Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS CRIMES DA ROSA AZUL
Primeira Parte
Mill Walk não existe em mapa algum — admitamos logo de início. Estendendo-se a leste de Porto Rico, à maneira de revisões de uma frase incompleta, situam-se as diminutas ilhas de Culebra e Vieques, por sua vez seguidas de pontinhos chamados St. Thomas, Tortola, St. John, Virgin Gorda e Anegada — as Ilhas Virgens — após as quais, como pequeninos pensamentos tardios, Anguilla, St. Martin, St. Barthélemy, St. Eustatius, Redondo, St. Kitts, Montserrat e Antique começam a pingar para o sul; mais ilhas se seguem, como rochas em uma corrente — Guadalupe, Dominica, Martinica, Sta. Lucia, St. Vincent, Barbados, as quase infinitesimais Grenadines e o pequeno montículo verde de Grenada, uma esmeralda do tamanho da unha de uma boneca — daí em diante tendo-se apenas o mar verde-azulado, por toda a extensão até Trinidad e Tobago, após as quais chega-se à América do Sul, um outro mundo. Nada mais de revisões ou pensamentos tardios, e sim outro ponto de vista, inteiramente diverso.
De fato, um outro continente de sentimento, uma camada abaixo do conhecido.
Na ilha de Mill Walk, um garotinho desce em disparada os degraus do porão, com tanta pressa para escapar ao som dos gritos da mãe, que esqueceu de fechar aporta, de maneira que os gritos o seguem, cada vez amortecidos um pouco mais, drenando o oxigênio do ar. Eles o fazem sentir-se acalorado e acusado, embora de um crime incerto — talvez apenas por nada poder fazer, afim de cessar-lhe os gritos.
Ele chega ao último degrau e pula para o piso de cimento, tapa os ouvidos com as mãos e corre entre um desmantelado sofá verde e uma cadeira de balanço, em direção à bancada de trabalho cheia de cicatrizes, encostada à parede em todo o seu maciço volume. Como o mobiliário, a bancada pertence a seu pai: a despeito de todas as ferramentas — chaves de fenda e martelos, grosas, limas e latinhas cheias de pregos, tenazes e alicates, uma serra de vaivém e uma serra tico-tico, uma pua, um formão e uma plaina, pilhas de papel de lixa — nada é criado ou reparado naquela bancada. Um grossa camada de poeira cobre tudo. O menino corre para baixo da bancada e apóia as costas na parede. Tentativamente, afasta as mãos dos ouvidos. Um momento de silêncio emenda-se em outro. Ele pode respirar. O porão é frio e silencioso. Sentado no piso de cimento, ele se recosta contra o bloco acinzentado da parede e fecha os olhos.
O mundo permanece frio, escuro e silencioso.
Ele torna a abrir os olhos e vê uma caixa de papelão meio escondida na penumbra abaixo da bancada. Também ela está coberta por espesso lençol cinza de poeira. Por toda a volta do menino estão os traços de sua passagem — linhas e rasuras, vírgulas e pontos de exclamação, palavras escritas em linguagem desconhecida. Ele desliza para a caixa por entre os felpos de poeira, ergue a tampa e vê que, embora quase vazia, lá no fundo jaz uma pequena pilha de jornais velhos. Estende a mão e apanha o jornal que está em cima, enquanto fita de esguelha a manchete desfraldada. Embora ainda não esteja no primeiro grau, o menino sabe ler, e a manchete contém um nome familiar. Jeanine Thielman encontrada no lago.
Um dos vizinhos é chamado Thielman, porém o primeiro nome, “Jeanine”, é tão misterioso quanto “encontrada no lago”. O jornal seguinte da pilha também desfralda uma manchete. Morador local acusado pelo assassinato Thielman. O jornal seguinte, o último, anuncia Mistério esclarecido em tragédia. Daquelas quatro palavras, o menino compreende apenas “em”. Ele desdobra este exemplar e o abre diante de si. Vê a palavra “Sombra,” as palavras “esposa,” “filhos”. Nenhuma das pessoas mostradas nas fotos é alguém que ele conheça.
Então, abre todos os jornais e vê o retrato de uma mulher, mais ou menos parecida com sua mãe. Ela gostaria de ver esta foto, pensa o menino: poderia dar-lhe de presente aqueles interessantes jornais velhos que encontrou debaixo da bancada.
Ele segura desajeitadamente os jornais nos braços, sai de baixo da bancada e passa por entre os móveis. Um punhado de páginas escorrega e se espalha pelo chão, mas ele não pára para recolhê-las. Sobe a escada do porão para a atmosfera mais quente do alto, sai na cozinha e a cruza, em direção ao corredor.
Sua mãe está lá, vestindo a camisola azul, olhando para ele. Tem os cabelos em desalinho, e os olhos estão em outro lugar, como olhos que giraram por toda a cabeça e parecem apenas espiar para fora.
— Você me ouviu?
Ele nega com a cabeça.
— Não me ouviu chamar você?
O menino aproxima-se, dizendo:
— Eu estava no porão — veja o que achei — é para você.
Ela flutua na direção dele, em sua camisola de dormir azul e cabelos desalinhados.
— Não precisa esconder-se de mim!
Sua mãe arrebata-lhe o presente, agora não mais um presente, porém um terrível erro, e mais páginas voam para o chão. Ela ergue uma das seções do jornal. O menino vê o rosto dela contrair-se sobre si mesmo, como acontecera com os olhos, dando a impressão de que foi esbofeteado por algum demônio invisível, mas presente, e ela cambaleia para a cozinha, o jornal lhe caindo das mãos. Uma gargalhada que não é gargalhada, mas um grito interno, escapando para fora, escapa-lhe da boca. Ela arria em uma cadeira e enterra o rosto nas mãos.
A MORTE DE TOM PASMORE
Em certo dia de junho, em meados dos anos cinqüenta, Tom Pasmore, um menino de dez anos de idade e pele tão dourada como se houvesse nascido com um bom bronzeado de quatro dias, saltou de uma carroça de leite e se encontrou em uma parte de Mill Walk que nunca tinha visto antes. Um senso de urgência, de imediatismo, tinha-o despertado com os gritos vindos do quarto de sua mãe, aderindo a ele durante todo aquele dia ansioso e sobressaltante. Quando acenou para o condutor da carroça em agradecimento, a sensação intensificou-se, como uma luz forte focalizada em seus olhos. Ele pensou em tornar a embarcar na carroça do leite, porém ela já descia a Calle Burleigh, retinindo. Tom semicerrou os olhos à viva claridade empoeirada, através da qual passava um fluxo duplo e firme de bicicletas, carroças puxadas por cavalos e automóveis. Era fim de tarde, a luz parecendo possuir uma líquida e desbotada tonalidade avermelhada, levando-o a subitamente recordar os painéis das histórias em quadrinhos: fogos, explosões e homens atirados pelos ares.
No momento seguinte, esta movimentada cena pareceu ser sufocada por uma outra e mais essencial, cada partícula da qual transbordava de intensa, indescritível beleza. Era como se máquinas gigantescas houvessem adquirido vida, por sob a superfície do que ele podia ver. Por um instante, Tom não conseguiu mover-se. A própria natureza parecia haver despertado, transbordando de existir.
Tom ficou parado e extasiado, em meio àquela enviezada e forte claridade avermelhada, com a poeira levantando-se da estrada.
Estava acostumado às ruas mais estreitas e quietas do extremo leste da ilha, e sua momentânea visão de um misterioso esplendor talvez nada mais fosse senão um produto da mudança da Estrada Litorânea do Leste. O que ele via agora era outro mundo, um mundo que nunca tinha visto antes. Não tinha uma idéia precisa de como voltar para o extremo leste e as grandes casas da Estrada Litorânea do Leste, sendo ainda menor a idéia de por que estava à procura de um certo endereço. A sineta de uma bicicleta produziu um grito penetrante, como o cricrilar de um grilo, o casco ferrado de um cavalo pisoteou a terra batida de Calle Burleigh, e todos os sons da ampla avenida chegaram novamente aos ouvidos de Tom. Ele percebeu que estivera contendo a respiração e que tinha os olhos marejados de lágrimas. Já bem distante, avenida abaixo, o condutor do leite inclinou-se na direção do sol e do cavalo robusto, de pernas curtas, que puxava sua carroça. O cling-cling-cling das garrafas se mesclara ao zumbido geral. Tom enxugou o suor do rosto. Não estava bem certo do que acabara de acontecer — outro mundo? Abaixo deste mundo?
Tom continuou a fundir-se na cena diante dele, perguntando-se se esta experiência, ainda presente como uma espécie de imponderabilidade em seu coração, seria o imediatismo que sentira durante todo o dia. Ele havia sido empurrado — precisamente empurrado para fora de sua moldura. Por um ou dois segundos elasticamente compridos — o tempo em que o mundo estremecera e transbordara de existir — ele estivera no outro mundo, aquele mundo abaixo.
Agora ele sorria, divertido por esta noção de Júlio Verne ou Robert Heinlein. Recuou para a calçada e olhou na direção leste. Os dois lados da avenida ampla estavam cheios de cavalos e veículos, metade destes, pelo menos, sendo bicicletas. Esta variegada multidão se movia através do halo de luz e poeira, estendendo-se até onde a vista de Tom alcançava.
