens, direita, esquerda, centro... enquanto Danus e Antonia retiram os despojos e alimentam a fogueira.

- Espero que ela não seja um estorvo para você, mamãe.

- Oh, céus, nada disso! Ela é um amor de pessoa!

- O que Noel pensa dela?

- Para começar, disse que não era o seu tipo, porque ela tem pestanas alouradas. Dá para imaginar semelhante coisa? Ele jamais encontrará uma esposa, recusando-se a olhar além das pestanas!

- Para começar? Por quê? Ele mudou de idéia?

- Apenas porque há outro rapaz nos arredores, com quem Antonia parece ter feito amizade. Noel sempre foi um terrível despeitado e acredito que nem saiba farejar o que é bom.

- Outro rapaz? Está falando de seu jardineiro?

- Danus? Sim, ele mesmo. Um rapaz tão simpático!

Nancy estava chocada.

- Está querendo dizer que Antonia fez amizade com o jardineiro?

Sua mãe apenas riu.

- Oh, Nancy, se pudesse ver o seu rosto como ficou. Não devia ser tão esnobe e nem fazer julgamentos antes de conhecer o rapaz.

Nancy, entretanto, não se deixou convencer.

- O que poderia estar acontecendo? Espero que não estejam queimando alguma coisa que você queira conservar.

- Em absoluto. Noel, realmente, está agindo muito bem. Volta e meia Antonia é enviada para me chamar e tenho que ir lá, dar minha opinião sobre uma coisa e outra. Houve uma pequena discussão sobre uma mesa atacada por cupins. Noel disse que merecia a fogueira, mas Danus replicou que era boa demais para o fogo e que os cupins podiam ser eliminados. Então, falei que se ele quisesse exterminar os cupins. ..os velhos e felizardos cupins... podia ficar com a mesa. Noel não gostou nem um pouco. Voltou para cima pisando forte, carrancudo, mas nem liguei. Muito bem, agora temos que decidir. Vamos almoçar aqui. Você pode ajudar a arrumar a mesa.

Foi o que as duas fizeram, em grande camaradagem. Abriram as folhas dobráveis da velha mesa de pinho e a cobriram com uma toalha de linho azul-escuro. Nancy trouxe talheres e copos da sala de refeições e sua mãe dobrou guardanapos de linho branco, em forma de mitras. O toque final foi um vaso de gerânios vermelhos, colocado em um cachepot pintado com flores e posto no centro da mesa. O resultado foi encantador, tão bonito, quanto informal. Recuando alguns passos, Nancy maravilhou-se, como sempre, ante o talento natural de sua mãe para criar não apenas um ambiente, mas um verdadeiro prazer visual, utilizando os objetos mais comuns. Sua impressão era de que isso tinha algo a ver com ter por pai um artista. Desanimada, pensou em sua própria sala de refeições, que sempre tinha uma aparência sombria e insossa por mais que ela tentasse o contrário.

- Agora - disse Penelope - só nos resta esperar que os trabalhadores apareçam e comam. Sente-se aqui no sol, enquanto me arrumo um pouco. Então lhe trarei um drinque. O que prefere? Um copo de vinho? Um gim-tônica?

Nancy disse que gostaria de um gim-tônica, e foi deixada sozinha. Tirando o casaco, ela vistoriou o ambiente. Quando sua mãe anunciara a intenção de construir uma estufa para plantas, ela e George haviam objetado firmemente. Na opinião deles, era um luxo tolo, uma séria despesa que possivelmente não estava ao alcance de Penelope. O conselho, no entanto, tinha sido ignorado, sendo a delicada e arejada adição devidamente erigida. Agora, aquecida, perfumada, verdejante e cheia de flores, Nancy era forçada a admitir que se tornara um lugar invejável, mas que nunca conseguira descobrir quanto havia custado. Isto a fez pensar, de maneira inevitável, na vexatória questão do dinheiro. Quando sua mãe voltou, com o cabelo penteado, o rosto empoado e exalando seu melhor perfume, encontrou-a acomodada na mais confortável poltrona de vime, perguntando-se se não seria aquele o momento oportuno para abordar a venda dos painéis. Chegou mesmo a tentar algumas diplomáticas frases de abertura, mas Penelope a interrompeu, desviando a conversa para um rumo inteiramente diverso e inesperado.

- Aqui está. Gim-tônica... Espero que tenha ficado forte o suficiente. - Para si mesma. ela servira um copo de vinho. Puxou outra poltrona e afundou nela, estirando as pernas compridas, o rosto voltado para o calor do sol. – Oh, isto não é uma bênção? O que sua família está fazendo hoje?

Nancy lhe contou.

- Pobre George. Posso imaginá-lo, enfiado dentro de quatro paredes o dia inteiro, com um bando de bispos com cara de alce. E quem são os Wainwright? Eu os conheço? É bom que as crianças saiam por conta própria. Aliás, é muito bom para todos nós uma saída por conta própria. Você gostaria de ir à Cornualha comigo?

Sobressaltada, Nancy virou para a mãe um rosto tomado de espanto e incredulidade.

- Cornualha?

- Exatamente. Quero voltar a Porthkerris. Dentro em breve. Subitamente, fiquei tomada por esta tremenda urgência. Seria muito mais divertido se alguém estivesse comigo.

- Sim, mas...

- Já sei o que vai dizer. Que há quarenta anos não vou lá, que tudo estará mudado e não conhecerei mais ninguém. Só que, mesmo assim, eu quero ir. Desejo rever tudo aquilo. Por que não irmos juntas? Poderíamos ficar com Doris.

- Com Doris?

- Sim, com Doris. Oh, Nancy, você não pode ter esquecido Doris. Não é possível! Ela praticamente a criou até seus quatro anos de idade, quando deixamos Porthkerris para sempre!

É claro que Nancy se lembrava de Doris. Não tinha uma recordação muito nítida do avô, mas não esquecera Doris, com seu agradável cheiro de talco, os braços fortes e o macio conforto, de seus seios. A primeira recordação clara da vida de Nancy incluía Doris. Estava sentada em alguma espécie de cadeira de empurrar, no pequeno prado atrás de Carn Cottage, cercada de patos e galinhas para engorda, enquanto Doris estendia roupas lavadas em um varal, à brisa forte que vinha do mar. A imagem ficara impressa para sempre em sua mente, vívida e colorida como em um livro de gravuras. Podia ver Doris, com os cabelos esvoaçando e os braços erguidos para o varal; via os lençóis e fronhas que se agitavam; via o límpido céu azul.

- Doris ainda mora em Porthkerris - continuou Penelope. - Tem uma casinha, Doumalong, como costumávamos chamá-la, na parte velha da cidade, nos arredores do porto. E agora que os filhos se foram, ela tem um quarto disponível. Está sempre me convidando para ir lá e ficar com ela. Além disso, adoraria ver você. Você era o seu bebê. Ela chorou, quando partimos. Você também chorou, mas não creio que tenha entendido o significado de tudo aquilo.

Nancy mordeu o lábio. Hospedar-se na casa de uma velha empregada, um chalezinho apertado, em uma cidade da Cornualha, não era a sua idéia de aproveitar alguns dias de folga. Por outro lado...

- E quanto às crianças? - perguntou. - Não haveria espaço para elas.

- Que crianças?

- Melanie e Rupert, naturalmente. Eu não poderia ausentar-me sem levar os dois comigo.

- Oh, pelo amor de Deus, Nancy, não estou falando nas crianças. Estou falando em você! Por que não pode ausentar-se sem levá-las? Já têm idade bastante para ficar com o pai e a Sra. Croftway. Divirta-se um pouco. Dê um passeio sem preocupações. Não seria por muito tempo. Apenas alguns dias, não mais do que uma semana.

- Quando é que pretende ir?

- Breve. Assim que puder.

- Oh, mamãe, é tão difícil! Tenho tanta carga nos ombros... A festa da igreja para ser planejada, a Conferência dos conservadores... Nesse dia, terei que providenciar um almoço festivo. Também há o campeonato de Melanie, no Clube Equestre...

Sua voz extinguiu-se, quando as escusas rarearam. Penelope nada disse. Nancy tomou outro reconfortante gole do gim-tônica gelado e lançou um olhar de esguelha para a mãe. Viu o perfil bem delineado, os olhos fechados.

- Mamãe?

- Sim?

- Talvez mais tarde... quando eu estiver com menos responsabilidades. Em setembro, quem sabe...

- Não. - A voz de Penelope era inflexível. - Tem que ser logo. - Ela ergueu a mão. – Não se preocupe com isso. Sei que é muito ocupada. Enfim, foi apenas uma idéia que tive.

Entre as duas, pairou um silêncio que a Nancy pareceu desconfortável, carregado de censuras não ditas. Não obstante por que deveria sentir-se culpada? Não lhe seria possível partir para a Cornualha assim tão repentinamente, sem tempo suficiente para organizar as coisas.

Nancy não era adepta de ficar sentada em silêncio. Gostava de manter um fluxo de conversa constante. Tentando encontrar outro tema para falar, descobriu que tinha a mente vazia. De fato, sua mãe podia ser terrivelmente irritante às vezes. A culpa não era sua. Era natural que fosse tão ocupada, tão envolvida em cuidar da casa, do marido e dos filhos. Não achava justo que, de súbito, se sentisse tão culpada.

Foi assim que Noel as encontrou. Se Nancy tivera uma boa manhã, a dele havia sido medonha. Vasculhar todas aquelas velharias do sótão, no dia anterior, fora algo bem diferente porque, lá no fundo, sempre existira a convicção de que, a qualquer momento, descobriria algo imensamente valioso. O fato de que isso não acontecera tornava esta manhã ainda mais insuportável. Além do mais, ficara ligeiramente despeitado pela chegada de Danus. Noel esperava algum caipira cabeça-dura e musculoso mas, em vez disso, vira-se diante de um tranqüilo e silencioso rapaz, ficara desconcertado com a expressão direta e firme daqueles olhos azuis. O fato de Antonia instantaneamente ter simpatizado com Danus em nada contribuiu para melhorar-lhe a disposição. O som da amistosa tagarelice dos dois, enquanto subiam e desciam as escadas apertadas, carregados de caixas de papelão e móveis imprestáveis, no decorrer de toda a manhã, fora uma crescente irritação para ele. A discussão sobre a mesa danificada pelos cupins havia sido a gota d'água no copo transbordante; faltando quinze minutos para uma hora, com tudo mais ou menos selecionado e o remanescente empurrado para o lado da parede, ele decidiu que já tivera o suficiente. Para cúmulo, estava imundo, precisando de uma ducha, mas precisando ainda mais de um drinque. Assim, apenas lavou o rosto e as mãos, desceu para o térreo e serviu-se de um martini seco em dose forte e generosa. Com o copo na mão, cruzou a cozinha até a estufa banhada pelo sol, e seu ânimo em nada melhorou, ao ver a mãe e a irmã confortavelmente instaladas nas poltronas de vime, como se nenhuma delas houvesse movido uma palha até então.

Nancy ergueu os olhos, ao ouvi-lo chegar. Exibiu um sorriso radioso como se daquela vez, estivesse de fato alegre em vê-lo.

- Olá, Noel!

Ele não retribuiu o sorriso, limitando-se a encostar um ombro ao batente da porta aberta e observar as duas. Sua mãe parecia adormecida.

- O que fazem as duas aqui, relaxando ao sol, enquanto os outros se matam de trabalhar?

Penelope não se moveu. O sorriso de Nancy perdeu algo da espontaneidade, mas permaneceu lá, incrustado no rosto. Noel terminou reconhecendo a derrota e assentiu com a cabeça.

- Olá - disse.

Puxando uma cadeira da mesa cuidadosamente arrumada para o almoço, arriou seu peso nela, tirando-o das próprias pernas. Sua mãe abriu os olhos. Não estava dormindo.

- Acabado?

- Completamente. Mal me agüento em pé. Sou um destroço físico.

- Estou falando do sótão, não de você.

- Pode-se dizer que sim. Falta apenas que alguma ativa dona-de-casa suba até lá e varra o chão.

- Noel, você é um portento. O que eu faria sem você?

Seu sorriso agradecido, entretanto, ficou desperdiçado.

- Estou faminto - foi a resposta dele. - Quando vamos almoçar?

- Quando você quiser. - Ela deixou seu copo de vinho sobre a mesa e empertigou-se na cadeira, para olhar além dos vasos de plantas, na direção do jardim. A fumaça continuava subindo para o céu, porém não havia o menor sinal dos outros. - Talvez alguém devesse ir chamar Antonia e Danus. Então, irei fazer o molho.

Houve uma pausa. Noel esperou que Nancy se apresentasse para essa tarefa não tão árdua, mas ela parecia concentrada em expulsar um fiapo aderido à saia, dando a impressão de não ter ouvido.

- Não tenho mais forças - disse ele, reclinando-se na cadeira. - Vá você. Nancy. Um pouco de exercício só lhe fará bem.

Reconhecendo aquilo como uma alusão ao seu peso ela imediatamente ficou melindrada, como o irmão imaginava.

- Muitíssimo obrigada!

- Você parece não ter levantado um dedo a manhã inteira.

- Acontece que me arrumei como devia, antes de vir almoçar. - Ela fitou o irmão direta e acusadoramente. - Eu não poderia dizer o mesmo a seu respeito.

- O que George usa para almoçar no domingo? Um fraque?

           Nancy empertigou-se na poltrona, com ar beligerante.

- Se está querendo bancar o engraçadinho...

Os dois continuaram discutindo, implicando um com o outro, como sempre havia sido entre eles. Em crescente exasperação e impaciência, Penelope soube que não suportaria continuar ouvindo aquilo, levantou-se bruscamente.

- Eu mesma irei chamá-los - anunciou.

Os filhos a deixaram ir, através do gramado ensolarado, cruzando a relva rústica e não cortada do inverno, enquanto eles continuavam sentados, ignorando o calor docemente perfumado da estufa, sem falar, sem se olhar. Ficaram acalentando seus drinques e a mútua animosidade.

Penelope estava perturbada. Deixara que eles a perturbassem. Podia sentir o sangue

correndo em suas faces, o coração começando aquela sarabanda agitada e irregular. Caminhou devagar, sem pressa, respirando fundo, dizendo a si mesma para não ser tola. Eles não importavam, aqueles filhos adultos, que continuavam a comportar-se como as crianças que não eram mais. Não importava se Noel não pensasse em mais ninguém além de em si mesmo ou se Nancy se houvesse tornado tão presumida, hipócrita e de meia-idade. Não importava se nenhum deles, nem mesmo Olivia, quisesse ir com ela à Cornualha.

O que saíra errado? O que fora feito das crianças que pusera no mundo, que amara, criara, educara e cuidara? A resposta era que, talvez, não houvesse esperado o suficiente da parte deles. Contudo, Penelope aprendera, pela maneira mais difícil, na Londres dos anos após a guerra, que nada devia esperar de ninguém, além de si mesma. Sem pais ou velhos amigos que a apoiassem, ficara apenas com Ambrose e a mãe dele como suporte, mas em poucos meses, percebera a futilidade de fazer qualquer coisa quanto a isso. Sozinha, vira-se dependendo apenas dos próprios recursos - em vários sentidos.

Autoconfiança. Aquela era a palavra-chave, a única coisa capaz de impelir alguém através de uma crise imposta pelo destino. Ser ela mesma. Independente. Esperta. Ainda capaz de tomar decisões e marcar o rumo daquilo que me resta por vida. Não preciso de meus filhos. Conhecendo suas faltas, reconhecendo seus defeitos, amo todos eles, mas não preciso deles.

Ela rezou para nunca precisar.

Estava mais calma agora, capaz até de sorrir para si mesma. Passou pela abertura na sebe de alfeneiros e viu o pomar que se estendia à sua frente, salpicado de luz e sombras. Na extremidade oposta, a enorme fogueira ainda chamejava e crepitava, arrotando fumaça. Danus e Antonia estavam lá, ele espalhando as brasas com o forcado, ela observando-o, sentada na beirada do carrinho de mão. Haviam tirado os suéteres e ficado apenas com as camisas, tagarelando incessantemente, suas vozes soando nítidas no ar parado.

Pareciam tão absorvidos e alegres, que era uma pena interrompê-los, mesmo sendo para anunciar que era hora de virem para dentro e comer carneiro assado da primavera, suflê de limão e torta de framboesas. Assim, ficou quieta onde estava, entregue ao prazer de apenas contemplar a encantadora cena pastoral. Então, Danus parou, apoiou-se ao cabo do forcado, falou algo que Penelope não ouviu, e Antonia riu. O som daquele riso trouxe de volta, com nítida claridade, retinindo através dos anos, a recordação de outro riso, assim como os êxtases inesperados e as alegrias físicas que acontecem, talvez, apenas uma vez, em toda a existência de uma pessoa.

Foi bom. E nada que seja bom jamais fica perdido. Faz parte de uma pessoa, toma-se parte de seu caráter.

Outras vozes, outros mundos. Ao recordar aquele êxtase, ela se sentiu impregnada, não de um senso de perda, mas de renovação e redescoberta. Nancy, Noel e a tediosa irritação que haviam desencadeado foram esquecidos. Eles não importavam. Nada importava, exceto este instante, este momento de verdade.

Ela poderia ter ficado ali, devaneando no pomar, pelo resto do dia. Entretanto, Danus logo a avistou e acenou, Penelope fez uma corneta com as mãos, chamou-os e disse que estava na hora do almoço. Ele assentiu com um gesto de mão, deixou o forcado cair no chão e depois inclinou-se, a fim de recolher os suéteres abandonados. Antonia levantou-se do carrinho de mão. Danus lhe pôs a suéter à volta dos ombros e amarrou as mangas, em um nó abaixo do queixo. Os dois começaram a caminhar pela trilha do pomar, passaram por entre as árvores, lado a lado; ambos altos, esguios, queimados de sol e jovens. E, aos olhos de Penelope, também muito belos.

Ela se viu cheia de gratidão. Não apenas estava grata a eles pelo trabalho duro feito durante toda a manhã, mas também por eles. Sem haverem pronunciado uma só palavra, os dois lhe tinham devolvido a tranqüilidade de espírito, seu senso de valores. Penelope enviou um breve e comovido "obrigada" à reviravolta do destino ou seria a mão de Deus? – ela gostaria de ter certeza..., que os havia introduzido em sua vida, como uma segunda chance. Uma coisa que podia ser dita com justiça, em favor de Noel, era que seus acessos de mau humor tinham curta duração. Quando o pequeno grupo finalmente se reuniu, ele estava no segundo martini (tendo também enchido novamente o copo da irmã), e para Penelope foi uma satisfação constatar que realmente conversavam com cordialidade.

- Bem, aqui estamos nós! Nancy, você ainda não conhece Danus, como também não conhece Antonia. Esta é minha filha, Nancy Chamberlain. Noel, você está encarregado do bar... dê-lhes algo para beber. Depois, talvez possa vir trinchar o carneiro para mim...

Noel largou seu copo e levantou-se, com exagerado esforço.

- O que gostaria de beber, Antonia?

- Uma cerveja viria a calhar.

Ela se recostou contra a mesa, as pernas muito compridas em seus jeans desbotados. Quando Melanie, a filha de Nancy, usava jeans, ficava com uma aparência terrível, por ter quadris tão grandes. Em Antonia, no entanto, os jeans ficavam fantásticos. Nancy concluiu que a vida era, de fato, muito injusta. Perguntou-se se deveria colocar Melanie fazendo dieta, mas logo expulsou tal idéia, porque sua filha sempre fazia, automaticamente, o oposto do sugerido por ela.

- E quanto a você, Danus?

O rapaz alto balançou a cabeça.

- Algo sem álcool seria ótimo. Um suco. Um copo d'água - serviria.

Noel ainda insistiu mas, como Danus manteve-se firme, ele deu de ombros e desapareceu no interior da casa. Nancy se virou para o rapaz.

- Você não bebe?

- Nada que contenha álcool.

Era muito atraente. Expressava-se bem. Um cavalheiro. Algo extraordinário. O que, afinal, estaria fazendo ali, como jardineiro de sua mãe?

- Nunca bebeu?

- Francamente, nunca.

Danus não parecia nem um pouco perturbado por tudo aquilo. Nancy, entretanto, insistiu no tema, porque era de fato extraordinário conhecer um homem que não bebia nem mesmo um copo de cerveja.

- Será porque não gostou do sabor? - perguntou.

Ele pareceu considerar a pergunta, para então responder:

- Sim, talvez seja este o motivo.

Seu rosto estava sério mas ainda assim Nancy não teve certeza se ele estaria ou não rindo dela.

O carneiro tenro, as batatas assadas, as ervilhas e os brócolis tinham sido gratamente consumidos. Os copos de vinho foram enchidos novamente, e servida a sobremesa. Estando todos novamente relaxados e joviais, a conversa passou para a maneira como passariam o resto do dia.

- Eu - anunciou Noel, despejando sobre sua torta de morangos o creme de um jarro rosa e branco - considero o dia encerrado. Já limpei o terreno e estou indo. Voltarei para Londres e, assim, com um pouco de sorte, não pego a pior parte do trânsito do fim de semana.

- Sem dúvida, será o melhor - concordou sua mãe. – Você já fez o suficiente. Deve estar exausto.

- O que mais há para ser feito? - indagou Nancy.

- Carregar e queimar os últimos destroços e varrer o chão do sótão.

- Eu farei isso - disse Antonia prontamente.

Nancy pensava em algo mais.

- E quanto a todas aquelas coisas empilhadas diante da porta da casa? As cabeceiras de cama e o carrinho quebrado. Não podem continuar lá indefinidamente. Do contrário. Podmore's Thatch ficará parecendo um acampamento de funileiro.

Houve uma pausa, enquanto todos esperavam que alguém fizesse uma sugestão. Foi Danus quem falou.

- Poderíamos levar para o depósito de lixo de Pudley.

- Como? - perguntou Noel.

- Se a Sra. Keeling não se incomodar, levaremos tudo na traseira de seu carro.

- É claro que não me incomodo!

- Quando? - tomou a perguntar Noel.

- Esta tarde.

- O depósito de lixo fica aberto aos domingos?

- É claro que fica - afirmou Penelope. - Está sempre aberto. Há um homenzinho que mora lá em uma espécie de galpão. Os portões nunca são trancados.

Nancy estava horrorizada.

- Está querendo dizer que ele mora lá o tempo todo? Em um galpão junto ao depósito de lixo? O que o Conselho local pensa a respeito? Deve ser terrivelmente anti-higiênico!

Penelope riu.

- Não creio que ele seja do tipo com muitas preocupações sobre higiene. É incrivelmente sujo e barbudo, mas uma criatura encantadora. Certa vez tivemos uma greve dos lixeiros e fomos forçados a remover nós mesmos nosso lixo. Ele não poderia ter sido mais

prestimoso.

- Mas...

Nancy foi então interrompida por Danus, algo em si surpreendente, pois ele mal falara durante toda a refeição.

- Na Escócia, há um depósito de lixo nas cercanias da cidadezinha onde mora meu avô, e um velho desocupado vive lá há trinta anos. - Ele ampliou o relato. - Em um guarda-roupa.

- Ele mora em um guarda-roupa? - exclamou Nancy, mais horrorizada do que nunca.

- Exatamente. É um guarda-roupa grande. Vitoriano.

- Ainda assim. Deve ser incrivelmente desconfortável!

- A senhora acha, não? Pois ele parece bastante feliz. É uma figura muito conhecida, muito respeitada. Caminha por toda a região usando botas de borracha e uma velha capa de chuva. As pessoas lhe dão xícaras de chá e sanduíches de geléia.

- O que ele faz à noite?

- Não tenho a menor idéia - replicou Danus.

- Por que parece tão preocupada com as noites do velho? Noel quis saber. - Eu consideraria sua existência inteira tão terrível, que a maneira como ele passa as noites pouca diferença faz.

- Bem, deve ser francamente monótono. Quero dizer, evidentemente, ele não tem uma televisão ou um telefone...

A voz de Nancy extinguiu-se, enquanto se esforçava para imaginar tais privações. Noel balançou a cabeça, mostrando a expressão exasperada que ela recordava do passado, quando era um menino esperto, tentando fazê-la compreender as regras de algum jogo de cartas simples.

- Você não tem jeito - disse ele, e Nancy emudeceu. Noel se virou para Danus.

- Você é da Escócia?

- Meus pais moram em Edimburgo.

- O que faz seu pai?

- É advogado.

Tomada de curiosidade, Nancy esqueceu a leve reprimenda do irmão.

- E você nunca quis ser também um advogado?

- Quando ainda na escola, pensei que poderia seguir o exemplo dele, mas depois mudei de idéia.

Noel reclinou-se na cadeira.

- Sempre visualizo os escoceses como tremendamente esportivos. Caçando veados, matando galos silvestres e pescando. Seu pai faz estas coisas?

- Ele pesca e joga golfe.

- Será ele também um Elder of the Kirk? (*) - Noel arremedou o sotaque escocês, isto

deixando sua mãe rangendo os dentes.

- Não é assim que vocês dizem, no Norte gelado?

Impassível, Danus respondeu tranqüilamente:

- Sim, ele é um Dignitário. Também é Arqueiro.

- Não compreendi. Por favor, explique-me.

- Ele é membro da Companhia Honorífica de Arqueiros.

Trata-se do Corpo de Guarda da Rainha, quando ela vai a Holyroodhouse. Em tais ocasiões, meu pai veste um uniforme arcaico e fica resplendente.

- Com que ela guarda o corpo da Rainha? Arcos e flechas?

- Exatamente.

Os dois homens encararam-se por um momento.

- Fascinante! - exclamou Noel por fim, em seguida servindo-se de mais um pedaço da torta de morangos.

A lauta refeição por fim terminou, arrematada por café fresco e pudim de chocolate. Noel empurrou a cadeira para trás, bocejou com enorme satisfação e anunciou que ia pegar sua mochila para ir embora, antes que caísse em coma. De maneira confusa, Nancy começou a empilhar as xícaras e pires vazios.

- O que vai fazer? - perguntou Penelope a Danus. – Voltar à sua fogueira?

- Ela está queimando bem. Acho que seria melhor livrar-nos logo do que tem de ir para o depósito de lixo. Vou colocar em seu carro.

Houve uma pausa momentânea. Em seguida, Penelope disse:

- Se você esperar até eu tirar a mesa, poderei levá-lo.

Noel parou seu bocejo a meio, os braços acima da cabeça.

- Ora, francamente, mãe! Ele não precisa de motorista!

- Na verdade, eu preciso - disse Danus. - Não dirijo.

Houve outra longa pausa, durante a qual Noel e Nancy ficaram olhando para ele, boquiabertos e descrentes.

 

(*) Dignitário da Igreja. Alusão a The Kirk (of Scotland), Igreja Nacional da Escócia. (N. da T.)

 

- Você não dirige? Está querendo dizer que não sabe dirigir? E como se movimenta por aí?

- De bicicleta.

- Ora, mas você é francamente extraordinário! Leva muito em conta a poluição do ar ou coisa assim?

- Não.

- Mas...

Antonia intrometeu-se na conversa. Disse, rapidamente:

- Eu sei dirigir. Se você permitir, Penelope, eu dirigirei e Danus me indicará o caminho.

Olhou para Penelope por sobre a mesa, e as duas sorriam simultaneamente, como mulheres dividindo um segredo.

- Seria muita gentileza sua - disse Penelope. - Por que não vai agora, enquanto eu e Nancy cuidamos disto aqui? Então, quando voltarem, iremos todos ao pomar e liquidaremos a fogueira juntos.

- Na realidade - disse Nancy - tenho que voltar para casa. Não vou poder ficar a tarde inteira aqui.

- Oh, fique só mais um pouco! Mal pude conversar com você... Não deve ter coisas importantes a fazer...

Penelope levantou-se e esticou o braço para apanhar uma bandeja. Antonia e Danus também se levantaram, despediram-se de Noel e saíram da casa pela cozinha. Enquanto sua mãe começava a empilhar as xícaras de café na bandeja, Noel e Nancy continuaram sentados e em silêncio. Entretanto, assim que ouviram a porta da frente bater e perceberam que ninguém mais os ouviria além de Penelope, começaram a falar imediatamente.

- Que rapaz extraordinário ele é!

- Tão solene! Nunca sorri...

- Como foi que o descobriu, mãe?

- Sabe alguma coisa sobre seu passado? Sem dúvida, é um indivíduo bem-nascido. Acho suspeito ter-se tornado jardineiro...

- E toda aquela história sobre não beber nem dirigir... Diabo, por que será que ele não dirige?

- Em minha opinião - declarou Nancy, com ares importantes - ele provavelmente matou alguém enquanto estava embriagado e lhe cassaram a licença de motorista.

O comentário estava tão desconfortavelmente próximo das ansiosas especulações de Penelope que, de repente, ela soube ser impossível ouvir mais uma só palavra, e saltou em defesa de Danus.

