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OS CATADORES DE CONCHAS / Rosamunde Pilcher
OS CATADORES DE CONCHAS / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CATADORES DE CONCHAS

Primeira Parte

 

           “Os catadores de conchas” é o 13º livro de Rosamunde Pilcher e, sem a menor sombra de dúvidas, seu melhor romance.

            Assim que foi lançado, em 1988, na Inglaterra, conquistou o público leitor e continua até hoje, com sucesso absoluto, na lista dos best sellers da revista americana Publishers Weekly e do The New York Times Book Review.

            Penelope Keeling, personagem central do romance, é filha de um pintor vitoriano idoso e de uma jovem francesa, liberal e independente. “Os catadores de conchas” é o livro que conta a vida de Penelope: a história de uma mulher parecida com milhares de outras mulheres. E é exatamente a sua vida tão comum e igual à de qualquer mulher que torna este romance tão atraente.

            Com altos e baixos, Penelope foi feliz por ter sido uma filha amada, e infeliz a por ter-se casado com o homem errado. Encontrou mais tarde o verdadeiro amor, mas as tragédias e problemas ocasionados a por esse encontro deixaram marcas profundas. Teve três filhos - Nancy, Olivia e Noel, cada um com seu mundo estruturado, intransponível, com suas desilusões e alegrias.

            É nesse universo que o leitor vai penetrar, envolvendo-se com uma mulher vigorosa, firme e bela. Ao longo de 6OO páginas, O mundo de Penelope arrebatará o leitor de tal maneira, que será impossível não se envolver com o destino da família Keeling.

            Como declarou a autora, "senti que me coloquei inteira no livro e que morri no instante em que acabei de escrevê-lo". A saudade de se despedir de Penelope ao final da leitura de “Os catadores de conchas”, inevitavelmente, todos os leitores irão sentir.

 

 

            O táxi, um antigo Rover recendendo a fumaça velha de cigarros, rodava pela solitária estrada rural, em marcha indolente. Era começo de tarde, já final de fevereiro, um mágico dia de inverno de céu pálido e sem nuvens, envolto em gélida e cortante friagem. O sol brilhava, produzindo sombras alongadas, apesar do pouco calor, e os campos arados pareciam duros como ferro. Das chaminés das casas de fazenda dispersas e dos pequenos chalés de pedra, a fumaça subia alto, em uma coluna reta no ar parado, enquanto bandos de ovelhas, pejadas de lã e em incipiente prenhez, reuniam-se ao redor de gamelas entulhadas de feno fresco.

            Sentada no banco traseiro do táxi, Penelope Keeling olhava através do vidro empoeirado da janela, concluindo que a familiar paisagem rural jamais lhe parecera tão bela.

            A estrada possuía curvas íngremes; mais adiante, uma placa indicava a estradinha que levava a Temple Pudley. O motorista diminuiu a marcha e, executando uma penosa manobra, entrou na curva, sacolejando colina abaixo, entre sebes altas e cerradas que ocultavam a visão da paisagem. Pouco depois, entravam na aldeia, com suas casas construídas com pedra dourada das Cotswolds, a loja de jornais e revistas, o açougue, o pub "The Sudeley Arms" e a

igreja - recuada da rua, por trás de um vetusto cemitério e da escura folhagem de alguns teixos, adequadamente sombrios. Havia poucas pessoas por ali. As crianças estavam na escola, e a temperatura frígida mantinha o resto dos moradores dentro de casa. Apenas um velho, de luvas e cachecol, levava seu idoso cão para passear.

            - Qual é a casa? -perguntou o motorista do táxi, olhando por sobre o ombro.

            Ela se inclinou para a frente, ridiculamente excitada e ansiosa.

            - Fica um pouquinho mais à frente. Depois da aldeia. São os portões brancos à direita. Estão abertos. Veja! Chegamos!

            O motorista atravessou os portões e parou o carro nos fundos da casa.

            Ela abriu a porta do carro e saltou, aconchegando contra o corpo a pelerine azul-escura, para proteger-se do frio. Abrindo a bolsa, encontrou a chave e foi abrir aporta. Às suas costas, o motorista do táxi abriu o porta-malas e retirou de lá uma pequena valise. Penelope se virou para apanhá-la, porém o homem continuou a segurá-la, preocupado.

            - Não há ninguém aqui para recebê-la?

            - Não. Ninguém. Vivo sozinha e todos acham que ainda estou no hospital.

            - Está tudo bem com a senhora?

            Ela sorriu para o rosto amistoso do motorista. Era um homem bastante jovem, de cabelos espessos e claros.

            - E claro que sim.

           Ele vacilou, não desejando parecer presunçoso.

            - Se quiser, posso levar sua valise para dentro. Para o andar de cima, se for preciso.

            - Oh, é muita gentileza sua, mas eu me arranjo.

            - Não é trabalho algum - insistiu ele, seguindo-a à cozinha.

            Penelope abriu uma porta e o guiou pelos estreitos degraus do chalé. Tudo estava clinicamente limpo. A Sra. Plackett, que Deus a abençoasse, não perdera tempo durante os poucos dias de ausência de Penelope. Ela até gostava quando Penelope se ausentava, por que podia entregar-se a tarefas como lavar a tinta branca dos corrimãos e balaústres da escada, ferver as flanelas e polir o que houvesse em prata e latão.

            A porta de seu quarto estava aberta. Ela entrou, e o rapaz a seguiu, com a valise na mão.

            - Há algo mais que eu possa fazer? - perguntou ele.

            - Em absoluto. Muito bem, quanto lhe devo?

            Ele lhe disse, parecendo constrangido, como se aquilo fosse vergonhoso. Ela pagou, mandando-o ficar com o troco. Ele agradeceu, e os dois desceram a escada.

            Não obstante, ele continuou por ali, parecendo relutar em ir embora. Penelope disse para si mesma que talvez o rapaz tivesse alguma avó por quem sentisse a mesma espécie de responsabilidade.

            - A senhora acha que estará bem, então?

            - Eu lhe garanto que sim. Minha amiga, a Sra. Plackett, virá amanhã. Assim, não ficarei mais sozinha.

            Por algum motivo, isto o tranqüilizou.

            - Bem, vou indo.

            - Adeus. E obrigada.

            - Não tem de quê.

            Assim que ele foi embora, Penelope tornou a entrar pelos fundos e fechou a porta. Estava só. Que alívio! Em casa. Em sua casa, entre seus bens, em sua cozinha. O aquecedor Aga, alimentado a óleo, fervilhou pacificamente para si mesmo e tudo ficou beatificamente cálido. Ela abriu os prendedores da pelerine e a deixou cair no encosto de uma poltrona. Uma pilha de correspondência descansava sobre a mesa imaculadamente limpa, e Penelope a vistoriou - ali parecia nada haver de vital e interessante. Abandonando a correspondência, cruzou a cozinha e abriu a porta envidraçada que dava para a sua estufa. A idéia de suas preciosas plantas, talvez agonizando de frio ou de sede, a tinha preocupado um pouco durante os últimos dias, porém a Sra. Plackett cuidara delas, como cuidara do resto. A terra nos vasos estava úmida e argilosa, as folhas, viçosas e verdes. Um prematuro gerânio exibia uma coroa de pequeninos botões, e os jacintos haviam crescido pelo menos sete centímetros. Além dos vidros, ficava o seu jardim crestado pelo inverno, as árvores desfolhadas e negras compondo um rendilhado contra o céu pálido, porém havia anêmonas brotando através da turfa musgosa debaixo do castanheiro, e surgiam as primeiras pétalas dourado-amanteigadas dos acônitos.

            Saindo da estufa, ela subiu para o andar superior, pensando desfazer a valise mas, em vez disto, entregou-se à pura alegria de estar novamente em casa. Vagou de um lado para outro, abrindo portas, inspecionando cada quarto, espiando de cada janela, tocando os móveis, ajeitando uma cortina. Nada havia fora do lugar. Nada mudara. Novamente no andar térreo e na cozinha, ela recolheu suas cartas, atravessou a sala de refeições e entrou na de estar. Ali estavam seus bens mais preciosos: sua secretária, suas flores, seus retratos. A lenha fora arrumada na lareira. Penelope acendeu um fósforo e ficou de joelhos, para alcançar o jornal. A chama tremulou. Os gravetos secos incendiaram-se e estalaram. Ela empilhou os troncos, e as chamas elevaram-se chaminé acima. Agora, a casa estava viva outra vez e, com esta pequena e agradável tarefa encerrada não havia mais qualquer justificativa impedindo que telefonasse para um de seus filhos e contasse o que havia feito.

            Certo, mas qual deles? Sentada na poltrona, considerou as alternativas. Deveria ser Nancy, naturalmente, porque era a mais velha e a que gostava de imaginar-se inteiramente responsável pela mãe. Nancy, no entanto ficaria chocada, tomada de pânico. Não pouparia censuras. Penelope concluiu que ainda não se encontrava suficientemente forte para enfrentar Nancy.

            Noel, então? Talvez. como o homem da família, ele tivesse o direito de ser informado em primeiro lugar. Entretanto, a idéia de esperar algum tipo prático de ajuda ou conselho da parte dele era tão hilariante, que Penelope se viu sorrindo. "Noel, eu me dei alta do hospital e voltei para casa.” A resposta dele a tal tipo de comunicação provavelmente seria: "É mesmo?"

            Em vista disto Penelope fez aquilo que, o tempo todo sabia que acabaria fazendo. Estendeu a mão para o telefone e discou o número do escritório de Olivia, em Londres.

            -Venus.

            A telefonista parecia cantarolar o nome da revista.

            - Pode me ligar com Olivia Keeling. por favor?

            - Um momento.

            Penelope aguardou.

            - Secretária da Srta. Keeling.

            Conseguir falar com Olivia era algo mais ou menos semelhante a ter uma conversinha com o Presidente dos Estados Unidos.

            - Eu gostaria de falar com a Srta. Kelling, por favor.

            - Sinto muito, mas a Srta. Kelling está em reunião.

            - Isto significa que está sentada à mesa da diretoria ou em seu gabinete?

           - Ela está em seu gabinete... - a voz da secretária soou desconcertada, mas acrescentou: porém em companhia de uma pessoa.

            - Interrompa-a, por favor. Quem fala é a mãe dela, o que quero dizer à srta. Kelling é importante.

            - Não... não pode esperar?

            - Nem um minuto - declarou Penelope com firmeza. – De qualquer modo, não será demorado.

            - Está bem.

            Outra espera. Então, finalmente Olivia.

            - Mamma?

            - Desculpe se a incomodo.

            - Mamma! Há algo errado?

            - Não, não há nada errado.

           - Oh, graças a Deus! Está ligando do hospital?

            - Não. Estou ligando de casa.

            - De casa? Quando foi que voltou para casa?

            - Mais ou menos às duas e meia desta tarde.

            -Ora, mas eu pensei que iam deixar você no hospital durante uma semana, pelo menos!

            - Era o que eles pretendiam, mas fiquei terrivelmente entediada, absolutamente exausta. Não dormia um minuto à noite, na cama ao lado da minha havia uma velha que não parava de falar. Não, falar não é bem o termo. Ela esbravejava, pobre alma. Então disse ao médico que não suportava mais um minuto daquilo, arrumei a mala e vim embora.

            - Você mesma se deu alta! - exclamou Olívia, parecendo resignada, mas nem um pouco surpresa.

            - Exatamente. Nada há de errado comigo. Assim, tomei um ótimo táxi com um excelente motorista, e ele me trouxe para casa.

            - E o médico protestou?

            - Em alto e bom tom, mas não havia muito o que ele pudesse fazer a respeito.

            - Oh, mamma! - Havia riso na voz de Olivia. - Você é mesmo travessa! Eu já me dispunha a reservar este fim de semana para uma visita hospitalar... Sabe como é, levar quilos de uvas para você e comê-las todas eu mesma...

            - Poderá vir aqui - disse Penelope. no mesmo instante desejando não ter dito, para não dar impressão de melancólica e solitária. De qualquer modo, soou como se precisasse da companhia de Olivia.

            - Bem... se você se sente mesmo em forma, adiarei um pouquinho a visita. No momento, estou com um fim de semana ocupadíssimo. Escute, mamma, já falou com Nancy?

            - Não. Pensei em ligar para ela, mas acovardei-me. Sabe como é espalhafatosa, Ligarei amanhã de manhã, quando a Sra. Plackett estiver aqui. Então, nossa conversa terá que ser mais comedida.

            - Como está se sentindo agora? Diga a verdade.

            - Perfeitamente bem. Exceto que, como já falei, fiquei com o sono atrasado.

            - Não está exagerando, está? Quero dizer, não foi direto ao jardim, começando a cavar trincheiras ou derrubando árvores?

            - Não vou fazer nada disso. Prometo. De qualquer modo, o solo está duro como ferro. Não conseguiria enfiar uma pá na terra.

            - Graças a Deus por pequeninas coisas! Escute, mamma, preciso desligar agora. Tenho um colega comigo, aqui no escritório...

            - Eu sei. Sua secretária já me disse. Lamento ter incomodado, mas queria contar a você o que aconteceu.

            - Fico satisfeita. Ligue de novo para mim, mamma, e alegre-se um pouquinho.

            - Está bem. Adeus, minha querida.

            - Adeus, mamma.

            Penelope desligou, tornou a colocar o telefone sobre a mesa e recostou-se na poltrona.

            Agora, nada mais havia a ser feito. Percebeu que estava muito cansada, porém era um cansaço suave, acalentado e confortado por tudo que a cercava, como se sua casa fosse uma pessoa carinhosa, que a abraçasse com ternura. Na sala aquecida, com a lareira acesa e a funda poltrona familiar, ela se percebeu surpresa, impregnada pelo tipo de felicidade irracional que há anos não sentia. Deve ser porque estou viva. Tenho sessenta e quatro anos e, se devo crer naqueles médicos idiotas, sofri um ataque cardíaco. Ou qualquer coisa assim. Sobrevivi, agora isso ficou para trás, e não falarei mais a respeito, nunca mais. Nem pensarei. Porque estou viva. Posso tocar, ver, ouvir, cheirar, saborear; cuidar de mim mesma; deixar o hospital por vontade, pegar um táxi e voltar para casa. Há anêmonas brotando no jardim, e a primavera está a caminho. Eu a verei. Testemunharei o milagre anual, sentirei o sol começar a ficar mais quente à medida que as semanas passarem. E, porque estou viva verei tudo isto acontecer e serei parte do milagre.

            Recordou a história do querido Maurice Chevalier. "Qual a sensação de estar com setenta anos?", perguntaram a ele. "Não é tão ruim", respondera Chevalier, "se a gente considerar a alternativa."

            Para Penelope Keeling, no entanto, a sensação era mil vezes melhor do que apenas "não tão ruim". Agora, viver se tornara não a simples existência que a pessoa tinha como garantida, mas um prêmio, uma dádiva, com cada dia ainda por vir, transformado em uma experiência a ser saboreada. O tempo não duraria para sempre. Não desperdiçarei um só momento, prometeu a si mesma. Jamais se sentira tão forte, tão otimista. Era como se voltasse a ser jovem, desabrochando, e algo maravilhoso estivesse prestes a acontecer.

 

                               NANCY

            Às vezes Nancy Chamberlain achava que a mais rotineira ou inocente ocupação estava condenada, inevitavelmente, a tornar-se carregada de tediosa complicação.

            Como, por exemplo, naquela manhã. Um dia enfadonho, em meados de março. Tudo quanto ela estava fazendo... tudo quanto planejava fazer... era tomar o trem das 9:15 de Cheltenham para Londres, almoçar com sua irmã Olivia, talvez dar uma voltinha pelo Harrods e depois voltar para casa. Afinal de contas, nada havia de particularmente abominável em sua pretensão. Não iria se entregar a uma feroz orgia de compras e nem tampouco ter um encontro com um amante; aliás, muito pelo contrário, seria uma visita por dever, com responsabilidades a serem discutidas, e decisões a serem tomadas. Não obstante, mal seu plano se tornava conhecido em casa, as circunstâncias pareciam cerrar fileiras, ela se via enfrentando objeções ou, pior ainda, indiferença. Isto a deixava com uma sensação de que lutava pela própria vida.

            Ao anoitecer da véspera, após ter marcado por telefone o encontro com Olívia, saíra à procura dos filhos. Encontrara-os na pequena sala de estar que, eufemisticamente, ela considerava a biblioteca, esparramados no sofá em frente à lareira, assistindo à televisão. Eles tinham uma sala de brinquedos e uma televisão própria, porém, como lá não havia lareira, o frio era de gelar os ossos, e a televisão, um antigo modelo em preto e branco. Portanto, não era de estranhar que eles passassem aqui a maior parte do tempo.

            - Queridos, amanhã terei que ir a Londres, encontrar tia Olívia e conversar com ela sobre a vovô Pen...

            - Se você for a Londres, quem vai levar Relâmpago ao ferreiro, para ser ferrado?

            Melanie era quem havia falado. E, enquanto falava, mascava a extremidade de seu rabo-de-cavalo e mantinha um maléfico olho grudado no maníaco cantor de rock, cuja imagem ocupava toda a tela. Estava com quatorze anos e, como sua mãe vivia dizendo a si mesma, atravessando aquela idade difícil.

            Nancy já esperava a pergunta e tinha a resposta pronta.

            - Pedirei a Croftway que cuide disso. Ele conseguirá dar um jeito sozinho.

            Croftway era o carrancudo jardineiro e faz-tudo, que vivia com a esposa em um apartamento sobre o estábulo. Odiava cavalos e constantemente os deixava frenéticos, com sua voz roufenha e maneiras brutais, embora parte de seu trabalho fosse lidar com eles. Croftway cumpria essa obrigação a contragosto; com os beiços espumando, os pobres animais eram introduzidos à força no carro de transportar cavalos e, em seguida, conduzidos no desajeitado veículo através da zona rural, ao encontro de vários eventos em clubes eqüestres. Em tais ocasiões, Nancy referia-se a ele como "o cavalariço".

            Rupert, com onze anos, agarrou-se ao tom do diálogo, a fim de oferecer sua própria objeção.

            - Falei com Tommy Robson que iria tomar chá com ele amanhã. Ele tem algumas revistas de futebol e disse que me emprestaria. Como vou poder voltar para casa?

            Era a primeira vez que Nancy ouvia falar naquele compromisso. Recusando-se a perder a calma, sabia que uma sugestão para mudar o dia da visita provocaria instantaneamente uma estridente inundação de argumentos e gemidos de "isso não é justo". Engolindo a irritação, respondeu, o mais educadamente possível, que talvez ele pudesse pegar o ônibus para casa.

            - Oh, mas então vou ter que caminhar desde a aldeia.

            - Bem, são apenas uns quinhentos metros - ela sorriu, procurando tirar o melhor partido da situação. - Só desta vez, não dará para matá-lo.

            Esperava que ele sorrisse de volta, porém Rupert apenas chupou os dentes e tornou a concentrar-se na televisão. Nancy aguardou. O quê? Alguma demonstração de interesse, talvez, em uma situação da visível importância para toda a família? Até mesmo um esperançoso questionamento sobre que presentes ela pretendia trazer-lhes seria melhor do que nada. Entretanto, os dois já haviam esquecido sua presença; estavam inteiramente voltados para o que viam na televisão. Imediatamente, Nancy achou insuportável a barulheira do programa e saiu da sala, fechando a porta atrás de si. No saguão, um frio cortante a envolveu, subindo do piso lajeado para imiscuir-se, escada acima, até os gélidos vazios do patamar.

            Aquele havia sido um penoso inverno. De quando em quando, Nancy dizia para si mesma, intrepidamente - ou para quem fosse impelido a ouvi-la - que não se incomodava com o frio. Era uma criatura de sangue quente, e isto não a perturbava. Além do mais, acrescentava, a gente nunca sentia realmente frio na própria casa. Sempre havia muita coisa a fazer.

            Neste anoitecer, contudo, com os filhos se mostrando tão desagradáveis e mais a perspectiva de uma ida à cozinha, a fim de "ter uma palavrinha" com a rabugenta Sra. Croftway, ela tiritou e aconchegou apertadamente o grosso cardigã à volta do corpo, enquanto via o tapete surrado se erguer e estremecer, movido pelas rajadas de vento que se insinuavam por baixo da mal-ajustada porta principal da casa.

            Porque era uma casa velha aquela em que viviam, um antigo vicariato georgiano, em uma pequena e pitoresca aldeia, na região das montanhas Cotswold. Antigo Vicariato, Bamworth. Era um bom endereço, e ela sentia prazer em fornecê-lo às pessoas, nas lojas. Basta debitar em minha conta - Sra. George Chamberlain, Antigo Vicariato, Bamworth, Gloucestershire. Na casa Harrods, ela o fizera imprimir no alto de seu luxuoso papel azul para correspondência. Pequeninas coisas, como papel de cartas, tinham importância para Nancy. Causavam boa impressão.

            Ela e George tinham-se mudado para ali, logo após estarem casados. Pouco antes deste evento, o anterior morador de Bamworth sentira subitamente o sangue subir-lhe à cabeça e se rebelara, informando aos superiores que homem algum... nem mesmo um desprendido homem da Igreja, seria capaz de, com seu magro estipêndio, viver e criar uma família em uma casa de tão monstruosos tamanho, inconveniência e frigidez. Após alguma deliberação, além de uma visita com pernoite do arquidiácono (que pegou um resfriado e quase morreu de pneumonia), a Diocese finalmente concordou em construir um novo vicariato. Foi devidamente erigido um

bangalô de tijolos na extremidade oposta da aldeia, sendo o velho vicariato posto à venda.

            George e Nancy o compraram. "Agarramos a oportunidade", contava ela às amigas, como se os dois houvessem ido diretamente ao alvo, com extrema sagacidade. De fato, tinham comprado a casa por uma ninharia, mas com o tempo, Nancy logo descobriu que havia sido somente porque ninguém mais pretendia adquiri-la.

            - Claro que há muito a fazer por lá, porém é uma casa encantadora, de fins do período georgiano, com uma boa área de terreno... padoques e estábulos... além de ficar a somente meia hora de Cheltenham e do escritório de George. De fato, sob medida para nós.

            Era perfeito. Para Nancy, criada em Londres, a casa simbolizava a concretização final de todos os seus sonhos de adolescente - fantasias alimentadas pelos romances que devorava, escritos por Barbara Cartland e Georgette Heyer. Viver no campo e ser a esposa de um proprietário rural, há muito, eram o auge de suas modestas ambições, naturalmente, após uma tradicional temporada londrina, um casamento de gala com damas de honra e sua fotografia em Tatler. Conseguiu tudo, exceto a temporada londrina, e, recém-casada, viu- se senhora de uma casa nas Cotswolds, com um cavalo no estábulo e um jardim para festividades da igreja. Com o tipo certo de amigos e a espécie certa de cães; com George presidindo os Conservadores do lugar e lendo o trecho selecionado da Bíblia, nas manhãs de domingo.

            A princípio, tudo correra perfeitamente. Até então, não havia falta de dinheiro: eles haviam posto em ordem a antiga propriedade e a casa, pintado as partes externas em branco, instalado aquecimento central, e Nancy arranjara o mobiliário vitoriano que George herdara dos pais, tendo decorado alegremente seu quarto com uma profusão de chintz. Entretanto, com o passar dos anos, a inflação expandiu-se, subindo com ela o preço do combustível para aquecimento e os salários, desta maneira cada vez se tornando mais difícil encontrar alguém que prestasse serviços na casa e no jardim. A carga financeira para simplesmente manterem a propriedade a cada ano pesava mais e, por vezes, eles achavam que tinham mordido além do que podiam mastigar.

            Como se ainda não bastasse, já estavam enfrentando a terrível despesa de educar os filhos. Tanto Melanie como Rupert estavam matriculados nas escolas particulares locais, como alunos externos. Melanie provavelmente permaneceria na sua até terminar os níveis A, porém Rupert deveria ir para Charlesworth, a escola pública que seu pai cursara; George inscrevera lá o nome do filho, um dia após o nascimento de Rupert, tendo efetuado na mesma época um pequeno seguro educacional, porém a soma insignificante que então pagara, agora, em 1984, mal daria para cobrir a primeira viagem de trem.

            Certa vez, passando uma noite em Londres com Olivia, Nancy confidenciara suas preocupações à irmã, na esperança de ouvir alguma orientação construtiva daquela determinada mulher voltada para a profissão. Olivia, entretanto, não se mostrou compreensiva. Achava que eles eram tolos.

            - Seja como for, escolas públicas são um anacronismo - respondera a Nancy. - Matricule-o na escola integrada distrital, deixe-o ficar na companhia do resto do mundo. A longo prazo, será mais vantajoso para seu filho, do que todo aquele ambiente rarefeito de tradição antiquada.

            Tal atitude, no entanto, era impensável. George e Nancy jamais haviam considerado a educação proporcionada pelo Estado como indicada para seu único filho. De fato, vez por outra Nancy se entregara a sonhos secretos sobre Rupert em Eton, entremeados com fantasias de si mesma no Quatro de Junho, enchapelada para uma festividade ao ar livre. Quanto a Charlesworth, sólida e prestigiada como era, constituía uma segunda melhor escolha. Entretanto, ela não admitiria isto para Olivia.

            - Está inteiramente fora de questão - replicou, lacônica.

 

*Na Inglaterra, escola secundária particular (geralmente internato) mantida por doações e preparando alunos para o curso universitário ou para serviço público. (N. da T)

 

            - Pois bem, então, deixe-o tentar uma bolsa de estudos. Que Rupert faça alguma coisa para ajudar a si mesmo. Não vejo qual o proveito em sacrificar-se tanto por um garotinho!

            Rupert, entretanto, não era amigo dos livros. Tanto George como Nancy sabiam que ele jamais conseguiria uma bolsa de estudos.

            - Neste caso - disse Olivia, encerrando o assunto, porque começava a ficar maçante - acho que a única alternativa para vocês é vender o velho Vicariato, mudar-se para algo menor. Pense em todo o dinheiro que economizaria, não tendo que manter a velha propriedade em ordem!

            A perspectiva de semelhante decisão, no entanto, deixou Nancy ainda mais horrorizada do que a menção de um colégio do Estado para seu filho. Era o mesmo que admitir a derrota e abdicar de tudo pelo que lutara. Além do mais, havia uma dolorosa suspeita de que ela, George e os filhos, morando em uma casinha acessível nos arredores de Cheltenham, sem os cavalos, sem o Instituto Feminino, o Comitê Conservador, as gincanas e festas da Igreja, sentir-se-iam rebaixados, perderiam o interesse dos amigos do condado e, como sombras moribundas, seriam relegados a uma família de esquecidas insignificâncias.

            Tornando a tiritar, ela procurou compor-se, expulsou aquelas repulsivas idéias e caminhou firmemente pelo corredor lajeado, em direção à cozinha. Ali, o enorme aquecedor Aga, em incessante funcionamento, deixava tudo confortavelmente aquecido e aconchegante. Nancy às vezes pensava, especialmente naquela época do ano, que era uma pena todos eles não viverem na cozinha... que qualquer outra família, além da dela, provavelmente sucumbiria à tentação, passando ali o inverno inteiro. Entretanto, eles não eram uma família qualquer. A mãe de Nancy, Penelope Keeling, praticamente vivera na velha cozinha do porão, no casarão da Rua Oakley, cozinhando e servindo enormes refeições na grande mesa de tampo esfregado; ali ela escrevia cartas, criava os filhos, remendava roupas e até mesmo recebia seus intermináveis visitantes. E Nancy, que tanto se ressentia como ficava ligeiramente envergonhada da mãe, desde então reagira contra esta calorosa e informal maneira de viver. Quando eu me casar, havia jurado em criança, terei uma sala de visitas e uma sala de refeições, como todo mundo; hei de entrar na cozinha o menos que puder.

            Por sorte, George tinha idéias similares. Alguns anos antes, após uma séria discussão, haviam concordado em que o lado prático de fazerem o desjejum na cozinha superava a ligeira descida de padrões. Mais do que isto, entretanto, nenhum deles estava disposto a ceder.

Assim, almoço e jantar eram servidos na enorme sala de refeições, com o teto muito alto e a mesa corretamente arrumada, a formalidade substituindo o conforto. Esse depressivo aposento era aquecido por uma lareira elétrica, cujo calor não ia além da grelha. Quando tinham convidados para jantar, Nancy a ligava umas duas horas antes de ser servida a refeição, jamais podendo compreender por que suas convidadas sempre chegavam envoltas em xales. Ainda pior fora certa vez... jamais esquecida... ela vislumbrara por baixo do colete do homem em traje a rigor, os sinais indiscutíveis de um grosso pulôver de gola em V. Ele jamais tornara a ser convidado.

            A Sra. Croftway estava em pé diante da pia, descascando batatas para o jantar. Era um tipo de pessoa bastante superior (muito mais do que seu desbocado marido) e, para trabalhar, usava um avental branco, como se isso bastasse para tornar sua culinária profissional e saborosa. Nada disto acontecia, mas o aparecimento noturno da Sra. Croftway na cozinha significava que Nancy não teria que preparar o jantar.

            Decidiu ir direto ao assunto.

            - Oh, Sra. Croftway... houve uma ligeira mudança de planos. Tenho que ir a Londres amanhã, almoçar com minha irmã. É sobre o problema de minha mãe; essas coisas não podem ser tratadas por telefone.

            - Pensei que a mãe da senhora já tivesse saído do hospital e estivesse em casa novamente.

            -Sim, foi o que aconteceu, mas ontem falei com seu médico por telefone, e ele acha que, de fato, mamãe não devia mais morar sozinha. Foi apenas um ataque cardíaco brando e ela teve uma recuperação excelente, porém mesmo assim... a gente nunca sabe...

            Fornecia tais detalhes à Sra. Croftway, não por esperar grande ajuda ou mesmo simpatia, mas porque doença era um assunto que a mulher apreciava discutir, e Nancy esperava que assim a deixasse com ânimo mais expansivo.

            - Minha mãe teve um ataque do coração, e, depois disso, nunca mais foi a mesma. Ficou com o rosto todo arroxeado, e as mãos incharam tanto, que foi preciso cortar a aliança em seu dedo.

            - Eu não sabia disso, Sra. Croftway. .

            - Ela não podia mais morar sozinha. Tivemos que viver com ela, eu mais o Croftway. O melhor quarto da frente ficou para ela, e isso para mim foi um calvário, é o que lhe digo; subindo e descendo escada o dia inteiro, e ela batendo com uma bengala no chão. No fim, fiquei uma pilha de nervos. O médico disse que nunca vira uma mulher com nervos mais em frangalhos do que eu. Então, ele pôs minha mãe no hospital e ela morreu.

            Isto, aparentemente, era o final da depressiva saga. A Sra. Croftway retomou às suas batatas, e Nancy disse, inadequadamente:

            - Sinto muito... Imagino que sacrifício deve ter sido para a senhora. Que idade tinha sua mãe?

            - Faltava uma semana para completar oitenta e seis.

            - Bem... - Nancy procurou manter a voz vigorosa. - Minha mãe só tem sessenta e quatro, o que me dá a certeza de que ficará inteiramente recuperada.

            A Sra. Croftway jogou uma batata descascada na panela e se virou, a fim de olhar para Nancy. Ela raramente olhava de frente para as pessoas, mas quando o fazia era algo enervante, porque tinha olhos muito claros, que jamais pareciam piscar.

            A Sra. Croftway tinha opiniões próprias sobre a mãe de Nancy. Vira a Sra. Keeling - era como a chamava - apenas uma vez, durante uma de suas raras visitas ao velho Vicariato, porém fora o suficiente para qualquer um. Uma mulherona alta, de olhos escuros como uma cigana, e vestindo roupas que bem poderiam ter sido dadas para um bazar de caridade. Também era turrona, entrando na cozinha e insistindo em lavar os pratos, quando a Sra. Croftway tinha seu próprio jeito de fazer as coisas e não admitia interferências.

            - E curioso ela ter um ataque do coração...- observou então. - Pareceu-me forte como um touro.

            -Sim - assentiu Nancy fracamente. - Sim, foi um choque... para todos nós - acrescentou, em um tom piedoso, como se a mãe já houvesse morrido e fosse seguro falar bem dela.

            A Sra. Croftway fez um trejeito impiedoso com a boca.

            - Sua mãe só tem sessenta e quatro anos? - Ela parecia incrédula. - Aparenta mais, não aparenta? Pensei que já tivesse setenta e tantos.

            - Não, ela está com sessenta e quatro.

            - E quantos anos tem a senhora, então?

            A mulher estava sendo insultante. Nancy sentiu-se enrijecer ante a pura agressividade da Sra. Croftway. ao mesmo tempo percebendo que o sangue lhe subia ao rosto. Gostaria de ter coragem para esbofetear a criatura. de dizer a ela que cuidasse da própria vida, mas isto talvez a fizesse pedir as contas e ir embora com o marido. Em tal situação, como se veria Nancy, a braços com o jardim, os cavalos, o casarão e sua família faminta para alimentar?

            - Eu tenho... - Sua voz saiu como um grunhido. Ela pigarreou e tentou novamente. - Na verdade, estou com quarenta e três.

            - Só isso? Oh, eu pensei que estivesse para fazer cinqüenta a qualquer dia.

            Nancy deu uma risadinha, tentando levar a coisa na brincadeira, pois o que mais podia fazer?

            - Não está sendo muito lisonjeira, Sra. Croftway.

            - Bem, deve ser o seu peso. Só pode ser. Nada para envelhecer tanto, como deixar o peso aumentar. A senhora devia fazer uma dieta... se quer saber, não é bom para a senhora ser gorda. Vai ver, ela deu uma risada casquinada, a senhora é que acaba tendo um ataque do coração.

            Eu a odeio. Sra. Croftway! Eu a odeio!

            - Esta semana, apareceu uma boa dieta em Woman's Oum... A gente come um grapefruit em um dia e toma um iogurte no outro. Ou talvez seja o contrário... Se quiser, posso recortar a folha e trazer.

            - Oh... é muita gentileza sua. Sim, talvez eu queira. - A voz de Nancy soava insegura, trêmula. Procurando controlar-se, ergueu os ombros e, com algum esforço, encarregou-se da deteriorante situação. - Afinal, Sra. Croftway, o que eu realmente queria falar era sobre amanhã. Vou tomar o trem das nove e quinze, de maneira que não haverá muito tempo para arrumações antes de sair. Gostaria que a senhora fizesse o que fosse possível e... poderia ter a bondade de alimentar os cães para mim?... Deixarei a comida deles pronta em suas tigelas. Depois, talvez fosse bom levá-los para correrem um pouco no jardim... e... - Ela prosseguiu rapidamente, antes que a Sra. Croftway começasse a objetar a tais sugestões. - Eu queria que desse um recado meu a Croftway, pedindo que levasse Relâmpago ao ferreiro... ele precisa ser ferrado, e não quero adiar isso.

            - Humm - disse a Sra. Croftway, dubitativamente. – Não sei se ele conseguirá manejar esse cavalo sozinho.

            - Oh, tenho certeza de que conseguirá, ele já fez isso antes... e então, amanhã à noite, quando eu estiver de volta, talvez pudesse preparar-nos um pouco de carneiro para o jantar. Ou carne de porco, qualquer coisa assim... e algumas das deliciosas couves-de-bruxelas de Croftway...

            Somente depois do jantar é que ela teve oportunidade para falar com George. Tendo que pôr as crianças para fazerem os deveres de casa, encontrar as sapatilhas de balé de Melanie, jantar e tirar a mesa, ligar para a esposa do vigário e comunicar-lhe que não poderia comparecer à reunião da Associação de Senhoras ao anoitecer seguinte, e organizando sua vida em geral, Nancy mal teve tempo para trocar uma palavra com o marido. George só chegava em casa às sete da noite, e então queria apenas sentar-se diante da lareira, com um copo de uísque e o jornal.

            Por fim, tudo foi feito, e Nancy pôde reunir-se a George na biblioteca. Trancou firmemente a porta ao entrar, esperando que ele erguesse os olhos, porém nada aconteceu por trás do The Times. Assim, ela caminhou até a mesa de bebidas que ficava junto à janela, serviu um uísque para si mesma e depois foi sentar-se na poltrona fronteira à dele, ao lado da lareira. Sabia que logo seu marido estenderia o braço, a fim de ligar a televisão e ver o noticiário.

            - George - falou.

            - Hum?

            - George, ouça um momento.

            Ele terminou a frase que lia e então baixou o jornal com relutância, revelando-se como um homem com cinqüenta e tantos anos, mas parecendo bem mais velho, cabelos grisalhos rareando, óculos sem aros, o terno escuro e a gravata sóbria de um idoso cavalheiro. George era advogado, talvez imaginando que aquela aparência cuidadosamente elaborada - como que trajado para o papel em alguma peça - inspiraria confiança a clientes em potencial. Nancy, no entanto, às vezes achava que, se pelo menos ele se ajeitasse um pouco, se usasse um bom terno de tweed e comprasse óculos de aros, então seus negócios talvez também se ajeitassem um pouco. Esta parte do mundo, desde a abertura da auto-estrada para Londres, em pouco tempo ficara incrivelmente na moda. Novos e ricos residentes tinham ido morar ali, propriedades trocavam de mãos por somas exorbitantes; o chalé mais decrépito era adquirido em um piscar de olhos e transformado. a custas enormes em residência de fim de semana. Agentes imobiliários e firmas construtoras floresciam e prosperavam; lojas exclusivas se abriam nas cidadezinhas mais improváveis e Nancy não conseguia entender como Chamberlain. Plantwell e Richards ainda não haviam embarcado nesse carro triunfal de prosperidade e colhido algumas das recompensas que sem a menor dúvida, só esperavam ser apanhadas. George no entanto era do tipo tradicionalista, apegado a hábitos antigos, apavorado ante uma mudança. Também era um homem cauteloso e astuto.

            - O que tenho de ouvir? - perguntou ele então.

            - Amanhã vou a Londres almoçar com Olivia. Precisamos falar sobre mamãe.

            - Qual é o problema agora?

            - Oh. George, você sabe qual é o problema! Já lhe contei; tive uma conversa com o médico de mamãe, e ele acha que ela não devia mais morar sozinha.

            - E o que vocês pretendem fazer a respeito?

            - Bem... tem de encontrar uma governanta para ela. Ou uma acompanhante.

            - Ela não vai gostar disso - observou George.

            - E mesmo que encontremos alguém... mamãe terá condições de pagar-lhe um salário? Uma boa profissional custaria de quarenta a cinqüenta libras por semana. Sei que ela conseguiu aquela soma fabulosa pela casa da Rua Oakley e que não gastou um níquel em Podmore's Thatch,exceto para construir aquela estufa ridícula. mas esse dinheiro é capital. não? Será que ela pode com toda essa despesa?

            George remexeu-se na poltrona. estirando a mão para o copo de uísque.

            - Não faço a menor idéia - respondeu.

            Nancy suspirou.

            - Ela é tão reservada tão odiosamente independente! Torna-se impossível ajudá-la. Se, pelo menos, fosse mais franca conosco, se o deixasse ser seu procurador, isso tomaria a vida muito mais fácil para mim. Afinal, sou a filha mais velha não me consta que Olívia ou Noel já tivessem levantado um dedo para ajudar.

            George já ouvira tudo isso antes.

            - E quanto à diarista dela. Sra. ... como é mesmo o nome?

            - Sra. Plackett. Ela só vai lá três manhãs por semana para faxina; tem casa e família para cuidar.

            George colocou o copo na mesa e se endireitou na poltrona, o rosto virado para o fogo, as mãos formando uma tenda, ponta de dedo contra ponta de dedo. Após um momento, falou:

            - Não posso imaginar o que a deixa em tal estado.

            Seu tom dava a impressão de estar falando com algum cliente particularmente obtuso, e Nancy ficou ofendida.

            - Não estou em estado algum!

            Ele ignorou a resposta.

            - Será apenas por causa do dinheiro? Ou da possibilidade de que talvez não encontre uma mulher que seja santa o bastante para concordar em morar com sua mãe?

            - Acho que são as duas coisas - admitiu Nancy.

            - E o que imagina como contribuição de Olivia para solucionar a charada?

            - Pelo menos, ela pode discutir o assunto comigo. Afinal de contas, em toda a sua vida nunca fez nada por mamãe... e, por falar nisto, nem por qualquer de nós - acrescentou com amargura, recordando ferimentos passados. - Quando mamãe decidiu vender a casa da Rua Oakley e anunciou que retornava à Cornualha, para morar em Porthkerris. eu é que passei os piores momentos, convencendo-a de que seria loucura fazer isso. E ela bem poderia ter ido, se você não lhe encontrasse Podmore's Thatch que, pelo menos, só dista trinta quilômetros de nós. Assim, podemos ficar de olho nela. E se mamãe agora estivesse em Porthkerris, a quilômetros e quilômetros daqui, doente do coração, sem ninguém saber o que acontecia?

            - Por favor, não fujamos à questão - pediu George, naquele tom que a deixava sumamente exasperada.

            Nancy procurou ignorar o detalhe. Ficara aquecida pelo uísque, que também abrandara antigos ressentimentos.

            - Quanto a Noel, praticamente deixou mamãe de lado, desde que precisou mudar-se, quando ela vendeu a casa da Rua Oakley. Aquilo foi um golpe para ele. Aos vinte e três anos, jamais pagara um níquel de aluguel a mamãe! Comia a comida dela, bebia o gim dela, até o uísque era de graça! Fique sabendo, foi um choque para Noel, quando finalmente precisou sustentar-se.

            George suspirou fundo. Seu conceito sobre Noel não era melhor do que o que tinha sobre Olivia. Quanto a Penelope Keeling, sua sogra, sempre fora um enigma para ele. Seu mais constante espanto era que uma mulher tão normal como Nancy pudesse originar-se dos rins de tão extraordinária família.

            Terminou seu drinque, levantou-se da poltrona, lançou outro tronco ao fogo e foi encher o copo novamente. Falou, do outro lado da sala, acima do tilintar de vidros:

            - Suponhamos que aconteça o pior. Suponhamos que sua mãe não tenha meios para pagar uma governanta. - Voltou para a poltrona e tornou a acomodar-se diante da esposa. - Suponhamos que vocês não encontrem alguém que assuma a árdua tarefa de fazer-lhe companhia. E então? Vai sugerir que sua mãe venha morar conosco?

            Nancy pensou na Sra. Croftway, perpetuamente melindrada. Recordou as crianças, queixando-se ruidosamente das censuras intermináveis de vovó Pen. Lembrou-se da mãe da Sra. Croftway, cuja aliança de casamento tivera que ser cortada para sair do dedo inchado, jazendo na cama e batendo no assoalho com uma bengala...

            Respondeu, em tom desesperado:

            - Não creio que eu pudesse suportar isso.

            - Acho que eu também não -admitiu George.

            - Talvez Olivia...

            - Olivia? - A voz de George alteou-se, descrente. – Olívia permitiria que alguém se intrometesse em sua vida tão reservada? Ora, você está brincando comigo!

            - Bem, Noel está fora de questão.

            - Parece que tudo está fora de questão - comentou George. Ergueu o punho da camisa furtivamente e consultou o relógio. Não queria perder o noticiário. - Creio que não poderei oferecer qualquer sugestão construtiva, enquanto você não conversar com Olivia. Discutir o assunto.

            Nancy ficou ofendida. De fato, ela e Olivia nunca haviam sido as melhores amigas do mundo... afinal, nada tinham em comum... mas não gostara das palavras "discutir o assunto", como se ambas jamais houvessem feito algo além de discutir. Ia comentar o fato com George, mas ele a interceptou, quando ligou a televisão, encerrando a conversa. Eram exatamente nove horas, e George acomodou-se satisfeito na poltrona, disposto a ter sua ração diária de greves, bombas, assassinatos e desastres financeiros, tudo arrematado pela informação de que o dia seguinte começaria muito frio e que, no correr da tarde, a chuva cobriria lentamente o país inteiro.

            Após um instante, sem palavras para traduzir sua depressão, Nancy levantou-se da poltrona. Desconfiava de que George nem mesmo percebera seu movimento. Foi até a mesa das bebidas, serviu-se de uma generosa dose de uísque e saiu da sala, fechando a porta silenciosamente. Subiu a escada, atravessou seu quarto e entrou no banheiro. Tampou o ralo da banheira, abriu as torneiras e despejou seu óleo de banho perfumado na água, com a mesma generosidade empregada na garrafa de uísque. Cinco minutos mais tarde, entregava-se à atividade mais confortadora que conhecia: jazer em um banho quente e, ao mesmo tempo, beber uísque frio. Relaxada, envolta em bolhas e vapor, deixou-se dissolver em uma orgia de autopiedade. Ser esposa e mãe, disse para si mesma, era uma tarefa ingrata. Dedicava-se ao marido e aos filhos, tratava bem os empregados, cuidava dos animais, preocupava-se com a casa, comprava a comida, lavava as roupas e que agradecimento recebia? Que valorização?

            Nada.

            As lágrimas começaram a acumular-se nos olhos, misturando-se à umidade geral da água do banho e do vapor. Ansiava por apreço, por amor, por um contato físico afetuoso, por alguém que a acariciasse e lhe dissesse que era maravilhosa, que estava fazendo um excelente trabalho.

            Para Nancy, somente uma pessoa nunca a decepcionara. Seu pai tinha sido ótimo enquanto vivera, é claro; porém, a mãe dele, Dolly Keeling, é que realmente conquistara a sua confiança e sempre ficara do seu lado.

            Dolly Keeling jamais se entrosara com a nora, não tinha tempo para Olivia, era sempre desconfiada com Noel, mas Nancy fora a sua queridinha, mimada e adorada. Vovó Keeling era quem lhe comprava os vestidos vaporosos de mangas bufantes, quando Penelope teria enviado sua filha mais velha à festa, trajando alguma antiga roupa surrada e herdada. Vovó Keeling era quem a achava bonita e lhe preparava surpresas, como tomar chá na Casa Harrods ou ir ao teatro, para ver alguma peça infantil.

            Quando Nancy ficara noiva de George, houvera brigas terríveis. A essa altura, seu pai já partira, e sua mãe não conseguia entender por que era tão importante para ela o tradicional casamento com vestido de noiva, damas de honra, homens usando fraque e uma recepção adequada. Aparentemente. Penelope achava aquilo uma maneira idiota de jogar dinheiro fora. Por que não uma cerimônia íntima e simples, talvez com um almoço comemorativo em seguida na enorme mesa escovada da cozinha, no porão da Rua Oakley? Ou uma festinha no jardim? O jardim era enorme, havia lugar sobrando para todos, as rosas teriam desabrochado...

            Nancy chorou, bateu portas, disse que ninguém a compreendia e jamais compreendera. Finalmente, mergulhou em um mau humor que teria continuado para sempre, se não fosse a intervenção da querida vovó Keeling. Toda responsabilidade foi removida de Penélope, que ficou feliz da vida em se ver livre daquilo, passando tudo aos cuidados de vovó. Noiva alguma pediria mais. A Igreja da Santíssima Trindade, vestido de noiva com cauda, damas de honra em cor-de-rosa e, mais tarde, recepção no número 23 de Knightsbridge, com um mestre-de-cerimônias encasacado de vermelho e vários arranjos florais, pesados e enormes. E o querido papai, instigado pela mãe, parecera divino envergando fraque, a fim de conduzir a filha ao altar e entregá-la ao noivo. Em meio a tudo aquilo, a aparência de Penelope, sem chapéu e majestática em camadas de brocado e veludo antigos, nada poderia fazer para estragar a perfeição do dia.

            Oh, quanto ela ansiava agora por vovó Keeling! Jazendo no banho, uma pesada mulher de quarenta e três anos, Nancy chorou por vovó Keeling. Como gostaria de tê-la ali, para receber sua simpatia, consolo e admiração! Oh, meu bem, você é uma criatura maravilhosa, tão dedicada à família e à sua mãe, mas eles aceitam tudo isso como pura obrigação sua...

            Ainda podia ouvir a voz amada da avó, mas apenas na imaginação. porque Dolly Keeling estava morta. No ano anterior, aos oitenta e sete anos, a galante e miúda senhora. de ruge nas faces, unhas pintadas e seus conjuntos de cardigã malva, havia falecido enquanto dormia. O triste evento ocorrera no pequeno hotel retirado, em Kensington, escolhido por ela e mais inúmeras outras pessoas incrivelmente idosas, para passarem seus anos crepusculares. Dolly Keeling foi adequadamente levada dali pelo agente funerário, com quem a gerência do hotel, mostrando boa dose de previdência, mantinha um entendimento permanente.

            A manhã seguinte foi tão ruim quanto Nancy temera. O uísque a deixara com dor de cabeça. A manhã estava mais fria do que nunca e escura como breu quando, às sete e meia, forçou-se a sair da cama. Vestiu-se e, escandalizada, descobriu que a faixa de seu melhor vestido ficara apertada e teria que ser presa com um alfinete de segurança. Enfiou a suéter de lã de carneiro que combinava exatamente com a saia, e desviou os olhos dos rolos de gordura que assomavam volumosos, acima do enorme e reforçado sutiã. As meias de náilon pareceram francamente inadequadas, pois geralmente usava as de lã grossa. Assim sendo, decidiu calçar as botas de cano longo, cujo zíper mal conseguiu fechar.

            No andar de baixo. a situação não estava melhor. Um dos cães passara mal, a estufa não aquecia como era de esperar, e havia apenas três ovos na despensa. Nancy botou os cães para fora, limpou o vômito do que passara mal e alimentou a estufa com seu próprio combustível especial - que custava uma fortuna - , rezando para que ele não acabasse, o que daria à Sra. Croftway um bom motivo para queixas. Gritou pelos filhos, dizendo-lhes que se apressassem, ferveu água nas chaleiras, cozinhou os três ovos, fez torradas e arrumou a mesa. Rupert e Melanie apareceram, vestidos mais ou menos corretamente, mas discutindo. Rupert disse que Melanie perdera seu livro de geografia, Melanie replicou que antes de mais nada ele era um mentiroso nojento e, mamãe, ela precisava de vinte e cinco pence, porque a Sra. Leeper ia embora e se haviam cotizado para lhe dar um presente.

            Nancy nunca tinha ouvido falar na Sra. Leeper.

            George não moveu uma palha para ajudar. Simplesmente apareceu a certa altura durante toda aquela turbulência, comeu seu ovo cozido, bebeu uma xícara de chá e se foi. Nancy ouviu o Rover descendo a alameda para carros, enquanto freneticamente amontoava pratos no secador, prontos a serem utilizados pela Sra. Croftway, como melhor lhe apetecesse.

            - Bem, se você não pegou meu livro de geografia...

           Os cães uivavam, do outro lado da porta. Ela os deixou entrar e isto a fez recordar que devia preparar a alimentação deles. Encheu as tigelas dos animais com biscoitos caninos e abriu uma lata de ração, mas, em sua agitação, cortou o polegar na borda afiada da tampa.

            - Poxa, você é mesmo desajeitada! - comentou Rupert.

            Nancy virou as costas para ele e deixou que a água fria da torneira escorresse sobre o polegar, até vê-lo parar de sangrar.

            - Se você não me der os vinte e cinco pence, a Srta. Rawlings vai ficar furiosa...

            Ela correu ao andar de cima, a fIm de ajeitar o rosto. Não havia tempo para se demorar, esfumando o ruge ou delineando os cílios, de maneira que o resultado estava longe de ser satisfatório. Teria que ficar assim mesmo. O tempo voava. Tirou do guarda-roupa o casaco de peles e o chapéu também de peles, combinando com ele. Encontrou luvas, sua bolsa em pele de lagarto da Mappin & Webb. Dentro dela, esvaziou o conteúdo da bolsa de uso diário e, é claro, não conseguiu fechá-la. E daí? Tinha que ficar assim mesmo. O tempo voava.

            Precipitou-se novamente para o andar de baixo, chamando os filhos. Como que por milagre, eles apareceram, recolhendo as respectivas mochilas escolares, Melanie enfiando na cabeça o chapéu que não lhe assentava. Os três trotaram pela porta dos fundos, deram a volta à garagem, entraram no carro - graças a Deus o motor pegou na primeira tentativa - e lá se foram.

            Nancy conduziu os filhos às suas diferentes escolas, deixando-os diante dos portões e mal tendo tempo para dizer adeus, antes de partir novamente, a toda velocidade para Cheltenham. Eram nove e dez, quando deixou o carro no estacionamento, e mais doze minutos haviam passado, ao comprar a passagem de volta para o dia. No quiosque de revistas, entrou na fila com o que imaginava ser um sorriso sedutor, comprou para si mesma um Daily Telegraph e - louco desperdício - um exemplar de Harpers and Queen. Após tê-la comprado, viu que era um número atrasado - de fato, a revista do mês anterior -, porém não adiantava reclamar e receber o dinheiro de volta. Além do mais, ela não parecia realmente atrasada; acetinada e lustrosa, seria um maravilhoso presente, ainda assim. Dizendo isto para si mesma, emergiu na plataforma, justamente quando chegava o trem para Londres. Abriu uma porta, qualquer uma, entrou e encontrou um assento. Estava sem fôlego, o coração disparando. Fechou os olhos. Comentou, para si mesma, que ter acabado de escapar de um incêndio devia ser assim.

            Momentos mais tarde, após algumas respirações fundas e uma conversinha tranqüilizadora consigo mesma, sentiu-se mais forte. Misericordiosamente, o trem estava bem aquecido. Abrindo os olhos, Nancy afrouxou os fechos do casaco de pele. Acomodou-se mais confortavelmente, espiou pela janela a paisagem, que parecia voar ao lado do vagão, crestada pelo duro inverno, e deixou que os nervos abalados fossem acalentados pelo ritmo do trem. O telefone não tocaria, ela poderia ficar sentada, sem precisar pensar.

            A dor de cabeça se fora. Tirou da bolsa o estojo de pó compacto e inspecionou o rosto no pequenino espelho, deu uns retoques de pó no nariz e comprimiu os lábios, a fim de uniformizar o batom. A nova revista jazia em seu colo, encerrando tantas delícias, como uma caixa fechada de bombons cobertos de chocolate, com recheio macio. Começou a folhear a revista e viu anúncios de casacos de pele, casas no sul da Espanha e arrendamento de propriedades nas Highlands escocesas; anúncios de jóias e cosméticos que, de fato, não só deixariam uma mulher mais bela, como lhe revigorariam a pele; anúncios de navios em cruzeiro, velejando para o sol; anúncios de...

            Parou bruscamente de folhear as páginas ao acaso, quando algo atraiu sua atenção. Era um anúncio de página inteira, inserido por Boothby's, Comércio de Arte, comunicando que haveria uma venda de objetos vitorianos em suas galerias da Bond Street, quarta-feira, vinte e um de março. Para ilustrar a propaganda, reproduziam um quadro de Lawrence Stern, 1865-1946. A tela era intitulada As aguadeiras (19O4) e mostrava um grupo de jovens em várias posturas, carregando ânforas de cobre sobre o ombro ou apoiando-as à cintura. Após observá-las, Nancy imaginou que deviam ser escravas, porque tinham os pés descalços, e seus rostos não sorriam (coitadas, afinal, não era de admirar, as ânforas pareciam terrivelmente pesadas). Além disso, as vestes eram sumárias, transparentes tecidos em tom azulado de uva e vermelho-ferrugem, com revelação quase desnecessária de seios arredondados e mamilos rosados.

            George e Nancy não tinham mais interesse em arte do que em música ou teatro. Aliás, o antigo Vicariato já tinha sua quota certa de quadros, as reproduções esportivas apropriadas a qualquer residência rural de respeito e alguns óleos, representando veados mortos ou fiéis cães de caça com faisões na boca, que George herdara do pai. Certa vez, com uma ou duas horas de folga em Londres, eles tinham ido à Galeria Tate e percorreram, vagarosa e conscientemente, uma exposição de Constables, porém, a única recordação que Nancy guardara da ocasião era um punhado de lanudas árvores verdes e o fato de que seus pés doíam.

            Não obstante, até um Constable era preferível a esta pintura. Olhou para ela, achando difícil acreditar que alguém quisesse semelhante horror em uma parede, quanto mais pagando dinheiro por aquilo. Se fosse possuidora de tal coisa, ela terminaria os dias em algum sótão esquecido ou no topo de uma fogueira.

            Entretanto, não fora qualquer motivo estético o que lhe chamara a atenção para As aguadeiras. A razão que a levava a fitar a reprodução da tela com tanto interesse era o fato de ser uma obra de Lawrence Stern. Porque ele havia sido o pai de Penelope Keeling e, portanto, avô dela, Nancy.