Pareceu-lhe que nunca soubera realmente o significado da expressão “hora do rush”. Na Estrada Litorânea do Leste, a hora do rush se limitava a um ou dois carros buzinando para que as crianças saíssem da rua. Certa vez, Tom vira um empregado ir com sua bicicleta diretamente para cima da bicicleta de outro empregado, espalhando roupa limpa e lavada sobre os aquecidos tijolos vermelhos da estrada — isso era a hora do rush. Naturalmente, Tom estivera no escritório do pai, no distrito comercial; tinha visto o trânsito do meio-dia na Calle Hoffmann e também havia ido ao porto, Mill Key, em companhia dos pais, passando abaixo de filas de palmeiras juntamente com microônibus, táxis e caleças. Em Mill Key, tinha visto os meios de transporte em que eram levados os recém-chegados ao centro da cidade até seus hotéis, o Pforzheimer ou o St. Alwyn. (Estritamente falando, Mill Walk não possuía hotéis para turistas. O Pforzheimer hospedava banqueiros e financistas, enquanto o St. Alwyn, mais popular, hospedava percussionistas, músicos excursionando, como Glenroy Breakstone e os fantásticos Targets, jogadores, enfim, gente deste tipo). Ele jamais estivera no distrito comercial ao fim de um dia de trabalho, portanto, nunca vira nada como o movimento impetuoso e a variedade do trânsito que se movia para leste e oeste, principalmente oeste, para a baía Schrz e a enseada do Olmo, atravancando a Calle Burleigh. Era como se todos na ilha decidissem, simultaneamente, tomar sua direção oposta. Por um momento de pânico, isso pareceu singularmente relacionado à maravilhosa experiência que ele acabara de viver, e Tom gostaria de saber se seria capaz de encontrar de novo o caminho de volta.
Entretanto, não queria ir já para casa, pelo menos enquanto não encontrasse um certo endereço. Achava que, chegada a hora de voltar, encontraria alguém tão compreensivo como o condutor da carroça de leite que, apesar do aviso proibido levar passageiros, à frente do veículo, convidara-o a subir, depois interrogando-o sobre garotas o tempo todo, durante o longo trajeto para oeste — Tom era bastante forte para sua idade e, com os cabelos louros, olhos e sobrancelhas escuros, mais parecia ter 13 anos do que dez. Esta coisa lhe martelara as idéias o dia inteiro, impedindo-o de ler mais de uma ou duas páginas a cada vez, levando-o de seu quarto para a sala de estar e, de lá, até os móveis de vime branco da varanda. Finalmente, decidira caminhar de um lado para outro pelo extenso gramado da frente da casa, perguntando-se vagamente se o Sam da sra. Thielman poderia tornar a encontrar casualmente a Jenny da sra. Langenheim ou se um bêbado maluco perambularia pela rua, começando a gritar e a atirar pedras, como acontecera dois dias antes.
O curioso era que, embora a sensação de euforia, de transbordamento de existir houvesse cessado, a outra sensação não se diluíra com isso, tendo permanecido latente, tão forte quanto antes.
Ele estava sendo empurrado, sendo movido.
Tom se virou, a fim de obter uma melhor perspectiva daquela área, e se viu espiando pelo espaço entre duas sólidas casas de madeira — cada uma situada no alto de seu próprio gramado em declive, como uma noz no topo de um bolinho — para outra fileira de casas atrás delas, na rua seguinte. Olmos frondosos arqueavam-se sobre aquela segunda rua, que parecia tão quieta quanto a Estrada Litorânea do Leste. As casas abaixo dos olmos não eram menos imponentes do que as da Calle Burleigh. Ele intuiu imediatamente que aquela segunda rua era território proibido. Esta informação nada tinha de ambígua. A ruazinha bem podia ser contornada por grades, com um aviso alertando-o de que ali era entrada proibida: um raio sibilaria diretamente do céu e o empalaria, se entrasse naquela rua.
A luz imaginária que brilhara em seu rosto ficou mais forte e mais quente. Tivera razão em cobrir todo aquele trajeto. Deu alguns passos para o lado e pôde ver, na rua proibida, uma pequena casa de dois pavimentos, o andar de cima pintado em marrom muito escuro, o de baixo em vivo amarelo-manteiga.
Dois dias antes, Tom lia Júlio Verne, espichado na espreguiçadeira listrada de amarelo, na sala de estar. Sentia-se imerso na total, embora imaginária segurança das palavras de uma página, organizadas em frases e parágrafos — um mundo fixo e fluente ao mesmo tempo, sempre o mesmo, sempre em movimento e sempre aberto a ele. Aquilo era uma fuga. Era segurança. Então, um ruído forte, o som de algo atingindo o lado da casa, o fizera erguer-se tão bruscamente na espreguiçadeira amarela, como a mão de alguém que o sacudisse para acordá-lo. Um momento mais tarde, ouvia uma voz pastosa, gritando obscenidades na rua. “Bastardo! Filho da puta!” Outra pedra bateu no lado da casa. Tom havia pulado da espreguiçadeira e caminhara até a janela da frente, inconscientemente marcando a página que lia no livro, com o dedo indicador. Um homem de meia-idade, de cintura grossa e atarracado, os cabelos castanhos rareando, oscilava na calçada para diante e para trás, ao lado de uma velha sacola de lona, da qual haviam caído algumas pedras de bom tamanho. Em cada mão, o homem tinha uma pedra do tamanho de uma bola de beisebol. “Fazer isto comigo!” gritou ele. “Pensam que podem tratar Wendell Hasek como se fosse algum imbecil?” O homem deu uma volta completa e quase caiu. Então encurvou os ombros, como um macaco, e olhou furiosamente para as duas casas, por entre os olhos semicerrados — cada uma delas com grandes colunas, torrinhas redondas e parapeitos geminados — no outro lado da rua. Uma delas, a dos Jacobs, estava vazia, porque o sr. e a sra. Jacobs tinham ido passar o verão no continente; a outra era habitada por Lamont von Heilitz, um velho fantástico e azedo, que vivia nas sombras e ecos de algum vago escândalo antigo. O sr. von Heilitz sempre usava luvas, cinza-claras ou amarelo-limão, trocava de roupas cinco ou seis vezes ao dia e jamais trabalhara um só dia em toda a sua vida. Ele costumava precipitar-se para a varanda e gritar com crianças que ameaçavam pisar em seu gramado. O homem-caos atirou uma de suas pedras contra a residência de von Heilitz. A pedra atingiu o áspero lado de pedra da casa, por alguns centímetros apenas deixando de acertar um janelão de vitral. Tom gostaria de saber se o sr. von Heilitz iria materializar-se na varanda, agitando o punho enluvado de cinza. Então, o homem sacudiu a cabeça, como que para afugentar uma mosca, cambaleou alguns passos para trás e inclinou-se, a fim de apanhar outra pedra, talvez esquecido de que ainda tinha uma na mão esquerda ou, simplesmente, achando que só uma era pouco. Enfiou a mão na sacola de lona e começou a remexer o conteúdo, sem dúvida à procura de alguma pedra com as dimensões adequadas. Usava calças desbotadas e uma camisa cáqui desabotoada até quase metade do estômago volumoso. A pele queimada de sol terminava em uma linha abrupta, logo abaixo do pescoço — o estômago protuberante mostrava uma coloração demasiado branca e doentia. O homem-caos perdeu o equilíbrio ao inclinar mais para a sacola e tombou, batendo com o rosto no chão. Ao ficar novamente sobre os joelhos, havia sangue cobrindo-lhe a metade inferior do rosto. Agora apertava os olhos para a casa de Tom, e o menino recuou da janela.
Foi quando Glendenning Upshaw, avô de Tom e a figura mais imponente em sua vida, desceu pesadamente a escada em seu terno preto, passou pelo neto sem vê-lo e saiu, batendo a porta atrás de si. De maneira instintiva, Tom soube que o homem-caos viera atrás de seu avô e de mais ninguém, e que somente seu avô saberia manejá-lo. Em breve seu avô surgia à vista, caminhando pelo passadiço que levava à calçada, batendo contra o piso com a ponteira do guarda-chuva fechado. O intruso gritou para ele, mas o avô de Tom não gritou em resposta. O intruso atirou uma pedra nas rosas de Glória Pasmore. Tornou a cair, assim que o avô de Tom chegou à calçada. Para espanto de Tom, seu avô ergueu o homem, com cuidado para não manchar o terno com sangue, e o sacudiu como se fosse um brinquedo quebrado. A mãe de Tom começou a gritar incoerentemente, de uma janela do andar de cima, para então parar de repente, como se só então recordasse que toda a vizinhança poderia ouvi-la. Victor Pasmore, o pai de tom, desceu e se juntou ao filho na janela, de lá espiando para a rua, em uma cautelosa neutralidade que excluía o menino. Tom deslizou para fora da sala de estar, o indicador ainda inserido entre as páginas 153 e 154 de Viagem ao centro da terra, cruzou o vestíbulo vazio, abriu a porta e saiu. Receava que o avô houvesse matado o desordeiro com o canivete “Uncle Henry” que levava sempre no bolso da calça. O calor era o firme calor do Caribe em junho, com o suor escorrendo como chuvarada, a trinta e dois graus. Tom caminhou pelo passadiço até a calçada e, por um momento, seu avô e o desordeiro o encararam. O avô fez-lhe um gesto para que se afastasse dali, tornando a virar-se para o homem, mas este, Wendell Hasek, voltou a encurvar os ombros e continuou encarando Tom. Seu avô o empurrou para trás, e Hasek recuou.
— Você me conhece — disse ele. — Vai fingir que não conhece?
Seu avô caminhou com o homem até o final do quarteirão e desapareceu. Tom olhou para a casa e viu seu pai abanando a cabeça para ele. O avô surgiu à vista, caminhando com dificuldade ao dobrar a esquina da Estrada Litorânea do Leste com An Die Blumen, mastigando o lábio enquanto andava. A determinação em suas passadas sugeria que tinha arremessado o homem-caos por cima da borda do mundo. Ergueu os olhos, viu Tom, franziu o cenho e tornou a baixar a cabeça para a calçada reluzente.
Ao entrar em casa, subiu para o andar de cima em silêncio, com o pai de Tom. O menino ficou espiando e, quando o pai e seu avô fecharam a porta do quarto de sua mãe, após entrarem lá, ele foi para o estúdio, apanhou a lista telefônica de Mill Walk, abriu-a sobre o colo e foi virando as páginas, até encontrar o nome de Wendell Hasek. Vozes altas flutuavam pela escada abaixo. Seu avô dizia “nosso” ou “hora”.*
* No original, “our” ou “hour”, cuja pronúncia é semelhante. (N. da T.)