- Pelo amor de Deus! Pelo menos, dêem ao pobre rapaz o tempo suficiente para cruzar o portão de entrada antes de começarem a rasgar seu caráter em tiras!

- Ora, vamos, mãe! Ele é um sujeito estranho e sabe disto tanto quanto nós. Se estiver contando a verdade provém de uma família eminentemente respeitável e talvez endinheirada. O que faz então, trabalhando como escravo pelo salário insignificante de um jardineiro?

- Não faço a menor idéia.

- Já perguntou a ele?

- É claro que não! Sua vida particular não é da minha conta.

- Escute, mãe: ele apareceu aqui sem qualquer credencial?

- De maneira alguma. Contratei-o através de uma firma de jardinagem.

- E eles sabem se o rapaz é honesto?

- Você tem tanta boa-fé, mamãe, que confiaria em qualquer pessoa vagamente e apresentável. Afinal de contas de contas, ele está trabalhando em sua propriedade e você é uma pessoa que vive só!

- Não estou sozinha. Tenho Antonia.

- Segundo parece. Antonia ficou tão fascinada por ele como você...

- Nancy! Com que direito diz essas coisas?

- Se eu não estivesse preocupada com você, não precisaria dizê-las.

- E, em sua opinião, o que acha que Danus poderia fazer? Violentar Antonia e a Sra. Plackett, imagino. Assassinar-me, roubar todos os meus bens e fugir Europa afora. Ora, ele não conseguiria grande coisa. Seja como for, por aqui não existe nada valioso.

Ela falou impensadamente, no ímpeto do momento, mas arrependeu-se de suas palavras assim que as pronunciou, porque Noel aproveitou a oportunidade, com a velocidade de um gato saltando sobre o rato.

- Nada valioso! O que me diz dos quadros de seu pai? Nada que eu diga a convencerá de que aqui é uma mulher vulnerável! Você não tem qualquer sistema de alarme, jamais tranca uma porta e, sem dúvida, tem um seguro insuficiente. Nada sabemos sobre este desconhecido que empregou como jardineiro e, mesmo que soubéssemos – em quaisquer circunstâncias - seria loucura não tomar alguma atitude positiva. Vender, tornar a fazer um seguro, enfim, fazer qualquer maldita coisa!

- Tenho a curiosa impressão de que você gostaria que eu vendesse.

- Vamos, não comece a irritar-se! Pense racionalmente. Não “Os catadores de conchas”, é claro, mas talvez os painéis. Agora, enquanto os preços estão altos no mercado. Descubra o quanto valem essas infelizes coisas e depois ponha-as à venda!

Penelope permanecera todo esse tempo em pé. Tornando a sentar-se, fincou um cotovelo na mesa e descansou a testa na palma da mão. Com a outra mão, apanhou a faca da manteiga e, com ela, começou a fazer marcas fundas no tecido áspero da toalha de mesa azul-escuro.

- O que você acha, Nancy? - perguntou, após um momento.

- Eu?

- Sim, você. O que tem a dizer sobre meus quadros, meu seguro e minha vida privada em geral?

Nancy mordeu o lábio, respirou fundo e então falou, em voz clara e aguda, como se estivesse fazendo uma preleção no Instituto Feminino.

- Eu acho... acho que Noel tem razão. George pensa que você devia fazer um novo seguro. Foi o que me disse, após ter lido sobre a venda de As aguadeiras. Entretanto, é claro que o prêmio seria muito alto. Além disso, a companhia seguradora talvez insista em um seguro mais elevado. Seja como for, eles precisam considerar o investimento do cliente.

- Você me dá a impressão de estar citando George, palavra por palavra - respondeu Penelope - ou lendo instruções de algum manual incompreensível. Não tem idéias próprias?

- Tenho - replicou Nancy, tornando a soar com naturalidade. - Acho que você devia vender os painéis.

- E levantar, talvez, um quarto de milhão?

Penelope soltou as palavras casualmente. A discussão fluía melhor do que Nancy ousara esperar, e ela sentiu que o excitamento a acalorava.

- Por que não?

- E, uma vez recebido o dinheiro, o que deverei fazer com ele?

Penelope olhou para Noel. Ele deu de ombros elaboradamente.

- O dinheiro dado em vida vale o dobro daquele dado pela morte.

- Em outras palavras, vocês o querem agora.

- Não fale assim, mãe! Estou apenas generalizando. De qualquer modo, morrer com semelhante pecúlio equivaleria a simplesmente entregá-lo ao Governo.

- Então, acha que eu deveria dá-lo a vocês.

- Bem, você tem três filhos. Poderia dar uma parte desse dinheiro, dividi-la em três. Fique com um pouco para você, aproveitar a vida. Nunca pôde fazer isso. Estava sempre em dificuldades financeiras. Quando seus pais eram vivos, viajava por todo canto com eles. Poderá viajar novamente. Ir a Florença. Voltar ao sul da França.

- E o que vocês dois fariam com todo esse maravilhoso dinheiro?

- Imagino que Nancy gastasse com os filhos. Quanto a mim, eu mudaria de vida.

- De que maneira?

- Novos campos, verdes pastos. Trabalharia por conta própria...corretagem de ações, talvez...

Noel novamente assemelhava-se ao pai, por completo. Eternamente insatisfeito com a própria sorte, invejando os outros, materialista e ambicioso, acreditando inflexivelmente que o mundo lhe devia uma boa-vida. Poderia ter sido Ambrose falando com ela. Foi isto, acima de qualquer outra coisa mais, que finalmente a fez perder a paciência.

- Corretagem de ações! - Penelope esforçou-se para não mostrar o desdém na voz. - Você deve estar fora de si. Seria o mesmo que colocar todo o seu capital em um só cavalo ou em uma jogada de roleta. É tão imprudente, que às vezes me enche de desespero e desgosto!

- Noel abriu a boca para defender-se, porém ela o calou, erguendo a voz: - Quer saber o que penso? Acho que você não liga o mínimo para o que possa acontecer comigo, com minha casa ou os quadros de meu pai. Você só se preocupa consigo mesmo, com a rapidez e facilidade com que pode colocar as mãos em ainda mais dinheiro! – Noel fechou a boca, o rosto tenso de raiva, a cor desaparecendo das faces magras. - Não vendi os painéis e talvez nunca os venda, mas se por acaso os vender, ficarei com todo o dinheiro para mim, porque é meu, meu para fazer com ele o que bem entender e o maior presente que um pai ou mãe pode deixar para um filho é a independência desse pai ou mãe. Quanto a você e seus filhos, Nancy, foram você e George que decidiram enviá-los para aquelas escolas ridiculamente caras. Se fosse um pouco menos ambiciosa em relação a eles, se passasse mais algum tempo ensinando-lhes boas maneiras, talvez fossem muito mais simpáticos do que são no momento!

Com uma rapidez que surpreendeu até ela mesma. Nancy saltou em defesa da prole.

- Eu agradeceria muito, se não criticasse meus filhos!

- Já era tempo de alguém fazer isso.

- E que direito você tem de falar contra eles? Não mostra o menor interesse pelos dois! Parece mais interessada em seus intermináveis amigos excêntricos e seu lamentável jardim. Nunca foi lá para vê-los. Nunca foi lá visitar-nos, por mais que a convidemos...

Agora, foi Noel quem perdeu a paciência.

- Oh, pelo amor de Deus, Nancy, cale essa boca. Isto nada tem a ver com seus malditos filhos! Não estamos falando deles. Estamos procurando ter uma conversa inteligente...

- Eles têm tudo a ver com isto! São a futura geração...

- Que Deus nos ajude...

- ... e merecem muito mais suporte financeiro do que qualquer de seus esquemas desmiolados para ganhar ainda mais dinheiro. Mamãe está certa. Você poria fora sua parte, perderia tudo no jogo...

- Vindo de você, isto é hilariante. Nunca tem uma só opinião própria, não entende droga de droga nenhuma!

Nancy ficou em pé subitamente.

- Acho que para mim chega! Não vou continuar aqui para ser insultada. Volto para minha casa!

- Muito bem - disse sua mãe. - Acho que é hora de irem embora, ambos... Aliás, creio ter sido uma boa coisa Olivia não estar aqui. Se ouvisse essa conversa apavorante, ela liquidaria os dois. Apenas por este motivo, tenho absoluta certeza de que, se ela estivesse conosco, nenhum de vocês jamais ousaria começar tão desagradável discussão. E agora... - Ela também se levantou e apanhou a bandeja. - Como nunca se cansam de repetir para mim, ambos são pessoas muitíssimo ocupadas. Talvez não haja proveito algum em perderem o restante da tarde em brigas sem sentido. Nesse meio tempo, vou começar a lavar a louça.

Enquanto ela se dirigia para a cozinha, Noel desferiu seu malicioso tiro final:

- Aposto que Nancy adoraria ajudá-la. Sua distração predileta é enfrentar uma pia entulhada de pratos sujos...

- Já disse que para mim chegou! Vou para casa. E quanto a lavar os pratos, não há necessidade de mamãe dar-se ao trabalho. Antonia pode perfeitamente fazer isso, quando voltar. Afinal de contas, não veio para ser uma governanta?

Diante da porta aberta, Penelope estacou subitamente. Virou a cabeça e encarou a filha. Havia tal expressão de fúria em seus olhos escuros, que Nancy desconfiou ter ido longe demais. Entretanto, sua mãe não lhe jogou em cima a bandeja cheia de xícaras de café. Disse apenas, com a maior tranqüilidade:

- Não, Nancy. Ela não veio para ser uma governanta. Ela é minha amiga! Minha convidada!

Penelope se foi. Pouco depois, eles ouviam o som de torneiras abertas, o chocalhar de louças e talheres. Um silêncio pairou entre ambos, perturbado apenas por uma enorme mosca - varejeira que, enganada pela ilusão de estarem subitamente no auge do verão, decidiu ser aquele o momento de distender as asas e emergir de seu esconderijo de inverno. Nancy estendeu a mão para seu casaco e o vestiu. Abotoando-o, ergueu a cabeça e encarou Noel. Os olhos dos dois se cruzaram acima da mesa. Ele ficou em pé.

- Muito bem - disse Noel em voz calma. - Você transformou tudo em uma maldita confusão.

- Fale por si mesmo! - soltou ela, irada.

Ele a deixou e subiu para apanhar suas coisas. Nancy ficou onde estava, esperando que o irmão retornasse, decidida a manter a dignidade, a acalentar os sentimentos feridos, a não se mostrar atingida. Preencheu o tempo vistoriando sua aparência, penteando o cabelo, empoando o rosto afogueado, aplicando uma camada de batom. Estava profundamente perturbada e ansiava ir embora, mas não tinha o topete suficiente para simplesmente escapar dali. Sua mãe sempre tivera um jeito especial para manobrá-la, porém estava determinada a abandonar aquela casa sem qualquer pedido de desculpas. Afinal de contas, por que se desculparia? Sua mãe é que se mostrara tão impossível, ela é que havia dito aquelas coisas imperdoáveis. Ouvindo Noel voltar, Nancy fechou seu estojo de pó compacto com um estalido, enfiou-o na bolsa e foi para a cozinha. A lavadora de pratos zumbia e, de costas para eles, Penelope colocava panelas na pia.

- Bem, já estamos indo - anunciou Noel.

Penelope abandonou as panelas, sacudiu as mãos molhadas e se virou para vê-los. O avental e as mãos avermelhadas em nada lhe diminuíam a dignidade, e Nancy recordou que suas raras explosões temperamentais dificilmente duravam mais do que alguns momentos. Em

toda a sua vida, ela jamais guardara ressentimentos, jamais se mostrava carrancuda. Agora, chegava a sorrir, porém seu sorriso tinha um jeito estranho. Era como se sentisse pena deles e, de certa forma, os tivesse derrotado.

- Foi muito bom terem vindo - disse ela, e parecia sincera.

- E obrigada a você, Noel, por toda aquela trabalheira.

- Não foi nada.

Ela pegou uma toalha e enxugou as mãos. Saíram todos da cozinha, cruzaram a porta da frente e dirigiram -se para onde os dois carros esperavam, parados na alameda de cascalho. Noel deixou suas coisas no banco traseiro do Jaguar, sentou-se ao volante e, com um aceno de mão casual, disparou como uma bala pelo portão, para desaparecer na direção de Londres. Não se despedira de nenhuma das duas, porém mãe e filha nada comentaram a respeito.

Em silêncio, Nancy entrou no carro, afivelou o cinto de segurança e calçou as luvas de couro de porco. Penelope ficou olhando aqueles preparativos para a partida. Nancy podia sentir o olhar da mãe em seu rosto, percebeu o rubor que começava, subindo-lhe pelo pescoço

e chegando às faces.

- Vá com cuidado, Nancy - disse sua mãe. - Dirija devagar.

- Eu sempre faço isso.

- Eu sei, mas neste momento você está perturbada.

Fitando o volante, Nancy sentiu as lágrimas lhe subirem aos olhos. Mordeu o lábio. .

- É claro que estou perturbada! Nada perturba tanto como brigas familiares!

- Brigas familiares são como acidentes de carro. Cada família pensa: "Isto não podia ter acontecido conosco", mas é algo que pode acontecer a qualquer um. A única maneira de evitar uma e outra coisa é dirigir com a máxima prudência e mostrar muita consideração pelos outros.

- Nós temos consideração por você! Pensamos apenas em seu bem!

- Não, Nancy, não é bem assim. Vocês só querem que eu faça o que querem que eu faça, isto é, vender os quadros de meu pai e entregar-lhes o dinheiro, antes de morrer. Entretanto, só vou vendê-los quando quiser. E não vou morrer tão cedo. Ainda vou viver bastante tempo. - Ela recuou. - Agora, vá. – Nancy enxugou as lágrimas idiotas em seus olhos, ligou o motor, passou a marcha e soltou o freio de mão. - Não se esqueça de dar lembranças minhas a George.

           Nancy foi embora. Penelope ficou parada no caminho de cascalho ao lado da porta aberta, ali continuando muito depois que o som do carro da filha fora absorvido pelo que ainda restava de calor na miraculosa tarde primaveril. Olhando para baixo, viu uma tasneira abrindo caminho por entre as lascas pedregosas. Inclinando-se, arrancou-a pela raiz, jogou-a longe, dando meia-volta, tornou a entrar em casa.

Estava sozinha. Abençoada solidão! As panelas podiam esperar. Penelope atravessou a cozinha e foi à sala de estar. O anoitecer seria friorento, de maneira que ela acendeu um fósforo e o chegou aos gravetos da lareira. Quando as chamas ganharam um volume que a satisfez, levantou-se da posição ajoelhada e foi até sua secretária, lá encontrando o recorte de jornal com o anúncio da Boothby's, para o qual Noel lhe chamara a atenção, uma semana antes. Telefone para o Sr. Roy Brookner. Ela o colocou no centro de seu mata-borrão, firmou-o com o peso de papéis e então voltou à cozinha. Abrindo uma gaveta, apanhou sua pequena e afiada faca para verduras. Com ela na mão, subiu para seu quarto. O aposento agora estava cheio de uma dourada claridade do sol da tarde, penetrando pela janela que dava para oeste, cintilando em prata e refletindo-se em vidros e espelhos. Ela deixou a faquinha sobre o toucador e foi abrir as portas do enorme guarda-roupa vitoriano, cuja altura mal conseguia encaixar-se sob o teto abaulado. O armário estava entulhado de roupas suas. Ela as tirou para fora, às braçadas, depositando-as em cima da cama. Isto envolveu certa dose de idas e vindas, mas aos poucos a grande cama, com sua cobertura de crochê, ficou inteiramente ocupada por todos os tipos de roupas, assemelhando-se à barraca de roupas usadas nas quermesses da igreja ou talvez ao vestiário das senhoras, na festa de algum maníaco.

Entretanto, o guarda-roupa ficou vazio, exibindo a parte dos fundos. Anos atrás, aquela parte havia sido forrada de papel escuro e fortemente estampado mas, sob os desenhos, ela podia discernir certas irregularidades: os painéis e tirantes que compunham a estrutura da maciça e antiga peça de mobiliário. Apanhando a faca, Penelope estirou o braço para o espaçoso interior do móvel, correu os dedos sobre a superfície encaroçada do papel de forro e apalpou a direção certa, valendo-se do tato. Encontrando o que buscava, inseriu a faca em ângulo inclinado para baixo e então foi subindo com ela, fendendo o papel como se abrisse um envelope. Avaliou as medidas com concentrada cautela. Meio metro na vertical, um metro na horizontal, depois mais meio metro para baixo novamente. Sem apoio, a tira de papel oscilou, enrolou-se e finalmente caiu, revelando o objeto que ali estivera escondido, durante os últimos vinte e cinco anos. Uma surrada pasta de papelão, amarrada com barbante e presa aos painéis de mogno por tiras de fita gomada.

Naquele anoitecer, em Londres, Olivia ligou para Noel.

- E então, como se saiu?

- Tudo terminado.

- Encontrou alguma coisa excitante?

- Nem uma só maldita coisa!

- Oh, céus! - Ele podia sentir a hilaridade na voz dela e a xingou em silêncio. - Tanto trabalho por nada! Não importa. Terá mais sorte da próxima vez. Como está Antonia?

- Muito bem. Acho que simpatizou com o jardineiro.

Com isto, Noel esperava chocar Olivia.

- Ora, mas isso é ótimo! - exclamou ela. - Como é ele?

- Esquisito.

- Esquisito? Está querendo dizer que é bicha?

- Não. Quero dizer que é esquisito. Um peixe fora d'água. Um parafuso em buraco quadrado. Classe média alta, escola particular... ora, o que faz como jardineiro? Mais uma coisa - ele não dirige um carro e não bebe. E nunca sorri. Nancy está convencida de que o sujeito esconde algum segredo vergonhoso e, desta vez, sou tentado a concordar com ela.

- O que mamma pensa dele?

- Oh, salta aos olhos que o aprecia bastante. Trata-o como se fosse um sobrinho que não via ha muito tempo.

- Sendo assim, não me preocupo. Mamma não é nenhuma tola. Como vai ela?

- Do jeito de sempre.

- Não tem aparência cansada?

- Pelo que pude observar, está ótima.

- Você falou alguma coisa sobre os esboços? Mencionou-os? Interrogou-a sobre eles?

- Não disse uma só palavra. Se algum dia existiram, provavelmente já os esqueceu. Você sabe o quanto ela é desligada. – Noel vacilou, mas então acrescentou, como que casualmente: - Nancy esteve lá para o almoço. Começou a citar George, sobre o assunto de um novo seguro. Houve um bocado de bate-boca.

- Oh, Noel!

- Bem, sabe como é Nancy. Sem o menor tato, metendo os pés pelas mãos, a cretina.

- Mamma ficou perturbada?

- Um pouco. Consegui endireitar as coisas. No entanto, ela agora ficou mais teimosa do que nunca sobre a questão dos quadros.

- Bem, acho que isso só diz respeito a ela. De qualquer modo, obrigada por ter levado Antonia.

- Foi um prazer.

Manhã de segunda-feira novamente. Quando Penelope desceu, Danus havia chegado e já estava trabalhando duro na horta. O próximo a chegar foi o carteiro em seu pequeno furgão vermelho e depois a Sra. Plackett, solenemente ereta em sua bicicleta, com o avental na sacola e a novidade de que o dono da casa de ferragens de Pudley estava liquidando. Por que a Sra. Keeling não comprava uma nova pá para carvão? As duas discutiam este importante projeto, quando Antonia apareceu, sendo devidamente apresentada à Sra. Plackett. Foram trocadas amabilidades e relatadas as variadas atividades do fim de semana de cada uma. Em seguida, a Sra. Plackett apanhou o aspirador, os espanadores e subiu a escada. Segunda-feira era seu dia para cuidar dos quartos. Antonia começou a fritar bacon para seu desjejum, enquanto Penelope foi para a sala de estar, fechou a porta e sentou-se à secretária, a fim de telefonar.

Eram dez da manhã. Ela discou o número.

- Boothby's, Negociantes de Arte. Em que posso servi-la?

- Seria possível eu falar com o Sr. Roy Brookner?

- Aguarde um momento, por favor.

Penelope aguardou. Estava nervosa.

- Roy Brookner - anunciou uma voz grave, culta, muito agradável.

- Bom-dia, Sr. Brookner. Meu nome é Sra. Keeling, Penelope Keeling, e estou telefonando de minha casa, em Gloucestershire. No The Sunday Times da semana passada, os senhores colocaram um anúncio sobre pinturas vitorianas. Trazia seu nome e o número do telefone.

- Perfeitamente.

- O senhor, por acaso, estaria nestes arredores em algum momento do futuro próximo?

- A senhora possui algo que gostaria de mostrar-me?

- Sim. Algumas obras de Lawrence Stern.

Houve apenas uma ligeiríssima hesitação.

- Lawrence Stern? - repetiu ele.

- Exatamente.

- A senhora tem certeza de serem trabalhos de Lawrence Stern?

Ela sorriu.

- Sim, absoluta certeza. Lawrence Stern era meu pai.

Outra leve pausa. Ela o imaginou puxando um bloco de notas, retirando a tampa da caneta-tinteiro.

- Poderia fornecer-me seu endereço? - Penelope forneceu. - E seu número de telefone? - Ela fez isso também. - Preciso apenas consultar minha agenda. Esta semana seria muito cedo para a senhora?

- Oh, não. Quanto mais cedo, melhor.

- Quarta-feira? Ou quinta?

Penelope calculou, fez rápidos planos.

- Quinta-feira seria mais conveniente.

- A que horas?

- À tarde? Por volta de duas horas?

- Esplêndido. Tenho outra visita a fazer em Oxford; poderei cuidar disto na parte da manhã e depois ir vê-la à tarde.

- Será mais fácil se vier pela estrada para Pudley. Há um poste sinalizador indicando a direção da aldeia.

- Encontrarei o caminho - garantiu ele. - Duas da tarde, na quinta-feira. E obrigado por ligar para mim, Sra. Keeling.

Enquanto esperava que ele chegasse, Penelope ocupou-se em sua estufa de plantas, regando um ciclâmen, retirando botões mortos de gerânio e folhas secas. O tempo ficara ameaçador, com o vento leste trazendo enormes nuvens velejantes e apagando a luz do sol. Entretanto, o calor anterior fizera efeito, porque já havia botões de narciso amarelo surgindo no pomar, as primeiras prímulas mostravam suas carinhas pálidas, e os aderentes brotos do castanheiro começavam a abrir-se, revelando o verde delicado das rendilhadas folhas tenras.

Ela vestira suas roupas mais respeitáveis, para estar de acordo com a importância e formalidade da ocasião. Agora, ocupava a mente em decidir como seria o Sr. Brookner. Tendo como únicas pistas o nome dele e a voz ouvida ao telefone havia pouco em que se basear, de maneira que, sempre que pensava a respeito, obtinha uma imagem diferente do homem. Podia ser muito jovem, um inteligente estudante com testa grande e gravata borboleta avermelhada. Podia ainda ser idoso, acadêmico, dono de imenso conhecimento. Ou seria diligente e apressado, falando em gíria e possuindo a mente de uma máquina de calcular.

Naturalmente, ele não era nada disso. Quando pouco depois das duas da tarde, ela ouviu a batida de uma porta de carro, em breve seguida pelo toque da campainha da porta da frente, largou o regador e cruzou a cozinha, a fim de deixá-lo entrar. Ao abrir a porta, viu-o de costas, parado no caminho de cascalho e olhando em volta, como se apreciasse a quietude do campo e o ambiente rural. Ele se virou imediatamente. Era um cavalheiro muito alto e distinto, de cabelos escuros, penteados para trás da testa alta e queimada de sol, com fundos olhos castanhos que a observavam polidamente por trás de óculos de grossos aros de chifre. Usava um terno de tweed de bom corte e estilo sóbrio, camisa quadriculada e uma gravata discretamente listrada. Com um chapéu-coco e um binóculo, ele faria excelente figura na mais elegante platéia de uma corrida de cavalos.

- Sra. Keeling?

- Eu mesma. Sr. Brookner... Boa-tarde.

Os dois cumprimentaram-se com um aperto de mão.

- Eu admirava a vista. Que belo lugar e que casa encantadora!

- Receio que tenha de entrar pela cozinha. Não tenho um vestíbulo na frente da casa...

Ela o conduziu para o interior e, imediatamente, ele teve a atenção atraída para a sedutora perspectiva da porta mais distante, a que dava para a estufa, naquele momento banhada de sol e verdejante de plantas.

- Eu não me preocuparia com um vestíbulo, se tivesse uma cozinha tão bonita quanto esta... e também uma estufa para plantas.

- Eu mandei construir a estufa, porém o restante da casa está praticamente como encontrei.

- Mora aqui há muito tempo?

- Seis anos.

- Vive só?

- A maior parte do tempo. No, momento, tenho comigo uma jovem amiga, porém passará a tarde fora. Levou meu jardineiro de carro até Oxford... Os dois puseram o aparador de grama no banco traseiro e mandarão afiá-lo.

O Sr. Brookner pareceu um tanto surpreso.

- Precisam fazer todo o trajeto até Oxford, para afiar o aparador?

- Não, mas eu queria os dois fora de casa, enquanto o senhor estivesse aqui - declarou Penelope francamente. - Também vão comprar sementes de batata e coisas para o jardim, de maneira que a viagem será bem aproveitada. Bem, aceitaria uma xícara de café?

- Não, obrigado.

- Muito bem. - Ele continuou pacientemente parado, dando a impressão de que poderia ficar ali para sempre. - Neste caso, acho melhor não perdermos mais tempo. Devemos subir e ver primeiro os painéis?

- Como quiser - disse o Sr. Brookner.

Ela o conduziu para fora da cozinha e subiram a escada estreita ate o pequeno patamar.

- E aqui estão eles, pendurados a cada lado da porta de meu quarto. Foram as últimas pinturas feitas por meu pai. Talvez o senhor ignore, mas ele padeceu horrivelmente de artrite. Na época em que estas foram feitas, mal podia segurar os pincéis e, como vê, nunca puderam ser terminadas.

Penelope ficou de lado, dando espaço para que o Sr. Brookner se adiantasse, examinasse, recuasse - apenas uns trinta centímetros ou meio metro, pois do contrário cairia de costas escada abaixo avançasse novamente. Ele nada disse. Talvez não tivesse gostado do que via. Para disfarçar o nervosismo, ela recomeçou a falar.

- Estes painéis sempre foram uma espécie de brincadeira. Compreenda, tínhamos aquela casinha em Porthkerris, encarapitada no alto da colina, porém nunca havia dinheiro para gastar nela, de maneira que ficou terrivelmente decrépita. O vestíbulo era decorado com um antigo papel de parede Morris, que foi ficando gasto e furado com o tempo. Como minha mãe não tinha meios para substituí-lo, então sugeriu a papai que ele pintasse dois compridos e decorativos painéis, os quais esconderiam as partes mais dilaceradas do papel de parede. Ela quis algo no velho estilo dele, uma pintura que fosse alegórica, com temas de fábula, que pudesse guardar para sempre e sabê-la sua. Meu pai assim fez... e aí está o resultado. Infelizmente, não conseguiu terminar os painéis. Por outro lado Sophie... minha mãe... bem, não importa. Ela disse que gostava ainda mais dos painéis como tinham ficado.

O Sr. Brookner ainda não fez qualquer comentário. Penélope deduziu que certamente procurava encontrar coragem para dizer-lhe que os painéis não tinham qualquer valor. Então, de repente, ele se virou e sorriu.

- A senhora os considera inacabados, Sra. Keeling, porém eles estão maravilhosamente completos. Não tão finamente detalhistas, claro, ou tão meticulosos como aquelas grandes obras que ele executou na virada do século, mas, ainda assim, perfeitos em seu estilo. E que grande colorista ele foi! Repare no azul desse céu!

Penelope se encheu de gratidão ao ouvi-lo.

- Não imagina como estou satisfeita ao saber que os apreciou, já que meus filhos, quando não os ignoravam, procuravam menosprezá-los. Seja como for, a mim sempre deram um prazer enorme.

- E deveriam dar, sem dúvida. - Ele se virou, abandonando a absorta inspeção. - Existe mais alguma coisa que queira mostrar-me, ou isto é tudo?

- Não. Tenho mais, no andar de baixo.

- Podemos dar uma espiada?

- Naturalmente que sim.

No andar de baixo novamente, passando para a sala de estar, os olhos dele imediatamente caíram sobre “Os catadores de conchas”. Antes da chegada do Sr. Brookner, Penelope acendera a pequena faixa luminosa que iluminava a tela, a qual agora aguardava a avaliação dele. Naquele momento, neste dia em especial, o quadro pareceu a Penelope mais amado do que nunca, vívido, radioso e tão fresco, como o dia em que fora pintado.

Após um longo momento, o Sr. Brookner falou:

- Eu ignorava a existência de tal obra.

- Ela nunca foi exposta.

- Quando foi feita?