            O curioso é que ela praticamente não conhecia o trabalho do avô. Na época de seu nascimento, a fama dele - que estivera no auge na virada do século - tinha minguado e desaparecera, sua produção há muito vendida, dispersada e esquecida. Em casa de sua mãe, na Rua Oakley, havia apenas três pinturas de Lawrence Stern, duas delas compondo dois painéis inacabados, representando um par de ninfas alegóricas, esparzindo lírios sobre encostas relvadas, pontilhadas de margaridas.

            O terceiro quadro pendia da parede do saguão no térreo, logo abaixo da escada, único espaço na casa que poderia acomodar seu considerável tamanho. Era um óleo, produto dos últimos anos de Stern, chamado “Os catadores de conchas”. Mostrava uma grande extensão de mar com ondas espumantes, uma praia e um céu repleto de nuvens arrastadas pelo vento. Quando Penelope se mudara da Rua Oakley para Podmore's Thatch, aquelas três preciosas possessões a tinham acompanhado, os painéis terminando no patamar da escada, e “Os catadores de conchas”, na sala de estar, tomando-a ainda menor, com seu teto baixo de vigas. Nancy agora raramente reparava neles, tão familiares eram, fazendo parte da casa de sua mãe,

tanto quanto os sofás e poltronas desconjuntados, os antiquados arranjos florais, entulhando jarros em azul e branco, o cheiro delicioso que vinha da cozinha.

            A verdade é que, durante anos, Nancy nem mesmo pensara em Lawrence Stern. Agora, no entanto, sentada no trem com suas peles e botas, a recordação a puxara pela barra do vestido, lançando-a no passado. Não que houvesse muito para lembrar. Ela nascera em finais de 1940 na Cornualha, no pequeno chalé-hospital de Porthkerris, e havia passado os anos da guerra em Carn Cottage, sob o abrigo do teto de Lawrence Stern. Entretanto, suas recordações infantis do idoso homem eram enevoadas - mais a percepção de existir alguém, do que de uma pessoa. Teria ele sentado a neta nos joelhos, saíra com ela para uma caminhada, lera-lhe alguma coisa em voz alta? Se fizera isso, Nancy esquecera. Parecia que nenhuma impressão se fixara em sua mente infantil, até aquele último dia quando, terminada a guerra. ela e a mãe tinham deixado Porthkerris, encerrando a prolongada permanência, e voltado de trem para Londres. Por algum motivo, este evento tocou a consciência de Nancy e lá ficou para sempre, claramente impresso em sua memória.

            Ele tinha ido à estação, para vê-las partirem. Muito velho, muito alto, cada vez mais frágil, apoiado em uma bengala de castão de prata, ficara em pé na plataforma, junto à janela aberta, e beijara Penelope em despedida. Seus cabelos brancos e compridos descansavam sobre a gola de tweed da pelerine e, nas mãos deformadas e torcidas, usava mitenes de lã, onde sobressaíam os dedos inúteis, brancos e pálidos como ossos.

            Naquele último instante, quando o trem já começava a se mover, Penelope erguera Nancy nos braços, e o velho estendera a mão, pousando-a na bochecha arredondada da neta. Ela recordava a friagem daquela mão, parecendo de mármore, contra sua pele. Não houvera tempo para mais. O trem ganhou velocidade, a plataforma foi deixada para trás, e lá ficou ele, cada vez menor, acenando com o grande chapéu negro de abas largas, em uma última despedida. Essa era a primeira e única lembrança que Nancy tinha do avô, pois ele falecera no ano seguinte.

            Velhas histórias, disse para si mesma. Nada havia para deixá-la sentimental. No entanto, era extraordinário que, nos dias atuais, alguém quisesse comprar o trabalho de seu avô: As aguadeiras. Balançou a cabeça, não entendendo aquilo, e então abandonou o enigma, retomando alegremente às confortadoras irrealidades dos acontecimentos sociais.

 

                                   OLIVIA

             O novo fotógrafo chamava-se Lyle Medwin. Era um rapaz muito jovem, de cabelos castanhos fofos, que pareciam ter sido cortados com a ajuda de uma tigela de sopa, e um rosto simpático, de olhos gentis. Irradiava algo semelhante a desprendimento, como se fosse um principiante dedicado. Olivia custava a crer que tivesse sido vitorioso na profissão escolhida, enfrentando a guerra mortal para vencer, sem ter sido degolado.

           Estavam em pé perto da mesa, à janela de seu escritório, enquanto ele mostrava uma seleção de trabalhos anteriores, a fim de que ela os examinasse: mais ou menos duas dúzias de grandes fotos, coloridas e acetinadas, esperançosamente espalhadas, aguardando aprovação. Olivia as estudara minuciosamente, antes de concluir que gostava delas. Em primeiro lugar, eram muito lúcidas. Sempre insistia que fotos de moda deviam exibir as roupas, seu feitio, o planejamento de uma saia, a textura de uma suéter. Além disso, as fotos do rapaz respiravam vida, movimento, alegria, e até ternura.

           Apanhou uma delas. Mostrava um homem com a corpulência de um zagueiro de futebol, correndo em meio a ondas, vestindo um ofuscante conjunto branco para esportes, contra o mar azul-cobalto. Com a pele bronzeada e suada, era a própria imagem do cheiro de ar salitrado, do bem-estar físico.

            - Onde foi que tirou esta foto?

            - Em Malibu. Fiz para publicidade de trajes esportivos.

            - E esta aqui?

            Olivia pegou outra foto, esta batida em um final de tarde, mostrando uma jovem em esvoaçante vestido de chifon semelhante a chamas, com o rosto voltado para o mortiço fulgor do sol que se punha.

            - Foi em Point Reays... para um destaque editorial da Vogue americana.

            Deixando as fotos, Olivia se virou para ele, inclinado sobre a borda da mesa o que o deixava à altura dela, de modo que os olhos de ambos ficassem no mesmo nível.

            - Qual a sua experiência profissional?

            Ele deu de ombros.

            - Curso universitário técnico. Depois, um pouco de atuação como free-lance e, então, me juntei a Toby Stryber, com quem trabalhei uns dois anos, como assistente.

            - Foi Toby quem me falou sobre você.

            - Em seguida, quando deixei Toby, fui para Los Angeles. Vivi lá os últimos três anos.

            - E se saindo bem.

            Ele sorriu com modéstia.

            - Sim, acho que sim.

            Suas roupas eram puro Los Angeles. Tênis brancos, jeans desbotados, camisa branca, um desbotado blusão de brim. Em deferência ao frígido tempo londrino, usava um cachecol de cashmere coral, enrolado à volta do pescoço esguio e bronzeado. Embora amarfanhada, sua aparência era deliciosamente limpa, de roupa recém-lavada e secada ao sol, ainda por passar. Olivia o achou extremamente atraente.

            - Carla já lhe falou sobre a programação? - Carla era a editora de modas para Olivia. - Será para o exemplar de julho, uma última reportagem com roupas de férias, antes de passarmos para os tweeds dedicados às charnecas.

            - Falou... ela mencionou fotos em locação.

            - Fez algumas sugestões?

            - Falamos sobre Ibiza... Tenho contatos lá...

            - Ibiza.

            Ele foi rápido em harmonizar.

            - Se você tem outro lugar em mente, tudo bem para mim. Talvez Marrocos...

            - Não. - Desencostando-se da mesa, ele foi sentar-se novamente em sua cadeira. -Não temos usado Ibiza há algum tempo... mas acho que não deviam ser fotos nas praias. Fundos rurais ficariam um pouco diferentes, com cabras, ovelhas e camponeses robustos cuidando das lavouras. Você poderia acrescentar alguns moradores locais, para dar um pouco de autenticidade. Eles têm rostos maravilhosos e adoram tirar retrato...

            - Acho formidável...

            - Então, discuta o assunto com Carla...

            Ele vacilou.

            - Quer dizer que estou empregado?

            - É claro que está. Apenas, trabalhe bem...

            - Farei isso. Obrigado...     

            Ele começou a reunir suas fotos, formando uma pilha. O interfone soou na mesa de Olivia, ela apertou o botão e falou com sua secretária.

            - Sim?

            - Uma ligação de fora, Srta. Keeling.

            Olivia olhou para o relógio. Meio-dia e quinze.

            - Quem é? Estou saindo para o almoço.

            - Um Sr. Henry Spotswood.

            Henry Spotswood. Quem, diabo, seria Henry Spotswood? Então, o nome surgiu em sua mente, ela recordou o homem que conhecera duas noites antes, no coquetel dos Ridgeway. Cabelos começando a ficarem grisalhos, e tão alto quanto ela. No entanto, ele se apresentara como Hank.

            - Quer completar a ligação, Jane?

            Enquanto esticava o braço para o telefone, Lyle Medwin, com sua pasta de fotos debaixo do braço, cruzava a sala em passadas macias e abria a porta.

            - Tchau - falou baixinho, enquanto se esgueirava para fora.

            Olivia acenou com a mão e sorriu, mas ele já se fora.

            - Srta. Keeling?

            - Ela mesma.

            - Olívia, é Hank Spotswood; nos conhecemos em casa dos Ridgeway.

            - Sim, claro.

            - Tenho uma ou duas horas livres. Alguma possibilidade de almoçarmos juntos?

            - Quando? Hoje?

            - Sim, agora mesmo.

            - Oh, sinto muito, mas não será possível. Minha irmã está vindo do campo, e prometi almoçar com ela. Aliás, estou atrasada, já devia ter ido.

            - Oh, é uma pena. Bem, que tal jantarmos esta noite?

            A voz dele - lembrou Olívia - preenchia os detalhes. Olhos azuis. Um rosto inteiramente americano. Agradável e forte. Terno escuro. Camisa Brooks Brothers. com colarinho abotoado.

            - Seria um prazer.

            - Ótimo. Aonde gostaria de ir?

            Ela estudou a pergunta por um instante. depois decidiu-se.

            - Só por uma vez gostaria de não comer em um restaurante ou hotel?

            - O que isto significa?

            - Vá até minha casa e eu ofereço o jantar.

            - Seria formidável. -Ele pareceu surpreso, mas não sem entusiasmo. - Bem... não será muito trabalho para você?

            - Trabalho nenhum -respondeu ela com um sorriso. - Apareça pelas oito horas.

            Forneceu o endereço, mais uma ou duas informações, para o caso de ele encontrar um motorista de táxi imbecil, despediram-se, e ela desligou.

            Hank Spotswood. Uma boa notícia. Sorriu para si mesma, depois olhou para o relógio, expulsou Hank da mente. levantou-se, apanhou chapéu, casaco, bolsa e luvas; em seguida precipitou-se do escritório, a fim de encontrar Nancy para almoçarem.

            O encontro foi no L' Escargot no Soho, onde Olivia reservara mesa. Era sempre lá que tinha almoços de negócios, e não via motivos para outro arranjo, embora sabendo que Nancy estaria muito mais à vontade no Harvey Nichols ou em qualquer outro lugar apinhado de mulheres esgotadas, descansando os pés após uma manhã de compras.

            Mas ali estava o L' Escargot. Olivía estava atrasada, e Nancy já esperava por ela, mais gorda do que nunca, em sua grossa suéter de lã e saia do mesmo material, tudo arrematado por um chapéu de pele aproximadamente do mesmo tom de seu desbotado cabelo anelado. O chapéu dava a impressão de que Nancy deixara crescer uma segunda cabeleira. Lá estava ela, única mulher num mar de homens de negócios, a bolsa no colo e um copo alto de gim tônica à sua frente, sobre a mesa pequenina. Parecia tão deslocada, que Olivia sentiu uma pontada de culpa, o que a fez mais efusiva do que se sentia.

            - Oh, Nancy, sinto muito, sinto muitíssimo, mas fiquei retida no escritório. Chegou há muito tempo?

            Elas não se beijaram. Nunca se beijavam.

            - Está tudo bem.

            - De qualquer modo, você já pediu um drinque... quer outro? Reservei mesa para meio-dia e quarenta e cinco, não vamos querer perdê-la.

            - Boa-tarde, Srta. Keeling.

            - Oh, olá, Gerard. Não, sem drinque, por favor não temos muito tempo.

            - A senhorita reservou mesa?

            - Sim. Para meio-dia e quarenta e cinco. Acho que estou um tanto atrasada.

            - Não importa. Se quiser acompanhar-me...

            Gerard abriu caminho, mas Olivia esperou que Nancy se içasse da cadeira, apanhasse sua bolsa e sua revista, ajeitando em seguida a suéter sobre o ventre razoável, antes de acompanhá-lo. O restaurante estava cheio, aquecido, repleto de ruidosas conversas masculinas. Foram conduzidas à mesa costumeira de Olivia, em um canto afastado onde, após a tradicional e obsequiosa cerimônia, finalmente acomodaram-se em um sofá curvo, a mesa foi aproximada de seus joelhos, e apresentado um congestionado cardápio.

            - Um sherry enquanto a senhorita decide?

            - Uma Perrier para mim, Gerard, por favor... e para minha irmã... - Ela se virou para Nancy. - Gostaria de um vinho?

            - Sim, seria ótimo.

            Ignorando a lista de vinhos, Olivia pediu meia-garrafa do branco da casa.

            - E, então, o que deseja comer?

            Nancy não sabia. O cardápio era incrivelmente comprido e todo em francês. Olivia sabia que a irmã poderia ficar ali o dia inteiro, estudando os pratos; ofereceu, portanto, algumas sugestões. Por fim, Nancy acedeu em um consomê, seguido por escalope de vitela com cogumelos. Olivia pediu uma omelete e uma salada de verduras. Feitos os pedidos, o garçom desapareceu.

            - Que tipo de viagem fez esta manhã? - perguntou.

            - Oh, foi muito confortável, realmente. Peguei o trem das nove e quinze. Houve um certo atropelo para levar as crianças à escola, mas consegui acomodar tudo.

            - Como estão as crianças?

            Tentou demonstrar um interesse sincero, mas Nancy sabia que isso não existia e, felizmente, não se prolongou no tema.

            - Muito bem.

            - E George?

            - Também está bem, imagino.

            - E os cães? - insistiu Olivia.

            - Todos ótimos... - Nancy começou a falar, e então se lembrou. - Um deles passou mal esta manhã.

            Olivia fez uma careta.

            - Não me conte nada. Pelo menos, até depois de almoçarmos.

            O garçom de bebidas apareceu, trazendo a Perrier de Olívia e a meia-garrafa de Nancy. As duas garrafas foram devidamente abertas e o vinho despejado no copo. O homem esperou. Nancy recordou que devia provar o vinho, e então tomou um gole, franziu os lábios profissionalmente e declarou que estava delicioso. A garrafa foi depositada sobre a mesa e o garçom retirou-se, com rosto inexpressivo.

            Olivia serviu sua água mineral.

            - Você nunca bebe vinho? - perguntou Nancy.

            - Não durante os almoços de negócios.

            Nancy ergueu as sobrancelhas, quase arqueando-as.

            - Este é um almoço de negócios?

            - Bem, acho que sim, não é? Não foi o que nos reuniu aqui? Para falarmos de negócios sobre mamma?

            O apelativo tatibitate, como sempre, deixou Nancy irritada. Os três filhos de Penelope a chamavam por nomes diferentes. Noel dirigia-se a ela como "mãe". Nancy, fazia alguns anos, chamava-a de "mamãe", um termo que considerava adequado às suas idades e à própria posição dela, Nancy, na vida. Somente Olivia - de coração duro e sofisticada em todos os outros sentidos - insistia com aquele "mamma". Nancy às vezes perguntava a si mesma se a irmã não percebia o quanto aquilo soava ridículo.

            - Seria bom começarmos logo - insistiu O1ivia. - Não tenho o dia inteiro para isso.

            Seu tom frio foi a última gota. Nancy, que viajara de trem de Gloucestershire para este encontro, que limpara vômito de cachorro e cortara o polegar na lata de ração, nem sabendo como conseguira levar seus dois filhos para a escola e ainda apanhar o trem, em cima da hora, sentiu uma gigantesca onda de ressentimento.

            Não tenho o dia inteiro para isso.

            Por que O1ivia precisava ser tão rude, tão inflexível, tão insensível? Será que nunca haveria uma oportunidade de conversarem cordialmente como irmãs, sem O1ivia ostentando a movimentação de sua carreira, como se a vida de Nancy, com suas sólidas prioridades de um lar, marido e filhos, não tivesse qualquer valor?

            Quando pequeninas, Nancy tinha sido a bonita. Loura, de olhos azuis, maneira amáveis e (graças a vovó Keeling) roupas bonitas. Era ela quem atraíra olhos, admiração, homens. Olivia era a inteligente e ambiciosa, obsecada por livros, exames e conquistas acadêmicas. Entretanto, era feia, recordou Nancy, bastante feia. Dolorosamente alta e magra, de busto achatado e usando 6culos, exibia uma falta de interesse quase arrogante pelo sexo oposto, retraindo-se em desdenhoso silêncio sempre que um dos namorados de Nancy aparecia, ou indo para seu quarto ler um livro.

            Não obstante, O1ivia fora redimida por suas feições. Não seria filha de seus pais, caso não fosse abençoada com aquelas características. Os cabelos muito espessos tinham a cor e o brilho do mogno polido. Os olhos escuros, herdados da mãe, cintilavam como os de algumas aves, mostrando uma espécie de sardônica inteligência.

            Então, o que tinha acontecido? A desengonçada, brilhante aluna universitária, a irmã com quem homem nenhum queria dançar, de algum modo, em alguma época, em algum lugar, transformara-se naquele fenômeno, que era Olivia aos trinta e oito anos. A formidável mulher profissional, a editora de Venus.

            Sua aparência, agora, era tão descompromissada como sempre. Até mesmo feia, porém quase aterradoramente chique. Um chapéu de veludo negro de copa achatada, um casaco negro, drapeado, blusa de seda creme, colares e brincos dourados, anéis semelhantes a soqueiras de metal. O rosto era pálido, a boca, sempre muito vermelha; até os enormes óculos de aros negros, ela de algum modo os transformara em invejável acessório. Nancy não era nenhuma tola. Ao seguir Olivia no restaurante apinhado, caminhando para a mesa reservada, captara o frisson de interesse masculino, vira os olhares dissimulados e as cabeças que se viravam. Ao mesmo tempo, sabia que não se tinham virado para ela, como a mais bonita das duas, mas para Olivia.

            Nancy jamais estivera a par dos mistérios da vida de Olivia e, até aquele tão extraordinário evento de cinco anos atrás, acreditara piamente que a irmã fosse virgem ou de todo assexuada. (Claro que existia outra e mais sinistra possibilidade, que lhe ocorrera após avançar difícil e minuciosamente por uma biografia de Vita Sackville-West, porém, como dissera a si mesma, isto era algo em que nem suportava pensar.)

            Clássico exemplo de mulher sagaz e ambiciosa, Olivia parecia ter-se absorvido pela carreira, havendo progredido com firmeza até tornar-se editora-chefe de Venus, a exclusiva e inteligente revista feminina, para a qual trabalhara sete anos. Seu nome constava do expediente; de tempos em tempos, sua foto surgia na revista, ilustrando algum artigo e, certa ocasião, ela aparecera na televisão, respondendo a perguntas em um programa dirigido às famílias.

            E então, com tudo correndo bem para ela, na metade da corrente da vida, por assim dizer, Olivia dera aquele passo, inesperado e tão avesso ao seu feitio. Ao passar férias em Ibiza, conhecera um homem chamado Cosmo Hamilton e não voltara para casa. Terminara voltando, mas somente após ter ficado um ano lá, vivendo com ele. A primeira vez que seu editor tomou conhecimento do fato foi através de uma carta que ela remeteu de Ibiza, com um pedido de demissão. Quando a estarrecedora notícia vazou, através de sua mãe, Nancy a princípio se recusara a crer. Disse para si mesma que aquilo era demasiado chocante; no entanto, a verdade é que, de algum modo obscuro, sentia que Olivia dera um passo à sua frente.

            Mal podendo esperar para contar a George, esperava vê-lo tão apalermado quanto ela. Entretanto, a reação dele foi surpreendente.

            - Que interessante! -foi tudo quanto disse.

            - Você não me parece muito surpreso.

            - E não estou.

            Ela franziu a testa.

            - É de Olivia que estamos falando, George!

            - Claro que é de Olivia. - Ele fitou o rosto perplexo da esposa e quase riu. - Ora, Nancy! Está mesmo pensando que sua irmã passou a vida inteira como uma freirinha bem-comportada? Essa moça tão reservada, com apartamento em Londres, maneiras evasivas... Se acreditou nisto, então você é mais tola do que pensei.

           Nancy sentiu as lágrimas ardendo no fundo dos olhos.

            - Ora, mas eu... eu... eu pensei...

            - O que foi que pensou?

            - Oh, George, ela é tão sem atrativos!

            - Está muito enganada, Nancy - respondeu George. – Sua irmã não é, em absoluto, sem atrativos.

            - Pensei que você não simpatizasse com ela. !

            - E continuo não simpatizando -disse George, abrindo o jornal e, com isto, pondo fim ao diálogo.

            Não era do temperamento dele expor uma questão com tanta eficácia e também não era sua tendência ser tão perceptivo, mas, após digerir o assunto e remoer esta nova reviravolta de eventos, Nancy concluiu que seu marido provavelmente estaria certo sobre Olivia. Assim, aceitou a situação e não teve dificuldade para manobrá-la em proveito próprio. Ser capaz de vangloriar-se sobre um relacionamento tão atrevido era ao mesmo tempo fascinante e sofisticado - como uma antiga peça de Noel Coward -e desde que alguém aludisse à questão da vida-em-pecado, Olivia e Cosmo forneciam um tema que constituía um excelente tampão nas conversas em jantares com convidados.

            - Sabem como é, minha inteligente irmã Olivia é extremamente romântica. Abandonou tudo por amor. Agora reside em Ibiza... na casa mais maravilhosa que se desejaria. - Sua imaginação corria a rédeas soltas, aventurando outras deliciosas possibilidades e esperançosamente grátis. - No próximo verão, talvez eu, George e as crianças passemos algumas semanas com eles. Tudo depende dos eventos no Clube Eqüestre, é claro, não? Nós, mães, somos escravas do Clube Eqiiestre.

            Contudo, embora Olivia convidasse a mãe, e Penelope aceitasse alegremente, tendo passado mais de um mês com ela e Cosmo, tal convite jamais foi estendido aos Chamberlain. Nancy nunca perdoou a irmã por isto.

            O restaurante estava quente demais. De repente, Nancy sentiu que o calor era insuportável. Desejou ter vestido uma blusa, em vez de suéter, mas, não podendo tirar a suéter, tomou outro gole de vinho fresco. A despeito do calor, reparou que suas mãos tremiam.

            A seu lado, Olivia perguntava:

            - Você viu mamma?

            - Oh, sim. -Ela deixou o copo na mesa. - Fui vê-la no hospital.

            - E como a achou?

            - Bem, muito bem, em vista das circunstâncias.

            - Eles estavam certos de que foi um ataque cardíaco?

            - Oh, sem dúvida. Ela ficou sob tratamento intensivo um ou dois dias. Depois a colocaram em uma enfermaria, mas ela decidiu voltar para casa, por conta própria.

            - O médico não deve ter gostado muito disso.

            - Sim, ele ficou aborrecido. Foi quando telefonou para mim e disse que ela não devia morar sozinha.

            - Você considerou uma segunda opinião?

            Nancy se conteve a custo.

            - Ele é um excelente médico, Olivia!

            - Apenas um clínico rural.

            - Ele ficaria muito ofendido...

            - Tolice. Acho que não adianta tomarmos qualquer providência sobre uma acompanhante ou governanta, enquanto ela não for examinada por um especialista.

            - Você sabe que ela jamais procuraria um especialista.

            - Então, que se faça a sua vontade. Por que lhe impormos alguma acompanhante idiota, se o que ela deseja é morar sozinha? Aquela excelente Sra. Plackett está lá, três manhãs por semana, e tenho certeza de que todos na aldeia andarão por perto, de olho nela. Afinal de contas, já são cinco anos morando lá, e todos os moradores a conhecem.

            - Certo, mas suponhamos que ela tenha outro ataque e morra, simplesmente por não haver ninguém lá para socorrê-la. Ou que caia na escada. Ou que sofra um acidente com o carro e mate alguém...

            Imperdoavelmente, Olivia riu.

            - Nunca pensei que você tivesse uma imaginação tão vívida! Afinal, encaremos os fatos: se ela tiver algum acidente com o carro, a presença e uma governanta não a impedirá. Fracamente, não vejo por que nos deveríamos preocupar tanto.

            - Nós temos de ficar preocupados!

            - Por quê?

            - Não se trata apenas da governanta... há outras coisas a serem consideradas. A horta e o jardim, por exemplo. Dois acres plantados, e ela sempre fez tudo sozinha. Plantando legumes e aparando a grama. Tudo! Não é possível que continue com este tipo de esforço físico.

            - E não continuará -respondeu Olivia, e Nancy franziu a testa. - Tive uma longa conversa com ela ao telefone, faz algumas noites...

            - Você não me contou isso.

            - E você mal me deu tempo. Falando comigo, ela parecia em ótimo estado, forte e alegre. Disse que achava o médico um tolo e que, se outra mulher fosse morar em sua companhia, provavelmente a assassinaria. A casa é muito pequena, e as duas se atropelariam a toda hora, no que concordo plenamente. Quanto à horta e ao jardim, já antes de ela ter o chamado ataque cardíaco, havia decidido que davam trabalho demais. Então, entrou em contato com a agência local de jardineiros e arranjou um homem para trabalhar lá, dois ou três dias na semana. Parece que ele começa na próxima segunda-feira.

            Nada disto teve o dom de melhorar o estado de espírito de Nancy. Era como se Olivia e sua mãe estivessem conspirando às escondidas.

            - Não sei se será uma boa idéia. Como sabermos que tipo de pessoa eles enviarão? Pode ser qualquer um. Mamãe poderia ter contratado um bom homem da aldeia.

            - Todos os bons homens da aldeia já estão empregados na fábrica de produtos eletrônicos, em Pudley...

            Nancy continuaria a discussão, mas foi interrompida pela chegada de sua sopa. Foi servida em uma tigela redonda de cerâmica marrom, e exalava um cheiro delicioso. De repente, percebeu o quanto estava faminta, pegou a colher e estendeu a mão para um cálido e tostado croissant.

            Após alguns momentos, disse em tom formal:

            -Você nem pensou em discutir o assunto comigo e com George!

            - Pelo amor de Deus, o que havia para discutir? Não tenho nada a ver com pessoa alguma, exceto mamma. Sinceramente, Nancy, você e George a tratam como se ela fosse senil; no entanto, tem apenas sessenta e quatro anos, está na flor da idade, forte como um touro e independente como sempre foi. Por que não param de interferir?

            Nancy perdeu a calma.

            - Interferir? Talvez se você e Noel interferissem - como denominou - um pouco mais freqüentemente, tirariam de meus ombros parte da carga.

            Olivia ficou gélida.

            - Em primeiro lugar, não me nivele a Noel. E em segundo, se tem uma carga nos ombros, você mesma a inventou e a colocou lá!

            - Não sei por que eu e George nos preocupamos. É evidente que não recebemos agradecimentos.

            - E o que devo agradecer a você?

            - Muita coisa. Se eu não tivesse convencido mamãe de que era uma loucura, a estas horas teria voltado para a Cornualha e viveria na casa de algum pescador.

            - Nunca entendi por que você pensou que fosse tão má idéia.

            - Olivia! A quilômetros de todos nós, no outro lado do país... era ridículo! Foi o que disse a ela. Você nunca deve voltar para lá, eu falei. Tudo quanto ela tentava fazer era recapturar sua juventude. Teria sido um desastre. Além do mais, foi George quem encontrou Podmore's Thatch para ela. Nem você poderia dizer que aquela não é a casa mais encantadora, mais perfeita, em todos os sentidos. E tudo graças a George. Não esqueça isso, Olivia. Tudo graças a George!

            - Três vivas para George.

            Houve outra interrupção a esta altura, enquanto a tigela de sopa de Nancy era removida, e servidos o escalope de vitela e a omelete. O restante do vinho foi despejado no copo de Nancy, e Olivia começou a servir-se de salada. Quando o garçom tomou a afastar-se,

Nancy perguntou:

            - E quanto irá custar esse jardineiro? Jardineiros contratados costumam ser dispendiosos.

            - Oh, Nancy, isso importa?

            - É claro que importa. Mamãe poderá pagar a ele? É mais uma coisa que me preocupa. Mamãe sempre fez tanto mistério sobre dinheiro, embora, ao mesmo tempo, seja tão gastadeira!

            - Mamãe? Gastadeira? Ela jamais gastou um níquel consigo mesma!

            - Sim, mas está sempre recebendo pessoas. Suas contas de comida e bebida devem ser astronômicas. E aquela estufa ridícula, que mandou construir no chalé... George tentou dissuadi-la. Seria muito mais proveitoso gastar o dinheiro em vidraças duplas.

            - Talvez ela não quisesse vidraças duplas.

            - Você se recusa a preocupar-se, não é? - A voz de Nancy estava cheia de indignação. - Nem ao menos considera as possibilidades!

            - E quais são as possibilidades, Nancy? Esclareça-me.

            - Ela poderia viver até os noventa.

            - Espero que viva.

            - Seu capital não durará para sempre.

            Os olhos de Olivia brilharam, divertidos.

            - Você e George receiam ficar com uma pessoa desvalida e dependente nas mãos? Será mais um rombo em suas finanças, após terem pago a manutenção daquela casa, que é um celeiro, e matriculado os filhos nos colégios mais caros?

            - Não é da sua conta a maneira como decidimos gastar nosso dinheiro.

            - E também não é da conta de vocês a maneira com mamma decide gastar o dela!

            A resposta silenciou Nancy. Desviando os olhos de Olivia, concentrou a atenção em sua vitela. Olhando para a irmã, Olivia viu-a ruborizar-se, percebeu o ligeiro tremor na boca e nas faces. Pelo amor de Deus, pensou, ela só tem quarenta e três anos, mas parece uma velha, gorda e patética! De repente, sentiu uma pena imensa de Nancy e certa culpa. Ouviu-se dizendo, em tom mais suave e encorajador:

            - Em seu lugar, eu não me preocuparia tanto. Ela conseguiu um bom preço pela casa da Rua Oakley, e ainda sobrou uma boa fatia, mesmo depois da compra de Podmore's Thatch. Não creio que o velho Lawrence tenha percebido isso mas, com uma coisa e outra, ele a deixou bastante bem provida. Afinal, foi ótimo para nós três também, eu, você e Noel, pois, falando francamente, em questão de finanças nosso pai sempre foi um fracasso...

            Imediatamente, Nancy percebeu que chegara ao fim de suas energias. Estava exausta com a discussão e, além do mais, odiava quando Olivia falava do querido papai daquele jeito. Em circunstâncias normais, teria saltado para defender o morto amado. Agora, no entanto, não tinha mais forças. O encontro com Olivia fora pura perda de tempo. Nada ficara decidido sobre mamãe, sobre dinheiro, governantas ou outra coisa. Como sempre, Olivia falava muito mais rápido do que ela, e agora a deixava com a sensação a de ter sido esmagada por um rolo compressor.

            Lawrence Stern.

            A deliciosa refeição terminara. Olivia olhou para seu relógio e perguntou a Nancy se ela queria café. Nancy quis saber se ainda havia tempo, Olivia disse que sim, ainda dispunha de uns cinco minutos. Nancy aceitou o café, Olivia o pediu. Relutantemente, Nancy expulsou da mente as imagens dos deliciosos pudins que vira no carrinho das sobremesas, apanhou a Harpers and Queen que comprara para ler no trem, e que agora jazia no assento estofado de veludo, ao seu lado.

            - Já viu isto?

            Folheou as páginas, até chegar ao anúncio da Boothby's e estendeu a revista para a irmã. Olivia olhou de relance e assentiu.

            - Sim, já vi. A venda será na próxima quarta-feira.

            - Não é extraordinário? - Nancy pegou a revista de volta.

            - Imaginar que alguém queira comprar semelhante horror!

            - Nancy, eu lhe garanto que um bocado de gente quer comprar semelhante horror.

            - Você deve estar brincando!

            - É claro que não estou. - Notando a sincera perplexidade da irmã, Olivia riu. - Oh, Nancy, onde foi que você e George estiveram nestes últimos anos? Tem havido um novo e incrível interesse pela pintura vitoriana. Lawrence Stern, Alma-Tadema, John William Waterhouse... estão conseguindo preços enormes, nas vendas dos negociantes de arte.

            Nancy estudou a sombria tela As aguadeiras, com o que esperava ser uma nova perspectiva. Não houve qualquer diferença.

            - Ora, mas por quê? - insistiu.

            Olivia deu de ombros.

            - Há uma nova avaliação da técnica desses pintores. O valor da raridade.

            - Quando você fala em preços enormes, o que quer dizer, exatamente? Ou melhor, quanto isto alcançará?

            - Não faço a menor idéia.

            - Dê um palpite.

            -Bem... - Olivia mordeu o lábio considerando. - Talvez... umas duzentas mil.

            - Duzentas mil? Por isto?

            - Exato. Mais ou menos alguns quebrados.

            - Ora, mas por quê? - Nancy tomou a insistir.

            - Já lhe disse. O valor da raridade. Nada vale alguma coisa, a menos que alguém o queira. Lawrence Stern nunca foi um pintor prolífico. Se você examinar os detalhes nesse quadro entenderá o motivo. Deve ter levado meses para ficar pronto.

            - E o que aconteceu com toda a obra dele?

            - Foi-se. Vendida. Provavelmente, mal saída do cavalete, com a tinta ainda molhada. Toda coleção particular ou galeria de arte pública que seja digna do nome no mundo certamente possui alguma tela de Lawrence Stern. Hoje em dia. só de vez em quando um de seus quadros aparece no mercado. E, lembre-se, ele deixou de pintar muito antes da guerra, quando as mãos ficaram tão deformadas, que não conseguiam segurar nem mesmo um pincel. Imagino que ele tenha vendido tudo quanto pôde e bem feliz por vender, apenas para manter a família viva. Vovô nunca foi um homem rico. Para nossa sorte, herdou do pai um casarão em Londres e, mais tarde, conseguiu comprar a posse de Carn Cottage. A venda de Carn Cottage custeou por muito tempo a educação de nós três, e é do produto da venda da casa da Rua Oakley que mamma está vivendo agora.

            Nancy ouviu tudo isto, porém não com total atenção. Sua concentração oscilava. enquanto a mente explorava uma tangente. analisando possibilidades, especulando.

            - E quanto aos quadros de mamãe? - perguntou, procurando soar o mais casual que pôde.

            - Está falando de “Os catadores de conchas?”

            - Estou. E dos dois painéis no patamar da escada.

            - O que quer saber?

            - Se fossem vendidos agora. Acha que valeriam muito dinheiro?

            - Imagino que sim.

            Nancy engoliu. Tinha a boca seca.

            - Quanto?

            - Nancy, meu ramo é outro.

            - Diga uma quantia aproximada.

            - Imagino que... perto de quinhentas mil.

            - Quinhentas mil libras! - As palavras mal tiveram som. Nancy reclinou-se no assento, absolutamente chocada. Meio milhão. Podia ver a soma escrita, com o sinal da libra e uma fileira de adoráveis zeros. Naquele momento, o garçom trouxe seu café, preto, fumegante e oloroso. Pigarreando, ela exclamou novamente: - Meio milhão!

            - Mais ou menos. - Com um de seus raros sorrisos, Olívia empurrou o açucareiro na direção de Nancy. - Está vendo? Agora, você e George não precisam mais se preocupar com as despesas de mamma.

            Aquilo foi o fim da conversa. As duas beberam o café em silêncio, Olivia pagou a conta e levantaram-se para sair. Fora do restaurante, uma vez que iam para direções diferentes, chamaram dois táxis e, como Olivia estava com mais pressa, tomou o primeiro. Despediram-se na calçada e Nancy a viu ir embora. Enquanto almoçavam, começara a chover bastante forte, mas Nancy, parada debaixo do aguaceiro, mal percebeu.

            Meio milhão.

            Seu táxi aproximou-se. Disse ao motorista que a conduzisse à casa Harrods, deu uma gorjeta para o porteiro e embarcou no veículo. O táxi pôs-se em movimento. Recostada no assento, olhando para Londres que desfilava do outro lado da janela do táxi, ela nada via. Nada conseguira de seu entendimento com Olivia, porém o dia não fora em vão. Podia sentir o coração batendo com secreta excitação.

            Meio milhão de libras.

            Um dos motivos de Olivia ter feito tanto sucesso em sua carreira era a aptidão que desenvolvera para clarear a mente e, desta maneira, concentrar sua incrível inteligência em um conjunto de problemas a cada vez. Dirigia sua vida como um submarino, dividido em compartimentos estanques, cada um hermeticamente desligado do outro. Assim, nesta manhã tirara Hank Spotswood do pensamento e pudera dedicar-se a Nancy. Ao voltar para o escritório, já quando cruzava a porta do prestigiado edifício. ela era novamente a editora de Venus. Sem pensar em mais nada que não fosse o êxito de sua publicação. Durante a tarde, ditou cartas, teve uma reunião com seu gerente de publicidade, organizou um almoço promocional a acontecer no Dorchester e teve uma longa, atrasada discussão com a editora de ficção, informando à pobre mulher que, se ela não encontrasse histórias melhores do que as até então submetidas à sua aprovação, Venus deixaria de publicar ficção. Neste caso, a editora

de ficção podia procurar outro emprego. Uma mulher só, lutando para criar dois filhos, a editora de ficção debulhou-se em lágrimas, porém Olivia foi inflexível; a revista tinha prioridade sobre qualquer outra coisa e, portanto, limitou-se a estender um lenço de papel à outra, concedendo-lhe duas semanas de folga, durante as quais deveria tirar algum coelho mágico de sua cartola.

            Tudo isto, no entanto, era esgotante. Lembrando-se de que estavam na sexta-feira, final de semana, Olivia ficou grata por isto.

            Trabalhou até as seis da tarde, arrumou sua mesa, reuniu seus pertences e finalmente tomou o elevador para a garagem do subsolo, onde apanhou seu carro e partiu para casa.

            O trânsito era infernal, porém Olivia já estava acostumada à hora do rush e a aceitava. Com uma batida mental da porta isolante, Venus deixou de existir; era como se a tarde jamais houvesse acontecido e ela estivesse novamente no L'Escargot, em companhia de Nancy.

            Havia sido brusca com a irmã, acusara-a de exagerar em suas reações, fizera pouco caso da doença da mãe, rejeitara o diagnóstico do clínico geral do campo. Isto acontecia porque, invariavelmente, Nancy transformava grãos de areia em montanhas... pobre criatura, o que mais podia fazer com sua vida tediosa... mas também porque Olivia, como se ainda fosse criança, gostava de pensar em Penelope como tendo sempre boa saúde. Sendo o mesmo imortal. Não a queria doente. Não queria que ela morresse.

            Ataque do coração. Que isso acontecesse logo com sua mãe, entre tantas pessoas, uma mulher que jamais ficara doente a vida inteira! Alta, forte, vital, interessada em tudo, porém, o principal, estando sempre lá. Olivia recordava a cozinha no porão da casa na Rua Oakley, o núcleo daquela esparramada casa londrina, onde a sopa estava sempre no fogo e as pessoas sentavam-se em volta da mesa esfregada e limpa, conversando durante horas enquanto bebericava o conhaque ou café, com sua mãe passando roupa ou remendando lençóis. Se alguém mencionava a palavra "segurança", era daquele lugar confortável que Olivia se lembrava.

            E agora... Ela suspirou. Talvez o médico estivesse certo. Talvez Penelope precisasse de alguém morando em sua companhia. O melhor que tinha a fazer era visitá-la, conversar e, se preciso, chegar a alguma espécie de arranjo. Amanhã era sábado. Irei vê-la amanhã, decidiu e, imediatamente, sentiu-se muito melhor. Iria de carro a Podmore's Thatch pela manhã e passaria o dia lá. Com esta decisão tomada, ela tirou da mente todo aquele assunto e permitiu que a lacuna resultante se enchesse lentamente com a agradável antecipação da noite que tinha pela frente.

            A esta altura, estava praticamente em casa. Primeiro, no entanto, deu uma parada no supermercado local, estacionou o carro e fez algumas compras. Pão fresquinho e crocante, manteiga e um pote de patê de foie gras; frango e o indispensável para uma salada. Azeite de oliva, pêssegos frescos, queijos; uma garrafa de uísque e duas de vinho. Comprou flores, uma braçada de narcisos, colocou tudo no porta-malas do carro e cobriu o curto trajeto que a levaria à Ranfurly Road.

            Sua casa era uma entre uma fileira de pequenas edificações eduardianas de tijolos, cada qual com sua janela de balcão saliente, jardinzinho frontal e passagem ladrilhada. Vista de fora, parecia quase melancolicamente comum, porém isto apenas acentuava o impacto do interior, inesperado e sofisticado. Os apertados aposentos do térreo tinham sido transformados em um salão espaçoso, a cozinha, dividida da área de refeições por apenas um balcão, à semelhança de um pequeno bar, com uma escada ampla que levava ao andar de cima. No extremo oposto do aposento, portas-janelas se abriam para um jardim, produzindo uma vista curiosamente rural, pois além do muro do jardim via-se uma igreja, com seu aproximadamente meio acre de terreno, onde um enorme carvalho estendia robustos galhos e, no verão, eram feitos os piqueniques da escola dominical.

            Em vista disto, pareceria natural se Olivia decorasse sua casa em estilo campestre, com algodões estampados de florezinhas e mobília de pinho, porém o impacto criado por ela era tão fino e moderno como o de um apartamento de cobertura. O tom predominante era o branco. Olivia adorava branco. Aquele era a cor do luxo, a cor da luz. Piso ladrilhado em branco, paredes brancas, cortinas brancas. Almofadões de algodão branco no assento dos fundos e pecaminosamente confortáveis sofás e poltronas, abajures e cúpulas brancos. O resultado não era frio, porque, sobre esta tela imaculada de alvura, ela salpicara toques de primária animação. Almofadas escarlate e rosa-indiano, tapetes espanhóis, pinturas abstratas vivas emolduradas em prata. A mesa da sala de refeições tinha tampo de vidro, as cadeiras eram negras, e uma parede daquele recanto fora pintada em azul-cobalto, nela pendendo uma galeria de fotos da família e de amigos.

            Tudo ali também era cálido, imaculado, irradiando limpeza. Isto porque a vizinha de Olivia, com quem tinha um acordo há muito tempo, vinha diariamente lavar e polir. Agora, ela podia sentir o cheiro do polidor, misturado ao aroma de um vaso de jacintos azuis, cujos bulbos, plantados pessoalmente no outono anterior, finalmente atingiam o auge da perfeição aromática.

            Sem pressa, movimentando-se conscienciosamente, entregou-se aos preparativos para a noite que se avizinhava. Fechou as cortinas, acendeu a lareira (a gás, com imitação de troncos, porém tão confortável e legítima como a tradicional), colocou um disco no estéreo e serviu-se de um uísque. Na cozinha, preparou uma salada e respectivos temperos, arrumou a mesa e colocou o vinho na geladeira.

            Eram agora quase sete e meia. Foi para o andar de cima. O dormitório ficava nos fundos da casa, dando para o jardim e o carvalho. Também naquele aposento predominava o branco, com um espesso carpete e enorme cama de casal. Olhando para a cama, ela pensou em Hank Spotswood, deliberou por um ou dois momentos, e então tirou sua arrumação, substituindo-a por lençóis de linho, brilhantes e frios, passados a ferro recentemente. Feito isto - e só então - ela se despiu e preparou seu banho.

            Para Olívia, o ritual do banho ao anoitecer era de abandono e relaxamento total. Ali, mergulhada em perfumado vapor, deixou que a mente divagasse, que os pensamentos voejassem. Era um interlúdio que conduzia a reflexões agradáveis - férias a considerar. Roupas para os meses vindouros, vagas fantasias concernentes ao seu homem atual. Entretanto, de alguma forma, viu-se novamente pensando em Nancy, imaginando se já estaria em casa àquela altura, naquela casa horrenda, com sua família antipática. De fato, sua irmã tinha problemas, porém todos pareciam auto-induzidos. Com todas as suas presunções, ela e George viviam muito acima das posses, mas procuravam convencer-se de que tinham direito a muito mais. Era difícil não sorrir, ante a recordação do rosto e maxilares flácidos de Nancy, de seus olhos salientes, quando falara a ela sobre o valor provável das telas de Lawrence Stern. Nancy jamais fora muito hábil em esconder o que pensava, em particular quando apanhada desprevenida. O total assombro havia sido quase imediatamente substituído por uma expressão de calculista avareza, como se estivesse visualizando contas escolares pagas, o velho vicariato com vidraças duplas, e garantida a segurança e todo o clã Chamberlain.

            Olivia não se preocupou com isto. Não receava pelo “Os catadores de conchas”. Lawrence Stern dera o quadro para a filha como presente de casamento, sendo mais precioso para Penelope do que todo o dinheiro do mundo. Ela jamais o venderia. Nancy - e Noel também estava incluído - simplesmente teria que ficar esperando que a natureza seguisse seu curso, que Penelope finalmente morresse. Um evento que, segundo Olivia esperava devotamente, ainda levaria anos para acontecer.

            Abandonou Nancy mentalmente e seus pensamentos mudaram para temas mais atraentes. Aquele sagaz e jovem fotógrafo, Lyle Medwin. Um rapaz brilhante. Um verdadeiro achado. E também perceptivo.

            "Ibiza", havia dito ele e, involuntariamente, ela repetira a palavra. Talvez Medwin captasse alguma interrogação em sua voz ou expressão, porque imediatamente oferecera uma sugestão alternativa. Ibiza. Olivia percebeu, enquanto espremia a esponja; a fim de que a água quente pingasse como bálsamo sobre sua nudez, que as lembranças haviam sido espicaçadas e ficavam pairando no fundo de sua consciência, desde aquele breve e aparentemente insignificante diálogo.

            Fazia meses que não pensava em Ibiza. No entanto, sugerira "fundos rurais... com cabras, ovelhas e camponeses robustos cuidando das lavouras". Viu a casa, baixa e alongada, de telhas vermelhas, tomada por buganvílias e treliças de vinhas. Ouviu o tilintar dos cincerros das vacas e galos cantando. Sentiu o cheiro cálido da resina de pinheiros e juníperos, soprado do mar por uma brisa quente. De novo, sentiu o calor penetrante do sol do Mediterrâneo.

 

                              COSMO

            Em princípios do verão de 1979. quando passava férias com amigos, Olivia conheceu Cosmo Hamilton, numa festa em um barco.

            Ela detestava barcos. Não gostava da intimidade forçada, daquela claustrofobia produzida por muita gente apinhada em tão reduzido espaço, do constante chocar de canelas e cabeças nos turcos e botalós. Aquele barco em particular era um cruzeiro de trinta pés, ancorado no porto, ao qual se chegava por meio de um resistente bote inflável de borracha. Olivia só compareceu porque o restante do grupo queria ir de qualquer jeito; assim mesmo acedeu relutante, tendo sido tudo tão ruim quanto receara. Com toda aquela gente, sem lugar algum para sentar, cada qual procurando mostrar-se mais alegre e sem-cerimônia. todos bebendo Bloody Mary e discutindo em ruidosas risadas a festa a que tinham ido na véspera -uma festa à qual Olivia e seus amigos não haviam comparecido.

            Viu-se em pé na cabina do iate. a mão aferrada ao copo, juntamente com mais umas quatorze pessoas. Era como tentar ser sociável dentro de um elevador, onde todos se comprimiam como sardinhas em lata. Outro detalhe terrível era encontrar-se em uma embarcação da qual não se tinha meios de ir embora. Não se podia simplesmente sair pela porta e chegar à rua, acenar para um táxi e ir embora. Estava presa ali. Além disso, apertada, cara a cara com um indivíduo desprovido de queixo parecendo achar que os outros julgavam fascinante sabê-lo membro dos Guardas (*) e saber em quanto tempo era possível ir, em um carro razoavelmente rápido de sua casa em Hampshire até Windsor.

            Olivia sentia imenso tédio. Ao se virar um momento para tornar a encher seu copo, se dispôs a sair dali imediatamente, espremendo-se da cabine apinhada e forçando caminho para diante. Enquanto avançava, viu uma jovem quase inteiramente nua, tomando banho de sol no teto da cabina. Na coberta de proa, encontrou vazio um canto do convés e sentou-se ali, de costas apoiadas no mastro. A algazarra das vozes continuou assaltando seus ouvidos mas, pelo menos, ali estava sozinha. Fazia um tremendo calor. Ficou olhando para o mar, impotente.

            Uma sombra caiu sobre suas pernas. Ergueu os olhos, receando ver o membro dos Guardas de Windsor, mas era apenas um homem barbudo. Já o tinha visto antes, ao embarcar, mas não se haviam falado. A barba dele era grisalha, porém tinha cabelos espessos e brancos. Era muito alto, magro e musculoso, vestindo uma camisa branca e jeans desbotados, descoloridos pelo ar marinho.

            - Quer outro drinque? - perguntou ele.

            - Acho que não.

            - Está querendo ficar sozinha?

            Tinha uma voz sedutora. Não lhe pareceu do tipo autopromocional.

            - Não necessariamente - respondeu.

            Ele agachou-se ao seu lado. Os olhos de ambos ficaram no mesmo nível, e Olivia viu que os dele eram de um azul tão pálido e suave quanto o tom de seus jeans. O rosto era marcado e profundamente bronzeado. Ele dava a impressão de ser talvez escritor.

            - Então, posso ficar com você?

            Ela vacilou, depois sorriu.

            - Por que não?

            O nome dele era Cosmo Hamilton. Morava na ilha; há vinte e cinco anos vivia ali. Não, não era escritor. No começo, dirigira um negócio de iates para excursões, depois empregara-se como agente de uma firma londrina que organizava pacotes de férias, porém agora era um cavalheiro ocioso.

 

(*) Tropas que, na Inglaterra, são incumbidas de proteger a soberania. (N. da T.)

 

            A contragosto, Olivia ficou interessada.

            - Isso não o entedia?

            - Por que deveria entediar-me?

            - Quero dizer, não ter o que fazer.

            - Oh, mas eu tenho mil coisas a fazer!

            - Mencione duas.

            Os olhos dele cintilaram, divertidos.

            - Isso é quase insultante.

            De fato, aquele homem parecia tão ativo e em tão boa forma física, que talvez fosse mesmo. Olivia sorriu.

            - Não foi uma frase literal.

            O sorriso dele aqueceu-lhe o rosto, pareceu iluminá-lo, fez com que os olhos se franzissem nos cantos. Olivia sentiu que seu coração, muito furtivamente, começava a despertar e a entrar em cena.

            - Tenho um barco - contou ele - uma casa e um jardim. Prateleiras de livros, duas cabras e três dúzias de galinhas garnisés. Pela última contagem. Os garnisés são notoriamente prolíficos.

            - Quem cuida dos garnisés? Você ou sua esposa?

            - Minha esposa mora em Weybridge. Somos divorciados.

            - Quer dizer que vive sozinho.

            - Não inteiramente. Tenho uma filha. Estuda na Inglaterra, de maneira que fica com a mãe durante o período letivo e, nas férias, vem para cá.

            - Que idade tem ela?

            - Treze anos. Chama-se Antonia.

            - Ela deve adorar passar as férias aqui.

            - Sem dúvida. Divertimo-nos muito. Como se chama?

            - Olivia Keeling.

            - Onde está hospedada?

            - No "Los Pinos".

            - Sozinha?

            -Não, com amigos. Por isso é que estou aqui. Um do grupo recebeu o convite, e todos aderimos.

            - Eu a vi chegando.

            - Odeio barcos - disse ela, começando a rir.

            Na manhã seguinte, ele apareceu no hotel, procurando-a. Encontrou-a sozinha, junto da piscina. Sendo cedo, seus amigos provavelmente ainda estariam nos quartos, porém Olivia já tinha nadado e pedira que seu desjejum fosse servido no terraço da piscina.

            - Bom-dia.

            Ergueu os olhos, o rosto virado para o sol, e o viu parado à sua frente, em um halo de luz ofuscante.

            - Olá.

            Olivia estava com os cabelos molhados e escorridos para trás, devido à natação, Tinha o corpo envolto em uma toalha felpuda branca.

            - Posso fazer-lhe companhia?

            - Fique à vontade. - Estirando um pé, empurrou uma cadeira na direção dele. - Já fez seu desjejum?

            - Já. - Ele se sentou. - Faz umas duas horas.

            - Um café?

            - Não, nada. Nem mesmo café.

            - Então, em que lhe posso ser útil?

            - Vim perguntar se queria passar o dia comigo.

            - O convite inclui meus amigos?

            - Não. Apenas você.

            Olhava de frente para ela, os olhos fixos, sem piscar. Para Olivia, foi como se a desafiassem e, por alguma razão, isto a deixou desconcertada. Há muitos e muitos anos não ficava desconcertada. Para dissimular o estranho nervosismo e ocupar-se de alguma coisa, tirou uma laranja do cesto de frutas sobre a mesa e começou a tentar descascá-la.

            - O que vou dizer aos outros? - perguntou.

            - Basta dizer-lhes que vai passar o dia comigo.

            A casca da laranja era dura e machucou sua unha do polegar.

            - E o que iremos fazer?

            - Bem, eu pensei em sair no barco... fazermos um piquenique... Dê-me aqui. - Parecia impaciente e, inclinando-se, tirou-lhe a laranja da mão. - Nunca irá descascá-la desse jeito. Enfiando a mão no bolso traseiro, pegou um canivete e começou a dividir a laranja em quatro partes. Olhando para as mãos dele, Olivia disse:

            - Eu detesto barcos.

            - Eu sei. Já me disse isso ontem. - Ele tomou a guardar o canivete no bolso, pelou a laranja com destreza e a devolveu a Olivia. - E agora - disse, enquanto ela pegava a fruta em silêncio - o que vai responder? Sim ou não?

            Olivia reclinou-se na cadeira e sorriu. Dividiu a laranja em gomos e começou a chupá-los, de um em um. Cosmo a fitava em silêncio. Agora, o calor da manhã aumentava e, com o gosto delicioso da fruta cítrica na língua, ela se sentia aquecida e contente, como um gato ao sol. Terminou de comer a laranja lentamente. Ao terminar, lambeu os dedos e, por sobre a mesa, olhou para o homem à espera.

            -Sim - falou.

            Nesse dia, Olivia descobriu que não detestava barcos, em absoluto. O de Cosmo não era tão grande como aquele da festa, porém infinitamente mais aconchegante. Em primeiro lugar, havia apenas eles dois e, em segundo, não tinham ficado balouçando ociosamente ancorados no porto, mas içaram velas e partiram, deixaram para trás o quebra-mar, entraram em mar aberto e costearam o litoral. Chegaram a uma solitária enseada azul, ainda não descoberta pelos turistas. Lá, deitaram âncoras e nadaram, pulando do convés, tornando a subir para bordo por uma escada de cordas, loucamente caprichosa.

            O sol agora estava alto no céu e fazia tal calor, que ele estendeu um toldo acima do convés, a cuja sombra fizeram um piquenique. Pão e tomates, fatias de salaminho, frutas e queijo. O vinho doce estava fresco, porque Cosmo atara barbantes ao gargalo das garrafas e as baixara no mar.

            Mais tarde, houve tempo para um tranqüilo banho de sol, estirados no convés; mais tarde ainda, depois que o vento caiu e com o sol já descendo no céu, a claridade refletida na água reverberando contra as paredes brancas do camarote, também houve tempo para fazerem amor.

            No dia seguinte. Cosmo tomou a aparecer, em seu castigado, porém pouco modesto Citroën de dois cavalos, mais parecido com uma lata de lixo móvel do que com qualquer outra coisa, e rodou com ela para longe da costa, internando-se na ilha, em direção ao local em que ficava sua casa. A esta altura e compreensivelmente, o restante do grupo ficara meio aborrecido com Olivia. O homem que havia sido incluído para distraí-la começou a censurá-la, os dois discutiram e, como resultado, ele se retraiu em insuportável mau humor. Assim, ficou mais fácil deixá-lo para trás.