Tom captou um grito fraco, como que emitido por algum animal, um momento após ter cessado de ouvi-lo: ao mesmo tempo, ficou em dúvida se o teria ouvido realmente. O som flutuava em seu ouvido interno, talvez o único lugar em que chegara a existir. Nenhum som tão fraco como aquele teria alguma possibilidade de ser percebido, em meio à incessante barulheira da Calle Burleigh.
Tom gostaria de estar em casa, não abandonado em um distrito que desconhecia. Nas duas pistas do bulevar, o tráfego bloqueava sua passagem através da Calle Burleigh, tão efetivamente como um muro. Naquela época, ainda não havia sinais de trânsito em Mill Walk, e as filas de veículos estendiam-se até onde ele conseguia enxergar. Teria que esperar o final da hora do rush para atravessar a rua, mas então a noite estaria bem próxima.
Foi quando ouviu o som real, não sua súbita ausência. Era um grito que contornava todos os demais ruídos da Calle Burleigh, como uma membrana. O grito desapareceu dentro de si mesmo, extinguindo-se aos poucos, como um animal que começa por engolir a cauda e termina devorando-se inteiramente.
O grito repetiu-se, uma nuvem trêmula rosa-forte, subindo do quarteirão atrás da Calle Burleigh. A nuvem se partiu em uma gaguejante série de pontos, semelhantes a sinais de fumaça, para aglutinar-se em um fio brilhante, que flutuou acima dos tetos das casas.
Tom começou a caminhar para leste, na calçada, de costas para o tráfego fervilhante. Enfiou as mãos nos bolsos da calça de algodão branco. A camisa branca, abotoada de alto a baixo, tinha manchas cinzentas aqui e ali, deixadas pelas caixas de papelão do leite, e grudava-se às suas costas.
As casas da Calle Burleigh permitiam-lhe uma visão partida e interrompida da rua proibida. Pelo espaço entre dois maciços prédios de tijolos vermelhos, com amplas varandas, Tom avistou a edificação amarela e marrom de dois pavimentos, tendo ao lado uma casa menor, de grosseiras pedras brancas unidas por grossas fileiras de argamassa. Viu-se diante de uma casa marrom de madeira, ornamentada tão exageradamente como um relógio cuco. Continuou andando e espiando para os fundos das casas de tijolos da outra rua, sempre que havia um vão livre. De frente para ele, havia uma edificação mais alta, os dois pavimentos em sujos tijolos de cor creme; uma janela do primeiro andar estava quebrada e fora substituída por papel oleado. Em uma súbita interrupção do barulho, quando o tráfego parou, ele ouviu galinhas cacarejando no quintal.
A nuvem rosada subiu acima das casas, espessou-se e estreitou-se, espessou-se e estreitou-se.
O tráfego recomeçou, com buzinadas e gritos, com pesados cascos repicando no chão, com chicotes estalando e campainhas de bicicleta retinindo.
Tom se moveu lateralmente para observar o outro lado de uma sombria estrutura gótica, com uma torrinha e uma estreita calçada. Viu uma cortina afastar-se e teve uma impressão de cabelos grisalhos, de um rosto semelhante a uma caveira, espiando para fora. A criatura atrás da janela recuou, apenas o suficiente para tornar-se um borrão acinzentado.
Os finos dedos cinzentos desapareceram e a cortina caiu no lugar. Tom prosseguiu em seu movimento lateral, pensando de um modo não de todo verbal, que não se encontrava em sua vida real, mas em algum terrível estado vago, como um sonho, do qual precisava escapar, antes que ele o reclamasse para sempre.
No instante seguinte, o grito se fez ouvir novamente, agora vindo, sem sombra de dúvida, daquela ruazinha que ele podia divisar por entre as casas da Calle Burleigh.
No final do quarteirão, compreendeu que estivera ouvindo a voz de um cão infeliz. O animal não demorou a uivar e ganir, enviando para o alto outra nuvem rosada de vapor.
Engraçado, pensou Tom, como aquele cachorro conseguia dar a impressão de ser uma criança.
Tom ergueu os olhos para a placa da rua, na esquina. O nome da rua lateral era Townsend. Ele nada conhecia daquela área; nem mesmo tinha conhecimento do comprido setor verdejante e aberto, com um coreto, balanços, uma gangorra, árvores frondosas e alguns exauridos animais em pequenas jaulas, que ficava a meio quilômetro para leste, dando para a Calle Burleigh. O condutor da carroça do leite ficaria surpreso, por um morador de Mill Walk ignorar a existência do Parque Goethe.
Tom dobrou a esquina. Um retângulo verde-escuro, de metal, com a inscrição Rua 44, impressa em relevo e pintada de um branco cintilante, quase incandescente, ficou diante dele na esquina seguinte. No setor de Mill Walk que Tom conhecia, as ruas tinham nomes como Beach Terrace (Terraço da Praia) e The Sevens (Os Setes), de modo que esta designação de agora parecia-lhe fantasmagoricamente impessoal.
O animal soluçou, rosnou e engasgou-se.
Tom viu uma coisa meio humana e peluda estirada no chão, com uma grossa correia prendendo-lhe o pescoço, as unhas gastas escavando a terra de seu cercado.
Ao ver aquele quadro, Tom sentiu uma dor de estômago tão forte e aguda, que quase vomitou. Aferrou a barriga e sentou-se sobre o gramado da casa da esquina. Foi como se tivesse visto ele próprio. Seu coração revoluteou no peito, como um pássaro acorrentado ao poleiro.
Uma porta se abriu com ruído atrás dele e, virando-se, Tom viu uma mulher idosa que o avaliava, parada no primeiro degrau da escada à frente da casa de esquina.
— Saia do meu gramado! Imediatamente! Isso que está fazendo é invasão! Vamos, saia daí!
A mulher expressava-se com forte sotaque alemão, o que fazia cada sílaba sua atingir Tom como certeira tijolada. Era uma visão de pesadelo de Lamont von Heilitz.
— Eu não estava me sentindo bem — disse Tom — e...
O rosto da velha endureceu-se.
— M-e-n-t-i-r-o-s-o! M-e-n-t-i-r-o-s-o! M-e-n-t-i-r-o-s-o! Dê o fora!
Ela começou a resmungar, enquanto descia a escada e, chegando ao último degrau, caminhou para ele, como se pretendesse atacá-lo.
— E ainda responde, hein? Não quero você aqui, estragando o meu gramado, ouviu? Volte para o lugar de onde veio, R-A-L-É!
Tom já se levantara de um salto e caminhava rapidamente de volta à segurança da calçada.
— Vá embora para sua casa! — gritou ela.
O vestido caseiro azul agitava-se em torno da velha, enquanto avançava para Tom. Ele começou a recuar pela calçada, em direção à rua lateral seguinte. A mulher parou, precisamente nos limites de seu reino, com a biqueira dos chinelos sem salto apenas tocando a calçada. Estendia o braço e o indicador com feroz determinação, apontando para a aléia e a Rua 44. Seu rosto adquirira um tom espantosamente vermelho-púrpura.
— Já estou farta e cansada de moleques como você, que ficam andando em minha propriedade!
Tom deu meia-volta e correu. Pensou em atalhar pela aléia entre a Calle Burleigh e a Rua 44, mas assim que mudou de direção para entrar na aléia, a voz da velha explodiu atrás dele:
— Não pode invadir meu pátio desse jeito! Quer que eu chame a polícia? Continue em frente!
Ele olhou por sobre o ombro e a viu descendo a calçada, em sua direção. Tom desviou-se da entrada para a aléia e correu para a Rua 44. A velha latiu uma frase que ele não entendeu ou pensou não ter entendido:
— Vadio! Vadio idiota!
Na esquina da Townsend e Rua 44, ele tornou a olhar para trás. Ela estava parada à entrada da aléia, resfolegando, as mãos na cintura.
— R-a-l-é! É isso que vocês são, seus vadios!
— Tudo bem, tudo bem — disse Tom, o coração ainda em disparada.
— E não apareça nunca mais! — bradou ela.
Tom dobrou para oeste, no quarteirão seguinte, e após dar alguns passos, a visão da mulher foi cortada pela casa da esquina.
O límpido céu esmaltado do Caribe começara a mostrar os primeiros traços do amarelo que em breve ocuparia toda a sua superfície, em um momento escurecendo para púrpura e depois dando lugar à noite real.
Tom gostaria de saber se a velha tornara a entrar em casa. Provavelmente estaria esperando para dar-lhe outra corrida, caso ele tentasse voltar atrás.
Ergueu o pé e forçou a perna a empurrá-lo para diante. Um ganido lancinante desabrochou imediatamente no ar, à frente dele. Tom ficou gelado. Olhou para as casas a cada lado seu — nas duas, pesadas cortinas bloqueavam as janelas da frente, dando a ambas uma aparência vazia, obstruída. Nesta época do ano, quase todos em Mill Walk mantinham as janelas abertas, para captar as brisas do Atlântico. Somente o sr. von Heilitz permanecia com as suas fechadas, os reposteiros corridos. Mesmo as pessoas que moravam nas casas “nativas”, naturalmente mais frescas do que as edificações no estilo europeu ou norte-americano, nunca fechavam as janelas durante os meses do verão.
Naturalmente, pensou Tom, eles fechavam as janelas para não ouvir aqueles ganidos.
Tornou a seguir em frente, e de mais adiante, de trás de uma das casas no outro lado da rua à sua direita, a criatura emitiu um protesto que deixou as galinhas cacarejando e batendo as asas: Tom pensou que fosse derreter-se, formando uma poça na calçada. Precisava acreditar que a velha voltara para dentro de casa. Girou sobre os calcanhares.