- Em novecentos e vinte e sete. Foi seu último quadro grande... Mostra a Praia do Norte, em Porthkerris, pintada da janela de seu estúdio. Uma das crianças sou eu. Seu nome é “Os catadores de conchas”. Quando me casei, ele me deu o quadro, como presente de casamento. Isso foi há quarenta e quatro anos.

- Que presente! Que dote. Aliás! Estará pensando em vendê-lo?

- Não. Não pretendo vendê-lo mas gostaria que o senhor o visse.

- Foi um grande prazer para mim.

Os olhos dele retornaram à tela. Após alguns instantes, Penelope percebeu que ele apenas procurava ocupar-se, deixando a ela a iniciativa do próximo movimento.

- Receio que seja tudo, Sr. Brookner. Exceto por alguns esboços.

Ele desviou os olhos do quadro, com as feições impassíveis.

- Alguns esboços?

- Feitos por meu pai.

O Sr. Brookner esperou que ela fosse mais explícita, mas como isto não aconteceu, perguntou:

- A senhora me daria permissão para vê-los?

- Não sei se valem alguma coisa. Talvez nem lhe interessassem.

- Não poderei dizer, senão depois de vê-los.

- Sim, tem razão. - Inclinando-se para trás do sofá, Penelope apanhou a surrada pasta de papelão, amarrada com barbante.

- Estão aqui.

O Sr. Brookner tomou-lhe a pasta e se sentou em uma ampla poltrona vitoriana. Pousou a pasta no tapete, a seus pés, e então, com dedos longos e sensíveis, começou a desatar o barbante.

Roy Brookner era um homem de considerável experiência em seu trabalho e, durante os anos, se tornara imune ao choque e ao desapontamento. Aprendera mesmo a lidar com o pior pesadelo de todos, aquele clássico, a velhinha que, vendo-se com pouco dinheiro talvez pela primeira vez na vida, resolve mandar avaliar e depois vender seu bem mais precioso. A Boothby's era informada de tal intenção e Roy Brookner marcava adequadamente a entrevista, assim como a viagem - provavelmente longa - para vê-la. No fim do dia, cabia-lhe a dolorosa incumbência de informar a ela que a pintura não era um Landseer, que o jarro chinês, pensado ser Ming, nem remotamente o era, o que o sinete de marfim de Catarina de Médicis, de fato não datava da época dessa dama, e sim de fins do século dezenove. Desta maneira, todos os objetos nada valiam.

A Sra. Keeling, no entanto, não era uma velhinha, além de ser filha de Lawrence Stern. Ainda assim, ela abriu as capas da pasta sem muita esperança. Não sabia ao certo o que esperava encontrar ali. O que encontrou, entretanto, foi de tão espantosa importância que, por um momento, mal pôde acreditar no que via.

Penelope Keeling lhe falara em esboços, sem explicar que tipo de esboços seriam. Aqueles eram pintados a óleo, sobre tela, as telas com as margens irregulares, ainda mostrando a impressão enferrujada dos pregos que, um dia, as tinham firmado sobre seus suportes. Ele as pegou, de uma em uma, demorando-se, examinando-as com incrédula admiração, para depois colocá-las de lado. As cores não haviam desbotado, os temas eram reconhecidos imediatamente. Em crescente excitação, ele iniciou um catálogo mental. O espírito da primavera. A chegada do amante. As aguadeiras. O deus do mar: O jardim do terrazzo...

Era quase demasiado. Como um homem na metade de uma lauta refeição para um gourmet, ele se viu saciado, incapaz de continuar. Fez uma pausa, as mãos imóveis, pendendo frouxamente entre os joelhos. Parada junto à lareira vazia, Penelope Keeling esperava seu julgamento. Ele ergueu o rosto e seus olhos cobriram a curta distância que o separava dela. Por um demorado momento, nenhum deles falou. Não obstante, a expressão do rosto dele disse a Penelope tudo quanto ela queria saber. Sorriu, e o sorriso iluminou seus olhos escuros; era como se todos os seus anos de vida jamais tivessem acontecido. Por um momento, ele a viu como a bela jovem que um dia havia sido. Então, ocorreu-lhe o pensamento de que, se também tivesse sido jovem naquela época, provavelmente se apaixonaria por ela.

- De onde vieram estes esboços? - perguntou.

- Eu os tive comigo por vinte e cinco anos, escondidos no forro do meu guarda-roupa.

Ele franziu o cenho.

- E onde foi que os encontrou?

- Estavam no estúdio de meu pai, no jardim de nossa casa da Rua Oakley.

- Alguém mais sabe de sua existência?

- Não creio. Entretanto, tenho o pressentimento de que meu filho, Noel, começou a desconfiar de que existissem, embora eu não imagine de onde lhe veio tal desconfiança. Seja como for, não tenho certeza disto.

- O que a faz pensar assim?

- Ele andou vasculhando por aqui, revistando o sótão. Ficou muito irritado, quando nada encontrou. Tenho certeza de que procurava algo específico e quase posso garantir que eram estes esboços.

- Isto deixa certa impressão de que ele sabe o quanto poderiam valer. - Inclinando-se, ele pegou outra tela. O jardim de Amoretta. Quantas são ao todo?

- Quatorze.

- Estão no seguro?

- Não.

- Foi por isso que as escondeu?

- Não. Eu as escondi, porque não queria que Ambrose as encontrasse.

- Ambrose?

- Meu marido. - Ela suspirou. O sorriso morreu, levando consigo aquele vibrante vislumbre de juventude. Voltara a ter sua própria idade, era novamente uma simpática e grisalha mulher de sessenta e poucos anos, agora cansada de ficar em pé. Afastando-se da lareira, foi sentar-se no canto do sofá, descansando um braço ao longo do encosto. - Compreenda, nós nunca tínhamos dinheiro. Este foi o ponto crítico de tudo, a raiz de todo o problema.

- Residiu com seu marido na Rua Oakley?

- Sim, depois da guerra. Durante a guerra, fiquei na Cornualha, porque tinha uma filha pequena para cuidar. Então, minha mãe foi morta na Blitz e continuei lá, porque também teria que cuidar de papai. Ele me transmitiu a posse da casa da Rua Oakley...e de uma... - De repente ela riu, desanimada, balançando a cabeça. - Assim fica tudo deturpado, não faz sentido. Como o senhor iria compreender?

- A senhora poderia começar do princípio e ir direto até o fim.

- Isso levaria o dia inteiro.

- Eu tenho o dia inteiro.

- Oh, Sr. Brookner, minha história o deixaria mortalmente entediado.

- A senhora é filha de Lawrence Stern - replicou ele. - Poderia ler para mim o catálogo telefônico da primeira à última página que eu continuaria fascinado.

- Oh, como o senhor é gentil... Sendo assim...

- Em 1945, meu pai estava com oitenta anos. Eu tinha vinte e cinco, estava casada com um Tenente da Marinha e era mãe de uma criança de quatro anos. Havia ficado algum tempo nas Wrens – foi quando conheci Ambrose – mas, ao saber que esperava um filho, fui desligada e voltei para casa, em Porthkerris. Fiquei lá pelo resto da guerra. Mal vi Ambrose durante aqueles anos. Ele esteve no mar a maior parte do tempo, primeiro no Atlântico, depois no Mediterrâneo e, finalmente, no Extremo Oriente. Confesso que isso não me preocupava muito. Havíamos feito um precipitado casamento de tempos de guerra, era um relacionamento que jamais teria ido avante em época de paz.

“Também, havia papai. Ele sempre fora um homem incrivelmente vigoroso e jovem, porém depois da morte de Sophie, pareceu envelhecer de repente diante de meus olhos, de modo que nem me passava pela cabeça abandoná-lo. Então, a guerra terminou e tudo mudou. Os combatentes voltavam para casa, e papai achava que eu também precisava voltar para meu marido. Envergonha-me dizer que eu não queria, e foi nessa ocasião que ele me disse haver transmitido para mim a posse de sua casa da Rua Oakley, porque assim eu sempre teria uma base, segurança para meus filhos e independência financeira. Depois disso, eu não tinha nenhuma justificativa para ficar lá. Eu e Nancy, minha filha, deixamos Porthkerris pela última vez. Papai nos levou à estação para despedir-se de nós e essa também foi a última vez, porque ele morreu no ano seguinte e nunca mais tornei a vê-lo”.

“A casa da Rua Oakley era enorme. Tão grande, que papai, Sophie e eu sempre moramos no porão, destinando os andares superiores a inquilinos. Desta maneira, podíamos viver sem grandes dificuldades. Eu continuei com esse arranjo. Um casal - Willi e Lalla Friedmarm - morara lá durante a guerra, e continuou morando. Eles tinham uma filhinha, era uma boa companhia para Nancy, e se tornaram meus inquilinos permanentes. No restante da casa, os moradores eram mais ou menos flutuantes, indo e vindo. Artistas em grande maioria, escritores e rapazes tentando entrar para a televisão. Eram o meu tipo de gente. Não o de Ambrose”.

“Então, Ambrose voltou para casa. Não somente voltou, como abandonou a Marinha e aceitou um emprego na antiga firma da família de seu pai, os editores Keeling e Philips, em St. James. Fiquei bastante surpresa quando ele me contou isto, mas pensei que, no geral, havia feito a coisa certa. Mais tarde, fiquei sabendo que, quando estava no Extremo Oriente, prejudicara sua ficha profissional - antagonizara seu capitão e tivera registros negativos em seu relatório pessoal. Assim, se continuasse na Marinha, suponho que não demoraria muito por lá”.

“Bem, lá estávamos nós. Não tínhamos grande coisa, porém era mais do que muitos casais jovens. Éramos novos e saudáveis, Ambrose tinha um emprego e possuíamos uma casa para morar. Só que, além disso, não dispúnhamos de um alicerce comum para a construção de qualquer tipo de relacionamento. Ambrose era intensamente convencional, mais ou menos um esnobe social... tinha grandes idéias sobre sempre travar amizade com as pessoas adequadas. Quanto a mim, era excêntrica, descuidada e, suponho, indigna da menor confiança. Entretanto, coisas que eram importantes para Ambrose, pareciam-me triviais, de modo que não partilhava do entusiasmo dele. Além do mais, havia a humilhante questão do dinheiro. Ele nunca me dava nada. Sem dúvida, achava que eu tinha rendas privadas - o que de certo modo era verdade -, porém eu vivia perpetuamente apertada de finanças. Da mesma forma, em minha família, dinheiro era algo que esperávamos ter, mas sobre o que nunca falávamos. Durante a guerra, eu me sustentava com minha pensão da Marinha, e papai costumava depositar mensalmente uma quantia em minha conta, para pagamento das contas domésticas, porém não havia luxos em que gastar dinheiro e, por outro lado, todos viviam em quase penúria. Assim, a questão parecia não importar muito”.

“Entretanto, casada com Ambrose e morando em Londres, a situação se modificava. A esta altura, já havia nascido minha segunda filha, Olivia; era mais uma boca para alimentar. Ao mesmo tempo, a velha casa precisava de reparos urgentes. Não havia sofrido com os bombardeios, felizmente, mas mostrava rachaduras, ficara dilapidada e quase caindo em cima da gente. Estava precisando de nova fiação elétrica, e o teto tinha que ser consertado. Além disso, o encanamento começou a deteriorar-se e, claro, tudo gritava por pintura. Quando falei sobre isto a Ambrose, ele respondeu que a casa me pertencia, sendo portanto minha responsabilidade. Por fim, terminei vendendo quatro preciosas telas de Charles Rainier que haviam sido de papai, o que resultou em dinheiro suficiente para os consertos mais rudimentares. Pelo menos, pararam as goteiras do teto e deixei de angustiar-me, imaginando se as crianças não seriam eletrocutadas, enfiando os dedos naquelas antiquadas tomadas de parede”.

"Então, houve a gota que fez o copo transbordar. Dolly Keeling - a mãe de Ambrose, que se retirara para Devon durante toda a guerra - voltou a residir em Londres. Possuía uma casinha na Rua Lincoln e, desde sua chegada, começou a criar problemas. Jamais gostara de mim. Aliás, não a culpo. Ela nunca me perdoou por ter ficado grávida antes do tempo, por haver” forçado “Ambrose ao casamento. Era seu único filho, sendo ela intensamente possessiva. Assim, tornou a apossar-se dele. De repente, estar casada com Ambrose ficou mais ou menos semelhante a cuidar do cão de uma outra pessoa. Sempre que giramos a maçaneta, entramos em casa. Ambrose girava a maçaneta da casa da mãe. Costumava passar lá para um drinque, quando voltava do escritório... imagino que fosse a síndrome do chá-e-simpatia. Além disso, levava-a para fazer compras nas manhãs de sábado e nos domingos levava-a de carro à igreja. Era suficiente para fazer alguém não querer ir mais à igreja, pelo resto da vida”.

“Pobre homem... Lealdades dividas não são companhias de fácil convivência. Afinal, ele precisava muito da atenção e adulação que Dolly lhe proporcionava, mas que eu era incapaz de dar. Além disso, a casa da Rua Oakley nunca foi o lugar mais tranqüilo do mundo. Eu gostava da proximidade de meus amigos, sempre tive muita afinidade com Lalla Friedmarm. E gostava também de crianças. Muitas crianças. Não apenas de Nancy, mas também de suas coleguinhas da escola. Quando o tempo era bom, o jardim enxameava delas, pendurando-se em cordas de cabeça para baixo ou sentadas em caixas de papelão para mantimentos. Aliás, as coleguinhas da escola tinham mães, que entravam e saíam, ficavam na cozinha, bebendo café e mexericando. Havia uma atividade constante - geléia sendo feita, alguém cortando um vestido ou fazendo biscoitos para o chá, e sempre brinquedos espalhados por todo o chão”.

“Ambrose não podia suportar isso. Dizia que lhe atacava os nervos, quando voltava do trabalho para tal confusão. Começou a ressentir-se dos aposentos apertados em que vivíamos, uma vez que toda a espaçosa casa era nossa. Também começou a falar em expulsar os inquilinos, a fim de termos mais espaço para nós. Falava sobre uma sala de refeições para jantares festivos, uma sala de estar para coquetéis, um quarto de dormir com quarto de vestir e banheiro, uma suíte completa, para nós dois. Perdi a paciência e perguntei-lhe de que viveríamos, se não tivéssemos os aluguéis entrando. Ele mergulhou em um carrancismo de três semanas e, mais do que nunca, ficou na companhia da mãe”.

“A mera questão de existir se tornou algo como escalar a custo uma montanha. Discutíamos sobre dinheiro o tempo todo. Eu nem sabia quanto ele ganhava, de maneira que não tinha argumentos neste sentido. Entretanto, sabia que devia ganhar alguma coisa - e o que fazia com seu dinheiro? Pagava bebida para os amigos? Pagava a gasolina para o carrinho que a mãe lhe dera? Comprava roupas? Ambrose sempre gostara de vestir-se bem. Tornei-me profundamente curiosa. Comecei a bisbilhotar. Encontrei e li seu extrato bancário, vi que sacara mais de mil libras a descoberto. Eu era tão ingênua, tão simplória, que terminei imaginando que meu marido tinha uma amante e gastava todo o salário com ela, dando-lhe casacos de mink e sustentando-lhe um apartamento em Mayfair”.

“Por fim, ele me contou. Tinha que contar. Devia quinhentas libras a um bookmaker e tinha que saldar a dívida em uma semana, lembro-me de que eu preparava sopa, mexia o grande caldeirão, a fim de que as ervilhas secas não se colassem no fundo. Perguntei-lhe há quanto tempo apostava nos cavalos e ele respondeu que havia três ou quatro anos. Também perguntei outras coisas. e então fiquei sabendo de tudo. Penso que, hoje em dia, ele seria chamado de jogador compulsivo. Costumava jogar em clubes privados. Fizera um ou dois grandes investimentos no mercado de ações, mas acabara tendo prejuízo. E eu, durante todo aquele tempo, não tinha a menor desconfiança. Agora, no entanto, ele me confessava que não estava apenas levemente envergonhado, mas desesperado. Tinha que arranjar o dinheiro”.

“Respondi que não o tinha. Sugeri que procurasse sua mãe. Ambrose respondeu que já apelara para ela antes, que não tinha mais coragem de procurar ela novamente. Então, disse, por que não vendermos os quadros, os três Lawrence Stern? Eles eram tudo que eu possuía da obra de meu pai. Ao ouvi-lo falar assim, fiquei quase tão amedrontada quanto ele pois sabia”.

o perfeitamente capaz de esperar até ficar sozinho em casa, para então apanhar os quadros e levá-los a uma galeria de vendas. “Os catadores de conchas” era não só o meu bem mais precioso, como também meu conforto e consolo. Eu não podia viver sem o quadro, e Ambrose sabia disto. Assim, respondi-lhe que levantaria as quinhentas libras, e foi o que fiz, vendendo meu anel de noivado e também o de minha mãe. Depois disso, ele voltou a ficar bastante agradável, satisfeito consigo mesmo. Parou de jogar durante algum tempo. Havia passado um mau pedaço. Entretanto não demorou muito, começou tudo de novo e, mais uma vez, retomamos à vida antiga de mal ter o que comer.

“Então, em 1955 nasceu Noel e, ao mesmo tempo, enfrentamos a primeira das grandes contas escolares. Eu ainda possuía a casinha na Cornualha, Carn Cottage. Com a morte de papai, ela passara a me pertencer, e apeguei-me a ela durante anos, alugando-a a quem quisesse alugá-la e dizendo para mim mesma que, um dia, levaria meus filhos até lá, para passarem o verão. Só que nunca fiz isso. Então, recebi uma boa oferta pela casa, boa demais para ser recusada, e a vendi. Quando fiz isso, soube que Porthkerris se fora para sempre, que o”.

último elo se rompera. Ao vender a casa da Rua Oakley, tinha planos de retomar à Cornualha. Compraria um pequeno chalé de granito, com uma palmeira no jardim. Entretanto, meus filhos intrometeram-se e, finalmente, meu genro encontrou Podmore's Thatch. Assim, terei de passar meus últimos anos em Gloucestershire, sem ver mais o mar e nem ouvir-lhe o som.”“.

- Eu lhe contei tudo isto, e ainda não cheguei à questão, não é verdade? Ainda não lhe falei sobre o encontro dos esboços.

- Não estavam no estúdio de seu pai?

- Sim, escondidos por trás de coisas acumuladas durante anos por um artista.

- Como foi isso? Quando foi que os encontrou?

- Noel teria uns quatro anos. Para acomodar nossa família em crescimento, tivemos que ocupar mais dois cômodos. Os inquilinos, contudo, enchiam o resto da casa. Um dia, um rapaz surgiu à porta. Era estudante de arte, muito alto e magro, de aparência pobre, mas extremamente simpático. Alguém lhe dissera que eu talvez pudesse ajudá-lo, porque ele conseguira uma vaga no Slade, mas não encontrava um lugar onde morar. Eu não dispunha de um só canto vago para colocá-lo, mas gostei do seu jeito, convidei-o a entrar, dei-lhe uma refeição e um copo de cerveja. Começamos a conversar. Quando chegou o momento de ele ir embora, eu já me sentia tão sua amiga, que era difícil suportar a idéia de não poder ajudá-lo. Então, pensei no estúdio. Era um galpão de madeira no jardim, mas de construção forte e sem goteiras. Ele poderia dormir e trabalhar lá; eu lhe daria o desjejum e ele teria liberdade para utilizar o banheiro da casa e lavar sua roupa. Quando sugeri isto, ele aceitou de imediato. Então, encontrei a chave e fomos lá fora, inspecionar o estúdio. Estava sujo e empoeirado, entulhado com antigos divãs-cama e cômodas, não se falando nos cavaletes, paletas e telas de meu pai, porém o lugar era à prova de chuva e possuía uma clarabóia dando para o norte, detalhe que tomou o galpão ainda mais desejável para o rapaz.

“Combinamos um aluguel e o dia em que ele se mudaria para lá. Depois que ele se foi, comecei a trabalhar. Levei dias e precisei encontrar meu amigo, o trapeiro, para ajudar na tarefa. Pouco a pouco, ele encheu seu carrinho com aquelas velharias imprestáveis e levou tudo embora. Precisou fazer várias viagens, mas, finalmente, chegamos ao carregamento final. Foi então, no canto mais afastado do estúdio, que encontrei a pasta dos esboços, perdida atrás de uma velha arca. Identifiquei os esboços imediatamente, porém sem ter idéia de seu valor. Naquela época, Lawrence Stern não estava em moda, de maneira que uma tela sua talvez valesse quinhentas ou seiscentas libras. Não obstante, o encontro daqueles esboços foi como receber um presente do passado. Eu tinha tão pouca coisa da obra de meu pai... Foi quando pensei que, se Ambrose descobrisse sua existência, imediatamente exigiria que fossem todos vendidos. Assim, levei-os para a casa e subi com eles para meu quarto. Prendi-os com fita adesiva à parte dos fundos de meu guarda-roupa, depois encontrei um rolo de papel de parede e o colei por cima, para disfarçar. Foi lá que a pasta com os esboços permaneceu até agora. Até o anoitecer de domingo passado. Foi quando, subitamente, compreendi que chegara a hora de deixá-los verem a novamente a luz do dia de mostrá-los ao senhor”.

- Bem, agora já sabe tudo. - Ela olhou para seu relógio. Quanto tempo demorei para contar-lhe... Sinto muito. Aceitaria uma xícara de chá? Tem tempo para uma xícara de chá?

- Sim, eu tenho tempo. Entretanto, ainda gostaria de saber mais.

         Ela ergueu as sobrancelhas, questionante.

- Por favor, não me considere impertinente ou curioso, mas o que foi feito de seu casamento? O que foi feito de Ambrose?

- Meu marido? Oh, ele me deixou.

- Ele a deixou?

- Exatamente. - Perplexo, ele viu o rosto de Penelope animar-se, mostrar-se divertido. – Por sua secretária.

- Logo depois que encontrei os esboços e os escondi, a Srta. Wilson, antiga secretária de Ambrose, que sempre trabalhara para a firma Keeling e Philips, aposentou-se e foi substituída por uma jovem. Imagino que esta nova secretária também fosse muito bonita. Chamava-se Delphine Hardacre. A secretária antiga sempre fora tratada como Srta. Wilson, porém a nova jamais foi mencionada por outro nome senão Delphine. Certo dia, Ambrose me disse que iria a Glasgow, a negócios; o setor gráfico da firma estava sediado lá, e ele ficou fora uma semana. Mais tarde, descobri que não tinha estado em Glasgow, mas fora a Huddersfield com Delphine, para ser apresentado aos pais dela. O pai era imensamente rico, tinha algo a ver com engenharia pesada, mas, se considerou Ambrose um pouco velho para sua filha, isto evidentemente ficou equilibrado pelo fato de ela ter encontrado um homem de boa condição para si mesma e de estar fascinada por ele. Logo depois disto, Ambrose chegou do trabalho e me comunicou que estava indo embora. Foi em nosso quarto. Eu tinha lavado os cabelos e os escovava para secar, sentada diante de meu toucador. Ambrose se sentara na cama, atrás de mim, de maneira que toda a conversa aconteceu através de meu espelho. Ele disse que estava apaixonado por ela. Que ela lhe dava tudo que eu jamais dera. Que queria o divórcio. Uma vez divorciado, casaria com ela e, nesse ínterim, deixaria a Keeling & Philips, o mesmo fazendo Delphine. Os dois pretendiam mudar-se para o Norte e residir no Yorkshire, onde o pai dela lhe oferecera um posto em sua companhia.

“Devo dizer, em favor de Ambrose, que quando ele se dedicou a organizar sua nova vida, saiu-se muito bem. Foi tudo tão estudado, tão planejado e frio, um fato consumado tão perfeito que, na realidade, nada havia para dizer-lhe. Nada havia que eu quisesse dizer-lhe. Eu sabia que sua partida não fazia a menor diferença para mim. Sabia que estaria bem melhor por conta própria. Criaria meus filhos e cuidaria de minha casa. Concordei com tudo, ele se levantou da cama, desceu para o andar de baixo e eu continuei escovando meu cabelo, sentindo uma paz imensa”.

“Dias mais tarde, a mãe dele procurou -me; não por comiseração e nem para queixar-se ou acusar mas, simplesmente, para certificar-se de que, em vista da deserção de Ambrose, eu não impediria que as crianças a vissem ou vissem o pai. Respondi que meus filhos não eram propriedade minha, nada que eu pudesse dar ou reter, mas sim pessoas com direito próprio. Eles poderiam fazer o que quisessem, ver quem quisessem ver, que eu não os tolheria. Dolly ficou muito aliviada, porque embora nunca dedicasse muito tempo a Olívia e Noel, idolatrava Nancy, e Nancy a amava. As duas tinham a mente igual, tinham tudo em comum. Quando Nancy casou, foi Dolly quem providenciou seu grande casamento londrino e, por causa disto, Ambrose veio de Hudderstield para levá-la ao altar. Foi a única ocasião em que nos vimos, depois do divórcio. Ele havia mudado, tinha uma aparência de homem muito próspero. Engordara bastante, o cabelo ficara grisalho e tinha uma compleição muito vermelha. Recordo que, naquele dia, por algum motivo usava uma corrente de relógio em ouro, parecendo a viva imagem do homem que permanecera no Norte a vida inteira, nada mais fazendo além de ganhar dinheiro”.

“Depois do casamento, ele retomou a Huddersfield e nunca mais o vi. Morreu uns cinco anos depois. Ainda era um homem relativamente novo, de maneira que sua morte foi um choque terrível. Pobre Dolly Keeling, viveu muitos anos mais do que o filho e nunca se recuperou da dor de perdê-lo. Eu também lamentei. Creio que, com Delphine, ele finalmente havia encontrado a vida que desejava. Escrevi a ela, porém nunca me respondeu. Talvez julgasse demasiada presunção minha. Ou, então, simplesmente não sabia o que dizer em resposta”.

- E agora, vou mesmo fazer um pouco de chá!

Penelope levantou-se e ergueu a mão para firmar a travessa de tartaruga que lhe prendia o coque.

- Acha que estará bem aqui, enquanto preparo o chá? Está aquecido o suficiente? Gostaria que eu acendesse a lareira?

O Sr. Brookner respondeu que ficaria bem ali, que estava aquecido, não havendo necessidade de acender a lareira. Ela então o deixou, absorvido no exame de mais um esboço, e foi para a cozinha. Encheu a chaleira e a pôs para ferver, sentindo-se em paz consigo mesma, justamente como se sentira naquele anoitecer de verão, escovando o cabelo e ouvindo Ambrose dizer-lhe que ia embora para sempre. Disse para si mesma que isto devia ser como se sentiam os católicos, após se confessarem - limpos, livres e finalmente desobrigados. Estava grata a Roy Brookner por ter ouvido e também grata à Boothby's, por lhe ter enviado um homem não apenas profissional, mas igualmente humano e compreensivo.

Durante o chá com biscoitos de gengibre, eles novamente voltaram a falar de negócios. Os painéis seriam vendidos. Os esboços, catalogados e levados a Londres para avaliação. E “Os catadores de conchas?” Este, por enquanto, ficaria onde estava, acima da lareira, na sala de estar em Podmore's Thatch.

- O único empecilho sobre a venda dos painéis - comentou Roy Brookner - é o fator tempo. Como sabe, a Boothby's acabou de organizar uma grande venda de telas vitorianas, de maneira que não teremos outra, dentro de seis meses. Não em Londres. Talvez nossa galeria de arte em Nova York pudesse cuidar deles, porém eu precisaria saber quando estarão programando seu próximo leilão.

- Seis meses! Não quero esperar seis meses. Quero vendê-los agora!

Ele sorriu de sua impaciência.

- A senhora consideraria um comprador particular? Sem a concorrência de um leilão, talvez não encontrasse um preço tão bom. Estaria disposta a assumir o risco?

- O senhor pode descobrir-me um comprador particular?

- Há um colecionador americano, da Filadélfia. Veio a Londres expressamente para participar do leilão de As aguadeiras, mas perdeu para o representante do Museu de Belas-Artes de Denver. Ficou muito desapontado. Não possui nenhum Lawrence Stern, pois são quadros que aparecem muito raramente no mercado.

- Ele continua em Londres?

- Não sei ao certo. Eu poderia verificar. Estava hospedado no The Cormaught.

- Acha que ele desejaria os painéis?

- Sem dúvida. No entanto, a venda dependeria do quanto está disposto a oferecer.

- O senhor entrará em contato com ele?

- Naturalmente.

- E os esboços?

- A senhora decidirá. Valeria a pena aguardar alguns meses antes de vendê-los... dar-nos tempo para anunciá-los e despertar o interesse.

- Sim, eu compreendo. No caso dos esboços talvez fosse melhor esperar.