            Aquela foi outra manhã encantadora. A estrada subia para suaves colinas, atravessando ensolaradas e sonolentas aldeias passando ao lado de pequeninas igrejas caiadas, fazendas onde cabras pastavam em campos minúsculos, e mulas pacientes, atreladas a rodas de moinhos, andavam em círculos.

            Tudo aquilo permanecera assim durante séculos, intocado pelo comércio e pelo turismo. O solo da estrada piorou, o moderno asfalto ficou para trás, e finalmente o Citroen rodou sacolejante, descendo por uma estradinha por fazer, sombreada e fresca sob um túnel de frondosos pinheiros, ladeira abaixo, através de um pomar de amendoeiras. Além deste, ficava a casa dele. Comprida e branca, de telhado vermelho, manchada de púrpura pelas buganvílias desabrochadas, oferecia uma visão ininterrupta do amplo vale, descendo em direção ao litoral. Toda a frente da casa era tomada por um terraço coberto por treliças de videiras. Abaixo do terraço, um pequeno e emaranhado jardim descia para uma também pequena piscina, cintilando límpida e turquesa à luz do sol.

            - Que casa! - ela pôde finalmente exclamar.

            - Vamos, eu lhe mostrarei o interior.

            Aquela casa era uma confusão. Escadas ao acaso subiam e desciam, não havia dois aposentos parecendo no mesmo nível. Havia sido outrora uma casa de fazenda e o andar de cima continuava com a sala de estar e a cozinha, enquanto os aposentos do térreo, um dia tendo sido curral, estábulo e chiqueiro, eram agora dormitórios.

            O interior era austero e fresco, de paredes caiadas de branco e mobiliado no estilo mais simples. Alguns tapetes de cores vivas sobre o piso de tábuas rústicas, móveis fabricados no lugar, cadeiras com assento de palhinha e mesas de madeira, com tampos muito esfregados. Somente na sala de estar havia cortinas; todas as demais janelas, profundamente encravadas nas paredes grossas, exibiam apenas as persianas.

            Entretanto, por ali também havia delícias. Sofás e poltronas fofos, estofados em algodão colorido; jarros de flores; cestas rústicas ao lado da lareira aberta e abastecida de toras. Na cozinha, panelas de cobre pendiam de uma viga, havendo ali o cheiro de ervas e condimentos. Por todos os lados surgiam indícios do homem, evidentemente culto, que ocupara aquela casa por vinte e cinco anos. Centenas de livros, não apenas nas estantes, mas espalhados em cima das mesas, peitoris de janela e na cômoda ao lado de sua cama. Havia também bons quadros e muitos retratos, além de prateleiras de discos, perfeitamente arrumados ao lado do toca-discos.

            Por fim, encerrada a inspeção, ele a guiou por uma porta rebaixada, desceu mais outro lance de escadas e, de novo, através de um saguão ladrilhado de vermelho, saíram outra vez no terraço.

            Ela ficou parada, de costas para a paisagem, e contemplou a fachada da casa.

            - É mais perfeita do que eu poderia imaginar - disse.

            - Agora sente-se e contemple a vista, enquanto lhe trago um copo de vinho.

            Havia uma mesa e algumas cadeiras de vime dispostas por ali, mas Olivia não quis sentar-se. Preferiu recostar-se à parede caiada de branco, onde grandes potes de cerâmica serviam de canteiro para gerânios de folhas semelhantes às da hera, enchendo o ar com seu perfume ácido, enquanto um exército de formigas, interminavelmente ocupadas, marchava para cá e para lá, em tropas bem organizadas. A quietude era imensurável. Aguçando os ouvidos, ela captou os pequenos sons amortecidos que faziam parte daquele silêncio. Um cincerro distante. O suave cacarejar de galinhas satisfeitas, escondidas em algum ponto no jardim, mas claramente audível. O farfalhar da brisa.

            Um mundo inteiramente novo. Tinham viajado apenas alguns quilômetros, mas para ela era como se estivesse a mil quilômetros do hotel, de seus amigos, dos coquetéis, da piscina apinhada, das movimentadas ruas e lojas da cidade, das luzes ofuscantes e das barulhentas discotecas. Mais longe ainda estavam Londres, Venus, seu apartamento, seu emprego -esmaecendo em irrealidade; sonhos esquecidos de uma vida que nunca fora real. Como um vaso que estivera por muito tempo vazio, ela se sentia transbordante de paz. Eu poderia ficar aqui. Uma vozinha, uma mão puxando sua manga. Este é um lugar onde eu poderia ficar.

            Ouviu-o as suas costas, descendo a escada de pedra, os saltos das sandálias frouxas batendo contra os degraus. Virando-se, viu-o emergir pela escura abertura da porta (ele era tão alto que, automaticamente, abaixou a cabeça). Trazia uma garrafa de vinho e dois copos. O sol estava a pino, a sombra dele era absolutamente negra. Pousou os dois copos e a garrafa, onde a refrigeração já se desfazia em gotas e, do bolso do jeans, tirou um charuto, que acendeu com um fósforo.

            Quando Cosmo terminou de acender o charuto, ela disse:

            - Eu não sabia que você fumava.

            - Somente estes. De vez em quando. Já fumei cinqüenta por dia, mas finalmente perdi o hábito. Hoje, no entanto, parece uma ocasião oportuna para a auto-indulgência. Já havia desarrolhado a garrafa e agora despejava vinho nos dois copos. Entregou um para Olivia. Estava geladíssimo.

            - A que vamos beber? - perguntou ele.

            - À sua casa, qualquer que seja o nome que ela tenha.

            - Ca'n D'alt.

            - Então, a Ca'n D'alt. E a seu dono.

            Beberam. Depois ele disse.

            - Eu a vi pela janela da cozinha. Você estava tão quieta! Perguntei-me no que estaria pensando.

            - Pensava apenas que... aqui... a realidade empalidece.

            - É uma boa coisa?

            - Penso que sim. Estou...

            Ela vacilou, procurando as palavras certas, pois, de repente, pareceu-lhe importantíssimo usar exatamente as palavras certas.

            - Não sou uma criatura domesticada - acrescentou Olívia por fim. - Estou com trinta e três anos, sou editora-chefe de uma revista chamada Venus. Levei muito tempo para chegar a este posto. Trabalho para sustentar-me e ser independente desde que deixei Oxford, mas não lhe conto isto querendo que sinta pena de mim. Jamais desejei outra coisa. Jamais desejei casar-me ou ter filhos. Nada desse tipo de permanência.

            - E...?

            - Acontece apenas que... este é o lugar onde pensei que poderia ficar. Não me sentiria encurralada nem enraizada aqui. Não sei explicar por quê. - Sorriu para ele. - Tampouco sei por quê.

            - Então, fique - disse ele.

            - Por hoje? Por esta noite?

            - Não. Apenas, fique.

            - Minha mãe sempre me disse para não aceitar um convite indeterminado e vago. Segundo ela, sempre deve haver uma data de chegada e uma data de partida.

            - E tinha inteira razão. Digamos que a data de chegada seja hoje e que você decidirá a data de partida.

            Ela o encarou, buscando motivos, implicações. Finalmente:

            - Está pedindo que eu venha morar com você?

            - Estou.

            - E quanto a meu emprego? É um bom emprego, Cosmo. Bem pago e com responsabilidades. Levei a vida inteira para chegar onde cheguei.

            - Neste caso, é hora de tirar algumas férias prolongadas. Aliás, nenhum homem e nenhuma mulher podem trabalhar eternamente.

            Férias prolongadas. Um ano. Doze meses poderiam ser considerados férias prolongadas. Mais do que isso equivalia a fugir.

            - Também tenho uma casa. E um carro.

            - Alugue os dois para sua melhor amiga.

            - E minha família?

            - Pode convidar os parentes; que fiquem aqui com você.

            Sua família, ali. Olivia imaginou Nancy, tostando-se à beira da piscina, enquanto George ficava dentro de casa, usando um chapéu, com medo de queimaduras do sol. Imaginou Noel, saindo para espreitar as praias onde se praticava topless e voltando para jantar com o produto do dia, talvez alguma loura jovenzinha, falando uma língua que ninguém conhecesse. Imaginou sua mãe... afinal, ela era diferente, de maneira alguma ridícula. Este era precisamente o ambiente de sua mãe; esta casa encantada e cheia de meandros, seu jardim enredado. O pomar de amendoeiras, o terraço banhado de sol, até mesmo os garnisés - em especial os garnisés - a encheriam de prazer. Ocorreu a Olivia que talvez, de algum modo obscuro, fosse este o motivo pelo qual, instantaneamente, simpatizara tanto com Ca'n D'alt, sentindo-se ali tão à vontade, como em casa.

            - Não sou a única com parentes - falou. - Você também tem compromissos a serem considerados.

            - Somente Antonia.

            - E não basta? Não vai querer perturbá-la.

            Ele coçou a nuca e, por um momento, pareceu um tanto embaraçado.

            - Talvez não seja precisamente este o momento para mencionar o fato, porém já houve outras damas.

            Olivia riu de seu constrangimento.

            - E Antonia não se importou?

            - Ela compreendeu. E uma filósofa. Fez amizade. E uma garota muito segura de si.

            O silêncio caiu entre eles. Cosmo parecia esperar sua resposta. Olivia baixou os olhos para seu copo de vinho.

            - É uma decisão importante, Cosmo - disse por fim.

            - Eu sei. Você precisa refletir. Que tal agora arranjarmos algo para comer e depois discutirmos o assunto?

            Assim fizeram. Tornaram a entrar na casa, ele disse que faria massa com molho de presunto e cogumelos. Obviamente, cozinhava bem melhor do que ela. Olivia voltou ao jardim. Encontrou o caminho para a área da horta, colheu um pé de alface e alguns tomates, descobrindo bem debaixo de uma touceira escura de folhas um bom número de abóboras ainda em crescimento. Levou as verduras para a cozinha e, diante da pia, preparou uma salada simples. Fizeram refeição na mesa da cozinha. Depois de comerem, Cosmo disse que era hora da sesta, os dois foram juntos para a cama e, desta vez, foi ainda melhor do que na anterior.

            Às quatro da tarde, quando o calor do dia amainou um pouco, foram para a piscina e nadaram nus, depois estirando-se para secar ao sol.

            Ele falou. Estava com cinqüenta e cinco anos. Fora convocado ao sair da escola e estivera no Serviço Ativo durante a maior parte da guerra. Tinha descoberto que apreciava a vida e, então, terminada a guerra, sem imaginar o que mais poderia fazer, inscreveu-se como oficial no Exército Regular. Quando estava com trinta anos, seu avô falecera, deixando-lhe algum dinheiro. Financeiramente independente pela primeira vez na vida, desligou-se do Exército e, sem laços ou responsabilidades de qualquer espécie, partiu para conhecer o mundo. Viajara até Ibiza, àquela época ainda sem fama e com a vida incrivelmente barata. Apaixonando-se pela ilha, decidiu que ali fincaria raízes, que não iria mais longe.

            - E quanto à sua esposa? - perguntou Olivia.

            - O que quer saber?

            - Quando é que ela apareceu?

            - Quando meu pai morreu, fui a casa para seu funeral. Fiquei por lá algum tempo, ajudando minha mãe a resolver sua vida. Eu estava com quarenta e um anos na época, não era mais nenhum rapazinho. Conheci Jane em uma festa, em Londres. Tinha mais ou menos a sua idade. Dirigia uma loja de flores. Eu me sentia solitário - sei lá por quê. Talvez tivesse alguma relação com a perda de meu pai. Jamais me sentira solitário antes, mas naquela época, por algum motivo, não queria voltar sozinho para cá. Ela era muito meiga, muito inclinada ao casamento, achou que Ibiza tinha um incrível toque de romance. Foi o meu maior erro. Devia tê-la trazido aqui primeiro, mais ou menos como levar a namorada para conhecer nossa família. Só que não fiz isso. Casamo-nos em Londres, e a primeira vez que ela pousou os olhos nesta propriedade, já foi como minha esposa.

            - Ela foi feliz aqui?

            - Durante certo tempo. Entretanto, sentia saudades de Londres, sentia falta das amigas, dos teatros e concertos no Albert Hall, de fazer compras, conhecer pessoas e sair nos fins de semana. Ficou entediada.

            - E quanto a Antonia?

            - Antonia nasceu aqui. Uma legítima nativazinha de Ibiza. Pensei que um bebê acalmaria a mãe um pouco, mas foi o contrário, apenas piorou a situação. Então, decidimos separar-nos, em termos bastante amigáveis. Não houve ressentimentos, mas tampouco havia grandes motivos para censuras. Ela levou Antonia e a manteve consigo até a menina fazer oito anos. Então, quando começou a freqüentar a escola regularmente, Antonia passou a vir para cá, no verão e nos feriados da Páscoa.

            - Não achou que isso era uma espécie de amarra?

            - Não. Ela não dava o menor trabalho. Há um excelente casal, Tomeu e Maria, donos de uma pequena propriedade no final da estradinha. Tomeu me ajuda na horta e Maria limpa a casa, além de ficar de olho em minha filha. São os melhores amigos do mundo. Como resultado disto, Antonia é bilíngüe.

            A temperatura agora começava a baixar. Sentando-se, Olívia pegou sua blusa, enfiou os braços nas mangas e abotoou-a. Cosmo também espreguiçou-se, anunciando que toda aquela conversa o deixara com sede e que precisava beber alguma coisa. Olivia comentou que apreciaria uma boa xícara de chá. Cosmo respondeu que ela não dava tal impressão, mas levantou-se e desapareceu no jardim, em direção à casa, a fim de colocar a chaleira no fogo. Olívia permaneceu junto da piscina, satisfeita em ficar sozinha, porque sabia que breve ele estaria de volta. A água da piscina estava imóvel. Na borda oposta havia a estátua de um menino tocando flauta, e sua imagem refletia -se na água, como em um espelho.

            Uma gaivota passou no alto. Olivia virou a cabeça para seguir-lhe a graciosa passagem, suas asas rosadas pela claridade do sol poente. Então, nesse momento, soube que ficaria com Cosmo. Daria a si mesma, como algum presente maravilhoso, um ano inteiro

           Dar uma guinada, descobriu Olívia, era mais traumatizante do que parecia. Havia muito a fazer. Em primeiro lugar, retomou ao hotel "Los Pinos", em companhia de Cosmo, onde recolheu seus pertences, pagou a conta e saiu. Fizeram tudo isto da maneira mais clandestina possível, temendo que alguém os surpreendesse. Em vez de procurar os amigos e explicar a situação, Olivia acovardou-se e deixou uma carta inadequada, na portaria do hotel.

            Em seguida, havia cabogramas a enviar, cartas a escrever e telefonemas para a Inglaterra, em linhas incoerentes e crepitantes. Feito tudo isto, ela imaginou que se sentiria eufórica e livre, mas na verdade tremia de pânico, estava morta de fadiga. Sentia-se mal. Não

contou a Cosmo, mas quando mais tarde ele a encontrou deitada no sofá, derramando lágrimas de exaustão que corriam incontroláveis, tudo ficou revelado.

            Cosmo se mostrou muito compreensivo. Colocou-a na cama de Antonia, no quartinho onde ela poderia ficar sozinha e quieta, deixando-a dormir lá por três noites e dois dias. Olivia só despertava para beber o leite quente que ele lhe levava, e comer uma fatia de pão com manteiga ou um pedaço de fruta.

            Na terceira manhã, ela acordou e soube que tudo havia passado. Sentia-se recuperada, revigorada, impregnada de maravilhosa sensação de bem-estar e vitalidade. Espreguiçou-se, saiu da cama e abriu as persianas para a manhã em começo, perolada e doce, ainda cheirando a terra orvalhada, e ouviu o cantar dos galos. Vestindo o robe, desceu para a cozinha. Ferveu uma chaleira de água e preparou um bule de chá. Com o bule e duas xícaras em uma bandeja, cruzou a cozinha e desceu o outro lance de escada para o quarto de Cosmo.

            As persianas ainda estavam fechadas no quarto escuro, porém ele já acordara. Ao vê-la surgir à porta, disse:

            - Bem, olá!

            - Bom-dia. Trouxe-lhe seu primeiro chá da manhã.

            Pousou a bandeja ao lado dele e foi abrir as persianas. Raios diagonais de sol encheram o aposento de luz. Cosmo estendeu o braço para consultar seu relógio.

            - Sete e meia. Você é um pássaro madrugador.

            - Vim dizer-lhe que estou melhor. - Ela se sentou na cama dele. - E também que lamento ter sido tão fraca, além de agradecer-lhe a compreensão e a gentileza.

            - Como irá agradecer-me? - perguntou ele.

            - Bem, eu tive uma idéia, mas talvez ainda seja cedo demais para isso.

            Cosmo sorriu e moveu o corpo para um lado, a fim de dar-lhe espaço.

            - Nunca é cedo demais - disse.

            Mais tarde, ele comentou:

            - Você se sai muito bem.

            Ela continuou na curva de seu braço, feliz.

            - Como você, Cosmo, já tive alguma experiência.

            - Conte-me, Srta. Keeling - pediu ele, a voz fazendo uma imitação ruim de Noel Coward. - Quando foi que perdeu a virgindade? Sei que nossos ouvintes adorariam saber.

            - Em meu primeiro ano na universidade.

            - Que universidade?

            - Isto é relevante?

            - Poderia ser.

            - "Lady Margaret Han".

            Ele a beijou.

            Eu a amo - disse, e sua voz não soava mais como Noel Coward.

            Os dias foram passando, sem nuvens, quentes, longos e ociosos, preenchidos apenas pelas ocupações mais rotineiras. Nadar. Dormir, ir até o jardim alimentar as garnisés ou colher os ovos, arrancar ao acaso punhados de ervas daninhas. Ela conheceu Tomeu e Maria, que não pareceram nem um pouco admirados por sua chegada e a cumprimentavam cada manhã com muitos sorrisos e apertos de mão. Olivia aprendeu um pouco da culinária espanhola e espiava Maria preparar suas compactas paellas. As roupas deixaram de ter importância. Ela passava os dias sem maquilagem, andando por ali de pés descalços, envergando velhos jeans ou de biquíni. Às vezes os dois seguiam até a aldeia com uma cesta e faziam compras, mas por tácito entendimento, não se aproximavam da cidade ou do litoral.

            Com tempo para avaliar sua vida, Olivia percebeu ser aquela a primeira vez em que não estava trabalhando, esforçando-se, lutando para abrir caminho na profissão escolhida. Desde a mais tenra idade, sua ambição havia sido a de ser, simplesmente, a melhor. A primeira da classe, a primeira classificada nas provas colegiais. Estudava para obter bolsas-de-estudo, revisava aulas até alta madrugada, tudo com a finalidade de alcançar notas capazes de lhe garantirem um lugar na universidade. Então, viera Oxford, com todo o processo começando novamente, um acúmulo gradual, tendo em vista os enervantes exames finais. Diplomando-se com as melhores notas em Inglês e História, seria razoável que dedicasse algum tempo ao lazer, porém sua força propulsora era demasiado potente; Olívia aterrava-se à idéia de perder o impulso, de perder oportunidades, de maneira que partiu diretamente para o trabalho. Isto fora onze anos antes e, desde então, jamais havia parado.

            Tudo terminado. Agora, não havia tempo para arrependimentos. De repente ficou mais sensata, percebendo que seu encontro com Cosmo e esta retirada de cena tinham acontecido no momento exato. Como uma pessoa com uma enfermidade psicossomática, havia descoberto a cura antes de diagnosticados os sintomas. Sentia-se profundamente grata. Seus cabelos cintilavam, os olhos escuros, de longos cílios, brilhavam de contentamento, e até os ossos do rosto pareciam perder os ângulos produzidos pelo estresse, tornando-se arredondados e suaves. Alta, esguia, bronzeada como uma castanha, olhava-se ao espelho e se via, pela primeira vez na vida, realmente bela.

            Certo dia, Olivia ficou sozinha. Cosmo tinha descido à cidade, a fim de recolher os jornais, a correspondência e dar uma espiada em seu barco. Sentada em uma poltrona do terraço, Olivia viu dois pequenos e desconhecidos pássaros cortejando-se, nos ramos de uma oliveira.

            Enquanto observava preguiçosamente suas cabriolas, experimentou uma curiosa sensação de vazio. Analisando o fato e refletindo sobre ele, descobriu que estava entediada. Não com Ca'n D'alt ou com Cosmo, mas entediada consigo mesma e sua mente destituída, nua e tão melancólica, como um aposento desocupado. Durante algum tempo, ficou considerando este novo conjunto de circunstâncias, e então se levantou da cadeira, entrando na casa para encontrar algo que pudesse ler.

            Quando Cosmo voltou, estava tão entretida no livro, que não o ouviu chegar, até assustando-se, ao vê-lo surgir subitamente a seu lado.

            - Estou morrendo de calor e de sede - dizia ele, mas então parou de repente e a fitou. - Não sabia que usava óculos, Olívia!

            Ela fechou o livro.

            - Só os uso para ler e trabalhar ou quando quero impressionar alguns homens turrões, durante almoços de negócios. Do contrário, prefiro as lentes de contato.

            - Eu nunca havia reparado.

            - Os óculos fazem diferença? Irão alterar nosso relacionamento?

            - De maneira alguma! Fazem você parecer muitíssimo inteligente.

            - Eu sou muitíssimo inteligente.

            - O que está lendo?

            - George Eliot. O moinho sobre o rio.

            - Não comece a identificar-se com a pobre Maggie Tulliver.

            - Jamais me identifiquei com alguém. Você tem uma biblioteca maravilhosa! Contém tudo que eu quero ler, reler ou que nunca tive tempo para ler. Provavelmente, passarei o ano inteiro com o nariz enfiado em um livro.

           - Tudo bem para mim, desde que você emerja de vez em quando, para satisfazer minhas ânsias carnais.

           - Farei isso.

          Inclinando-se, ele a beijou, com óculos e tudo, entrando depois na casa em busca de uma cerveja. Olivia terminou “O moinho sobre o no” depois passou para “O morro dos ventos uivantes” e, em seguida, Jane Austen. Leu “La recherche du temps perdu”. Sartre e, pela primeira vez na vida, “Guerra e paz”. Leu clássicos, biografias, novelas de autores cujos nomes jamais ouvira falar. Leu John Cheever e Joseph Conrad, alem de um surrado exemplar de “Os caçadores de tesouros”, este conduzindo-a diretamente aos anos vividos na casa da Rua Oakley, quando era criança. Como todos estes livros eram velhos e familiares amigos para Cosmo, eles podiam passar os serões entretidos em prolongadas discussões literárias, em geral com o acompanhamento de música de fundo: "New world" e "Enigma variatzons"; de Elgar, além de sinfonias ou óperas completas. Para não perder contato, The Times era enviado de Londres para ele, todas as semanas. Certa noite, após ler um artigo sobre os tesouros da Galeria Tate, Olivia lhe falou sobre Lawrence Stern.

           - Era meu avô, pai de minha mãe.

           Cosmo ficou agradavelmente impressionado.

           - Oh, mas isto é incrivelmente excitante! Por que nunca me contou antes?

            - Não sei. Não costumo falar sobre ele. Aliás, hoje em dia muita gente nunca ouviu falar dele. Ficou ultrapassado e foi esquecido.

            - Era um grande pintor. - Cosmo franziu a testa, perdido em cálculos. - Ora, mas ele nasceu... quando foi isso?.. Na década de sessenta, do século passado. Devia ser um homem muito idoso, quando você veio ao mundo.

            - Mais do que isso, já havia falecido. Morreu em mil novecentos e quarenta e seis, na cama, em sua casa de Porthkerris.

            - Você costumava ir à Cornualha, passar férias e coisas assim?

            - Não. A casa estava sempre ocupada por outras pessoas e, finalmente, minha mãe a vendeu. Foi forçada a vender, porque vivia permanentemente apertada por dinheiro, sendo este outro motivo por que nunca saíamos em férias.

            - Você se incomodava?

            - Nancy ficava terrivelmente afetada. Noel também teria sentido falta, mas sempre foi muito bom para cuidar de si mesmo. Fazia amizade com os garotos certos, conseguia arranjar convites para velejar e esquiar, além de juntar-se a grupos alegres, em vilas no sul da França.

            - E você? - perguntou Cosmo, em voz tema.

            - Não me importava. Eu não queria ir. Vivíamos em um casarão na Rua Oakley, com uma horta-jardim igualmente enorme nos fundos. Além disso, eu tinha todos os museus e bibliotecas bem ao alcance, era só ir lá. - Ela sorriu, recordando aqueles dias plenos e felizes. - A casa da Rua Oakley pertencia a minha mãe. No fim da guerra, Lawrence Stern deu-a para ela. Meu pai era um tipo de pessoa razoavelmente -ela buscou a palavra certa - insignificante. Um homem sem aspirações e recursos. Acho que meu avô sabia disto, daí sua ansiedade em tornar a filha independente, tendo pelo menos, um lar onde criar a família. Por outro lado, na época ele estava com oitenta anos e aleijado pela artrite. Sabia que nunca mais tomaria a morar lá.

            - Sua mãe ainda mora nessa casa?

            - Não. Ficou de manejo muito difícil e manutenção cara, de modo que, este ano, ela finalmente decidiu vendê-la e deixar Londres. Tinha sonhos de retomar a Porthkerris, mas minha irmã Nancy a dissuadiu disso e encontrou-lhe um chalé em uma aldeia chamada Temple Pudley, em Gloucestershire. Justiça seja feita a Nancy: a casa é absolutamente encantadora, e minha mãe se sente muito feliz lá. A única coisa horripilante é o nome - Podmore's Thatch.(*)

            - Ela franziu o nariz, desgostosa, e Cosmo riu. - Vamos, Cosmo, admita que é simplesmente ridículo!

            - Vocês poderiam rebatizá-la. Mon Repos. Meu Repouso. E a casa contém muitas pinturas belas de Lawrence Stern?

            - Não. Infelizmente, são apenas três. Eu gostaria que minha mãe possuísse mais algumas. Do jeito como anda o mercado, acho que alcançariam excelente valor, dentro de um ou dois anos.

            A conversa passou para outros artistas vitorianos, finalmente chegando a Augustus John. Cosmo foi buscar os dois volumes da biografia dele, que Olivia já lera, mas gostaria de reler. Discutiram o artista em profundidade, concordando que pela velha e turbulenta celebridade sentiam forte admiração, apesar das maneiras corrompidas de John, ambos considerando, entretanto, que sua irmã Gwen havia sido melhor artista.

            Depois disto, tomaram uma ducha, vestiram roupas razoavelmente respeitáveis e foram até a aldeia, ao bar do Pedro, onde se podia sentar sob as estrelas e tomar um drinque. Pouco depois, surgia ali um rapaz com uma guitarra, que se sentou em uma cadeira e, com a maior naturalidade, sem a menor cerimônia, começou a executar o segundo movimento do Concerto para guitarra, de Rodrigo, enchendo a noite cálida com aquela música plangente e magnífica, a própria essência da Espanha.

            Antonia deveria chegar em uma semana. Maria já iniciara a faxina da primavera no quarto dela, transferindo todos os móveis para o terraço, caiando as paredes, lavando cortinas, colchas e lençóis, e batendo tapetes, com fúria e uma flexível bengala.

            Essa intensa atividade deixou o aparecimento de Antonia cada vez mais próximo, enchendo Olivia de apreensão. Não era inteiramente egoísmo de sua parte, embora a perspectiva de dividir Cosmo com outra mulher, mesmo sendo esta a filha dele de treze anos, fosse algo desanimador, para dizer-se o mínimo. A verdadeira ansiedade estava dentro dela, porque temia falhar com Cosmo, dizer a coisa errada ou fazer algo pouco diplomático. Segundo ele, Antonia tanto tinha de encantadora como de simples, porém isto em nada contribuiu para tranquilizar Olivia. que jamais lidara com crianças. Noel nascera quando ela já estava quase com dez anos e, na época em que deixou de ser bebê. Olivia praticamente saíra de casa para o mundo. Depois houvera os filhos de Nancy, é claro, porém eram tão desgraciosos e mal-comportados. que ela fizera questão de ter o menor contato possível com os sobrinhos. Assim, o que lhe competia dizer? O que conversar? Como agiriam todos eles, uns com os outros?

 

(*) Thatch = telhado (de folhas, colmo. caniços etc.), tendo também o significado coloquial de cabeleira, bastos cabelos. Assim, o nome da casa poderia ser entendido como "Telhado do Podmore" ou "Cabeleira do Podmore". (N. da T.)

 

            Em certo fim de tarde, quando já tinham nadado e estavam estirados em espreguiçadeiras junto da piscina. ela se abriu com Cosmo.

            - Apenas não quero estragar as coisas para vocês dois. Evidentemente, sentem-se muito próximos um do outro e, sem dúvida, ela pensará que estou roubando a afeição do pai. Afinal de contas, Antonia só tem treze anos. É uma idade um tanto difícil, um certo ciúme seria a reação mais compreensível e natural.

            Ele suspirou.

            - Como convencê-la de que nada disso acontecerá?

            - Na maioria das vezes, três é um número inconveniente. Talvez ela prefira tê-lo só para si, não sendo eu perceptiva o bastante para sair do caminho. Admita, Cosmo, estou com um problema nas mãos.

            Considerando tais palavras, ele não respondeu em seguida. Finalmente, com um suspiro. declarou:

            - Parece não haver uma forma de convencê-la do contrário, de que seus temores são infundados. Assim sendo, pensemos em mais alguma coisa. O que acha de enquanto Antonia estiver conosco, convidarmos outra pessoa para ficar aqui? Faríamos uma espécie de festival doméstico. Isso a deixaria mais tranqüila?

            A sugestão colocava um toque inteiramente diverso na situação.

            - Sim, sim, deixaria. Você é formidável! Quem convidaremos?

            - Qualquer pessoa do seu agrado, desde que não seja nenhum homem jovem, atraente e viril.

            - Que tal minha mãe?

            - Acha que ela viria?

            - Na mesma hora!

            - Ela não estará esperando que ocupemos quartos separados, hein? Sou velho demais para percorrer corredores furtivamente. Acabaria caindo nas escadas.

            - Minha mãe não tem ilusões sobre ninguém, principalmente a meu respeito. - Ela se sentou, subitamente excitada. - Oh, Cosmo, você vai adorá-la! Mal posso esperar para que se conheçam!

            - Neste caso, não temos tempo a perder. - Levantando-se, ele estendeu a mão para os jeans. - Vamos, garota, mexa-se! Se pudermos ligar para sua mãe e combinar com Antonia, as duas poderão encontrar-se no aeroporto, em Heathrow, vindo para cá no mesmo vôo. Antonia sempre fica um pouco assustada sobre voar sozinha e, sem dúvida, sua mãe gostaria de ter companhia.

            - E aonde vamos agora? - perguntou Olivia, abotoando a blusa.

            - Vamos descer até a aldeia e usar o telefone no Pedro's. Tem o número de sua mãe, em Podmore's Thatch?

            Ele pronunciou o nome com prazer, fazendo-o soar mais constrangedor do que nunca. Depois consultou o relógio.

            - São mais ou menos seis e meia da tarde, na Inglaterra. Ela estará em casa? O que estará fazendo, às seis e meia?

            - Trabalhando no jardim. Ou preparando um jantar para dez pessoas. Ou então, servindo um drinque para alguém.

            - Mal posso esperar para tê-la aqui!

            O vôo de Londres, via Valência, era esperado para nove e quinze da noite. Maria, mal se contendo de ânsia por rever Antonia, prontificou-se a ir até a casa e cozinhar o jantar. Deixando-a lá, preparando o gigantesco festim, eles foram de carro para o aeroporto. Embora nenhum dos dois quisesse admitir, sentiam uma nervosa excitação e, por causa disto, chegaram cedo demais, tendo que matar tempo no saguão solitário por meia hora ou coisa assim, antes que uma funcionária anunciasse, em imperfeito espanhol, que o avião havia pousado. Depois houve mais espera, enquanto os passageiros desembarcavam, passavam pela Imigração e reclamavam suas bagagens. Finalmente, as portas se abriram e uma boa multidão surgiu para a liberdade. Turistas, de rostos pálidos e cansados da viagem; famílias de moradores locais, com fileiras de filhos; sinistros cavalheiros de óculos escuros, em ternos bem talhados; um padre e duas freiras e... finalmente, quando Olivia já começava a temer que elas houvessem perdido o avião, Penelope Keeling e Antonia Hamilton.

            Haviam encontrado um carrinho de bagagens para levar as malas das duas, porém este tinha rodas tortas e insistia em seguir o rumo errado. Por algum motivo, as recém-chegadas sufocavam-se em risadinhas, tão entretidas em falar, rir e manter o maldito carrinho na direção correta, que demoraram um pouco a avistar Cosmo e Olivia.

            Parte da nervosa apreensão de Olivia provinha do fato de sempre temer, após um período de separação de Penelope, que a mãe pudesse estar amuada. Não envelhecida, precisamente, mas talvez parecendo cansada ou diminuída, de alguma forma sutil e terrível. Entretanto, mal a avistou, a ansiedade desapareceu. Penelope parecia vital como nunca e maravilhosamente distinta. Alta e de costas retas, com os espessos cabelos grisalhos presos em um coque na nuca, os olhos escuros brilhando de alegria, nem mesmo os esforços para manter o carrinho-bagageiro na direção certa faziam-na perder a dignidade. Como sempre, estava carregada de sacolas e cestas, vestindo a velha pelerine azul de uso na Marinha, que comprara em segunda mão de uma viúva de marinheiro necessitada, no final da guerra, e que desde então costumava usar em todas as ocasiões, de casamentos a funerais. E Antonia... Olivia viu uma garota alta e esguia, parecendo ter mais do que seus treze anos. Tinha os cabelos compridos e lisos, castanho-avermelhados, usava jeans, uma camiseta de malha e um blusão vermelho de algodão. Não houve tempo para mais. Cosmo ergueu os braços, gritou o nome da filha, e foram vistos. Antonia abandonou Penelope e o carrinho, a fim de correr para eles, os cabelos esvoaçando, um par de nadadeiras de borracha em uma das mãos e uma sacola de lona na outra, abrindo caminho através da multidão de passageiros carregados de bagagens, para vir atirar-se nos braços do pai. Ele a ergueu no ar e a girou, as compridas e afuseladas pernas de Antonia rodando no ar. Depois a beijou sonoramente e tomou a depositá-la no chão.

            - Você cresceu! - exclamou, acusadoramente.

            - Eu sei, quase três centímetros!

            Ela se virou para Olivia. Tinha sardas no nariz e boca carnuda e doce, grande demais para o rosto em forma de coração, olhos cinza-esverdeados e franjados por longas e espessas pestanas, muito claras. Sua expressão era cheia de interesse, franca e sorridente.

            - Olá! Eu sou Olivia

            Antonia desligou-se dos braços do pai, enfiou as nadadeiras debaixo de um braço e estendeu a mão.

            - Como vai?

            Então, baixando os olhos para aquele rosto jovem e animado, Olivia soube que Cosmo tinha razão, que seus temores eram infundados. Encantada e desarmada pela educada graciosidade de Antonia, apertou-lhe a mão.

            - Fico contente por você estar aqui - respondeu.

            Então, com este começo seguramente encerrado, abandonou pai e filha para reclamar sua parente, ainda pacientemente tomando conta das bagagens. Com indescritível satisfação, Penelope abriu os braços amplamente, em um de seus típicos e expansivos gestos, e Olivia abrigou-se neles, tomada de felicidade. Foi abraçada com vigor, pressionou o rosto contra a face firme e fresca da mãe sentiu o cheiro de patchuli, há tanto e tanto tempo familiar.

            - Oh, minha queridinha! - exclamou Penelope. - Mal posso acreditar que estou aqui!

            Cosmo e Antonia juntaram-se a elas. Imediatamente, todos começaram a falar ao mesmo tempo.

            - Cosmo, esta é minha mãe, Penelope Keeling...

            - Conseguiram encontrar-se direitinho, em Heathrow?

            - Não houve a menor dificuldade; eu levava um jornal e tinha uma rosa presa nos dentes.

            - Papai, tivemos um vôo gozadíssimo. Alguém passou mal...

            - Esta é toda a bagagem de vocês?

            - Quanto tempo tiveram que esperar em Valência?

           - E a aeromoça derrubou um copo cheio de suco de laranja em cima de uma freira!

            Finalmente, Cosmo teve a situação sob controle, incumbiu-se do carrinho de bagagens e iniciou a caminhada para o terminal. Dali, passaram para a cálida penumbra do céu pontilhado de estrelas, impregnado com o cheiro de petróleo e o ciciar das cigarras. Conseguiram encaixar-se todos no Citroen, atravancados. Penélope na frente, Olivia e Antonia apertadas no banco traseiro. A bagagem foi empilhada em cima dos passageiros e, finalmente, começaram a rodar.

            - Como vão Maria e Tomeu? - quis saber Antonia. - E as garnisés? E, papai, sabe de uma coisa? Tirei as maiores notas em Francês! Oh, escute, abriram uma nova discoteca. E um rinque de patinação. Oh, nós temos que ir patinar, papai, será que podemos? E nestas férias, quero realmente aprender wind-surf...será que as aulas são caras demais?

            A estrada agora familiar começava a subir, afastando-se da cidade e penetrando a zona rural, onde as montanhas surgiam salpicadas pelas luzes das casas de fazenda esparsas e o ar estava carregado com o cheiro de pinheiro. Quando tomaram a estradinha que levava a Ca'n D'alt, Olivia viu que Maria acendera todas as luzes externas, as quais cintilavam em uma celebração, através dos galhos das amendoeiras. E quando Cosmo parou o carro, quando eles começavam a desembarcar, Maria e Tomeu estavam lá, aproximando-se deles em meio àquela profusão de luzes; Maria, atarracada e queimada de sol, com seu vestido negro e seu avental, Tomeu barbeado especialmente para a ocasião e envergando camisa limpa.

            - Hola, señor! - chamou Tomeu.

            Maria, entretanto, não pensava em mais nada além de sua querida criança.

            - Antonia!

            - Oh, Maria!

            Antonia já saltava do carro e corria estradinha abaixo, para os braços de Maria.

            - Antonia! Miniña! Como está usted?

            Tinha chegado em casa.

            O quarto de Penelope, que um dia fora estábulo de jumentos, dava diretamente para o terraço. Era tão pequeno, que tinha espaço apenas para a cama, uma cômoda com gavetas e uma fileira de cabides de madeira, pendendo da parede e funcionando como guarda-roupa. Entretanto, Maria lhe dera o mesmo tratamento vigoroso que ao quarto de Antonia, de maneira que o diminuto aposento exalava limpeza e alvura, cheirando a sabão e algodão recentemente passado a ferro. Olivia enchera um jarro azul e branco com rosas amarelas, que depositou na mesa de cabeceira junto à cama, ao lado de alguns livros cuidadosamente escolhidos. Dois degraus ladrilhados levavam a uma segunda porta; Olivia a abriu e explicou à mãe a localização do único banheiro da casa.

            - O encanamento é um tanto instável; depende do estado do poço, de maneira que se a descarga não funcionar da primeira vez, é só você insistir.

            - Estou achando tudo maravilhoso. Que casa encantadora! - Penelope tirou a pelerine, pendurou-a em um dos cabides e, voltando para junto da cama, abriu sua mala. - E que homem agradável parece ser Cosmo! Você está com ótima aparência. Nunca a vi tão bem!

            Olivia sentou-se na beira da cama e ficou olhando a mãe desfazer a mala.

            - Você foi um anjo, aceitando um convite de última hora. Simplesmente, achei que seria mais fácil conviver com Antonia, se você também estivesse aqui. Não que a tivesse convidado por este único motivo. Na verdade, mal pousei os olhos nesta casa, tive vontade de mostrá-la a você.

            - Bem sabe que adoro fazer coisas levada pelo impulso do momento. Liguei para Nancy, comuniquei que vinha, e ela ficou roxa de inveja. Também um pouco ressentida por não ter sido convidada, mas fingi não ter percebido. Quanto a Antonia, é um amor de menina! Nem um pouco acanhada, rindo e tagarelando o dia inteiro. Eu gostaria que os filhos de Nancy fossem metade tão amistosos e bem-educados. Só Deus sabe que pecado cometi, para ser presenteada com semelhante dupla de netos...

            - E Noel? Tem visto Noel ultimamente?

            - Não. Há meses que não ponho os olhos nele. Telefonei há dias, para certificar-me de que continuava vivo. Continua.

            - O que faz ele no momento?

            - Bem, mudou-se para um novo apartamento, nos arredores de King's Road. Quanto irá custar-lhe, nem ousei perguntar, mas isso é problema dele. Agora, está pensando em abandonar o mundo editorial e passar-se para o da publicidade - segundo ele, conseguiu alguns contatos excelentes. Ia passar o final da semana em Cowes. O mesmo de sempre...

            - E você? Como vão as coisas com você? Como está Podmore's Thatch?

            - A querida casinha... - disse Penelope, enternecida. – A estufa ficou pronta, finalmente, e nem sei dizer-lhe o quanto é bonita. Plantei um jasmineiro branco e uma videira. Também comprei uma cadeira de vime muito elegante.

           - Com o tempo, terá um novo mobiliário de jardim.

           - Oh, a magnólia floresceu pela primeira vez, e mandei aparar a glidinia. Os Atkinson estiveram lá um fim de semana, e fazia tanto calor que pudemos almoçar no jardim. Todos perguntaram por você e mandaram muitas lembranças. - Ela sorriu, tornando-se maternal, mostrando no rosto uma expressão de satisfeita afetuosidade. - Quando voltar para casa, poderei dizer a eles que nunca a vi tão bem. Desabrochando. Bonita.

           - Foi um choque muito grande para você, eu ficar com Cosmo, abandonar o emprego e agir como lunática, de um modo geral?

           - Talvez. Enfim, por que não fazer isso? Você trabalhou a vida inteira; às vezes, quando a via tão tensa e cansada, ficava preocupada por sua saúde.

           - Nunca me disse nada.

           - Olivia, sua vida e o que você faz não são da minha conta. Isto não significa, entretanto, que deixe de me preocupar com você.

           - Bem, você está certa. Fiquei doente. Depois que tomei a decisão, que cortei as amarras e virei a mesa, fiquei em pedaços. Dormi três dias seguidos. Cosmo foi um anjo. Então, tudo entrou nos eixos. Eu não havia percebido o quanto andava cansada. Acho que, se não tivesse feito isto, terminaria em algum asilo de loucos, vítima de uma crise de nervos.

           - Nem ouse pensar em tal coisa!

           Enquanto conversavam, Penelope ia de um lado para outro, guardando suas roupas nas gavetas da cômoda ou pendurando nos cabides os surrados e familiares vestidos que trouxera consigo. Era bem típico de Penelope nada haver de novo ou na moda, comprado especialmente para aquela oportunidade. No entanto, Olivia sabia que sua mãe emprestaria àquelas peças imemoriais sua própria marca de distinção. Não obstante, havia algo novo. Do fundo da mala, foi retirado um vestido de seda em vivo verde-esmeralda, que terminou revelando-se um cáftã bordado em ouro, rico e voluptuoso, como algo de As mil e uma noites.

Olivia mostrou-se apropriadamente impressionada.

           - De onde tirou essa coisa celestial?

           - Não é lindo? Acho que é marroquino. Comprei-o de Rase Pilkington. A mãe dela o trouxe para casa, quando fez alguma excursão eduardiana ao Marrocos, e ela o encontrou no fundo de uma velha arca.

           - Você ficará parecendo uma imperatriz, vestindo isso.

            - Oh, mas não é tudo! - Pendurado em um cabide, o cáftã se juntou a uma série de desbotados vestidos de algodão, e Penélope se voltou para sua espaçosa sacola de couro, começando a remexer em suas profundezas. - Lembra-se de que lhe escrevi, contando que a querida tia Ethel tinha morrido? Bem, ela me deixou um pequeno legado. Chegou faz uns dois dias, bem a tempo de trazê-lo para cá.

            - Tia Ethel deixou alguma coisa para você? Não pensei que ela tivesse algo para legar.

            - Nem eu. Enfim, bem típico dela, surpreendeu a todos nós, até o fim...

            De fato, tia Ethel sempre tinha sido surpreendente.

            Única irmã de Lawrence Stern e muito mais nova do que ele, havia decidido, no final da Primeira Guerra Mundial, que aos trinta e três anos de idade, e com a flor da juventude masculina da Inglaterra cruelmente ceifada pela carnificina nos campos de batalha franceses, não lhe restava alternativa senão aceitar o inevitável estado de solteira. Não se deprimindo por isto, dispusera-se a aproveitar sua solidão da melhor maneira humanamente possível. Vivera em uma casinha em Putney, muito antes de o lugar ficar em moda, onde, para equilibrar as finanças, aceitara um pensionista (ou amante? A família jamais tivera certeza) e dera lições de piano. Não era uma vida potencialmente excitante, porém tia Ethel a tornava excitante, vivendo cada dia em toda a sua plenitude, apesar de ser uma mulher pobre. Quando Olivia, Nancy e Noel eram crianças, uma visita da tia Ethel era sempre aguardada com ansiedade, não porque ela lhes trouxesse presentes, mas por ser divertida, de maneira alguma parecida com os adultos comuns. Ir à casa dela era a maior das delícias, porque nunca se sabia o que podia acontecer em seguida. Certa vez, enquanto se sentavam para saborear o assimétrico bolo que ela assara para o chá, o forro do quarto havia desabado. Em outra ocasião, haviam acendido uma fogueira em um recanto de seu pequeno jardim; o fogo passara para as grades de madeira, e a brigada contra incêndio teve que ser convocada, e chegou com todos os sinos tocando. Além disso, ela ensinara o cancã a eles, assim como canções vulgares de music-hall cujas letras de duplo sentido faziam Olivia sacudir-se com um riso culpado, embora Nancy sempre torcesse os lábios, fingindo nada entender.

            Conforme Olivia recordava, ela parecia um pequeno inseto espichado, de pés em tamanho infantil e cabelos tingidos de vermelho, tendo sempre um cigarro ao alcance da mão. Entretanto, apesar de sua aparência e estilo de vida vulgares (ou talvez por causa disso), seu circulo de amigos era legião, mal havendo uma cidadezinha no condado, em que tia Ethel não tivesse uma velha amiga, colega de escola, ou um antigo namorado. Grande parte de seu tempo era gasta visitando estas amizades -as quais viviam convidando-a para visitá-las e darem boas risadas -.mas em meio àquelas excursões pela Inglaterra provincial ela costumava ir a Londres, onde visitava exposições de arte e ia a concertos, o que para tia Ethel significava a vida; era também dedicada à sua copiosa correspondência, ao seu atual inquilino, aos seus alunos de piano e seu telefone. Estava sempre ligando para seu corretor - que devia ter sido um homem paciente - e, se suas escassas ações subiam um ponto no correr do dia, permitia-se duas doses de gim, em vez de uma, enquanto o sol batia no pátio. Ela chamava àquilo sua pequena bebedeira.

            Na casa dos setenta anos, quando o ritmo e os preços de Londres finalmente ficaram altos demais para ela, tia Ethel mudou-se para Bath, a fim de ficar perto de seus amigos mais queridos, Milly e Bobby Rodway. Então, Bobby Rodway falecera, em breve seguido por Milly, e tia Ethel ficara sozinha. Conseguiu seguir em frente por algum tempo, indestrutível e animada como sempre, porém a idade ia apoderando-se dela, e terminou tropeçando na garrafa de leite e quebrando o quadril, nos degraus da entrada. Após isso, a decadência acelerou-se e, eventualmente, ela ficou tão frágil e incapaz, que as autoridades a colocaram em uma clínica para idosos. Ali, embrulhada em um xale, desmemoriada e trêmula, era visitada regularmente por Penelope que, em seu antigo Volvo, deslocava-se de Londres até Bath e, mais recentemente, de Gloucestershire. Olivia acompanhara a mãe uma ou duas vezes em tais ocasiões, porém ficava tão triste e deprimida, que sempre tentava alguma desculpa para não ir.

            - A querida velhinha - dizia Penelope agora, enternecida,     - Sabe que estava quase com noventa e cinco? Tão idosa... oh, aqui está!

            Finalmente encontrou o que procurava e, da sacola, tirou um antigo e surrado estojo de couro para jóias. Pressionou o fecho, a tampa saltou, e no interior, sobre um fundo de veludo desbotado, havia um par de brincos.

            - Oh!

            O pequeno sinal de admiração foi totalmente involuntário, mas a visão dos brincos deixou Olivia deliciada. Eram lindos. Em ouro e esmalte, confeccionados em forma de cruz, com pendentes de rubi e pérolas, e um círculo de pérolas menores, unindo os braços da cruz ao fecho de ouro. Eram como bijuterias de outra era, com todo o intrincado esplendor da Renascença.

            - Estes brincos eram da tia Ethel? - foi tudo o que pôde dizer.

            - Admiráveis, não são?

            - Ora, mas onde foi que a velhinha os conseguiu?

            - Nem desconfio. Estiveram confinados no banco durante os últimos cinqüenta anos.

            - Parecem muito antigos. Antiguidades.

            - Não. Acho que são vitorianos. Talvez italianos.

            - Teriam sido da mãe dela?

            - É possível. Talvez ela os tenha ganho em algum jogo de cartas. Ou então os ganhou de algum admirador rico e apaixonado. Com tia Ethel, tudo tem que ser na base da suposição.

            - Já mandou avaliá-los?

            - Não houve tempo. Aliás, embora sejam bonitos, não creio que valham muito. De qualquer modo, são exatamente certos para o meu cáftã. Não acha que foram feitos um para o outro?

            - Sim, acho. - Olivia devolveu o estojo à mãe. - Enfim, quando voltar para casa, prometa que os mandará avaliar e os porá no seguro.

            - Está bem, acho que seria o mais acertado. Não dou muita importância a coisas assim -disse Penelope, tomando a guardar o estojo na sacola.

            Já terminara suas arrumações. Penelope fechou a mala vazia, enfiou-a debaixo da cama e se virou para o espelho pendurado na parede. Retirou os grampos de tartaruga do coque e soltou os cabelos, que lhe caíram pelas costas, estriados de grisalho, porém espessos e fortes como sempre. Jogando as madeixas por sobre um ombro, ela apanhou sua escova de cabelos. Com satisfação, Olivia apreciou o recordado ritual, o braço erguido de sua mãe e as fundas e extensas escovadelas nos fios.

            - E você, minha querida? Qual é o seu futuro?

            - Ficarei um ano aqui. Férias prolongadas.

            - Seu editor sabe que você pretende retomar?

            - Não.

            - Vai voltar para Vênus?

            - Talvez sim, talvez não.

            Penelope largou a escova, tomou o comprido volume de cabelos na mão, torceu, enrolou e o prendeu novamente no lugar, com os grampos.

            - Agora - disse - preciso ir e lavar-me. Depois, estarei pronta para qualquer coisa.

            - Não vá tropeçar nos degraus.

            Penelope começou a caminhar em direção ao banheiro. Olívia continuou onde estava, sentada na cama, tomada de gratidão pela calma e pratica aceitação de Penelope sobre aquela situação. Pensou em como seria ter outro tipo de mãe, ávida de curiosidade e impregnada de imagens românticas, unindo a filha a Cosmo. Imaginando-a em algum altar com um vestido branco, modelado para parecer bem, quando visto por trás. A própria idéia a fez rir e estremecer ao mesmo tempo.

            Quando Penelope voltou, ela se levantou.

            - E agora, que tal comer alguma coisa?

            - Estou com bastante fome. - Ela olhou para seu relógio. - Céus, são quase onze e meia!

            - Onze e meia não quer dizer nada. Você agora está na Espanha. Venha, vamos ver o que Maria preparou para nós.

            Juntas, as duas saíram para o terraço. Além das luzes, a escuridão era impenetrável e cálida como veludo azul. Olivia seguiu na frente, subindo os degraus de pedra para a cozinha. Lá encontraram Cosmo. Antonia. Maria e Tomeu sentados à mesa iluminada por velas, bebericando uma garrafa de vinho e falando todos ao mesmo tempo, em uma torrente de castanholado espanhol.

            - Ela é espetacular - disse Cosmo.

            Estavam novamente sozinhos, e era como voltar para casa. Tinham feito amor, e agora jaziam na escuridão, Olivia aninhada na curva do braço dele. Conversavam baixinho, não querendo perturbar o sono dos outros ocupantes da casa.

            - Mamma? Eu sabia que você gostaria dela.

            - Vejo agora de quem você herdou seus traços.

            - Ela é cem vezes melhor do que eu.

            - Precisamos exibi-la. Ninguém me perdoaria, se eu a deixasse retomar à Inglaterra sem que a conhecessem.

            - O que quer dizer com isso?

            - Vamos dar uma festa. O mais cedo possível. Iniciaremos a temporada social.

            Uma festa. Aquela era uma idéia inteiramente nova. Desde aquela primeira e detestável festa no barco, Olivia e Cosmo haviam passado o tempo todo juntos, sem falar com ninguém além de Maria, Tomeu e os poucos homens do lugar que freqüentavam o bar do Pedro.

            - E quem iremos convidar? - perguntou ela.

            Olivia mais sentiu do que ouviu o riso dele. O braço apertou-se em torno de seus ombros.

            - Surpresa, meu bem, surpresa! Tenho amigos na ilha inteira. Afinal, moro aqui há vinte e cinco anos. Pensou que eu fosse algum proscrito social?

            - Nunca pensei nada disso -respondeu ela, com sinceridade. - Não desejei mais ninguém, além de você.

            - E eu não desejei mais ninguém além de você. Afinal, achei que você precisava descansar um pouco das pessoas. Fiquei receoso, naqueles dias em que não fez outra coisa além de dormir. Então, decidi que seria melhor que tudo ficasse tranqüilo por algum tempo.

            - Entendo. - Ela nada percebera a respeito, aceitara a solidão dele como totalmente natural. Agora, perguntava-se por que não questionara aquele auto-imposto período de reclusão. - É outra coisa em que também não havia pensado - acrescentou.

            - Pois agora chegou o momento de pensar. O que acha da idéia de uma festa?

            Olivia descobriu que era uma boa idéia.

            - Excelente - respondeu.

            - Informal ou terrivelmente elegante?

            - Oh, terrivelmente elegante. Minha mãe trouxe seu vestido de festa.

            No dia seguinte, durante o desjejum, ele fez uma lista de nomes, tanto auxiliado, como impedido pela filha.

            - Oh, papai, você deve convidar Madame Sangé!

            - Não posso. Ela morreu.

            - Então, convide Antoine. Aposto como ele virá.

            - Pensei que você não gostasse daquele turbulento bode velho.

            - Não gosto muito, mas seria bom revê-lo. E os garotos Hardback são muito agradáveis; talvez me convidem para fazer wind-surf; e então não teríamos que pagar pelas aulas.

            A lista finalmente chegou ao fim e Cosmo partiu para o bar do Pedro, onde passaria a manhã telefonando. Os convidados que não recebessem telefonemas poderiam contar com convites escritos, que Tomeu entregaria dirigindo o Citroen de Cosmo, com certo perigo para si mesmo e quem mais ele encontrasse na estrada. As respostas choveram de volta, e a contagem final chegou a setenta. Olivia ficou impressionada, mas Cosmo manteve a modéstia. Disse a ela que sempre fora daqueles que não exibem o quanto valem.

            Foi chamado um eletricista, para colocar fios de lâmpadas coloridas à volta da área da piscina. Tomeu varreu e limpou, endireitou mesas cambaias, ajeitou almofadas e poltronas. Antonia foi incumbida de polir os copos, lavar porcelanas raramente usadas e depois procurar toalhas de mesa e guardanapos, esquecidos em alguma prateleira. Olivia e Cosmo, com uma lista do comprimento do braço dela, fizeram uma estafante viagem à cidade e voltaram carregados de mantimentos, azeite de oliva, amêndoas torradas, sacolas de cubos de gelo, laranjas, limões e caixotes de vinho. Enquanto isso, Maria e Penelope trabalharam na cozinha o tempo todo, entrando em acordo absoluto e sem uma só palavra de uma língua comum, preparando pernis, assando aves, cozinhando paellas, batendo ovos, condimentando molhos, fazendo massa e cortando tomates.

            Finalmente, tudo ficou pronto. Os convidados eram esperados às nove da noite e, às oito, Olivia foi tomar uma ducha e preparar-se. Encontrou Cosmo, barbeado e deliciosamente perfumado, sentado na cama e tentando colocar abotoaduras de ouro nos punhos de sua melhor camisa.