Então, levou tal susto que quase saltou da calçada, porque a não mais de metro e meio ou dois atrás dele havia um garoto adolescente de sua mesma altura, congelado no lugar com um pé à frente do outro, as mãos estendidas em linha reta com os cotovelos. O garoto, que claramente estivera na iminência de assaltá-lo, parecia tão assustado quanto sua quase vítima. Ficou olhando fixamente para o rosto de Tom, como se houvesse sido espetado em um alfinete.
— Tudo bem — disse ele. — Pare aí mesmo!
— O que? — Exclamou Tom, recuando um passo.
O adolescente o fitou com uma muito cautelosa ausência de expressão no rosto largo e pálido. A única animação naquele rosto eram os olhos. Um punhado de espinhas lhe brotava na testa, abaixo de uma mecha de cabelos negros. Uma espinha solitária e majestosa avermelhava toda a área entre o canto esquerdo de sua boca e o queixo. Ele usava jeans e uma suja camiseta branca. Músculos rijos, nervudos, salientavam-se nos bíceps, e havia prematuras rugas de preocupação em torno da boca. Aos 13 anos, aquele garoto já tinha o rosto que carregaria por toda a sua vida adulta. O que mais impressionou Tom foi o sobressalto nos olhos negros e fixos do menino.
— Ei, fique calmo — disse o garoto.
Passou a língua pelos lábios, como se avaliasse a camisa branca de Tom e as calças também brancas. Tom recuou vários passos.
— Por que vinha me seguindo?
— Está querendo dizer que não sabe! — debochou o garoto. — Claro. Você não sabe de nada disso, não é mesmo?
Ele tornou a passar a língua pelos lábios e, desta vez, realmente avaliou as roupas de Tom.
— Não faço a menor idéia do que está falando — disse Tom. — Tudo o que quero é ir para casa.
— Hum-hum. — O garoto moveu incredulamente o queixo para a direita, depois de volta ao centro, executando meio giro de cabeça. Seu olhar desviou-se de Tom para um ponto atrás dele, à esquerda, e a expressão impaciente suavizou-se com alívio. — Tudo bem — disse.
Olhando para trás por sobre o ombro, Tom viu uma adolescente caminhando em sua direção, tendo saído de onde parecia ser a fonte dos sons emitidos pela criatura. Os cabelos pretos e lisos pendiam sobre as clavículas e oscilavam com seus passos. Ela usava calças pretas colantes e corpete frente-única da mesma cor, óculos de lentes muito escuras e, nos pés, o que pareciam sapatilhas de dançarina. Teria quatro ou cinco anos a mais que o garoto. Para Tom, era uma perfeita adulta. Percebeu que ela não se preocupava nem um pouco com o irmão e ainda menos com ele. Aproximava-se cruzando a rua em diagonal, tendo saído da casa marrom e amarela de dois pavimentos. Um homem gordo, de eriçado cabelo à escovinha, inclinou-se contra uma das janelas laterais, no pequeno vão entre as duas casas, os braços dobrados sobre a estrutura da vidraça inferior, o rosto largo e carnudo pressionando contra a vidraça superior.
A jovem usava um batom incomumente escuro e unira os lábios carnudos e arredondados, como que fazendo beicinho, sorrindo sem sorrir.
— Ora, ora! — disse ela. — E o que vai fazer agora, Jerryzinho?
— Cale a boca! — disse o garoto.
— Pobre Jerryzinho!
Ela agora estava perto o bastante para examinar Tom e o observou através dos óculos escuros, como se ele fosse algum material gorduroso e fedorento, em uma lâmina de laboratório.
— Bem, é assim que são os garotos da Estrada Litorânea do Leste?
— Cale a boca, Robyn!
Robyn desceu os óculos escuros até a ponta do nariz e espiou para Tom com divertidos olhos escuros. Por um segundo, ele pensou que ela fosse acariciar-lhe a bochecha. Em vez disso, a jovem tornou a puxar os óculos para cima.
— O que vai fazer com ele?
— Eu não sei — disse Jerry.
— Bem, aí vem a cavalaria! — exclamou Robyn, espreitando por sobre o ombro do irmão. Jerry se virou de lado, e Tom viu, surgindo da quina de uma casa nativa, um garoto gordo, de ar irritado, com uma camiseta listrada e jeans novos, engomados, enrolados pelo menos uns 30 centímetros até a barriga da perna, em companhia de outro menino vários centímetros mais baixo e quase esqueleticamente magro. A camiseta do segundo garoto era grande demais para ele, com os ombros quase chegando aos cotovelos, o pescoço nadando na gola enorme. Ele trotava ao lado do outro, sorrindo amplamente. — Vão ser uma grande ajuda — comentou Robyn.
— Melhores do que você — replicou seu irmão.
— Eu gostaria que me dissessem o que está acontecendo — falou Tom.
— Você, cale a boca também! — bufou Jerry para ele. Piscou rapidamente, várias vezes. — Quer mesmo saber o que está acontecendo? Por que você mesmo não me diz, hein? O que está fazendo aqui?
Tom abriu a boca, mas viu que não tinha uma resposta para aquilo.
— Hein? Hein? Tudo bem, certo? — A língua de Jerry tomou a deslizar pelos lábios. — Você é que tem de me dizer, certo?
— Eu só estava...
Os olhos de Jerry relampaguearam para ele, e a fúria em seu rosto matou a frase. Robyn fez um gesto de aversão e afastou-se.
— Vou embora para casa — disse Tom, falando para o lado da enorme cabeça de Jerry.
Recuou. Os olhos de Jerry tornaram a relampaguear para ele, e então o braço também se moveu como um relâmpago, porque antes de Tom perceber o que acontecia, foi golpeado no peito. O soco quase o derrubou. Antes que tivesse tempo de reagir ou recuperar-se, Jerry ergueu o pé e o acertou no lado da cabeça.
De maneira totalmente instintiva, Tom girou sobre o pé esquerdo e, com toda a sua força, enviou a mão direita no rosto do outro. Seu punho caiu em cheio no nariz de Jerry e o quebrou. O sangue começou a escorrer pelo rosto do outro garoto.
— Seu idiota! — gritou a irmã dele.
Jerry deixou a mão cair do rosto e começou a cambalear na direção de Tom. O sangue agora jorrava de seu nariz, sujando a camiseta.
— Nappy! Robbie! Peguem ele! — gritou Jerry, esganiçadamente.
Tom parou de recuar, de repente sentindo raiva bastante para enfrentar Jerry e também os amigos dele: Baixou as mãos e viu a dúvida surgir nos olhos preocupados do outro. Tornou a esmurrar, agora sem visar particularmente algum lugar e, desta vez, acertou o pomo-de-adão de Jerry, que caiu de joelhos. A 15 metros dali e aumentando a velocidade, o garoto gordo de jeans arregaçado havia tirado uma faca do bolso e a esgrimia enquanto corria. O garoto menor também tinha uma faca, de lâmina comprida e estreita.
Um raio vermelho-dourado do sol que se punha arrancou um reflexo na faca do magricela. Tom saltou para trás, girou virtualmente em pleno ar, e correu.
Os garotos atrás dele começaram a gritar. Quando Tom ia passando diante da casa marrom e amarela, a porta da frente se abriu e o homem que estivera espiando da janela surgiu à vista. Seu rosto, tão largo e impessoalmente infeliz como o de Jerry, foi girando para acompanhar o progresso de Tom. Fez um gesto para os outros garotos correrem mais depressa, para o alcançarem e derrubarem. Tudo isto era comunicado em vagos gestos taquigráficos.
O mundo abaixo deste...
Tom conseguiu aumentar a velocidade, e os garotos à sua retaguarda lhe gritaram que parasse, que não iam machucá-lo. Só queriam falar com ele, estavam jogando fora suas facas. Olhe, não tinham mais as facas, podiam falar agora.
O que havia, ele estava com medo demais para falar?
Tom olhou por sobre o ombro e, com surpresa, viu que o garoto menor estava parado no meio da rua, o peso do corpo recaindo em um quadril, e sorria. O gorducho de jeans novos continuava a persegui-lo. O homem-caos desceu os degraus da entrada e cambaleou pela calçada, aproximando-se do filho, que estava escondido atrás da figura do menino às carreiras. O gorducho continuava empunhando a faca, de maneira alguma parecendo interessado em uma conversa amistosa. Seu estômago sacudia-se para baixo e para cima a cada passo, os olhos eram duas fendas, e de sua cabeça escorria tanto suor, que estava circundado por uma auréola de gotas cintilantes. O magricela impeliu-se para diante em uma corrida, um momento após Tom ter olhado para trás. Em pouco diminuía a distância entre o gorducho e Tom.
A tarde atravessara seu último estágio com rapidez tropical, e o ar adquirira um tom púrpura-escuro. Quando Tom chegou perto da esquina seguinte, as letras brancas do nome da rua transversal fulguraram com claridade antinatural, deixando ler a palavra AUER, a qual parecia reverberar com horrenda falta de significado.
Auer. Our.* Hour.*
* Nosso e hora, respectivamente, cuja pronúncia assemelha-se à de “auer”. (N. da T.)
Tom contornou a esquina em um amplo semicírculo e, a um quarteirão de distância, avistou a corrente contínua de veículos que enchiam a Calle Burleigh. A bruma formada pela poeira havia desaparecido na penumbra purpúrea, e faróis, lanternas de bicicletas e lâmpadas brilhantes se moviam juntamente com o tráfego, como um enxame de pirilampos em desfile. Um cavalo irritado relinchou, pisoteando o solo com força.
Um dos garotos dobrou a esquina e, bem mais cedo do que Tom esperava, o outro o seguia. Mais um olhar para cima do ombro o fez certificar-se de que o adolescente magricela ultrapassara o gorducho, estando agora somente uns 15 metros mais atrás. Ele erguia bem alto os braços e as pernas, em um elástico e natural passo de corredor, novamente com a peixeira na mão, e estava encurtando distâncias. Parecia tão certo de alcançar Tom, que fingira ter pedido o fôlego e atrasar-se. A arrogância de semelhante charada deixou Tom quase tão aterrorizado como ficara ao ver a faca; era como se o garoto jamais pudesse ser derrotado. Em um ou dois momentos estariam ambos emparelhados e, então, estaria tão escuro, que as pessoas debruçadas nas janelas, curiosas por aquela correria, não conseguiriam distinguir o que ia acontecer em seguida.