Assim ficou combinado. Ali mesmo. Roy Brookner começou a catalogar os esboços. Isto demorou algum tempo, mas, quando ele terminou e entregou a ela um recibo assinado. Tornou a colocá-los dentro da velha pasta que os guardara por tanto tempo, amarrando firmemente o barbante. Feito isto, ela o levou para fora da sala, os dois subiram a escada até o patamar e, gentilmente, Roy Brookner retirou os painéis da parede, deixando atrás deles apenas algumas teias de aranha e duas longas faixas de papel de parede não desbotado.

Fora da casa tudo foi colocado no esplêndido carro do visitante, os esboços no porta-mala, e os painéis, cuidadosamente embrulhados em uma manta axadrezada, depositados sobre o banco traseiro. Após acomodar tudo como pretendia, Roy Brookner saiu do carro e bateu a porta. Virou-se para Penelope.

- Foi um prazer, Sra. Keeling. E obrigado.

Os dois trocaram um aperto de mão.

- Fiquei muito feliz em conhecê-lo, Sr. Brookner. Espero que não o tenha entediado.

- Nunca estive menos entediado em minha vida! E, assim que tiver novidades, entrarei em contato com a senhora.

- Obrigada. E adeus. Faça uma boa viagem!

- Adeus, Sra. Keeling.

Ele telefonou no dia seguinte.

- Sra. Keeling? É Roy Brookner falando.

- Pois não, Sr. Brookner.

- O cavalheiro americano que lhe mencionei, o Sr. Lowell Ardway, não se encontra mais em Londres. Liguei para o The Cormaught e fui informado de que ele partiu para Genebra. Sua intenção é retornar para os Estados Unidos, diretamente da Suíça. Entretanto, tenho seu endereço em Genebra e escreverei hoje para ele, falando sobre os painéis. Tenho certeza de que, ao saber que estão disponíveis, voltará a Londres para vê-los. Contudo, talvez esperemos uma ou duas semanas.

- Posso esperar uma ou duas semanas. Apenas não suportaria esperar seis meses.

- Posso assegurar que não terá de esperar tanto. E no referente aos esboços, mostrei-os ao Sr. Boothby, que ficou imensamente interessado. Nada tão importante surgiu no mercado, durante anos.

- O senhor... - Parecia quase indelicado perguntar. - O senhor tem alguma idéia de quanto poderiam valer?

- Segundo minha avaliação, não menos de cinco mil libras cada.

Cinco mil libras! Cada um! Recolocando o fone no gancho, ela ficou parada, no meio de sua cozinha, tentando apreender a enormidade da soma. Cinco mil libras multiplicadas por quatorze davam...era impossível fazer a conta mentalmente. Encontrou um lápis e efetuou a soma em sua lista de compras. O total chegava a setenta mil libras. Penelope puxou uma cadeira e sentou-se porque, de repente, seus joelhos haviam ficado bambos.

Pensando bem, não era tanto a idéia da riqueza que a aturdia, mas sua reação a isso. A decisão de chamar o Sr. Brookner, de mostrar-lhe os esboços e de vender os painéis ia mudar sua vida. Um raciocínio simples, mas, ainda assim, demorava um pouco para acostumar-se a ele. As duas insignificantes e inacabadas pinturas de Lawrence Stern, que ela sempre amara, mas que nunca imaginara terem algum valor,agora estavam na Boothby's, esperando a oferta de um milionário americano. E o monte de esboços, escondidos e fora de sua mente durante anos, de repente estavam valendo setenta mil libras! Uma fortuna. Era como ganhar na loteria. Considerando seu alterado status. Penelope recordou a jovem ganhadora da loteria, aparecendo na televisão e vista por ela com espanto, despejando champanha na cabeça e gritando esganiçadamente, "Gastar, gastar, gastar!”

Era uma cena espantosa, como algo extraído de um maníaco conto de fadas. No entanto, ela agora se via mais ou menos na mesma situação e percebia - aqui estava a sua perplexidade - que isto não aturdia nem acabrunhava. Em vez disto, sentia-se invadida pela gratidão de uma pessoa aquinhoada com uma opulência inesperada. O maior presente que um pai ou mãe pode deixar para um filho é a independência desse pai ou mãe. Era o que havia dito para Noel e Nancy e sabia que isto era verdade, que a segurança propiciada pela independência não tinha preço. Além disso, havia as possibilidades de prazeres auto-indulgentes. Sim, mas o que eram prazeres? Penelope era inexperiente em extravagâncias, tendo poupado e feito valer cada penny conseguido em toda a sua vida de casada. Não sentia ressentimento nem inveja da largueza dos outros, era grata por ter conseguido criar e educar os filhos, mantendo a cabeça acima d'água. Somente após ter vendido a casa da Rua Oakley, pudera dispor de algum capital, mas este imediatamente havia sido investido com prudência -a fim de produzir uma renda modesta, que era gasta da maneira que ela mais apreciava. Em comida, vinho, recebendo os amigos. Havia também os presentes - nos quais era imensamente generosa - e, naturalmente, seu jardim.

Agora, se quisesse, podia renovar a casa de alto a baixo. Tudo quanto possuía era incrivelmente antigo e surrado, mas era assim que gostava das coisas. O velho Volvo tinha oito anos de idade e já o comprara de segunda mão. Talvez pudesse exibir-se em um Rolls-Royce porém nada havia de errado com o Volvo - ainda - e seria algo semelhante a sacrilégio, entulhar o porta-malas de um Rolls com sacos de turfa e vasos de cerâmica com plantas para o jardim.

Então, roupas. A verdade é que ela nunca se interessara por roupas, uma atitude mental imposta pelos longos anos de guerra e pela privação dos anos que se seguiram. Muitas de suas peças favoritas haviam sido adquiridas nas barraquinhas de roupas usadas, durante as quermesses da igreja de Temple Pudley. Além do mais, sua pelerine de marinheiro a mantivera aquecida no correr de quarenta invernos. Sempre poderia dar a si mesma um casaco de mink, porém jamais acalentara a idéia de usar uma peça confeccionada com uma pilha da pele de queridos animaizinhos mortos e, por outro lado, pareceria uma tola, caminhando pela rua da aldeia em uma manhã de domingo, apenas para recolher os jornais, envergando esmeradamente um casaco de mink. Os outros pensariam que perdera o juízo.

Poderia viajar. Entretanto aos sessenta e quatro anos e não estando (era forçoso enfrentar o fato) em seu melhor estado de saúde, ela se sabia velha demais para começar a cruzar o mundo por conta própria. Aqueles dias de prazenteiras viagens de carro, o Train Bleu

e paquetes haviam terminado. E a idéia de aeroportos estrangeiros, de disparar através do espaço em jatos supersônicos, jamais a tinha seduzido particularmente.

Não. Nada dessas coisas. Por enquanto, nada faria, nada diria e nada contaria a alguém. O Sr. Brookner chegara e se fora, sem que pessoa alguma soubesse de sua visita. Era melhor continuar agindo como se nada tivesse acontecido, até ter notícias dele novamente. Disse para si mesma que devia expulsá-lo da mente, mas constatou que era impossível. A cada dia, esperava ter notícias dele. A cada vez que o telefone tocava, corria para ele, como uma jovem ansiosa, esperando uma ligação do homem amado. Entretanto, ao contrário dessa jovem ansiosa, à medida que os dias passavam sem que nada acontecesse, ela permanecia tranqüila, imperturbável. Sempre havia o amanhã. Não tinha pressa. Cedo ou tarde, ele teria algo para lhe comunicar.

Enquanto isso, a vida continuava, e a primavera, em vários sentidos, estava no ar. O pomar brilhava com tenros narcisos, suas trombetas amarelas dançando à brisa. As árvores envolviam-se no verde tenro da folhagem nova e, nos canteiros abrigados, perto da casa, os goivos e poliantos abriam as faces aveludadas, enchendo o ambiente de nostálgico aroma. Danus Muirfield, com a horta recém-plantada, dera ao gramado o primeiro corte da estação, estando agora empenhado em cavar, limpar e afofar os canteiros que marginavam paredes e muros. A Sra. Placket ia e vinha, iniciara uma orgia de faxina da primavera e lavara todas as cortinas do quarto. Antonia as pendurara no varal, como estandartes. Sua energia era enorme e incumbia-se alegremente de qualquer tarefa que Penelope talvez não se preocupasse em fazer para si mesma, como ir de carro a Pudley e fazer toda a imensa compra semanal ou esvaziar o grande armário da cozinha e limpar com esfregão todas as prateleiras. Quando não estava ocupada dentro de casa, podia ser encontrada no jardim, erigindo uma treliça para arrimo das ervilhas-de-cheiro ou removendo dos vasos da entrada seus narcisos prematuros, para substituí-los por gerânios, fúcsias e nastúrcios. Se Danus estivesse lá, ela nunca era encontrada longe dele, e as vozes dos dois flutuavam através do jardim ou da horta, enquanto labutavam juntos. Quando os via, fazendo uma pausa para espiar de uma janela do andar de cima, Penelope se enchia de satisfação. Antonia era uma pessoa diferente daquela jovem tensa e exaurida, que Noel trouxera de Londres; havia perdido a pálida tristeza que a acompanhara de Ibiza, tendo também perdido as olheiras escuras. Seu cabelo reluzia, a pele desabrochava e, à sua volta, havia uma espécie de aura, indefinível mas, aos olhos experientes de Penelope, ainda assim, indiscutível.

Ela desconfiava de que Antonia se apaixonara.

- Acho que a melhor coisa do mundo é fazer algo construtivo em um jardim, em uma bela manhã. Isto faz uma combinação do melhor que existe. Em Ibiza, o sol era sempre tão quente, deixava as pessoas tão suadas e pegajosas, que não havia alternativa senão pular na piscina.

- Aqui não temos uma piscina - indicou Danus. - Enfim, imagino que sempre se possa pular no Windrush.

- Seria gélido, não? Enfiei os pés no rio outro dia, e foi terrível. Danus, você sempre será jardineiro?

- Por que a pergunta tão súbita?

- Sei lá... Estava só pensando. Você parece ter tanta coisa mais para trás... Estudou, viajou para a América, depois formou-se em Horticultura. Parece um desperdício, nunca mais fazer outra coisa além de plantar repolhos alheios e arrancar ervas daninhas para outras pessoas.

- Oh, mas nem sempre vou ficar fazendo isso, vou?

- Não vai? Então, o que pretende?

- Economizar, até juntar o suficiente para comprar um pedaço de terra, ter meu próprio terreno, plantar vegetais, vender plantas, bulbos, rosas, gnomos, tudo que alguém queira comprar.

- Um centro de jardinagem?

- Eu me especializaria em alguma coisa... rosas ou fúcsias, apenas para ser um pouquinho diferente dos outros.

- Isso não seria muito caro? Para começar, quero dizer?

- Claro. O preço da terra é alto, e ela teria que ser grande o suficiente, para tornar-se um empreendimento viável.

- Seu pai não poderia ajudá-lo? Apenas no começo?

- Poderia, se eu lhe pedisse. No entanto, prefiro começar à minha custa. Estou com vinte e quatro anos agora. Quando chegar aos trinta, é possível que já esteja em condições de me estabelecer.

- Seis anos de espera parecem uma eternidade. Eu desejaria agora.

- Aprendi a ser paciente.

- E o local? Quero dizer, onde teria seu centro de jardinagem?

- Não faz diferença. Onde quer que fosse necessário. Contudo, eu preferiria ficar neste extremo do país. Gloucestershire, Somerset...

- Acho que o melhor seria Gloucestershire. É tão bonito! E pense também no mercado. Todas aquelas pessoas ricas de Londres, comprando encantadoras casas de pedra dourada e querendo jardins cheios de benfeitorias... Você faria uma fortuna. Em seu lugar, eu ficaria aqui mesmo. Encontraria uma casinha e uns dois acres de terra. Eis o que eu faria.

- Bem, mas você não vai abrir um centro de jardinagem. Vai ser modelo.

- Somente se não encontrar outra coisa mais para fazer.

- Você é uma criatura engraçada. A maioria das garotas daria a vida por semelhante oportunidade.

- E isso não anularia o propósito?

- Além do mais, você não quereria passar a vida desenterrando nabos.

- Eu não plantaria nabos. Plantaria coisas deliciosas, como espigas de milho, aspargos e ervilhas. E não pareça tão cético. Sou muito boa nisto. Em Ibiza, nunca compramos um só vegetal. Plantávamos todos eles, além de frutas. Tínhamos laranjeiras e limoeiros. Papai costumava dizer que nada mais esplêndido do que um gim-tônica com uma rodela de limão colhido pouco antes. O sabor é muito diferente daqueles que são comprados.

- Suponho que poderia plantar limoeiros em uma estufa envidraçada.

- O interessante sobre limoeiros é que frutificam e florescem ao mesmo tempo. Assim, sempre estão bonitos. Danus, você nunca quis ser advogado, como seu pai?

- Houve uma época em que pensei nisso. Achei que seguiria as pegadas do velho. Só que, então, fui para a América e, depois disso, as coisas mudaram um pouco. Decidi passar a vida usando as mãos, em vez da cabeça.

- Ora, mas você usa a cabeça! Jardinagem exige muito pensamento, muito conhecimento e planejamento. E se tiver seu centro de jardinagem, na certa precisará fazer toda a contabilidade, providenciar compras e vendas, o pagamento de impostos... Para mim, isto é usar a cabeça. Seu pai decepcionou-se, por você não querer mais ser advogado?

- No começo, sim. Entretanto, discutimos o assunto e ele acabou concordando com meu ponto de vista.

- Não seria absolutamente terrível, um pai com quem não se possa conversar? O meu era perfeito. Eu podia falar de tudo com ele. Gostaria que você o tivesse conhecido. E nem posso mostrar-lhe meu querido Ca'n D'alt, porque agora alguma outra família estará morando lá. Danus, houve algo em especial que o levou a trocar de carreira? Aconteceu alguma coisa na América?

- Talvez.

- O que aconteceu tem a ver com o fato de você não dirigir um carro e nunca beber álcool?

- Por que pergunta isso?

- É que penso no caso algumas vezes. Apenas querendo saber.

- Isso a preocupa? Gostaria de que eu fosse como Noel Keeling, disparando em seu carro estrada acima e abaixo, querendo uma bebida sempre que a situação fica difícil?

- Não, eu não gostaria que você fosse como Noel. Se fosse, eu não estaria aqui, ajudando-o. Estaria espichada em uma espreguiçadeira, folheando uma revista.

- Então, por que não procura esquecer isso, deixar tudo como está? Veja aqui, você está plantando uma mudinha, não martelando um prego. Plante-a delicadamente, como se estivesse pondo um bebê na cama. Apenas comprima a terra em volta, nada mais. Ela precisa de espaço para crescer. Precisa de espaço para respirar.

Ela estava andando de bicicleta. Pedalando em roda livre, colina abaixo, entre sebes de fúcsias, carregadas de flores vermelhas e purpúreas. A estrada encurvava-se à frente, branca e empoeirada. Na distância, o mar era azul-safira. Havia uma sensação de manhã de sábado. Ela calçava sandálias. Chegou a uma casa, e era Carn Cottage, mas não era Carn Cottage, porque tinha um teto achatado. Papai estava lá, usando seu chapéu de aba larga, sentado em uma banqueta de dobrar, com o cavalete armado à sua frente. Não tinha artrite e dava longas pinceladas de cor na tela. Não ergueu os olhos quando ela chegou ao seu lado, mas disse, "Um dia eles virão, virão pintar o calor do sol e a cor do vento". Ela espiou por sobre a borda do teto, e era um jardim como em Ibiza, um jardim com piscina. Sophie nadava na piscina, para cá e para lá. Estava nua, os cabelos molhados e lisos como uma pele de lontra. Via-se a paisagem, lá do teto, porém não era a baía, era a Praia do Norte, de maré baixa, e ela estava ali, procurando, com um balde escarlate cheio de conchas enormes. Vieiras, mexilhões e cintilantes lumaches. Entretanto, ela não catava conchas, estava procurando algo, alguém mais; ele estava por ali, em algum lugar. O céu escureceu. Ela continuou andando através da areia que afundava, lutando conta o vento. O balde ficou insuportavelmente pesado, de maneira que o largou e deixou para trás. O vento trazia consigo uma névoa marinha que se enroscava sobre a praia como fumaça, e ela o viu caminhando, destacando-se da fumaça, vindo em sua direção. Vestia uniforme, mas tinha a cabeça nua. Ele disse, "Estive procurando por você", e lhe deu a mão, começaram a caminhar juntos, chegaram a uma casa. Cruzaram a porta, porém não era uma casa, mas a Galeria de Arte, nas ruas traseiras de Porthkerris. E papai estava lá novamente, sentado em um gasto sofá, no meio do piso vazio. Virando a cabeça, disse para eles, "Eu gostaria de ser jovem novamente, de poder ver tudo isto acontecendo".

Ela se encheu de felicidade. Abriu os olhos, e a felicidade permaneceu, o sonho era mais real do que a realidade. Podia sentir o sorriso em seu rosto, como se alguém o tivesse posto ali. O sonho esmaeceu, mas o senso de tranqüilo contentamento continuou. Satisfeitos, seus olhos abarcaram os detalhes penumbrosos do quarto. O lustroso da cabeceira de latão da cama, a forma agigantada do imenso guarda-roupa, as janelas abertas, com as cortinas movendo-se levemente ao fluxo do doce ar noturno.

Eu gostaria de ser jovem novamente. De poder ver tudo isto acontecendo.

De repente, ela se viu plenamente desperta e soube que não tornaria a adormecer. Empurrou as cobertas e saiu da cama, tateando com os pés pelos chinelos, esticando a mão para o robe. Na escuridão, abriu a porta e desceu para a cozinha. Acendeu a luz. Tudo estava aquecido e arrumado. Encheu uma panela com leite e a pôs para aquecer. Depois tirou uma caneca do aparador, colocou nela uma colherada de mel e a encheu até a borda com o leite quente. Mexeu a mistura. Levando a caneca, cruzou a sala de refeições e entrou na sala de estar. Acendeu a luz, que iluminou “Os catadores de conchas” e, à sua claridade suave, atiçou o fogo da lareira. Quando as chamas cresceram ela levou a caneca para o sofá, ajeitou as almofadas e aninhou-se em um dos cantos, com os pés dobrados sob o corpo. Acima dela, o quadro cintilava à meia-luz, brilhante como uma janela de vitral tendo o sol às suas costas. Aquele quadro era seu mantra pessoal, penetrante como um amuleto de hipnotizador. Ficou olhando, a concentração aguçada, sem pestanejar, esperando que o encantamento funcionasse. que a magia acontecesse. Encheu os olhos com o azul do mar e do céu, depois sentiu o vento salitrado; também sentiu o cheiro de algas e areia molhada; ouviu o grasnido das gaivotas, o tamborilar da brisa em seus ouvidos.

Ali, em segurança, ela podia permitir-se recordar as várias, muitíssimas ocasiões em sua vida, quando havia feito apenas isto - confinar-se, ficar sozinha, trancar-se com “Os catadores de conchas”. Assim se tinha sentado, de tempos em tempos, durante aqueles tristonhos anos em Londres, logo depois da guerra, atormentada, às vezes quase derrotada pela escassez, pela falta de dinheiro e por uma carência de afeição; pela inutilidade de Ambrose e uma aterradora solidão que, por algum motivo, não era preenchida pela companhia dos filhos. O mesmo ela fizera na noite em que Ambrose arrumara as malas, abandonara a família e partira para o Yorkshire, rumo à prosperidade, ao corpo jovem e cálido de Delphine Hardacre. Tornara a fazê-lo quando Olivia, a filha predileta, deixara a casa da Rua Oakley para sempre, a fim de morar sozinha e concentrar-se em sua brilhante carreira.

Você não deveria voltar lá. Nunca mais, todos lhe tinham dito. Tudo estará mudado. No entanto ela sabia que se enganavam, porque as coisas pelas quais mais ansiava eram elementares e, afortunadamente, a menos que o mundo explodisse, permaneceriam imutáveis.

“Os catadores de conchas”. Como um velho amigo de confiança, a constância do quadro a enchia de gratidão. E, da mesma forma que nos apossamos dos amigos, ela se apegara a ele, vivera com ele, recusando-se até mesmo a falar em desfazer-se dele. Agora, no entanto, de repente as coisas ficavam diferentes. Não havia simplesmente um passado, mas também um futuro. Havia planos a fazer, prazeres em reserva, toda uma nova perspectiva diante dela. Por outro lado, estava com sessenta e quatro anos. Não era uma soma de anos a desperdiçar, olhando nostalgicamente por sobre o ombro.

- Talvez eu não precise mais de você - disse em voz alta, sem que o quadro fizesse qualquer comentário. - Talvez seja hora de deixá-lo ir-se.

Penelope terminou seu drinque. Largou a caneca vazia, esticou a mão para a manta que jazia dobrada no encosto do sofá, aninhou-se sobre as almofadas macias e estendeu a manta sobre o corpo espichado, a fim de aquecê-lo. “Os catadores de conchas” far-lhe-ia companhia, ficaria vigiando, espiando para sua forma adormecida. Ela pensou no sonho, em papai dizendo, “Eles virão, virão para pintar o calor do sol e a cor do céu. Fechou os olhos. Eu gostaria de ser jovem novamente...”.

 

                                     RICHARD

No verão de 1943, como a maioria das pessoas, Penelope tinha a impressão de que a guerra já durava uma eternidade e, ainda mais, que duraria uma eternidade. Era um ramerrão de tédio – escassez de tudo e black-out, revezados por vislumbres ocasionais de horror, terror ou coragem, enquanto navios de guerra britânicos eram afundados no mar, o desastre cortejava as tropas aliadas ou o Sr. Churchill ia ao rádio, dizer a todos como estavam se saindo esplendidamente bem.

Era como as duas últimas semanas antes de a pessoa ter um filho, quando tem certeza de que o filho nunca virá e que ela ficará parecendo o Albert Hall pelo resto da vida. Ou estar no meio de um túnel ferroviário muito comprido e encurvado, com a luz do dia há muito deixada para trás e a pequena fagulha de claridade no final desse túnel ainda não entrevista. Um dia, a luz aparece. Quanto a isto, ninguém tinha a menor dúvida. Só que, nesse meio tempo, tudo era escuridão. A pessoa apenas seguia em frente, dando um passo cauteloso de cada vez, enfrentando os problemas diários de alimentar os outros, de mantê-los aquecidos, providenciar sapatos para as crianças e tentar impedir que a estrutura de Carn Cottage desabasse, por negligência e falta de reparos.

Penelope estava com vinte e três anos e, às vezes, com exceção do próximo filme semanal no pequeno cinema local, parecia não haver mais nada a esperar. Ir ao cinema se tomara verdadeiramente um culto para ela e Doris. Doris chamava aquilo de ir ver o filme, e as duas não perdiam um só deles. Inteiramente impedidas de selecionar, assistiam a tudo que aparecesse. simplesmente procurando escapar do tédio de sua existência, nem que por uma ou duas horas. No final da sessão, após terem permanecido devidamente empertigadas e ouvindo "Deus salve o Rei”, tocado em um disco rachado saíam aos tropeções para a rua escura como breu. ainda tomadas de excitação ou chorosas de sentimentalidade, e voltavam para casa, caminhando de braços dados, rindo fracamente, tropeçando nas desigualdades da calçada e subindo, à claridade das estrelas, as ruas íngremes que levavam a Carn Cottage.

Como Doris comentava, invariavelmente, isso era uma boa compensação.

E era mesmo, sem dúvida. Penelope supunha que aquele purgatório cinzento que era a guerra terminaria algum dia, mas era difícil acreditar nisto, mais difícil ainda imaginá-lo. Ser capaz de comprar carne, a geléia de laranja; não ter mais medo de ouvir os boletins noticiosos; deixar as luzes passarem pelas janelas e varar a escuridão. sem o risco de um bombardeio casual ou uma torrente de impropérios do Coronel Trubshot. Ela pensava em voltar à França, seguir de carro para o sul, em direção às mimosas desabrochadas e ao sol quente. Também pensava em sinos badalando de torres de igrejas silenciosas, não para anunciar a invasão, mas para comemorar a Vitória.

Vitória. Os nazistas derrotados, a Europa libertada. Prisioneiros de guerra, amontoados em acampamentos por toda a Alemanha, voltando para casa. Militares desmobilizados, famílias reunidas. Esta última hipótese era o pavor de Penelope. Outras esposas rezavam pelo seguro retomo dos maridos e viviam para isso, porém ela sabia que não se incomodaria muito, se nunca mais tomasse a ver Ambrose. Não se tratava de insensibilidade; apenas, à medida que os meses passavam, sua recordação dele se tornara, de algum modo menos e menos provável. Ela queria que a guerra terminasse - somente um lunático desejaria outra coisa - porém não sentia entusiasmo à idéia de iniciar tudo novamente com o marido. Um marido que mal conhecia, que praticamente esquecera e cujo casamento teria que tornar viável.

Às vezes, quando se sentia desanimada, brotava em seu sub-consciente uma vergonhosa esperança, o pensamento de que algo acontecesse a Ambrose. Não que ele fosse morto, é claro. Isto era impensável. Ela não desejava a morte de ninguém, em particular de alguém tão jovem, tão atraente e amando tanto a vida como ele. Pensava apenas que, entre as batalhas no Mediterrâneo, as patrulhas noturnas e caçadas aos submarinos alemães, ele podia chegar a algum porto e encontrar alguma jovem - talvez uma enfermeira ou oficial Wren, infinitamente mais atraente do que a esposa – por quem se apaixonasse perdidamente. Então, no correr do tempo, essa jovem tomaria seu lugar ao lado dele, preenchendo os mais loucos sonhos de felicidade de Ambrose.

Sem dúvida, ele lhe escreveria sobre esse envolvimento amoroso.

Cara Penelope,

Odeio fazer isto, porém só existe uma maneira de contar-lhe. Encontrei outra. O que aconteceu entre nós é profundo demais para ser desfeito. Nós nos amamos... etc., etc...

A cada vez que recebia uma das infreqiientes cartas dele – em geral, aerogramas impessoais, uma página reduzida ao tamanho e formato de um instantâneo fotográfico - seu coração se enchia da leve esperança de que, por fim, seria a carta esperada. No entanto, sempre se desapontava. A leitura das poucas linhas garatujadas, dando notícias de amigos de caserna que ela jamais conhecera ou descrevendo alguma festa em outro navio qualquer, indicava que nada mudara. Continuava casada com ele. Ambrose continuava sendo seu marido. Ela tornava a enfiar o aerograma no envelope e mais tarde - talvez dias mais tarde - sentava-se para responder, escrevendo- lhe uma carta ainda mais seca do que a recebida. "Tivemos chá com a Sra. Penbert. Ronald se juntou aos Escoteiros do Mar. Nancy já sabe desenhar uma casa."

Nancy. Nancy não era mais um bebê e, à medida que crescia e se desenvolvia, Penelope ficava fascinada pela filha, além de inesperadamente maternal. Vê-la transformar-se de bebê em garotinha era como ver um botão desabrochar em flor - um processo lento, porém delicioso. Conforme predissera seu pai, ela era um Renoir, rosa e dourado, com espessas pestanas escuras e dentinhos perolados, tendo permanecido a queridinha de Doris, a queridinha da maioria dos amigos de Doris. Por vezes, Doris saía com ela em sua cadeirinha de empurrar, quando comparecia a alguma reunião. Nancy ia usando em triunfo um macacãozinho ou roupinha de festa ganhos de alguma jovem mãe, para cujo filho tais peças haviam ficado pequenas. A roupa seria lavada e imaculadamente passada, com Nancy ataviada em sua nova indumentária. Nancy adorava roupas novas e bonitas. “Ela não é uma belezinha? exibia Doris. Nancy sorria, ao sentir-se elogiada, alisando a saia do vestido novo com dedinhos gorduchos e apreciativos”.

Em tais momentos, ela era a viva imagem de Dolly Keeling, porém não chegava a estragar o prazer e divertimento de Penelope.

- Você é uma pequena senhorita - dizia para a filha, tomando-a nos braços e abraçando-a. - Uma verdadeira senhorita! Manter Nancy e os meninos enroupados, assim como todos de casa alimentados, ocupava praticamente todos os momentos dela e de Doris. As rações haviam encurtado a proporções hilariantes. Todas as semanas, Penelope descia as ruas íngremes para a cidade até a mercearia do Sr. Ridley. Estava "registrada" com o Sr. Ridley. Uma vez lá, exibia os talões de racionamento da família e, em troca, eram-lhe vendidas pequenas quantidades de açúcar, manteiga, margarina, gordura, queijo e bacon. Ainda pior era o racionamento da carne, porque exigia uma fila na calçada durante horas, sem que se tivesse qualquer dela sobre o destino de tal fila. Ao serem comprados vegetais ou frutas no verdureiro, eram todos colocados na sacola tecida, como tinham vindo, com restos de terra e tudo, já que não havia papel para sacolas de compras e sendo considerado impatriótico solicitar-se alguma.