            - Maria colocou tanta goma nesta maldita coisa, que não consigo abrir as casas das abotoaduras.

            Olivia sentou-se ao lado dele, tomou-lhe a camisa e as abotoaduras. Cosmo ficou espiando.

            - O que vai usar? - perguntou ele.

            - Tenho dois lindos vestidos novos, que comprei para deslumbrar os hóspedes do hotel "Los Pinos", e que nunca foram usados. Não houve tempo. Você surgiu em minha vida e, desde então, vi-me forçada a andar por aí vestindo farrapos.

            - Qual dos dois usará?

            - Estão no armário. Pode escolher.

            Levantando-se, ele abriu a porta do armário, remexeu nos chocalhantes cabides e finalmente encontrou os vestidos. Um deles era curto, em vivo chiffon rosa, com camadas de saias semelhantes a nuvens. O outro era longo, azul-safira, sem cintura, fluindo de um fundo decote, com alças semelhantes a cordões de sapatos. Cosmo escolheu o azul, como Olivia imaginara. Ela o beijou, devolveu-lhe a camisa e foi para o chuveiro. Ao voltar do banheiro, ele já se fora.

           Vestiu-se lentamente, com imenso cuidado, maquilou o rosto, ajeitou os cabelos, colocou brincos, espargiu perfume. Por fim, afivelou as sandálias delicadas e então ergueu o vestido acima da cabeça. Ele deslizou sobre seu corpo; fresco e leve como a brisa. Quando Olivia se moveu. o tecido moveu-se com ela. Era como vestir um hálito de vento.

            Soou uma batida à porta.

            - Entre - disse ela.

            Era Antonia.

            - Olivia, você acha que está tudo bem?... - interrompendo-se, ela observou Olivia. - Oh! Você está linda! Que vestido maravilhoso!

            - Obrigada. Agora, vejamos você.

            - Minha mãe comprou para mim em Weybridge e parecia ótimo na loja, mas agora não tenho tanta certeza. Maria disse que não está no comprimento certo...

            Ela usava um conjunto à marinheira branco, de saia pregueada e gola quadrada, com galões azul-marinho. As pernas queimadas, em sandálias brancas, estavam nuas. Antonia entrançara duas madeixas finas dos cabelos arruivados e as atara atrás da cabeça, com uma fita azul-marinho.

            - Eu acho que está perfeito. Você parece fresca e crocante como... não sei o quê. Uma sacola de papel, novinha em folha.

            Antonia deu uma risadinha contida.

            - Papai disse que você deve ir. As pessoas já começaram a chegar.

            - Minha mãe está lá?

            - Foi para o terraço e está fantástica! Oh, vamos...

            Agarrou a mão de Olivia e a puxou pela porta. Assim, de mãos dadas, sob as luzes, elas desceram para o terraço. Olivia avistou Penelope, já enfronhada em uma conversa com um homem, e percebeu que tivera razão, pois, naquele cáftã de seda e com os brincos herdados, sua mãe de fato parecia uma imperatriz.

            Depois daquela noite, mudou inteiramente o padrão de suas vidas em Ca'n D'alt. Após semanas de solidão sem objetivo, agora parecia que nunca mais tinham um dia só para eles. A casa se enchia de convites para jantares, piqueniques, churrascos e passeios de barco. Carros chegavam e partiam, nunca parecia haver menos de doze pessoas à beira da piscina, muitas delas nivelando em idade com Antonia. Cosmo finalmente arranjou as aulas de wind-surf, de maneira que todos iam de carro até a praia dos treinamentos. Olivia e Penelope jaziam na areia, supostamente apreciando os esforços de Antonia para dominar o enlouquecedoramente difícil esporte mas, na realidade, ocupadas na atividade favorita de Penelope, que era observar as pessoas. Como as pessoas observadas, naquela praia em particular, estavam quase inteiramente despidas, fossem jovens ou velhas, os comentários dela eram hilariantes, de modo que as duas ficavam a maior parte do tempo em incontidas e sufocadas risadinhas.

            Às vezes, de quando em quando surgia a dádiva de um dia ocioso. Então, permaneciam na casa e no jardim. Com um velho chapéu de palha, seu recém-adquirido bronzeado e um surrado vestido de algodão, mais parecendo uma nativa da ilha, Penelope atacava com uma tesoura as enredadas roseiras de Cosmo. Eles nadavam constantemente, como exercício e refrigério. Quando as noites foram ficando mais frias, saíam em pequenas caminhadas pelo campo, atravessando milharais e passando ao lado de casinholas e pátios de fazenda, onde bebês de nádegas nuas brincavam felizes na terra, juntamente com cabras e galinhas, enquanto suas mães tiravam do varal a roupa lavada ou apanhavam água no poço.

            Quando finalmente chegou a data da partida de Penelope, ninguém queria que ela se fosse. A pedido de Olivia e de sua filha, Cosmo a convidou formalmente para ficar mais tempo, porém ela recusou, embora emocionada.

            - Após três dias, peixe e convidados começam a cheirar mal, e eu já fiquei um mês com vocês.

            - A senhora não é peixe nem convidado e não cheira mal nem um pouquinho - garantiu-lhe Antonia.

            - Você é muito gentil, mas preciso voltar para casa. Já fiquei ausente tempo demais. Meu jardim jamais me perdoará.

            - Mas voltará outras vezes, não é? - insistiu Antonia.

           Penelope não respondeu. Em meio ao silêncio, Cosmo ergueu os olhos para Olivia.

            - Oh, diga que vai voltar!

            Penelope sorriu e deu pancadinhas na mão da menina.

            - Talvez - respondeu. - Um dia...

            Foram todos ao aeroporto, vê-la partir. Mesmo depois de se despedirem, ainda ficaram por lá, esperando que o avião decolasse.

            Quando ele se foi, o som dos motores já desaparecendo, dissolvendo-se na imensidão do céu, não havia mais razão para ficarem lá e então voltaram para o carro, retomando a Ca'n D'alt em silêncio.

            - Não será a mesma coisa sem ela, não acham? - disse Antonia melancolicamente, quando desceram para o terraço.

            - Nada será - respondeu-lhe Olivia.

           Podmore's Thatch, Temple Sudbury,Glos.

           17 de agosto

           Meus caros Olivia e Cosmo,

           Como poderei agradecer a vocês por sua interminável gentileza e por me proporcionarem umas férias inesquecíveis? Nem um só dia passou sem que me sentisse bem-vinda e apreciada, tendo voltado para casa com tantas recordações, como um álbum recheado de fotos. Ca'n D'alt é um lugar realmente mágico, seus amigos são encantadores e hospitaleiros, enquanto a ilha - até mesmo ou, eu talvez devesse dizer, especialmente as praias de topless – é simplesmente fascinante. Sinto uma falta enorme de vocês, em particular de Antonia. Há muito tempo não passava momentos tão compensadores, com uma jovem tão encantadora. Eu poderia continuar com esta tagarelice para sempre, mas creio que vocês dois sabem o quanto me sinto grata. Lamento não ter escrito há mais tempo, porém não houve um momento disponível. O jardim está uma profusão de ervas daninhas, e os canteiros de rosas perderam todo o formato. Acho que deveria arranjar um jardineiro.

            Por falar em jardineiros, passei uns dois dias em Londres, quando vinha para casa, e fiquei com os Friedmarm. Fui a um concerto delicioso, no Festival Hall. Também levei os brincos para serem avaliados na Collingwood's, como você sugeriu que eu fizesse, e – não vai acreditar - o homem disse que valiam pelo menos 4.000 libras! Quando meu desmaio terminou, expliquei que os queria pôr no seguro, mas a quantia do prêmio mencionado era enorme. Assim, eu os levei para o banco tão logo cheguei em casa, e lá os deixei. Pobrezinhos, parecem condenados a passar a vida no banco! Eu poderia vendê-los, imagino, porém achei-os tão bonitos... Aliás, é bom saber que estão lá, como dinheiro disponível, caso eu resolva cometer alguma loucura de repente, como comprar um cortador de grama com motor. (Daí a referência a jardineiros.)

            Nancy, George e as crianças apareceram para almoçar domingo passado, ostensivamente para saber notícias de Ibiza, mas na realidade para me contar as iniqüidades dos Croftway e como eles foram convidados para um almoço formal com o Governador do Condado. Servi-lhes faisão e couve-flor fresca da horta, depois maçã em pedacinhos, guarnecida com frutas cristalizadas e conhaque, mas Melanie e Rupert reclamaram e discutiram, não fazendo o menor esforço para disfarçar seu tédio. Nancy não tem o menor controle sobre eles, e George parece não perceber as maneiras terríveis dos filhos. Fiquei tão irritada com Nancy que, para irritá-la também, falei nos brincos. Ela não mostrou grande interesse - nem uma só vez visitou a pobre tia Ethel - senão quando pronunciei as palavras mágicas - quatro mil libras. Isto a deixou sumamente atenta, como um sabujo farejando a caça. Sempre foi fácil saber-se o que ela pensa, de maneira que a vi já imaginando talvez o baile de debutantes para Melanie, com um ou dois parágrafos na página social da Harpers and

Queen. "Melanie Chamberlain, uma das mais lindas debutantes deste ano, usava vestido de renda branca e os famosos brincos de ouro e rubis, que pertenceram à sua avó”.Talvez eu me tenha enganado.

            Que cruel sou eu, mostrando-me desleal com minha filha, porém não posso deixar de partilhar a piadinha com você.

            Meus agradecimentos novamente. Inteiramente inadequados, porém não existem outras palavras para demonstrar gratidão.

           Recebam o meu amor, Penelope.

            Os meses passaram. O Natal chegou e se foi. Estavam agora em fevereiro. Houvera chuva e algumas tempestades, de maneira que passavam muito de seu tempo dentro de casa, com a lareira crepitando, mas de repente surgiu um sopro de primavera no ar, as amendoeiras desabrocharam e havia calor suficiente ao meio-dia, para se sentarem um pouco ao ar livre.

            Fevereiro. A esta altura, Olivia julgava conhecer tudo que era possível sobre Cosmo. No entanto, enganava-se. Certa tarde, subindo da horta com uma cesta de pequenos ovos das garnisés na mão, ouviu um carro aproximar-se e parar debaixo da oliveira. Ao subir os degraus para o terraço, viu um homem estranho vindo em sua direção. Devia ser um residente local, mas se vestia de maneira mais formal do que a costumeira - terno marrom, colarinho e gravata.

            Tinha um chapéu de palhinha na cabeça e carregava uma pasta para documentos.

            Ela sorriu, questionante, e ele tirou o chapéu.

            - Buenos días.

            - Buenos días.

            -Señor Hamilton?

            Cosmo estava dentro de casa, escrevendo cartas.

            - Pois não?

            O homem falou em inglês:

            - Eu gostaria de vê-lo. Diga -lhe que é Carlos Barcello. Ficarei esperando.

            Olivia foi à procura de Cosmo e o encontrou sentado diante da secretária, na sala de estar.

            - Você tem um visitante - anunciou ela. - Chama-se Carlos Barcello.

            - Carlos? Oh, céus, esqueci que ele vinha! - Largando a caneta, ele se levantou. - É melhor eu ir falar com ele. - Saiu da sala e subiu os degraus correndo. Ela o ouviu cumprimentar. - Hombre!

            Olivia levou os ovos para a cozinha e os colocou dentro de uma tigela de louça amarela, de um em um. Depois, cheia de curiosidade, foi até a janela e viu Cosmo ao lado do Sr. Barcello, quem quer que fosse ele, descendo em direção à piscina, em atenta conversa. Permaneceram lá algum tempo e retomaram ao terraço, onde ficaram inspecionando o poço. Depois disso, ela os ouviu entrando na casa, mas não pareceram ir além do quarto. Também ouviu a descarga sendo puxada. Perguntou-se se o Sr. Barcello seria um bombeiro-encanador.

            Os dois homens retomaram ao terraço. Lá, conversaram durante mais algum tempo, despediram-se, e ela ouviu o carro do Sr. Barcello ser ligado, afastando-se em seguida. Pouco depois, as pisadas de Cosmo soaram na escada. Ela o ouviu entrando na sala de estar, atirar uma tora ao fogo e, presumivelmente, sentar-se de novo para escrever suas cartas.

            Eram quase cinco da tarde. Olivia ferveu uma chaleira de água, preparou um bule de chá e o levou para ele.

            - Quem era o visitante? - perguntou, deixando a bandeja na mesa.

            Cosmo ainda escrevia.

            - Hum?

            - Quem era ele? O Sr. Barcello?

            Ele se virou na cadeira e sorriu para ela, meio divertido.

            - Por que está tão curiosa?

            - Bem, é claro que teria de estar. Nunca o vi antes por aqui e, por outro lado, está bem vestido demais para ser um encanador.

            - Quem disse que era um encanador?

            - Não é?

            - Santo Deus, não! - exclamou Cosmo. - Ele é meu senhorio.

            - Seu senhorio?

            - Isso mesmo, meu senhorio.

            No mesmo instante, ela se sentiu tiritando de frio. Cruzou os braços sobre o peito, olhando fixamente para Cosmo; queria que ele, de algum modo, lhe dissesse que entendera mal, que se enganara.

            - Está querendo dizer que esta casa não lhe pertence?

            - Exatamente.

            - Você morou nela vinte e cinco anos... e não é seu dono?

            - Eu já lhe disse. Não, não sou.

            A Olívia, aquilo pareceu quase obsceno. Aquela casa, tão intensamente usada, repleta de recordações partilhadas; o jardim tratado, a pequena piscina; a vista que se tinha dali. Não pertenciam a Cosmo. Nada daquilo jamais pertencera. Era tudo propriedade de Carlos Barcello.

            - Por que nunca a comprou?

            - Ele nunca quis vender.

            - E você não pensou em procurar outra?

            - Eu não queria outra casa. - Cosmo se ergueu lentamente da cadeira, como se escrever cartas o houvesse fatigado. Empurrou a cadeira para o lado e foi apanhar um charuto, na caixa sobre o aparador da lareira. De costas para ela, prosseguiu: - De qualquer modo, assim que Antonia entrou para a escola, era minha a responsabilidade de pagar as anuidades. Depois disso, não tive mais o suficiente para comprar coisa alguma.

            Em cima da lareira havia um recipiente com papel torcido, ele apanhou um e o encostou às chamas para acender o charuto.

            Não tive mais o suficiente para comprar coisa alguma. Eles jamais haviam falado em dinheiro. O assunto nunca surgira entre eles. Durante os meses em que haviam ficado juntos, sem questionar, Olivia tinha contribuído com alguma coisa para as despesas normais do dia-a-dia. Pagava uma sacola de mantimentos no mercado ou um tanque de gasolina. Às vezes, como naturalmente acontece, ele estava com pouco dinheiro. e então ela pagava a conta das bebidas em algum bar ou em uma das ocasionais saídas à noite. Afinal de contas, não estava desprovida de dinheiro e, só porque estava vivendo com Cosmo, isto não significava que esperasse ser sustentada por ele. Surgiram perguntas no fundo de sua mente, mas receou fazê-las, porque temia as respostas.

            Ficou olhando para ele em silêncio. Após acender o charuto. Cosmo jogou ao fogo o papel torcido e se virou para fitá-la, os ombros apoiados na lareira.

            - Você parece ter ficado muito chocada - falou.

            - E fiquei. Cosmo. Acho quase impossível acreditar. Isso vai contra o cerne de algo sobre o que tenho opiniões muito firmes. Ser dono da própria casa, sempre me pareceu a prioridade mais importante. Isto nos infunde segurança, em cada sentido da palavra. A casa da Rua Oakley pertencia a minha mãe e, por causa disso, quando crianças sempre nos sentimos seguros. Ninguém poderia tirá-la de nós. Uma das melhores sensações do mundo era voltar para casa, ficar lá dentro, fora da rua. Então, fechada a porta, sabíamos que estávamos em nosso lar.

            Ele não fez qualquer comentário a respeito. Perguntou apenas:

            - Você é proprietária da casa em que mora, em Londres?

            - Ainda não, mas serei, dentro de dois anos. Até lá, terei acabado de pagar à firma construtora.

            - Que mulher de negócios é você!

            - Ninguém precisa ser uma mulher de negócios para perceber o quanto é antieconômico pagar aluguel vinte e cinco anos e, no fim desse tempo, nada ter de seu.

            - Acha que sou um tolo.

            - Não, Cosmo! Não é o que acho. Suponho que posso entender como tudo isso aconteceu, porém, ainda assim, fico preocupada.

            - Por minha causa.

            - Sim, por sua causa. Estive pensando que fiquei com você todo este tempo, sem nunca me perguntar de que estamos vivendo.

            - Quer saber?

            - Não, a menos que você queira contar.

            - A renda provém de alguns investimentos que herdei de meu avô e da minha pensão do exército.

            - E isso é tudo?

            - Absolutamente tudo.

            - Então, se alguma coisa lhe acontecer, essa pensão do exército morre com você.

            - Naturalmente. - Cosmo sorriu para ela, tentando forçar um sorriso em seu rosto tenso e preocupado. - Bem, não vamos sepultar-me por enquanto. Afinal, estou apenas com cinqüenta e cinco anos.

            - Eu sei, mas e Antonia?

            - Não lhe posso deixar o que não tenho. Simplesmente, espero que quando chegar a minha hora, ela já tenha encontrado um marido rico.

            Os dois estavam discutindo, mas tranqüilamente. Quando ele se saiu com isto, no entanto, todos os instintos de Olivia fervilharam, e ela perdeu a calma.

            - Não diga uma coisa destas, Cosmo! Não fala dessa maneira fantasmagórica, arcaica e vitoriana, condenando Antonia à dependência de algum homem, pelo resto da vida! Ela precisa ter dinheiro próprio. Toda mulher precisa!

            - Não tinha percebido quanto o dinheiro é importante para você.

            - Não é importante para mim. Nunca foi. Importante, apenas, é que se tenha algum. Porque o dinheiro compra coisas agradáveis; não carros velozes, casacos de pele, cruzeiros ao Havaí ou coisas no gênero, mas coisas reais, adoráveis, como independência, liberdade e dignidade. E instrução. E tempo.

            - Foi por isso que trabalhou a vida inteira? Para poder dar uma rasteira no machista arrogante, no páter-famílias vitoriano?

            - Não está sendo justo! Falando assim, faz com que eu pareça a pior espécie de feminista liberada, uma grande e agressiva lésbica com idéias abomináveis!

            Ele não replicou a essa explosão, fazendo-a imediatamente sentir-se envergonhada, desejando não ter dito as iradas palavras. Jamais haviam discutido antes. A rápida irritação de Olivia morreu, dando lugar à razão. Respondeu à pergunta dele, em voz deliberadamente calma:

            - Sim, este é um dos motivos. Já lhe contei que meu pai foi apenas uma espécie de figura decorativa. Jamais me influenciou, em qualquer sentido. Entretanto, sempre estive determinada a imitar minha mãe, a ser forte, independente de todos. Além do mais, sinto uma necessidade criativa de escrever, e o tipo de jornalismo que é minha profissão preenche essa necessidade. Portanto, sou uma mulher de sorte. Faço o que gosto de fazer e sou paga para isso. Entretanto, não é tudo. Existe uma compulsão em alguma parte, uma força propulsora forte demais para que lute contra ela. Preciso do conflito de um trabalho exigente, que me force a tomar decisões, resolver situações. Preciso das pressões, do fluxo de adrenalina. É algo que me transtorna.

            - E isso a torna feliz?

            - Oh, Cosmo! Felicidade... Não existe um pássaro azul, um final de arco-íris! Imagino que a resposta seja que, se estou trabalhando, nunca sou inteiramente infeliz. E, se não estou trabalhando, nunca sou inteiramente feliz. Acha que faz sentido?

            - Quer dizer que não tem sido inteiramente feliz aqui?

            - Estes meses com você foram diferentes, algo que jamais me aconteceu antes. É como um sonho, roubado do tempo. E nunca deixarei de ser grata por você me ter dado algo que nenhuma pessoa poderá tomar. Uma temporada boa. Não uma boa temporada, mas uma boa temporada. Entretanto, não se pode sonhar eternamente. Tem-se que acordar um dia. Em breve estarei ficando inquieta, talvez irritável. Você quererá saber o que há de errado comigo - e eu também. Então, farei uma análise privada do problema e descobrirei que chegou a hora de voltar para Londres, recolher os fios da meada e prosseguir com minha vida.

            - Quando será isso?

            - No próximo mês, talvez. Em março.

            - Você disse um ano. Em março, serão apenas dez meses.

            - Eu sei, mas Antonia voltará novamente em abril. Acho que, a essa altura, eu já deveria ter ido embora.

            - Pensei que vocês gostassem da companhia uma da outra.

            - E gostamos. Por isso é que prefiro ir embora. Ela não deve esperar encontrar-me aqui, e tampouco devo tomar-me importante para ela. Além do mais, encontrarei um punhado de problemas à minha espera, sendo o menor deles arranjar um emprego.

            - Conseguirá seu antigo emprego de volta?

            - Se não conseguir, arranjarei um melhor.

            - Parece muito segura de si.

            - Tenho de ser.

            Ele suspirou fundo e então, com um gesto de impaciência, atirou na lareira o charuto fumado a meio.

            - Se lhe pedisse para casar comigo, você ficaria? - perguntou.

            Ela exclamou, em desespero:

            - Oh, Cosmo!...

            - Compreenda, acho difícil pensar em um futuro sem você.

            - Se me casasse com algum homem - respondeu ela – seria com você. Entretanto, no primeiro dia em que cheguei aqui, eu lhe disse. Jamais desejaria casar-me, ter filhos. Gosto das pessoas. Sou fascinada por gente, mas também preciso de minha privacidade. De ser eu mesma. Viver só.

            - Eu a amo - disse ele.

            Ela cruzou o pequeno espaço entre ambos, passou os braços à volta da cintura dele e repousou a cabeça em seu ombro. Através da suéter e da camisa, podia ouvir o coração de Cosmo batendo.

            - Preparei chá - falou. - Não o bebemos, e agora deve estar frio.

            - Eu sei. - Olivia sentiu a mão dele tocar-lhe o cabelo. Você voltará a Ibiza?

            - Acho que não.

            - Escreverá para mim? Ficaremos em contato?

            - Eu lhe mandarei cartões de Natal, com ilustrações de tordos.

            Ele colocou as mãos nos lados da cabeça dela e a fez erguer o rosto. A expressão de seus olhos pálidos era imensuravelmente triste.

            - Agora eu sei - disse para ela.

            - Sabe o quê?

            - Que vou perder você para sempre.

 

                                 NOEL

            Às quatro e meia da tarde daquela frígida, escura e molhada sexta-feira de março, enquanto Olivia ameaçava sua editora de ficção com a demissão e Nancy vagava estonteada pela casa Harrods, o irmão delas, Noel, limpava sua mesa de trabalho nos futuristas escritórios de Wenborn e Weinburg, Agentes Publicitários, e voltava para casa.

            O escritório só fechava às cinco e meia, porém ele trabalhava lá já fazia cinco anos, e supunha que uma ocasional saída mais cedo estava entre seus direitos. Os colegas, acostumados à sua maneira de ser, apenas ergueram uma sobrancelha. Se ele encontrasse por acaso um dos sócios mais antigos, em sua caminhada até o elevador já teria uma justificativa pronta: sentia-se mal, talvez houvesse pegado uma gripe, e ia para a cama.

            Noel não encontrou nenhum dos sócios antigos e tampouco pretendia enfiar-se na cama: sua idéia era ir de carro até Wiltshire onde passaria o fim de semana com algumas pessoas de sobrenome Early, que ainda não conhecia. Camilla Early era antiga colega de estudos de Amabel, e Amabel era a atual namorada de Noel.

            - Eles vão dar uma festa em casa para a point-to-point (*) local, no sábado - anunciara Amabel. - Talvez fosse uma boa pedida.

            - A casa tem aquecimento central? - perguntou ele, cauteloso. Àquela época do ano, Noel não tinha a menor intenção de ficar, nem uma hora que fosse, tiritando diante do fogo inadequado de uma lareira.

            - Oh, é claro que temi. Aliás, eles nadam em dinheiro. Costumavam mandar apanhar Camilla na escola em um enorme Bentley.

            A perspectiva parecia agradável. Aquele seria o tipo do lugar onde se pode conhecer pessoas proveitosas. Enquanto descia no elevador, Noel afastou da mente os problemas do dia e começou a divagar. Se Amabel chegasse a tempo, poderiam sair de Londres antes do trânsito de êxodo das noites de sexta-feira. Esperava que ela trouxesse seu carro, no qual fariam a viagem. Seu Jaguar vinha produzindo estranhos sons de pancadas e, indo no carro dela, sempre haveria a possibilidade de que ele não tivesse de pagar a gasolina.

            Fora do escritório, a Knightsbridge ensopava-se de chuva e estava congestionada de trânsito. Em geral, Noel costumava voltar para Chelsea de ônibus ou, no verão, caminhando pela Rua Sloane. Agora, no entanto, agoniado pelo frio, amaldiçoou a despesa e fez sinal para um táxi. Na metade de King's Road, mandou o motorista parar, saltou do táxi, pagou a corrida e internou-se em sua própria rua, de onde seguiria a pé pelo pequeno trajeto até Vernon Mansions.

            Seu carro estava parado junto ao meio-fio - um Jaguar modelo E, maravilhosamente potente, porém com dez anos de uso. Noel o comprara de um sujeito que se arruinara, achando que fizera um negócio da China, mas só até levá-lo para casa e descobrir a profusão de ferrugem na parte inferior do chassis, os freios em péssimo estado e o fato de que o motor absorvia tanta gasolina quanto um homem sedento bebia cerveja. E agora, começara aquele ruído chocalhante. Parou para olhar os pneus e chutou um deles. Arriado. Se, por algum infeliz acaso, fosse obrigado a usar o carro esta noite, teria que parar em alguma garagem, para calibrar o pneu. Afastou-se do carro, cruzou a calçada e depois a porta principal do prédio. O interior cheirava a mofo e confinamento. Havia um pequeno elevador mas, como morava no primeiro andar, ele subiu a escada. Eram acarpetadas, bem como o pequeno corredor até sua porta. Abriu-a e, quando tornou a fechá-la, estava em casa. Seu lar.

 

(*) Corrida de homens a cavalo. através do campo e de um ponto a outro, estes reconhecidos apenas por determinados pontos de referência. (N. da T.)

 

            Em verdade, era uma pilhéria.

            Os apartamentos haviam sido construí dos como pieds-à-terre para homens de negócios, esgotados pela pura exaustão da viagem diária de trem até as profundezas de Surrey, Sussex ou Buckinghamshire. Cada um deles apresentava um diminuto vestíbulo, com um armário embutido onde, presumia-se, o morador manteria todas as roupas usadas no trabalho. Em seguida, havia um banheiro minúsculo, uma cozinha do tamanho de sua similar em um iate de pequeno porte e uma saleta de estar. Ali, portas duplas com venezianas se dobravam para trás, revelando uma espécie de canil, inteiramente tomado por uma cama de casal. Além de ser impossível arrumar a cama, na época do verão aquele recanto ficava hediondamente quente, a ponto de Noel geralmente terminar dormindo no sofá.

            A decoração e o mobiliário faziam parte do apartamento, estando incluídos no aluguel gigantescamente inflacionado. Tudo era em bege ou castanho e incrivelmente tedioso. A janela da sala de estar dava para a uniforme parede atijolada de um supermercado construído pouco antes, um beco estreito e uma fileira de garagens fechadas à noite. A luz do sol jamais penetrava ali. As paredes, que um dia tinham sido cremes, haviam escurecido para um tom de margarina.

            Entretanto, era um bom endereço. Para Noel, isso era mais importante do que tudo. Fazia parte de sua imagem, como o carro exibicionista, as camisas Harvey e Hudson, os sapatos Gucci. Todos estes detalhes eram de suma importância, porque em sua juventude, devido a circunstâncias familiares e pressões financeiras, ele não fora enviado para uma escola pública, mas educado em um externato em Londres, ficando desta maneira privado das amizades fáceis e conexões úteis, feitas por quem cursava Eton, Harrow ou Wellington. Este era um ressentimento que, mesmo à idade de quase trinta anos, continuava a amargurá-lo.

            Deixar a escola e encontrar emprego não tinha sido um problema. Já havia um posto à sua espera na firma da família de seu pai, Keeling & Philips, uma companhia editora tradicional e há muito estabelecida, localizada em St. James. Noel trabalhara lá durante cinco anos, antes de passar para o infinitamente mais interessante e lucrativo campo da publicidade. Entretanto sua vida social era uma questão inteiramente diversa e, aqui, era lançado aos seus próprios recursos. Por sorte, tais recursos eram legião. Noel era alto, atraente, perito em jogos e, ainda menino, aprendera a cultivar maneiras sinceras e abertas, rapidamente desarmantes. Ele sabia ser encantador com senhoras idosas, discretamente respeitoso com senhores idosos e, com a paciência e sagacidade de um bem-treinado espião, infiltrar-se com pequena dificuldade nos altos escalões da sociedade londrina. Durante anos, constara da lista de rapazes condizentes, elaboradas pelas patrocinadoras de bailes de debutantes. Por toda a temporada social, ele mal tinha tempo para dormir, voltando de algum baile ao alvorecer de um dia de verão, despindo o fraque e a camisa engomada, tomando uma ducha e indo trabalhar. Os fins de semana o viam em Henley, Cowes ou Ascot. Era convidado para esquiar em Davos, pescar em Sutherland e, de vez em quando, seu rosto simpático aparecia nas páginas acetinadas de Harpers and Queen. "gracejando com sua anfitriã".

            Em tal sentido, isto era uma façanha. Contudo, de repente, não bastava mais. Ele estava farto. Parecia não chegar a lugar algum. Noel desejava mais.

            O apartamento fechava-se em torno dele, vigiando-o como um parente desvalido, à espera de que ele tomasse alguma iniciativa. Noel correu as cortinas, ligou o abajur, e as coisas pareceram marginalmente melhores. Tirou The Times do bolso do paletó e o jogou em cima da mesa. Depois despiu o paletó e o deixou cair atravessado em uma poltrona. Foi para a cozinha, serviu uma dose generosa de uísque e encheu o copo com gelo. Retomando à sala, sentou-se no sofá e abriu o Jornal.

            Examinou primeiro os preços no mercado de ações e viu que as da Consolidated Cables tinham subido um ponto. Em seguida, passou à página das corridas. Scarlet Flower chegara em quarto, isto significando que lançara cinqüenta pratas no lixo: Leu a crítica de uma nova peça e depois o noticiário sobre leilões. Viu que um Millais alcançara, na casa Christie's, quase oitocentas mil libras. Oitocentas mil libras! As próprias palavras o deixavam quase fisicamente doente de inveja e frustração. Largou o jornal, tomou um gole do uísque e pensou na tela “As aguadeiras”, de Lawrence Stern, que seria leiloada na Boothby's, na semana seguinte. Como sua irmã Nancy, ele nunca tivera grande conceito pela obra do avô mas, ao contrário dela, não lhe passara despercebido o extraordinário ressurgimento de interesse no mundo da arte, em relação àqueles pintores vitorianos. Durante os últimos anos, vira os preços nas salas de leilões subindo lentamente, até atingirem as somas incríveis de agora, uma fortuna que, a ele, parecia de todo desproporcional.

            No apogeu do mercado, e nada tinha para vender! Neto de Lawrence Stern mas, ainda assim, sem nada possuir. Nenhum deles possuía. Na casa da Rua Oakley, havia apenas os três Stern, mas sua mãe os levara para Gloucestershire, onde enfeiavam as salas de teto baixo de Podmore's Thatch.

            Quanto valeriam? Quinhentas, seiscentas mil? Talvez, contrariando as probabilidades, devesse envidar algum esforço para induzi-la à venda. Se conseguisse convencer a mãe, os lucros teriam que ser divididos, é claro. Nancy, evidentemente, insistiria em sua parte, mas mesmo assim sobraria ainda uma boa fatia para ele. Sua imaginação aventurou-se à frente com cautela, cheia de brilhantes esquemas. Daria um pontapé em seu emprego de nove-às-cinco em Wenborn & Weinburg e se instalaria por conta própria. Não no ramo publicitário, mas em corretagem de ações, no jogo em alta escala.

            Precisaria apenas de um endereço de prestígio no West End, um telefone, um computador e um bocado de sangue-frio. Isso ele tinha bastante. Exploraria especuladores, adularia os grandes investidores, penetraria o time dos grandes. Sentiu um despertar de excitação quase sexual. Sim, bem poderia acontecer. Faltava-lhe apenas o capital para colocar as coisas em movimento.

            “Os catadores de conchas”. Talvez devesse fazer uma visita à mãe, no próximo fim de semana. Há meses que não a via, mas ultimamente ela não ia bem de saúde - em tons lúgubres, Nancy lhe comunicara o fato por telefone -, e isto seria uma boa justificativa para o seu aparecimento em Podmore's Thatch, quando então poderia dirigir a conversa, delicadamente, para o tema dos quadros. Se ela começasse a apresentar escusas ou objeções, como o Tributo sobre Ganhos de Capital, ele mencionaria seu amigo Edwin Mundy, um negociante de antiguidades e perito em objetos penhorados na Europa, que enviava dinheiro vivo para bancos suíços, onde estaria a salvo das goelas insaciáveis do Imposto de Rendas Internas. Havia sido Edwin quem primeiro o alertara sobre os enormes preços que vinham sendo pagos em Nova York e Londres pelas antigas obras alegóricas, tão em moda na virada do século. Certa vez, até sugerira que Noel entrasse em sociedade com ele. Entretanto, após refletir um pouco. Noel desistira da oferta. Sabia que Edwin brincava perigosamente com a lei, e ele não tinha a menor intenção de ficar nem um dia na cadeia.

            Tudo era quase insuperavelmente difícil. Respirou fundo. terminou seu uísque e olhou para o relógio. Cinco e quinze. Amabel viria buscá-lo às cinco e meia. Erguendo-se do sofá. apanhou sua mala no armário do vestíbulo e rapidamente a arrumou para o fim de semana. Era perito nisto - tendo tantos anos de prática -, de modo que a tarefa não levou mais de cinco minutos. Em seguida despindo-se entrou no banheiro para uma ducha e para se barbear. A água estava fervendo, o que era uma das boas coisas do viver naquela penumbrosa toca de coelhos e, após a ducha, aquecido e perfumado, sentiu-se melhor. Vestiu roupas limpas e informais - camisa de algodão, suéter de cashmere, paletó de tweed colocou a sacola para roupa usada dentro da mala, fechou o zíper e embolou as roupas que estivera vestindo em um canto da cozinha, a fim de que sua diarista as encontrasse e, esperava ele, as lavasse.

            Às vezes, ela ignorava sua roupa suja. Às vezes nem mesmo aparecia. Com profunda saudade, ele recordou o antigo modo de vida. Antes de sua mãe, sem pensar em mais ninguém senão nela própria decidir vender a casa da rua Oakley. Lá, ele tivera o melhor de tudo. A independência de um molho de chaves e seus próprios aposentos no alto da casa. Juntamente com as intermináveis vantagens de morar com a mãe. Água quente o tempo todo, lareiras acesas, comida na despensa, bebida na adega,um grande jardim para a época do verão, o pub no outro lado da rua, o rio na soleira de sua porta, roupa lavada, cama arrumada, camisas passadas e, por tudo isto, não se esperava que pagasse mais do que o preço de um rolo de papel sanitário. Acrescentava-se o fato de a mãe ser tão independente quanto o filho e, se não era surda a degraus rangendo e leves pisadas femininas passando diante da porta de seu quarto, então fingia sê-lo e jamais fizera um só comentário. Noel imaginara que tal idílico sistema de vida seria permanente, que, se mudanças fossem feitas, ele é que as faria. No entanto, quando ela comunicou sua intenção de vender a casa e mudar-se para o campo, foi como se puxassem o tapete de sob seus pés.

            - E quanto a mim? Diabo, o que irei fazer?

            - Noel, meu querido, você agora está com vinte e três anos e morou nesta casa a vida inteira. Talvez já seja hora de abandonar o ninho. Tenho certeza de que se sairá bem.

            Sair-se bem! Ter que pagar aluguel, comprar comida, comprar uísque, gastar dinheiro em coisas horríveis, como saponáceo para limpar o banheiro e contas de lavanderia. Apegara-se à casa da Rua Oakley até o último momento, ainda esperançoso de que ela mudasse de idéia. De fato, só se mudou de lá, quando chegou o caminhão da transportadora que levaria os bens de Penelope para Gloucestershire. Por fim, a maioria dos pertences dele seguiu também no caminhão, pois no minúsculo apartamento que arranjara não havia espaço para tudo o que acumulara a vida inteira. No momento, esses pertences estavam empilhados no pequeno e entulhado aposento em Podemore's Thatch, eufemisticamente conhecido como o quarto de Noel.

            Ele ia lá o menos possível, ressentido não apenas com o extraordinário comportamento da mãe, mas porque o irritava vê-la tão satisfeita, instalada no campo -e sem a sua presença. Achava que, pelo menos, ela devia ter a decência de aparentar alguma nostalgia pelos bons e velhos tempos em que moravam juntos, porém Penelope parecia não sentir sua falta.

            Noel achava difícil entender isso, porque sentia uma enorme falta de sua mãe.

            Tais pungentes devaneios foram interrompidos pela chegada de Amabel, atrasada apenas quinze minutos. A campainha soou e, quando ele foi abrir a porta, viu-a parada no lado de fora e trazendo sua bagagem, duas volumosas e recheadas sacolas, de uma das quais brotava um par de botas de cano alto, em tom verde-sujo.

            - Oi!

            - Você está atrasada - disse ele.

            - Eu sei. Mil perdões.

            Ela entrou, deixou as sacolas no chão, ele fechou a porta e a beijou.

            - Por que demorou?

            - Foi difícil encontrar um táxi, e o trânsito está um inferno.

            Um táxi. O coração dele apertou-se.

            - Não veio em seu carro?

            - Um pneu furou. Além de não ter um estepe, não sei como trocar pneus.

            Já era de esperar. Em questões práticas, ela era inteiramente inútil e talvez uma das mulheres mais desorganizadas que ele já conhecera. Tinha vinte anos, era miúda como uma criança, de ossatura pequena, e magra ao ponto de emaciação. A pele era tão pálida, que quase chegava a transparente, os olhos cor de uva verde eram grandes, de cílios espessos, os cabelos compridos, finos e lisos, usados soltos e, em geral, caídos sobre o rosto. Naquele anoitecer frio e chuvoso, usava roupas de incrível impropriedade. Jeans apertados, uma camiseta de malha e um curto blusão de brim. Os sapatos eram frágeis, os tornozelos estavam nus. Em tudo e por tudo, Amabel parecia uma anoréxica de Bermondsey mas, na realidade, era a ilustre Amabel Remington-Luard, filha de Lorde Stockwood, dono de vastas propriedades em Leicestershire. Isto é que atraíra Noel, antes de mais nada, acrescido do fato de que, por alguma obscura razão, ele achava sua aparência de desamparada imensamente sexy.

            Bem, agora teriam que rodar até Wiltshire no Jaguar. Contendo a irritação, ele disse:

            - Muito bem, é melhor irmos andando. Teremos que parar em alguma garagem para calibrar os pneus e também encher o tanque.

            - Poxa, eu sinto muito...

            - Você sabe o caminho?

            - Para onde? Para a garagem?

            - Não. Para onde vamos, em Wiltshire!

            - Oh, é claro que sei!

            - Como se chama a casa?

            - Charbourne. Já estive lá não sei quantas vezes.

            Noel ficou olhando para ela, depois para sua "bagagem".

            - Estas são todas as roupas que trouxe?

            - Também trouxe minhas botas de cano alto.

            - Ainda estamos no inverno, Amabel, e pretendemos ir a um point-to-point amanhã! Não tem um casaco?

            - Não. Deixei-o no campo, no fim de semana passado. – Ela encolheu os ombros ossudos. - Bem, posso arranjar qualquer coisa emprestada. Camilla tem montanhas de roupas adequadas.

            - Não é esta a questão. Primeiro temos que chegar lá, e o aquecimento do Jaguar nem sempre funciona direito. Meu último desejo seria ver você apanhando uma pneumonia.

            - Sinto muito.

            Ela não parecia particularmente pesarosa. Novamente contendo a irritação, Noel se virou e abriu as portas deslizantes do armário embutido, tateou no interior congestionado e finalmente encontrou o que procurava: um sobretudo para homem, de incrível antigüidade; grosso tweed escuro, com uma desbotada gola de veludo e o interior forrado em ralo pêlo de coelho.

            - Vamos, tome isto - disse. - Eu lhe empresto.

            - Poxa!

            Ela pareceu desmesuradamente encantada. Noel sabia que não era por seus cuidados, mas pela esmaecida magnificência daquela peça imemorial. Amabel adorava roupas velhas e gastava grande parte de seu tempo e dinheiro explorando as bancas de Petticoat Lane, para comprar frouxos vestidos de noite dos anos 3O ou bolsas feitas de contas. Agora, tomava dele a velha e dignificada ruína, que outrora fora um sobretudo, e a vestiu. Quase desapareceu de vista mas, pelo menos, a bainha não arrastava no chão.

            - Oh, que casaco maravilhoso! Poxa, onde foi que o conseguiu?

            - Era de meu avô. Eu o roubei do armário de minha mãe quando ela vendeu sua casa de Londres.

            - Eu poderia ficar com ele para mim, não?

            - Não poderia. Entretanto, poderá usá-lo neste fim de semana. Os participantes da corrida talvez queiram saber que fenômeno surgiu entre eles, mas isto lhes dará assunto para conversas.

            Ela apertou o agasalho contra si e riu, não tanto pela ligeira piada de Noel, mas por puro prazer animal de estar usando um casaco forrado de peles. Assemelhava-se tanto a uma criança faminta e marota, que ele sentiu um súbito desejo físico por ela. Em outras circunstâncias, ali mesmo a levaria direto para a cama, porém agora não havia tempo. Isso ficaria para mais tarde.

            A viagem para Wiltshire não foi pior do que ele esperava. A chuva continuou insistente, e o trânsito deixando Londres enchia três faixas, avançando a passo de tartaruga. Por fim, chegaram à auto-estrada e puderam seguir em velocidade maior. Obsequiosamente, o som castanholante do motor não se fez evidente, e o aquecimento funcionou, embora muito fraco.

            Os dois conversaram por algum tempo, e então Amabel se calou. Noel imaginou-a adormecida, como costumava acontecer em tais ocasiões, porém reparou que o assento ao seu lado rangia e se movia, indicando que ela continuava acordada.

            - O que há? - perguntou.

            - Sinto alguma coisa estalando - disse ela.

            - Estalando?

            Noel alarmou-se, imaginou que o Jaguar estivesse prestes a se incendiar, diminuindo até a velocidade.

            - Isso mesmo, estalando. Como um pedaço de papel, sabe?

            - Onde?

            - Dentro do casaco. - Ela se remexeu novamente. - O bolso está furado. Acho que alguma coisa escorregou para o forro.

            Mais aliviado, Noel tornou a acelerar para cento e trinta.

            - Pensei que estaríamos às voltas com uma explosão - comentou.

            - Uma vez encontrei uma meia coroa antiga, no forro de um casaco de minha mãe. Talvez isto aqui seja uma nota de cinco libras.

            - O mais provável é que seja uma carta antiga ou um pedaço de papel de chocolate. Veremos o que é, quando chegarmos lá.

            Uma hora mais tarde, chegavam a seu destino. Com certa surpresa para Noel, Amabel conseguiu não perder o rumo, indicando o momento de abandonar a auto-estrada, depois atravessando várias cidadezinhas da zona rural e finalmente desembocando em uma estrada estreita e sinuosa, que cruzava terras escurecidas de várias fazendas, até a aldeia de Charbourne. Embora chovendo e no escuro, o lugar parecia pitoresco, com uma rua principal flanqueada por cavadas calçadas lajeadas e chalés com tetos de colmo, todos tendo pequenos jardins à frente. Passaram por um pub e uma igreja, rodaram por uma avenida de carvalhos e então chegaram a dois imponentes portões.

            - É aqui.

            Noel manobrou para cruzar os portões, passou por uma casinhola de porteiro e subiu uma alameda, através de um parque. Ao clarão dos faróis, avistou a casa finalmente; quadrada, branca e georgiana, com as agradáveis proporções e simetrias daquele período. Brilhavam luzes por trás de cortinas fechadas; ele contornou a ampla alameda de cascalhos para carros e parou diante da porta principal.

            Desligou o motor, os dois recolheram suas bagagens no porta-malas e subiram os degraus até a porta fechada. Amabel encontrou o punho de ferro lavrado para acionar a sineta, deu um puxão, mas então disse:

            - Não precisamos esperar - e ela mesma abriu a porta.

            Entraram para um saguão de piso lajeado, com outra porta envidraçada que conduzia ao vestíbulo. As luzes estavam acesas. Noel observou que era grande, em painéis, com uma escadaria magnífica levando ao andar de cima. Enquanto hesitavam. abriu-se uma porta ao fundo e surgiu uma mulher, que se aproximou diligentemente para recebê-los. Era corpulenta e de cabelos brancos, usando um avental estampado sobre um bom vestido azul-turquesa de Courtelle. A esposa do jardineiro, concluiu Noel, vindo dar uma mãozinha no fim de semana.

            A mulher recebeu-os.

            - Boa-noite. Venham, por favor, Sr. Keeling e Srta. Remington-Luard? Tudo bem. A Sra. Early acabou de subir para seu banho. Camilla e o Coronel estão nos estábulos, mas a Sra. Early disse que eu os aguardasse e mostrasse seus quartos. Esta é toda a sua bagagem? Que noite terrível! A viagem foi ruim? A chuva não pára de cair, não é mesmo?

            A esta altura, já estavam no interior. A lareira de mármore estava acesa, e a casa parecia esplendidamente aquecida. A esposa do jardineiro fechou a porta.

            - Queiram acompanhar-me, por favor - indicou. – Podem trazer sua bagagem?

            Eles podiam. Ainda mergulhada no velho sobretudo, Amabel carregou sua sacola com as botas de cano longo, Noel carregou a outra e sua própria mala. Assim ocupados, seguiram a robusta senhora em direção à escada.

            - Os outros convidados de Camilla chegaram à hora do chá, mas agora estão em seus quartos, trocando de roupa. Oh, a Sra. Early me pediu para avisar que o jantar é às oito, mas se quiserem descer quinze minutos antes, haverá drinques na biblioteca. Lá, então, poderão reunir-se a todos os outros...

            Na curva da imponente escada. um arco indicava o corredor seguindo para os fundos da casa. Havia um tapete escarlate no chão, gravuras esportivas adornavam as paredes, e Noel captou o cheiro agradável e inerente às residências rurais bem cuidadas, uma mistura de roupa de cama recentemente passada a ferro, polidor e lavanda.

            - Bem, este é o seu quarto, querida. - Ela abriu uma porta e ficou de lado, a fim de que Amabel entrasse. - O seu fica ao lado, Sr. Keeling... e o banheiro, entre os dois. Penso que é tudo, mas se precisarem de alguma coisa, queiram informar-nos.

            - Muito obrigado.

            - Direi à Sra. Early que descerão às quinze para as oito.

            Ela se foi com um sorriso agradável, fechando a porta ao sair. Deixado sozinho, Noel pousou a mala no chão e espiou em volta. Os muitos anos passando fins de semana em casa alheias haviam aguçado sua percepção a tal ponto que, quase a partir do momento em que cruzava a porta de entrada de uma nova casa, era capaz de avaliar as possibilidades dos dias que tinha pela frente, segundo seu sistema próprio e pessoal de avaliação.

            Uma estrela era a última categoria, em geral um úmido chalé no campo, com vento encanado, colchões encaroçados, comida insossa e nada mais além de cerveja, para saciar a sede de um homem. Os convidados tendiam a mostrar-se pouco cativantes com crianças malcomportadas. Se apanhado em tal situação, era freqüente Noel recordar um súbito e premente compromisso em Londres, bem cedo na manhã de domingo. Duas estrelas aplicavam-se em geral às casas no cinturão do exército, em Surrey, onde o grupo consistia de garotas atléticas e jovens cadetes de Sandhurst. Em geral, o tênis era o divertimento aceito, praticado em uma quadra musguenta e rematado por uma visita noturna ao pub local. Três estrelas cabiam a propriedades despretenciosas e de construção irregular na zona rural, com uma profusão de cães por toda parte, cavalos nos estábulos, grandes lareiras de toras, fartas refeições e, quase sempre, esplêndido vinho. Quatro estrelas era o máximo, as casas dos imensamente ricos. Um mordomo, alguém para desfazer as malas, e lareira no quarto. A raison d'être para fins de semana quatro estrelas, em geral, era algum baile de debutante, a ter lugar nos arredores. Haveria uma vasta marquise iluminada por candelabros, erigida no jardim; uma banda, importada de Londres a um preço impressionante, para tocar durante a noite inteira, e champanha ainda jorrando, às seis horas da manhã.

            Havia concluído instantaneamente que Charbourne era Três Estrelas, e isto o deixou bem satisfeito. Como era óbvio, não lhe fora destinado o melhor quarto de hóspedes, embora este fosse totalmente adequado. Antiquado, confortável, com sólido mobiliário vitoriano pesadas cortinas de chintz, contendo tudo que um visitante de pernoite pudesse desejar. Tirando o paletó, jogou-o em cima da cama e foi abrir uma segunda porta, dando para um espaçoso banheiro acarpetado, com uma imensa banheira revestida de mogno. Havia mais uma porta no outro lado deste aposento. Noel caminhou até ela e experimentou a maçaneta, esperando encontrá-la trancada; no entanto, ela se abriu e ele se viu no quarto de Amabel. Encontrou-a ainda envolta no casaco forrado de peles, tirando de sua sacola algumas peças ao acaso, as quais deixava cair no chão, como folhas mortas a seus pés.

            Erguendo os olhos, ela viu o sorriso no rosto de Noel.

            - O que significa isso? - perguntou Amabel.

            - Nossa anfitriã, sem dúvida é uma mulher de bom-senso e mente aberta.

            - O que quer dizer? - insistiu ela, parecendo não entender.

            - Quero dizer que, de maneira alguma, ela nos colocaria em um quarto de casal, mas que não se importa em absoluto com o que nós dois fizermos, na privacidade da noite.

            - Oh, isso - replicou Amabel. - Imagino que ela já tenha prática de sobra.

            Ela remexeu no fundo da sacola e puxou uma comprida e elástica peça de roupa negra.

            - O que é isso? - perguntou ele.

            - E o que vou usar esta noite.

            - Não está um tanto amarrotado?

            Ela sacudiu a peça.

            - É malha. Não deveria amarrotar. Será que a água está quente?

            - Tudo indica que sim.

            - Oh, que bom! Vou tomar um banho. Quer pôr a banheira para encher?

            Ele voltou ao banheiro, colocou o tampão da banheira e abriu as torneiras. Em seguida, retomou ao seu quarto e desfez a mala pendurando os ternos no espaçoso guarda-roupas e colocando as camisas limpas nas gavetas. No fundo da mala, havia um cantil de prata para caça. A esta altura, podia ouvir Amabel chapinhando na água e sentir o vapor perfumado que saía como fumaça pela porta aberta. Com o cantil na mão, foi ao banheiro, recolheu os dois recipientes para escova de dentes, encheu-os pela metade com uísque e completou com água da torneira fria. Amabel decidira lavar os cabelos. Estava sempre lavando os cabelos, porém eles nunca pareciam diferentes. Noel lhe passou um dos recipientes, colocando-o em uma banqueta ao lado da banheira, onde ela poderia alcançá-lo, após retirar o sabão dos olhos. Entrou no quarto dela, ergueu do chão o casaco que fora de seu avô e foi com ele para o banheiro. Ali, sentou-se na borda do vaso sanitário, colocou cuidadosamente seu drinque no espaço da pia para o sabonete, e começou a investigar.

            O vapor se dissipava. Amabel ergueu o torso, afastou os compridos cabelos molhados que lhe cobriam o rosto e abriu os olhos. Ao ver o drinque estendeu a mão para ele.

            - O que está fazendo? - perguntou.

            - Procurando a nota de cinco libras.

            Tateando o grosso tecido, localizou o que estalava, introduzido bem fundo na bainha. Enfiando a mão no bolso, encontrou o furo, porém era pequeno demais para a passagem da mão, de maneira que o abriu um pouco mais e tomou a experimentar. Espalhadas entre o tweed e o avesso da pele de coelho, as pontas de seus dedos encontraram tufos e fiapos de pêlos. Trincou os dentes, imaginando um camundongo morto ou algo indizivelmente repugnante, mas controlou tais terrores e insistiu. Por fim, no último recanto da bainha, seus dedos encontraram o que procuravam. Ele pegou cautelosamente o que seria aquilo e puxou a mão para fora do bolso. O casaco escorregou-lhe do joelho e ele se viu segurando um pedaço de papel, fino e dobrado, antigo e acastanhado, como algum precioso pergaminho.

            - O que é? - quis saber Amabel.

            - Não é uma nota de cinco libras. Parece uma carta.

            - Poxa, que desapontamento!

            Com delicadeza, para não rasgar o papel, ele o desdobrou. Observou a caligrafia deitada e antiquada, as letras desenhadas com beleza, escritas com uma pena de aço de ponta afilada.

           Dufton Hall.

           Lincolnshire.

           8 de maio de 1898.

            Caro Stern,

            Sou-lhe grato por sua carta enviada de Rapallo e percebo que, a esta altura, já deve ter retomado a Paris. Espero poder viajar para a França no próximo mês quando, querendo Deus, irei ao seu estúdio, inspecionar o esboço a óleo para O jardim do terrazzo. Assim que forem

ultimados os preparativos de viagem necessários, enviar-lhe-ei um telegrama, comunicando data e hora de minha visita.

         Cordialmente.

         Emest Wollaston.

Noel leu isto em silêncio. Ao terminar, ficou um momento imerso em profundos pensamentos. Depois, erguendo a cabeça, olhou para Amabel.

            - Espantosa! - exclamou.

            - O que isto quer dizer?

            - Que coisa espantosa encontrei.

            - Oh. Noel, por Deus, leia para mim!

            Ele leu. Quando terminou, Amabel continuou na mesma.

            - O que há de espantoso nisso?

            - É uma carta para meu avô.

            - E daí?

            - Nunca ouviu falar em Lawrence Stern?

            - Nunca.

            - Era um pintor. Um pintor vitoriano de muito sucesso.

            - Nunca soube disso. Não é de admirar que tivesse um casaco tão formidável.

            Noel ignorou esta irrelevância.

            - Uma carta de Emest Wollaston...

            - Também era pintor?

            - Não, sua ignorante! Não era um pintor! Foi um industrial vitoriano. Um milionário que enriqueceu à própria custa. Eventualmente, foi elevado à nobreza e ficou conhecido como Lorde Dufton.

            - E sobre o quadro... como é mesmo o nome?

            - O jardim do terrazzo. Foi uma encomenda. Ele quis que Lawrence Stern o pintasse.

            - Também nunca ouvi falar disso.

            - Pois devia. É uma tela muito famosa. Nos últimos dez anos, esteve exposta no Metropolitan Museum, em Nova York.

            - E como é ela?

            Noel ficou calado por um momento, concentrado em recordar a tela, que vira somente reproduzida nas páginas de um jornal esotérico.

            - Mostra um terraço. Da Itália, naturalmente, daí o motivo de ele ter estado em Rapallo. Há um grupo de mulheres, reclinadas em uma balaustrada, com rosas crescendo por toda a parte. Ciprestes, mar azul e um menino tocando harpa. É muito bonito, dentro de seu estilo. - Noel tornou a contemplar a carta, e tudo se encaixou nos lugares; ele adivinhou exatamente como aquilo acontecera.

           - Ernest Wollaston enriqueceu e passou a freqüentar a alta sociedade, talvez tenha mandado construir essa impressionante mansão em Lincolnshire. Então, precisava comprar mobiliário para ela, tapetes especialmente tecidos na França e, não tendo herdado telas, Gainsboroughs ou Zoffanys, para pendurar nas paredes, encomendou ao mais prestigiado artista da época um quadro para ele. Naquele tempo, era mais ou menos como convidar algum sujeito para estrelar um filme. Locações, vestuários, modelos, tudo tinha que ser levado em conta. Assim, após decidido e pesquisado o tema, o artista fazia um esboço em óleo, a fim de que o cliente o examinasse. Teria meses de trabalho pela frente e precisava estar bem certo de

que, no final, a obra sairia exatamente segundo os desejos do homem que a encomendara e pagara por ela.