Uma pontada, como uma espada quente, penetrou no lado de Tom.
Na esquina da Auer com a Calle Burleigh, ele poderia dobrar à direita ou à esquerda e tentar escapar, fugindo para qualquer das extremidades da rua. Não obstante, pensou que, para um lado ou para outro, o magricela terminaria alcançando-o. Os pés que corriam mais atrás agora faziam um ruído tão próximo, que ele temia olhar novamente. Chegando à esquina, simplesmente continuou correndo para diante, em linha reta.
Abandonando a calçada, estendeu os braços para diante, ao mergulhar no trânsito. Imediatamente soaram buzinadas à sua volta, e um homem gritou algo incompreensível. Tom achava que seu perseguidor, já quase na esquina, também havia gritado. Arremeteu em torno do pneu traseiro de uma alta bicicleta negra, percebendo que um cavalo empinava-se nas patas traseiras, em algum ponto à sua esquerda. Outra bicicleta, virtualmente junto a seu cotovelo, bandeou para um lado como um truque de circo, mas não conseguiu equilibrar-se e continuou a inclinar-se, até que, com curiosa lentidão, seu ocupante ficou a meio metro do chão, depois a 30 centímetros. Os cabelos grisalhos do homem lhe voaram da testa, seu rosto expressando apenas a funda concentração de alguém tentando resolver um quebra cabeças muito interessante, enquanto seu ombro batia contra o chão. Em seguida, a bicicleta deslizou debaixo dele. Um cavalo do tamanho de uma montanha feita de espuma e pêlos surgiu diretamente à frente de Tom. Ele mergulhou para a esquerda. Em pânico, o cavalo precipitou-se para diante, e as rodas da caleça que puxava passaram sobre o corpo do homem de cabelos grisalhos. Tom ouviu o choque de colisões e rangido de metais à sua volta; então, diante dele se abriu magicamente um iluminado espaço vazio, e precipitou-se para lá, para aquele espaço vazio. Uma buzina soou duas vezes. Tom espiou para o lado e viu dois faróis vindo em sua direção, com a mesma sonhadora lentidão da bicicleta que tombava. Ficou totalmente incapaz de mover-se. Entre os faróis, podia distinguir a alta grade metálica de um radiador e, abaixo dela, uma larga faixa de aço que parecia envernizada. Acima do pára-choque e do radiador, indistinto atrás do pára-brisa, um rosto apontava para ele, tão atentamente como o focinho de um cão perdigueiro.
Tom sabia que o carro ia atropelá-lo, mas não podia mover-se. Nem mesmo podia respirar. Os faróis aumentaram de tamanho, a distância entre ele e o carro ficou pela metade, os faróis tornaram a duplicar de tamanho. Uma frialdade elétrica que mal chegava a perceber, envolveu seu corpo e penetrou-o. Entretanto, nada podia fazer, senão ver o carro chegar mais e mais perto, até atingi-lo.
Por fim, foi atingido, e uma série de eventos irrevogáveis começou a acontecer com Tom Pasmore. Uma dor lancinante o traspassou e envolveu, quando o impacto quebrou sua perna direita, esmagou-lhe a pélvis e a articulação do quadril. Seu crânio fraturou-se contra a grade do radiador, fazendo o sangue jorrar dos olhos e nariz. Quase imediatamente sem sentidos, o corpo de Tom aderiu ao radiador por um instantes, em seguida começando a deslizar para baixo, na frente do carro. Um ornamento de borracha preta, na forma de uma bola de futebol, ainda o manteve erguido nos dois ou três minutos seguintes, enquanto o carro ziguezagueava por entre a confusão de bicicletas caídas e cavalos empinados. Seu ombro direito estalou e o fêmur fraturado da perna direita deslizou através do músculo e da pele, como uma faca denteada. Quase 20 metros adiante, o carro finalmente estacou com um solavanco, enquanto os cavalos mais próximos acalmavam-se ou afastavam-se a galope. Tom escorregou do ornamento no pára-choque e desabou no leito da rua.
Sua bexiga e os intestinos esvaziaram-se em suas roupas.
O motorista do carro abriu a porta e saiu. Em algum ponto durante os poucos momentos seguintes, enquanto o motorista se aproximava com relutância da frente de seu carro, um outro evento, ainda mais irrevogável do que tudo quanto ocorrera nos 60 segundos anteriores, aconteceu a Tom Pasmore. O acúmulo de choque e de dor parou seu coração, e ele morreu.
ANGÚSTIAS INICIAIS
Tom estava cônscio de uma sensação de incrível leveza e harmonia, agora que não sentia mais qualquer dor. Alguma força descomunal o impelia para baixo, uma força que tentava desesperadamente arrastá-lo de volta a um invólucro demasiado pequeno para ele. Seu senso de leveza, de liberação da gravidade, impelia-o para cima, suave, mas incessantemente. Os ganchos, os olhos e dedos pegajosos que queriam puxá-lo de volta se foram soltando, um por um, até que o último destes estirou-se como um filamento, querendo retê-lo. O filamento distendeu-se, ele quase receou que se partisse — sentiu uma descomplicada onda de amor por tudo que o queria de volta. A membrana o liberou com um último plop! suave e quase impalpável. Seu amor a todas as coisas terrenas duplicou-se e transbordou; ele ficou sabendo que, tendo perdido a Terra, esse amor era idêntico ao pesar e à perda.
As lágrimas lavaram-lhe os olhos, e ele viu.
Lá, abaixo dele, havia um homem, depois, quase imediatamente, um outro e mais outro, inclinando-se para o corpo que havia sido seu. Irradiando-se do círculo formado pelos homens inclinados e o menino prostrado havia um círculo de caos que se expandia. Bicicletas amassadas pela rua como insetos mortos e cabriolés tombados jaziam ao lado de sacos furados de sementes e cimento. Um cavalo esforçava-se para pôr-se de pé, à frente de um enorme leque branco de trigo derramado; um outro precipitou-se por entre o trânsito engarrafado e ganhou uma brecha livre na rua. Carros com estribos e carros com enfeitadas coberturas de pneus sobressalentes acima dos porta-malas, carros com canos de descarga, reforços de tubos cromados e reluzentes fechos de cromo, carros com estatuetas de mulheres estirando-se na ponta do pé como dançarinas, em cima dos capôs, todos eles agora formavam uma monumental confusão, apontando com seus faróis para todas as direções, iluminando os recém-chegados que abriam caminho até o corpo maltratado que ele acabara de deixar e aquele outro, o do homem morto debaixo da caleça.
Tom viu que o mundo ansiava pela invisibilidade, que a invisibilidade era a condição final a que tudo aspirava.
Ele viu os dois adolescentes parados na calçada, meio escondidos pela multidão. Ao correr deles, sentira um medo mortal — que estranho era lembrar-se disso! Eles não eram maus, ainda não. Tom não podia ler suas mentes, mas viu que aqueles dois garotos de 14 anos, Nappy e Robbie, um tão balofo que tinha seios, o outro tão magro como um cão faminto, viviam na periferia de uma enorme nuvem de erro e confusão; que dia a dia os dois enterravam-se mais na nuvem, e então viu que eles próprios tinham produzido essa nuvem, que ela era tão resultante das coisas que faziam, como a tinta era resultante da lula...
Se o tivessem apanhado, certamente pressionariam as facas contra seu peito, sua garganta; ambos se divertiriam com seu terror, embora de algum modo — inclusive agora — sentissem vergonha disso. E essa vergonha formaria outra camada, entre as mil camadas que compunham a nuvem de tinta... mas então, Tom pressentiu ouviu tamanha feiúra, que se afastou — e viu que alguém o cobrira até o peito com um velho cobertor verde do exército, que vários daqueles homens viravam a cabeça em busca da aproximação de uma ambulância, a qual seria dirigida (Tom via) por um velhote, fumante inveterado, que se chamava Esmond Walker. A ambulância ainda estava a quatro quilômetros de distância, na Calle Bavaria, disparando por entre o trânsito com a sirene ululando, e Tom ouviu a sirene, soube que, dentro de oito minutos, seu som alcançaria os homens que esperavam — oito minutos
Com alguma surpresa, mesclada de amor e piedade, Tom olhou para baixo, para a pessoa que havia sido. Seu eu terreno que era tão jovem, tão incriado e inocente. Ele se esforçara com empenho enquanto vivia, mostrara uma intensa, inocente concentração, e sua família o choraria, os amigos sentiriam sua falta, durante algum tempo haveria no mundo um buraco que ele preenchera.
Entretanto, o senso de leveza e harmonia o ergueu para mais longe ainda da cena, os padrões ficaram mais claros. No epicentro da confusão havia dois corpos, o seu e o daquele homem esmagado. Policiais em carros e policiais em bicicletas começavam a chegar. Partindo daquela cena apinhada e infeliz, com suas luzes brilhando e gritos para as pessoas — Recuem! Deixem ele respirar! — havia uma trilha diáfana, que somente Tom conseguia ver.
Era a trilha do que ele teria feito, de para onde teria ido, se houvesse vivido. Esta trilha de possibilidades estava desaparecendo do mundo visível, e o que Tom viu foi o seu desaparecimento.