Nos jornais surgiam receitas estranhas, elaboradas pelo Ministério da Alimentação, receitas que seriam não apenas econômicas, mas também nutritivas e deliciosas. A torta de salsicha do Sr. Woolton, feita de massa quase sem gordura e pequenas amostras de carne enlatada. Um certo bolo, tornado umedecido com cenoura ralada, e um prato de caçarola, consistindo quase que inteiramente de batata. ECONOMIZE PÃO, COMA BATATA EM SEU LUGAR, exortavam os posters, da mesma forma como eram todos exortados a TRABALHAR PELA VITÓRIA e advertidos de que COMENTARIOS DESCUIDADOS CUSTAVAM VIDAS. O pão era trigo que, com imenso perigo para navios e vidas, tinha de ser importado do outro lado do Atlântico. O pão branco há muito desaparecera das prateleiras das padarias, substituído por algo denominado Pão Nacional, de coloração cinza-acastanhada e fibras secas em sua massa. Penelope o chamava de pão de tweed e fingia apreciá-lo, mas seu pai comentava que tinha exatamente a mesma cor e textura do novo papel sanitário. Achando que o Ministro da Alimentação e o Ministro de Suprimentos - os dois cavalheiros presumivelmente responsáveis por tais necessidades da vida - de alguma forma tinham ficado com suas linhas cruzadas.

Era tudo muito difícil mas, ainda assim, em Carn Cottage eles viviam melhor do que a maioria. Ainda tinham os patos e galinhas de Sophie e faziam pleno uso dos abundantes ovos produzidos por aquelas prestimosas aves. Também tinham Ernie Penberth. Ernie era um homem de Porthkerris, que morara a vida inteira em Doumalong. Seu pai era o verdureiro da cidade, fazendo carregamentos e entregas em uma carroça puxada a cavalo; a mãe dele, a Sra. Penberth, era uma temível personalidade, pilar da Associação de Senhoras e regular freqüentadora da igreja. Quando adolescente, Ernie tivera tuberculose e ficara dois anos no sanatório de Tehidy, mas, após recuperar-se, fora empregado por Sophie nos termos mais casuais, aparecendo quando havia necessidade de executar tarefas variadas na pequena propriedade ou se a horta e o jardim exigiam trabalhos mais pesados com a enxada. Sua aparência não chegava a impressionar, pois era de estatura baixa e pele amarelada. Devido à doença, fora dispensado de prestar serviços no Exército e, desta maneira, em vez de se tornar soldado, ficara trabalhando na terra, ajudando um fazendeiro em dificuldades, cujos filhos tinham sido convocados. Entretanto, em qualquer momento de folga de sua árdua labuta, ele se dedicava a dar sua ajuda à pequena família em Carn Cottage. No correr dos anos, Ernie se tornara mais e mais indispensável, pois se revelara um homem com boa mão para qualquer tarefa. Não apenas plantava legumes magníficos, como consertava muros e aparadores de grama, descongelava encanamentos e colocava fusíveis. Podia até torcer o pescoço de uma galinha, quando ninguém mais na casa sentia coragem de condenar à morte alguma fiel e velha ave, após tê-los abastecido de ovos durante anos, mas agora servindo apenas para a panela.

Quando os alimentos ficaram realmente escassos, e a ração de carne reduziu-se a uma rabada de vaca para seis pessoas, Ernie, por alguma espécie de mágica, sempre aparecia em socorro, chegando à porta dos fundos com um coelho ou uma penca de pombos silvestres que matara, às vezes duas cavalinhas que tinha pescado. Nesse meio tempo, Penelope e Doris faziam o possível para injetar alguma variedade nas refeições. Foi nessa época que Penélope adquiriu um hábito que a acompanharia pelo resto da vida, que consistia em levar uma sacola, balde ou cesta, sempre que saía para uma caminhada. Nada era insignificante demais para ser examinado, colhido e levado para casa. Um repolho caído de uma carroça era conduzido a Carn Cottage em triunfo, a fim de se tomar a base de um nutritivo prato de verduras ou sopa. Cercas vivas eram reviradas em busca de amoras-pretas, frutos de roseira ou bagas de sabugueiro, e os prados ainda molhados de orvalho, vasculhados manhã cedo à procura de cogumelos. Eles levavam para casa raminhos secos e cones de pinheiro para acender lareiras, galhos caídos, toras atiradas à praia pelo mar, que seriam cortadas como lenha – qualquer coisa queimável, que mantivesse quente a água e aceso o fogo da lareira da sala de estar. A água quente era especialmente preciosa. Não eram permitidos banhos com profundidade além de dez centímetros - papai pintara uma espécie de linha delimitadora, acima da qual nenhuma pessoa tinha permissão para encher a banheira. Além disso, haviam adquirido o econômico hábito de fazer fila para a mesma água de banho: primeiro as crianças e depois os adultos, os ocupantes finais ensaboando-se furiosamente, antes que a água esfriasse.

As roupas eram outro problema vexatório. Em sua maioria, os cupons de racionamento para roupas eram destinados a vestimentas das crianças e substituição de lençóis e cobertas já velhos e gastos, nada sobrando para necessidades pessoais. Doris, que apreciava roupas, enfrentava com isto uma grande frustração, mas estava sempre remodelando para si mesma alguma peça nova de uma velha, encompridando uma bainha ou reformando um vestido de algodão como blusa. Certa vez, transformou uma sacola azul de lavanderia em saia camponesa, com suspensórios.

- Ficou com as palavras ROUPA BRANCA aparecendo na frente - observou Penelope, quando Doris lhe mostrou a saia para sua aprovação.

- Oh, talvez os outros pensem que fiz de propósito.

Penelope não ligava muito para a própria aparência. Usava suas roupas velhas e, quando se rasgavam em tiras, vasculhava os guardados de Sophie, apoderando-se de qualquer coisa que ainda encontrasse pendurada nos armários.

- Como pode fazer isso? - perguntava Doris, achando que as roupas de Sophie eram sagradas, e talvez tivesse razão.

Penelope, entretanto, ficava impassível. Enfiava-se em um cardigã de lã que pertencera à mãe e não permitia a si mesma a menor sombra de sentimentalismo.

Na maior parte do tempo ela ficava de pernas nuas, mas, ao soprar o frio vento leste em janeiro, voltava a usar as grossas meias pretas que restavam dos seus dias nas WRENS. Quando seu surrado capote finalmente desintegrou-se, ela cortou um buraco no centro de uma velha manta para carro (uma manta escocesa axadrezada, com franja de lã) e passou a usá-la como poncho.

O pai comentou que ela parecia uma cigana mexicana com o poncho, mas sorria ao falar, satisfeito pela iniciativa da filha. Naqueles dias, Lawrence não sorria com muita freqüência. Desde a morte de Sophie, havia ficado imensamente velho e frágil. Por algum motivo, seu antigo ferimento na perna, produzido na Primeira Guerra Mundial, começara a incomodar. A temperatura fria e úmida do inverno provocava-lhe muitas dores e ele passara a caminhar com uma bengala. Estava encurvado, emagrecera assustadoramente, as mãos deformadas tinham ficado curiosamente lívidas e sem vida, como as de um homem já morto. Agora, incapaz de fazer grande coisa na casa e no jardim, levava a maior parte do tempo enluvado e embrulhado em mantas, sentado junto à lareira da sala de estar ou escrevendo cartas com os dedos doloridos e vacilantes, dirigidas a velhos amigos residentes em outras partes do país. Às vezes, quando o sol brilhava, e o mar estava azul, com dançantes ondas coroadas de branco, ele anunciava que gostaria de respirar um pouco de ar fresco. Então, Penelope apanhava-lhe a pelerine, o chapéu de abas largas e a bengala, descendo em seguida com ele as ruas íngremes e becos, de braços dados, até o coração da cidadezinha. Caminhavam ao longo do muro do porto, espiando os barcos de pesca e as gaivotas, talvez indo até o "The Sliding Tackle" para beber alguma coisa que o dono produzisse debaixo de seu balcão; se nada houvesse a produzir, ele enchia copos de cerveja aguada e morna. Em outras ocasiões, se Lawrence se sentia forte o suficiente, os dois caminhavam até a Praia do Norte e até o velho estúdio, agora trancado e raramente visitado. Quando não, tomavam a tortuosa alameda que conduzia à Galeria de Arte, onde ele gostava de sentar-se e ficar contemplando a coleção de telas - suas e dos amigos - ali reunidas de algum modo, perdido nas silenciosas e solitárias recordações de um velho.

Em agosto, no entanto, quando Penelope já se conformara com o fato de que nada excitante jamais tomaria a acontecer, aconteceu algo.

Foram os meninos, Ronald e Clark, que deram início aos comentários especulativos. Voltaram da escola tomados de fundo ressentimento, ao terem perdido o jogo de futebol da tarde, pois, segundo parecia, não tinham mais permissão para usar o acidentado campo da cidade, no topo da colina. Juntamente com dois dos melhores pastos de Willie Pendervis, esse campo havia sido requisitado e cercados os três locais com quilômetros de cercas de arame farpado. A entrada era proibida a todos. O motivo disto foi causa de muita discussão: uns diziam que seria um arsenal, em prontidão para a Segunda Frente, outros alegavam tratar-se de um acampamento para prisioneiros de guerra, havendo ainda quem opinasse por uma potente estação radiotransmissora, para enviar mensagens secretas em código ao Sr. Roosevelt.

Resumindo, Porthkerris fervilhava de boatos.

Foi Doris a portadora da próxima e misteriosa manifestação de atividade bélica. Voltando de um passeio com Nancy, viera pela rua principal e chegara a Carn Cottage estourando de novidades.

- Aquele velho hotel White Caps, aquele que levou meses vazio... Bem, agora está todo reformado. Pintado e consertado, reluzindo como moeda nova. O estacionamento ficou entulhado de caminhões e daqueles jipes americanos. Há um esplendoroso comando da Marinha Real, montando guarda no portão. É verdade! São homens da Marinha Real. Vi o distintivo no quepe. Imagine só! Vai ser divertido termos alguns soldados por aqui...

- Homens da Marinha Real? Afinal, o que viriam fazer aqui?

- Talvez sejam preparativos para invadir a Europa. Será que é o começo da Segunda Frente?

Penelope achou improvável tal possibilidade.

- Invadirem a Europa, partindo de Porthkerris? Oh, Doris, todos acabariam afundando, quando tentassem contornar Land's End!

- Bem, a verdade é que tem que ser alguma coisa!

Então, segundo parecia, Porthkerris perdia seu quebra-mar do norte, da noite para o dia. Mais emaranhados de arame farpado surgiram, montados através da rua do porto, passando por "The Sliding Tackle", e tudo além, incluindo-se o Mercado de Peixe e o galpão do Exército da Salvação, foi declarado propriedade do Almirantado. Os atracadouros de águas fundas, no final do quebra-mar, foram expurgados dos barcos de pesca, estes substituídos por cerca de uma dúzia de pequenas barcaças de transporte de tropas. Tudo isto era discretamente guardado por um punhado de comandos da Marinha Real, trajando uniformes de combate e bonés verdes. Sua presença na cidade provocou certa comoção, mas, ainda assim, ninguém atinava com uma explicação racional sobre o que acontecia.

Foi somente em meados do mês que finalmente ficaram sabendo. Tinha havido um período de tempo perfeito, quente e ventoso. Naquela manhã em especial, Penelope e Lawrence haviam saído de dentro de casa, ela para sentar-se nos degraus da porta e debulhar ervilhas para o almoço, ele reclinando-se em uma espreguiçadeira sobre o gramado, com o chapéu puxado sobre os olhos, a fim de protegê-los da claridade. Enquanto permaneciam ali sentados, em amistoso silêncio, um som lhes chegou aos ouvidos - o portão dos fundos, sendo aberto e fechado. Ambos ergueram os olhos e, pouco depois, observavam o General Watson-Grant subindo os degraus de pedra, por entre as sebes de fúcsias.

Embora o Coronel Trubshot fosse o encarregado da Precaução Antiaérea (PAA), o General Watson-Grant comandava a Guarda Nacional local. Lawrence detestava o Coronel Trubshot, porém sempre tinha tempo de sobra para o general que, embora houvesse passado a maior parte do seu tempo de vida militar designado para Quetta e em escaramuças com os afegãs, quando reformado deixara para trás essas atividades bélicas, para absorver-se em empreendimentos pacíficos, pois era excelente jardineiro e dono de considerável coleção de selos. Neste dia, não usava seu uniforme da Guarda Nacional, mas um conjunto creme para treinamento, certamente confeccionado em Delhi, bem como um chapéu-panamá que tinha uma desbotada faixa preta de seda. Levava uma bengala e, quando ergueu os olhos e viu que Penelope e Lawrence o esperavam, levantou-a em um cumprimento.

- Bom-dia! Mais um dia encantador!

Era um homem baixote, seco como um chicote, com um bigode hirsuto e pele cor de couro, legado dos anos passados na fronteira noroeste. Lawrence o viu aproximar-se, sentindo prazer com a inesperada visita. O general só aparecia de quando em quando, mas era sempre bem-vindo.

- Não estou interrompendo, estou?

- De maneira alguma! Estamos apenas apreciando o sol. Perdoe-me se não me levanto. Penelope, traga outra cadeira para o general.

Usando seu avental de cozinha e com os pés descalços, ela se levantou, deixando a um lado a peneira com as vagens de ervilhas.

- Bom-dia, General Watson-Grant.

- Ah, Penelope... Que bom ver você, minha querida! Ocupada com a comida? Eu deixei Dorothy catando feijões.

- Aceitaria uma xícara de café?

O general considerou a oferta. Fizera uma longa caminhada e não era particular apreciador de café, preferindo gim. Lawrence sabia disto, e fez o significativo gesto de consultar o relógio.

- Meio-dia. Sem dúvida, seria bom algo mais forte. O que temos em casa, Penelope?

Ela riu.

- Não creio que haja muita coisa, mas vou dar uma espiada.

Ela entrou em casa, escura após a claridade ofuscante do exterior. No aparador da sala de refeições, encontrou duas garrafas de Guimess, copos e um abridor. Colocou tudo em uma bandeja que levou para fora e depositou nos degraus da porta. Depois retornou para levar a cadeira do general. Penelope ajeitou a cadeira para ele, e o general se sentou agradecidamente, inclinado para a frente, com os joelhos ossudos salientando-se, e as calças apenadas subindo um pouco, assim revelando tornozelos angulosos, envoltos em meias amarelas e botas rústicas, reluzentes como castanhas.

- Isto, sim, é Vida!- comentou.

Penelope tirou a tampa de uma garrafa e serviu-lhe a bebida.

- Infelizmente, é Guirmess. Há meses não temos gim...

- Está bem assim. Quanto ao gim, terminamos nossa ração faz cerca de um mês. O Sr. Ridley prometeu-me uma garrafa, assim que receber seu próximo carregamento, mas só Deus sabe quando será. Bem... saúde!

Ele sorveu metade do copo, no que parecia um só gole. Retornando às ervilhas, Penelope ficou ouvindo enquanto os dois idosos homens trocavam perguntas sobre as respectivas saúdes e faziam alguns comentários e mexericos sobre o tempo e a situação geral da guerra. Entretanto, ela estava certa de que não era esse o motivo da visita do general e, quando houve uma pausa na conversa, decidiu intrometer-se.

- General Watson-Grant, tenho certeza de que o senhor é o único capaz de dizer-nos o que acontece em Porthkerris. O campo de futebol fechado, o porto interditado, e os homens da Marinha Real vindo para cá... Todos procuram adivinhar o motivo, mas ninguém sabe. Ernie Penberth é nossa fonte de informações costumeiras, mas está ocupado na lavoura e há três semanas que não o vemos.

- De fato - respondeu o general - eu sei.

- Não nos diga que é segredo - disse Lawrence rapidamente.

- Na verdade, há semanas que estou a par, porém tudo tem sido mantido em sigilo. Contudo, agora posso contar-lhes. Trata-se de um exercício de treinamento. Escalada de penhascos. Os homens da Marinha Real são os instrutores.

- E quem irão instruir?

- Uma companhia de Rangers dos Estados Unidos.

- Rangers dos Estados Unidos? Quer dizer que vamos ser invadidos por americanos?

O general pareceu divertido.

- Antes americanos do que alemães!

- O campo foi destinado aos americanos? – perguntou Penelope.

- Exatamente.

- Os Rangers já chegaram?

- Ainda não. Creio que ficaremos sabendo quando eles vierem. Pobres diabos... Provavelmente levaram a vida inteira nas pradarias ou planícies do Kansas, nunca viram o mar antes. Imaginem, serem designados para Porthkerris e então convidados a escalar os Penhascos Boscarben!

- Os Penhascos Boscarben? - Penelope ficou estonteada. - Não posso imaginar nada pior do que alguém aprender a escalá-los. Os penhascos são a pique, têm quase trezentos metros de altura.

- Suponho que seja essa a idéia geral - disse o general. - No entanto, concordo com você, Penelope. Só em pensar nisso, fico tonto. Enfim, antes eles do que eu, pobres e miseráveis ianques!

           Penelope sorriu. O general nunca ligava muito para suas palavras, sendo esta uma das coisas que mais apreciava nele.

- E quanto às barcaças? - perguntou Lawrence.

- São para transporte. Contornarão os penhascos com elas, pelo mar. Quase posso apostar que todos estarão passando mal com o balanço das ondas, antes mesmo de chegarem ao pé dos penhascos.

Penelope lamentou ainda mais os pobres e jovens americanos.

- Eles se perguntarão o que os atingiu. Além disso, o que farão com seu tempo de folga? Porthkerris não é precisamente um centro de animada vida social, e "The Sliding Tackle" não é o mais esfuziante pub do mundo. Por outro lado, não há ninguém aqui. Todos que eram jovens se foram. Agora, contamos apenas com mulheres separadas dos maridos, crianças e velhos. Como nós.

- Doris ficará eufórica - observou Lawrence. – Soldados americanos, todos falando como artistas de cinema, serão uma mudança e tanto!

O general riu.

- Sempre é um problema saber-se o que fazer com um bando de soldados alvoroçados. Entretanto, depois que tiverem subido e descido os Penhascos Boscarben umas duas vezes, acho que não terão muita energia sobrando para... - Ele fez uma pausa, procurando uma palavra aceitável. - Vagabundear - foi tudo o que lhe ocorreu.

Agora, Lawrence é que riu.

- Considero tudo isto muito excitante. - Ele teve uma repentina e brilhante idéia. - Vamos espiar, Penelope. Agora que sabemos do que se trata, iremos até lá, ver com nossos olhos. Iremos esta tarde!

- Oh, papai... Não há nada para ver!

- Há muita coisa! Um bocado de sangue novo rodando por aqui! Podemos aceitar o que estiver para acontecer, desde que não seja uma bomba extraviada. Bem, general, sua bebida terminou...tome a outra metade.

O general considerou a proposta. Penelope disse prontamente:

- Não há mais. Estas foram as duas últimas garrafas.

- Sendo assim - o general depositou o copo vazio na grama, junto a seus pés - acho que vou andando. Vejamos o que Dorothy conseguiu preparar para se comer. - Ergueu-se da cadeira-espreguiçadeira bamboleante, com certa dificuldade. - Foi esplêndido. Muito refrescante.

- Obrigado por ter vindo. E por informar-nos do que há.

- Achei que gostariam de saber, embora certamente já se estivessem questionando sobre toda essa movimentação. Faz com que fiquemos mais esperançosos, não? Como se pudéssemos estar engatinhando para a conclusão desta violenta guerra. - Ele levou a mão à aba do chapéu. - Adeus, Penelope.

- Adeus. Dê lembranças minhas para sua esposa.

- Eu darei.

- Vou acompanhá-lo até o portão - disse Lawrence.

Os dois caminharam juntos. Espiando-os enquanto desciam o caminho do jardim, Penelope comparou-os a dois velhos cães. Um dignificado São Bernardo e um pequeno, peludo Jack Russell. Eles chegaram aos degraus e, com algum cuidado, começaram a descê-los. Penelope inclinou-se para recolher a panela de ervilhas debulhadas e a peneira de cascas. Levaria tudo para dentro e encontraria Doris, a fim de repetir-lhe tudo que o General Watson-Grant havia contado para ela e Lawrence.

- Americanos! - Doris mal podia acreditar na boa sorte de ambas. - Americanos em Porthkerris! Oh, graças a Deus por isso, finalmente, teremos um pouco de vida por aqui... Americanos! - Ela repetiu a mágica palavra. - Bem, andamos imaginando um bocado de coisas curiosas, mas nunca pensamos em americanos...

A visita do General Watson-Grant teve, para Lawrence, o efeito de uma injeção no braço. Durante o almoço, todos não falaram de outra coisa e quando Penelope emergiu da cozinha, após retirar os pratos da mesa e lavá-los, já encontrou o pai à sua espera, vestido para atividade ao ar livre, com um cachecol escarlate enrolado no pescoço. Usava o chapéu e as mitenes, estava pacientemente sentado, reclinado contra a cômoda do vestíbulo, as mãos descansando no castão de chifre de sua bengala.

- Papai...

- Já podemos ir.

Penelope tinha mil coisas a fazer. Verduras a picar, sementeiras a preparar, grama para cortar e uma pilha de roupas a serem passadas.

- Você quer mesmo ir?

- Eu disse que queria, não disse? Disse que queria ir lá para uma espiada.

- Bem, vai ter que esperar um momento, enquanto encontro sapatos para calçar.

- Vá apanhá-los, Então. Não temos o dia inteiro!

Era exatamente o que eles tinham, porém Penelope nada comentou. Voltou à cozinha, disse a Doris que iam sair, deu um beijo rápido em Nancy e correu ao andar de cima, para calçar tênis, lavar o rosto, escovar o cabelo e amarrá-lo para trás, com uma velha echarpe de seda. Apanhou um cardigã em uma gaveta, amarou-o em tomo dos ombros e tornou a descer.

Lawrence continuava como ela o deixara, mas ao vê-la aparecer, levantou-se pesadamente.

- Você está linda, meu bem.

- Oh, papai, obrigada!

- Muito bem, a caminho, para inspecionar os militares!

Assim que saíram. Penelope ficou satisfeita com a idéia do pai, porque era uma tarde perfeita, brilhante e azul, com a maré enchendo e a baía coberta de jatos de espuma alva. Trevose Head envolvia-se em brumas, porém a brisa era fresca, com cheiro salitrado. Chegando à estrada principal, eles a cruzaram e ficaram parados um momento, contemplando o paredão semelhante a um contraforte, que formava parte do penhasco. Então espiaram para os tetos, jardins íngremes e alamedas torcidas que levavam a uma pequena estação ferroviária, descendo depois para a praia. Antes da guerra, em agosto a praia estaria apinhada de gente, mas agora mostrava-se quase deserta. Os rolos de arame farpado, erigidos em 194O, continuavam entre um trecho verde jante do campo de golfe e a areia, porém havia uma passagem aberta no centro, através da qual um punhado de famílias tomava a direção da praia, com crianças correndo, gritando ansiosas pela água, e cachorros caçando as gaivotas, ao longo da borda das ondas. Muito abaixo, abrigado do vento, via-se um pequeno jardim murado, salpicado de rosas cor-de-rosa, com uma velha macieira e uma palmeira sacolejando as folhas secas ao vento.

Um pouco depois, eles recomeçaram a caminhar, descendo a encosta da colina. A rua encurvou-se e deixou à mostra o Hotel White Caps, uma casa de pedra isolada em uma fileira de edificações similares, com maciças janelas abauladas dando para a baía. Tinha ficado vazia e dilapidada por algum tempo, mas agora podiam ver que fora renovada com uma camada de tinta branca, parecendo elegantemente arrumada. Os altos gradis de ferro que cercavam o estacionamento para carros também tinham sido pintados, e o pátio surgia povoado de caminhões e jipes cáqui. No portão aberto, um jovem fuzileiro montava guarda.

- Bem - disse Lawrence - parece que Doris acertou desta vez.

Chegaram mais perto. Viram o mastro branco com a bandeira agitando-se ao vento. Degraus de granito escovados recentemente subiam para a porta principal, cintilando ao sol. Eles pararam para espiar. O jovem marinheiro, de guarda na beira da calçada, olhou impassível para eles.

- Acho melhor irmos andando - observou Lawrence, após um momento - do contrário, seremos enxotados. como dois transeuntes mexeriqueiros.

Entretanto, antes que se pudessem afastar, do interior do prédio brotou um surto de atividade. A porta interna envidraçada foi aberta e surgiram duas figuras uniformizadas. Um major e um sargento. Desceram os degraus com um belo repicado militar de pés calçados em botas, cruzaram o cascalho e entraram em um dos jipes. O sargento dirigia. Ligou o motor. recuou e fez a volta. Quando passaram pelo portão, o jovem marujo de guarda lhes fez continência, e o oficial devolveu o cumprimento. Emergindo para a rua principal, eles pararam por um segundo mas, não havendo trânsito, imediatamente o jipe manobrou e desceu a colina na direção da cidade, a certa velocidade, gerando uma boa dose de alarido. Penelope e o pai viram o jipe desaparecer além do encurvado terraço de casas silenciosas. Quando o som do motor morreu. Lawrence disse:

- Muito bem, vamos andando.

- Aonde iremos?

- Agora, ver as barcaças de desembarque, claro. Depois iremos à Galeria. Há semanas que não vamos lá.

A Galeria. Isto significava dar adeus a quaisquer outros planos pelo resto da tarde. Pronta para objetar, Penelope, se virou para ele, mas viu os escuros olhos do pai brilhando com a perspectiva do prazer e não teve coragem de estragar-lhe a alegria.

Sorriu, assentindo, depois passou a mão por seu braço.

- Tudo bem. As barcaças e depois a Galeria. Só que iremos bem devagar. Não faz sentido ficarmos exaustos.

Mesmo em agosto, a Galeria era gelada. As espessas paredes de granito mantinham fora dali o calor do sol, e as janelas altas permitiam a entrada de todas as rajadas de vento. Além disso, o piso era forrado de ladrilhos e não havia qualquer forma interna de aquecimento. Neste dia, o vento que soprava em golfadas da Praia do Norte, de tempos em tempos arremetia contra o prédio, fazendo a estrutura da clarabóia do norte estremecer e chocalhar. A Sra. Trewey, de plantão ao lado da porta, sentava-se a uma velha mesa de papelão forte, cheia de catálogos e cartões postais, tendo uma manta passada em torno dos ombros e um pequeno fogareiro elétrico aquecendo-lhe as canelas.

Penelope e Lawrence eram os únicos visitantes. Sentaram-se lado a lado no comprido e vetusto sofá de couro que ficava no centro do piso. Ficaram em silêncio. Esta era a tradição. Lawrence não gostava de falar. Preferia ser deixado sozinho, inclinado para a frente, com o queixo descansando nas mãos suportadas pela bengala, concentrado nas obras familiares, recordando, comungando beatificamente com seus velhos amigos, muitos deles agora falecidos.

Aceitando a situação, Penelope recostou-se no sofá, aninhada em seu cardigã, com as compridas pernas nuas espichadas à frente do corpo. Seus tênis tinham furos na altura dos dedos dos pés. Ela pensou em sapatos. Nancy estava precisando de um par, mas também precisava de uma nova blusa de lã grossa, agora que o inverno chegava. Havia cupons de roupas insuficientes para ambos. Teria que priorizar os sapatos. Quanto à blusa, talvez fosse possível desencavar alguma peça de lã há muito tricotada, desmanchar os pontos e tornar a tricotar o fio para Nancy. Isto já fora feito antes, porém era uma tarefa idiota e tediosa, de perspectiva nada atraente. Como seria bom comprar lã nova, rosa-vivo ou amarelo-prúnula, grossa e macia, para com ela tricotar algo realmente bonito para Nancy... Atrás deles, a porta se abriu e tomou a fechar-se. Uma corrente de ar frio entrou e morreu. Outro visitante. Penelope e seu pai continuaram quietos. Pisadas. Um homem. Algumas palavras trocadas com a Sra. Trewey. E depois a seqüência de passos lentos de botas, parando e prosseguindo, enquanto o recém-chegado fazia sua turnê à volta da sala. Após uns dez minutos, ele penetrou a borda do campo visual de Penelope. Ainda pensando no suéter para Nancy, ela virou a cabeça e então viu as costas do que só poderia ser o major da Marinha Real, aquele que fora conduzido tão espalhafatosamente no jipe. Uniforme cáqui de serviço, boné verde, uma coroa

sobre os galões do ombro. Indiscutível. Viu-o avançar, à medida que se movia lentamente na direção deles, as mãos entrelaçadas às costas. Então, quando chegou a apenas alguns metros, ele se virou, cônscio da presença de mais duas pessoas, talvez acanhado por perturbá-las. Era alto e musculoso, o rosto notavelmente escanhoado, no qual brilhavam dois olhos claros, extraordinariamente azuis.