            - Entendo. - Ela se recostou na banheira, com os cabelos flutuando na água à sua volta, como Ofélia, e considerou tudo quanto ouvira. - Só que ainda não vejo por que ficou tão excitado.

            - Acontece apenas que... Bem, eu nunca havia pensado sobre esses esboços iniciais a óleo. Ou, se pensei, já os tinha esquecido.

            - E são importantes?

            - Não sei. Talvez sejam.

            - Quer dizer que fui muito esperta, encontrando a carta que estava dentro do casacão.

            - Sim, foi muito esperta.

            Após um instante, ele dobrou a carta, enfiou-a no bolso, terminou seu drinque e levantou-se. Olhou para o relógio.

            - Sete e meia - disse. - É melhor você cair fora daí.

            - O que vai fazer?

            - Trocar de roupa.

            Ele a deixou ainda na água e voltou para seu quarto, fechando a porta ao entrar. Então, com o máximo cuidado, abriu a outra porta e espionou o corredor solitário. Caminhou por ele até a escada e desceu para o vestíbulo. Seus pés não faziam som algum sobre os tapetes espessos. Parou no final dos degraus, hesitando. Não havia ninguém por ali, embora viessem vozes e agradáveis ruídos domésticos da direção dos fundos da casa, juntamente com apetitosos odores de comida deliciosa. Isto, contudo, não o distraiu, porque agora não pensava em outra coisa, que não fosse encontrar um telefone.

            Descobriu um quase em seguida, ali mesmo no vestíbulo, em um compartimento envidraçado debaixo da escada. Foi até lá, entrou e fechou a porta. Erguendo o fone, discou um número de Londres. A resposta foi quase imediata.

            - Edwin Mundy falando.

            - Edwin, aqui é Noel Keeling.

            - Noel! Há quanto tempo não o vejo! - A voz era rouca e arrastada, com um quase imperceptível sotaque cockney, que ele não conseguira extirpar de todo. -Como vão as coisas com você?

            - Tudo ótimo mas, escute, não tenho muito tempo agora. Estou no campo. Queria apenas perguntar-lhe uma coisa.

            - Qualquer coisa, meu velho.

            - Estou falando sobre Lawrence Stern. Dá para entender?

            - Perfeito.

            - Você sabe se algum de seus esboços a óleo, feitos para telas importantes, apareceu no mercado?

            Houve uma pausa. Depois Edwin respondeu, astutamente:

            - Eis uma interessante pergunta. Por quê? Você tem algum?

            - Não. Aliás nem sei se existe algum. Foi por isto que liguei.

            - Nunca soube de nenhum esboço que aparecesse em qualquer leilão ou salão de vendas importante. Enfim, há muitos negociantes menores, em toda a parte do país.

            - Qual seria... - Noel pigarreou e tentou novamente. – Na situação atual do mercado, quanto você acha que uma coisa dessas alcançaria?

            - Depende da pintura. Se foi para uma de suas obras importantes, suponho que cerca de quatro ou cinco mil... mas não confie muito em meu cálculo, amigão, é apenas uma avaliação por alto. Eu só poderia dizer com segurança, vendo o trabalho.

            - Já lhe falei. Não tenho nenhum.

            - Então, por que o telefonema?

            - Acabei de perceber que esses esboços talvez ainda rodem por aí, sem que ninguém saiba sobre eles.

            - Está querendo dizer, na casa de sua mãe?

            - Ora, eles têm que estar em algum lugar!

- Se puder encontrá-los - prosseguiu Edwin, em tom muito cordial -, espero que deixe manipulá-los para você.

            Noel, entretanto, não pretendia comprometer-se com tanta facilidade.

            - Primeiro, tenho que pôr as mãos neles. – Acrescentou, antes que Edwin pudesse dizer qualquer coisa mais: - Preciso ir agora, Edwin. O jantar será servido em cinco minutos e ainda nem troquei de roupa. Obrigado pela ajuda e espero não, tê-lo incomodado.

            - Não foi incômodo algum, meu velho. Foi um prazer ajudar. Uma interessante possibilidade. Boa caçada!

            Edwin desligou. Noel recolocou lentamente o fone no gancho. Quatro a cinco mil libras. Mais do que ousara imaginar. Respirou fundo, abriu a porta do compartimento e saiu para o vestíbulo. Ainda não havia uma alma por ali, e ninguém testemunhara seu ato; portanto, não precisaria deixar dinheiro algum para pagar a ligação.

 

                                 HANK

            No último minuto, quando tudo já estava pronto e esperando para seu jantar à deux com Hank Spotswood, Olivia lembrou que não ligara para a mãe, avisando-a de que iria a Gloucestershire no dia seguinte, a fim de passar um ocioso sábado com ela. O telefone branco ficava ao lado do sofá, e ela chegou a sentar-se ali; começava a discar o número, quando ouviu um táxi descendo vagarosamente a rua. De maneira instintiva, soube que era Hank. Vacilou. Uma vez ao telefone, sua mãe gostava de falar, fornecendo e solicitando novidades; seria impossível apenas combinar sua ida até lá e desligar. Ouviu o táxi parar diante da casa, suspendeu a ligação e tornou a colocar o fone no gancho. Telefonaria mais tarde. Sua mãe nunca ia para a cama antes da meia-noite.

Lenvantou-se, ajeitou a almofada amarfanhada e olhou em volta, constatando que tudo estava como deveria. Luzes amortecidas, drinques esperando, gelo no balde, música suave no estéreo, quase inaudível. Virou-se para o espelho acima da lareira e afofou os cabelos, endireitando a gola de sua blusa Chanel, em cetim creme. Usava brincos de pérolas, e a maquilagem também era perolada, suave e muito feminina, ao contrário do make-up de tons vivos que usava durante o dia. Esperando, ouviu o portão ser aberto e fechado. Pisadas. A campainha soando.

Sem pressa, foi abrir a porta para recebê-lo.

- Boa-noite.

Ele estava parado na soleira, na chuva. Um homem atraente e vigoroso, aproximando-se dos cinqüenta anos e, previsivelmente, trazendo um buquê de rosas vermelhas, com hastes compridas.

- Olá.

- Entre. Que noite horrível! De qualquer modo, você encontrou o caminho...

- Claro. Não houve problema algum.

Ele entrou. Olivia fechou a porta e Hank estendeu-lhe as flores.

- Uma pequena oferta - disse, e sorriu.

Ela já esquecera o quanto aquele sorriso era atraente, assim como os dentes dele, regulares, americanamente alvos.

- Oh, são lindas! - Pegou as rosas e abaixou automaticamente a cabeça para cheirá-las, porém tinham sido cruelmente forçadas a desabrochar em alguma estufa, o que lhes tirara o perfume. - Foi muita gentileza. Tire o casaco e sirva-se de um drinque, enquanto ponho as rosas em um vaso.

Levou as flores até a pequena cozinha, encontrou um jarro, enche-o de água e colocou as rosas da maneira como estavam, sem perder tempo em arrumá-las melhor. Como sempre acontece com rosas, elas se espalharam graciosamente. Olivia voltou à sala de estar com o vaso e, com alguma cerimônia, colocou-o no lugar de honra, em cima de sua secretária de nogueira. O vermelho das flores contra as paredes brancas era tão vivo como gotas de sangue. Olivia se virou para o visitante.

- Adorei as rosas. Bem, e quanto a seu drinque?

Ele já se servira.

- Preferi um uísque. Espero que seja a norma da casa. - Largou o copo. - O que vai beber?

- O mesmo. Com água e gelo.

Ela afundou no canto do sofá, encolheu os pés sob o corpo e ficou espiando, enquanto ele manejava copos e garrafas. Quando Hank voltou com o drinque, Olivia estendeu a mão para pegar o copo, ele pegou o seu e, então, acomodou-se na poltrona que ficava i ao lado da lareira. Ergueu o copo.

- Saúde!

- Saúde - repetiu Olivia.

Beberam. Começaram a conversar. Foi tudo muito fácil e relaxado. Ele admirou a casa, interessou-se por seus quadros, fez perguntas sobre seu trabalho, quis saber como ela ficara conhecendo os Ridgeways, em cuja casa se tinham conhecido, na festa de duas noites antes. Então, diplomaticamente estimulado, ele começou a falar sobre si mesmo. Estava no negócio de tapetes e viera ao país para a Conferência Textil Internacional, hospedando-se no Ritz. Era natural de Nova York, porém agora trabalhava no sul, em Dalton Georgia.

- Deve ser uma mudança total de estilo de vida. De Nova York para a Georgia...

- Sem dúvida. - Ele baixou os olhos, virando o copo nas mãos.

- Essa mudança, no entanto, chegou no momento oportuno. Eu e minha esposa estávamos divorciados há pouco, de modo que isso facilitou bastante os arranjos domésticos.

- Sinto muito.

- Não há nada a lamentar. São dessas coisas que acontecem

- Tem filhos?

- Sim. Dois adolescentes. Um menino e uma menina.

- Continua vê-los com freqüência?

- Eles passam as férias de verão comigo. O Sul é, excelente para a garotada. Podem jogar tênis o ano inteiro, andar a cavalo, nadar. Pertencemos ao country club local e, lá, eles encontram um bocado de jovens de sua idade.

- Parece interessante.

Houve uma pausa, durante a qual Olivia esperou com tato, dando a ele oportunidade para mostrar uma carteira com fotos dos filhos, o que, felizmente, não aconteceu. Ela começou a simpatizar com Hank cada vez mais. Disse:

- Seu copo está vazio. Gostaria de outro drinque?

Continuaram conversando. Passaram para temas mais sérios: política americana, o equilíbrio econômico entre os dois países. Hank tinha conceitos liberais e práticos ao mesmo tempo e, embora dissesse que havia votado nos Republicanos, parecia profundamente preocupado com os problemas do Terceiro Mundo. Após algum tempo, ela olhou para seu relógio e, com surpresa, constatou que eram nove horas.

- Acho que já é hora de comermos - disse.      

Ele se levantou, recolheu os corpos vazios e a seguir até a pequena sala de refeições. Olivia ligou a iluminação indireta, sendo então revelada a mesa pronta, com cristais, talheres reluzentes e um enfeite central com lírios precoces. Embora a iluminação fosse suave, dava claridade bastante para que ele imediatamente se concentrasse naquela única parede azul-cobalto, coberta de alto a baixo por fotos emolduradas. Aquilo lhe desviou a atenção.

- Oh, mas vejam só isto! Que grande idéia!

- Fotos de família sempre me pareceram um problema. Nunca soube onde colocá-las, de maneira que resolvi a charada simplesmente empapelando a parede com elas.

Olivia passou para trás do balcão da minúscula cozinha, onde apanhou pão torrado e patê, enquanto ele permanecia de costas para ela, examinando as fotos com o interesse e a atenção de um homem em uma galeria de arte.

- Quem é esta bela jovem aqui?

- Minha irmã Nancy.

- É encantadora.

- Era - concordou Olivia. - Agora relaxou, como dizem. Sabe como é, engordou e ficou com uma aparência de avançada meia-idade. Entretanto, era encantadora quando jovem. A foto foi tirada antes de seu casamento.

- Onde ela mora?

- Em Gloucestershire. Tem dois filhos terríveis e um marido enfadonho. Sua idéia de paraíso é vaguear durante uma corrida point-to-point, arrastando dois labradores pelas coleiras e gritando cumprimentos para todos os amigos. - Ele se virou para ela, com a testa franzida de perplexidade, e Olivia riu. - Você nem mesmo sabe do que estou falando, não?

- Não, mas deu para captar o ambiente. - Hank voltou às fotos. - E quem é esta simpática senhora?

- Minha mãe.

- Tem algum retrato de seu pai?

- Não. Meu pai é falecido, mas aí está o meu irmão Noel. O homem bonitão, de olhos azuis.

- Sem dúvida, é muito atraente. Casado?

- Não. Está com quase trinta anos agora, e ainda solteiro.

- Não tem uma namorada?

- Nenhuma que viva com ele. Nunca teve garotas residentes. A vida inteira sempre teve pavor de compromissos. Entenda, é o tipo de homem que jamais aceita convite para uma festa, caso algum melhor apareça.

Hank encolheu os ombros, divertido.

- Não é muito gentil com sua família.

- Eu sei, mas de que adianta apegar-se a ilusões sentimentais, em particular quando se chega à minha idade?

Saindo de trás do balcão, ela colocou o patê, a manteiga e o crocante pão torrado em cima da mesa. Encontrou fósforos e acendeu as velas.

- E quem é este?

- Para qual está olhando?

- Este homem, com a jovenzinha.

- Oh... - Olivia caminhou para junto dele. - É um homem chamado Cosmo Hamilton. A jovenzinha é sua filha Antonia.

- Uma linda menina.

- Eu a tirei cinco anos atrás. Ela agora deve estar com dezoito anos.

- São parentes seus?

- Não. Ele é um amigo. Foi um amigo. Em verdade, um amante. Tem uma casa em Ibiza e, há cinco anos, levei um ano afastada do trabalho... umas férias prolongadas. Fiquei lá, em Ibiza, vivendo com ele.

Hank ergueu as sobrancelhas.

- Um ano. É muito tempo para viver com um homem.

- Passou depressa demais.

Olivia sentiu os olhos dele em seu rosto.

- Você gostava dele?

- Sim. Foi a pessoa de quem mais gostei.

- Por que não casou com ele? Bem, talvez ele já tivesse esposa, não?

- Não, ele não tinha esposa. Contudo, não quis casar com ele, porque não pretendia casar com ninguém. E continuo não pretendendo.

- Ainda o vê?

- Não. Eu lhe disse adeus, e isso foi o fim do romance.

- E a filha Antonia?

- Ignoro o que foi feito dela.

- Correspondem-se?

Ela deu de ombros.

- Envio cartões de Natal para ele. Foi o que combinamos. Um cartão de Natal a cada ano, com um tordo ilustrado.

- Não me parece muito generoso.

- E não é mesmo, certo? Talvez seja impossível você compreender. Entretanto, o importante é que Cosmo compreende. - Ela sorriu. - E agora, se encerrar o exame de meus amigos e parentes, que tal servir o vinho e comermos alguma coisa?

- Amanhã é sábado - disse ele. - O que costuma fazer em seus sábados?

- Às vezes, viajo nos fins de semana. Em outras, fico em casa. Descansando, relaxando, convidando alguns amigos para um drinque.

- Planejou alguma coisa para amanhã?

- Por quê?

- Não tenho nada programado. Pensei que poderíamos pegar um carro e ir juntos para algum lugar... você poderia mostrar-me alguma coisa desta famosa região rural, sobre a qual tanto tenho ouvido falar, mas nunca tendo tempo para visitar e apreciar.

O jantar terminara, os pratos estavam abandonados, apagadas as luzes do recanto de refeições. Com conhaque e café, eles retomaram para junto da lareira, estando agora ambos no sofá, um em cada extremidade, meio virados de frente, enquanto conversavam. A cabeça de escuros cabelos de Olivia repousava em uma almofada rosa-indiano, as pernas aninhavam-se sob seu corpo. Uma das sapatilhas de couro escorregara de seu pé e jazia sobre o tapete.

- Eu pretendia visitar minha mãe amanhã, em Gloucestershire - disse ela.

- Já combinou sua ida?

- Não, mas pretendia telefonar para ela, antes de dormir.

- Tem mesmo que ir?

Olivia considerou a pergunta. Queria ir, decidira ir e quase chegara a ligar para a mãe. Agora, no entanto...

- Não, eu não tenho que ir. Entretanto, ela não tem passado bem de saúde, faz muito tempo que não a vejo e devia ir até lá.

- Sim, aceito.

- Devo alugar um carro?

- Tenho um em perfeitas condições.

- E aonde iremos?

Olivia deu de ombros, abandonando a xícara de café.

- Onde preferir. Até New Forest, subindo o rio para Henley. Poderíamos ir a Kent e visitar os jardins em Sissinghurst.

- Decidiremos amanhã?

- Como você quiser.

- A que horas partiremos?

- Cedo, suponho. Assim, teremos deixado Londres antes que o movimento do trânsito piore.

- Sendo assim, seria melhor eu começar a caminhar para meu hotel.

- Sim - disse Olivia. - Talvez devesse fazer isso.

Entretanto, nenhum dos dois se moveu. Através do enorme sofá branco, seus olhos encontraram-se, ficaram fixos uns nos outros. O silêncio era profundo. O estéreo silenciara, com as fitas há muito concluídas, e lá fora a chuva batia contra as vidraças. Um carro desceu a rua, e o pequeno relógio sobre a lareira tiquetaqueou os momentos que passavam. Era quase uma da madrugada.

Hank se moveu para ela, como Olivia já antecipara, passou um braço por seus ombros e a puxou para si, a fim de que sua cabeça não mais repousasse na almofada rosa, mas contra o cálido volume de seu tórax. Com a outra mão, afastou-lhe os cabelos do rosto e, então, colocando dois dedos sob seu queixo, ergueu-lhe o rosto, inclinou-se e a beijou. A mão se moveu do queixo para a garganta, descendo para a curva dos seios pequeninos.

Ele disse, por fim:

- Estive querendo fazer isso a noite inteira.

- E eu estive querendo que você fizesse.

- Se vamos partir tão cedo amanhã, não acha inteiramente despropositada minha ida ao Ritz, para dormir apenas quatro horas e vir buscá-la?

- Terrivelmente despropositada.

- Posso ficar?

- Por que não?

Ela recuou, baixando os olhos para o rosto erguido de Olivia, e tinha as pupilas cheias de uma curiosa mescla de desejo e divertimento.

- Existe apenas um empecilho - disse a ela. - Não tenho aparelho de barba nem escova de dentes.

- Tenho as duas coisas. Novas em folha. Para emergências.

Ele começou a rir.

- Você é uma mulher admirável! - exclamou.

- E o que me dizem.

Olivia acordou cedo, como sempre. Sete e meia da manhã. As cortinas estavam cerradas, mas não de todo, com o ar penetrando por entre a abertura, fresco e frio. Era uma brisa leve, e o céu estava claro. Talvez fizesse um dia excelente.

Ficou deitada um instante, sonolenta e relaxada, sorrindo de satisfação, relembrando a noite passada e, com prazer, antecipando o dia à sua frente. Virou a cabeça no travesseiro e, com intenso deleite, contemplou o homem adormecido que ocupava o outro lado da cama ampla. Ele tinha um braço dobrado sob a cabeça, o outro descansando sobre a grossa colcha branca. Era fortemente bronzeado, com todo o seu corpo jovem e saudável, coberto de macios e pequeninos pêlos dourados. Estendendo a mão, ela lhe tocou o antebraço, como tocaria uma peça de porcelana ou escultura, apenas pelo puro prazer animal de sentir o formato e a curvatura sob as pontas dos dedos. O leve toque não o perturbou e, quando afastou a mão, ele continuou dormindo.

A sonolência dela se fora, agora substituída pela costumeira e inquieta energia. Acordara de todo, estava pronta para sair da cama. Sentou-se com cuidado, afastou as cobertas e ficou em pé. Enfiou os pés nus nos chinelos, estendeu a mão para o quimono de lã rosa-pálido, vestiu-o e apertou a faixa em torno da cintura estreita. Saiu do quarto, fechou a porta e desceu a escada.

Abrindo as cortinas, constatou que, de fato, aquele dia prometia ser perfeito. Ceara ligeiramente durante a noite, porém o dia pálido estava sem nuvens, e os primeiros raios baixos do sol de inverno já penetravam a rua deserta. Abriu a porta da frente, recolheu o leite que levou para a cozinha, deixando as garrafas na geladeira. Tirou da mesa os pratos usados no jantar da véspera, empilhou-os na lavadora de pratos e depois arrumou a mesa para o desjejum. Ligou a máquina para fazer o café, pegou bacon e ovos, uma caixa de cereal. Voltou à sala de estar, onde ajeitou almofadas, recolheu copos e xícaras de café, acendeu a lareira. As rosas que ele trouxera começavam a desabrochar, as pétalas encurvadas afastando-se dos apertados botões internos, como mãos abertas em súplica. Fez uma pausa para aspirá-las mas, pobrezinhas, ainda não tinham perfume. Não importa, disse para elas, vocês são lindas. Terão de contentar-se com sua beleza apenas.

A correspondência, com um ruído indicador de respectiva caixa, caiu sobre o capacho, pela porta principal, Olivia começou a andar para recolhê-la, já estava no meio da sala, quando o telefone tocou e a fez mergulhar para ele, não querendo que o retinido estridente despertasse o homem que dormia no andar de cima.

- Alô?

No espelho acima da lareira, ela se viu frente a frente com seu próprio reflexo, um rosto limpo de amanhecer, os cabelos escuros caindo sobre uma face. Jogou-os para trás, e então, como ninguém respondera, insistiu mais uma vez:

- Alô?

Houve um dique, um zumbido e depois o som de uma voz feminina.

- Olivia?

- Ela mesma.

- Olívia, aqui é Antonia.

- Antonia?

- Antonia Hamilton. A Antonia de Cosmo.

- Antonia - Olivia afundou na extremidade do sofá, os pés debaixo do corpo, o fone bem apertado contra o ouvido. - De onde está falando?

- De Ibiza.

- Parece que está na caso ao lado!

- Eu sei. A ligação está ótima, graças a Deus.

Algo na voz jovem prendeu a atenção de Olivia. Sentiu o sorriso em seu rosto esmaecer, os dedos apertaram-se em tomo da branca superfície do fone.

- Por que está ligando?

- Olivia, eu tinha que comunicar a você... É uma notícia triste. Meu pai morreu.

Morto. Cosmo, morto.

- Morreu!

Ela repetiu a palavra, sussurrou-a, mas não sabia que a pronunciava.

- Faleceu já quase madrugada, na quinta-feira. No hospital... O funeral foi ontem.

- Mas... - Cosmo, morto. Não era possível. - Mas... como? E por quê?

- Eu... não posso contar agora... não pelo telefone.

Antonia em Ibiza, sem Cosmo.

- De onde está ligando?

- Do Pedro's.

- E onde está morando?

- Em Ca'n D'alt.

- Está sozinha lá?

- Não, Tomeu e Maria foram para lá, fazer-me companhia. Eles têm sido maravilhosos.

- Mas...

- Olivia, vou ter que ir para Londres. Não posso continuar aqui, porque a casa não me pertence e... oh, por mil outros motivos. Seja como for, preciso arranjar algum emprego. Se eu for... poderia ficar com você alguns dias, só até ajeitar minha vida? Eu não lhe pediria esse favor, mas não tenho mais a quem recorrer.

Olivia hesitou, odiando-se por hesitar, mas demasiada cônscia de que cada instinto seu reagia violentamente contra a idéia de que qualquer pessoa, mesmo Antonia, invadisse a preciosa privacidade de sua casa e sua vida.

- E... e quanto à sua mãe?

- Ela se casou de novo. Agora mora no norte, perto de Huddersfield. Acontece que não quero ir para lá... é outra coisa que mais tarde explicarei também a você.

- Quando é que pretende vir?

- Semana que vem. Talvez na terça-feira, se conseguir passagem aérea. Olivia, será apenas por alguns dias, só até organizar-me. Sua voz suplicante, percorrendo os quilômetros do cabo telefônico, soava jovem e vulnerável, como quando ela era criança. De repente, Olivia recordou Antonia como a vira pela primeira vez, correndo através do piso encerado do aeroporto de Ibiza, para atirar-se nos braços de Cosmo. Então, revoltou-se contra si mesma. Esta é Antonia, pedindo ajuda, criatura egoísta! Esta é a Antonia de Cosmo, e Cosmo está morto! O fato de ela se voltar para você é o maior cumprimento que lhe poderia prestar. Pela primeira vez na vida, pare de pensar em si mesma!

Então, como se Antonia pudesse vê-la, sorriu, consoladora e tranqüilizante. Falou, procurando tornar a voz firme e cordial:

- É claro que você pode vir! Avise-me sobre a chegada do avião e irei esperá-la em Heathrow. Então, poderá contar-me tudo.

- Oh, você é um anjo! Farei o possível para não incomodar.

- É claro que você não será incômodo algum. - Sua mente prática e bem treinada moveu-se para outras possíveis dificuldades.

- Está com dinheiro suficiente?

- Oh! - Antonia pareceu surpresa, como se nem mesmo houvesse considerado tais detalhes e, provavelmente, ainda não fizera isso. - Estou. Bem, acho que estou.

- Tem o suficiente para comprar a passagem de avião?

- Tenho, é o que acho. A conta certa.

- Então, fique em contato comigo e irei esperá-la.

- Muito, muitíssimo obrigada. E... lamento ter-lhe contado sobre papai...

- Eu também lamento. - Olivia não sabia bem o que dizia. Fechou os olhos, procurando afastar a dor de uma perda que ainda não absorvera inteiramente. - Ele foi uma pessoa muito especial.

- Eu sei. - Antonia estava chorando. Olivia podia ouvir, ver e quase sentir as lágrimas. - Eu sei... adeus, Olivia.

- Adeus.

Antonia desligou.

Após um instante, desajeitadamente, Olivia desligou também. De repente, sentiu um frio terrível. Encolhida no canto do sofá, enrolou os braços à volta de si mesma, olhando para sua arrumada e brilhante sala de estar, onde nada havia mudado, nada se movera, mas tudo ficara diferente. Porque Cosmo se fora. Cosmo estava morto. Pelo resto de sua vida, viveria em um mundo onde não haveria mais Cosmo. Pensou naquela noite cálida, à frente do Pedro’s, onde tinham ficado ouvindo o rapaz que tocava o concerto de Rodrigo em sua guitarra, enchendo a noite com a música da Espanha. Por que de recordações dos meses passados com Cosmo?

Uma pisada na escada a fez erguer os olhos. Viu Hank Spotswood descendo em sua direção. Usava seu roupão felpudo branco não parecendo ridículo em tal indumentária; afinal de contas era um roupão masculino e ajustava-se perfeitamente a ele. Ficou satisfeita por Hank não parecer ridículo. Não suportaria se, naquele momento, ele parecesse ridículo. Oh, mas isto era loucura, afinal! Que importava a aparência dele, se Cosmo estava morto?

Viu-o chegar, sem dizer nada.

- Ouvi o telefone tocar - disse ele.

- Pensei que não o tivesse acordado.

Olivia não sabia que tinha o rosto lívido, que seus olhos escuros eram como dois orifícios nas faces.

- Alguma coisa errada? - perguntou Hank.

Mostrava um início de barba nascendo, os cabelos estavam em desalinho. Olivia pensou naquela noite e ficou contente por ter sido ele.

- Cosmo morreu. Aquele homem sobre quem lhe falei ontem à noite. O homem de Ibiza.

- Oh. Santo Deus!

Ele terminou de descer a escada, cruzou a sala e sentou-se ao lado dela; tomando-a em silêncio nos braços, foi como se abraçasse uma criança ferida, necessitando de consolo. Com o rosto fortemente comprimido contra o áspero felpudo do roupão que ele vestia. Olivia desejou, intensamente, conseguir chorar. Ansiava pela chegada das lágrimas, queria que o pesar a sacudisse de alguma maneira física, para assim abrandar a profunda infelicidade, a dor que a apertava em suas garras. Entretanto, isso não aconteceu. Ela nunca fora de lágrimas fáceis.

- Quem falava ao telefone? - perguntou ele.

- Antonia, a filha de Cosmo. Pobre garota! Ele morreu na noite de quinta-feira. O funeral foi ontem. Não sei nada mais.

- Que idade tinha ele?

- Hum... sessenta, suponho. Mais ou menos. E era tão jovem!

- O que aconteceu?

- Não sei. Ela não quis falar sobre isso no telefone. Disse apenas que ele morreu no hospital. Ela... quer vir para Londres. Chegará na próxima semana. Vai ficar alguns dias comigo.

Ele nada comentou sobre isto, porém seus braços apertaram-se um pouco mais em torno dela, a mão dando-lhe tapinhas suaves no ombro, como se procurasse acalmar um animal fortemente tenso. Após algum tempo, Olivia sentiu-se consolada. Parara de sentir frio. Libertou as mãos, pousou-as contra o peito dele e afastou-se, agora composta, novamente ela própria.

- Sinto muito - desculpou-se. - Não costumo ser tão emotiva.

- Há alguma coisa que eu possa fazer?

- Não há nada que alguém possa fazer. Está tudo acabado.

- E quanto a hoje? Prefere desmarcar tudo? Posso desaparecer, sair de seu caminho, se for a sua vontade. Talvez queira ficar só.

- Não, não quero ficar só. A última coisa que desejaria era ficar sozinha. - Olivia reuniu os pensamentos dispersos, ordenou-os, e soube que sua primeira prioridade era contar à mãe que Cosmo falecera. Acrescentou: - Não obstante, receio que Sissinghurst ou Henley estejam fora de cogitação. Terei que ir a Gloucestershire. Afinal, e ver minha mãe. Já falei que ela não esteve bem, mas não disse que sofreu um ataque cardíaco brando. Por outro lado, gostava muito de Cosmo. Quando morei em Ibiza, ela foi lá e ficou conosco. Foi uma época muito feliz. Uma das mais felizes de minha vida. Assim, preciso contar-lhe que Cosmo morreu e quero estar presente então. - Olivia olhou para Hank. - Você se incomodaria de ir comigo? É uma distância e tanto, mas ela nos dará almoço e poderemos passar uma tarde tranqüila em sua companhia.

- Ficarei satisfeito em ir. E dirigirei para você.

Ele era como uma rocha. Olivia conseguiu sorrir, tomada de afetuosa gratidão.

- Vou ligar agora para ela. - Estendeu a mão para o telefone. - Direi que nos espere para almoçar.

- Não poderíamos levá-la para almoçar fora?

Olivia discou o número.

- Você não conhece minha mãe!

Ele aceitou a idéia e levantou-se.

- Sinto cheiro de café fresco - observou. - Que tal eu preparar o desjejum?

Partiram por volta de nove da manhã. Olivia ocupando o banco do acompanhante em seu Alphasud verde-escuro, e Hank ao volante. A princípio, ele dirigiu com o máximo cuidado, ansioso em não esquecer que estava no lado contrário da mão de direção, mas depois que pararam para encher o tanque, ficou mais confiante, ganhou velocidade e, pela auto-estrada, seguiram na direção de Oxford, fazendo cem por hora regularmente.

Não conversaram. A concentração dele dirigia-se inteiramente para o trânsito e a grande estrada que se encurvava diante deles. Olivia gostou de ficar calada, o queixo enfiado na gola de pele de seu casaco, os olhos espiando sem ver a sombria paisagem rural que voava ao lado do carro.

Depois de Oxford, o tempo melhorou. Era um cintilante dia de inverno, e quando o sol baixo subiu no céu, derreteu a geada sobre a relva e as plantações, enquanto rendilhadas árvores negras atiravam sombras alongadas através da estrada e do campo. Os fazendeiros já haviam começado a lavrar o solo, e bandos de gaivotas acompanhavam os tratores, os sulcos recém-arados mostrando a terra escura. Passaram por cidadezinhas fervilhando com o comércio das manhãs de sábado. Ruas estreitas mostravam filas de carros pertencentes a famílias que viviam no campo, vindas dos distritos vizinhos para as compras de fim de semana. As calçadas apinhavam-se com mães, filhos e carrinhos de bebê, os quiosques das feiras estavam entulhados de roupas coloridas, brinquedos de plástico e balões de gás, flores, frutos e hortaliças frescos. Mais adiante ainda, em frente a um pub de aldeia, presenciaram um Meet (*), o pátio lajeado ressoando com as batidas dos cascos dos cavalos, o ar tomado pelos latidos e ganidos dos cães de caça, pelo som das trompas de caça e das vozes alteadas dos caçadores, resplendentes em suas túnicas avermelhadas. Hank mal podia crer em sua boa sorte.

- Você viu aquilo? - dizia a todo instante.

Gostaria de ter parado o carro para espiar, mas um jovem policial, firmemente, fez com que seguisse em frente. Hank obedeceu, mas com relutância, olhando por sobre o ombro, para um último vislumbre da tradicional cena inglesa.

 

(*) Na Inglaterra, reunião de cavaleiros e cães de caça em um local determinado. em preparação para a caça à raposa. (N. da T.)

 

- Foi como algo saído de um filme. Aquela estalagem antiga e o pátio lajeado... Gostaria de ter trazido minha máquina fotográfica!

Olivia ficou satisfeita por ele.

- Não poderá dizer que não lhe dei precisamente o que desejava. Poderíamos ter rodado pelo país inteiro, sem nunca encontrar uma oportunidade tão boa quanto esta.

- Sem a menor dúvida, este é o meu dia de sorte!

Agora, as Cotswolds elevavam-se à frente deles. As rodovias estreitaram-se, serpenteando por prados cortados de rios e sobre pequenas pontes de pedra. Edificados com a pedra cor de mel das Cotswolds, chalés e casas de fazenda erguiam-se dourados à luz do sol, com jardins que, no verão, seriam um mar de cores, e pomares de ameixeiras e macieiras.

- Posso entender por que sua mãe quis morar aqui. Jamais vi uma paisagem rural semelhante. E tudo é tão verde!

- O curioso é que ela não veio para cá por causa da maravilhosa paisagem do campo. Quando vendeu a casa de Londres, sua intenção era mudar-se para a Cornualha. Viveu lá em criança, compreenda, e acho que sonhava voltar para aqueles lugares um dia. Entretanto, minha irmã Nancy achou que ficava muito longe, distante demais de todos os filhos. Então, encontrou esta casa para ela. Talvez tenha sido melhor assim, porém na época fiquei danada da vida com Nancy, por intrometer-se.

- Sua mãe mora sozinha?

- Mora, e aí temos outro problema. Os médicos acham que devia ter uma companhia, uma governanta, mas sei que isso a irritará sobremaneira. Minha mãe é muito independente e, afinal, não tem tanta idade assim. Está com somente sessenta e quatro anos. Considero um insulto à sua inteligência começar a tratá-la como se fosse praticamente senil. Aliás, ela está sempre em movimento. Cozinha e faz jardinagem, recebe visitas e lê tudo em que ponha as mãos, além de ouvir música, telefonar para as pessoas e ter longas, satisfeitas conversas. Às vezes viaja ao exterior para visitar velhos amigos. Em geral, vai à França. Seu pai foi pintor, ela passou grande parte da meninice em Paris. - Virando a cabeça, Olivia sorriu para Hank. - Ora, por que estou falando a você sobre minha mãe? Dentro em pouco, poderá constatar tudo por si mesmo!

- Ela gostou de Ibiza?

- Adorou. A casa de Cosmo era uma antiga casa de fazenda, no interior, encravada nas montanhas. Muito rural. Justamente ao gosto de minha mãe. Sempre que tinha um momento de folga, desaparecia no jardim com uma tesoura de podar, como se estivesse em casa.

- Ela conhece Antonia?

- Sim. Ela e Antonia estiveram conosco na mesma época. Tornaram-se grandes amigas. Não havia barreira de idades. Minha mãe é formidável com gente jovem, muito melhor do que eu. - Olivia ficou calada por um momento, antes de acrescentar, em um súbito impulso de honestidade: - Nem agora tenho muita certeza a meu respeito. Isto é, quero ajudar a filha de Cosmo, porém não suporto a idéia de ter alguém morando comigo, mesmo que por pouco tempo. Não é vergonhoso, ter de admitir isso?

- De maneira alguma. Acho muito natural. Quanto tempo ela pretende ficar?

- Acredito que até encontrar um emprego e um lugar para morar.

- Ela tem qualificações para um emprego?

- Não faço a menor idéia.

O mais provável é que não tivesse quaisquer qualificações. Olivia suspirou fundo. Os eventos da manhã tinham-na deixado emocional e fisicamente exaurida. Além de ainda estar sofrendo o choque e o pesar pela morte de Cosmo, sentia-se também envolvida, assediada pelos problemas de outras pessoas. Antonia chegaria, permaneceria em sua casa, teria que ser consolada, estimulada, sustentada e, com toda probabilidade, ainda precisaria de ajuda para encontrar algum emprego. Nancy continuaria a telefonar-lhe, importunando-a com a questão de uma governanta para a mãe delas, enquanto Penelope lutaria, com todas as forças, contra qualquer sugestão de alguém morar com ela. E, além de tudo isso.

Seus pensamentos interromperam-se de súbito. Então, cautelosamente, começaram a recuar. Nancy. Mamãe. Antonia. Ora, mas claro! Ali estava a solução! Reunidos, os problemas poderiam eliminar-se, simplificando-se, como aquelas somas de frações feitas na escola, cuja resposta era da mais bela simplicidade.

- Acabei de ter a idéia mais maravilhosa! - exclamou.

- Como assim?

- Antonia pode vir morar com minha mãe.

Se esperava o entusiasmo imediato dele, não o conseguiu. Hank considerou a idéia por algum tempo, antes de perguntar, cauteloso:

- Acha que ela quereria?

- É claro! Já lhe disse, Antonia adorou mamma. Não queria que ela fosse embora de Ibiza, quando decidiu voltar. Além do mais, logo agora que acaba de perder o pai, ficar algumas semanas em tranqüilidade, recobrando-se ao lado de alguém como minha mãe, seria o melhor para ela. Depois, então, começaria a percorrer as ruas de Londres, tentando encontrar um emprego.

- Você marcou um tento aí.

- Quanto a mamma, não seria como ter uma governanta, mas como hospedar uma amiga. Falarei hoje com ela sobre isso. Verei o que acha da idéia. Seja como for, tenho certeza de que não se negará. Tenho quase certeza disso.

Resolver problemas e tomar decisões eram algo que invariavelmente deixava Olivia revitalizada, de maneira que logo em seguida se sentiu melhor. Endireitou-se no assento, abaixou o protetor contra o sol e observou-se ao espelho ali afixado. Viu seu rosto, ainda muito pálido, com manchas sob os olhos, semelhantes a equimoses. A pele escura da gola do casaco acentuava a palidez, e ela esperou que a mãe não fizesse comentários a respeito. Passou um pouco de batom e penteou o cabelo. Depois, tomando a erguer o quebra-sol, voltou a atenção para a estrada à sua frente.

A esta altura, haviam cruzado Burford, restando apenas uns cinco quilômetros para chegarem ao seu destino, e o caminho era familiar.

- Aqui, dobramos para a direita - avisou.

Hank manobrou o carro para a estradinha que o poste-sinalizador indicava como "Temple Pudley", e diminuiu a velocidade para uma marcha lenta e cautelosa. A estrada subia sinuosa pela encosta de uma montanha e, ao alcançarem o topo, a aldeia surgiu à vista, aninhada no fundo do vale como um brinquedo infantil, as águas prateadas do Windrush assemelhando-se a serpenteante fita de prata. Chegaram às primeiras casas, chalés de pedra dourada, ostentando grande antiguidade e beleza. Avistaram a vetusta igreja, abrigada atrás dos teixos. Um homem conduzia um bando de ovelhas e havia carros estacionados diante do pub, intitulado “Sudeley Arms". Ali, Hank parou e desligou o motor.

Um tanto surpresa, Olivia se virou para ele.

- Por acaso estará precisando de um drinque? – perguntou polidamente.

Ele sorriu, negando com a cabeça.

- Não, mas acho que você gostaria de ficar algum tempo sozinha com sua mãe. Ficarei um pouco aqui e irei mais tarde, se me disser como encontrar a casa.

- É a terceira. estrada abaixo. À direita. com dois portões brancos. Aliás, acho que não seria preciso você fazer isto.

- Eu sei. - Ele deu um tapinha em sua mão. - No entanto, creio que assim facilitaria as coisas para as duas.

- Você é muito gentil - disse ela, e era sincera.

- Eu gostaria de levar alguma coisa para sua mãe. Se pedir ao encarregado do pub que me venda duas garrafas de vinho, acha que ele concordaria?

- Tenho certeza, principalmente se disser a ele que são para a Sra. Keeling. O mais provável é que lhe venda seu clarete mais caro.

Ele sorriu. abriu a porta e desceu do carro. Ela o viu atravessar o pátio lajeado e desaparecer na entrada do pub. baixando a cabeça alta para não colidir com o batente. Depois que Hank se foi, Olivia soltou seu cinto de segurança, deslizou para trás do volante e ligou o motor. Era quase meio-dia.

Penelope Keeling parou no meio de sua cozinha aquecida e atravancada, procurando imaginar o que fazer em seguida. Então, decidiu que de mais nada teria que se ocupar, porque já preparara tudo. Até encontrara tempo para ir ao andar de cima e trocar as roupas de trabalho por outras, mais adequadas a um almoço inesperado e formal, Olivia era sempre tão elegante, que o mínimo a fazer seria também ajeitar-se um pouco. Com isto, em mente, ela vestira uma pesada saia em brocado de algodão (muito amada e antiga, tendo o tecido iniciado sua vida como cortina), uma camisa masculina de lã listrada e cardigã sem mangas, cor de peônia púrpura. As meias eram escuras e grossas. Os sapatos. fortes e amarrados no peito do pé. Correntes douradas lhe pendiam em torno do pescoço e, com os cabelos penteados pouco antes e um toque de spray perfumado, sentia-se inteiramente festiva, cheia de agradável antecipação. As visitas de Olivia eram raras e distanciadas. o que só as tornava mais preciosas. A partir daquele telefonema de Londres, bem cedo de manhã, ela se lançara em um turbilhão de atividade.

Agora, contudo, nada mais restava a fazer. Fogo aceso nas lareiras da sala de visitas e sala de refeições, os drinques selecionados, o vinho aberto para ficar à temperatura ambiente. Na cozinha, o ar estava impregnado com o odor do lombo de vaca assado lentamente, de cebolas tostadas e batatas crocantes. Havia feito massa, descascado maçãs, cortado vagens em tiras (apanhadas no freezer) e ralado cenouras. Mais tarde, arrumaria queijos em um tabuleiro,

moeria o café e decantaria o creme espesso, trazido da leiteria da aldeia. Amarrando um avental para proteger sua saia, lavou as poucas peças do equipamento da cozinha ainda sujas e as colocou nas grades da tábua de escorrer. Guardou uma ou duas panelas, limpou a mesa com um pano úmido, encheu um jarro e aguou seus gerânios. Então, tirou o avental e o pendurou em seu cabide.

A máquina de lavar havia parado de funcionar. Penelope só a usava quando o dia estava bom para secar roupas, uma vez que não tinha a máquina para secá-las. Preferia que sua roupa lavada secasse ao ar livre, adquirindo com isso um delicioso cheiro de frescor e tomando a passagem a ferro infinitamente mais fácil. Olívia e seu amigo poderiam chegar a qualquer momento, mas ela apanhou a enorme cesta de vime e passou para seu interior o emaranhado de peças úmidas e já lavadas. Com a cesta fincada na cintura, saiu da cozinha através da estufa e passou para o jardim. Cruzou o gramado, passou pela abertura na cerca-viva de alfeneiro e entrou no pomar. Metade daquela área deixara de ser pomar. Penelope fizera ali uma horta maravilhosamente prolífica, deixando a outra metade como sempre fora, com velhas e contorcidas macieiras e o Windrush fluindo silenciosamente, além da sebe de espinheiros.

Um longo varal fora estendido entre três daquelas árvores, e era ali que Penelope pendurava sua roupa lavada. Fazer isto, durante uma brilhante e fresca manhã, era uma de suas maiores satisfações. Um tordo cantava e, a seus pés, impelindo-se através da relva úmida e empenachada, os bulbos começavam a despontar. Ela mesma os plantara, milhares deles; narcisos e crocos, cilas e galantos. Quando estes emurcheciam e a relva de verão ficava mais densa e verde, outras flores silvestres erguiam as cabeças. Prímulas, centáureas e papoulas escarlates, todas provindo de sementes atiradas por ela própria.

Lençóis, camisas, fronhas, meias e camisolas de dormir agitavam-se e dançavam à brisa ligeira. Com a cesta vazia, ela refez o caminho de volta, mas devagar, sem pressa, primeiro visitando a horta. a fim de verificar se os coelhos não se tinham banqueteado nos repolhos ainda tenros. Depois tornando a parar ao lado de seu pequeno arbusto de vibumo oloroso de hastes delicadas pontilhadas com botões rosa-forte miraculosamente cheirando a verão. Apanhou sua tesoura e cortou um ou dois galhos, que iriam perfumar a sala de visitas. Recomeçou a andar, decidida e entrar de vez, porém sua atenção foi novamente desviada. Agora, contemplava a deliciosa perspectiva de sua casa, erguida além do amplo relvado verdejante. Lá estava ela banhada de sol, tendo como fundo carvalhos de galhos desfolhados e um céu do mais puro azul. Era comprida e atarracada. caiada de branco, em estrutura de madeira com vãos preenchidos de argamassa, o entretecido teto de colmo projetando-se sobre as janelas do andar de cima, à maneira de espessas sobrancelhas pendentes.

Podmore's Thatch. Olivia achava o nome ridículo. dizia ficar embaraçada sempre que precisava mencioná-lo, tendo mesmo sugerido a Penelope que imaginasse um outro nome para a antiga moradia. Entretanto, Penelope sabia não ser possível mudar-se o nome de uma casa, da mesma forma como não se muda o nome de uma pessoa. Por outro lado, ficara sabendo, através do vigário, que William Podmore havia sido o Thatcher (*) da aldeia, mais de duzentos anos antes e que a casa tinha esse nome por causa dele. Isto decidiu o assunto para sempre.

Em certa época, haviam sido dois chalés, depois transformados em um pelo proprietário anterior, com o simples expediente de abrir portas na parede divisória. Isto significava que a casa tinha duas entradas, duas inseguras escadas e dois banheiros. Também significava que todos os aposentos se comunicavam. Um inconveniente, quando se deseja um pouco de privacidade. Assim, no térreo ficavam a cozinha, a sala de refeições, a de visitas e a antiga cozinha da segunda casa, que Penelope usava como depósito de jardinagem, ali guardando seus chapéus de palha, as botas de borracha, o avental de lona, vasos para flores, tralhas e colheres de jardim. Acima deste cômodo ficava um outro entulhado com todos os pertences de Noel e, no restante do andar de cima, três quartos maiores, enfileirados. Aquele sobre a cozinha era o dela.

 

(*) Operário que coloca cobertura de colmo em telhados. (N. da T.)

 

Além disto, escuro e bafiento debaixo do colmo, um sótão tomava todo o comprimento do teto, servindo de depósito para tudo que Penelope não suportara jogar fora ao partir finalmente da Rua Oakley, e para o que não havia espaço em qualquer outro lugar. Durante cinco anos, ela prometera a si mesma que neste inverno se livraria de tudo aquilo, mas sempre que subia os vacilantes degraus para lá e dava uma espiada em tomo, ficava desalentada ante a enormidade da tarefa, adiando-a para pouco mais tarde.

Quando viera morar ali, o jardim era uma área inculta, mas isto fizera parte do divertimento. Ela era uma jardineira maníaca e passava cada momento de folga ao ar livre, arrancando ervas daninhas, cavando canteiros, transportando enormes quantidades de esterco em um carrinho de mão, retirando madeira morta, plantando, podando, semeando. Agora, cinco anos mais tarde, podia chegar ali e vangloriar-se dos frutos de sua labuta, desta maneira, esquecendo Olivia, esquecendo a hora. Penelope fazia isto freqüentemente. O tempo perdera importância. Isso era uma das boas coisas sobre envelhecer: já não se ter pressa perpetuamente. Penelope cuidara de outras pessoas a vida inteira, mas agora não tinha ninguém em quem pensar, além de si própria. Havia tempo para parar e olhar e, olhando, para recordar. As perspectivas ampliavam-se, como paisagens vistas das encostas de uma montanha penosamente escalada e, tendo chegado a um ponto tão distante, parecia ridículo não parar e apreciá-las.

Sem dúvida, a idade acompanhava-se de outros tormentos. Solidão e enfermidade. As pessoas viviam falando sobre a solidão de velhice, porém, aos sessenta e quatro anos, que admitidamente não era uma idade avançada, Penelope desfrutava de sua solidão. Jamais vivera sozinha antes; a princípio estranhara, mas aos poucos fora aprendendo a aceitar o fato como uma bênção, a abandonar-se a todo tipo de coisas repreensíveis, como levantar-se quando sentia vontade, coçar-se se sentia coceira, ficar acordada até as duas da madrugada, a fim de ouvir um concerto. A comida era outra coisa. A vida inteira ela cozinhara para a família e os amigos, sendo excelente cozinheira mas, à medida que o tempo passava, foi descobrindo uma vaga tendência para refeições apressadas, nos mais chocantes estilos. Feijões em conserva, comidos frios, com uma colher, diretamente da lata. Tempero engarrafado para salada, salpicado sobre sua alface, assim como uma espécie de picles que se envergonharia de pôr em sua mesa, nos velhos tempos da Rua Oakley.

Até a doença tinha suas compensações. Desde aquele pequeno problema de um mês atrás, a que os médicos idiotas insistiam em chamar de ataque cardíaco, ela se tomara cônscia da própria mortalidade, pela primeira vez na vida. Não era algo aterrador, já que nunca temera a morte, porém aguçara suas percepções, fazendo-a recordar, agudamente, aquilo que a Igreja, denomina pecados por omissão. Não era uma mulher religiosa e não matutava em seus pecados que, segundo o ponto de vista da Igreja, deveriam ser legião, mas passou a enumerar as coisas que jamais fizera. Juntamente com fantasias razoavelmente impraticáveis, como uma viagem em carro de bois às montanhas do Butão ou cruzar o deserto da Síria para visitar as ruínas de Palmira, que agora aceitava como impossibilidades, havia o desejo anelante, quase uma compulsão, de voltar a Porthkerris.

Quarenta anos era tempo demais. Então, era o fim da guerra, ele entrara no trem com Nancy, dissera adeus ao pai e partira para Londres. No ano seguinte, o idoso homem havia falecido, e Penelope deixara Nancy aos cuidados da sogra, a fim de viajar até a Cornualha para o funeral dele. Após o funeral, ela e Doris tinham passado uns dois dias retirando de Carn Cottage os pertences do pai falecido, em seguida retomando a Londres e às pressionantes responsabilidades de ser esposa e mãe. Desde então, nunca mais voltara lá. Sentira vontade de voltar. Irei com as crianças nas férias, dizia para si mesma. Vou levá-las para brincar nas praias onde brinquei, para vagar pelas charnecas e procurar flores silvestres. Só que isso jamais aconteceu. Por que não tinha ido? O que acontecera com os anos, escoando-se velozmente daquela maneira, como água fluindo rápida por baixo de uma ponte? As oportunidades tinham surgido e desaparecido, porém ela nunca as aproveitara, principalmente por não haver tempo ou dinheiro para as passagens de trem. Vivia ocupada demais dirigindo o casarão. Ás voltas com os inquilinos, criando os filhos. Á voltas com Ambrose. Mantivera Carn Cottage durante anos recusando-se a vender a casa, recusando-se a admitir para si mesma que nunca voltaria lá. Durante anos, através de um agente ela fora alugada a uma variedade enorme de inquilinos e, por todo esse tempo, Penelope dizia para si mesma que um dia, a qualquer momento, haveria de voltar. Levaria os filhos e mostraria a eles a quadrada casa branca na colina, seu jardim secreto escondido atrás da sebe alta, com vista para a baía e para o farol.

Isto continuou até que um dia, quando estava no pior aperto financeiro, soube pelo agente que um casal idoso tinha ido ver a casa e desejava comprá-la, a fim de nela residir pelo resto da vida.

Além de idoso, o casal era muito rico. Lutando para manter a cabeça à tona d'água, com três filhos para educar e um marido instável para sustentar, ela não teve alternativa senão aceitar a polpuda oferta e, finalmente, Carn Cottage foi vendido.

Depois disso, Penelope não pensou mais em voltar à Cornualha. Ao vender a casa da Rua Oakley, fez correr alguns rumores sobre voltar a morar lá, imaginando-se em um chalé de granito com uma palmeira no jardim, mas Nancy discordara de sua idéia e, no fim das contas, talvez tivesse sido melhor assim. Além do mais, para fazer justiça a Nancy, assim que Penelope pousara os olhos em Podmore's Thatch, adivinhara que não desejaria viver em qualquer outro lugar.

Só que, ainda assim... seria agradável se, apenas uma vez, antes de finalmente espichar as canelas e morrer, pudesse voltar a Porthkerris. Ficaria hospedada na casa de Doris. Talvez Olivia a acompanhasse.

Olivia entrou com o Alphasud pelos portões abertos, dirigiu através do cascalho rangente, passou pelo vacilante galpão de madeira que cumpria seu dever como garagem e depósito de ferramentas, e rodou até os fundos de Podmore's Thatch. A porta frontal, com vidraças até a metade, dava para uma varanda ladrilhada. Ali eram pendurados casacos e capas; uma coleção de chapéus enfeitava a pontuda galhada da cabeça empalhada de um cervo, comida pelas traças, e, de um porta-guarda-chuvas em porcelana azul e branca, brotavam guarda-chuvas, bengalas e um ou dois antigos tacos de golfe. Da varanda, ela entrou diretamente para a cozinha, que borbulhava de calor e odores, entre estes, um cheiro de carne assada que dava água na boca.

- Mamma?

Não houve resposta. Olivia cruzou a cozinha e passou para a estufa, de onde imediatamente avistou a mãe, parada no extremo do gramado, como que em estado de transe, segurando uma cesta de vime vazia, e equilibrada em uma anca, a brisa leve agitando e desordenando seus cabelos.

Abriu a porta para o jardim e saiu para a claridade viva e cortante do sol.

- Olá!

Penelope sobressaltou-se ligeiramente, viu a filha e em seguida começou a cruzar o gramado, a fim de recebê-la.

- Querida!

Olivia não a vira desde que ela adoecera, e agora perscrutava intensamente, procurando algum indício de mudança e temendo encontrá-lo. Entretanto, excetuando-se o fato de sua mãe parecer um pouco mais magra, ela dava a impressão de estar em boa saúde, com as faces coradas e a costumeira vivacidade juvenil que as pernas compridas imprimiam às passadas. Desejou não ter de apagar a felicidade do rosto de sua mãe, ao contar-lhe que Cosmo estava morto. Ocorreu-lhe, então, que as pessoas permaneciam vivas, até alguém anunciar que haviam morrido. Talvez fosse uma lástima que uns contassem aos outros alguma coisa.

- Olivia, que bom ver você!

- O que fazia, parada lá adiante, com uma cesta vazia de roupa lavada?

- Nada. Apenas estava parada e olhando. Que dia maravilhoso! Fizeram boa viagem? - Olhou por sobre o ombro da filha.

- Onde está seu amigo?

- Ficou no pub, para comprar-lhe um presente.

- Ele não precisava fazer isso.

Penelope passou ao lado de Olivia e entrou, limpando maquinalmente os sapatos no capacho. Olivia a seguiu, fechando a porta atrás delas. A estufa tinha o piso forrado em pedra, era mobiliada com cadeiras de vime e banquetas, além de um monte de almofadas em cretone desbotado. Também era bastante aquecida, verdejante de folhagens e vasos de plantas, impregnada com a fragrância de frésias, das quais havia abundância, que eram a flor predileta

de Penelope.

- Ele mostrou ter consideração. - Olivia deixou sua bolsa sobre a mesa de pinho estriado. - Tenho uma coisa para dizer a você.

Penelope colocou a cesta ao lado da bolsa de Olivia e se virou para encarar a filha. Lentamente, o sorriso desapareceu; seus belos olhos escuros ficaram circunspetos, mas a voz soou firme e forte como sempre, ao falar:

- Você está branca como um fantasma, Olivia.

Olivia ganhou coragem com isto.

- Eu sei - respondeu. - Só fiquei sabendo esta manhã. Lamento, mas é uma notícia triste. Cosmo morreu.

- Cosmo. Cosmo Hamilton? Morreu?

- Antonia ligou para mim, de Ibiza.

- Cosmo... - repetiu ela, com o rosto tomado pelo mais profundo pesar e angústia. - Mal posso acreditar... aquele estimado homem!

Não chorou, como Olivia já esperava. Penelope nunca chorava. Em toda a sua vida, Olivia jamais a vira chorar. Entretanto, a cor lhe fugira das faces e, instintivamente, como que apenas aquietando um coração em disparada, ela levou a mão ao peito.