Ele testemunha sua arremetida através do trânsito, em uma profusão de buzinadas e luzes, vê-se correndo para leste, salvo, no outro lado da Calle Burleigh. Vê-se chegando em casa, para junto dos pais exasperados... e lá se vai a trilha de sua vida, cintilando enquanto desbota, da escada da Academia de Dança da srta. Ellinghausen, onde um Tom mais velho se encontra ao lado de uma bela jovem chamada Sarah Spence e olha para cima, o rosto paralisado por momentânea apreensão — aquele Tom Pasmore mais velho olha para cima, o rosto quase se fundindo com sentimentos que não entende, a trilha desce os ásperos degraus brancos da entrada da Academia da srta. Ellinghausen e se desfaz, muito antes dele chegar à calçada. Em um quarto modesto do St. Alwyn Hotel, um Tom ainda mais velho está lendo um livro intitulado As tentações da invisibilidade, um título curioso, porém ele não está na casa da Estrada Litorânea do Leste, por que está no Sr. Alwyn Hotel? Dor por um futuro não vivido — o que é isso?
Fazia três minutos que tinha morrido: a duração de uma das canções que sua mãe ouvia no rádio, com a cabeça de banda, olhos semicerrados, a fumaça do cigarro enroscando-se enquanto atravessava seus cabelos.
Na Calle Burleigh uma multidão ainda maior apinhava as calçadas, falando de maneira confusa, ignorante, sobre o que provocara toda aquela balbúrdia. Uma bicicleta tombou, eu vi, foi bem ali — um cavalo acertou a cabeça dele, assim mesmo, em cheio — um garoto estava correndo — alguém empurrou um garoto.
Não, protestou Tom, não foi nada disso, estão todos enganados, não foi assim que aconteceu!
Pouco antes começara a soar uma música, mas só agora Tom a percebia: era uma música, não sabia qual, saxofones e trompetes, e dentro em pouco o cantor se precipitaria para o palco, ajeitando a gravata borboleta e se postando diante do microfone, para então explicar tudo...
No fim, a música explicava tudo.
As portas das casas da Calle Burleigh se abriram e os moradores espiavam das entradas, dos passadiços acimentados ou ficavam na calçada apinhada, uns falando com os outros. Seu olho foi atraído por uma mulher gorda, em vestido de casa, azul, sacudindo o indicador para seu gramado ao lado, enquanto dizia, Garotos vadios, sempre causam problemas, eu o botei para fugir, assustado, aqueles garotos lá, quem sabe a respeito deles?
Ela apontou por entre os prédios na direção da Rua 44 e o olho de Tom se voltou para lá. Na Rua 44 não havia uma só porta aberta, e o único ser humano visível era um bêbado gordo, sentado e fumando na entrada de uma casa marrom e amarela, de dois andares, perguntando-se o que faria em seguida.
A ambulância de Esmond Walker dobrou a esquina da Calle Bavaria, no extremo norte do Parque Goethe, e começava a mover-se lentamente através dos carros empacados e bicicletas tombadas, no perímetro do círculo de desordem causado pelo acidente de Tom. O sr. Walker passou raspando por uma carreta cheia de couros curtidos, deu uma cutucada em um furgão de entregas do Mercado Ostend’s, que parara a uma distância suficiente para deixá-lo passar, e mudou a freqüência da sirene, do ulular contínuo para um firme e mais peremptório bip-bip-bip. Contornou dois ciclistas que olharam duramente para dentro da boléia, como se o acusassem pela demora, jogou fora o cigarro e continuou rodando regularmente por entre a profusão de veículos que se afastavam devagar, a fim de dar-lhe caminho.
De seu poleiro acima do dissolvente caos, Tom ouviu a mudança no sinal da sirene, e essa mudança de som pareceu cutucá-lo tão certeiramente como fora cutucado o furgão do Ostend’s, porque a música começou a disseminar-se pelo ar em torno dele, os trompetes soaram e a complicada cena abaixo de Tom obscureceu-se, desapareceu.
Então, é assim que acontece, pensou, e logo se movia rapidamente através de um túnel escuro, em direção a uma luz cálida e brilhante. Não movia braços ou pernas e tampouco estava sendo carregado por algum meio. Era quase como se voasse, mas ereto, como que suportado por um invisível passadiço. A música que tinha ouvido o circundava como um zumbido ou canto de pássaro, quase suave demais para ser audível, enquanto eram carregados, ele e a música, para aquela luz distante.
O túnel se alargara imperceptivelmente e ele se movia através de um amontoado de figuras penumbrosas, irradiando boas-vindas e proteção — Tom sabia que já vira aquelas pessoas antes, que conhecera cada uma delas em sua vida terrena e que, embora não podendo identificá-las bem agora, estava profundamente aliviado em tornar a vê-las.
Todo o seu corpo estava impregnado de luz e dos mesmos sentimentos que o haviam inundado, quando saltara da carroça do leite. Era uma deliciosa sensação de absoluta exatidão, de que todas as preocupações tinham acabado, que nunca mais as teria, propagando-se através dele enquanto viajava por entre a multidão protetora, rumando para a luz. Não tinha sempre conhecido tais sentimentos? De alguma forma? Tom achava que eles haviam sido a parte mais profunda de sua vida, a mais poderosa, porém a menos visível, a menos conhecida ou compreendida, ao mesmo tempo a mais segura e confiável. Eram os sentimentos causados pelo senso de uma radiância legítima existindo no centro da vida — agora ele sabia que aquela radiância era real, porque viajava para ela em meio a pessoas que o tinham amado, que lhe desejavam conforto e paz em sua nova condição, uma condição pela qual ansiava, da qual necessitava mais intensamente, a cada centímetro voado em sua trajetória para a luz. Porque cada centímetro significava um aumento da claridade, da certeza do conhecimento, e ele se sentia como um faminto, precipitando-se para um banquete.
Então, um comprido filamento que o prendia à sua vida antiga o fisgou como se houvessem lançado um anzol, abruptamente, ele deixou de mover-se para diante. Outro filamento o fisgou. As pessoas que o esperavam e davam as boas-vindas começaram a recuar. Tom se sentiu deslizando para longe do banquete de senso e conhecimento que o tinha aguardado. Estava sendo puxado de volta pelo túnel como um cachorro relutante, a luz foi diminuindo, à medida que se afastava dele.
Então, por um chocante momento, enquanto passava em queda ao lado de seu anterior poleiro no ar, Tom viu um homem negro e de uniforme branco empurrar uma maca na traseira de uma ambulância. A maioria do caos na rua já se desfizera, cavalos e bicicletas faziam o contorno pelo incômodo comprimento da ambulância e continuavam seguindo para leste, em direção à enseada do Olmo. Na calçada ainda permanecia um denso amontoado de gente.
Os ganchos, olhos e filamentos empurraram Tom de volta a seu corpo, com tanta força, que ele não conseguia respirar. A impressão era a de que fora atirado com brusquidão em uma superfície de concreto. Tudo quanto lhe acontecera após ter descido de uma carroça de leite desapareceu de sua mente. Por um momento, julgou ouvir música sussurrante; uma luz no teto da ambulância agrediu seus olhos cruelmente. Tom perdeu os sentidos novamente, em uma onda de dor.
Acordou em um quarto branco e espiou por entre uma confusão de fios e tubos para rostos contraídos. Seus pais o fitavam como se não o conhecessem. Um cheiro acre e estranho pairava acima dele; cada pedacinho de seu corpo parecia doer. Ele tornou a mergulhar na inconsciência.
Da vez seguinte em que despertou, a dor no meio do corpo demorou um momento a chegar, depois o atingiu como um soco. Tudo dava a impressão de destruído, na junção da parte superior de seu corpo com a inferior. Sua perna direita gritava, o braço e o ombro direitos proferiram uma queixa aguda, porém mais branda. Ele olhava para um teto desconhecido, através de um emaranhado de tubos e cabos, pensando vagamente que estivera indo para algum lugar — não estivera? — quando outra onda de dor, mais forte, atingiu-lhe o centro do corpo. Ouviu alguém gemer. Quase descobrira o lugar, e então toda esta dor não seria sua. Com uma espécie de apaixonado horror, Tom percebeu o quanto uma pessoa deve estar machucada, para sentir tamanha dor. Então, em nauseante guinada de reconhecimento, compreendeu que alguma coisa terrível e ignorada lhe tinha ocorrido. Viu seu corpo desmembrado na rua, e o negror precipitou-se para ele, vindo de alguma profunda e interior caverna. Tentou erguer a cabeça. A escuridão pairou sobre ele por um momento, mas seus olhos tornaram a abrir-se para o mesmo teto branco e espirais de tubos de plástico. Desta vez, Tom baixou os olhos e fitou seu corpo.
Um comprido objeto branco estendia-se para os pés da cama. Sentiu-se novamente tomado de horror. Seu corpo havia sido amputado e substituído por aquele estranho objeto. Por fim, viu sua perna esquerda real, salientando-se do objeto. Ao lado dela jazia um liso volume branco, um molde de gesso, que lhe vinha até o meio do peito. Estava em um hospital. Foi tomado por terrível premonição, e tentou tocar os genitais com a mão direita.
O movimento provocado pela apavorada busca das virilhas queimou-lhe o ombro e deixou o meio do corpo em chamas. Presa em outro molde de gesso, sua mão direita estava suspensa acima do peito. Ele começou a chorar. Como que por si mesma, a mão esquerda que, miraculosamente, não fora envolta em gesso, deslizou pela fria crosta branca sobre seu corpo e tateou entre as pernas. Tocou apenas uma superfície lisa e sem pêlos, como virilhas de uma boneca. Um tubo escapava de um orifício no gesso que, fora isso, era disforme. Havia sido castrado. O conforto sentido pouco antes, ao saber-se em um hospital, desapareceu em ironia — estava em um hospital porque era o único lugar em que alguém como ele seria aceitável; ficaria ali para todo o sempre.
Por sob a dor lancinante em seus quadris, virilhas e perna direita, movia-se outro nível de dor, como um tubarão espreitando para atacar. Esta era uma dor que obliterava o mundo. Ao experimentá-la, ele nunca mais voltaria a ser a pessoa que havia sido. Seria afastado de si mesmo e de tudo quanto conhecera. Tom esperava que esta funda dor emboscada se movesse para cima e o abarcasse, mas ela continuou circulando dentro do corpo, tão indolentemente poderosa como uma ameaça.