Os olhos de Penelope encontraram os dele e ela ficou embaraçada ao ser assim surpreendida. Virou o rosto. Coube a Lawrence romper o silêncio que se seguiu. Imediatamente ele se tornara cônscio do recém-chegado, tendo erguido a cabeça para ver quem seria.

Houve nova rajada de vento, outro estremecer e chocalhar de vidraças. Cessado o ruído, Lawrence cumprimentou:

- Boa-tarde.

- Boa-tarde, senhor.

Por sob a aba de seu grande chapéu preto, os olhos de Lawrence apertaram-se, perplexos:

- O senhor não é o homem que vimos partir no jipe?

- Perfeitamente, senhor. Estavam ambos no outro lado da rua. Pensei tê-lo reconhecido - respondeu o militar, em voz calma, ligeiramente aguda.

- Onde está seu sargento?

- Desceu ao porto.

- Não demorou muito para encontrar este lugar.

- Há três dias estou na cidade e esta foi a primeira oportunidade que tive para visitá-lo.

- Quer dizer que sabia da existência da Galeria?

- Claro que sim. Quem não sabe?

- Mais gente do que seria de desejar. - Houve outra pausa, enquanto os olhos de Lawrence vistoriavam o estranho. Em tais ocasiões, ele tinha uma expressão penetrante e inteligente, embora muitas pessoas, sujeitas a ela, a achassem constrangedora. O major da Marinha Real, no entanto, não pareceu constranger-se. Apenas esperou e, apreciando sua impassibilidade, Lawrence relaxou visivelmente. Disse, de súbito! - Sou Lawrence Stern.

- Imaginei que fosse. Desejei que fosse. Fico muito honrado em conhecê-lo.

- E esta é minha filha, Penelope Keeling.

- Como vai? - disse o major, mas não fez qualquer movimento para aproximar-se e apertar-lhe a mão.

- Olá - respondeu ela.

- Poderia dizer-nos seu nome.

- É Lomax, senhor. Richard Lomax.

- Bem, Major Lomax... - Lawrence deu um tapinha no couro gasto do assento ao seu lado. - Sente-se. Deixa-me pouco à vontade, ficando aí em pé. Nunca fui muito amigo de estar em pé.

Ainda parecendo imperturbável, o Major Lomax aceitou a sugestão, indo sentar-se do outro lado de Lawrence. Inclinou-se para a frente, relaxado, a mão entre os joelhos.

- Foi o senhor quem iniciou a Galeria, não?

- Eu e muitas outras pessoas. Aconteceu no começo da década de vinte. Isto aqui era uma capela. Ficou anos vazia. Conseguimos comprá-la por uma ninharia, mas então surgiu o problema de povoá-la, somente com o melhor da pintura. Queríamos formar o núcleo de uma rara coleção, de maneira que todos doamos uma obra favorita. Veja. - Inclinando-se para trás, ele usou a bengala como indicador. - Stanhope Forbes. Laura Knight. E que beleza especial tem esse quadro!

- E incomum. Sempre o associo a circos.

- Esse foi feito em Porthcumo. - A bengala se moveu. - Lamorna Birch. Murmings. Montague Dawson. Thomas Millie Dow. Russell Flint...

- Devo dizer-lhe, senhor, que meu pai possuía um de seus quadros. Infelizmente, quando ele morreu sua casa foi vendida e também o quadro...

- Qual era?

Eles conversaram. Penelope deixou de ouvir. Parou de cismar sobre o guarda-roupa de Nancy e, em vez disso, começou a pensar em comida. O jantar daquela noite. O que poderia dar a eles? Macarrão com queijo? Sobrara uma fatia de Cheddar da ração semanal, que poderia ser ralada e transformada em molho. Ou suflê de couve-flor. Entretanto, haviam tido suflê de couve-flor duas noites atrás, as crianças se queixariam.

- ...não têm obras modernas aqui?

- Como pode ver. Isso o incomoda?

- De maneira alguma.

- Entretanto, gosta delas, não?

- Gosto muito de Miró e Picasso. Chagall e Braque enchem-me de alegria. Odeio Dali.

Lawrence deu uma risadinha.

- Surrealismo... Um culto. Entretanto, depois desta guerra, breve acontecerá algo esplêndido. Eu e minha geração, assim como a geração seguinte, fomos o mais longe que pudemos. A perspectiva da revolução que alcançará o mundo da arte é algo que me enche de enorme expectativa. Apenas por este motivo, eu gostaria de ser jovem novamente. Ser capaz de ver tudo isso acontecendo. Porque, um dia eles virão. Como nós chegamos. Homens jovens, de visões brilhantes, profundas percepções e tremendo talento. Eles virão; não para pintar a baía, o mar, os barcos e as charnecas, mas o calor do sol e a cor do vento. Um conceito inteiramente novo. Que estímulo! Que vitalidade! Maravilhoso! - Ele suspirou. - E deverei estar morto, antes que isto chegue até mesmo a começar. Pode imaginar o quanto lamento? Perder tudo isso...

- Existe apenas uma dose do que cada homem pode fazer durante a vida.

- Tem razão mas é difícil não ficar ambicioso. É da natureza humana sempre querer mais.

Houve outro silêncio. Pensando no jantar. Penelope olhou para seu relógio. Faltavam quinze minutos para as quatro. Quando chegassem a Carn Cottage já seriam praticamente cinco horas.

- Precisamos ir, papai - disse.

Ele mal a ouviu.

- Hum?

- Eu disse que é hora de irmos voltando para casa.

- Oh, sim. Sim, claro. - Lawrence endireitou a coluna, procurou reunir forças mas, antes que pudesse lutar para levantar-se, o Major Lomax já estava em pé e pronto para ajudá-lo. - Obrigado... é muita gentileza. A idade é uma coisa terrível... - Ele finalmente estava ereto. - O pior é a artrite. Faz anos que não pinto

- Sinto muito.

Quando por fim se dispuseram a caminhar, o Major Lomax seguiu com eles até a porta. Seu jipe estava lá fora, estacionado na praça pavimentada de lajes. Ele procurou escusar-se:

- Eu gostaria de poder levá-lo até em casa, mas é contra o regulamento transportar civis em veículos do Serviço.

- Nós preferimos caminhar - assegurou-lhe Lawrence. - Vamos andando sem pressa. Foi um prazer conversar com o senhor.

- Espero tornar a vê-lo.

- Sem dúvida. Deve vir um dia fazer uma refeição conosco. - Ele ficou considerando tão brilhante idéia. Com o coração opresso, Penelope sabia exatamente o que diria em seguida. Cutucou-o nas costelas com o cotovelo, mas seu pai ignorou a advertência, era tarde demais. - Venha jantar conosco esta noite!

Penelope sibilou furiosamente para ele.

- Não há nada para o jantar, papai! Nem mesmo sei o que iremos comer!

- Oh! - Ele pareceu magoado, humilhado.

O Major Lomax, entretanto, prontamente ajeitou a situação.

- É muita gentileza sua, mas receio não ser possível para mim esta noite.

- Em outra ocasião, então.

- Sim, senhor. Obrigado. Eu gostaria muito, em outra ocasião.

- Estamos sempre por aqui.

- Vamos, papai.

- Au revoir então, Capitão Lomax!

Lawrence ergueu a bengala em despedida, finalmente aceitou a sugestão da filha e moveu-se para diante. Entretanto, continuava abatido.

- Foi rude de sua parte - censurou-a. – Sophie nunca recusou um convidado, mesmo que nada mais tivesse para oferecer-lhe além de pão e queijo.

- Bem, ele não poderia ir, mesmo assim.

De braços dados, seguiram pelo pavimento lajeado e sinuoso até a rua do porto, primeiro estágio da longa caminhada para casa. Ela não olhou para trás, mas ainda tinha a sensação de que o Major Lomax continuava parado no mesmo lugar, ao lado de seu jipe, espiando-os, até finalmente dobrarem a esquina ao lado do "The Sliding Tackle" e sumirem de sua vista.

A excitação e estímulo da tarde, aliados ao prolongado passeio e copiosas doses de ar fresco nos pulmões, deixaram o velho muito fatigado. Foi com certo alívio que Penelope finalmente o conduziu jardim acima e pela porta aberta na fachada de Carn Cottage, onde ele imediatamente arriou em uma cadeira e ali ficou, recuperando o fôlego devagar. Ela lhe tirou o chapéu e o pendurou, depois desenrolou-lhe o cachecol do pescoço. Tomou uma das mãos enluvadas entre as suas e a friccionou suavemente, como se esta pequena atenção pudesse devolver a vida àqueles dedos pálidos e contorcidos.

- Da próxima vez que formos à Galeria, papai, providenciaremos um táxi para trazer-nos de volta.

- Poderíamos ter ido no Bentley. Por que não fomos no Bentley?

- Porque não temos gasolina para ele.

- Um carro não vale grande - coisa, sem gasolina...

Após um momento, ele se recuperava o suficiente para caminhar até a sala de estar, onde ela o acomodou entre as familiares e fofas almofadas de sua poltrona.

- Vou preparar-lhe uma xícara de chá.

- Não se preocupe. Vou tirar uma soneca.

Reclinando-se contra o encosto, ele fechou os olhos. Penélope ajoelhou-se junto à lareira e levou um fósforo ao papel, esperando até ver os gravetos e carvões arderem. Ele abriu os olhos.

- Lareira acesa em agosto?

- Não quero que você sinta frio. - Ela se levantou. – Você está bem?

- Claro que estou. - Ele sorriu para ela, um sorriso de grato amor. - Obrigado por ter ido comigo. Foi uma boa tarde!

- Fico feliz porque você gostou.

- Gostei de conhecer aquele rapaz. Gostei de conversar com ele. Há muito tempo não falava tanto assim. Muito tempo... Vamos convidá-lo para uma refeição conosco, não vamos? Eu gostaria de vê-lo outra vez.

- Sim, é claro.

- Peça a Ernie para abater alguns pombos. Ele gostará de pombos...

Os olhos de Lawrence tornaram a fechar-se. Ela o deixou.

Em finais de agosto, a colheita havia terminado, os Rangers dos Estados Unidos tinham tomado posse do novo acampamento no alto da colina, e o tempo piorara.

Havia sido uma boa colheita, e os fazendeiros tinham ficado bem satisfeitos. Sem dúvida, no devido tempo, receberiam na cabeça um tapinha do Ministério da Agricultura. Quanto às tropas americanas, seu impacto em Porthkerris fora menor do que o temido. Revelaram-se infundados os lúgubres pressentimentos de convictos freqüentadores da igreja. Não houve bebedeiras, fanfarronices ou estupros. Pelo contrário, eles pareciam excepcionalmente bem-comportados e educados. Jovens, esbeltos, de cabelos à escovinha, usando blusões de camuflagem e boinas vermelhas, caminhavam pelas ruas em suas botas de solado da borracha e, além de alguns obrigatórios assobios galanteadores e amistosas aproximações com as crianças, cujos bolsos em breve avolumavam-se com chocolates e goma

de mascar, sua presença pouca diferença provocou na vida rotineira da cidadezinha. Quando comandados, mantinham-se contidos, talvez por medida de segurança, fazendo o trajeto entre o acampamento e o porto, comprimidos como sardinhas na carroceria de caminhões ou dirigindo jipes com reboques entulhados de cordas, arpéus e ganchos para trepar. Em tais ocasiões, assobiavam devidamente para qualquer mulher que passasse por eles, como que ansiosos em justificar a turbulenta reputação que os precedera. Não obstante, à medida que passavam os dias e prosseguia seu exaustivo treinamento, ficou claro que o General Watson-Grant tivera carradas de razão, ao afirmar que homens passando todas as suas horas de vigília enfrentando tempestuosas viagens por mar e a face aterradora dos Penhascos Boscarben, no fim do dia, pensavam apenas em tomar uma ducha quente, comer e dormir.

Para aumentar-lhes o desconforto, após semanas ensolaradas, o tempo se tomara apavorante. O vento torvelinhava para noroeste, o barômetro caíra, e a chuva descia torrencial, despencando de pejadas nuvens baixas e carregadas, varridas do oceano. Na cidade, as lajes molhadas das ruas estreitas reluziam como escamas de peixe, enquanto as sarjetas avolumavam-se de água encachoeirada e ensopados detritos. Em Carn Cottage, os canteiros marginando as paredes assemelhavam-se a fitas molhadas, uma velha árvore perdera um galho, e a cozinha estava orlada de roupa molhada, porque não havia outro lugar onde secá-la.

Espiando pela janela, Lawrence comentava que aquilo bastava para extinguir o ardor de qualquer um.

O mar era cinzento e enfurecido. Vagalhões tempestuosos rolavam contra a Praia do Norte, depositando uma nova linha de restos de naufrágios, muito além do nível costumeiro da maré alta. Os melancólicos remanescentes de um navio mercante, torpedeado e afundado no Atlântico meses ou semanas antes e finalmente levados à terra pelas ondas e o vento insistente: um ou dois salva-vidas, pedaços estraçalhados de tábuas de convés e inúmeros caixotes de madeira. Ainda manhã bem cedo, com seu cavalo e a carroça de verduras, o pai de Ernie Penberth foi o primeiro a vê-los. Às onze horas da mesma manhã, Ernie surgia à porta dos fundos de Carn Cottage. Penelope descascava maçãs e ergueu os olhos para vê-lo ali, a capa de oleado negro gotejando água e um boné encharcado puxado para cima do nariz. Entretanto, ele sorria.

- Gostaria de alguns pêssegos enlatados, não?

- Pêssegos enlatados? Ora, você está brincando comigo!

- Meu pai está com dois caixotes cheios, lá na loja. Recolheu-os na Praia do Norte. Levou-os e abriu. Pêssegos enlatados da Califórnia. Tão bons como se estivessem frescos!

- Que achado! Posso mesmo ficar com algumas latas?

- Ele separou seis para vocês. Achou que as crianças iam gostar. Mandou dizer que, se você quiser, pode ir buscar. A qualquer hora.

- Oh, ele é um santo! Ernie, nem sei como agradecer-lhe! Irei esta tarde mesmo, antes que seu pai mude de idéia.

- Ele não faria isso.

- Quer almoçar conosco?

- Não, é melhor eu voltar logo. Obrigado mesmo assim.

Tão logo o almoço terminou, Penelope preparou-se devidamente para sair, de botas, um velho impermeável amarelo abotoado até o pescoço e um gorro de lã enterrado até as orelhas. Carregava duas cestas fortes para compras e, uma vez acostumada à força do vento - que de quando em quando ameaçava levá-la pelos ares - e rajadas de chuva, cujos pingos lhe batiam no rosto como pontas de agulha, o mau tempo se tomou esfuziante, e ela começou a se divertir. Chegando à cidade, encontrou-a estranhamente deserta. A tempestade empurrara todos para dentro das casas, porém a sensação de isolamento, de ter o lugar todo para si, apenas aumentou sua satisfação. Começou a sentir-se intrépida, como um explorador.

A mercearia-quitanda do Sr. Penberth ficava em Doumalong, mais ou menos na metade da rua do porto. Era possível chegar lá por um labirinto de ruas secundárias mas, em vez disto, ela preferiu o trajeto à beira do mar, dobrando a esquina da Lifeboat House e penetrando a fúria da ventania. A maré estava alta, o porto transbordava de enfurecida água cinzenta. Grasnando agudamente, gaivotas eram lançadas em todas as direções, os barcos de pesca balançavam - se agitados, puxando as âncoras e, na extremidade mais distante do Pier do Norte, ela avistou uma barcaça de transporte de tropas, subindo e descendo nas águas, dançando em seus cabrestantes. Evidentemente, o tempo estava tão ruim, que nem os Comandos aventuravam-se a sair.

Com certo alívio, finalmente chegou à mercearia, uma pequena edificação triangular, na junção de duas estreitas alamedas. Quando abriu a porta e entrou, uma sineta tocou no alto da porta. O estabelecimento estava vazio, cheirava agradavelmente a pastinagas, maçãs e terra, mas quando ela trancou a porta, uma cortina se ergueu na parede ao fundo, e surgiu o Sr. Penberth, usando a costumeira camisa de malha de lã grossa azul-marinho, como a dos marinheiros, e um gorro em forma de cogumelo.

- Sou eu - disse ela, desnecessariamente, gotejando água por todo o chão da mercearia.

- Eu já imaginava. - Ele tinha os olhos escuros e o mesmo sorriso do filho, embora menos dentes. - Então, resolveu descer até aqui... Um dia infernal, não? Entretanto, a ventania vai terminar e teremos um entardecer firme. Acabei de ouvir no rádio a previsão de tempo para as embarcações. Recebeu meu recado? Ernie lhe falou sobre os pêssegos em lata?

- Por que mais acha que estou aqui? Nancy nunca provou um pêssego na vida!

- É melhor vir até os fundos. Achei preferível escondê-los. Se alguém descobrir que tenho pêssegos em lata, minha vida vai virar um inferno.

Ele puxou a cortina para um lado e, carregando suas cestas, ela passou para o atravancado e entulhado espaço nos fundos, que funcionava como depósito e escritório. Ali havia uma estufa negra que ficava permanentemente funcionando, era onde o Sr. Penberth dava seus telefonemas e preparava xícaras de chá para si mesmo, quando o movimento diminuía. Hoje, havia um forte cheiro de peixe, porém Penelope mal notou, a atenção inteiramente atraída para as pilhas de latas ocupando cada superfície horizontal disponível... o botim matinal do Sr. Penberth.

- Que achado! Ernie disse que foi na Praia do Norte. Como conseguiu trazer os caixotes para cá?

- Chamei meu vizinho e ele me deu uma ajuda. Depois o levei em casa na carroça. Acha que seis são suficientes para você?

- Mais do que suficientes.

Ele colocou três latas em cada cesta.

- E como estão, em matéria de peixe? - perguntou.

- Por quê?

O Sr. Penberth desapareceu por baixo de sua mesa e emergiu com a fonte do cheiro de peixe. Olhando para o balde, Penélope viu que estava praticamente cheio de cavalinhas azul-prateadas.

- Um dos rapazes saiu esta manhã para o mar. Trocou estes peixes por alguns dos pêssegos. A Sra. Penberth não gosta de cavalinhas, diz que são peixes impróprios para comer. Pensei que você poderia querê-los. São frescos.

- Se eu puder levar meia dúzia, serão comidos no jantar.

- Excelente - disse o Sr. Penberth. Remexendo por ali, ele desencavou um jornal velho, enrolou os peixes em desajeitados embrulhos e os colocou em cima das latas de pêssegos. - Pronto - Penelope ergueu as cestas. Estavam muito pesadas. O Sr. Penberth franziu a testa. - Acha que agüenta? Não ficaram muito pesadas para você? Eu poderia levar as cestas, quando passasse perto de sua casa na carroça, mas as cavalinhas não ficarão frescas por mais um dia.

- Darei um jeito.

- Bem, espero que todos os aproveitem... - Ele a conduziu à porta. - Como está Nancy?

- Florescendo.

- Diga a ela e a Doris para virem ver-nos logo. Há coisa de um mês não ponho os olhos nelas.

- Darei o recado. E obrigada, muito obrigada, Sr. Penberth!

           Ele abriu a porta e a sineta tilintou.

- Foi um prazer, meu bem.

Curvada ao peso dos pêssegos e do peixe, Penelope partiu para casa. Agora, com a tarde mais avançada, havia algumas pessoas à vista, emergindo para fazer compras ou cuidar da própria vida. O Sr. Penberth estivera certo sobre a previsão do tempo. A maré começava a vazar, o vento ia diminuindo, a chuva rareava. Erguendo os olhos, ela viu bem alto no céu, entre as nuvens carregadas que a ventania empurrava, um esfarrapado pedacinho de céu azul,

suficiente apenas para fazer um par de calças para um gato. Ela caminhou lepidamente, sentindo certa euforia por daquela vez não precisar preocupar-se com o que seria servido no jantar. Entretanto, após algum tempo, as cestas carregadas começaram a pesar demais, suas mãos doíam, e os braços pareciam repuxados das articulações. Pensou que talvez houvesse errado ao recusar a oferta do Sr. Penberth para fazer a entrega, porém, quase em seguida, a idéia lhe foi afastada da mente, interrompida pelo som de um veículo em rápida aproximação, vindo de sua retaguarda, da direção do Píer do Norte.

A rua era estreita, com poças fundas. Não querendo ser ensopada em uma onda de água suja, ela ficou de lado para esperar, até que o carro passasse por ali sem perturbá-la. O veículo passou como um bólido, mas alguns metros além parou quase imediatamente, com um rangido de freios. Penelope identificou o jipe aberto, os dois familiares ocupantes uniformizados. O Major Lomax e seu sargento. O jipe ficou parado no mesmo lugar, o motor trabalhando, mas o Major Lomax saltou para o chão, estirando as pernas compridas, e começou a caminhar para ela.

Comentou, sem preliminares:

- Parece sobrecarregada.

Grata por uma justificativa para se aliviar das cestas, Penélope as pousou na calçada e endireitou o corpo para fitá-lo.

- Tem razão. Estou.

- Nós nos conhecemos faz alguns dias.

- Eu me lembro.

- Esteve fazendo compras?

- Não. Fui apanhar um presente. Seis latas de pêssegos. Foram lançadas pelo mar, esta manhã, na Praia do Norte. Também ganhei algumas cavalinhas.

- Até onde precisará levar as cestas?

- Até em casa.

- E onde fica sua casa?

- No alto da colina.

- Não poderiam ser levadas por um entregador?

- Não.

- Por que não?

- Por que quero comê-los esta noite.

Ele sorriu, divertido. O sorriso fez algo extraordinário ao seu rosto, dando a Penelope a sensação de que só agora o via pela primeira vez. "Absolutamente comum" havia sido seu veredicto privado, no dia em que ele os encontrara na Galeria, mas agora que via isso, pelo contrário, aquele homem nada tinha de comum em seu rosto de feições proporcionadas, nos olhos azuis estranhamente brilhantes que, aliados ao inesperado sorriso, formavam um conjunto de extraordinário charme.

- Talvez possamos ajudá-la - disse ele.

- Como?

- Não podemos dar-lhe uma carona, mas não vejo motivo algum impedindo o Sargento Burton de levar os pêssegos para sua casa.

- Ele jamais acertaria o caminho.

- Está subestimando o sargento. - Ao falar, ele se inclinou e ergueu as cestas. Disse, bastante irritado: - Não devia estar carregando isto. Irá machucar-se.

- Carrego compras o tempo inteiro. Todos têm que carregar...

Ele ignorou suas palavras. Já estava caminhando para o jipe. Penelope o seguiu, ainda protestando fracamente:

- Eu posso dar um jeito...

- Sargento Burton!

O sargento desligou o motor.

- Senhor?

- Irá transportar esta carga. - Ele depositou firmemente as cestas no banco traseiro do jipe. - A senhorita lhe fornecerá o endereço.

O sargento se virou para ela, esperando polidamente. Sem nenhuma alternativa aparente, Penelope concordou.

- ...subindo a colina, depois dobre à direita na Garagem Grabney's e siga a estrada até chegar ao alto. Verá um muro alto, que tem o nome de Carn Cottage. Terá que deixar o jipe na estrada e cruzar o jardim.

- Há alguém em casa, senhorita?

- Sim. Meu pai.

- Como é o nome dele, senhorita?

- Sr. Stern. Se ele não o ouvir... se ninguém responder à sineta, basta deixar as cestas junto à porta.

- Perfeitamente, senhorita.

O sargento aguardou. O Major Lomax disse:

- Tudo bem, sargento. Pode ir. Farei o resto do trajeto a pé. Tornarei a vê-lo no QG.

- Senhor!

O sargento fez continência, tomou a ligar o motor e partiu com sua carga de curiosa aparência doméstica, pousada no banco traseiro do jipe. Dobrou a esquina da Lifeboat House e desapareceu. Penelope foi deixada com o major. Sentia-se pouco à vontade, desconcertada por aquela súbita reviravolta de eventos. Também estava insatisfeita com sua aparência, algo que, em geral, bem pouco a perturbava. Contudo, nada podia fazer a respeito, exceto tirar o desgracioso gorro de lã e sacudir o cabelo para afofá-lo. Foi o que fez, enfiando o gorro no bolso do impermeável.

- Podemos ir? - perguntou ele.

Penelope tinha as mãos geladas, de maneira que também as enfiou nos bolsos.

- Pretende mesmo caminhar? - perguntou, duvidosa.

- Se não pretendesse, não estaria aqui.

- Não tem mais nada que devesse estar fazendo?

- Como o quê?

- Um exercício a planejar, um relatório a ser escrito...

- Não. O resto do dia me pertence.

Os dois começaram a caminhar. Uma idéia assaltou Penelope.

- Espero que seu sargento não fique com problemas. Sem dúvida, não tem permissão para transportar compras das pessoas no jipe.

- Se alguém lhe criar problemas, serei eu. E como tem tanta certeza?

- Estive nas Wrens por uns dois meses, de maneira que sei tudo sobre normas e regulamentos. Eu não tinha permissão de carregar uma bolsa ou guarda-chuva. Isso tornava a vida muito difícil.

Ele pareceu interessado.

- Quando foi que esteve nas Wrens?

- Oh, há séculos... Em novecentos e quarenta. Estive em Portsmouth.

- Por que saiu?

- Tive um bebê. Casei-me e tive um bebê.

- Entendo.

- O bebê agora tem quase três anos. Chama-se Nancy.

- Seu marido está na Marinha?

- Sim. Acho que agora se encontra no Mediterrâneo. Nunca tenho certeza.

- Há quanto tempo não o vê?

- Oh... - Ela não podia lembrar e nem queria. – Séculos! - Mal acabara de falar, as nuvens muito no alto se abriram por um instante, deixando passar um molhado raio de sol. As ruas molhadas devolveram o reflexo de sua luz, pedras e lajes ficaram lavadas em ouro. Admirada, Penelope ergueu o rosto para aquele ofuscante e momentâneo clarão. - Realmente está melhorando... O Sr. Penberth disse que o tempo ia melhorar. Ouviu a previsão meteorológica e disse que a tempestade passaria. Talvez tenhamos um belo entardecer.

- Sim, talvez tenhamos.

O clarão do sol desapareceu tão rapidamente como viera, e tudo voltou a ficar acinzentado. A chuva, no entanto, havia parado.

- Seria melhor não irmos pelo centro da cidade - disse ela. - Iremos costeando o mar até a estação ferroviária. Há um lance de degraus que fica exatamente oposto ao Hotel White Caps.

- Eu gostaria muito. Ainda não sei me orientar muito bem por aqui e suponho que você conheça tudo como a palma da mão. Sempre morou aqui?

- Na época do verão. Durante o inverno, ficávamos em Londres. E, nos intervalos, íamos para a França. Minha mãe era francesa. Tínhamos amigos lá. Entretanto, ficamos aqui desde que a guerra começou. Sim, imagino que ficaremos em Porthkerris até que ela termine.

- E quanto a seu marido? Não a quer por perto, quando desembarcar?

Os dois haviam desembocado em uma alameda estreita que corria ao longo da praia. A maré alta jogara seixos para ali, bem como destroços de algas e restos de uma corda alcatroada. Inclinando-se, ela pegou um seixo e o atirou ao mar. Respondeu:

- Como já lhe disse, ele deve estar pelo Mediterrâneo. E mesmo que pudesse ficar com ele, seria impossível, pois preciso cuidar de papai. Minha mãe foi morta na Blitz, em novecentos e quarenta e um. Desta maneira, tenho que ficar com ele.

Ele não disse que lamentava. Repetiu "Entendo" e parecia realmente entender.

- Não se trata apenas de mim e de Nancy. Temos Doris e seus dois meninos que moram conosco. São evacuados. Ela é viúva de guerra. Nunca voltou a Londres. - Penelope olhou para ele. - Papai gostou de conversar com você, naquele dia, na Galeria. Ficou zangado comigo por eu não o ter convidado para o jantar... disse que fui muito rude. Não era a minha intenção. Apenas, nada havia para me inspirar quanto ao que poderíamos comer.

- Gostei imensamente de conhecê-lo. Quando soube que seria designado para cá, passou-me pela cabeça que talvez visse o famoso Lawrence Stern, porém nunca imaginei que isso fosse acontecer realmente. Achava que ele estaria demasiado frágil e idoso para sair de casa. Quando o vi lá na rua, ao lado do QG, adivinhei imediatamente que só podia ser ele. Então, quando entrei na Galeria e os vi lá, mal pude acreditar em minha sorte. Que grande pintor ele foi! - O major baixou os olhos para ela. - Você herdou o talento paterno?

- De maneira alguma. Aliás, é muito frustrante. Com freqüência vejo algo tão bonito que chega a doer, como uma velha casa de fazenda ou dedaleiras crescendo em uma sebe, soprando ao vento contra um céu azul. Então, desejaria ardentemente poder capturar o que vejo, pôr no papel e ter para sempre. No entanto, é claro que não sei...

- Não é fácil encararmos nossas incapacidades.