- Aquele estimado, tão estimado homem! Oh, minha querida, eu sinto tanto! Vocês significavam muito um para o outro... Sente-se bem?

- Você está bem? Eu tinha medo de lhe contar.

- Apenas fiquei chocada. Tão de repente! - Sua mão procurou uma cadeira, encontrou-a, e ela se deixou arriar lentamente no assento. Olivia alarmou-se.

- Mamma?

- Que tolice! Sinto-me apenas um tanto esquisita.

- Que tal um conhaque?

Penelope sorriu fracamente, com os olhos fechados.

- É uma brilhante idéia.

- Vou buscar.

- Está no...

- Sei onde está. - Olivia empurrou uma banqueta para diante. - Vamos, coloque seus pés aqui em cima... fique quietinha aí...não demoro.

A garrafa de conhaque ficava no aparador da sala de refeições. Olivia apanhou-a e a levou para a cozinha, depois tirou copos do armário e despejou neles duas generosas doses medicinais. Sua mão tremia, a garrafa tilintou contra o copo. Algumas gotas salpicaram a superfície da mesa, porém não importava. Nada importava, exceto mamma e seu coração frágil. Não a deixe ter outro ataque. Oh, querido Deus, não a deixe ter outro ataque! Apanhando os dois copos, ela os levou para a estufa.

- Tome, aqui está.

Colocou o copo na mão da mãe. Bebericaram em silêncio. O conhaque puro aqueceu e confortou. Após uns dois goles, Penélope esboçou um pálido sorriso.

- Sabe que uma das fragilidades da velhice está em se precisar tanto de um drinque como agora?

- Está muito enganada. Eu também precisei de um.

- Minha pobre querida... - Penelope bebeu mais um gole.

A cor retomava às suas faces. - Muito bem - disse - agora, conte-me tudo de novo.

Olivia assim fez, porém não havia muito a dizer. Quando se calou, Penelope disse, não como uma pergunta, mas ratificando um fato:

- Você o amava, não é mesmo...

- Sim, amei. Naquele ano, ele se tomou parte de mim. Ele me mudou, como nenhuma outra pessoa chegou a mudar.

- Devia ter casado com ele.

- Era o que Cosmo queria, mas eu não podia, mamma. Não podia.

- Eu gostaria que tivesse casado.

- Não fale assim. Sinto-me melhor como estou.

Penelope concordou. Compreendendo. Aceitando.

- E Antonia? O que vai ser dela? Pobre criança! Estava lá, quando isso aconteceu?

- Estava.

- O que ela fará agora? Vai ficar em Ibiza?

- Não. Ela não pode ficar lá. A casa nunca pertenceu a Cosmo. Antonia não tem onde morar. Sua mãe tomou a casar e mora no Norte. E não acho que haja muito dinheiro.

- E o que ela irá fazer?

- Está voltando para a Inglaterra. Chega semana que vem. Virá para Londres. Vai ficar comigo um dia ou dois. Disse que precisa arranjar um emprego.

- Oh, mas ela é tão jovem! Que idade tem agora?

- Dezoito anos. Não é mais uma criança.

- Era uma criança tão adorável...

- Você gostaria de revê-la?

- Mais do que tudo.

- Você... - Olivia tomou outro gole do conhaque. A bebida queimou sua garganta, esquentou-lhe o estômago, encheu-a de força e coragem. - Você a deixaria ficar aqui? Morando em sua companhia por uns dois meses?

- Por que pergunta isso?

- Por vários motivos. Porque acho que Antonia precisará de algum tempo para se refazer e decidir o que será de sua vida. E porque Nancy está em cima de mim, insistindo em que os médicos acham que você não deveria ficar sozinha. após seu ataque de coração.

Tudo foi dito francamente, da maneira como ela sempre falava com a mãe, com sinceridade e sem circunlóquios. Era uma das características que tomava tão satisfatório o relacionamento das duas, um dos motivos pelos quais, mesmo nas mais tensas circunstâncias, elas nunca brigavam.

- O que os médicos dizem é pura tolice - replicou Penelope, com vigor, pois o conhaque também a aquecera.

- Eu também acho, mas Nancy pensa diferente e, enquanto não houver alguém aqui com você, ela não vai largar o telefone. Então, compreenda, concordando em que Antonia fique, também estará me prestando um favor. Você vai gostar, não acha? Naquele mês em Ibiza, as duas não pararam de dar risadinhas juntas. Ela lhe fará companhia, e você poderá ajudá-la a atravessar esta fase difícil em sua vida.

Ainda assim, Penelope vacilava.

- Aqui não seria terrivelmente monótono para ela? Não levo uma vida muito excitante e, aos dezoito anos, ela pode ter-se transformado em uma mocinha sofisticada.

- Ela não me pareceu sofisticada. Dava a impressão de ser apenas como era antes. E, se estiver ansiosa por luzes brilhantes, discotecas e amizades, poderemos apresentá-la a Noel.

Deus nos livre, pensou Penelope, sem nada dizer, entretanto.

- Quando ela virá?

- Pretende chegar a Londres na terça-feira. Eu poderia trazê-la no próximo fim de semana.

Ficou olhando ansiosamente para a mãe, desejando que ela concordasse com o plano. Penelope, no entanto, se calara e parecia pensar em algo muito diferente, porque uma expressão divertida surgiu em seu rosto e, de repente; os olhos se encheram de riso.

- Qual é a piada?

- Subitamente, recordei aquela praia onde Antonia aprendeu a praticar wind-surf. Havia todos aqueles corpos estendidos por ali, tostados como arenques defumados, e aquelas senhoras idosas, de seios murchos e pendurados. Que espetáculo! Lembra-se de como a gente ria?

- Jamais esquecerei.

- Que tempos felizes foram aqueles!

- Sim. Os mais felizes. Ela pode vir?

- Vir? Se ela quiser, é claro que pode! Pelo tempo que desejar. Será bom para mim. Eu me sentirei jovem outra vez.

Assim, quando Hank apareceu, a crise terminara. A sugestão de Olivia fora aceita, o pesar, o choque e a tristeza - pelo momento - ficaram postos de lado. A vida continuava e, estimulada e consolada pelo conhaque e a companhia da mãe, Olivia se sentiu novamente capaz de enfrentar a situação. Quando a sineta tocou, levantou-se depressa e cruzou a cozinha, para receber Hank. Ele viera com uma sacola de papel manilha que entregou a Penelope ao lhe ser apresentado. Colocando a sacola sobre a mesa e, sendo uma daquelas pessoas a quem, de fato, vale a pena dar-se presentes, ela a abriu imediatamente. As duas garrafas foram desembrulhadas de seu papel de seda, e o prazer que ela mostrou foi gratificante.

- Château Latour, Gran Crul. Oh, que homem gentil! Não me diga que convenceu o Sr. Hodgkins, no "Sudeley Arms", a desfazer-se deles!

- Como me disse Olivia, tão logo ele soube para quem eram, mal se conteve até apanhá-los.

- Nunca soube que ele guardava coisas assim em sua adega!

As maravilhas nunca cessam. Obrigada, muitíssimo obrigada. Poderíamos bebê-los ao almoço; apenas, já abri um vinho...

- Guarde estes para uma comemoração - sugeriu ele.

- Sim, farei isso.

Penelope colocou as garrafas sobre o aparador, enquanto Hank tirava o sobretudo. Olivia o pendurou na varanda, ao lado de outros agasalhos surrados, e então passaram todos para a sala de visitas.

Não era um aposento amplo, de maneira que Olivia sempre se surpreendia, ao ver a quantidade de pertences, os mais pessoais e preciosos, que sua mãe conseguira reunir ali dentro. Antigos sofás e poltronas favoritos, forrados em pano de colchão, cobertos com vistosas colchas indianas e salpicados de almofadas em tapeçaria. A secretária, aberta como sempre, apinhada de contas e cartas antigas. A mesa de costura, abajures e tapetes inestimáveis, estendidos sobre o carpete de crina. Havia livros e quadros por toda parte, ânforas de porcelana com motivos decorativos e cheias de flores secas. Fotos, bibelôs e pequenos objetos de prata cobriam cada superfície horizontal, além das revistas, jornais, catálogos de sementes e uma peça embolada de tricô por terminar, espalhados ao acaso. Todos os entusiasmos da ocupada vida daquela mulher estavam encerrados dentro de suas quatro paredes. Entretanto, como costumava acontecer sempre que uma pessoa o via pela primeira vez, a atenção de Hank foi imediatamente atraída para o quadro que pendia acima da enorme lareira aberta.

Deveria medir um metro e meio por um e dominava toda a sala. “Os catadores de conchas”. Olivia sabia que jamais se cansaria do quadro, mesmo tendo convivido com ele a maior parte de sua vida. O impacto atingia a pessoa como uma rajada de ar frio e salitrado. O céu ventoso, com nuvens que corriam; o mar encapelando-se em ondas coroadas de espuma alva. que se vinham quebrar com estrondo sobre a praia. Os rosas e cinzas sutis da areia; poças rasas deixadas pela maré alta, cintilando com translúcidos reflexos da luz do sol. E as figuras das três crianças, agrupadas a um canto da tela: duas meninas com chapéus de palha, os vestidos apanhados para cima, e um menino. Todos de pernas bronzeadas, descalços e absorvidos pelo conteúdo de um pequeno balde escarlate.

- Oh! - Por um momento, ele parecia não encontrar palavras. - Que grande quadro!

- Também acha? - Penelope sorriu radiosa para ele, com seu costumeiro e orgulhoso prazer. - Meu bem mais precioso.

- Pelo amor de Deus... - Ele procurou a assinatura. – Quem o pintou?

- Meu pai. Lawrence Stern.

- Lawrence Stern era seu pai? Olívia, você não me contou isso!

- Preferi que minha mãe lhe contasse. Ela é muito mais entendida nisso do que eu.

- Eu pensei que ele fosse... entendam... um pré-rafaelita.

Penelope assentiu.

- E foi.

- Isto aqui é mais a obra de um impressionista.

- Eu sei. É interessante, não?

- Quando foi pintado?

- Por volta de 1927. Seu estúdio ficava na praia do norte, em Porthkerris, e pintou o quadro da janela desse estúdio. Tem o nome de “Os catadores de conchas”, e eu sou a menininha da esquerda.

- E por que o estilo dele é tão diferente?

Penelope deu de ombros.

- Por vários motivos. Qualquer pintor precisa mudar, passar por fases. Caso contrário, perderia todo o valor. Além do mais, a essa altura ele começara a ter artrite nas mãos e não era mais fisicamente capaz de produzir aquele trabalho fino, detalhado e meticuloso.

- Que idade tinha então?

- Em 1927? Imagino que sessenta e dois. Foi pai muito idoso. Só se casou aos cinqüenta e cinco anos.

- A senhora possui outras pinturas dele?

Hank olhou em volta, examinando as paredes tomadas por quadros, como em uma exposição.

- Aqui, não - respondeu Penelope. - Em sua maioria, estes foram presentes de colegas seus. Tenho dois painéis inacabados, porém estão pendurados no patamar da escada. Foram o último trabalho dele, mas então ficara tão atacado pela artrite, que mal podia segurar o pincel. Por isso é que nunca os terminou.

- Artrite? Que lástima!

- Sim. Foi muito triste. Entretanto, ele sabia bem como enfrentar isso, de uma maneira bastante filosófica. Costumava dizer: "Em compensação, diverti-me um bocado" e não pensava mais naquilo. De qualquer modo, acredito que tenha sido muito frustrante para ele. Muito depois de deixar de pintar, ainda mantinha o estúdio. Quando ficava deprimido ou tinha o que chamava de um cão negro no ombro, voltava ao estúdio e ficava lá, na janela, contemplando a praia, e o mar.

- Você se lembra dele? -perguntou Hank a Olivia.

Ela negou com a cabeça.

- Não. Quando nasci, meu avô já era falecido. Entretanto, minha irmã Nancy nasceu na casa dele, em Porthkerris.

- Ainda possuem a casa de lá?

- Não - disse Penelope com tristeza. – Finalmente, teve que ser vendida.

- A senhora nunca voltou lá?

- Há quarenta anos que não vou lá. Curioso, ainda esta manhã eu pensava que devia voltar, ver tudo aquilo novamente. – Ela olhou para Olivia. - Por que não vai comigo? Apenas por uma semana. Poderíamos ficar em casa de Doris.

-Oh... - Apanhada desprevenida, Olivia hesitou. – Eu... eu não sei...

- Poderíamos ir em qualquer época... - Penelope mordeu o lábio. - Ora, que tolice a minha! É claro que você não pode tomar decisões de um momento para o outro.

- Oh, mamma, eu sinto muito, mas será um pouco difícil. Só terei férias no verão e estou querendo ir à Grécia com amigos. Eles têm uma vila e um iate.

Não era a verdade exata, já que os planos ainda estavam em andamento, porém as

férias eram demasiado preciosas, e ela ansiava pelo sol. No entanto, mal as palavras lhe saíram da boca, sentiu-se tomada de culpa, pois notou o momentâneo desapontamento que turvou o rosto da mãe, embora prontamente substituído por um sorriso de compreensão.

- É claro. Eu devia ter pensado nisso. Enfim, foi apenas uma idéia que tive. Afinal, para ir lá não preciso de companhia.

- É uma longa viagem de carro para você ir sozinha.

- Posso perfeitamente ir de trem.

- Convide Lalla Friedmarm. Ela adoraria uma viagem à Cornualha.

- Lalla. Nem me lembrei dela! Bem, veremos... – Mudando de assunto, Penelope se virou para Hank. - Ora, aqui estamos nós tagarelando, e este pobre homem nem mesmo bebeu alguma coisa. O que desejaria?

Foi um almoço demorado, ocioso, delicioso. Enquanto consumiam o tenro lombo róseo e assado, que Hank se ofereceu gentilmente para trinchar, as verduras frescas e suculentas, o caldo de raiz-forte, o pudim Yorkshire e o espesso molho ferrugem, Penelope o bombardeou de perguntas. Sobre a América, sobre seu lar, esposa e filhos. Olivia bem sabia, enquanto contornava a mesa servindo vinho, que não era por sentir que devia ser polida e manter uma conversa, mas porque sentia legítimo interesse. A paixão de Penelope eram as pessoas, em particular quando vindas de terras estrangeiras, e ainda mais particularmente se tivessem personalidade e fossem fascinantes.

- Você mora em Dalton, Georgia? Não posso imaginar como seja Dalton, Geórgia. Vive em um apartamento ou tem uma casa com jardim?

- Tenho uma casa e também um jardim, mas lá o chamamos de pátio.

- Imagino que, em semelhante clima, consigam plantar praticamente tudo, não?

- Lamento, mas não sei muito a respeito. Emprego um paisagista, que mantém o lugar em ordem. Tenho de admitir que nem mesmo aparo a minha grama.

- Faz sentido. Não tem de que se envergonhar.

- E a senhora?

- Mamma nunca precisou de ajudantes - disse Olivia. - Tudo que você vê, além da janela, é criação exclusiva dela.

Hank estava incrédulo.

- Não posso acreditar! Em primeiro lugar, é trabalho demais!

Penelope riu.

- Não devia ficar tão espantado. Para mim não é uma tarefa enfadonha, mas um tremendo prazer. Por outro lado, a gente não pode continuar indefinidamente e, portanto, na manhã de segunda-feira, rufem os tambores e soem os clarins, porque começo a empregar um jardineiro.

Olivia ficou de queixo caído.

- É mesmo? De verdade?

- Eu lhe disse que ia procurar alguém por aí.

- Sim, mas não acreditei que fosse mesmo.

- Há uma boa firma em Pudley. Chama-se "Autogarden", que não me parece um nome muito imaginativo, porém não vem ao caso. Eles me mandarão um rapaz, três dias por semana. Naturalmente, para o trabalho pesado de cavar a terra, mas se ele for jeitoso, conseguirei que faça também outras coisas para mim, como serrar toros e empilhar carvão. De qualquer modo, ainda verei como será. Se me mandarem um sujeito preguiçoso e muito caro, posso desfazer o acordo, sem perda de tempo. Muito bem, Hank, sirva-se de mais carne.

O lauto almoço consumiu a maior parte da tarde. Quando finalmente se levantaram da mesa, eram quase quatro horas. Olívia ofereceu-se para lavar os pratos, mas sua mãe não permitiu e, em vez disso, todos vestiram os casacos e saíram ao jardim, para um pouco de ar fresco. Perambularam de um lado para outro, inspecionando coisas. Hank ajudou Penelope a atar um galho de clematite, para que crescesse ereto, Olivia encontrou uma moita de acônitos, debaixo de uma das macieiras, e colheu para si mesma um pequeno punhado, que levaria para Londres.

Chegado o momento das despedidas, Hank beijou Penelope.

- Não posso agradecer-lhe o suficiente. Foi tudo maravilhoso.

- Você precisa voltar aqui.

- Talvez. Um dia, quem sabe?

- Quando volta à América?

- Amanhã cedo.

- Uma visita muito rápida. Que pena! Enfim, tive um grande prazer em conhecê-lo.

- Eu também. Foi uma satisfação conhecê-la.

- Ele caminhou para o carro e manteve a porta aberta, a fim de que Olivia entrasse.

- Adeus, mamma.

- Oh, minha querida! - As duas abraçaram-se. - Sinto muito sobre Cosmo, mas não deve ficar triste. Seja agradecida por ter passado aqueles meses com ele. Não fique olhando para trás. Não se lamente.

Olivia forçou um sorriso.

- Certo. Não me lamento.

- E, a menos que avise o contrário, estarei à sua espera no próximo fim de semana. Com Antonia.

- Eu ligo para você.

- Adeus, minha querida.

Eles partiram. Ela se fora. Olivia, em seu belo casaco castanho, com a gola de pele erguida para aquecer as orelhas, e o pequeno ramo de acônito, apertado na mão. Como uma criança. Penelope entristeceu-se por ela. Seus filhos nunca deixavam de ser crianças. Mesmo tendo ela trinta e oito anos e sendo uma vitoriosa profissional, suporta-se tudo o que fere, mas é insuportável ver-se um filho sofrendo. Seu coração foi com Olivia, rodando para Londres. Seu corpo, no entanto, agora cansado, exaurido pelas atividades do dia, conduziu-a lentamente para dentro de casa.

Na manhã seguinte, Penelope continuou sentindo-se cansada e indolente. Acordou deprimida, sem saber o motivo, mas então recordou Cosmo. Chovia e, como não esperasse visitantes para o almoço domingueiro, ficou na cama até dez e meia, quando então se levantou, vestiu-se e foi até a aldeia recolher seus jornais do domingo. Os sinos da igreja badalavam, e um punhado de gente passava sob o portão coberto que dava para o cemitério, encaminhando-se para o culto matinal. Não pela primeira vez, Penelope desejou ser de fato religiosa. Acreditava em Deus, é claro, comparecendo à igreja no Natal e na Páscoa, porque, sem algo em que acreditar, a vida seria intolerável. Agora, no entanto, vendo a pequena procissão dos moradores da aldeia enchendo o caminho de cascalho por entre as vetustas e tombadas lajes do cemitério, pensou que seria bom juntar-se a eles, com a certeza de encontrar conforto. Não fez isso, entretanto. Jamais fizera efeito antes e era improvável que desse certo agora. Deus não tinha culpa; era algo que tinha a ver apenas com sua própria atitude mental.

Novamente em casa, acendeu a lareira e leu The Observer. Em seguida, fez uma pequena refeição de carne assada fria, uma maçã e um copo de vinho. Comeu na mesa da cozinha, e depois retomou à sala de visitas, onde tirou uma soneca. Ao despertar, viu que a chuva cessara. Levantou-se do sofá, calçou as botas, vestiu o blusão velho e saiu para o jardim. Havia podado suas roseiras no outono e as adubara com composto, porém ainda havia alguns galhos mortos em tomo, de maneira que ela se enfiou no emaranhado de espinhos e começou a trabalhar.

Como sempre, ao ficar assim entretida, ela perdeu qualquer noção de tempo, a mente ocupada apenas em suas roseiras. Então, ao endireitar o corpo para amenizar as costas doloridas, assustou-se ao ver duas figuras que cruzavam o gramado, vindo em sua direção. Afinal, não ouvira a chegada de nenhum carro e tampouco esperava visitantes. Uma jovem e um rapaz. Um rapaz alto e excepcionalmente atraente, de cabelos escuros e olhos azuis, as mãos enfiadas nos bolsos. Ambrose. Penelope sentiu o coração falhar uma batida e disse a si mesma para não ser tola, porque não era Ambrose que ressurgia do passado e vinha ao seu encontro, mas sim seu filho Noel. Era tão extraordinária a semelhança dele com o pai, que ao surgir inesperadamente, como agora, sempre a sobressaltava.

Noel. E, é claro, com uma jovem.

Penelope procurou compor-se, forçou um sorriso no rosto, deixou as tesouras de podar caírem no bolso, descalçou as luvas e esgueirou-se para fora do canteiro das roseiras.

- Olá, mãe.

Chegando ao lado dela, ainda com as mãos nos bolsos, ele se inclinou para dar-lhe um beijo leve na face.

- Que surpresa! De onde foi que brotou?

- Estamos passando o fim de semana em Wiltshire e tive a idéia de virmos ver como está indo. - Wiltshire? Noel se deslocara de Wiltshire? Tinha-se desviado quilômetros e quilômetros de seu caminho! - Esta é Amabel.

- Como vai?

- Olá - disse Amabel, sem o menor gesto para apertar-lhe a mão.

Era miúda como uma criança de cabelos emaranhados e redondos olhos verde-pálidos, como duas groselhas. Vestia um enorme casaco de tweed que lhe chegava aos tornozelos e que a Penelope pareceu familiar. Após um segundo olhar, identificou-o como um antigo sobretudo de Lawrence Stern, misteriosamente desaparecido durante a mudança da Rua Oakley.

Ela se virou para Noel.

- Está passando o fim de semana em Wiltshire? Em casa de quem?

- De algumas pessoas da família Early, amigos de Amabel. Saímos depois do almoço e, como ainda não a vi desde que deixou o hospital, decidi passar por aqui, saber como tem andado. - Mostrou a ela seu sorriso mais cativante. - Devo dizer que você me parece fantástica. Pensei que a encontraria muito pálida e abatida, com os pés estirados no sofá.

A menção ao hospital irritou Penelope.

- Foi apenas um susto idiota. Nada há de errado comigo. Nancy é que, como sempre, transforma um grão de areia em montanha. Sabe que detesto essas coisas! - Então, sentiu remorsos, porque era realmente muita gentileza dele rodar toda aquela distância apenas para vê-la. - Foi muita consideração sua ficar preocupado, mas estou muitíssimo bem. E é ótimo ver os dois. Que horas são? Céus, quase quatro e meia! Gostariam de uma xícara de chá? Podemos entrar e tomar uma. Leve Amabel, Noel. Há um bom fogo na sala de visitas. Irei ao encontro de vocês em um minuto, assim que tirar minhas botas.

Ele assim fez, conduzindo Amabel pelo gramado até a porta da estufa. Penelope observou-os enquanto iam e depois entrou também, pelo depósito de jardinagem, onde trocou as botas pelos sapatos e pendurou o casaco. Depois subiu para o andar de cima, através dos aposentos vazios até seu quarto. Lá, ela lavou as mãos e ajeitou o cabelo. Desceu pela outra escada, foi à cozinha, colocou a chaleira no fogo e arrumou uma bandeja. Encontrou uma sobra de bolo de frutas em uma lata. Noel adorava bolo de frutas e, quanto àquela jovem, dava a impressão de precisar alimentar-se. Penélope perguntou-se se não seria anoréxica. Não era de admirar. Seu filho conseguia as namoradas mais estranhas do mundo.

Preparou o chá e carregou a bandeja para a sala de visitas, onde Amabel, já tendo tirado o sobretudo de Lawrence, encolhera-se como um filhote de gato no canto do sofá. Noel colocava toras no fogo agonizante. Penelope depositou a bandeja na mesa, e Amabel exclamou:

- Que casa formidável!

Penelope tentou ser cordial com ela.

- Sim. É aconchegante, não?

Os olhos de groselha estavam pousados em “Os catadores de conchas”.

- Que quadro formidável!

- Todo mundo acha.

- É a Cornualha?

- Exatamente. Porthkerris.

- Foi o que pensei. Já estive lá, em um feriado, mas choveu o tempo todo.

- Que pena!

Penelope não conseguia pensar em mais nada para dizer, de maneira que encheu o silêncio seguinte com a atividade de servir o chá. Feito isto, distribuídas as xícaras e o bolo de frutas, ela reiniciou a conversa.

- Bem, agora falem-me sobre o fim de semana. Foi divertido?

           Sim, responderam eles, havia sido divertido. Um grupo de dez convidados na casa, um point-to-point no sábado, então jantar em casa de outras pessoas, depois uma dança, e só foram dormir às quatro da madrugada.

Para Penelope, era um programa inexpressivo e terrível, mas comentou:

- Muito interessante.

Aquilo parecera esgotar as notícias que os dois tinham para dar, de maneira que ela começou a dar as suas, contando que Olivia a tinha visitado, com um amigo americano. Amabel conteve um bocejo; Noel, ocupando uma banqueta baixa ao lado do fogo, com a xícara de chá no chão, ao seu lado, e as pernas compridas cruzadas nos tornozelos, ouvia polidamente, mas Penelope sentiu que não prestava muita atenção. Quis dar a notícia da morte de Cosmo, porém achou melhor calar-se. Ia contar que Antonia chegaria e viria ficar algum tempo em Podmore's Thatch, quando também decidiu o contrário. Noel não conhecera Cosmo, não sentiria grande interesse pelos assuntos da família dele. Na verdade, não sentia muito interesse por outra coisa além de si mesmo, pois assemelhava-se ao pai não apenas no físico, mas também no caráter.

Ela ia interrogá-lo sobre seu trabalho e como estava indo. Chegou a abrir a boca, porém Noel falou primeiro.

- Por falar na Cornualha, mãe... (tinham falado na Cornualha?)... sabia que uma das telas de seu pai será leiloada na Boothby's, esta semana? As aguadeiras. Ouvi dizer que deve valer perto de duzentas mil. Seria interessante ver se é mesmo.

- Sim, eu sabia. Olivia falou nisso, durante o almoço de ontem.

- Você devia ir a Londres, assistir ao leilão. Sem dúvida, será divertido.

- Você irá?

- Só se puder sair do escritório.

- É extraordinário como essas pinturas antigas ficaram em moda. E os preços que pagam por elas! O pobre papai se retorceria na sepultura, se soubesse o quanto estão valendo.

- A casa Boothby's deve ter feito um grande negócio com elas.

- Você viu o anúncio que puseram no The Sunday Times?

- Ainda não li The Times.

O jornal jazia dobrado no assento de sua poltrona. Noel apanhou-o, abriu-o, encontrou o que procurava, dobrou as páginas para trás e o estendeu para ela. Penelope viu, no canto inferior, uma das publicidades costumeiras inseridas pela Boothby's, os negociantes de arte.

"Uma obra secundária ou uma grande descoberta?"

Os olhos dela se moveram para a pequena ilustração. Aparentemente, dois pequenos óleos tinham chegado ao mercado, ambos com temas bastante semelhantes. Um alcançara trezentas e quarenta libras, o outro, mais de dezesseis mil.

Percebendo os olhos do filho fixos nela começou a ler.

"As vendas da Boothby's em muito contribuíram para inspirar a recente reavaliação deste negligenciado período vitoriano. Os clientes em potencial poderão dispor de nossa experiência e orientação. Se você possui alguma obra desse período e gostaria que fosse avaliada, telefone para nosso perito, Sr. Roy Brookner, o qual terá satisfação em viajar e oferecer orientação, sem qualquer despesa de sua parte”.

Havia o endereço, o número do telefone, e era tudo. Penélope dobrou o jornal e o deixou de lado. Noel esperava. Erguendo a cabeça, ela olhou para o filho.

- Por que quis que eu lesse isto?

- Ora, pensei que ficaria interessada.

- Em mandar avaliar meus quadros?

- Nem todos. Apenas os Lawrence Stern.

- Para segurá-los? - perguntou ela, tranqüilamente.

- Se você quiser. Ignoro quanto vale o seguro no momento.

Enfim, não esqueça, o mercado atualmente está no auge. Há dias,

um Millais alcançou oitocentas mil libras.

- Não tenho um Millais.

- Você... não pensaria em vender?

- Vender? Os quadros de meu pai?

- Não “Os catadores de conchas”, é claro. Que me diz dos painéis?

- Estão inacabados. O mais provável é que nada valham.

- Isso é o que você pensa, daí o motivo de mandar avaliá-los. Agora! Quando souber quanto valem, talvez até mude de idéia. Afinal de contas, pendurados naquele patamar, ninguém os vê, e você provavelmente nem mesmo olha para eles. Não sentiria a menor falta dos painéis.

- Como pode saber se vou sentir falta deles ou não?

Noel deu de ombros.

- Apenas imaginei. Afinal, não são dos melhores, e o tema escolhido é repulsivo.

- Se é isto o que pensa dos painéis, ainda bem que não tem mais de conviver com eles. - Penelope se virou para Amabel. - Mais uma xícara de chá, querida?

Noel sabia que, quando sua mãe se mostrava fria e dignificada, era por estar prestes a perder o controle. Continuar a pressioná-la sobre as pinturas seria mais prejudicial do que vantajoso, além de reforçar-lhe a teimosia. Pelo menos, trouxera o assunto à baila, a idéia em sua mente. Quando ela ficasse a sós, talvez mudasse de idéia, concordando em que ele tinha razão. Assim pensando, Noel exibiu seu mais sedutor sorriso e, em desconcertante reviravolta, aceitou a derrota.

- Tudo bem, você ganhou! Não falemos mais nisto.

Largando a xícara, ergueu o punho da manga para ver as horas.

- Estão com pressa? - perguntou sua mãe.

- Não podemos demorar muito. É um longo trajeto até Londres, e o trânsito estará infernal. Mãe, sabe se minhas raquetes de squash estão lá em cima, no meu quarto? Combinei uma partida, mas não as encontro em lugar algum do apartamento.

- Não sei - respondeu ela, aliviada pela mudança do tema.

O pequeno quarto dele, em Podmore's Thatch, estava entulhado com suas caixas, malas e vários artigos esportivos, mas, como Penélope ia lá o menos possível, não tinha idéia do que jazia naquele amontoado de coisas. - Por que não sobe e dá uma espiada?

- É o que farei. - Descruzando as pernas compridas, ele se levantou. - Será apenas um momento.

Penelope ouviu os passos dele subindo a escada. Amabel continuou onde estava, contendo outro bocejo e parecendo uma desconsolada sereia.

- Conhece Noel há muito tempo? - perguntou Penelope, odiando-se por soar tão fria e formal.

- Faz uns três meses.

- Você mora em Londres?

- Meus pais vivem em Leicestershire, mas eu tenho um apartamento em Londres.

- Tem algum emprego?

- Só quando preciso.

- Aceitaria mais uma xícara de chá?

- Não. Prefiro outro pedaço de bolo.

Penelope serviu-lhe uma fatia. Amabel comeu o bolo. Penelope gostaria de saber se, apanhando um jornal para ler, aquela jovem daria por isso. Pensou no quanto ela poderia ser simpática, mas como era desabonador em sua educação nunca lhe terem ensinado a comer com a boca fechada.

Por fim, derrotada, desistiu de tentar uma conversa, começou a recolher os apetrechos do chá e os levou para a cozinha. Amabel ficou na sala, dando a impressão de prestes a pegar no sono. Penelope terminou de lavar as xícaras e pires, sem que Noel reaparecesse. Presumivelmente, ainda procurava a esquiva raquete. Pensando em poder ajudá-lo, ela subiu pela escada da cozinha e seguiu através dos quartos, até o final da casa. A porta para o quarto dele estava aberta, porém ele não se encontrava lá. Perplexa, ela vacilou, mas então ouviu passos cautelosos, rangendo acima de sua cabeça. O sótão? O que estaria ele fazendo no sótão?

Olhou para cima. A antiga escada de madeira levava à abertura quadrada no teto.

- Noel?

Ele surgiu um momento depois, primeiro as pernas compridas, depois o restante do corpo, esgueirando-se do sótão e descendo a escada.

- O que, francamente, fazia lá em cima?

Ele chegou ao seu lado. Havia um tufo de fios em seu blusão e um resto de teia de aranha nos cabelos.

- Não pude encontrar a raquete no quarto - explicou. - Imaginei que poderia estar no sótão.

- É claro que não está no sótão. Lá nada mais existe além de velharias da Rua Oakley.

Ele riu, limpando-se da poeira.

- Está absolutamente certa!

- Talvez não tenha procurado direito. - Ela entrou no atravancado quartinho, afastou alguns casacos e um par de protetores de pernas para críquete. Imediatamente encontrou a raquete de squash, escondida sob eles. - Aqui está, seu tolo! Você sempre foi imprestável para achar coisas!

- Oh. Droga! Sinto muito. De qualquer modo, obrigado. Noel pegou a raquete. Penelope observou-lhe o rosto, mas nada havia de desleal em sua expressão.

- Amabel está usando o sobretudo de meu pai - disse. - Quando foi que você o apanhou?

Nem isso o deixou perturbado.

- Surrupiei-o durante a grande mudança. Você nunca o usou, e ele é um agasalho formidável.

- Devia ter-me pedido.

- Eu sei. Quer que o devolva?     

- Claro que não. Pode ficar com ele. - Penelope pensou em Amabel, envolta naquele surrado luxo. Ela e, sem dúvida, outras incontáveis garotas. - Tenho certeza de que dará a ele um uso melhor do que eu.

Encontraram Amabel em sono profundo. Noel acordou-a, ela custou a levantar-se, bocejando e de olhos Inchados. Ele a ajudou a enfiar-se no sobretudo, deu um beijo de despedida na mãe e se foi com a namorada. Após vê-los partir, Penelope entrou em casa. Fechando a porta, ficou parada na cozinha, cheia de inquietude. O que ele esperava encontrar no sótão? Sabia perfeitamente que a raquete não estava lá; portanto, o que procurava?

Voltando à sala de visitas, colocou uma tora no fogo. O Sunday Times continuava no chão, onde o deixara cair. Agachando-se, recolheu-o e tomou a ler o anúncio da Boothby's. Depois foi até sua secretária, encontrou uma tesoura e recortou cuidadosamente o anúncio, que guardou em uma das pequeninas gavetas do móvel.

           No meio da noite, ela despertou com um terrível sobressalto. Estava ventando; era uma noite muito escura e chovia novamente. Suas janelas chocalhavam, e gotas de chuva batiam contra as vidraças. "Fui à Cornualha, mas choveu o tempo todo," havia dito Amabel. Porthkerris. Ela recordava a chuva, empurrada do Atlântico por rajadas de vento. Recordava seu quarto em Carn Cottage, deitada na escuridão, como estava agora, com o ruído das ondas quebrando na praia muito abaixo, as cortinas tremulando nas janelas abertas, e os fachos de luz do farol abrindo caminho através das paredes pintadas de branco. Recordava o jardim, perfumado de escalônias, a alameda que subia para a charneca, a visão lá do alto a baía ampla, o azul brilhante do mar. O mar era um dos motivos que a faziam ter tanta vontade de voltar. Gloucestershire era um belo lugar, porém não tinha mar, e ela ansiava por mar. O passado é passado, porém a viagem podia ser feita. Nada havia que a impedisse de ir, sozinha ou acompanhada, pouco importava. Antes que fosse tarde demais, tomaria a estrada para o oeste, rumando até aquela garra áspera da Inglaterra onde, certa vez, ela havia vivido, tinha amado e fora jovem.

 

                                   LAWRENCE

Ela estava com dezenove anos. Entre boletins noticiosos ouvidos com ansiedade, o rádio transmitia músicas, como Deep Purple e These Foolish Things, assim como melodias do último filme de Fred Astaire e Ginger Rogers. Durante todo o verão, a cidade fervilhara de movimentação. Lojas exibiam quantidades de baldes, pás e bolas para a praia, estas desprendendo cheiro de borracha ao sol quente, elegantes mulheres de férias hospedavam-se no Castle Hotel, escandalizando os moradores ao caminhar pelas ruas em conjuntos praianos e ao tomar banho de sol em ousados maiôs de duas peças. A maioria dos veranistas já se fora, porém ainda havia alguns nas areias, as tendas e compartimentos para banho ainda não haviam sido desmontados e postos ao lado. Caminhando à beira da água, Penelope viu as crianças, vigiadas por babás bem uniformizadas que se sentavam em espreguiçadeiras e faziam tricô, enquanto isso mantendo os olhos vigilantes nos pequeninos que faziam castelos de areia ou corriam, gritando esganiçadamente por entre as ondas mais rasas.

Era uma quente e ensolarada manhã de domingo, também ótima para se ficar em casa. Chamara Sophie para acompanhá-la, mas Sophie preferira ficar na cozinha, preparando o almoço, e Penélope a deixara cortando vegetais para um cassoulet de frango. E papai, após o desjejum, enfiara na cabeça seu velho chapéu de abas largas e partira para o estúdio. Penelope iria buscá-lo e, juntos, subiriam a colina até Carn Cottage, onde a tradicional refeição do meio-dia os esperava.

- Não o deixe entrar no pub, minha querida. Hoje, não. Traga-o diretamente para casa.

Ela prometera. Quando se sentassem para saborear o cassoulet de Sophie, tudo estaria terminado. A essa altura, eles ficariam sabendo.

Havia caminhado até o final da praia - até as rochas e o trampolim. Subindo o lance de degraus de concreto, ela saiu em uma estreita alameda lajeada, que serpenteava encosta abaixo por entre as casas irregulares, caiadas de branco. Havia muitos gatos ali, disputando restos de peixe nas sarjetas, enquanto as gaivotas revoluteavam no alto ou instalavam-se nos tetos e chaminés, supervisionando o mundo com frios olhos amarelos e grasnidos desafiantes, por nada em particular.

No pé da colina ficava a igreja. Os sinos tocavam para o culto matinal, e havia muito mais gente do que de costume, todos caminhando reunidos pela alameda de cascalho e desaparecendo na penumbra além das grandes portas de carvalho. Homens de temos escuros e mulheres piedosamente enchapeladas, com expressões sérias e passadas solenes, provinham de todos os cantos da pequena cidade. Não havia muitos sorrisos e ninguém dizia bom-dia. Faltavam cinco minutos para as onze. No porto, a maré vazante estava em meio. Barcos de pesca, atados à muralha, ficavam inclinados e recostados em pilares de madeira. Estava tudo estranhamente deserto. Apenas um grupo de crianças brincava com uma velha caixa de sardinhas e, do outro lado do porto, um homem trabalhava em seu barco. O ruído das marteladas ecoava através das areias desertas.

O relógio da igreja começou a bater as horas. Encarapitadas no telhado da torre, as gaivotas alçaram vôo em uma nuvem de asas brancas, os grasnidos elevados em furiosas reclamações, ao serem perturbadas pelo sino reverberante. Ela seguiu em frente, caminhando devagar, as mãos enfiadas nos bolsos do cardigã; súbitas e breves rajadas de vento agitavam seu cabelo escuro, em madeixas sobre as faces. Imediatamente, ficou cônscia de sua solidão. Ninguém mais estava à vista e, quando se virou do porto, começando a subir uma rua íngreme, ouviu através de janelas abertas as badaladas finais do Big Ben. Ouviu a voz começando a falar. Imaginou famílias no interior das casas, reunidas junto ao rádio, em íntima proximidade, uns extraindo conforto dos outros.

Agora, estava realmente em Doumalong, a parte velha da cidade, abrindo caminho através do desconcertante labirinto de vielas lajeadas e praças inesperadas, em direção às praias de mar aberto da Praia do Norte. Podia ouvir o ronco das ondas batendo na praia e sentiu o vento. Ele lhe colou a saia do vestido de algodão nas pernas e desmanchou seus cabelos. Dobrando a esquina, Penelope avistou a praia. Viu a lojinha da Sra. Thomas, aberta por uma hora para a venda de jornais. As estantes ao lado da porta estavam empilhadas deles, as manchetes altas e sombrias, como lousas de sepultura. Havia algumas moedas em seu bolso. Com o estômago tomado de apreensão e vazio, ela entrou e comprou, por dois pence, uma barra de chocolate de hortelã.

- Saiu para dar um passeio, meu bem? - perguntou a Sra. Thomas.

- Sim. Vou buscar papai. Está em seu estúdio.

- É o melhor lugar para se ficar, em semelhante manhã. Fora de casa.

- Também acho.

- Bem, os balões subiram ao ar. - Ela estendeu a barra de chocolate por sobre o balcão. - Diz o Sr. Chamberlain que estamos em guerra com esses malditos alemães. - A Sra. Thomas tinha sessenta anos. Já havia atravessado uma guerra devastadora, como o pai de Penelope e milhões de outras pessoas inocentes, por toda a Europa. O marido da Sra. Thomas tinha sido morto em 1916, e seu filho Stephen já fora convocado como soldado raso, na Infantaria Ligeira do Duque da Cornualha. - Acho que tinha de acontecer. Não se podia continuar sem fazer nada. Não com aqueles pobres poloneses morrendo feito moscas!

- Isso mesmo - disse Penelope, apanhando o chocolate.

- Bem, dê lembranças a seu pai, querida. Ele está bem?

- Sim, está bem.

- Adeus, então.

- Adeus.

Novamente na rua, ela sentiu frio. O vento agora estava mais a Forte, fazendo com que seu vestido fino e o cardigã parecessem inadequados. Desembrulhou o chocolate e começou a comê-lo. Guerra. Ergueu os olhos para o céu. como se esperando o aparecimento de hordas de bombardeiros aqui e acolá, nas formações que vira em noticiários cinematográficos, onda após onda deles, devastando a Polônia. Entretanto, viu apenas nuvens, sopradas pelo vento.

Guerra. Era uma palavra estranha. Como morte. Quanto mais se a pronunciava, mais pensava nela e mais incompreensível se tornava. Mastigando o chocolate, ela continuou avançando, agora descendo a estreita viela lajeada que conduzia ao estúdio de Lawrence Stern, a fim de encontrá-lo e dizer-lhe que estava na hora do almoço, que não devia parar no pub para uma cerveja e que a guerra, finalmente, havia começado.

O estúdio de Lawrence Stern era um antigo depósito de redes, com teto alto e deixando passar o vento encanado. tendo uma grande janela ao norte, que dava para a praia e o mar. Havia muito, ele instalara ali uma grande estufa bojuda, com uma chaminé que se elevava até o teto. No entanto, mesmo quando funcionava a todo vapor, ela nunca conseguia aquecer o lugar.

Como não estava aquecido agora.

Fazia mais de dez anos que Lawrence Stern deixara de trabalhar, mas as ferramentas de seu ofício continuavam ali, como se a qualquer momento ele pudesse pegá-las e recomeçar a pintar. Os cavaletes e telas, os tubos de tinta usados a meio, as paletas incrustadas de tinta seca. A cadeira para o modelo continuava sobre seu tablado encortinado, e uma mesa desconjuntada suportava a fôrma em gesso de uma cabeça de homem e uma pilha de exemplares antigos de The Studio. O odor era profundamente nostálgico, o ar ainda retinha o cheiro de tinta a óleo e terebintina misturado ao vento salitrado que entrava pela janela aberta.

Empilhados a um canto. ela viu as pranchas para o surfe no verão e uma toalha de banho listrada, esquecida e atravessada sobre uma cadeira. Perguntou-se se haveria nutro verão; se aquelas coisas tornariam a ser usadas.

Apanhada pela ventania, a porta bateu, fechando-se atrás dela. Ele virou a cabeça. Estava sentado de lado, no banco-janela, as pernas compridas cruzadas, um cotovelo encostado no peitoril. Estivera olhando os pássaros marinhos, as nuvens, o mar azul-turquesa,

as ondas que rebentavam incessantemente.

- Papai...

Ele estava com setenta e quatro anos. Alto e distinto, de rosto muito bronzeado e profundamente sulcado, um par de olhos muito azuis e brilhantes. Suas roupas tinham um toque de ousadia e juventude. Calças de lona vermelha e desbotada, um velho blusão de veludo cotelê verde e, em lugar de gravata, um lenço pintalgado, amarrado à garganta. Somente os cabelos lhe traíam a idade, brancos como a neve e antiquadamente longos. Os cabelos e as mãos, contorcidas e invalidadas pela artrite que, tão tragicamente, impusera um final à sua carreira.

- Papai!

O olhar dele era sombrio, como se não a reconhecesse, como se ela fosse uma estranha, um mensageiro portador de terríveis novas, o que, de fato, era. Então, de repente, sorriu e ergueu um braço, em um gesto de familiar e amorosa acolhida.

- Minha querida!

Penelope aproximou-se dele. Sob os pés dela, o piso desigual de madeira rangeu com a areia trazida pelo vento, como se alguém houvesse espalhado por ali um saco de açúcar. Ele a puxou para mais perto.

- O que está comendo?

- Chocolate com hortelã.

- Vai estragar seu apetite.

- Você sempre diz isso. - Penelope recuou um pouco. – Quer um pedaço?

- Não - disse ele, sacudindo a cabeça.

Ela guardou o resto do chocolate no bolso do cardigã.

- A guerra começou.

Seu pai assentiu.

- Quem me disse foi a Sra. Thomas.

- Eu sei. Eu sabia.

- Sophie está preparando um cassoulet. Disse para eu não deixar você ir ao "The Sliding Tackle" para um drinque. Disse que eu levasse você direto para casa.

- Neste caso, é melhor irmos andando.

Entretanto, ele não se moveu. Penelope fechou e trancou as janelas. Agora, o som da rebentação das ondas já não ficava tão forte. O chapéu dele estava caído no chão. Ela o recolheu e entregou ao pai, que o enfiou na cabeça e levantou-se. Penelope o tomou pelo braço, e os dois iniciaram a longa caminhada de volta para casa.

Carn Cottage ficava no alto da colina, acima da cidade. Era uma casinha branca e quadrada, no centro de um jardim, cercada por altos muros. Quando se passava pelo portão no muro, trancando-o após a entrada, era como penetrar algum lugar secreto, onde não se seria atingido por coisa alguma -nem mesmo pelo vento. Agora, em fins de verão, a grama ainda estava verde, e os canteiros de Sophie, ao longo do muro, eram um festival de margaridas, bocas-de-leão e dálias. Contra a fachada frontal da casa, destacavam-se gerânios cor-de-rosa e um pé de clematite que, a cada maio, produzia uma enormidade de flores em tom lilás-pálido. Havia ainda uma área reservada à horta, escondida atrás de uma sebe de escalônias, e nos fundos da casa ficava um pequeno campo, com um tanque, onde Sophie mantinha suas galinhas e patos.

Ela estava agora no jardim, esperando por eles, enquanto colhia uma braçada de dálias. Quando ouviu o portão fechar-se, endireitou o corpo e foi encontrá-los, parecendo um menino, em suas calças e sapatilhas, rematadas por um pulôver listrado em azul e branco. Os cabelos escuros eram cortados bem curtos, acentuando o pescoço esguio e bronzeado, bem como o formato regular da cabeça. Os olhos eram escuros, grandes e brilhantes. Todos diziam que eram sua melhor característica até ela sorrir. Depois disso, não tinham mais tanta certeza.

Sophie era esposa de Lawrence e mãe de Penelope. Nascera na França. Seu pai, Philippe Charlroux, e Lawrence haviam sido contemporâneos, dividindo um estúdio em Paris, nos velhos e despreocupados tempos antes da guerra de 1914. Lawrence conhecera Sophie quando ainda era muito pequenina, brincando nos jardins das Tulherias e, às vezes, acompanhando o pai e amigos dele aos cafés, onde se reuniam para beber e divertir-se, ruidosa e inofensivamente com as jovens bonitas da cidade. Eram todos muito íntimos, nunca

imaginando que aquela agradável existência tivesse que acabar; porém, a guerra chegara, separando não apenas eles e suas famílias, mas também seus países, a Europa inteira, o seu mundo.

Perderam o contato entre si. Em 1918, Lawrence tinha mais de cinqiienta anos. Velho demais para ser soldado, passara os quatro terríveis anos dirigindo uma ambulância na França. Por fim, ferido em uma perna, ficara inválido, sendo mandado para casa. Não obstante, estava vivo. Outros não haviam tido tanta sorte. Philippe, segundo soubera, estava morto, mas ignorava o que fora feito da esposa e da filha dele. Terminado o conflito, retomou a Paris para procurá-las, mas não teve êxito. A cidade ficara triste. Sentia frio e fome. Parecia que cada pessoa usava o negro do luto, e as ruas da cidade, que nunca tinham deixado de proporcionar-lhe alegria, davam a impressão de ter perdido a sedução. Lawrence voltou a Londres, para a velha casa da família, na Rua Oakley. A esta altura, seus pais estavam mortos, e a casa lhe pertencia, porém era demasiado grande e trabalhosa para um homem solteiro. Resolveu o problema, ocupando apenas o porão e o pavimento térreo, reservando os quartos do andar de cima para qualquer alma precisando de um lar e que lhe pudesse pagar algum aluguel. Seu estúdio ficava no grande jardim, nos fundos da casa. Ele o abriu, botou para fora parte das velharias lá acumuladas e, empurrando as lembranças da guerra para trás, empunhou os pincéis e, com eles, os fios do novelo de sua vida.

Achou difícil prosseguir. Um dia, enquanto lutava com uma composição diabolicamente difícil, um dos inquilinos veio chamá-lo, anunciando um visitante. Lawrence ficou furioso, não somente pela raiva de sua frustração, mas porque odiava ser perturbado no

trabalho. Com expressão irritada, jogou os pincéis para o lado, enxugou as mãos em um trapo e foi ver quem poderia ser, entrando em sua cozinha pela porta do jardim. Lá estava uma jovem, parada ao lado da estufa, com as mãos estiradas para o calor, como se estivesse gelada até os ossos. Ele não a reconheceu.

- O que você quer?

Ela era incrivelmente magra, com cabelos escuros presos em um coque apressado. Usava um velho capote surrado, por baixo do qual pendia a bainha irregular da saia. Os sapatos eram praticamente imprestáveis, e a aparência geral era de uma coisinha enjeitada, um ser derrotado.

- Lawrence! - disse ela.

Algo em sua voz buliu nas memórias dele. Foi até ela, tomou-lhe o queixo na mão e ergueu o pequenino rosto na direção da janela e da luz.

- Sophie!

Era incrível, ele mal podia acreditar.

- Sim, sou eu - disse ela.

Tinha vindo à Inglaterra procurá-lo. Estava só no mundo. Lawrence havia sido o melhor amigo de seu pai. "Se alguma coisa acontecer comigo", Philippe lhe dissera, procure Lawrence Stern e fique com ele. Ele a ajudará.”E agora, Philippe estava morto, e sua mãe também morrera, levada pela epidemia da gripe que devastava a Europa, na esteira da guerra”.

- Fui a Paris procurar vocês - contou-lhe Lawrence. - Onde estavam?

- Em Lyon, morando com a irmã de minha mãe.

- Por que não ficou com ela?

- Porque eu queria encontrar você.

Ela ficou. Lawrence foi forçado a admitir que Sophie chegara em um período casual, quando ele estava entre uma e outra amante, pois era um homem sensual e muito atraente. Desde seus primeiros dias de estudante em Paris, uma série de belas mulheres entrara e saíra de sua vida, como uma bem ordenada fila para o pão. Sophie, no entanto, era diferente. Uma criança. Além disso, dirigia a casa com a eficiência de uma jovem francesa bem-educada, cozinhando, fazendo compras, costurando, lavando cortinas e esfregando o chão. Ele jamais fora tão bem cuidado. Por sua vez, ela logo perdeu aquela aparência de elfo e, embora jamais engordasse uma só grama, as faces ficaram coradas, os cabelos adquiriram um brilho acastanhado e, em breve, Lawrence a estava usando como modelo. Ela lhe trouxera sorte. Ele estava pintando bem, e vendendo também. Deu-lhe algum dinheiro para comprar roupas, e ela voltou, envaidecida e orgulhosa em um vestidinho barato. Estava linda, e foi então que Lawrence parou de pensar nela como uma criança. Sophie era uma mulher; como mulher é que foi até ele certa noite e tranqüilamente subiu para a cama ao lado dele. Tinha um corpo sedutor e ele não a repeliu, porque, talvez pela primeira vez na vida, estava apaixonado. Ela se tornou sua amante. Dentro de semanas, ficava grávida. Delirante de felicidade, Lawrence a tomou como esposa.

Foi durante a gravidez de Sophie que viajaram até a Cornualha pela primeira vez. Terminaram em Porthkerris, que já havia sido descoberta pelos pintores de todo o país, e onde os contemporâneos de Lawrence se tinham radicado. A primeira providência foi alugarem o depósito para redes, que se tornaria o estúdio dele. Ali moraram durante dois longos meses de inverno, acampados em tremendo desconforto e absoluta felicidade. Então, Carn Cottage foi oferecido à venda. Tendo ganho um bom dinheiro por uma tela de encomenda, Lawrence fez uma oferta e comprou a propriedade. Penelope nasceu em Carn Cottage e lá eles passavam o verão, mas quando os fortes ventos do equinócio do outono começavam a soprar, fechavam Carn Cottage ou alugavam a casa para inquilinos de inverno, retomando então a Londres, ao porão da velha casa da Rua Oakley, cálida, amigável e atopetada de gente. Tais viagens eram sempre feitas de carro, porque agora Lawrence era o orgulhoso proprietário de um sólido Bentley cruzeiro, de 4 1/2 litros, dotado de capota de lona dobrável para trás e enormes faróis Lucas. O carro tinha estribos, um detalhe excelente para piqueniques, e fortes correias de couro que firmavam o capô. Alguns anos, na primavera, os dois recolhiam Ethel, a irmã de Lawrence, juntamente com inúmeras sacolas e caixas, e tomavam o ferry para a França. Uma vez lá, rodavam para os pés de mimosa, as rochas avermelhadas e os mares azuis do Mediterrâneo, hospedando-se com Charles e Chantal Rainier, velhos amigos dos tempos de antes da guerra em Paris, donos de uma vila de paredes desbotadas e muitas janelas de persianas, com um jardim povoado de cigarras e lagartixas. Em tais ocasiões, falavam somente o francês, incluindo-se tia Ethel, que sempre, se tomava intensamente gálica tão logo pisavam em Calais, de boné basco em um ângulo maroto na cabeça e fumando inúmeros cigarros Gauloise. Aonde fossem os adultos, Penelope os acompanhava, filha de uma mãe com idade para ser sua irmã e de um pai velho o bastante para ser seu avô.

Ela os achava perfeitos. Às vezes, convidada à casa de outras crianças, sentadas durante afetadas e formais refeições, com taciturnas babás vigiando suas maneiras à mesa, ou sendo forçadas a jogos em grupos por algum pai ou mãe emproado, Penelope se perguntava como elas conseguiam suportar vidas tão restritas e disciplinadas. Então, mal podia esperar a hora de voltar para casa.

Agora, Sophie nada comentou sobre a nova guerra que se iniciara. Simplesmente, aproximou-se para beijar o marido, passou um braço em tomo da filha e mostrou a eles as flores que havia colhido. Dálias. Uma grande explosão delas, em laranja, púrpura, escarlate e amarelo.

- Acho que elas me recordam o balé russo – disse, para eles. Sophie nunca perdera seu encantador sotaque. - Entretanto, não têm perfume. - Ela sorriu. - Não importa. Pensei que vocês estivessem atrasados, mas fico contente por não estarem. Vamos entrar, abrir uma garrafa de vinho e depois comer alguma coisa.

Dois dias mais tarde, na terça-feira, a guerra começou resolutamente para eles. A sineta da porta de entrada soou e, indo atender, Penelope encontrou a Srta. Pawson na soleira. A Srta. Pawson era uma daquelas damas muito masculinas, que surgiam em Porthkerris de quando em quando. Lawrence costumava designá-las como as desajustadas dos anos trinta que, não desejando as alegrias normais de um marido, lar e filhos, ganhavam a vida de maneiras variadas, em geral associando-se a animais, quando então ensinavam equitação ou dirigiam canis e fotografavam cães alheios. A Srta. Pawson criava spaniels King Charles, sendo uma figura muito conhecida no local, vista exercitando seus animais na praia ou sendo arrastada por eles através da cidade, puxada por múltiplas coleiras.