Tom virou a cabeça, a fim de olhar de lado, e o movimento provocou apenas uma onda de dor menor, em seu ombro direito. Ao fazer isso, roçou inconscientemente a mão esquerda sobre a lisa curvatura arredondada das virilhas, onde seu pênis devia ter estado — alguma coisa lá embaixo estava urinando, ele não podia conceber o quê, não podia pensar a respeito ou começar a retratá-lo. Logo depois de sua cabeça, no extremo mais distante do lençol, três grades tubulares e encurvadas marcavam a borda da cama e, depois da cama, havia uma mesa branca, com um copo de água e um canudinho de aparência engraçada. A bolsa de palha de sua mãe jazia sobre uma poltrona. Uma porta se abria para um corredor branco. Dois médicos passavam pelo corredor. Estou aqui, ele quis gritar, estou vivo! Sua garganta recusou-se a emitir qualquer som. Os médicos seguiram em frente, e Tom recordou que tinha visto um copo de água. Seus olhos se voltaram para o copo, na mesa-de-cabeceira. Água! Estendeu a mão esquerda para o copo. No instante em que a mão tocou a mesa, Tom ouviu a voz de sua mãe, passando através da porta aberta.
— Pare! — gritou ela. — Eu não suporto mais isto!
A mão dele tremeu por si mesma, derrubando o copo em uma pilha de livros. A água espalhou-se pela mesinha e depois escorreu para o chão, como uma sólida cortina prateada.
— Eu suportei isto a vida inteira! — gritou seu pai de volta.
A dor secreta, no fundo de seu corpo, abriu a boca para devorá-lo e, baixinho demais para ser ouvido, Tom gritou, tornando a desmaiar.
Da vez seguinte em que abriu os olhos, um rosto de papada espiava para ele, com cômica seriedade.
— Bem, rapazinho — disse o dr. Bonaventure Milton. — Pensei que estivesse descansando. Algumas pessoas estão esperando para falar com você.
A cabeça grande do médico se virou para trás e afastou-se. No espaço vazio surgiram os rostos juntos dos pais de Tom.
— Olá, garoto — disse seu pai.
— Oh, Tommy! — disse sua mãe.
Victor Pasmore olhou fixamente para a esposa durante um segundo, antes de concentrar-se de novo no filho.
— Como se sente?
— Você não precisa falar — disse sua mãe. — Vai ficar melhor agora. — O rosto dela avermelhou-se, os olhos encheram-se de lágrimas. — Oh, Tommy, nós ficamos tão... você não chegava em casa, e então soubemos... enfim, os médicos disseram que vai ficar bom...
— É claro que ele vai ficar bom — disse seu pai. — Que conversa é essa?
— Água — Tom conseguiu dizer.
— Você derrubou o copo para fora da mesinha — disse seu pai. — Parecia ter jogado uma bola de beisebol na vidraça. Soube mesmo chamar nossa atenção!
— Ele está com sede — disse Glória.
— Pode deixar, providenciarei outro copo — disse o médico.
Tom o ouviu sair do quarto. Por um momento, os Pasmores ficaram em silêncio.
— Pare de quebrar esses copos — disse seu pai. — Acabaremos gastando um dinheirão em copos.
Victor Pasmore inclinou-se para mais perto do filho, espargindo uma estonteante mistura de loção após barba, tabaco e álcool.
— Você se machucou bastante, Tommy, mas agora está tudo sob controle, não é mesmo? — disse ele, conseguindo dar de ombros, enquanto debruçado sobre a cama.
Tom forçou as palavras a escaparem da garganta.
— O meu... eu estou...?
— Você foi atropelado por um carro, filho — disse seu pai.
Então, Tom recordou o radiador e o pára-lama avançando para ele.
— Tive que ir ao inferno e voltar, para conseguir outro copo — queixou-se o dr. Milton, tornando a entrar no quarto. Parou ao lado de Victor e olhou para baixo. — Acho que nosso paciente podia descansar agora pouco, não?
Ele segurou o copo diante do rosto de Tom e, delicadamente, inseriu-lhe entre os lábios o encurvado canudinho plástico. A água, seda líquida, invadiu Tom com os sabores de morangos, leite, mel, ar, sol. Ele aspirou outro gole do copo, entreabriu os lábios para respirar, e o médico retirou o canudo de sua boca.
— Já basta por enquanto, filho — disse ele.
Sua mãe roçou-lhe a mão esquerda com os dedos, antes de recuar.
Algum tempo depois disso, uma hora ou um dia, Tom abriu os olhos para uma visão parecendo tão irreal quanto um sonho — a princípio, pensou que só poderia estar sonhando, pois o que viu foi a esguia, fantástica figura de Lamont von Heilitz, seu velho e excêntrico vizinho na Estrada Litorânea do Leste, destacando-se de um canto escuro do quarto e deslizando na direção dele. O sr. von Heilitz usava um de seus esplêndidos ternos, um risca-de-giz cinza-claro, com um colete amarelo-claro que tinha amplas lapelas; na mão esquerda, segurava luvas do mesmo tom. Sim, era um pesadelo, porque a penumbra parecia seguir o velho, enquanto caminhava para a cama e pestanejava para Tom, cujo receio era de que seu estranho vizinho começasse a agitar o punho, grilando para ele.
Entretanto, ele não fez nada disso. Com teias de penumbrosa escuridão pingando dos ombros, o sr. von Heilitz deu leves tapinhas em seu braço esquerdo e olhou para baixo com muito mais compaixão do que o dr. Bonaventure Milton.
— Desejo que fique bom, Tom Pasmore — sussurrou. Inclinou-se para o corpo de Tom, e o menino viu as sombras que o acompanhavam espalharem-se pela fina rede de linhas na testa branca. As pontas viradas de seu cabelo grisalho brilhavam. — Lembre-se disto — tornou a sussurrar.
Em seguida, recuando para a escuridão que parecia esperá-lo, ele se foi.
A janelinha fronteira à cama de Tom não era mais do que um buraco espetado em uma brancura encardida, pontilhada aqui e ali de manchas antigas. Teias de aranha com aparência de sujeira escureciam as paredes, junto ao teto. Elas desapareciam periodicamente de maneira misteriosa, tornando a aparecer dias mais tarde, do mesmo modo misterioso. Perto da cama, uma mesa-de-cabeceira sustentava um copo de água e os livros dele. Uma bandeja sob a mesa deslizava para ele, na hora das refeições. Perto da porta ficavam duas cadeiras de plástico verde. Atrás da mesa-de-cabeceira via-se a coluna a que estavam acoplados os vários sacos e frascos que o nutriam. Pela porta, Tom podia ver o corredor do hospital, com seu piso ladrilhado em preto e branco, através do qual se movia um constante desfile de médicos, enfermeiras, faxineiras, serventes, visitantes e os pacientes seus colegas. Mesmo com a porta fechada, ele só deixava de perceber a movimentação quando a dor se tornava mais angustiosa.
O hospital era tão barulhento quanto uma fundição. As faxineiras vagavam pelos corredores o tempo todo, conversando umas com as outras e ouvindo seus rádios, enquanto limpavam o chão com movimentos cansados e exasperados dos braços. Seus carrinhos chocalhavam e chiavam, as presilhas dos esfregões com amoníaco tilintando contra os baldes. Sempre havia alguém transportando roupa para lavar através dos corredores e sempre havia alguém acolhendo um visitante com exclamações ruidosas e, com grande freqüência, alguém estava resmungando ou gritando. Durante as horas de visita, os corredores se enchiam com multidões falando em tons falsamente alegres e crianças correndo de um extremo para o outro, segurando o cordão de seus balões de gás.
O mundo de Tom era dominado pela dor física e pela necessidade de controlar essa dor. A cada três horas, uma enfermeira com uma pequena bandeja branca atravessava seu quarto e erguia um diminuto copo de papel branco, entre outros da bandeja, ainda mesmo antes de chegar junto dele. Assim, quando ela o alcançava, já estava em posição de chegar o copinho aos seus lábios à espera. Havia então um agoniante período em que o adocicado e oleoso conteúdo do copo deixava temporariamente de funcionar. Às vezes, se a enfermeira fosse Nancy Vetiver ou Hattie Bascombe, ela lhe segurava a mão ou afagava-lhe os cabelos.
Eram pequenas moedas de afeição que o acalmavam.
Em um ou dois minutos, a dor que subira dos lugares mais profundos de seu corpo começava a apaziguar-se, como um grande animal indo dormir. Então, todas as penetrantes dores menores ficavam imprecisas e diminuíam.
Certo dia, durante a terceira semana de Tom no hospital, o dr. Milton entrou no quarto, enquanto ele conversava com Nancy Vetiver, uma das suas duas enfermeiras favoritas. Era uma loura esguia de 26 anos, com olhos castanhos muito juntos e linhas fundas aos lados da boca. Nancy tinha a mão dele entre as suas e contava-lhe uma história sobre seu primeiro ano no Shady Mount — o barulhento dormitório em que vivera, a comida que a deixava meio nauseada. Tom esperava fazê-la contar-lhe algo sobre Hattie Bascombe, a enfermeira da noite, por ele considerada maravilhosa e um tanto tímida. Entretanto, Nancy olhou por sobre o ombro, quando o médico entrou, apertou-lhe a mão e fitou o homem impassivelmente.
Tom viu o dr. Milton arquear as sobrancelhas, quando chegou perto da cama e percebeu que tinham as mãos unidas. Nancy soltou suavemente a mão dele e ficou em pé.
O médico dobrou o queixo amplo e franziu o cenho para ela durante um momento, antes de se voltar para Tom.
— Enfermeira Vetiver, não? — perguntou.
Nancy usava um crachá, e Tom adivinhava que o médico já a teria encontrado muitas e muitas outras vezes.