Ocorreu a ela que ele parecia ser um homem ignorando o verdadeiro sentido da palavra "incapacidades".

- Você pinta? - perguntou-lhe.

- Não. Por que pergunta?

- Quando conversava com papai, parecia entender muito do assunto.

- Se dei tal impressão, foi por ter sido criado por uma mãe intensamente artística e criativa. Assim que aprendi a andar, fui levado a cada galeria e museu de Londres, além de ser conduzido a concertos.

- Do jeito como fala, poderia ter tomado horror à cultura, para o resto da vida.

- De modo nenhum. Ela agia com muito tato e tornava tudo aquilo imensamente interessante. Infundia prazer.

- E seu pai?

- Meu pai era corretor de ações, na City. (*)

Ela pensou a respeito. As vidas dos outros eram sempre fascinantes.

- Onde morava?

- Em Cadgan Gardens. Bem, depois que ele morreu, minha mãe vendeu a casa, grande demais para nós. Fomos morar em uma menor, na Praça Pembroke. Ela continua morando lá. Ficou na casa durante todo o bombardeio. Disse que preferia estar morta a viver em outro lugar que não Londres.

Penelope pensou em Dolly Keeling, enfiada naquele esconderijo do The Coombe Hotel, jogando bridge com Lady Infernal Beamish e escrevendo compridas cartas amorosas ao filho. Suspirou, porque pensar em Dolly sempre a deixava um pouco deprimida. Continuava existindo aquele sentimento de culpa, sobre Dolly dever ser convidada para passar alguns dias em Carn Cottage, ao menos para ver a neta. Ou que ela, Penelope, visitasse o The Coombe Hotel, levando Nancy consigo. Entretanto, qualquer das alternativas era tão aterrorizante, que jamais tivera dificuldade em expulsá-las rapidamente da cabeça, para começar a pensar em qualquer outra coisa.

A estrada estreita subia a colina. Tinham deixado o mar para trás e agora caminhavam entre filas de chalés caiados de pescadores, encarapitados na encosta. Uma porta se abriu e surgiu um gato, seguido por uma mulher com uma cesta de roupa lavada, que começou a estender em um varal espichado diante de sua casa. Enquanto ela fazia isto, o sol tornou a aparecer, bem forte agora. A mulher virou para eles um rosto sorridente.

- Já melhorou um pouco, não? Nunca vi um temporal como o que tivemos esta manhã! Dentro em pouco, o dia estará bonito novamente.

O gato enroscou-se em volta dos tornozelos de Penelope. Ela se abaixou para afagá-lo. Continuaram andando. Tirando as mãos dos bolsos, ela desabotoou o impermeável.

- Você se juntou à Marinha Real - perguntou - porque não queria ser corretor de ações ou por causa da guerra?

           - Por causa da guerra. Sou conhecido como "Oficial Somente Durante as Hostilidades". Sempre achei que soava um tanto depreciativo. Entretanto, também não me seduziu a idéia de lidar com ações. Fui para a universidade e fiz Literatura Inglesa e Clássica. Depois, arranjei um emprego como professor de meninos, em uma Escola Preparatória.

 

 

(*) Centro comercial e financeiro de Londres. (N. da T.)

 

- Os fuzileiros já o ensinaram a escalar?

Ele sorriu.

- Não. Eu já escalava, muito antes disso. Fui enviado para um internato no Lancashire e lá havia um professor que costumava levar um bando de nós para escalar no Distrito dos Lagos. Aos quatorze anos eu me apaixonara pelo esporte e continuei a praticá-lo desde então.

- Já escalou no exterior?

- Sim. Suíça, Áustria... Eu queria ir ao Nepal, porém isso requereria meses de preparativos e viagens, e nunca encontrei tempo disponível.

- Depois do Matterhorn, os Penhascos Boscarben devem ser fáceis.

- Não - assegurou ele firmemente. - Eles nada têm de fáceis.

Continuaram andando, subindo, percorrendo as alamedas escondidas e torcidas que os visitantes nunca descobriam, e subindo degraus de granito tão íngremes, que Penelope ficava sem fôlego para conversar. O último lance ziguezagueou para o alto, pela face do penhasco entre a estação ferroviária e a estrada principal, para finalmente emergir diretamente em frente ao velho Hotel White Caps.

Acalorada com o esforço, Penelope descansou recostada ao muro, esperando recuperar o fôlego e que seu coração parasse de estrondear. Vindo atrás dela, o Major Lomax não parecia afetado. Ela viu o fuzileiro de guarda fitando-os desapaixonadamente através da estrada, porém a expressão dele nada demonstrou.

Quando finalmente conseguiu falar, ela disse:

- Sinto-me como um pedaço de barbante mastigado!

- Não é de admirar.

- Há anos que não faço este caminho. Quando pequena, costumava correr por ele acima, da praia até o alto. Era uma espécie de teste de resistência auto-imposto.

Virando-se e apoiada com os braços no topo do muro, ela espiou para baixo, para o caminho percorrido. O mar, esvaziando, agora estava mais calmo e refletia o azul do céu clareando. Muito abaixo, na praia, um homem caminhava com seu cão. O vento se tomara uma brisa leve, perfumada pelo úmido cheiro musgoso dos jardins encharcados da chuva. Era um cheiro pejado de nostalgia e, no momento, Penelope viu-se fora de guarda, invadida por um êxtase irracional, que não sentia desde criança.

Pensou nos dois últimos anos: o tédio, a existência sem horizontes, nada por que ansiar ou antecipar. Agora, no entanto, bastara um instante, e as cortinas tinham sido puxadas para o lado, as janelas além, escancaradas para uma paisagem brilhante que estivera lá o tempo todo, esperando por ela. Uma paisagem, além disso, carregada com as mais maravilhosas possibilidades e oportunidades.

Felicidade - recordada dos dias anteriores à guerra, dias antes de Ambrose e da chocante morte de Sophie. Era como ser jovem de novo. Entretanto, eu sou jovem. Tenho apenas vinte e três anos. Virando-se do muro, encarou o homem ao seu lado e ficou tomada de gratidão, pois, de certo modo, ele é que tinha provocado este milagre de déjà vu.

Viu-o observando-a e perguntou-se quanto ele teria percebido, o quanto saberia. No entanto, a imobilidade e o silêncio dele nada delataram.

- Preciso ir para casa - disse ela. - Papai deve estar imaginando o que houve comigo.

Ele assentiu, aceitando o que ouvia. Agora seria a despedida e cada um tomaria seu rumo. Ela seguiria em frente. Ele cruzaria a estrada, retribuiria a continência do homem de guarda, subiria os degraus, desapareceria atrás da porta envidraçada e talvez nunca mais fosse visto.

- Gostaria de vir jantar conosco? - perguntou.

Ele não respondeu imediatamente e, por um terrível momento Penelope pensou em uma recusa. Então, o major sorriu.

- Será um prazer.

Alívio.

- Este anoitecer?

- Está bem certa?

- Absolutamente. Papai gostaria muito de tornar a vê-lo. Assim poderão continuar sua conversa.

- Obrigado. Isso seria maravilhoso.

- Então, por volta de sete e meia. - Ela soava terrivelmente formal. - Posso... posso convidá-lo porque, desta vez temos algo para comer.

- Deixe-me adivinhar o que será. Cavalinha e pêssegos em lata?

A formalidade e o constrangimento derreteram-se. Os dois dissolveram-se em riso, e Penelope soube que jamais esqueceria aquele som, porque era o da primeira piada que partilhavam.

Encontrou Doris morta de curiosidade.

- Escute, o que está havendo? Lá estava eu, cuidando da minha vida, quando surge à porta um esplêndido sargento, trazendo suas cestas. Convidei-o para uma xícara de chá, mas disse que não poderia ficar. Como foi que o arranjou?

Penelope sentou-se à mesa da cozinha e contou toda a história do inesperado encontro. Doris ouvia, com olhos que iam ficando redondos como bolas de gude. Quando o relato terminou, ela deixou escapar um grito esganiçado de pura delícia.

- Não me diga! Parece que você encontrou um admirador.

- Oh, Doris, eu o convidei para jantar.

- Quando?

- Hoje.

- Ele virá?

- Sim, ele virá.

A alegria de Doris murchou.

- Oh, droga!

Ela tornou a arriar em sua cadeira, era a imagem da melancolia.

- Droga, por quê?

- Porque não vou estar aqui! Tenho que sair. Vou levar Ronald e Clark a Penzance. para assistirem à representação de The Mzkado, pela Sociedade Lírica.

- Oh, Doris! Eu contava com você aqui... Preciso de alguém para me ajudar. Não podia adiar sua saída?

- Não, não posso. Já foi providenciado um ônibus e, de qualquer modo, a representação será apenas por duas noites. Os meninos ficaram sonhando semanas com ela, coitadinhos... - Sua expressão se tornou resignada. – Enfim, não tem jeito! Eu lhe darei uma ajuda na cozinha antes de ir e porei Nancy na cama. Francamente, estou amolada por perder este divertimento. Há anos que não temos um homem cem por cento em casa...

Penelope não mencionou Ambrose. Disse, em vez disto:

- E quanto a Ernie? E um homem cem por cento.

- Sem dúvida. Ele é legal. - O pobre Ernie, no entanto, foi rejeitado. - Só que ele não conta.

Como duas meninas tomadas por inocente excitação, elas começaram a trabalhar; descascaram vegetais, fizeram uma salada. Lustraram a velha mesa da sala de refeições, limparam superficialmente os talheres e a baixela pouco usados, poliram os copos de cristal. Alertado, Lawrence levantou-se de sua poltrona e desceu cautelosamente à adega onde, em dias mais felizes, havia estocado sua considerável quantidade de vinho francês. Agora restava bem pouco, mas ele voltou com uma garrafa do que denominava vinho algeriano barato, assim como uma empoeirada garrafa de vinho do Porto, que começou a decantar com o máximo cuidado. Penelope sabia que nenhum tributo maior seria feito a um convidado.

Faltando vinte e cinco minutos para as sete, com Nancy já adormecida em sua cama. Doris e os filhos fora de casa e tudo pronto como deveria estar, ela voou para o andar de cima e foi a seu quarto fazer alguma coisa para melhorar a aparência. Vestiu uma blusa limpa, enfiou os pés nus em duas sapatilhas escarlate, escovou os cabelos, trançou-os, enrolou-os em um coque e os firmou no lugar. Não tinha pó nem batom e já usara o último resto de seu perfume. Um prolongado e crítico olhar ao espelho produziu bem pouca satisfação. Parecia uma governanta. Encontrou um colar de contas escarlate e o prendeu ao pescoço. Enquanto fazia isto ouviu o portão no final do jardim sendo aberto, depois o clique ao ser fechado. Foi à janela e viu Richard Lomax subindo por entre o jardim fragrante, aproximando-se da casa pelo caminho íngreme. Viu que também ele havia trocado o uniforme de combate para a meia formalidade do cáqui de exercícios e cintilantes botas castanhas. Trazia, discretamente, um embrulho que só podia conter uma garrafa.

Desde que se despedira, ela vivera ansiosa pela perspectiva de tomar a vê-lo. Agora, no entanto, vendo-o aproximar-se, sabendo que logo ele estaria tocando a sineta da porta da frente, foi assaltada pelo pânico. Pés frios era como Sophie costumava denominar aquele aperto no coração, causado por um ato impetuoso, subitamente lamentado. E se a noitada fosse uma tragédia, se tudo desse errado, sem Doris ali para ajudá-la a suportar a situação? Era perfeitamente possível que se enganasse com Richard Lomax. Que o vislumbre de êxtase, a felicidade inexplicada, a extraordinária sensação de proximidade e familiaridade fossem apenas parte de uma ilusão nascida de sua crescente animação e do fato de que o sol após dias de chuva, tivesse decidido brilhar.

Saiu da janela, dirigiu um último olhar ao seu reflexo no espelho, ajeitou o colar vermelho, abandonou o quarto e desceu a escada. Enquanto descia, a sineta da porta soou. Ela cruzou o vestíbulo e abriu a porta. Ele sorriu e disse:

- Espero não estar muito atrasado ou demasiado cedo.

- Nem uma coisa e nem outra. Vejo que encontrou o caminho.

- Não foi difícil. Vocês têm um lindo jardim!

- A tempestade não lhe faz nenhum bem. - Ela deu um passo atrás. - Entre - convidou.

Ele entrou e tirou a boina verde, com seu emblema vermelho e o distintivo prateado. Ela fechou a porta. O major deixou a boina sobre a cômoda e se virou para encará-la. Disse. entregando-lhe o embrulho:

- Isto é para seu pai.

- É muita gentileza.

- Ele bebe uísque?

- Sim...

Tudo ia dar certo, não se enganara sobre ele. Richard Lomax não era vulgar, mas imensamente especial porque, consigo, trouxera a Carn Cottage não apenas um certo fascínio, mas também naturalidade. Ela recordou a tremenda infelicidade, quando da passagem de Ambrose por ali. As tensões e os silêncios, a maneira como todos, afetados pelo ambiente incomodativo, haviam ficado irritáveis e suscetíveis. Com este alto estranho, no entanto, vinha somente a mais confortável das presenças. Ele poderia ter sido um velho amigo de muitos anos, chegando para renovar uma camaradagem, ficarem a par de notícias mútuas. O senso de déjà vu retornou, mais forte agora do que nunca. Tão forte, que ela quase esperou a porta da sala de estar escancarar-se repentinamente e Sophie emergir, rindo e falando pelos cotovelos, atirando os braços ao pescoço do rapaz e beijando-o nas duas faces. Oh, meu bem, como eu estava ansiosa em tornar a vê-lo...

- ... mas há meses não temos uma garrafa em casa. Ele ficará deliciado. Está na sala à sua espera... - Ela foi abrir a porta que dava para a sala de estar. - Papai... Nosso convidado chegou...e lhe trouxe um presente...

            - Esta sua designação para cá - disse Lawrence - será por quanto tempo?

- Não tenho a menor idéia, senhor.

- E, se soubesse, não me diria. Acha que no próximo ano já estaremos prontos para invadir a Europa?

Richard Lomax sorriu, mas nada deixava escapar.

- É a minha esperança - disse.

- Estes americanos... Parecem bem retraídos. Tínhamos imaginado todo tipo de estrepolias.

- Eles não estão aqui exatamente em férias. Além disso, são soldados altamente profissionais e formam uma unidade inteiramente auto-suficiente. Tem seus próprios oficiais, sua cantina, suas recreações.

- Como vocês se dão com eles?

- No geral, muito bem. São razoavelmente impetuosos... talvez não tão disciplinados quanto os de nossas tropas, mas, de modo individual, muito corajosos.

- E você é o encarregado da operação, como um todo?

- Não, senhor. O Oficial-comandante é o Coronel Mellaby. Sou apenas o Oficial de Treinamento.

- Quer dizer que trabalha com eles?

Richard Lomax deu de ombros.

- É um tanto diferente.

- E Porthkerris... Já havia estado aqui antes?

- Nunca. Em geral, passava minhas férias no Norte, escalando montanhas. Entretanto, sabia a respeito de Porthkerris, por causa dos artistas que vieram para cá. Já tinha visto pinturas do porto, nas várias galerias que visitava por insistência de minha mãe, sendo extraordinária a maneira única como o reconheci instantaneamente. Imutável. E a luminosidade... O brilho ofuscante do mar... Eu quase não acreditava, até que vi pessoalmente.

- Sim, há uma magia. Nunca nos acostumamos a ela, por mais que vivamos aqui.

- Há muitos anos vem a Porthkerris?

- Desde princípios de novecentos e vinte. Trouxe minha esposa aqui, logo depois que nos casamos. Não tínhamos casa, de maneira que acampávamos em meu estúdio. Como dois ciganos.

- O retrato na sala de estar é de sua esposa?

- Sim. Aquela era Sophie. Devia ter dezenove anos, quando o retrato foi pintado. Obra de Charles Rainier. Certa primavera, ocupamos todos uma casa perto de Varengeville. A finalidade era tirarmos férias, mas ele ficava inquieto, quando não trabalhava, de modo que Sophie concordou em posar para que lhe pintasse o retrato. Levou menos do que um dia, porém foi uma das melhores coisas que ele já fez. Enfim, Rainier a tinha conhecido a vida inteira, como eu. Conhecia-a desde que era menina. Podemos trabalhar depressa, havendo tanta proximidade com nosso modelo.

A sala de refeições estava penumbrosa, à claridade que morria. Apenas as velas forneciam iluminação e os últimos lampejos do sol se pondo penetravam pelas janelas em fachos que arrancavam reflexos do cristal, da prataria e da polida superfície da mesa redonda do mogno. O papel de parede escuro continha a sala como a forração de um estojo de jóias e, além das dobras do pesado e desbotado reposteiro de veludo, apanhado em esfiapados cordéis e borlas de seda, oscilavam leves cortinas rendadas, à brisa que penetrava pelas venezianas abertas.

Estava ficando tarde. Logo a janela teria que ser fechada, e puxadas as cortinas de black-out. A refeição chegava ao fim. A sopa, o peixe grelhado, o delicioso petisco dos pêssegos, tudo fora consumido, e retirados os pratos. Do aparador, Penelope havia tirado uma

travessa de maçãs alaranjadas Cox, que o vento derrubara da árvore no alto do pomar, e a colocara no centro da mesa. Richard Lomax apanhara uma e a descascava com uma faca para frutas, de cabo em madrepérola. Suas mãos eram longas, com dedos de extremidades espatuladas. Ela ficou olhando enquanto ele manejava destramente a faca, a fita inteira da casca caindo dentro do prato. Depois, partiu a maçã em quatro quartos iguais.

- O senhor ainda tem o estúdio?

- Sim, mas agora está abandonado. Raramente vou lá. Não posso mais trabalhar, e a caminhada é longa demais para mim.

- Eu gostaria de vê-lo.

- Quando quiser. Tenho a chave comigo. - Através da mesa, ele sorriu para a filha. - Penelope o levará até lá.

Richard Lomax tornou a cortar os quartos da maçã.

- Charles Rainier... ainda vive?

- Sim, que me conste. A menos que tenha aberto demais sua boca grande e a Gestapo o tenha assassinado. Espero que não. Ele vive no sul da França. Se souber se comportar, sobreviverá...

Penelope pensou na casa de Rainier, com o teto coberto de buganvílias, as rochas vermelhas caindo para o mar violeta, as mimosas penugentas e amarelas. Pensou em Sophie, chamando da varanda para dizer que estava na hora de parar de nadar, porque iam almoçar. Diante de tais imagens tão vívidas, era difícil conceber que Sophie estivesse morta. Esta noite - desde a chegada de Richard Lomax - ela havia estado com eles, não morta, mas viva. Ainda

agora, sentada na cadeira vazia da cabeceira da mesa. Não era fácil encontrar um bom motivo para tal persistente ilusão, a ilusão de que tudo estava como havia sido antes. De que nada mudara. Não obstante, a verdade é que tudo mudara. O destino tinha sido cruel; lançara a guerra sobre eles, dividira sua família; vira Sophie e os Clifford mortos na Blitz. Talvez o destino é que houvesse atirado Penelope a Ambrose. Entretanto, ela é que o induzira a fazerem amor, que começara Nancy e finalmente casara com ele. Olhando para trás, Penelope não se arrependia de terem feito amor, pois apreciara tanto quanto ele. Lamentava ainda menos a chegada de Nancy e, de fato, agora não conseguia imaginar a vida sem sua filha, encantadoramente linda e cativante. O que lamentava, mais amargamente, era aquele casamento idiota. Não deve casar com ele, a menos que o ame, havia dito Sophie e, por aquela vez, a primeira em sua vida, ela não seguira o conselho da mãe. Ambrose fora seu primeiro relacionamento e não tinha ninguém com quem compará-lo. O casamento feliz de seus pais não ajudava em nada neste sentido. Ela imaginara que todos os casamentos fossem igualmente felizes; portanto, casar era uma boa idéia. Ao enfrentar a situação, após o choque inicial, Ambrose também parecia achar uma boa idéia. Assim, os dois tinham ido em frente e consumado o fato.

Um erro tremendo, horrível. Ela não o amava. Jamais o amara. Nada tinha em comum com ele, não sentia o menor desejo de tomar a vê-lo. Olhou para Richard Lomax, com seu rosto tranqüilo voltado para Lawrence. Depois fitou as mãos dele, os dedos agora entrelaçados sobre a mesa. Pensou em tomar aquelas mãos nas suas, erguê-las e apertá-las contra o rosto.

Perguntou-se se ele também seria casado.

- Nunca o conheci - dizia Lawrence - porém acho que deve ter sido um indivíduo bastante enfadonho. - Os dois continuavam discutindo os pintores de retratos. - Poder-se-ia esperar maus procedimentos e indiscrições inimaginados... evidentemente, ele teve oportunidades de sobra... no entanto, parece que jamais deu um passo em falso. Beerbohm fez uma caricatura dele, espiando de sua janela uma longa fila de damas da sociedade, todas esperando o momento de serem imortalizadas por seu pincel.

- Gostei mais dos croquis dele do que de seus retratos - comentou Richard Lomax.

- Concordo. Todos aqueles cavalheiros e damas alongados, vestidos para caçar... Com três metros de altura e impossivelmente arrogantes... - Lawrence estendeu a mão para a garrafa ornamental em que despejara o vinho do Porto, encheu seu copo e passou a garrafa a seu convidado. - Diga-me, você joga gamão?

- Sim, jogo.

- O que acha de uma partida?

- Eu ficaria encantado!

Quase escurecera de todo. Penelope levantou-se da mesa, fechou as janelas e cerrou as cortinas, aquelas horríveis de tecido negro e as outras, as belas cortinas de veludo. Dizendo algo sobre café, saiu da sala, desceu o corredor e foi à cozinha. Fez o black-out da cozinha e então acendeu a luz, para a já esperada desordem de tigelas, pratos sujos e talheres. Colocou a chaleira no fogo. Ouviu os homens passarem para a sala de estar, ouviu o carvão que era atirado ao fogo e depois o contínuo e amistoso murmúrio da conversa.

Papai estava em seu elemento, divertindo-se bastante. Se gostasse do jogo, era provável que convidasse Richard Lomax para outra sessão. Encontrando uma bandeja limpa, tirando xícaras do armário, ela sorriu.

O jogo terminou precisamente quando o relógio dava onze horas. Lawrence tinha ganho. Aceitando a derrota com um sorriso, Richard Lomax ficou em pé.

- Creio que é hora de eu ir andando.

- Não pensei que fosse tão tarde assim! Gostei muito do jogo.

Poderíamos repetir a dose. - Lawrence pensou a respeito, depois acrescentou: - Se for do seu agrado.

- Seria um prazer, senhor. Entretanto, receio não poder fazer planos específicos, pois meu tempo não me pertence...

- Tudo bem! A qualquer anoitecer que quiser. É só chegar. Estamos sempre aqui!

Lawrence começou a esforçar-se para sair da poltrona, porém Richard Lomax o deteve, pousando a mão em seu ombro.

- Por favor - disse. - Não precisa levantar-se...

- Bem... - Agradecido, o velho tornou a recostar-se no encosto. - Talvez eu não consiga. Penelope o acompanhará.

Enquanto eles jogavam, ela ficara sentada junto à lareira, tricotando. Agora, enfiou as agulhas no novelo de lã e levantou-se. O visitante se virou e sorriu-lhe. Ela foi abrir a porta, ouvindo-o dizer:

- Boa-noite, senhor e, mais uma vez, muito obrigado...

- Não tem de quê.

Ela o conduziu pelo vestíbulo escuro e abriu a porta da frente. Lá fora, o jardim estava banhado de luz azulada, impregnado com o cheiro de troncos. Uma pequena meia-lua pendia no céu. Muito abaixo, na praia, o mar sussurrava. Ele emergiu para ficar ao lado dela, nos degraus da porta, com a boina na mão. Ambos olharam para o alto, para os fiapos de nuvens e o fraco fulgor da lua. Não havia vento, mas um frio úmido emanava da grama, e Penélope encolheu-se, tiritando.

- Mal falei com você, a noite inteira - disse ele. – Espero que não me considere muito descortês.

- Você veio conversar com papai.

- Não tanto, mas parece que acabou sendo assim.

- Haverá outra oportunidade.

- Assim espero. Como disse, mal posso dispor de meu tempo... impossível fazer planos ou marcar encontros...

- Eu sei.

- Contudo, virei quando puder.

- Faça isso.

Ele colocou a boina, ajeitou-a na cabeça. O luar arrancou reflexos do distintivo prateado.

- Foi um jantar delicioso. Jamais uma cavalinha foi tão gostosa. - Ela riu. - Boa-noite, Penelope.

- Boa-noite, Richard.

Ele se virou e afastou-se, foi engolido pela forte penumbra do jardim e desapareceu. Ela esperou para ouvir o clique do portão se fechando atrás dele. Parada ali, em sua blusa fina, sentia os braços arrepiados. Tornou a tiritar e entrou na casa, fechando a porta.

Passaram-se duas semanas, antes de tornarem a vê-lo. Por alguma extraordinária razão, isto não perturbou Penelope. Ele havia dito que voltaria quando pudesse, não havia motivos para duvidar disso. Ela esperaria. Pensava muito nele. Durante a agitação do dia, ele nunca estava inteiramente fora de sua mente e, à noite, invadia-lhe os sonhos, fazendo-a acordar com sonolento contentamento, sorrindo, apegada à lembrança do sonho, antes que ela se diluísse e morresse.

Lawrence pareceu mais preocupado.

- Não tenho tido notícias daquele simpático rapaz Lomax - resmungava de quando em quando. - Eu estava ansiando por outra sessão de gamão.

- Oh, ele virá, papai - afirmava ela, tranqüila em sua certeza.

Estavam em setembro. Havia um veranico. Entardeceres e noites frios, dias de céu límpido e sol dourado, brilhante. As folhas começavam a mudar de cor, a cair, revoluteando no ar parado, salpicando a relva. O canteiro diante da casa estava colorido de dálias, e as últimas rosas do verão abriam suas faces aveludadas, enchendo o ar com uma fragrância que, por ser tão preciosa, parecia duas vezes mais forte do que a de junho.

Um sábado, durante o almoço, Clark e Ronald anunciaram que iam descer até a praia, para nadar com um grupo de colegas do colégio. Doris, Penelope e Nancy não foram convidadas a ir com eles. Assim, os dois partiram, precipitando-se pelo caminho do jardim, como se não houvesse um momento a perder, carregados de toalhas e pás, um pacote de sanduíches de presunto e uma garrafa de limonada.

Com os meninos fora do caminho, a tarde cálida ficou silenciosa e vazia. Lawrence foi tirar uma soneca perto da janela aberta, na sala de estar. Doris levou Nancy para o jardim. Com os pratos lavados e a cozinha arrumada, Penelope foi até o pomar e recolheu do varal o enorme volume de roupa lavada naquele dia. De volta à cozinha, dobrou as pilhas de colchas, lençóis e toalhas docemente perfumadas, deixando de lado as camisas e fronhas para serem passadas a ferro. Mais tarde. Isso poderia ser feito mais tarde. O dia lá fora era convidativo. Saiu da cozinha e caminhou até o vestíbulo onde somente o relógio de pé tiquetaqueava, e uma abelha sonolenta zumbia em uma vidraça. A porta da frente estava aberta, e a claridade dourada penetrava, banhando o tapete gasto. No gramado, Doris estava sentada em uma velha cadeira de jardim, tendo ao colo uma cesta com peças para cerzir, enquanto Nancy brincava alegremente em seu cercado de areia. O cercado tinha sido construído por Ernie. A areia viera da praia, na carroça de verduras do Sr. Penberth. Com o tempo estável, Nancy divertia-se ali, interminavelmente. Estava agora usando um macacão remendado e nada mais, construindo tortas de areia com um velho balde de lata e uma colher de madeira. Penelope juntou-se a elas. Doris espalhara um lençol velho no chão e ali ela se sentou, contemplando Nancy divertida pela concentração no rosto da criança, fascinada pelo bater das pestanas escuras nas bochechas arredondadas, as mãozinhas de covinhas socando a areia.

- Você esteve passando roupa? - perguntou Doris.

- Não. Está quente demais.

Doris ergueu uma camisa amarrotada, o colarinho rasgado de lado e aberto como um sorriso.

- Será que adianta remendar isto?

- Acho que não. Transforme a camisa em trapo para polir.

- Já temos mais trapos para polir do que roupas, nesta casa. Sabe de uma coisa? Quando esta maldita guerra terminar, a melhor coisa que farei será comprar roupas. Roupas novas! Dúzias e dúzias! Estou farta e cansada de remendar. Veja esta blusa de malha de Clark. Remendei-a semana passada e já tem outro enorme buraco no cotovelo. Raios, como será que eles fazem tantos buracos?