A Srta. Pawson residia com a Srta. Preedy, uma decorosa dama que ensinava dança. Não danças folclóricas ou balé, mas alguma nova e estranha concepção de arte, baseada nos frisos gregos, respiração profunda e eurritmia. De vez em quando, ela dava um espetáculo na sede da municipalidade e, certa vez, Sophie comprou entradas, tendo eles três comparecido devidamente. O espetáculo foi uma revelação. A Srta. Preedy e cinco alunas (algumas muito jovens, outras com idade suficiente para saber melhor o que faziam) entraram no palco descalças, usando túnicas alaranjadas, que chegavam aos joelhos, e faixas na cabeça, colocadas bem baixo na testa. Dispuseram-se em semicírculo, e a Srta. Preedy deu alguns passos à frente. Falando em voz alta e clara, a fim de alcançar os que estavam no fundo do salão, disse-lhes que talvez fosse necessária uma breve explicação, e passou a fornecê-la. Parecia que seu método não era a dança, no sentido aceito da palavra, mas uma série de exercícios e movimentos que, em si, eram uma extensão das funções naturais do corpo.

Lawrence murmurou "Santo Deus", e Penelope precisou cutucar-lhe as costelas com o cotovelo, para que ficasse quieto. A Srta. Preedy continuou tagarelando por um momento, depois recuou para seu lugar, e a brincadeira começou. Bateu uma palma, ordenou "Um", e todas as alunas, ela inclusive, caíram deitadas de costas, como se desmaiadas ou mortas. A hipnotizada platéia precisou espichar pescoços, a fim de conseguir vê-las. Depois, "Dois", e todas ergueram lentamente as pernas no ar, os artelhos apontando para o teto. As túnicas cor de laranja escorregaram para baixo, revelando seis pares de volumosos calções combinando, presos aos joelhos por elástico. Lawrence começou a tossir, levantou-se e desapareceu, quase às carreiras, corredor acima em direção às portas ao fundo. Não voltou mais, de maneira que Sophie e Penélope ficaram sentadas sozinhas durante as duas horas seguintes, sacudidas por riso convulsivo e contido. Suas cadeiras estremecendo, as mãos tamponando a boca.

Aos dezesseis anos, Penelope havia lido “Os poços da solidão”. Depois disso, considerou a Srta. Pawson e a Srta. Preedy com novos olhos, permanecendo ainda inocentemente desconcertada pelo relacionamento das duas.

E agora, ali estava a Srta. Pawson à porta, em seus sapatos fortes, calças compridas, blusão fechado com zíper, colarinho e gravata, além de um boné sobre os tosquiados cabelos grisalhos, colocado de banda, em um ângulo atrevido. Trazia uma pasta para documentos, e sua máscara contra gases pendia de um ombro. Evidentemente, estava trajada para combate. Se lhe dessem um rifle e um cinturão de balas, teria sido um achado para qualquer bando de guerrilheiros dignos do nome.

- Bom-dia, Srta. Pawson.

- Sua mãe está, meu bem? Vim falar sobre alojamento de evacuados.

Sophie apareceu, e elas levaram a Srta. Pawson para a sala de estar. Como aquela era obviamente uma ocasião oficial, as três sentaram-se à mesa no meio da sala, e a Srta. Pawson desenroscou a tampa de sua caneta-tinteiro.

- Muito bem. - Nada de circunlóquios; a coisa era tão premente como uma Conferência de Guerra. - Quantos cômodos vocês têm?

Sophie olhou para ela, meio surpresa. A Srta. Pawson e a Srta. Preedy haviam estado inúmeras vezes em Carn Cottage, sabiam perfeitamente quantos cômodos havia lá. Entretanto, ela parecia divertir-se tanto, que seria crueldade estragar a brincadeira de modo que Sophie respondeu:

- Quatro. Esta sala, a sala de refeições, o estúdio de Lawrence e a cozinha.

A Srta. Pawson escreveu "quatro”, no espaço apropriado de seu formulário.

- E no andar de cima?

- Nosso quarto, o de Penelope, o quarto de hóspedes e o banheiro.

- Quarto de hóspedes?

- Não quero ninguém ocupando o quarto de hóspedes, porque Ethel, a irmã de Lawrence, é bastante idosa e mora sozinha em Londres. Se os bombardeios começarem, talvez ela queira vir ficar conosco.

- Entendo. Agora, vasos sanitários.

- Oh, sim – assegurou Sophie. - Temos um vaso sanitário. No banheiro.

- Apenas um?

- Há outro fora da casa, no pátio atrás da cozinha, porém usamos o compartimento para depósito de lenha.

A Srta. Pawson escreveu, "Um vaso sanitário, uma privada”.

- E agora, o que diz do sótão?

- Sótão?

- Quantas pessoas poderia colocar para dormir lá?

Sophie ficou horrorizada.

- Eu não colocaria ninguém no sótão. O lugar é escuro e cheio de aranhas. - Então acrescentou, dubitativamente: - Suponho que, anualmente, as empregadas costumassem dormir lá. Pobres coitadas!

Aquilo bastou para a Srta. Pawson.

- Neste caso, registrarei espaço para três pessoas no sótão. Não podemos ser muito seletivos atualmente, compreenda. Devemos lembrar que há uma guerra em andamento.

- Teremos que receber evacuados?

- Oh, sim, todos terão que recebê-los. É a nossa contribuição.

- E quem serão eles?

- Provavelmente, moradores do East End de Londres. Tentarei conseguir-lhe uma mãe e duas crianças. Bem... - Ela reuniu seus papéis e levantou-se. - Preciso ir andando. Ainda tenho umas doze visitas a fazer.

Saiu da casa, muito empertigada, de lábios comprimidos. Quando se despediu, Penelope quase esperou que fizesse continência - porém não a fez, apenas cruzou o jardim em largas passadas. Sophie fechou a porta e se virou para a filha, tomada de hilaridade e desânimo ao mesmo tempo. Três pessoas vivendo no sótão! Subiram para inspecionar aquele sombrio aposento e o encontraram ainda pior do que recordavam. Escuro, sujo e empoeirado, cheio de teias de aranha, cheirando a ratos e sapatos suados. Torcendo o nariz, Sophie tentou abrir uma das janelas da água-furtada, porém estava emperrada. Um velho papel de parede, de padrão hediondo, soltava-se em tiras desde o teto. Esticando a mão, Penelope segurou a ponta solta em um canto e puxou. A tira caiu ao chão, espiralada, trazendo consigo uma nuvem de argamassa em pó.

- Se pintarmos tudo de branco, não ficará tão ruim - disse. Foi até a outra janela, esfregou um pedaço da vidraça para que ficasse limpa, e espirrou. - Além disto, a vista daqui é a mais maravilhosa....

- Evacuados não estão atrás de vistas.

- Como pode saber? Ora, vamos, Sophie, não fique tão desanimada! Se eles vierem, precisarão de um quarto. Será isto ou nada. Aquela foi sua primeira perspectiva do Trabalho de Guerra. Descascou o papel de parede, pintou de branco as paredes e o teto, lavou as janelas, pintou as partes de madeira e lavou o chão. Nesse meio tempo, Sophie foi a um leilão e lá adquiriu um tapete, três divãs-camas, um guarda-roupa de mogno, uma cômoda do mesmo material, quatro pares de cortinas, uma água-forte intitulada Off Valparaiso e a estatueta de uma menina com uma bola de praia. Pagou por tudo oito libras, quatorze xelins e nove pence. Os móveis foram entregues e levados para cima por um prestimoso homem de boné de pano e comprido avental branco. Sophie deu-lhe uma caneca de cerveja e meia coroa, com o que ele se foi embora satisfeito. Em seguida, ela e Penelope arrumaram as camas e penduraram as cortinas. Feito isto, agora só lhes restava esperar com a esperança de que os evacuados nunca chegassem.

Não obstante, eles chegaram. Uma jovem mãe e dois meninos pequenos. Doris Potter, Ronald e Clark. Doris era loura, penteando-se no estilo de Ginger Rogers, vestindo apertada saia preta. Seu marido chamava-se Bert, já fora convocado e estava na França, com a Força Expedicionária. Seus filhos, com sete e seis anos, tinham os nomes de Ronald e Clark por causa de Ronald Colman e Clark Gable. Eram pequenos para sua idade, magricelas e pálidos, de joelhos ossudos e rebeldes cabelos secos, espetados para o alto como as cerdas de uma escova. Tinham chegado de trem, vindos de Hackney. Jamais haviam viajado mais longe do que até Southend, e as crianças usavam etiquetas de bagagem presas aos blusões inadequados, para o caso de se perderem durante a viagem.

O tranqüilo padrão de vida em Carn Cottage foi destruído com a chegada dos Potters. Em dois dias, Ronald e Clark tinham quebrado uma vidraça, urinado na cama, acabado com todas as flores dos canteiros de Sophie, comido maçãs verdes e passado mal, além de incendiarem o galpão de ferramentas, que queimou até o solo. Lawrence se mostrou filosófico sobre este último fato, apenas comentando ser uma pena que os dois garotos não estivessem dentro do galpão.

Ao mesmo tempo, eles se revelaram pateticamente medrosos. Não gostavam do campo, o mar era grande demais, assustavam-se com vacas, patos, galinhas e tatus-bolas. Também tinham pavor de dormir no quarto do sótão, mas somente porque um amedrontava o outro, revezando-se em histórias de fantasmas.

A hora das refeições transformou-se em pesadelo, não por ser enfadonha a conversa, mas porque Ronald e Clark jamais haviam tido noções das maneiras mais simples. Comiam de boca aberta, bebiam com a boca cheia, disputavam a manteigueira, derrubavam o jarro de água, brigavam um com o outro e espancavam-se, também recusando-se firmemente a comer os pratos de vegetais e pudins que Sophie preparava.

Para cúmulo, o barulho era constante. O ato mais simples era acompanhado de guinchos de alegria, raiva, indignação e insulto. Doris também fazia o mesmo. Jamais se dirigia aos filhos senão gritando.

- O que pensam que estão fazendo, seus malcriados? Repitam isso, e surro os dois Olhem para suas mãos e joelhos, estão imundos! Quando foi a última vez que se lavaram? Seus porcos sujos!

Fugindo àquele alarido, Penelope percebeu duas coisas. Uma, que Doris, apesar da maneira rude de falar com os filhos, era boa mãe e gostava daquelas crianças magricelas. Outra, que só gritava com elas, porque assim fizera a vida inteira, seus gritos subindo e descendo a extensão da rua de Hackney onde, com toda probabilidade, eles haviam nascido e sido criados. A mãe de Doris gritara com ela. Simplesmente, a idéia de existir outra maneira de fazer as coisas não penetrava em sua cabeça. Portanto, não era de surpreender que, quando gritasse por Ronald e Clark, eles nunca atendessem. Então, em vez de ir à procura deles. ela se limitava a erguer mais uma oitava na voz, tomando a gritar.

Por fim, não suportando mais aquela situação, Lawrence disse a Sophie que, se os Potters não se aquietassem um pouco, seria forçado a fazer uma mala, abandonar a casa e ir morar em seu estúdio. Falava sério e, entre a cruz e a espada, Sophie irrompeu furiosamente na cozinha, para falar com Doris.

- Porrque tem que grritarr com eles o tempo todo? - Quando perturbada, seu sotaque ficava mais pronunciado do que de hábito; e agora parecia tão enfurecida como uma peixeira marselhesa. - Suas crrianças estão logo ali, bem perrto de você! Não prrecisa grritar parra chamá-las! Mon Dieu, esta é uma casa pequenina, e você está enlouquecendo todos nós!

Doris ficou surpresa, mas teve a sensatez de não se mostrar ofendida. Era uma mulher fácil de levar e também astuta. Sabia que, com aquela gente, ela e seus filhos tinham encontrado uma boa casa. Ouvira algumas histórias terríveis sobre outras famílias evacuadas, e não desejava ir morar em casa de alguma mulher de nariz em pé, que a tratasse como empregada e esperasse que morasse na cozinha.

- Me desculpe - disse, à sua maneira descuidada. Sorriu. - Acho que é só o meu jeito de ser.

- E suas crrianças... - A raiva de Sophie abrandava, porém queria malhar enquanto o ferro estava quente. - Elas prrecisam aprrender a ter boas maneirras à mesa! Se você não ensinarr a elas, então eu ensino! E elas têm que obedecerr! Elas vão obedecer, se você falar baixo! Não são surrdas, mas, se você grrita, dá a imprressão de que não escutam!

Doris deu de ombros.

- Está bem - concordou, em boa paz. - Podemos experimentar. E agora, o que acha de batatas para o jantar? Quer que eu descasque para você?

Depois disso, as coisas melhoraram. O barulho diminuiu, e as crianças, orientadas por Sophie e Penelope revezando-se nisso, aprenderam a dizer por favor e obrigado, a comer de boca fechada e pedir que passassem o sal e a pimenta. Parte de tais ensinamentos também afetou Doris, que ficou bastante refinada, dobrando o mindinho e limpando o canto da boca com seu guardanapo. Penelope levou os meninos à praia e ensinou-lhes como fazer castelos de areia, os dois se tomando tão intrépidos, que chegaram a remar em um bote. Então, começaram as aulas e eles ficavam fora de casa a maior parte do dia. Doris achava que toda sopa provinha de uma lata, mas começou a aprender alguns rudimentos de culinária e ajudava nos trabalhos domésticos. As coisas acomodaram-se. Eles nunca seriam os mesmos e, pelo menos, agora já eram suportáveis.

Os aposentos do andar de cima, na casa da Rua Oakley, eram ocupados por Peter e Elizabeth Clifford. Outros inquilinos iam e vinham, mas eles permaneceram lá quinze anos, durante os quais se tomaram os mais íntimos amigos dos Stern. Peter estava agora com setenta anos. Doutor em Psicanálise, estudara com Freud em Viena e encerrara uma prestigiada carreira como professor, em um dos grandes hospitais-escola de Londres. Embora aposentado, não parou de trabalhar e todos os anos voltava a Viena, a fim de fazer conferências na Universidade.

Não tinham filhos e, em tais ocasiões, ele invariavelmente era acompanhado pela esposa. Elizabeth, alguns anos mais nova do que Peter, por sua vez era também uma mulher brilhante. Antes do casamento, viajara extensamente, tendo estudado na Alemanha e na França, além de escrever uma série de ponderados e um tanto político romances, artigos e ensaios, jóias de precisa e erudita construção, que lhe tinham angariado respeitadíssima reputação internacional.

Foram os Clifford que, pela primeira vez, fizeram Lawrence e Sophie perceberem as coisas sinistras em andamento na Alemanha. Os quatro conversavam longamente até noite alta, bebericando café e conhaque, com as cortinas cerradas, as vozes perturbadas transmitindo sua ansiedade e apreensão. Entretanto, confidenciavam tais coisas apenas aos Lawrence. Com relação ao mundo exterior, permaneciam profundamente discretos, guardando seus pontos de vista para si mesmos. Agiam assim, porque muitos de seus amigos na Áustria e Alemanha eram judeus, e suas visitas oficiais a Viena ofereciam uma boa cobertura para suas próprias operações pessoais e encobertas.

 

Sob os olhos das autoridades e com grande risco pessoal para si próprios, eles estabeleciam contatos, obtinham passaportes, faziam preparativos para viagens e emprestavam dinheiro. Graças a seu empreendimento e coragem, um grande número de famílias judias estava saindo do país, escapando pelas bem guardadas fronteiras e alcançando a segurança na Inglaterra, ou viajando e estabelecendo-se nos Estados Unidos. Todos chegavam na miséria, tendo sido obrigados a abandonar propriedades, bens e fortuna mas, pelo menos, estavam livres. Este perigoso trabalho continuou até começos de 1938, quando o novo regime deixou claro que sua presença não era mais bem-vinda. Alguém tinha falado. Eles foram considerados suspeitos e colocados na lista negra.

Em janeiro, no Ano Novo de 194O, Lawrence, Sophie e Penelope tiveram uma conferência de família. Com Carn Cottage agora ocupado, em vista de Doris e as crianças estarem lá, ficou combinado que, pela duração da guerra, presumivelmente não voltariam à Rua Oakley. Sophie, no entanto, não admitia simplesmente abandonar sua casa em Londres. Ficara seis meses sem ir lá, precisava fiscalizar os inquilinos, preparar cortinas de black-out para o porão, fazer um inventário, encontrar alguém que quisesse cuidar do jardim. Ela pretendia recolher roupas de inverno, porque o tempo se tornara gelidamente frio em Carn Cottage, onde não havia aquecimento central. Além disso, também queria ver os Clifford.

Lawrence achou que era uma esplêndida idéia. Acima de tudo, estava preocupado com seu quadro “Os catadores de conchas”. Quando o bombardeio começasse, como sem dúvida aconteceria, ele temia pela pintura.

Sophie lhe disse que cuidaria do quadro, providenciando para que fosse embalado e transportado para a relativa segurança de Porthkerris. Telefonou para Elizabeth Clifford, anunciando que estavam indo. Três dias mais tarde, desceram todos até a estação, e Penelope e Sophie tomaram o trem. Lawrence não foi. Decidira ficar, a fim de fiscalizar o andamento da pequena casa, entregue aos dedicados cuidados de Doris, que parecia bastante feliz em assumir tal responsabilidade. Era a primeira vez que ele e Sophie se separavam, desde o seu casamento, de maneira que ela estava em lágrimas quando o trem partiu, como se receando nunca mais ver o marido,

A viagem pareceu durar uma eternidade. O trem estava gélido, não havia vagão-restaurante e, em Plymouth, embarcou um destacamento de marinheiros, os quais encheram os vagões até torná-los intransitáveis, os corredores tomados por mochilas, marujos que fumavam e jogavam cartas. Penelope viu-se comprimida no canto de seu assento por um rapaz, rígido e pouco à vontade no uniforme novo em folha. Quando o trem voltou a rodar, ele imediatamente ferrou no sono, com a cabeça no ombro dela. Escureceu prematuramente e, depois disso, nem mesmo era possível ler-se, às luzes fracas e amortecidas do vagão. Para piorar a situação, ficaram retidos em Reading, só chegando a Paddington finalmente, três horas mais tarde.

De luzes apagadas, Londres era uma cidade misteriosa. Por um lance de sorte, as duas conseguiram encontrar um táxi, partilhado com outros dois estranhos que seguiam na mesma direção. O táxi arrastou-se pelas ruas escuras e quase desertas, a chuva desabou, e o frio era penetrante. O coração de Penelope ficou deprimido. Voltar para casa nunca fora assim.

Elizabeth, no entanto, tendo sido avisada, estava preparada para elas, aguardando a chegada do táxi. Após pagarem a corrida e tatearem a caminhada pelos degraus escuros como breu, que desciam para a porta frontal de seu porão, viram que ela se abriu repentinamente, sendo ambas puxadas para dentro, antes que qualquer raio de luz ilegal penetrasse o black-out.

- Oh, pobrezinhas! Pensei que nunca mais iam chegar! Como se atrasaram!

Foi uma excelente acolhida, com abraços e beijos, explicações e descrições da terrível viagem. Por fim, chegou a vez dos risos, porque era um alívio indescritível terem deixado para trás o frio, a escuridão e o trem, terem chegado em casa.

O grande aposento familiar estendia-se por todo o comprimento da casa. Na extremidade da rua, ficavam a cozinha-sala de refeições, com o jardim em seguida à sala de estar. Agora, estava tudo brilhante de luz, porque Elizabeth pregara cobertores nas janelas, em vez de pendurar cortinas negras, tendo também acendido a estufa. Uma panela com canja de galinha aquecia-se brandamente ao fogo, e a chaleira chiava. Sophie e Penelope tiraram os casacos e aqueceram as mãos, enquanto Elizabeth arrumava um bule de chá e uma pilha de torradas quentes com canela. Não demorou muito, estavam sentadas à mesa, como sempre tinham feito, comendo a refeição ligeira e improvisada (Penelope morria de fome) e todas falando ao mesmo tempo, trocando notícias de vários meses acumulados. A depressão terminou, e a tediosa viagem de trem ficou no passado, esquecida.

- E como vai o meu caro Lawrence?

- Maravilhosamente bem, mas preocupado com seu “Os catadores de conchas”, se a casa for bombardeada, e a tela, destruída. Este é um dos motivos que nos trouxeram aqui. O quadro será embalado e levado para a Cornualha conosco. - Sophie riu. – Ele não parece nem um pouco preocupado com seus outros bens.

- E quem ficou cuidando dele?

Sophie explicou sobre Doris.

- Evacuados! Oh, coitadinhas! Que invasão na vida de vocês!

- Elizabeth tagarelou, contando a elas tudo quanto ocorrera nas últimas semanas. - Tenho uma confissão a fazer. O rapaz do sótão foi convocado e se mudou. Então, permiti que outro jovem casal ocupasse o seu lugar. São refugiados de Munique. Há um ano que estão no país, mas tiveram que deixar seus alojamentos em St. John's Wood e não encontraram outro lugar para morar. Estavam desesperados e então sugeri que viessem para cá. Perdoe a minha intromissão, mas é que eles viviam uma situação terrível, e sei que serão bons inquilinos.

- Oh, mas não há dúvida! Fico muito satisfeita. Foi muito sensato de sua parte. - Sophie sorriu com afeto. Elizabeth nunca fraquejava, em seu corajoso trabalho. - Como se chamam eles?

- Friedmarm. Willi e Lalla. Quero que você os conheça. Descerão para o café esta noite; então, por que não traz Penélope, depois da ceia, a fim de juntar-se a nós? Vai ser bom conversarmos. Será como nos velhos tempos.

Ao falar, ela irradiava entusiasmo, sua característica mais notável e contagiante. Elizabeth nunca mudava. No rosto simpático e enrugado, os olhos brilhavam, tão inteligentes como sempre; os cabelos grisalhos, espessos e vigorosos eram apanhados em um coque frouxo sobre a nuca, preso por alguns grampos negros. As roupas eram antigas mas, mesmo assim, não fora de moda. Inúmeros anéis enfeitavam os dedos de nós protuberantes.

- É claro que iremos - prometeu Sophie.

- Por volta de nove horas? Será um prazer como poucos!

As duas foram. Os Friedmarm haviam chegado antes e sentavam-se em torno da estufa a gás dos Clifford, na sala de mobília antiquada. Eram muito jovens e bem-educados, levantando-se a fim de serem apresentados. No entanto, pensou Penélope, também eram velhos. Irradiavam uma espécie de dignidade dos destituídos da sorte, algo que era imemorial. Quando sorriram e cumprimentaram, seus sorrisos não chegavam aos olhos.

A princípio, tudo correu bem. Começaram a conversar. Sophie ficou sabendo que, em Munique, Willi Friedmarm estudara leis, mas que agora ganhava a vida fazendo traduções para um editor londrino. Lalla ensinava música, dando aulas de piano. À sua maneira, estranha e pálida, ela era uma bela jovem e sentava-se compostamente, porém as mãos de Willi eram nervosas; ele fumava um cigarro após outro, parecendo ter dificuldade em ficar quieto.

Fazia um ano que morava na Inglaterra mas, ao observá-lo furtivamente, Penelope achou que dava a impressão de haver chegado recentemente. Sentiu imensa pena dele, tentando imaginar sua vida, enfrentando a incerta perspectiva -como devia ter acontecido - de construir um futuro para si mesmo em um país estranho, desligado dos amigos e colegas, precisando ganhar a vida de maneira forçada, sem realização pessoal. Além do mais, era provável que vivesse constantemente atormentado pela ansiedade, quase insuportável, de ter uma família ainda vivendo na Alemanha. Ela imaginou o pai, a mãe, irmãos e irmãs, cujo destino, ainda agora, podia ser selado por uma convocação no meio da noite. Um toque de campainha, uma batida à porta, interrompendo o silêncio da noite, e a confirmação do mais terrível pavor.

Pouco depois, Elizabeth foi à sua pequena cozinha, de lá voltando com uma bandeja onde pusera xícaras, café quente e um prato de biscoitos. Peter apanhou uma garrafa de conhaque Cordon Bleu e pequeninos cálices coloridos, mas foram dispensados. Sophie se virou para Willi com seu sorriso encantador, dizendo:

- Fico muito satisfeita por terem vindo morar aqui. Espero que sejam felizes. Só lamento que não possamos estar aqui também; teremos que retomar à Cornualha e cuidar de todos por lá. Não alugaremos o porão. Se quisermos vir a Londres e ver todos vocês, é melhor termos nossos próprios aposentos onde ficar. Entretanto, se os bombardeios começarem, todos vocês poderão usá-lo à vontade, como abrigo antiaéreo.

Foi uma sugestão sensata e oportuna. Até então, houvera apenas avisos ao acaso de raides aéreos, seguidos quase que imediatamente por outros de sem perigo. Entretanto, todos estavam preparados. Londres estava entrincheirada em sacos de areia até o pescoço, os parques perfurados por trincheiras e abrigos antiaéreos, haviam erigido caixas d'água e empilhado alimentos de emergência nos abrigos. Barragens de balões flutuavam no céu e, por toda a cidade, aninhavam -se postos de metralhadoras antiaéreas, camuflados por redes e guarnecidos por tropas que esperavam, minuto a minuto, hora a hora, semana a semana, que os ataques começassem. Uma sugestão sensata e oportuna, mas de chocante efeito em Willi Friedmarm.

- Está bem - disse ele.

Deixou seu conhaque cair abruptamente e não objetou quando, sem dizer nada, Peter tornou a encher seu cálice. Willi começou a falar. Era muito grato a Sophie. Era muito grato a Elizabeth, por toda a sua gentileza. Sem Elizabeth, estaria sem lar. Sem pessoas como Elizabeth e Peter, ele e Lalla provavelmente estariam mortos. Ou pior ainda...

- Ora, vamos, Willi... - disse Peter.

Entretanto, ele havia começado e agora parecia não saber como parar. Terminou o segundo conhaque e estava fora de si o bastante para apanhar a garrafa e servir-se de uma terceira dose. Lalla permaneceu quieta, fitando o marido com arregalados olhos escuros cheios de horror, porém nada fez para interrompê-lo.

Willi falou. O fluxo de palavras transformou-se em torrente, despejada sobre a cabeça das cinco pessoas hipnotizadas e imóveis que o ouviam. Penelope olhou para Peter, mas este, vigilante e grave, concentrava-se apenas no pobre rapaz enlouquecido. Talvez Peter soubesse que ele precisava falar. Talvez soubesse que, em algum momento, aquilo tinha que ser extravasado, e por que não agora, quando ele e a esposa estavam sãos e salvos na sala fortemente encortinada e junto de amigos?

Ele falou e falou, contando ainda mais - coisas que tinha visto, coisas que tinha ouvido, coisas que haviam acontecido a seus amigos. Após algum tempo, Penelope não quis ouvir mais, gostaria de cobrir os ouvidos com as mãos, fechar os olhos e expulsar aquelas negras imagens. Entretanto, continuou ouvindo mesmo assim, sendo aos poucos consumida por tal horror e repugnância que nada tinham a ver com noticiários cinematográficos, boletins através do rádio ou leitura de jornais. De repente, aquilo ficou pessoal, e o terror bafejou-lhe a nuca. A desumanidade desenfreada de homem contra homem era uma obscenidade, sendo essa obscenidade uma responsabilidade privada de cada pessoa. Quer dizer que então era este o significado da palavra GUERRA. Não se tratava de apenas carregar a própria máscara contra gases, de fazer o black-out, de dar risadinhas por causa da Srta. Pawson ou de pintar o sótão para os evacuados. Tratava-se de um pesadelo infinitamente mais terrível, do qual o despertar não seria gratificante. Ele teria que ser enfrentado, mas isto só seria conseguido sem fugir, sem enfiar a cabeça debaixo das cobertas, mas empunhando uma espada e atacando. Penelope não tinha espada mas, bem cedo na manhã seguinte, saiu de casa, dizendo a Sophie que ia fazer compras. Quando voltou, pouco antes do almoço e visivelmente de mãos vazias, sua mãe ficou surpresa.

- Ora, eu pensei que tinha ido fazer compras!

Penelope puxou uma cadeira e, sentada nela, olhou para Sophie, através da mesa da cozinha. Então, contou que caminhara até encontrar um posto de recrutamento, que entrara nele e se inscrevera, pela duração da guerra, no Women's Royal Naval Service – o Real Serviço Naval Feminino.

 

                             ANTONIA

O alvorecer chegou de mansinho, com relutância. Ela voltara finalmente a dormir, tendo despertado para uma escuridão cada vez mais opaca, e soube que a manhã estava a caminho. O silêncio era total. O ar frio infiltrava-se pela janela aberta e, emoldurado pelos batentes, o carvalho erguia galhos nus para o céu acinzentado e sem estrelas.

Como pouco antes, a Cornualha ainda lhe enchia a mente, era um sonho vívido mas, mesmo enquanto ela jazia ali, o sonho bateu asas e afastou-se, recolhendo-se ao passado onde, talvez, fosse o seu lugar. Ronald e Clark não eram mais dois garotinhos, mas homens adultos, lançados ao mundo. Sua mãe não era Doris Potter, mas Doris Penberth, agora com quase setenta anos, ainda vivendo na casinha branca, bem ao fundo das antigas ruas lajeadas de Porthkerris. Lawrence e Sophie há muito tinham falecido, assim como os Clifford. Carn Cottage se fora, e finalmente também a casa da Rua Oakley, o que a deixava ali, em Gloucestershire, em sua própria cama, sua própria casa, Podmore's Thatch. Esta era uma das ocasiões em que o fato a pegava desprevenida, como se os anos se houvessem encapsulado e feito com ela uma brincadeira cruel - não estava com dezenove, mas sessenta e quatro anos. Nem mesmo madura, mas idosa. Uma mulher idosa, com um probleminha cardíaco idiota que

a pusera no hospital. Uma mulher idosa, com três filhos adultos e um novo elenco de personagens, com seus problemas inerentes, que agora habitavam sua vida. Nancy, Olivia e Noel. E, naturalmente, Antonia Hamilton, que chegaria para ficar... quando chegaria? No fim da semana seguinte? Não, no fim da semana presente. Porque já era segunda-feira, a manhã de segunda-feira. A Sra. Plackett vinha nas manhãs de segunda-feira, pedalando sua bicicleta desde Pudley, firme como uma rocha, ereta no selim de seu veículo. E o jardineiro. O novo jardineiro começaria a trabalhar hoje, chegaria às oito e meia.

Isto - e nada mais conseguiria - é que instigou Penelope à ação. Ligou o abajur da cabeceira e consultou o relógio. Sete e meia. Era importante estar levantada, vestida e pronta, antes de o jardineiro chegar, pois do contrário ele pensaria que viera trabalhar para uma velha preguiçosa. Um amo preguiçoso faz um servo preguiçoso. Quem era adepto de tão arcaico provérbio? Sua sogra, naturalmente. Dolly Keeling. Quem mais? Podia ouvi-la dizendo o provérbio, enquanto corria os dedos pela borda do aparador da lareira, em busca de poeira, ou arrancando os lençóis de sua cama, para certificar-se de que a diarista, há tanto tempo espicaçada, os arrumara corretamente. Pobre Dolly! Ela também se fora, mantendo as aparências até o último instante, porém não deixando qualquer senso de perda atrás de si. O que era muito triste.

Sete e meia da manhã. Não havia tempo para perder em recordações de Dolly Keeling, de quem ela jamais gostara. Penélope saiu da cama.

Uma hora mais tarde, já de banho tomado e vestida, destrancou todas as portas e tomou seu desjejum. Bebeu café forte, comeu um ovo cozido, torradas e mel. Bebericando a segunda xícara de café, tentava ouvir o som de um carro que se aproximasse. Nunca antes tivera negócios com aquela firma, mas sabia que enviava seus empregados para trabalhar em pequenos e elegantes furgões verdes, com a palavra AUTOGARDEN escrita nas laterais, em letras maiúsculas brancas. Já os vira rodando por aí; pareciam muito espertos e eficientes. Sentiu-se um tanto apreensiva. Jamais empregara um jardineiro antes, e esperava que este não fosse carrancudo nem teimoso. Logo de início, diria a ele firmemente que não podasse e nem cortasse coisa alguma sem sua permissão. Poria o homem para fazer algo bem simples e sensato. A sebe de pilriteiros, no fundo do pomar. Aquela sebe podia ser aparada. Penelope supôs que ele fosse capaz de usar sua pequena serra de cadeia. Haveria gasolina suficiente para o motor, na garagem? Devia ir dar uma espiada, enquanto ainda havia tempo de ir buscar mais?

Não havia tempo, porque então suas ansiosas especulações foram bruscamente interrompidas pelo som inesperado de pisadas no cascalho, aproximando-se da casa. Penelope largou a xícara de café e levantou-se, espiando através do aposento, pela janela. Viu-o chegando, sob a quieta e fria claridade matinal, caminhando para ela. Um rapaz alto, de blusão cáqui impermeável e jeans enfiados em botas negras de borracha. Estava com a cabeça descoberta, tinha cabelos castanhos. Enquanto o espiava, ele parou um instante, olhando em volta, talvez incerto sobre o lugar em que se encontrava. Ela observou a postura dos ombros, o queixo erguido, o ângulo do queixo. No dia anterior, vendo seu filho aproximar-se através do gramado, sentira o coração falhar uma batida. Agora, acontecia a mesma coisa assustadora. Pousou uma das mãos na mesa e fechou os olhos. Respirou fundo. O coração galopante serenou. Tornou a abrir os olhos. A sineta da porta soou.

Cruzou a varanda, a fim de abrir a porta. Ele estava ali. Alto. Mais alto do que ela.

- Bom-dia - cumprimentou o rapaz.

- Bom-dia.

- Sra. Keeling?

- Sim, sou eu.

- Sou da "Autogarden".

Ele não sorriu. Os olhos eram firmes, azuis como pedacinhos de vidro, o rosto, fino e bronzeado, curtido pelo frio matinal, a pele retesada sobre os malares. Tinha um cachecol de lã vermelha amarrado ao pescoço, porém as mãos estavam nuas.

Penelope olhou além dele, por sobre o ombro do rapaz.

- Esperei ouvir um ruído de carro.

- Vim em minha bicicleta. Deixei junto ao portão. Não tinha certeza de que a casa fosse esta.

- Pensei que a Autogarden sempre enviava seus homens para trabalhar, em um daqueles furgões verdes.

- Não. Vim de bicicleta. - Penelope franziu a testa. Ele enfiou a mão no bolso. - Tenho uma carta de meu patrão.

Ele pegou a carta e a desdobrou. Ela viu o timbre, a autenticação da identidade dele. Ficou imediatamente embaraçada.

- Nem por um momento, pensei que você não fosse legítimo. Apenas imaginei...

- Aqui é Podmore's Thatch? - perguntou ele, tornando a guardar a carta no bolso.

- Sim, claro que é. Você... é melhor você entrar.

- Não, senhora. Não quero incomodá-la. Basta me mostrar o que deseja que eu faça... indicar onde guarda os apetrechos de jardinagem... Vindo de bicicleta, não pude trazer nada comigo.

- Oh, nem era preciso. Eu tenho tudo que é necessário. Penelope sabia que as palavras lhe saíam afogueadas, mas era porque também estava afogueada. - Se... quiser esperar um momento... Vou pegar um casaco...

- Tudo bem.

Ela entrou, pegou o casaco, as botas e a chave da garagem, pendurada em seu devido lugar. Novamente no exterior, viu que o rapaz recolhera a bicicleta de junto do portão e a recostava contra a parede da casa.

- Não vai atrapalhar, se a deixar aqui, vai?

- Não, de maneira alguma.

Conduziu-o pelo caminho de cascalho, destrancou as portas da garagem e ele a ajudou a abri-las. Penelope acendeu a luz, e ali estava a confusão costumeira: seu antigo Volvo, as bicicletas dos três filhos, das quais não tivera coragem de desfazer-se, um berço para criança em visível estado de decadência, o cortador de grama a motor, uma seleção de ancinhos, enxadas, pás e forcados.

Ela abriu caminho por entre aquilo tudo, até uma cômoda decrépita, relíquia da Rua Oakley, na qual guardava martelos, chaves de parafuso, enferrujadas latas cheias de pregos e restos de cordéis para uso no jardim. Acima disto, estava a serra de cadeia.

- Sabe usar uma destas?

- Sem dúvida.

- Bem, é melhor verificar se existe alguma gasolina.

Misericordiosamente, havia gasolina. Não muita, mas suficiente.

- O que eu gostaria realmente que você fizesse era aparar a minha sebe de pilriteiros.

- Muito bem. - Ele colocou a serra de cadeia no ombro e pegou a lata de gasolina com a outra mão. - Basta me indicar a direção certa.

Ela preferiu levá-lo até lá, para ter certeza de que não haveria engano. Contornou a casa, cruzou o gramado endurecido pelo frio, passou pela abertura na cerca-viva e atravessou o pomar. A espessura dos pilriteiros, um emaranhado de arbustos espinhosos, surgiu diante deles. Mais além, quieta e gelidamente, fluía o pequeno rio Windrush.

- A senhora tem uma bela propriedade - observou ele.

- Sim. É encantadora. Agora, ouça: quero que você apare a sebe até esta altura. Não mais baixo.

- Quer que guarde alguns galhos para o fogo?

Penelope não havia pensado nisto.

- Acha que vale a pena guardá-los?

- Eles queimam muito bem.

- Está certo. Guarde os que achar que poderão ser úteis. E faça uma fogueira dos restantes.

- Perfeitamente. - Ele baixou a serra e a lata de gasolina.

- Farei como deseja.

O tom era de despedida, mas ela se recusou a ir embora.

- Vai ficar aqui pelo resto do dia?

- Até quatro e meia, se estiver de acordo. Na época do verão, começo às oito e termino às quatro.

- E quanto à folga para o almoço?

- Tiro uma hora. De meio-dia até uma.

-Bem... - Ela falava para as costas da cabeça dele. – Se quiser alguma coisa, estarei em casa.

Ele estava de cócoras, desaparafusando a tampa da serra de cadeia, com a mão de dedos longos e capazes. Não respondeu à observação dela, limitando-se a assentir com a cabeça. Penelope começou a sentir-se intrusa, no caminho. Virando-se, pôs-se a caminhar para o jardim, um pouco irritada, mas também divertida consigo mesma, por ser tão desafiante. Na cozinha, sua xícara com café pela metade esperava em cima da mesa. Bebeu um gole mas, como ficara frio, despejou o resto na pia.

Quando a Sra. Plackett chegou, a serra de cadeia já estivera zumbindo por meia hora e, do fundo do pomar, a fumaça da fogueira espiralava-se no ar parado da manhã, enchendo o jardim com o cheiro delicioso de madeira queimando.

- Quer dizer que ele veio - disse a Sra. Plackett, surgindo à porta.

Dava a impressão de um barco com todas as velas enfunadas. Estando o tempo frio, usava seu chapéu de duende e carregava sua bolsa de plástico contendo os sapatos para trabalho e o avental. Sabia tudo sobre a decisão de Penelope em contratar um jardineiro, como sabia quase tudo que acontecia na vida de sua empregadora. As duas eram boas amigas, não tinham segredos entre si. Quando Linda, a filha da Sra. Plackett, fora "apanhada" pelo rapaz que trabalhava na garagem de Pudley, a primeira pessoa a quem ela contara o fato tinha sido a Sra. Keeling. Então, a Sra. Keeling se mostrara uma torre de força, ferozmente contrária à idéia de que Linda devia casar-se com o irresponsável indivíduo, e tricotara para o bebê um encantador casaquinho branco. Afinal, ela tivera razão, porque logo após o nascimento do bebê, Linda conhecera Charlie Wheelwright, um rapaz tão simpático como a Sra. Plackett jamais conhecera, que se casou com sua filha, aceitando também o pequeno bastardo. Agora, havia outro bebê a caminho. As coisas tinham um jeito de funcionar sempre para melhor. Não se podia negar isto. Ainda assim, a Sra. Plackett ficara agradecida à Sra. Keeling, por seus conselhos práticos e gentis, em uma fase de verdadeira tensão.

- Está falando do jardineiro? Sim, ele veio.

- Vi a fumaça da fogueira enquanto pedalava a bicicleta, cruzando a aldeia. - Ela tirou seu chapéu de pele e desabotoou o casaco. - E onde está o furgão?

- Ele veio de bicicleta.

- Como se chama?

- Não perguntei.

- Como ele é?

- Jovem, sabe falar bem, muito atraente.

- Espero que não lhe tenham mandado um daqueles irresponsáveis, que não param no mesmo lugar.

- Ele não me pareceu irresponsável.

- Ainda bem. - A Sra. Plackett colocou o avental. - Enfim, ainda estamos por ver. - Esfregou as mãos gordas e vermelhas, uma contra a outra. - Que manhã, iria, sim, senhora! Não só fria, como úmida!

- Tome uma xícara de chá - sugeriu Penelope, como sempre fazia.

- Bem, eu aceitaria - respondeu a Sra. Plackett, como sempre fazia.

A manhã estava em andamento.

Tendo passado o aspirador pela casa, a Sra. Plackett poliu as hastes de latão da escada, esfregou o chão da cozinha, passou a ferro uma pilha de roupa e usou pelo menos metade de uma lata de polidor de móveis, indo embora quando faltavam quinze para meio-dia, a fim de estar em casa novamente, em Pudley, com tempo de dar almoço ao marido. Deixou para trás uma casa reluzindo de limpa e cheirando agradavelmente. Penelope olhou para o relógio e começou a preparar almoço para dois. Uma sopa de legumes, feita em casa, foi posta no fogo para esquentar. Da despensa, ela tirou meio frango frio e um pão torrado e crocante. Havia algumas maçãs cozidas em um prato, um jarro de creme. Arrumou a mesa da cozinha com uma toalha quadriculada de algodão. Se fizesse sol, arrumaria a mesa na estufa, porém as nuvens eram baixas e sombrias, aquele dia parecia dar em nada. Colocou um copo e uma lata de cerveja ao lado do lugar dele. Depois, talvez ele gostasse de uma xícara de chá. A sopa olorosa começou a fumegar. Ele viria logo. Penelope esperou.

Ao meio-dia e dez, como ele ainda não tivesse aparecido, ela foi procurá-lo. Encontrou uma sebe perfeitamente aparada, uma fogueira já agonizando e uma pilha de pequenos troncos, porém nenhum sinal do jardineiro. Quis chamá-lo mas, ignorando-lhe o nome, não foi possível. Voltou para a casa, começando a pensar se, após uma única manhã de trabalho, ele não resolvera desistir e fora para casa, pretendendo nunca mais voltar. Entretanto, avistou a bicicleta dele nos fundos da casa, o que lhe deu a certeza de que o rapaz andaria por ali. Pelo caminho de cascalho, foi até a garagem, e lá estava ele, logo depois da porta, sentado sobre um balde virado ao contrário, comendo um sanduíche de aparência insossa, feito de pão branco e, aparentemente, absorvido pelo que só podia ser a seção de palavras cruzadas do The Times.

Descobri-lo em tal ambiente tão atravancado, frio e desconfortável, a encheu de indignação.

- O que, por Deus, você está fazendo?

Ele ficou em pé bruscamente, sobressaltado de alto a baixo pela inesperada aparição e pelo tom da voz dela. Deixou o jornal cair e derrubou o balde, com horroroso ruído metálico. Tinha a boca ainda cheia do sanduíche por mastigar, mas engoliu tudo, antes de poder dizer alguma coisa. Ficara vermelho e, evidentemente, muito embaraçado.

- Eu... eu estou comendo meu almoço.

- Comendo seu almoço?

- São doze para uma. A senhora concordou.

- Sim, mas não aqui? Não sentado em um balde na garagem! Você deve entrar e almoçar comigo. Pensei que tivesse compreendido isto.

- Almoçar com a senhora?

- Com quem mais seria? Seus outros empregadores não lhe dão a refeição do meio-dia?

- Não.

- Nunca ouvi falar em algo tão terrível. Afinal, como pode passar o dia trabalhando, alimentado com um sanduíche?

- Eu me arranjo.

- Pois não se arranjará comigo. Jogue fora esse pedaço horrível de pão e entre.

Ele pareceu perplexo, mas fez o que lhe era dito. Não jogou fora o sanduíche, como precaução, mas o embrulhou em um pedaço de papel e o guardou no saco de sua bicicleta. Pegou o jornal e também o guardou, depois colocando o balde em seu lugar costumeiro. Feito isto, acompanhou-a ao interior da casa. Tirou o blusão, revelando um suéter azul-marinho muitas vezes remendada. Depois lavou as mãos, enxugou-as e ocupou seu lugar à mesa. Penelope colocou diante dele uma grande tigela de sopa fumegante, disse-lhe que cortasse pão e passasse manteiga. Então, encheu para si mesma uma tigela menor de sopa e sentou-se ao lado dele.

- Realmente, é muita gentileza da senhora - disse ele.

- Não há gentileza nisto. Apenas é assim que costumo fazer coisas. Não. Não é bem isso, porque nunca tive um jardineiro antes. No entanto, quando meus pais tinham alguém trabalhando para eles fora da casa, sempre o chamavam para que fizesse conosco a refeição do meio-dia. Talvez eu nunca tenha percebido que as coisas fossem diferentes. Sinto muito. O ligeiro desentendimento foi inteiramente culpa minha. Eu devia ter sido mais clara.

- Eu não tinha entendido.

- É claro que não entendeu. Agora, fale-me sobre você. Como se chama?

- Danus Muirfield.

- Que nome perfeito!

- Pensei que fosse bastante comum.

- É perfeito para um jardineiro, quero dizer. Há pessoas, cujos nomes são exatos para suas profissões. Isto é, o que seria Charles de Gaulle, senão o salvador da França? E o pobre Alger Hiss! Nascido com semelhante nome ele, simplesmente, tinha que ser um espião.

- Quando eu era menino - comentou ele - tínhamos um reitor em nossa igreja, que se chamava Sr. Patemoster.

- Está vendo só? Isto prova o que eu digo. E onde você foi menino? Onde foi criado?

- Edimburgo.

- Edimburgo! Então, você é escocês.

- Sim, suponho que seja.

- O que faz seu pai?

- E advogado. Como chamam na Escócia, um Escrivão da Chancela.

- Que título encantador! Tão romântico! Não pretende ser também advogado?

- Por algum tempo achei que poderia, mas então... – Ele deu de ombros. - Mudei de idéia. Em vez disso, fui para a Faculdade de Horticultura.

- Que idade tem?

- Vinte e quatro.

- Ela ficou surpresa. Ele parecia mais velho.

- Gosta de trabalhar para a "Autogarden"?

- Está tudo bem. É uma diversificação.

- Há quanto tempo trabalha para eles?

- Uns seis meses.

- E casado?

- Não, senhora.

- Onde mora?

- Em uma casinha na fazenda dos Sawcombe. Bem nos arredores de Pudley.

- Oh, eu conheço os Sawcombe. É uma boa moradia?

- Dá para o gasto.

- E quem cuida de você?

- Eu mesmo.

Ela pensou naquele horrível sanduíche de pão branco. Imaginou à casinha desolada, com a cama por fazer, a roupa lavada pendurada à volta da estufa para secar. Perguntou-se se ele já teria feito para si mesmo uma refeição decente.

- Você estudou em Edimburgo? - perguntou Penelope.

De repente, sentia-se intriga da por aquele rapaz, querendo saber mais sobre o que acontecera a ele, as circunstâncias e motivações que o haviam impelido a uma vida tão humilde.

- Sim, foi lá.

- E então, entrou diretamente na Faculdade de Horticultura?

- Não, senhora. Fui para a América e fiquei lá uns dois anos. Trabalhei em um rancho, no Arkansas.

- Nunca estive na América.

- É um grande país.

- Nunca pensou em ficar lá... para sempre, quero dizer?

- Pensei, mas não fiquei.

- Passou todo esse tempo no Arkansas?

- Não. Viajei um pouco. Vi bastante do país. Fiquei seis meses nas Ilhas Virgens.

- Que experiência!

Ele terminara a sopa. Penelope perguntou olhe se queria mais e, como ele dissesse que sim, ela tornou a encher-lhe a tigela. Ao recolher a colher, ele disse:

- A senhora falou que nunca teve um jardineiro antes. Cuidou da propriedade sozinha?

- Exatamente - respondeu ela, com certo orgulho. – Estava em estado lamentável, quando cheguei aqui.

- Sem dúvida, deve entender bem do assunto.

- Entendo alguma coisa.

- Sempre morou aqui?

- Não.. Vivi em Londres a maior parte da minha vida, mas lá também tinha um grande jardim. Antes disso, quando nova, morei na Cornualha, onde havia outro jardim. Sou uma mulher de sorte. Sempre tenho jardins... Não consigo imaginar-me sem um.

- A senhora tem família?

- Tenho. Três filhos. Todos adultos. Uma é casada. Também tenho dois netos.

- Minha irmã tem dois filhos - disse ele. - É casada com um fazendeiro, em Perthshire.

- Você vai à Escócia?

- Sim. Duas vezes ao ano.

- Deve ser muito bonito por lá.

- Sim - afirmou ele. - É muito bonito.

Depois da sopa, ele comeu a maior parte do frango e todas as maçãs cozidas. Não bebeu a cerveja, mas aceitou, agradecido, a oferta de uma xícara de chá. Após bebê-lo, olhou para o relógio e levantou-se. Faltavam cinco minutos para uma.

- Já terminei a sebe - comunicou. - Trarei os troncos para cá, e a senhora indicará onde devo colocá-los. Então, dirá o que devo fazer em seguida. E também quantos dias na semana quer que eu venha.

- Eu sugeri três dias à Autogarden, mas se você trabalha a esta velocidade, creio que dois serão suficientes.

- Tudo bem. A senhora é quem sabe.

- Como farei seu pagamento?

- A senhora pagará à Autogarden e eles me pagarão.

- Espero que lhe paguem um bom salário.

- É o suficiente.

Ele estendeu a mão para o blusão e tornou a vesti-lo.

- Por que eles não lhe entregam um furgão para trabalhar? - perguntou ela.

- Eu não dirijo.

- Oh, mas todos os jovens dirigem, hoje em dia. Você poderia aprender, sem dificuldade.

- Eu não disse que não sei dirigir. Falei apenas que não dirijo.

Após mostrar a ele onde colocar os troncos e indicar-lhe a nova tarefa, agora cavando uma vala dupla no terreno da horta. Penelope voltou à cozinha, a fim de lavar os pratos usados no almoço. "Eu não disse que não sei dirigir. Falei apenas que não dirijo”.Ele não aceitara a lata de cerveja. Ela se perguntou se Danus Muirfield havia sido apanhado dirigindo embriagado e tivera a licença de motorista cassada. Talvez tivesse matado alguém, tendo assumido o compromisso de não tornar a beber, jurado que o álcool nunca mais passaria por seus lábios. A própria idéia de semelhante horror causou-lhe arrepios. Não obstante, uma tragédia de tão maciças proporções estava dentro das possibilidades. Isto explicaria muito a respeito dele... a tensão em seu rosto, a boca que não sorria, os olhos fixos que não pestanejavam. Ali havia algo encoberto pela precaução. Algum mistério. Ainda assim, gostara dele. Oh, sim, gostara muito dele.

Às nove horas da noite seguinte, que era uma terça-feira, Noel Keeling entrou com seu Jaguar na Ranfurly Road e dirigiu pela rua escura e chuvosa, até parar diante da casa de sua irmã Olivia. Não era esperado, mas também já se preparava para encontrá-la ausente, o que geralmente acontecia. Olivia era a mulher mais social de seu conhecimento. No entanto, surpreendentemente, havia luzes acesas atrás das cortinas fechadas da sala de estar, de maneira que ele saiu do carro, trancou-o e caminhou pela pequena passagem, a fim de tocar a campainha. Um momento mais tarde. a porta se abria, e ali estava Olivia usando um agasalho caseiro de viva lã vermelha, sem maquilagem e de óculos. Evidentemente, não estava trajada para visitas.

- Olá - disse ele.

- Noel! - Ela parecia surpresa, o que seria muito natural, já que ele não tinha o hábito de aparecer em sua casa, embora morando a apenas uns três quilômetros de distância. - O que faz aqui?

- Vim apenas vê-la. Está ocupada?

- Sim, estou. Tentando preparar dados para uma reunião, amanhã cedo. Bem, não vem ao caso. Entre.

- Estive tomando um drinque com amigos, em Putney.

Ele alisou os cabelos e a seguiu até a sala de estar. Como sempre, ali dentro era maravilhosamente aquecido, com lareira acesa, flores por toda parte... Noel invejou-a. Sempre a invejara. Não apenas o sucesso da irmã, mas a competência com que ela parecia manejar cada faceta de sua vida movimentada. Na mesinha baixa, junto à lareira, estavam sua pasta. maços de papéis, páginas de prova, mas ela se abaixou para colocá-los em alguma espécie de ordem e removê-los para sua secretária. Ele foi para diante da lareira, ostensivamente a fim de aquecer as mãos ao calor das chamas, porém na realidade para espreitar os convites que ela colocara sobre o aparador da lareira, dar uma checagem geral em seus compromissos sociais. Viu que recebera convite para um casamento ao qual não o tinham convidado e também para uma visita privada a uma nova galeria, em Walton Street.

- Você já comeu alguma coisa? - perguntou ela.

Ele se virou para fitá-la.

- Alguns canapés - Noel pronunciou a última palavra da maneira como era soletrada, uma das poucas e antigas brincadeiras familiares partilhada pelos dois.

- Não está com fome?

- O que tem para oferecer?

- Um resto do quiche do jantar. Se quiser, pode comê-lo. Também há biscoitos e queijo.

- Oh, mas é formidável!

- Vou apanhar. Sirva-se de bebida.

Ele aceitou a gentil oferta e serviu para si um uísque com soda, enquanto ela desaparecia em direção à pequena cozinha, além da sala de refeições, acendendo as luzes à medida que avançava. Lá, com ar de camaradagem, Noel se juntou a ela, puxando uma banqueta alta para o pequeno balcão que separava as duas áreas, sentando-se como um homem em um pub, de conversa com o encarregado.

- Fui ver a mãe, no domingo - disse ele.

- É mesmo? Eu estive com ela no sábado.

- Ela me contou. Com um elegante americano a reboque. Como acha que ela está indo?

- Maravilhosamente bem, nas atuais circunstâncias.

- Acha que foi mesmo um ataque do coração?

- Bem, de qualquer modo, pelo menos um aviso. – Olívia olhou para ele, com a boca formando um trejeito. - Nancy já a colocou a sete palmos debaixo da terra. - Noel riu, sacudiu a cabeça. Nancy era um tema sobre o qual ele e Olivia sempre concordavam. - Naturalmente, mamma trabalha demais. Sempre foi assim mas, pelo menos, concordou em arranjar alguém para ajudá-la no jardim. Já é um bom começo.

- Tentei convencê-la a vir até Londres amanhã.

- Para quê?

- Para ir à Boothby's. Ver o Lawrence Stern ser vendido ao bater do martelo. Saber a quanto irá.

- Oh, sim, As aguadeiras. Esqueci que seria amanhã. Ela prometeu vir?

- Não.

- Bem, afinal, por que viria? Não irá ganhar nada com a venda.

- Claro que não. - Noel baixou os olhos para seu copo. - No entanto, poderia ganhar, se vendesse o que é dela.

- Se está falando de “Os catadores de conchas” é tempo perdido. Ela morreria antes de se desfazer daquele quadro.

- E quanto aos painéis?

A expressão de Olivia se tomou profundamente desconfiada.

- Você falou a mamma sobre eles?

- Por que não falaria? São pinturas horrendas, admitamos. Vão acabar desintegrando-se, no alto da escada. Ela nem daria pela deterioração.

- Ambos são inacabados.

- Eu gostaria que todos parassem de me dizer que são inacabados. Em minha opinião. têm um valor de raridade que vai além do preço. Após um momento. Olivia disse:

- Suponhamos que ela concorde em vendê-los. - Pegou uma bandeja, colocou pratos, garfo e faca sobre ela, um potinho de manteiga, um tabuleiro com queijo. - Você pretende sugerir-lhe o que fazer com o dinheiro da venda ou deixará isso a critério dela?

- O dinheiro dado por alguém quando vivo vale o dobro do dado quando morto.

- Isto significa que espera pôr nele suas patinhas cobiçosas.

- Não apenas eu. Nós três. Oh, não fique tão admirada, Olivia! Afinal, nada há por que se envergonhar. Atualmente, todo mundo está curto de capital, e não me venha dizer que Nancy não anda louca por algum dinheiro extra. Ela vive se lamentando sobre como tudo anda caro.