- Os dois estão crescendo. - Indolente, Penelope deitou-se de costas desabotoou a blusa e puxou a saia acima dos joelhos nus. - Nada podem fazer, se estão explodindo dentro das roupas. - Fechou os olhos contra o clarão do sol. - Lembra-se de como eram magricelas e pálidos, quando vieram para cá? Mal seriam reconhecidos agora, tão fortes e queimados, verdadeiros nativos da Cornualha.

- Fico contente por não serem mais velhos. - Doris partiu um pedaço de linha e enfiou a agulha. - Não gostaria de que fossem soldados. Não suportaria...

Ela parou de falar. Penelope esperou.

- O que é que não suportaria? - insistiu.

A resposta de Doris foi um agitado sussurro:

- Temos visitas.

O sol escureceu. Uma sombra caiu sobre seu corpo deitado. Ela abriu os olhos e viu, em pé aos seus pés, o contorno escuro da forma de um homem. Com certo pânico, sentou-se, endireitou as pernas esparramadas começou a abotoar a blusa...

- Sinto muito -disse Richard. - Não queria assustá-las.

- De onde foi que brotou? - exclamou Penelope, já em pé, tendo abotoado o último botão e agora afastando o cabelo do rosto.

- Vim pelo portão de cima, depois cruzei o jardim.

O coração dela disparava. Esperou não ter enrubescido.

- Não o ouvi chegar.

- O momento é inoportuno para uma visita?

- De maneira alguma! Não estamos fazendo nada.

- Estive preso no escritório o dia inteiro e, de repente, não pude suportar mais. Pensei que, com alguma sorte, poderia encontrá-la aqui. - Seus olhos foram de Penelope a Doris, que permanecia sentada em sua cadeira como hipnotizada, a cesta de costura ainda no colo, a agulha com linha segura nos dedos, como alguma espécie de símbolo. - Creio que ainda não nos conhecemos. Richard Lomax. Você deve ser Doris.

- Ela mesma. - Os dois apertaram-se as mãos. Ligeiramente afogueada, Doris acrescentou:

- É um prazer conhecê-lo, sem dúvida.

- Penelope me falou sobre você e seus dois filhos. Não estão por aqui?

- Não. Foram nadar com seus amigos.

- Garotos sensatos. Vocês tinham saído na outra noite, quando vim para o jantar.

- Sim. Levei os garotos para ver The Mikado.

- Eles gostaram?

- Oh, adoraram! Músicas excelentes. Também foi divertido. Não se fartavam de rir.

- Folgo em saber. - Ele voltou a atenção para Nancy, que erguia os olhos para ele, nem um pouco perturbada pela chegada daquele alto estranho em sua vida. - É a sua filhinha?

Penelope assentiu.

- Sim. Esta é Nancy.

Ele se agachou, para ficar à altura da menina.

- Olá. - Nancy encarou-o fixamente. - Que idade ela tem?

- Quase três anos.

Havia areia no rosto de Nancy e o fundilho do macacão estava molhado.

- O que você está fazendo? - Richard perguntou a ela. - Bolos de areia? Vamos, deixe-me ajudar...

Ele pegou o baldinho e tirou da mãozinha passiva de Nancy a colher de madeira. Encheu o balde, pressionou a areia, virou-o para baixo e o suspendeu, mostrando uma perfeita torta de areia. Nancy imediatamente a demoliu. Ele riu, tomando a devolver-lhe os brinquedos.

- Ela tem todos os instintos corretos - comentou.

Então, sentando-se na relva, tirou a boina e desabotoou o colarinho apertado do uniforme cáqui de combate.

- Parece sentir calor - disse Penelope.

- Acertou! Está quente demais, para este tipo de vestimenta.

Desabotoando os botões restantes, ele despiu o blusão, enrolou para cima as mangas da camisa de algodão e prontamente assumiu uma aparência bastante comum e à vontade. Talvez encorajada por isto, Nancy abandonou seu cercado de areia e foi sentar-se no joelho de Penelope, de onde tinha uma boa visão do recém-chegado e podia olhar fixamente para seu rosto.

- Jamais consigo adivinhar a idade de filhos de outras pessoas - comentou ele.

- Você tem filhos? - perguntou Doris, inocentemente.

- Não que eu saiba.

- Como assim?

- Não sou casado.

Penelope baixou a cabeça e encostou a face contra os cachos sedosos do cabelo de Nancy. Richard reclinou-se para trás, sobre os cotovelos, o rosto virado na direção do sol.

- Quente como meados de verão, concordam? Onde mais alguém poderia estar, senão em um jardim? E seu pai, onde está?

- Tirando uma soneca. Imagino que já tenha acordado. Vou dar uma espiada e dizer a ele que você está aqui. Está ansioso por vê-lo e jogar mais uma partida de gamão.

Doris olhou para seu relógio, espetou a agulha na costura e pousou a cesta no chão.

- São quase quatro horas. - disse. - Por que não vou eu e preparo uma xícara de chá para todos nós? Aceitaria uma, não, Richard?

- Não desejaria outra coisa agora!

- Direi a seu pai, Penelope. Ele gosta de tomar chá no jardim.

Ela os deixou. Eles a espiaram entrar na casa.

- Que moça simpática... - disse Richard.

- Tem toda razão.

Penelope começou a colher margaridas e tecer com elas uma guirlanda para Nancy.

- O que esteve fazendo todo este tempo? - perguntou.

- Escalando os penhascos. Sacolejando-me nos vagalhões, naquela maldita barcaça de tropas. Encharcando-me até os ossos. Redigindo ordens, planejando exercícios e escrevendo longos relatórios.

           Houve silêncio entre eles. Ela acrescentou outra margarida à guirlanda. Após um instante, ele perguntou, abruptamente:

- Conhece o General Watson-Grant?

- Sim, claro. Por que pergunta?

- Eu e o Coronel Mellaby fomos convidados para um drinque com ele, na segunda-feira.

Ela sorriu.

- Eu e papai também. A Sra. Watson-Grant telefonou esta manhã, convidando-nos. O Sr. Ridley, o merceeiro, apareceu com duas garrafas de gim, e eles decidiram que era uma boa desculpa para uma pequena reunião.

- Onde é que moram?

- A uns dois quilômetros daqui; no alto da colina, fora da cidade.

- E como chegarão até lá?

- O general enviará seu carro para nos levar. Seu velho jardineiro sabe dirigir. Ele consegue gasolina, entenda, por trabalhar na Guarda Nacional. Tenho certeza de que é absolutamente ilegal, porém acho muita gentileza dele, pois, do contrário, não poderíamos ir.

- Eu esperei que você estivesse lá.

- Por quê?

- Bem, seria alguém que eu já conhecia. E porque imaginei que, mais tarde, poderia levá-la para jantar.

A guirlanda de margaridas tinha ficado bastante comprida. Penelope a ficou segurando, pendendo no ar entre suas duas mãos.

- Está convidando papai e eu... ou o convite é só para mim?

- Só para você. Entretanto, se seu pai quiser ir...

- Ele não iria. Não gosta de ficar acordado até tarde;

- Você iria?

- Sim.

- E onde iremos?

- Não sei.

- O que acha do Sands Hotel...?

- Foi requisitado, desde o começo da guerra. Agora está cheio de feridos em convalescença.

- E o Castle?

O Castle... O ânimo de Penelope baixou, só em pensar no lugar. Durante a primeira e infeliz visita de Ambrose a Carn Cottage, em desespero e procurando alguma forma de distrair o marido, ela sugerira que fossem ao Castle, para o jantar-dançante da noite de sábado. O evento não havia sido mais feliz do que o resto do fim de semana. O salão de refeições, gelado e formal, tinha apenas metade das mesas ocupadas, a comida era insossa, e os demais convivas, idosos. De tempos em tempos, uma banda desanimada tocava uma seleção de melodias antigas, mas eles nem puderam dançar, pois, então, Penelope estava enorme em sua gravidez, e Ambrose não conseguia enlaçá-la.

- Não, eu não gostaria de ir lá - objetou rapidamente. - Os garçons são velhos como tartarugas, e a maioria dos hóspedes usa cadeira de rodas. É terrivelmente depressivo. - Ela considerou o assunto e encontrou uma sugestão bem mais animadora. - Podíamos ir ao Gaston's Bistrô.

- Onde fica isso?

- Logo acima da Praia do Norte. É pequenino, porém tem boa comida. Às vezes, em aniversários e coisas assim, papai nos leva lá. Eu e Doris.

- Gaston's Bistrô. Francamente inesperado. Tem telefone?

- Sim.

- Então, telefonarei reservando uma mesa.

- Doris, ele me convidou para jantar fora.

- Não me diga! Quando?

- Na segunda-feira. Depois da festinha dos Watson-Grant.

- Você disse que iria?

- Disse. Por quê? Acha que eu devia ter recusado?

- Recusado? Então, seria preciso mandar examinar sua cabeça. Acho que ele é encantador. Sei lá, de certa maneira, faz-me recordar Gregory Peck.

- Oh, Doris, ele não se parece com Gregory Peck nem um pouquinho!

- Não me refiro à aparência, mas àquele seu jeitão quieto. Sabe o que quero dizer, não? E o que vai usar?

- Ainda não pensei. Encontrarei alguma coisa.

Doris exasperou-se.

- Sabe de uma coisa? Você às vezes me deixa louca! Vá comprar alguma roupa nova! Nunca a vi gastar nada consigo mesma! Vá até a cidade, a Madame Jolie, veja o que ela lhe arranja.

- Não tenho mais cupom para roupas. Gastei o último em horríveis toalhas para chá e uma camisola quente para Nancy.

- Pelo amor de Deus, só precisará de sete! Garanto como, entre nós seis, podemos juntar sete cupons para roupas. E se não for possível, sei onde posso comprar cupons no mercado negro.

- Isso é contra a lei!

- Para o diabo com a lei! Esta é uma ocasião única! Sua primeira saída com um homem, em anos! Viva perigosamente, menina! Na manhã de segunda-feira, vá à cidade e compre alguma coisa bem bonita para vestir.

Ela não recordava a última vez em que entrara numa loja de roupas femininas, mas como Madame Jolie na realidade era a Sra. Coles, esposa do guarda-costeiro, gorda e bonachona como a avó de todo mundo, não havia motivo para sentir-se intimidada.

- Minha querida, há anos que não a vejo por aqui! - comentou ela, quando Penelope cruzou a entrada.

- Preciso de um vestido novo - disse-lhe Penelope, sem perda de tempo.

- Não tenho nada muito especial em estoque, meu bem, a maioria não passa de roupas comuns. Não se consegue mais nada atualmente! Entretanto, há um belo vestido vermelho que talvez lhe sirva. Vermelho sempre foi a sua cor. Este é estampado com margaridas. De raiom, naturalmente, porém o tecido é sedoso ao toque.

Ela trouxe o vestido. Fechada em um cubículo encortinado, Penelope despiu suas roupas e passou o vestido vermelho pela cabeça. Ele caiu macio, desprendendo um excitante cheiro de novo. Emergindo de trás do cortinado modesto, ela abotoou os botões e afivelou o cinto de couro vermelho.

- Oh, ficou perfeito! - exclamou Madame Jolie.

Ela caminhou até o espelho de corpo inteiro e olhou para sua imagem, tentando ver-se com os olhos de Richard. O vestido tinha gola quadrada e ombros acolchoados com uma saia de pregas fundas. O cinto largo fazia sua cintura parecer diminuta e, ao virar-se para inspecionar as costas, a saia se abriu em leque com o movimento; o efeito foi tão feminino, tão sedutor, que a deixou deliciada com a própria aparência. Nenhum vestido jamais lhe infundira tanta confiança em si. Era mais ou menos como apaixonar-se por ele, e Penelope soube que precisava obtê-lo.

- Quanto custa?

Madame Jolie remexeu nas costas do decote, em busca da etiqueta com o preço.

- Sete libras e dez xelins. E sete cupons receio.

- Fico com ele.

- Tomou a decisão acertada, meu bem. Curioso, não? O primeiro vestido que experimentou. Pensei nele, no momento em que a vi entrar. Poderia ter sido feito especialmente para você. Que golpe de sorte!

- Gosta de meu vestido novo, papai?

Penelope o tirou da sacola de papel, sacudiu-o para desfazer as dobras e o suspendeu à frente do corpo. Em sua poltrona, ele tirou os óculos e reclinou-se nas almofadas do encosto, com olhos semicerrados, para ver melhor o efeito.

- É uma cor que lhe fica bem... sim, gosto dele. Bem, mas por que resolveu, subitamente, comprar um vestido novo?

- Porque vamos esta noite à reunião dos Watson-Grant. Esqueceu?

- Não, mas esqueci como chegaremos lá.

- O general mandará seu carro apanhar-nos.

- É muita gentileza dele.

- E alguém virá trazê-lo de volta. Porque eu vou jantar fora.

Ele tornou a colocar os óculos e, por um longo momento, perscrutou a filha por sobre as lentes. Então disse:

- Com Richard Lomax.

Não era uma pergunta.

- Exatamente.

Lawrence estendeu a mão para seu jornal.

- Muito bem.

- Ouça, papai. Você acha que devo ir?

- Por que não deveria?

- Sou uma senhora casada.

- Mas não uma desmiolada burguesa.

Ela vacilou.

- Suponhamos que eu fique envolvida.

- Acha provável?

- Poderia acontecer.

- Tudo bem. Fique envolvida!

- Sabe de uma coisa, papai? Eu gosto realmente de você!

- Fico gratificado. Por quê?

- Por mil motivos, mas, principalmente, porque sempre podemos conversar.

- Seria um desastre se não pudéssemos. E quanto a Richard Lomax, você não é mais uma criança. Não gostaria de vê-la magoada, porém deve saber o que faz. Você é que toma suas decisões.

- Eu sei - disse ela.

Não respondeu "eu tomei".

Eles foram os últimos a chegar à festa dos Watson-Grant. Isto aconteceu porque quando John Tonkins, o velho jardineiro do general, chegou para apanhá-los, Penelope continuava diante de seu toucador, angustiada e sem saber que jeito dar em seu cabelo. Finalmente decidiu penteá-lo para cima. No último instante, entretanto, com certa exasperação, arrancou todos os grampos e o deixou solto. Depois disso, precisou encontrar algum tipo de agasalho, porque o vestido novo era fino, e as noites de setembro ficavam gélidas. Não tinha casaco, apenas seu poncho de manta xadrez, mas o efeito foi tão desolador, que mais momentos foram perdidos, em busca de um velho xale de caxemira que fora de Sophie. Agarrada a ele, correndo escada abaixo em busca do pai, ela o encontrou na cozinha, por ter subitamente decidido que precisava lustrar os sapatos.

- Papai! O carro está lá fora. John nos espera!

- Não há outro jeito. Estes são meus melhores sapatos e não são polidos há quatro meses.

- Como sabe que foram quatro meses?

- Porque há quatro meses fomos pela última vez à casa dos Watson-Grant.

- Oh, papai! - As mãos deformadas dele lutavam com a lata de graxa para calçados. - Deixe. Eu faço isso.

Ela os engraxou o mais rapidamente que pôde, manejando escovas e sujando as mãos com graxa marrom. Lavou-as enquanto ele calçava os sapatos, depois ajoelhou-se a fim de amarrá-los para o pai. Por fim, nas passadas lentas de Lawrence, eles saíram da casa e cruzaram o jardim até o portão de cima, onde John Tonkins e o antigo Rover os esperavam.

- Lamento tê-lo feito esperar, John.

- Não tem importância, Sr. Stern.

Ele manteve a porta aberta e Lawrence introduziu-se penosamente dentro do carro, no banco dianteiro. Penelope acomodou-se no traseiro. John assumiu seu lugar ao volante, e eles partiram, mas não muito depressa, porque aquele motorista era cauteloso com o carro de seu empregador e dirigia como se uma bomba-relógio pudesse explodir, caso fizesse mais de cinqüenta quilômetros por hora. Finalmente, às sete horas, subiram laboriosamente a alameda do invejável jardim do general, onde surgia uma profusão de rododendros, azaléias, camélias e fúcsias. O carro parou diante da porta principal da casa, com um rangido. Três ou quatro carros mais já estavam estacionados na alameda de cascalho. Penelope reconheceu o velho Morris dos Trubshot, mas não o veículo regulamentar de cor cáqui, com a insígnia da Marinha Real. Um jovem motorista marinheiro sentava-se ao volante, ocupando o tempo em ler o Picture Post. Ao sair do Rover, ela se viu sorrindo secretamente.

Entraram. Antes da guerra, uma empregada uniformizada os teria recebido, mas agora não havia ninguém. O saguão estava vazio e um murmúrio de conversa os guiou através da sala de visitas até a estufa de plantas do general, onde a reunião já se encontrava em pleno andamento.

Era uma grande e elaborada estufa, construí da pelos Watson-Grant quando o general finalmente deixara o Exército e eles haviam partido da Índia para sempre. Ali havia palmeiras envasadas, cadeiras de vime com alto espaldar, banquetas em pele de camelo, tapetes de pele de tigre e um gongo de bronze, suspenso entre as presas de marfim de algum elefante há muito falecido.

- Oh, finalmente chegaram! - exclamou a Sra. Watson-Grant, aproximando-se para recebê-los. Era uma mulher miúda e magra, de cabelos curtos, a pele curtida como couro pelo sol cruel da Índia, fumante inveterada e insistente jogadora de bridge. Se fosse dado crédito aos boatos, em Quetta ela passara a maior parte da vida no dorso de um cavalo e, certa vez, enfrentara um tigre atacante baleando-o friamente na cabeça. Agora, vira-se reduzida a dirigir

a Cruz Vermelha local e a cultivar sua Horta da Vitória, porém sentia falta da movimentação social dos velhos tempos, e era típico que, tendo posto as mãos em duas garrafas de gim, imediatamente desse uma festa. - Atrasados como sempre - acrescentou, porque era daquelas que não tinham papas na língua. - O que vão beber? Gim com laranja ou gim com limão? Naturalmente, já conhecem todos, exceto, talvez, o Coronel Mellabye o Major Lomax...

Penelope olhou em volta. Avistou os Springbum, de St. Enedoc, e a Sra. Trubshot, alta e espectral, envolta em chiffon lilás e usando um enorme chapéu com uma fita de veludo e uma fivela. Com ela estava a Srta. Pawson, calçando os inexoráveis sapatos masculinos, com solado de borracha espesso como a roda de um tanque. Avistou o Coronel Trubshot, que monopolizara o desconhecido Coronel Mellabye assim permaneceria, como de hábito, sem dúvida expondo suas opiniões sobre a condução da guerra. O coronel da Marinha Real era bem mais alto do que o Coronel Trubshot, um homem atraente, com um bigode eriçado e cabelo rareando, que precisava inclinar-se ligeiramente, a fim de ouvir o que lhe era dito.

Por sua expressão de polido e atencioso tédio, Penelope adivinhou que não devia ser nada fascinante. Avistou Richard, em pé no lado extremo do aposento, de costas para o jardim. A Srta. Preedy estava com ele. Ela vestia uma blusa húngara bordada e uma saia camponesa pregueada, dando a impressão de estar prestes a iniciar alguma dança folclórica. Ele lhe tinha dito algo e ela prorrompera em uma enfiada de contidas risadinhas, bandeando a cabeça recatadamente. Richard ergueu os olhos, viu Penelope e enviou-lhe uma levíssima piscadela.

- Penélope! - O General Watson-Grant materializou-se ao seu lado. - Aceita um drinque? Graças a Deus vocês chegaram! Receei que não viessem.

- Sim, nós nos atrasamos. Deixamos o pobre John Tonkins esperando.

- Não importa. Eu estava um pouco ansioso, por causa destes membros da Marinha Real. Pobres coitados, convidados para uma festinha, vendo-se em uma sala cheia de velharias. Eu teria convidado pessoas mais animadas para lhes fazerem companhia, porém não conseguia imaginar nenhuma. Apenas você.

- Se fosse o senhor, eu não me preocuparia. Eles parecem bem satisfeitos.

- Vou apresentá-la.

- Nós já conhecemos o Major Lomax.

- É mesmo? Quando foi que o conheceram?

- Papai esteve conversando com ele na Galeria.

- Parecem excelentes pessoas. - O General apertou os olhos, preocupado em seu papel de anfitrião. - Vou salvar Mellaby. Já teve dez minutos contínuos de Trubshot, o que é suficiente para qualquer homem.

- Deixou-a tão abruptamente como tinha surgido e, abandonada, Penelope foi falar com a Srta. Pawson e ouvir sobre seus extintores de incêndio. A reunião prosseguiu. Durante algum tempo, Richard não a procurou nem a reclamou, porém isto não importava, já que apenas alongava a antecipação de finalmente ver-se ao lado dele, de estar de novo com ele. Como se executassem alguma dança ritual, eles circularam, um nunca estando nas proximidades do outro; permaneciam sorridentes, ouvindo conversas alheias. Por fim, Penelope, se viu junto à porta aberta que dava para o jardim. Ela se virou para largar o copo vazio, mas foi atraída pela vista do jardim do general. O gramado ondulado estava salpicado de claridade dourada, nuvens de mosquitos dançavam à sombra penumbrosa das árvores. O ar parado estava animado pelos arrulhos dos pombos silvestres e adocicado com os aromas de um cálido anoitecer de setembro.

- Olá.

Ele havia parado ao seu lado.

-Olá.

Richard tirou o copo vazio de sua mão.

- Quer outro drinque?

- Não - respondeu ela, balançando a cabeça.

Ele encontrou espaço em uma mesa que suportava o vaso de uma palmeira e ali depositou o copo.

- Passei meia hora de ansiedade, imaginando que vocês talvez não viessem.

- Sempre chegamos atrasados em tudo.

- Ele olhou em volta.

- Estou maravilhado por este ambiente fascinante. Poderíamos estar em Poona...

- Eu devia tê-lo avisado.

- Por que deveria? É simplesmente delicioso.

- Acho que uma estufa de plantas é o mais desejável dos aposentos. Um dia, se chegar a ter minha própria casa, mandarei construir uma. Tão grande, espaçosa e ensolarada como esta.

- E quererá enchê-la de peles de tigres e gongos de bronze?

Ela sorriu.

- Papai costuma dizer que aqui falta apenas o punkah wallah.(*)

- Ou talvez uma horda de dervixes, irrompendo do matagal, dispostos a matar e destruir. Acha que o tapete foi produto de uma caçada de nosso anfitrião?

- Mais provavelmente, foi a Sra. Watson-Grant o caçador. A sala de estar contém fotos dela usando um espetacular capacete, tendo aos pés a caça abatida.

- Já foi apresentada ao Coronel Mellaby?

- Não. Ele está sendo monopolizado. Não pude aproximar-me dele.

- Venha e eu a apresentarei. Acho que, então, ele dirá que chegou a hora de nos retirarmos. Ele nos levará até o QG no carro oficial, e depois teremos que caminhar. Você se importa?

- Nem um pouco.

- E quanto a seu pai...?

- John Tonkins o levará para casa.

Ele pousou a mão debaixo de seu cotovelo.

- Então, vamos...

Aconteceu como ele previra. Apresentado a Penelope, o Coronel Mellaby manteve uma breve e polida conversa. Depois olhou para seu relógio e anunciou que chegara a hora de partir. Foram feitas as despedidas. Penelope certificou-se de que Lawrence seria levado a Carn Cottage e deu-lhe o beijo de boa-noite. O general conduziu os três à porta, e Penelope recolheu seu xale da poltrona onde o deixara. No exterior, o motorista da Marinha Real guardou apressadamente seu Picture Post, saltou do carro e manteve a porta aberta. O coronel sentou-se na frente, enquanto Penelope e Richard ocupavam o assento traseiro. Afastaram-se solenemente, porém o motorista-marinheiro não era tão tímido como o pobre John Tonkins, de maneira que em pouquíssimo tempo eles chegavam ao velho Hotel White Caps, onde desceram do carro.

 

(*) Artefato antigamente usado na Índia, consistindo de um grande pedaço de tecido sobre uma estrutura, mantido em movimento por meio de uma corda e uma polia, com a finalidade de movimentar o ar, de maneira como faria um ventilador. (N. da T.)

 

- Vocês dois vão jantar fora? Se quiserem, levem o carro e meu motorista.

- Obrigado, senhor, mas iremos caminhando. É uma linda noite.

- Sem dúvida. Oh, bem, divirtam-se!

O coronel ofereceu-lhes um assentimento paternal, despediu o motorista, deu meia-volta e subiu os degraus da entrada, desaparecendo atrás da porta.

- Vamos indo? - sugeriu Richard.

Era de fato um belo anoitecer, perolado e quieto; o mar calmo estava translúcido, cintilando como o interior de uma concha. O sol já se pusera, porém o amplo firmamento continuava manchado com o róseo de sua partida. Eles caminharam, descendo para a cidade por calçadas vazias e passando por casas comerciais já fechadas.

Havia pouca gente à vista, mas, misturados aos habitantes, havia grupos incertos de Rangers americanos, com o passe de licença sob o cinto e nenhuma forma aparente de se estarem divertindo. Um ou dois haviam encontrado parceiras, risonhas jovens de dezesseis anos, que se penduravam aos seus cotovelos. Outros faziam fila diante do cinema, esperando que abrisse, ou palmilhavam as ruas com suas botas de solado macio em busca de prováveis pubs. Quando percebiam a aproximação de Richard tais grupos tinham o dom de desaparecer misteriosamente de vista.

- Sinto pena deles - disse Penelope.

- Está tudo bem com eles.

- Seria bom se também fossem convidados a festas.

- Não creio que tivessem muito em comum com os convidados do General Watson-Grant.

- Ele estava um pouco constrangido, por ter convidado vocês para uma reunião de gente idosa.

- Foi o que disse? Pois estava muito enganado. Achei todas aquelas pessoas fascinantes!

Isto parecia uma exagerada afirmativa.

- Eu gosto dos Springbum. Ele é fazendeiro em St. Enedoc. E aprecio imensamente os Watson-Grant.

- O que me diz da Srta. Pawson e da Srta. Preedy?

- Oh, elas são lésbicas.

- Foi o que pensei. E quanto aos Trubshot?

- Eles são uma cruz que todos nós carregamos. Ela não é das piores, porém o marido é pura carne-de-pescoço; é chefe da PAA, vive acusando as pessoas de deixarem escapar frestas de luz em suas casas, de modo que são obrigadas a comparecer ao tribunal e pagar multas.

- Admito que não seja a melhor maneira de conquistar amigos e influenciar pessoas, porém imagino que ele esteja apenas fazendo o seu trabalho.

- Você é muito mais benévolo com ele, do que eu e papai. Uma outra coisa que nunca chegamos a compreender, é por que um homenzinho daqueles casou com uma mulher tão alta. Ele mal lhe chega à cintura.

Richard refletiu nisto.

- Meu pai tinha um amigo baixinho que fez a mesma coisa. Quando meu pai lhe perguntou por que não escolhera uma mulher de sua própria altura, ele disse que, se tivesse feito isso, seriam sempre conhecidos como "aquele casalzinho engraçado". Talvez o Coronel Trubshot tenha escolhido sua esposa pelo mesmo motivo.

- Sim, é possível. Eu nunca havia pensado nisso...

Ela o conduziu à Praia do Norte pela rota mais curta, através de ruelas dos fundos e praças lajeadas, subindo uma ladeira incrivelmente íngreme e então descendo uma aléia serpenteante, tão empinada quanto a subida. Emergindo dali, chegaram à rua encurvada e lajeada que bordejava a costa norte. Uma fileira de compridos chalés caiados tinha a fachada voltada para a baía, o mar e as longas ondas da rebentação.

- Vi esta baía freqüentemente do mar - comentou ele - porém, jamais havia estado aqui...

- Gosto mais desta praia do que da outra. Sempre foi vazia e brava, de certa forma muito mais bonita. Bem, estamos chegando. É aquele chalezinho com o cartaz e as janelas abauladas.

- Quem é Gaston?

- Um francês legítimo, da Bretanha. Costumava pescar nos arredores de Newlyn, em um lagosteiro. Casou com uma moça da Cornualha e, mais tarde, perdeu a perna em um terrível acidente no mar. Depois disso, foi impossível continuar pescando, de maneira que ele e Grace, sua esposa, abriram este lugar, faz quase cinco anos. - Penelope esperava que ele não achasse tudo aquilo um tanto humilde. - Como eu disse, não é muito pomposo.

Ele sorriu, enquanto estendia a mão para abrir a porta.

- Não gosto de lugares pomposos - disse.

Acima deles tilintou uma sineta. Viram-se em um corredor ladrilhado e imediatamente sentiram o cheiro de comida apetitosa, temperada com alho e ervas, ouviram o som da música amortecida. Um alegre acordeão. Paris, nostalgia. Um arco levava ao pequeno refeitório, de vigas no teto e caiado de branco, as mesas arrumadas com toalhas de xadrez vermelho e guardanapos brancos, dobrados. Havia velas e canecas com flores frescas em cada mesa. Em uma lareira gigantesca, lenhos atirados pelo mar faiscavam e crepitavam. 

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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