- Você e Nancy, talvez. Não me envolva nisso.

Noel girou o copo.

- Certo, mas tampouco seria contrária, não é mesmo?

- Não quero coisa alguma de mamma. Acho que ela já nos deu o suficiente. Meu desejo é que continue lá, bem de saúde e em segurança, sem preocupações financeiras e capaz de divertir-se.

- Ela tem uma situação confortável. Todos nós sabemos disso.

- Sabemos mesmo? E quanto ao futuro? Ela pode ainda viver até uma idade avançada.

- Mais um motivo para a venda daquelas ninfas melancólicas. O capital poderia ser investido para ajudá-la na velhice.

- Eu me recuso a discutir isso!

- Então, não acha que seria uma boa idéia?

Olivia não respondeu. Limitou-se a pegar a bandeja e levá-la para junto da lareira. Enquanto a seguia, Noel decidiu que mulher alguma podia ser tão orgulhosa e formidável como Olivia, quando alguém tentava convencê-la de algo que ela não aprovasse.

Ela depositou a bandeja com certa brusquidão sobre a mesinha baixa. Depois, erguendo o corpo, enfrentou-o através da sala.

- Não, não acho - respondeu.

- Por que não?

- Penso que você devia deixar mamma em paz.

- Tudo bem! - Ele entregou os pontos simpaticamente, sabendo que, a longo prazo, esta era a melhor maneira de obter o que queria. Acomodou-se em uma das fofas poltronas e inclinou-se para a frente, a fim de dar conta da inesperada refeição. Olivia se postou com os ombros recostados na lareira, as mãos enterradas fundo nos bolsos do agasalho. Noel sentiu-se observado quando ergueu o garfo e o enterrou no quiche. - Esqueçamos a venda dos painéis. Falemos de outra coisa qualquer.

- Como o quê?

- Por exemplo, se você viu ou ouviu a mãe mencionar alguns esboços a ó1eo que Lawrence Stern teria feito, referentes a todas as suas obras importantes. Será que ela suspeitaria da existência de tais esboços?

Noel passara o dia sem saber se falaria ou não a Olivia sobre a descoberta da antiga carta e suas possibilidades subseqüentes. Por fim, decidiu aceitar o risco. Olivia seria uma aliada importante em sua causa. Dos três filhos, somente ela possuía alguma influência sobre a mãe. Enquanto fazia a pergunta, não deixou de encará-la. Viu a expressão dela tomar-se cautelosa, cheia de suspeita. Já era de esperar.

- Após um momento, ela disse:

- Não. - Isto também era de esperar, mas Noel sabia que sua irmã dizia a verdade, porque nunca mentia. - Não faço a menor idéia.

- Compreenda devem ter existido alguns esboços.

- O que o lançou nessa caçada às cegas?

Ele lhe falou sobre o encontro da carta.

- O jardim do terrazzo? Bem, está no Metropolitan, em Nova York.

- Exatamente. E se foi feito um esboço a óleo para O jardim do terrazzo, por que não também esboços para As aguadeiras, O galanteio do pescador e todos os demais velhos clássicos, agora confinados em tediosos museus de cada capital importante do mundo?

Olivia refletiu nisso. Depois disse:

- O mais provável é que tenham sido destruídos.

- Oh, tolice! O velho nunca destruía nada. Sabe disso tão bem quanto eu. Nenhuma casa já foi tão entulhada de velharias de eras e eras, como a da Rua Oakley. Excetuando-se Podmore's Thatch. Entenda, aquele sótão da mãe é um risco certo de incêndio. Se qualquer agente de seguros pudesse ver o atravancamento que existe lá, debaixo do colmo, teria um ataque.

- Você subiu lá ultimamente?

- Estive lá no domingo, procurando minha raquete de squash.

- Foi só mesmo a raquete que procurava?

- Bem, dei uma espiada em volta.

- Esperando encontrar uma pasta com esboços a óleo.

- Algo no gênero.

- Só que nada encontrou.

- Claro que não encontrei. Ninguém descobriria um elefante, naquela montoeira de coisas.

- Mamma sabia o que você procurava?

- Não.

- Você é um sujeito desprezível, Noel! Por que sempre tem que agir com deslealdade?

- Porque ela não faz a menor idéia do que existe naquele sótão, assim como tampouco sabia qual o conteúdo dos sótãos da Rua Oakley.

- E o que existe lá em cima?

- De tudo. Caixas velhas; cômodas com roupas e maços de cartas. Manequins de costureira, bercinhos de brinquedo, banquetas, sacolas com tapeçarias em lã, balanças, caixas de blocos de madeira, pilhas de revistas amarradas com barbante, modelos para tricô, carcomidas molduras de retratos... Diga o nome de alguma coisa, e encontrará lá. Em um dia de vento, qualquer fagulha tornaria a casa inteira uma fornalha. Só espero que haja tempo da mãe atirar-se por uma janela, antes de ser incinerada. Rum... Este quiche está delicioso! Obra sua?

- Eu nunca faço nada. Compro tudo no supermercado.

Afastando-se da lareira, Olivia foi até a mesa da sala, atrás dele. Noel a ouviu

despejando bebida e permitiu-se um sorriso, pois sabia que conseguira deixá-la ansiosa e, portanto, ganhara a sua atenção, possivelmente, sua simpatia. Ela retomou para junto da lareira e sentou-se no sofá diante dele, com o copo aninhado nas mãos.

- Escute, Noel. Você acha mesmo que há perigo?

- Acho. Sinceramente. Verdadeiramente. Há perigo.

- Em sua opinião, o que deveríamos fazer?

- Uma boa faxina naquele sótão.

- Mamma talvez jamais concordasse.

- Tudo bem, então, nada feito. Entretanto, metade daquelas velharias daria uma boa fogueira, como os montes de revistas, os moldes de tricô e as tapeçarias de lã...

- Por que as tapeçarias de lã?

- Porque estão fervilhando de traças.

Ela nada disse quanto a isto. Noel terminara o quiche e agora atacava o queijo, uma amostra particularmente deliciosa de Brie.

- Diga-me uma coisa, Noel. Não estará atiçando tudo isto apenas para ter uma boa desculpa a fim de espionar? Se encontrar os tais esboços ou qualquer outra coisa de valor, lembre-se de que tudo naquela casa pertence a mamma.

Ele a encarou assumindo uma expressão da mais pura inocência.

- Certamente. não está pensando que eu os roubaria!

- Tenho minhas dúvidas.

Ele preferiu ignorar o comentário.

- Se eu encontrar aqueles esboços, você tem alguma idéia de quanto valem? Pelo menos, cinco mil cada um!

- Por que fala deles como se soubesse que estão lá?

- Eu não sei se estão lá! Apenas desconfio de que possam estar. No entanto, o mais importante é que o sótão representa um sério potencial de incêndio, e acho que alguma coisa devia ser feita a respeito.

- Já que falamos nisto, acha que devíamos ter a casa inteira reavaliada para um seguro?

- George Chamberlain providenciou tudo isso, quando comprou a propriedade para mamãe. Talvez você devesse ter uma conversa com ele. Por outro lado, não tenho nenhum compromisso para este fim de semana. Posso ir até lá na sexta-feira e atacar essa tarefa de Hércules. Telefonarei para a mãe anunciando minha ida.

- Perguntará a ela sobre os esboços?

- Você acha que eu deveria?

Olivia não respondeu logo. Depois disse:

- Não, acho que não. - Ele a fitou com certa surpresa. - Acredito que isso talvez a deixasse nervosa. Se os esboços aparecerem, poderemos contar a ela. Se não estiverem lá, isso não fará qualquer diferença. E mais uma coisa, Noel: você não falará mais nada a ela sobre vender seus quadros! Na verdade, você nada tem a ver com eles.

Ele pousou a mão no coração.

- Palavra de escoteiro! - Sorriu. - Você pensa o mesmo que eu.

- Você é um grande patife, Noel. Jamais pensarei o mesmo que você.

Ele aceitou a acusação sem perder a calma, terminou de comer em silêncio e então, levantando-se, foi encher o copo novamente. Às suas costas, Olivia perguntou:

- Você vai mesmo? A Podmore's Thatch, quero dizer.

- Não há razão para deixar de ir. - Retomou à sua cadeira.

- Por que pergunta?

- Poderia fazer um favor para mim.

- Eu poderia?

- Sabe a quem me refiro, quando falo em Cosmo Hamilton?

- Cosmo Hamilton? Ora, mas é claro! O amante da ensolarada Espanha. Não me diga que ele entrou de novo em sua vida!

- Não, ele não entrou em minha vida. Saiu dela. Está morto.

Ao ouvir isto, Noel ficou realmente surpreso e chocado.

- Morto! -O rosto de Olivia estava calmo, mas muito pálido e imóvel, fazendo-o lamentar sua jocosidade. - Oh, sinto muito. O que aconteceu?

- Não sei. Ele morreu no hospital.

- Quando é que soube disso?

- Na sexta-feira.

- Ele era um homem novo ainda...

- Estava com sessenta anos.

- Que coisa terrível, acontecer isso!

- Também acho. Bem, a questão é que ele tem. Uma filha, Antonia. Ela chega em Heathrow amanhã, vindo de Ibiza. Ficará aqui alguns dias e depois irá para Podmore’s Thatch, fazer companhia a mamma por algum tempo.

- A mãe já sabe?

- É claro que sabe. Combinamos no sábado.

- Engraçado... Ela não me disse nada.

- Imaginei que não diria.

- E que idade tem essa garota... essa Antonia?

- Dezoito anos. Eu mesmo pretendia levá-la e ficar lá o fim de semana, porém assumi um compromisso com um homem...

Novamente dono de si, Noel ergueu uma sobrancelha.

- Negócios ou prazer?

- Exclusivamente negócios. Ele é um desenhista francês, homossexual assumido, que se hospeda no Riu. É imprescindível que nos encontremos.

- E...?

- E se você está para ir a Gloucestershire à noite, seria um favor para mim levá-la em sua companhia.

- Ela é bonita?

- Sua resposta depende disto?

- Não, mas seria bom ficar sabendo.

- Aos treze anos, era encantadora.

- Gorda e sardenta?

- De maneira alguma. Quando mamma foi ficar conosco em Ibiza, Antonia também estava lá. As duas ficaram amicíssimas. Por outro lado, desde que mamma ficou doente, Nancy vive buzinando em meus ouvidos que ela não deve morar sozinha. Assim, se Antonia estiver com ela, não ficará só. Pensei que fosse uma idéia excelente.

- Já está com tudo planejado, não é mesmo?

Olivia ignorou a insinuação.

- Você a levaria?

- Claro, não será incômodo algum.

- Quando virá apanhá-la?

Anoitecer de sexta-feira... ele considerou a pergunta.

- Seis da tarde.

- Então, a essa hora, sem falta, já terei voltado do escritório. E, Noel... - De repente, Olivia sorriu. Não sorrira a noite inteira, mas sorria agora e, por um instante, houve ternura entre eles, camaradagem. Era com se fossem apenas dois irmãos afetuosos, que tivessem passado uma agradável hora juntos fico muito grata a você.

Na manhã seguinte, já no escritório, Olivia ligou para Penelope.

- Mamma?

- Olivia!

- Mamma, escute uma coisa. Tive que alterar meus planos e não posso ir aí neste fim de semana, de maneira alguma. Tenho negócios a tratar com um francês efeminado, e sábado e domingo são os únicos dias que ele pode reservar para mim. Não sabe o quanto lamento.

- E quanto a Antonia?

- Noel a levará. Ele ainda não ligou para você?

- Nem uma palavra.

- Pois ele irá. Chegará na sexta-feira e ficará aí uns dois dias. Tivemos uma longa conferência de família ontem à noite, e decidimos que você precisa, de alguma forma, fazer uma limpeza nesse seu sótão, antes que a casa inteira vire fumaça. Eu não tinha percebido que isso aí era como uma toca de esquilos. Você é uma mulherzinha travessa!

- Uma conferência de família? - Penelope pareceu surpresa, e realmente estava. - Você e Noel?

- Exato. Ele apareceu por aqui ontem à noite e eu lhe dei uma ceia improvisada. Contou-me que estivera no sótão, procurando qualquer coisa, e encontrou tal acúmulo de coisas lá dentro, que há um verdadeiro risco de incêndio. Então, combinamos que ele iria até aí e poria um pouco de ordem no lugar. Não se preocupe, não estamos querendo nos impor, mas apenas preocupados. Além do mais, ele prometeu que não jogaria nada fora e nem queimaria coisa alguma sem o seu consentimento. Achei que era uma grande consideração da parte dele. Noel realmente se prontificou a fazer o trabalho; portanto, não vá ficar zangada, achando que a estamos tratando como uma débil mental.

- Não estou zangada em absoluto e, aliás, também acho que é muita consideração de Noel. Eu mesma estive querendo limpar aquele sótão a cada inverno, nos últimos cinco anos, mas a trabalheira seria tanta, que não era difícil encontrar uma justificativa para adiá-la. Acho que Noel pode dar conta do recado sozinho?

- Antonia estará aí. Provavelmente, ela até se divertirá ajudando. E quanto a você, ficará apenas espiando, ouviu? Sem fazer esforço!

Penelope teve uma brilhante idéia.

- Eu podia pedir a Danus que viesse aqui, nesse dia. Mais dois braços fortes fariam uma boa diferença. Ela poderia encarregar-se da fogueira.

- Quem é Danus?

- Meu novo jardineiro.

- Oh, já tinha me esquecido. O que achou dele?

- Um bom rapaz. Antonia ainda não chegou?

-Não. Irei apanhá-la no aeroporto, à noitinha.

- Dê minhas lembranças a ela e diga que mal posso esperar para vê-la.

- Farei isso. Ela e Noel estarão com você na noite de sexta-feira, em tempo para o jantar. Só lamento não poder estar aí também.

- Sentirei sua falta, mas fica para outra vez.

- Então, adeus, mamma.

- Adeus, minha querida.

Ao anoitecer, Noel telefonou.

- Mãe?

- Noel!

- Como vai você?

- Estou ótima. Soube que virá aqui para o fim de semana.

- Olivia já falou com você?

- Esta manhã.

- Ela acha que eu devia ir aí, esvaziar o sótão. Vem tendo pesadelos com incêndios.

- Eu sei, ela me contou. Acho que é uma boa idéia e muita gentileza sua.

- Oh, mas que reviravolta nos regulamentos! Pensamos que você fosse ficar danada da vida.

- Pois então, pensaram errado - retorquiu Penelope, meio irritada com esta nova imagem de si mesma, uma velha senhora teimosa e não colaboradora. - Chamarei Danus para trabalhar aqui durante o dia, ajudando você. É o meu novo jardineiro e tenho certeza de que não se importará. Aliás, é muito bom para fazer fogueiras.

Noel hesitou um instante, mas depois disse:

- Boa idéia.

- E você trará Antonia para cá. Assim, estarei esperando os dois, no anoitecer de sexta-feira. E não dirija depressa!

Penelope ia desligar e cortar a conversa, mas ele pressentiu isto e gritou!

- Mãe!

Ela tornou a levar o fone ao ouvido.

- Pensei que já ia desligar.

- Eu queria falar-lhe sobre o leilão. Fui à Boothby's esta tarde. Sabe quanto As aguadeiras alcançou?

- Não faço a menor idéia.

- Duzentas e quarenta e cinco mil e oitocentas libras!

- Santo Deus! Quem comprou o quadro?

- Uma galeria de arte americana. Acho que de Denver, Colorado.

Ela balançou a cabeça, atônita, como se Noel pudesse vê-la.

- Que dinheirama!

- De deixar a pessoa tonta, não?

- Sem dúvida - respondeu ela - dá o que pensar.

Quinta-feira. Quando Penelope saiu da cama e desceu para o térreo, o jardineiro já estava trabalhando. Ela lhe dera uma chave para a garagem, a fim de que ele tivesse acesso aos apetrechos de jardinagem e, da janela de seu quarto, podia observá-lo labutando na horta. Não o perturbou, porque durante aquele primeiro dia pudera perceber que Danus não era apenas um trabalhador esforçado, mas também uma pessoa de temperamento reservado. Evidentemente, não gostaria de vê-la surgindo a todo instante para dizer que horas eram, fiscalizar suas atividades e ser um estorvo em geral. Se ele precisasse de alguma coisa, era só vir a ela e pedir. Caso contrário, que continuasse entregue ao que fazia.

Ainda assim, quando faltavam quinze para o meio-dia, já tendo encerrado as tarefas domésticas e com uma fornada de pão assando na estufa, ela tirou o avental e desceu ao jardim para falar com ele, recordar-lhe que o esperava em casa para o almoço. O dia esquentara, havia uma boa parte de céu azul. O sol não oferecia muito calor mas, mesmo assim, ela arrumaria a mesa na estufa de plantas e lá fariam a refeição.

- Bom-dia!

Ao erguer os olhos e vê-la, ele endireitou as costas, apoiando-se na pá. O ar parado da manhã estava impregnado de cheiros fortes e revigorantes: terra recentemente revolvida e o composto putrefeito, misturado a uma quantidade de esterco de cavalo, que Danus trouxera em carrinho de mão, da pilha que ela amontoava e acumulava cuidadosamente.

- Bom-dia, Sra. Keeling.

Ele havia tirado o blusão e o suéter, para trabalhar em mangas a de camisa. Tinha os antebraços bronzeados de sol, enovelados de puro músculo. Enquanto Penelope o observava, ele ergueu a mão a para, com o pulso, limpar do queixo uma mancha de lama. O gesto a provocou uma penetrante sensação de déjà vu, mas agora ela estava preparada para isto e seu coração não falhou uma pancada, simplesmente a encheu de prazer.

- Parece acalorado - comentou ela.

Ele assentiu.

- E um trabalho que exige esforço.

- O almoço estará pronto ao meio-dia.

- Obrigado. Estarei lá.

Danus votou a cavar. Um tordo revoluteava por ali, não só como companhia, adivinhou Penelope, mas também de olho em minhocas. Os tordos eram deliciosamente gregários. Virando-se, deixou o jardineiro entregue ao seu trabalho, e retomou à casa, de passagem colhendo um ramo precoce de primavera-dos-jardins. As flores eram aveludadas e fortemente perfumadas, fazendo-a evocar as pálidas prímulas da Cornualha, salpicando as abrigadas cercas-vivas, quando o restante do lugar ainda se encontrava nas garras do inverno.

Preciso ir lá o quanto antes, disse para si mesma. A primavera na Cornualha é uma época de tanta magia! Preciso ir logo, antes a que seja tarde demais.

- O que você faz nos fins de semana, Danus? -perguntou ela.

Hoje, servia a ele presunto frio, batatas assadas e couve-flor ao queijo. Para sobremesa, havia pasteizinhos com geléia e uma torta de creme com ovos. Não algo comido às pressas, mas uma refeição adequada. Penelope sentou-se e a comeu com ele, perguntando-se se, em tal ritmo, não terminaria imensamente gorda.

- Não muita coisa.

- Quero dizer, você trabalha para alguém nos fins de semana?

- Algumas vezes, trabalho para o gerente do Banco de Pudley, na manhã de sábado. Ele prefere jogar golfe a praticar jardinagem, mas sua esposa se queixa das ervas daninhas.

Penelope sorriu.

- Pobre homem! E quanto aos domingos?

- Meus domingos são sempre livres.

- Você poderia vir aqui no domingo... será um trabalho, quero dizer. Eu lhe pagarei, não à Autogarden, e acho inteiramente justo, porque não é jardinagem o que quero que faça.

Ele pareceu um tanto surpreso, e tinha razão.

- O que a senhora quer que eu faça?

Penelope lhe falou sobre Noel e o sótão.

- Há muita coisa imprestável lá em cima, bem sei, e tudo precisará ser transportado escada abaixo, para uma seleção. Não creio que meu filho consiga fazer tudo isso sozinho. Achei que, se você pudesse vir aqui dar uma ajuda, seria excelente.

- É claro que virei. Só que, como um favor. Não precisará pagar coisa alguma.

- Ora, mas...

- Não, senhora - disse ele, com firmeza. - Não quero que me pague. A que horas deverei estar aqui?

- Por volta de nove da manhã.

- Eu estarei.

- Terei um bom grupinho para almoçar. Há uma jovem que virá ficar algumas semanas comigo. Noel a trará amanhã à noite. Ela se chama Antonia.

- Vai ser bom para a senhora - disse Danus.

- Também acho.

- Terá companhia em casa.

Nancy não era das melhores, em leitura de jornais. Quando ia à aldeia fazer compras, o que acontecia quase todas as manhãs - parecia haver uma singular falta de comunicação entre ela e a Sra. Croftway, pois sempre estavam precisando de manteiga, café instantâneo ou caldo de carne -, ela geralmente passava no jornaleiro e comprava para si um Daily Mail ou um exemplar de Woman’s Oum, folheados durante o sanduíche e os biscoitos de chocolate que compreendiam seu almoço. The Times, entretanto, só entrava naquela casa à noite, trazido por George em sua pasta.

Quinta -feira era o dia de folga da Sra. Croftway, isto significando que Nancy estaria na cozinha, quando George retornasse do trabalho. Teriam bolinhos de peixe para o jantar, cujo preparo a Sra. Croftway já deixara em andamento, e o marido dela trouxera uma cesta de suas terríveis, amargas e excessivamente desenvolvidas couves-de-bruxelas. Nancy estava diante da pia, preparando-as, odiando a tarefa e praticamente certa de que os filhos se recusariam a comê-las, quando ouviu o som do carro, aproximando-se da entrada. Um momento mais tarde, a porta se abriu, tornou a fechar-se, e seu marido chegou junto dela, parecendo cansado e frágil, em suas roupas severas. Nancy desejou que ele não houvesse tido um dia cansativo. Quando George tinha um dia cansativo, costumava descontá-lo na esposa.

Erguendo os olhos, sorriu com firmeza para ele. Era tão raro ele parecer alegre, que se tornava importante não ficar deprimida pela melancolia do marido e manter a ilusão - mesmo que apenas por sua parte - de um relacionamento afetuoso e de companheirismo.

- Olá, querido. Teve um bom dia hoje?

- Tudo bem.

Ele colocou a pasta em cima da mesa, e dela retirou The Times.

- Dê uma olhada nisto.

Nancy ficou espantada com tal proximidade. Na maioria das noites, ele simplesmente grunhia e seguia para a biblioteca, onde permanecia cerca de uma hora isolado e em silêncio, antes do jantar. Alguma coisa extraordinária devia ter acontecido. Só esperava que não fosse alguma bomba atômica. Abandonando as couves-de-bruxelas, enxugou as mãos e ficou ao lado dele. George abrira o jornal em cima da mesa, folheara até a Seção de Artes e, com um pontudo e lívido indicador, apontava uma coluna em particular.

Nancy espiou, sem conseguir decifrar o borrão de letras impressas.

- Estou sem meus óculos - disse.

George suspirou, resignado com a incapacidade da esposa.

- Noticiário do mercado de arte, Nancy. O quadro de seu avô foi vendido ontem, na Boothby's.

- Foi ontem?

Ela não havia esquecido As aguadeiras. Pelo contrário, a conversa tida com Olivia durante o almoço no L’Escargot ocupara seus pensamentos desde então, porém ficara a tal ponto obcecada pelo provável valor das pinturas ainda existentes em Podmore's Thatch, que perdera a noção do tempo, dos dias. Jamais fora muito boa para recordar datas.

- Sabe quanto o quadro alcançou? - Boquiaberta, ela balançou a cabeça. - Duzentas e quarenta e cinco mil e oitocentas libras!

Ele pronunciou as palavras mágicas em tons medidos, a fim de não haver possibilidade de Nancy entender errado. Ela se sentiu amolecer. Pousou a mão na mesa da cozinha, a fim de se firmar, e continuou a fitar o marido, de olhos esbugalhados.

- Comprado por gente americana. É repugnante a maneira como tudo de valor sempre acaba saindo do país!

Ela finalmente encontrou a voz.

- E era um quadro horroroso - disse para ele.

George sorriu gelidamente, sem qualquer toque de humor.

- Para sorte do pessoal da Boothby's e do proprietário anterior, nem todo mundo pensa como você.

Nancy, entretanto, mal reparou no comentário.

- Quer dizer então - disse - que Olivia não estava enganada!

- O que quer dizer com isto?

- Que nós conversamos a respeito, naquele dia em que almoçamos no L' Escargot. Ela imaginou que o preço seria mais ou menos esse. - Olhou para George. - Também achou que “Os catadores de conchas” e os dois outros quadros que mamãe ainda possui talvez valham meio milhão. Talvez acertasse também sobre eles.

- Não há dúvida - disse George. - A nossa Olivia raramente se engana sobre alguma coisa. Na espécie de círculos em que se movimenta, pode manter aquele seu nariz comprido bem rente ao chão.

Nancy puxou uma cadeira e sentou-se, aliviando o peso de suas pernas. Perguntou:

- Você acha que mamãe tem noção do quanto eles valem, George?

- Não acredito. - Ele apertou os lábios. - É melhor eu ter uma conversa a respeito. Devíamos verificar a questão do seguro. Qualquer pessoa pode entrar naquela casa e, simplesmente, tirá-los das paredes. Pelo que me consta, ela nunca trancou uma porta na vida.

Nancy começou a ficar excitada. Ainda não contara a ele sua conversa com Olivia, porque George não gostava de sua irmã e mostrava visível desinteresse por tudo quanto ela pudesse dizer. Entretanto, já que ele próprio puxara o assunto, tudo ficava bem mais simples.

- Falou, procurando malhar o ferro quando ainda quente:

- Talvez devêssemos ir ver mamãe. Conversar com ela.

- Está falando do seguro?

- Se os pagamentos forem exagerados, ela talvez... - A voz dela ficou rouca. Pigarreou, para limpar a garganta.- ... decida que vendê-los será mais simples. Olivia disse que atualmente o mercado está no auge, em relação a essas antigas obras vitorianas... (aquilo soava maravilhosamente sofisticado e erudito. Nancy sentiu-se orgulhosa de si mesma)...e seria lamentável perder esta oportunidade.

- Estranhamente, George pareceu considerar seu ponto de vista. Comprimindo os lábios, tornou a ler o parágrafo e então, em gestos medidos e precisos, dobrou o jornal.

- Isto é com você.

- Oh, George! Meio milhão! Mal posso imaginar tanto dinheiro!

- Naturalmente, há impostos a pagar.

- Ainda assim! Nós temos que ir lá, George! Além do mais, há muito tempo que não vejo mamãe. Já é hora de verificar como estão indo as coisas com ela. Então, posso tocar no assunto. Com muito tato. - George pareceu duvidoso. Ambos sabiam que tato não era o ponto mais forte de Nancy. Vou ligar agora mesmo para ela.

- Mamãe?

- Nancy!

- Como é que vai?

- Muito bem. E você?

- Sem trabalhar demais?

- Está falando de mim ou de você?

- De você, é claro. O jardineiro já começou a trabalhar?

- Já. Veio na segunda-feira e novamente hoje.

- Espero que seja satisfatório.

- Bem, ele me satisfaz.

- Pensou mais um pouco em ter alguém morando com você? Coloquei um anúncio em nosso jornal local, mas infelizmente, ninguém respondeu. Nem um telefonema.

- Oh, não precisa preocupar-se mais com isso. Antonia chega amanhã à noite, vai ficar algum tempo comigo.

- Antonia? Quem é Antonia?

- Antonia Hamilton. Oh, meu bem, acho que todos esquecemos de falar a você. Pensei que Olivia tivesse lhe contado a novidade.

- Não contou - replicou Nancy com frieza. - Ninguém me contou nada.

- Bem, aquele simpático amigo de Olivia, aquele com quem ela morou, quando esteve em Ibiza... Oh, foi muito triste, ele faleceu. Então, sua filha virá para cá durante algum tempo, a fim de refazer-se e decidir o que irá fazer de sua vida agora.

Nancy irritou-se.

- Francamente, acho que alguém deveria ter-me contado! Se já soubesse disso, não me daria ao trabalho de colocar o anúncio!

- Sinto muito, meu bem, mas é que, com uma coisa e outra, tenho andado tão ocupada, que acabei esquecendo. Enfim, de qualquer modo, isto significa que não precisará preocupar-se mais comigo.

- E que espécie de pessoa ela é?

- Segundo imagino, muito meiga.

- Que idade tem?

- Apenas dezoito anos. Será uma companhia esplêndida para mim.

- Quando vai chegar?

- Já lhe disse. Amanhã à noite. Noel a trará de Londres. Ele virá passar o fim de semana aqui e pretende fazer uma limpeza no sótão. Ele e Olivia acham que todo aquele atravancamento corre risco de incêndio. - Houve uma pausa na conversa, e então ela prosseguiu: - Por que vocês não vêm também, almoçar conosco no domingo? Traga as crianças. Então, poderá ver Noel e conhecer Antonia.

E abordar o assunto dos quadros.

- Oh... - Nancy hesitou. - Sim, acho que seria uma boa idéia. Espere um momento, enquanto troco uma palavra com George...

Ela deixou o fone pendendo do fio e foi em busca do marido. Não teve que procurar muito. Conforme já imaginava, encontrou-o enfiado em sua poltrona, escondido atrás do The Times.

- George! - Ele baixou o jornal. - Ela nos convidou para almoçar no domingo.

Deu a notícia em um cochicho, como se a mãe pudesse ouvi-la, embora o telefone estivesse distante dali.

- Eu não posso ir - respondeu George, instantaneamente. Tenho um almoço diocesano formal e preciso comparecer a uma reunião.

- Sendo assim, eu levarei as crianças.

- Pensei que elas fossem passar o dia com os Wainwright...

- Oh, é mesmo! Eu tinha esquecido. Bem, então irei sozinha.

- É, parece que não há outro jeito - disse George.

Nancy voltou ao telefone.

- Mamãe?

- Fale, ainda estou aqui.

- George e as crianças já estão comprometidos para o domingo, mas eu gostaria muito de ir, se você não se incomodar.

- Sozinha? - (Teria mamãe parecido um tanto aliviada? Nancy afastou tal idéia da cabeça.) - Oh, não deixe de vir! Chegue por volta de meio-dia e poderemos bater um papinho. Estarei esperando, então.

Nancy desligou e foi contar a George o que combinara com a mãe. Terminou também falando na desconsideração e arbitrariedade de Olivia que, sem a menor dificuldade, encontrara uma companhia para a mãe, não se preocupando em comunicar a ela, Nancy, nada do que havia feito.

- ... e ela só tem dezoito anos! Provavelmente, alguma tagarelazinha, que ficará na cama o dia inteiro, esperando ser servida. Dando ainda mais trabalho para mamãe! Você não acha, George, que Olivia devia ter-me contado? Pelo menos, discutir o assunto? Afinal de contas, tenho assumido a responsabilidade de ficar de olho em mamãe, mas nenhum deles demonstra a menor consideração pelo que faço. Não acha que foi muito pouco caso deles... George?

George, no entanto, já se desligara, parara de ouvir. Nancy suspirou e o deixou, retomando à cozinha para despejar seu ressentimento no que sobrava das couves-de-bruxelas.

Quando Noel e Antonia finalmente chegaram de Londres, eram quase nove e quinze da noite e, a esta altura, Penelope já os imaginava mortos, entre pedaços retorcidos de metal (o Jaguar), ao lado da rodovia. Chovia a cântaros, a noite era escura, e ela ia à janela da cozinha a todo instante, espiando esperançosa na direção do portão. Já começava a pensar em ligar para a polícia, quando ouviu o som do motor descendo a rua que vinha da aldeia, diminuindo, fazendo a mudança e passando - graças a Deus - pelos portões da casa, para vir parar junto à porta dos fundos.

Levou um segundo a compor-se. Nada deixava Noel em pior estado de ânimo, do que uma chuva de perguntas e recriminações. Afinal de contas, se eles só houvessem saído de Londres às seis horas ou depois, seria tolice mostrar-se tão preocupada. Ela aquietou a ansiedade, procurou assumir uma expressão sorridente e caminhou para acender a luz externa e abrir a porta.

Viu o vulto comprido, aerodinâmico e surrado do carro do filho. Ele já saía e se encaminhava para abrir a outra porta. Desta última emergiu Antonia, arrastando atrás de si uma espécie de mochila. Penelope ouviu Noel dizer, "É melhor você dar uma corrida", e Antonia fez exatamente isso, de cabeça baixa contra a chuva, precipitando-se para o abrigo da varanda e direto nos braços que a esperavam.

Ela deixou cair a mochila no capacho da entrada e as duas abraçaram-se, apertadamente, Penelope cheia de alívio e afeição, Antonia simplesmente grata por finalmente estar ali, segura e nos braços da única pessoa com quem, naquele momento, desejaria estar.

- Antonia! - As duas separaram-se, mas Penelope, ainda a segurando pelo braço, puxou-a para a porta interior, para longe da noite escura, fria e molhada, ao encontro do calor da cozinha. - Oh, pensei que você nunca mais fosse chegar...

- Eu também.

Parecia a mesma, muito semelhante àquela menina de treze anos. Estava mais alta, naturalmente, porém tão esguia quanto antes... tinha um belo corpo, de pernas longas... e o rosto estava proporcional à boca mas, fora isso, bem pouco mudara. Ainda havia as sardas no nariz, os olhos amendoados e verdes, os cílios espessos, compridos e claros. Ainda o mesmo cabelo castanho-avermelhado, caindo à altura dos ombros, liso e cheio. Também o mesmo tipo de vestimenta: blue jeans, camisa branca de malha e um suéter masculina, de decote em V, posta sobre ela.

- É tão bom ter você aqui! Fez boa viagem para cá? Que chuvarada terrível

- Sim, chovia demais!

Antonia se virou, quando Noel entrou ao encontro delas, trazendo não apenas a mala de Antonia e sua própria sacola, como também a mochila que fora abandonada na varanda.

- Oh, Noel! - Ele pousou a bagagem no chão. - Que noite simplesmente terrível!

- Esperemos que não chova durante todo o fim de semana. Porque do contrário nada conseguirei fazer aqui. - Ele fungou. – Há alguma coisa com um cheiro delicioso!

- Torta de carne picada com purê de batatas.

- Estou faminto!

- Não é de admirar. Vou subir com Antonia para lhe mostrar seu quarto e então jantaremos. Tome um drinque. Tenho certeza de que precisa de um. Desceremos em um minuto. Venha. Antonia...

Penelope pegou a mochila, e Antonia. sua bolsa. As duas subiram a escada, cruzaram um pequeno patamar, passaram diante do primeiro quarto e entraram no segundo.

- Que casa maravilhosa! - exclamou Antonia, caminhando mais atrás.

- Não foi feita para a privacidade. Todos os quartos têm portas de comunicação entre si.

- Como Ca'n D'alt.

- Antigamente. eram dois chalés. Ainda há duas escadas e duas portas de entrada. Bem. aqui estamos!

Penelope largou a mochila e olhou em torno do quarto cuidadosamente preparado, verificando se se esquecera de alguma coisa. Parecia muito aconchegante. O carpete branco e firmemente colocado era novo, embora tudo o mais fosse dos tempos da casa da Rua Oakley. As camas gêmeas, com cabeceiras polidas e rodinhas nos pés; as cortinas com estamparia de rosas e não combinando com as cobertas das camas. O pequeno toucador de mogno e as poltronas de encosto bem abaulado. Ela enchera um lustroso jarro com primaveras-dos-jardins e dobrara a coberta de uma das camas, revelando os lençóis muito brancos e cobertores cor-de-rosa.

- Este armário é o guarda-roupa e, pela outra porta. você chega ao banheiro. O quarto de Noel é o seguinte e terá de partilhar o banheiro com ele mas, se o encontrar ocupado, basta ir ao outro extremo da casa e lá está o meu. E agora... - Com tudo explicado. Ela se virou para Antonia. - O que gostaria de fazer? Tomar um banho? Há tempo de sobra.

- Não. Eu gostaria apenas de lavar as mãos, se puder. Desço logo em seguida.

Havia sombras, como manchas, abaixo de seus olhos.

- Você deve estar cansada - disse Penelope.

- Estou, bastante. Acho que é uma espécie de fadiga de avião. Ainda não consegui refazer-me.

- Não importa, você agora está aqui. Não terá que ir para lugar algum, a menos que queira. Desça quando estiver pronta, e Noel lhe dará um drinque.

Penelope voltou à cozinha, onde encontrou Noel, com um grande e escuro uísque com soda, sentado à mesa e lendo o jornal. Ela fechou a porta após entrar, e ele ergueu os olhos.

- Está tudo bem?

- Pobre criança, ela parece exausta...

- Sem dúvida. Não falou muito, enquanto vínhamos para cá. Cheguei a pensar que estivesse dormindo, mas não estava.

- Ela quase não mudou. Acho que jamais conheci uma pessoinha tão atraente!

- Não me venha meter idéias na cabeça!

Ela dirigiu ao filho um olhar acautelador.

- Procure comportar-se este fim de semana. Noel.

Ele parecia a viva imagem da inocência.

- O que está querendo dizer com isso?

- Sabe muito bem o que quero dizer!

Ele sorriu. ainda bem-humorado, petulante.

- Quando eu terminar de transportar em carrinho de mão todas as quinquilharias de seu sótão, estarei esgotado demais para qualquer outra coisa que não seja cair em minha caminha e perder os sentidos.

- Assim espero!

- Ora, pare com isso, mãe! Compreenda, ela não faz o meu gênero, em absoluto... cílios brancos não me atraem. Fazem-me pensar em coelhos. Estou morrendo de fome. Quando vamos comer?

- Assim que Antonia descer.

Penelope abriu a porta do fomo e examinou sua torta, para que não ficasse assada demais ou fora do ponto. Estava indo muito bem. Tomou a fechar a porta.

- O que acha da venda da quarta-feira? - perguntou Noel.

- Estou falando do quadro As aguadeiras.

- Eu já lhe disse. É simplesmente inacreditável.

- Já decidiu o que vai fazer?

- E eu tenho que fazer alguma coisa?

- Ora, você está sendo obtusa. Aquele quadro alcançou quase um quarto de milhão! Você é dona de três Lawrence Stern, e a responsabilidade financeira - se nada mais - altera completamente a situação. Faça como sugeri da última vez que vim aqui. Peça a um profissional para avaliá-los. E se ainda não quiser vendê-los, então, por Deus, faça um novo seguro! – Um dia em que você estiver lá fora, cuidando de suas rosas, qualquer espertalhão pode entrar na casa e, simplesmente, dar o fora com eles. E bom tomar alguma providência quanto a isso.

Do outro lado da mesa. Penelope contemplou o filho dividida entre uma espécie de gratidão maternal por seus cuidados e uma maldosa suspeita de que ele - tão semelhante ao pai – estivesse tramando alguma coisa. Noel continuou a fitá-la com os olhos azuis muito abertos e transbordando de sinceridade porém ela permaneceu indecisa.

- Está bem - concordou Penelope por fim - vou pensar nisso. Entretanto jamais venderei meu querido “Os catadores de conchas”, e sempre será para mim satisfação e conforto indizíveis olhar para ele. É tudo quanto me resta dos velhos tempos. de quando era criança, da Cornualha e de Porthkerris.

Noel pareceu ligeiramente alarmado.

- Ei! Pareço estar ouvindo aqueles soluçantes violinos! Não há motivos para que comece a chorar!

- Não estou começando a chorar. Acontece apenas que, ultimamente, venho sentindo esta ânsia de voltar lá. Tem qualquer coisa a ver com o mar. Quero tornar a olhar para o mar. E por que não? Nada me impedirá de ir. Será apenas por uns dias.

- Acha mesmo que seria sensato? Talvez não fosse preferível recordar o lugar como ele era antigamente? Tudo muda. porém jamais para melhor.

- O mar não muda nunca - replicou Penélope, teimosamente.

- Você não conhece mais ninguém por lá.

- Conheço Doris. Poderia ficar em casa dela.

- Doris?

- Nós a acolhemos como evacuada, no início da guerra. Ela morou conosco, em Carn Cottage. Nunca mais voltou para Hackney, por ter resolvido morar definitivamente em Porthkerris. Ainda nos correspondemos, e ela sempre me convida para visitá-la... - Penelope hesitou, antes de perguntar: - Você iria comigo?

- Ir com você?

Ele foi apanhado tão desprevenido pela sugestão, que não conseguiu esconder o espanto.

- Seria uma companhia. - Aquilo soava patético, como se ela estivesse solitária. Tentou outra tática. - Poderia ser divertido para ambos. Não lamento muitas coisas de minha vida, porém arrependendo-me de nunca ter levado vocês a Porthkerris, quando eram crianças. Enfim, não sei; as coisas nunca funcionaram de maneira a permitir que fôssemos lá.

Um leve constrangimento pairou entre eles. Noel decidiu apelar para a brincadeira.

- Acho que está um pouco tarde para fazer castelos de areia na praia...

Penelope não pareceu achar a menor graça.

- Há outros divertimentos -disse.

- Quais?

- Eu poderia mostrar-lhe Carn Cottage, onde morávamos. O estúdio de seu, avô. A Galeria de Arte que ele ajudou a montar. Você parece tão subitamente interessado pelos quadros dele... Imaginei que talvez também lhe interessasse ver onde tudo começou.

Ela fazia isso algumas vezes; dava um golpe forte, logo abaixo da cintura. Noel bebeu um gole do uísque procurando compor-se.

- Quando é que pretende ir?

- Oh... breve. Antes que a primavera termine. Antes que chegue o verão.

Ele se sentiu aliviado em ter uma desculpa já pronta.

- Nessa época. eu não poderia afastar-me.

- Nem mesmo por um fim de semana prolongado?

- Mãe... Estamos com trabalho até o pescoço, no escritório. Só terei folga em julho, se tiver!

- Sendo assim, é impossível. - Para alívio de Noel, ela abandonou o assunto. - Quer ser gentil e abrir uma garrafa de vinho. Noel?

Ele se levantou. Sentia-se um tanto culpado.

- Sinto muito, mãe. Eu a acompanharia, se pudesse.

- Eu sei - respondeu ela. - Eu sei.

Quando Antonia reapareceu, faltavam quinze para as dez. Noel encheu os copos de vinho e todos se sentaram para saborear a torta de carne com purê de batatas, a salada de frutas frescas, os biscoitos com queijo. Em seguida, Noel preparou café para si mesmo e, anunciando que subiria ao sótão para uma espiada preliminar, antes de começar a trabalhar no dia seguinte, foi para lá, levando seu café.

Depois que ele se foi, Antonia também se levantou, começando a retirar os pratos e copos, mas Penelope a interrompeu.

- Não é preciso. Porei tudo na lavadora de pratos. São quase onze horas e você deve ir para a cama. Gostaria de um banho agora?

- Sim, gostaria. Não sei por que, mas estou me sentindo terrivelmente suja. Acho que tem algo a ver com Londres.

- Eu sempre me senti assim também. Gaste água quente à vontade e bastante espuma.

- Foi um jantar maravilhoso. Obrigada.

- Oh, minha querida... - Penelope ficou emocionada e, de repente, não sabia o que falar, embora tanto houvesse para ser dito. - Talvez, quando já estiver deitada, eu chegue lá para lhe dar boa-noite.

- Irá mesmo?

- É claro que sim.

Depois que ela saiu, Penelope limpou a mesa lentamente, empilhou os pratos sujos na lavadeira, pôs para fora as garrafas de leite e fez os preparativos para o desjejum do dia seguinte. No andar de cima, naquela casa onde os sons ecoavam através de portas abertas e tetos de madeira, ela ouviu Antonia preparando o banho; mais alto ainda, percebeu os passos abafados de Noel, abrindo caminho por entre o atravancamento do sótão. Pobre rapaz, pretendia desincumbir-se de uma tarefa hercúlea. Ela esperava que seu filho não desanimasse, com o trabalho pela metade, deixando-a às voltas com um problema ainda maior do que antes. A água, gorgolejando pelo cano de esgoto abaixo, indicava que Antonia terminara o banho. Penelope pendurou a toalha de chá, apagou as luzes e subiu a escada.

Encontrou Antonia na cama, acordada, folheando uma revista que Penelope deixara na mesa de cabeceira. Seus braços nus eram bronzeados e esguios, os cabelos sedosos espalhavam-se sobre o tecido branco da fronha.

Fechou a porta após entrar.

- Teve um bom banho?

- Abençoado. - Antonia sorriu. - Usei um pouco daqueles deliciosos sais de banho que encontrei lá. Espero que não se incomode.

- Foi justamente para isso que os deixei lá. - Ela se sentou na beira da cama. - Fez bem a você. Agora não parece mais tão fatigada.

- Eu sei. O banho despertou-me. Fiquei alerta, com vontade de tagarelar. Seria impossível dormir em seguida.

Acima delas, além do teto de vigas, brotou o ruído de algo sendo arrastado através do piso.

- Com essa barulheira que Noel faz lá em cima - disse Penelope - é até melhor que não tenha pressa em dormir.

Naquele momento, ouviram um baque, como se alguma coisa pesada houvesse caído inadvertidamente.

- Que diabo! - soou a voz de Noel.

Penelope começou a rir. Antonia riu também mas, de repente, não havia mais riso, porque seus olhos estavam marejados de lágrimas.

- Oh, minha querida criança!

- Que tolice a minha... - Ela fungou, tateou por um lenço e assoou o nariz. - Apenas, é tão maravilhoso estar aqui, com você, ser capaz de rir por coisas tolas novamente... Lembra-se de como costumávamos rir? Quando esteve conosco, aconteciam coisas divertidas o tempo todo. Depois que veio embora, nunca mais foi o mesmo.

Ela estava certa. Não ia chorar. As lágrimas haviam cessado, mal tinham assomado.

- Você quer falar? - perguntou Penelope suavemente.

- Sim, acho que quero.

- Quer me falar sobre Cosmo?

- Quero.

- Eu senti tanto! Quando Olivia me contou... fiquei tão chocada... com tanta pena...

- Ele morreu de câncer.

- Eu não sabia.

- Câncer do pulmão.

- Ora, mas Cosmo não fumava!

- Fumava. Antes de a senhora conhecê-lo. Antes de Olívia conhecê-lo. Cinqüenta cigarros por dia ou mais. Cortou o hábito, mas isso o matou do mesmo jeito.

- Você estava com ele?

- Sim. Morei com ele estes últimos dois anos. Desde que minha mãe tomou a casar.

- Isso incomodou você?

- Não. Fiquei feliz por ela. Não gostava muito do homem que escolheu, mas não vem ao caso. Ela gosta dele. Deixou Weybridge e foi morar no Norte, porque é onde ele está radicado.

- O que ele faz?

- Ele tem alguma espécie de negócio sobre lãs... tecidos, tecelagem, esse tipo de coisas.

- Você já esteve lá?

- Estive. Fui lá no primeiro Natal depois de estarem casados, mas foi terrível. Ele tem dois filhos repulsivos, mal pude esperar a hora de vir embora, antes que um deles conseguisse me violentar. Bem, talvez eu esteja exagerando um pouco, mas este é o motivo que me impede de ficar com minha mãe, agora que papai morreu. Simplesmente, eu não suportaria. E a única pessoa em quem pensei como capaz de me ajudar foi Olivia.

- Sim, eu compreendo, mas fale-me mais sobre Cosmo.

- Ele estava muito bem. Quero dizer, parecia nada haver de errado, entende? Então, há uns seis meses, começou a ter aquela tosse horrível. Era uma tosse que não o deixava dormir à noite, e eu ficava deitada, ouvindo e tentando dizer a mim mesma que não devia ser coisa séria. Finalmente, consegui convencê-lo a ir ao médico. Ele foi ao hospital local, para uma chapa de raios-X e um check-up. A verdade é que nem saiu de lá. Eles o operaram, extraíram metade de um pulmão e disseram que logo poderia ir para casa. Entretanto, sofreu um colapso pós-operatório, e foi assim. Morreu no hospital. Nunca recuperou a consciência.

- E você estava sozinha?

- Sim, mas Maria e Tomeu andavam sempre por perto, e eu jamais imaginei que fosse acontecer semelhante coisa. Não cheguei a ficar muito preocupada ou amedrontada. Tudo aconteceu muito depressa. Como se, um dia, estivéssemos juntos em Ca'n D'alt, como sempre havia sido, e, no outro, ele morresse. Claro que não foi no dia seguinte. Apenas me pareceu assim.

- O que fez você?

- Bem... isto parece terrível, mas era preciso cuidarmos do funeral. Compreenda, em Ibiza, é muito curto o período entre a morte e o sepultamento. Tem que ser no mesmo dia. Qualquer um pensaria que, em apenas um dia, em uma ilha onde praticamente ninguém tem telefone, a notícia da morte dele não fosse sabida. Pois foi. Como telégrafo das florestas. Meu pai tinha muitos amigos. Não apenas pessoas como nós, mas todos os moradores de lá, homens com quem ele bebia no bar do Pedro, os pescadores da beira do porto, os fazendeiros que moravam à nossa volta. Estavam todos lá.

- Onde foi sepultado?

- No cemitério da igrejinha da aldeia.

- Ora, mas... é uma igreja católica!

- Claro, mas correu tudo bem. Papai não freqüentava a igreja, mas em criança foi batizado e recebido na Igreja Católica. Além do mais, sempre foi muito amigo do padre da aldeia. Um homem muito gentil... muito confortador. Conduziu o serviço para nós, não na igreja, mas à beira da sepultura, à luz do sol. Quando partimos, não se podia ver a sepultura, por causa das flores. Foi muito bonito. Então, todos voltamos para Ca'n D'alt, Maria tinha preparado alguma coisa para comer, eles beberam vinho e depois foram embora. Foi assim que aconteceu.

- Entendo. Tudo parece muito triste, mas absolutamente perfeito. Diga-me, você contou tudo isto para Olivia?

- Algumas partes. Na realidade, ela não quis ouvir muito.

- E o jeito dela. Quando Olivia fica muito tocada ou entristecida, esconde os sentimentos, quase como se fingisse para si mesma que nada aconteceu.

- Sim, eu sei. Percebi isso. E não fez diferença para mim.

- O que você fez, quando esteve com ela em Londres?

- Não muita coisa. Fui ao Marks e Spencers comprar algumas roupas quentes para mim. Depois fui ver o procurador de papai. Foi uma entrevista bastante depressiva.

O coração de Penelope condoeu-se pela jovem.

- Ele lhe deixou alguma coisa?

- Praticamente nada. Ele nada tinha para deixar o pobre querido.

- E sobre aquela casa em Ibiza?

- Ela nunca foi nossa. Pertence a um homem chamado Carlos Barcello. Por outro lado, eu não queria ficar lá. Mesmo que quisesse, não teria como pagar o aluguel.

- E o barco? O que foi feito dele?

- Papai o vendeu, logo depois que Olivia partiu. Nunca mais comprou outro.

- E as outras coisas? Os livros, móveis, quadros...

- Tomeu conseguiu com um amigo que os guardasse para mim, até eu precisar deles ou até que possa voltar para recolhê-los.

- É duro acreditar, Antonia, bem sei, mas um dia terá que fazer isso.

Antonia colocou os braços atrás da cabeça e fitou o teto.

- Eu estou bem agora. Sinto tristeza, mas não por ele ter deixado de viver. Meu pai continuaria doente e frágil, não duraria além de mais uns doze meses. Foi o que me disse o médico. Assim, foi melhor acontecer como aconteceu. Minha única tristeza real é pelos anos que foram perdidos, após Olivia vir embora. Ele nunca mais teve outra mulher. Amou Olivia demais. Acho que, provavelmente, ela foi o amor de sua vida.

Havia muito silêncio agora. Os ruídos e pisadas no forro tinham cessado e Penelope adivinhou que Noel encerrava a "vistoria preliminar", tendo descido do sótão. Escolhendo as palavras com cuidado, disse, após alguns momentos:

- Olivia também o amou muito, tanto quanto seria capaz de entregar seu coração a algum homem.

- Papai quis casar com ela, mas Olivia não quis.

- Você a censura por isso?

- Não. Eu a admiro. Foi sincera e muito forte.

- Ela é uma pessoa especial.

- Eu sei.

- Ela, simplesmente, nunca quis se casar. Tem horror a ser dependente, a assumir compromisso, a criar raízes.

- Olivia tem sua carreira.

- Sim, a carreira... É o que mais importa para ela no mundo.

Antonia considerou tais palavras. Depois disse:

- Curioso... Eu compreenderia isso melhor, se Olivia houvesse tido uma infância infeliz ou sofrido algum terrível trauma. No entanto, tendo a senhora por mãe, custo a crer que algo semelhante ocorresse com ela. Olivia é muito diferente de seus outros filhos?

- Em tudo e por tudo. - Penelope sorriu. - Nancy é o extremo oposto. Sempre sonhou ser uma mulher casada e ter seu próprio lar. Mais ou menos como A Senhora da Mansão, talvez, mas e daí? Não se pode censurá-la. Possui a vida que desejou, é uma mulher feliz. Pelo menos, imagino que seja. Ela tem, exatamente, aquilo que sempre quis.

- E a senhora? - perguntou Antonia. - Queria ser casada?

- Eu? Céus, isso aconteceu há tanto tempo, que mal consigo recordar. Acho que não pensava muito no assunto. Tinha apenas dezenove anos e estávamos em guerra. Em épocas assim, nunca penamos em um futuro muito distante. Vivemos cada dia que passa.

- O que aconteceu a seu marido?

- Ambrose? Oh, morreu alguns anos após o casamento de Nancy.

- Sentiu-se muito solitária?

- Eu era sozinha. Entretanto, não é o mesmo que ficar solitária.

- Eu jamais conhecera alguém que tivesse morrido. Cosmo foi o primeiro.

- Quando enfrentamos pela primeira vez a experiência da perda de um ente querido, tudo é muito doloroso. Entretanto, com o passar do tempo, terminamos conformados.

- Acho que sim. Ele dizia que "a vida inteira é um compromisso".

- Muito bem dito. Para alguns, tem que ser assim. Para você, no entanto, eu gostaria de pensar que houvesse algo melhor à sua espera.

Antonia sorriu. A revista há muito caíra ao chão e seus olhos haviam perdido aquele brilho febril. Como uma criança, estava quase dormindo. Ficara sonolenta.

- Você está cansada - disse-lhe Penelope.

- Sim... Acho que agora vou dormir.

- Não acorde cedo demais. Levantando-se da cama, Penelope foi fechar as cortinas. A chuva cessara e, da escuridão, chegou o pio de uma coruja. - Boa-noite.

Caminhou para a porta, abriu-a e apagou a luz.

- Penelope.

- O que foi?

- É simplesmente maravilhoso estar aqui. A seu lado.

- Durma bem.

Penelope saiu, fechando a porta.

A casa estava em silêncio. No andar de baixo, todas as luzes tinham sido apagadas. Obviamente, Noel decidira encerrar seu dia e já fora para a cama. Nada mais havia a ser feito.

Em seu quarto, ela seguiu o ritual noturno, sem pressa, escovando os dentes, brunindo o cabelo, passando creme de noite no rosto. Já de camisola, abriu as pesadas cortinas. Pela janela aberta passava uma leve brisa, fria e úmida, mas cheirando docemente a terra, despertada do longo sono de inverno. A coruja piou novamente, e o silêncio era tal, que ela podia ouvir o suave rumorejar do Windrush, seguindo seu caminho além do pomar.

Afastando-se da janela, Penelope subiu na cama e apagou o abajur. Seu corpo pesado e cansado agradeceu o conforto dos lençóis frescos e dos travesseiros macios, porém a mente continuou desperta, porque a curiosidade inocente de Antonia instigara o passado, de uma maneira desconcertante e não de todo bem-vinda. Penelope respondera ao que ela perguntara, com alguma cautela, sem mentir, mas não contando toda a verdade. A verdade era demasiado confusa para ser contada, tortuosa e muito antiga. Antiga demais, para que ela começasse a desenredar os fios de motivação, de razão e sequência dos eventos. Não havia falado em Ambrose, não mencionara seu nome e nem pensara nele, por mais tempo do que podia recordar. Agora, no entanto, deitada e de olhos abertos, fitando a escuridão que não era verdadeiramente negra, percebeu que não tinha opção senão voltar atrás. Era uma extraordinária experiência; como ver um filme antigo ou descobrir um álbum de fotos com as folhas já desbotadas, ir virando suas páginas e admirando-se, ao perceber que os instantâneos em sépia não haviam desbotado em absoluto, mas permaneciam evocativos, claros, mais nítidos do que nunca.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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