— Exatamente — disse ela.
— Não deveria estar cuidando de alguns aspectos essenciais do seu trabalho?
— Este é um dos aspectos essenciais do meu trabalho, dr. Milton — respondeu Nancy.
— A Senhorita acha, e permita-me estar certo de que exponho isto adequadamente, que é uma boa terapia queixar-se a este menino, pertencente a uma boa família, aliás, a uma família muito boa — e ele lançou a Tom o que se presumia ser um olhar de reafirmação — a respeito do carneiro que é servido na residência das enfermeiras?
— É exatamente o que acho, doutor.
Os dois ficaram encarando-se por um momento, e Tom viu o dr. Milton decidir que não valia a pena discutir etiqueta hospitalar com um subordinado. O médico suspirou,
— Sugiro que reflita sobre o que deve a esta instituição — disse em tom monótono, sugerindo que já falara coisas similares inúmeras vezes antes. — No momento, entretanto, temos um paciente, um importante paciente — outro sorriso gelado para Tom — que precisa ser cuidado, enfermeira Vetiver. O avô deste jovem, meu bom amigo Glen Upshaw, continua fazendo parte da direção deste hospital. Quer ter a gentileza de permitir que eu o examine?
Nancy recuou um passo, e o dr. Milton inclinou-se para observar o rosto de Tom.
— E então, como vamos? Sente-se melhor?
— Acho que sim — disse Tom.
— E quanto às dores?
— Às vezes são muito ruins.
— Dentro de bem pouco tempo já estará de pé — disse o médico. — A natureza é um grande curador. Penso que poderíamos aumentar sua medicação... — Endireitando o corpo, ele virou a cabeça para Nancy. — Devíamos estudar um aumento desta medicação, não devíamos?
— Pensaremos a respeito — disse ela. — Sim, senhor.
— Muito bem, então. — Ele deu alguns tapinhas, vagamente, no gesso de Tom. — Imaginei que seria útil para mim chegar até aqui e ter uma conversinha com o garoto. Agora, vejo que tinha razão. Foi muito útil. Está tudo correndo bem, enfermeira?
Nancy sorriu para o médico com o rosto sutilmente mudado, parecendo mais velho, mais duro, mais cínico. Tom a achou menos bonita, porém mais imponente.
— Naturalmente — respondeu ela.
Lançou um olhar para Tom e, quando o menino viu seus olhos, compreendeu: nada do que dissera o dr. Milton tinha qualquer importância.
— Muito bem, vou apenas acrescentar uma anotação no mapa dele — disse o médico, ocupando-se por um momento com sua caneta.
Tornou a pendurar o mapa aos pés da cama, endereçou a Nancy um olhar cheio de um significado que Tom não soube como interpretar, e disse:
— Comunicarei a seu avô que você está se saindo esplendidamente, com atitude mental positiva, esse tipo de coisas. Ele ficará satisfeito. — O médico consultou seu relógio. — Imagino que esteja comendo bem, não? E aqui não temos carneiro, não, enfermeira? Você precisa alimentar-se, é uma exigência da natureza. Às vezes, uma boa e sólida alimentação é o melhor remédio que se pode ter. — Mais uma espiada no relógio. — Hum... Tenho um compromisso importante dentro em pouco. Fico satisfeito em termos acertado aquele pequeno detalhe, enfermeira Vetiver.
— É um grande alívio para todos nós — disse Nancy.
O dr. Bonaventure Milton dirigiu-lhe um olhar indolente, quase sorriu com a mesma indiferente indolência e, após um aceno de cabeça para Tom, saiu do quarto.
— Sim, senhor — disse Nancy, como que para si mesma.
Com isto, Tom compreendeu tudo que teria para compreender sobre seu médico.
Mais tarde, houve uma “complicação” com sua perna, que começara a dar a sensação de estar sendo bombeada com hélio, pois parecia tão leve, que ameaçava estraçalhar seu gesso e escapar flutuando no ar. Tom procurou ignorar tal sensação pelo maior tempo possível, mas dentro de uma semana aquilo se tornou parte da dor que ameaçava devorar o mundo inteiro, e teve de confessá-lo a alguém. Nancy Vetiver prometeu comunicar ao dr. Milton e realmente contou para ele. Quanto a Hattie Bascombe, falando da escuridão, no meio da noite, observou:
— Guarde sua faca do jantar, e quando o velho Quebra-ossos começar a dar tapinhas em seu gesso, dizendo que tudo é apenas imaginação sua, pegue a faca e enterre-a naquela mão gorda, cor de peixe.
Tom concluiu que Hattie Bascombe era o outro lado de Nancy Vetiver, então pensando que cada objeto e cada pessoa devia ter seu outro lado, seu oposto — o lado que pertencia à noite.
Conforme Hattie previu, o dr. Milton zombou da história dele sobre uma dor “leve”, uma dor “aérea”. Os pais de Tom também não acreditaram nisso. Eles não queriam acreditar que seu médico, o prestigiado Bonaventure Milton, pudesse ter cometido um erro (e tampouco o cirurgião, um dr. Bostwick, com exceção disto, um homem inatacável). Acima de tudo, não queriam acreditar que Tom precisaria de uma outra cirurgia. Tom pensava o mesmo — queria apenas que abrissem o gesso e deixassem o ar escapar. Evidentemente, não era a solução, os médicos jamais fariam isso. Assim, o abscesso dentro de sua perna foi aumentando e aumentando; quando Nancy e Hattie finalmente conseguiram que o dr. Bostwick examinasse aquela queixa “imaginária”, ficou claro que Tom precisaria ser submetido a nova operação, a qual não apenas removeria o abscesso, como reajustaria sua perna. Isto significava que primeiro teriam de quebrá-la de novo — era como se ele tivesse de ser novamente impelido para a Calle Burleigh e atropelado.
À noite, Hattie Bascombe inclinou-se para ele e disse:
— Você é um estudante e isto aqui é a sua escola. Suas lições são difíceis — difíceis — mas terá de aprendê-las. Muita gente só aprende o que está sendo ensinado a você, senão com bastante mais idade. Nada é seguro, eis o que você está aprendendo. Nada é integral, não por muito maldito tempo. O mundo é metade noite. Pouco importando o que seja seu avô.
O mundo é metade noite — foi o que ele ficou sabendo.
Tom passou o verão inteiro no Hospital Shady Mount. Os pais visitavam-no com a irregularidade que esperava deles, sabendo que consideravam tais visitas perturbadoras e incômodas, de certa forma prejudiciais à sua recuperação: enviavam-lhe livros e brinquedos e, embora a maioria dos brinquedos lhe chegasse às mãos em pedaços ou fosse inútil para alguém confinado ao leito, os livros estavam sempre perfeitos, cada um deles. Quando os pais surgiam em seu quarto, pareciam-lhe mais silenciosos e mais velhos do que podia recordar, sobreviventes de outra vida. O que falavam durante as visitas era sobre a saga que haviam suportado, no dia de seu acidente.
A única vez em que seu avô foi ao hospital, ficou parado ao lado da cama, apoiado no guarda-chuva que usava como bengala, mostrando no rosto algo tenso e duro que duvidava do neto, que se perguntava sobre ele. Isto, recordou Tom de súbito, era extraordinariamente familiar — a sensação de que o avô não gostava dele.
Teria ele fugido?
Não, claro que não! Por que fugiria?
Ele não tinha amigos lá — ou tinha? Poderia ter estado na enseada do Olmo? Dois garotos de sua antiga classe na Brooks-Lowood moravam na enseada do Olmo; teria ele tido a idéia de fazer todo o trajeto até lá, a fim de visitá-los?
A classe de Tom passara a ser sua antiga classe, porque ele perderia um ano letivo.
Pode ser, respondeu ele. Não me lembro. Simplesmente não me lembro. Recordava vagamente o dia do acidente, podia lembrar-se da carroça do leite, com seu aviso proibido levar passageiros, do condutor que o interrogava sobre namoradas.
E a quem ele tinha ido ver?
Sua memória se fechou, ofereceu resistência pura. As insistentes perguntas de seu avô pareciam-lhe bofetadas.
Por que seu acidente acontecera na Calle Burleigh, quase 13 quilômetros a leste da enseada do Olmo? Teria ido até lá de carona?
— Por que me faz todas estas perguntas? — explodiu Tom, em seguida prorrompendo em lágrimas.
Da porta veio uma muda e chocada exalação, fazendo Tom perceber que ali haveria gente do hospital, querendo dar uma espiada em seu avô. — Será melhor que permaneça em sua parte da cidade — disse o avô.
Em seguida à frase, Tom captou ruídos quase inaudíveis de aprovação, produzidos por jovens médicos e serventes curiosos.
No final de agosto, durante os últimos trinta minutos das horas de visita, uma garota chamada Sarah Spence entrou em seu quarto. Tom baixou o livro que lia e olhou para ela, espantado. Também ela parecia espantada ao ver-se em um quarto de hospital, e olhou para tudo em torno, curiosa, antes de aproximar-se da cama. Por um momento, Tom achou que sim, era realmente espantoso ele estar ali e que ela tivesse de vê-lo desse jeito. Naquele momento, ele foi o velho Tom Pasmore e, ao ver como Sarah inspecionava timidamente seu maciço aparelho de gesso com um sorriso consternado, pareceu-lhe ridículo que devesse ter-se sentido tão infeliz.
Sarah Spence havia sido sua amiga desde os primeiros dias na escola, e quando os olhos dela encontraram os seus, ele se sentiu devolvido à vida. Percebeu imediatamente que a timidez a abandonara e que, ao contrário dos garotos de sua classe que tinham visitado seu quarto, ela não se intimidava ante as evidências de suas avarias. A esta altura, o ferimento da cabeça já cicatrizara e o braço direito estava sem as ataduras e o gesso, de maneira que ele ficava mais semelhante ao antigo Tom, do que ficara durante a maioria de julho.
Enquanto se olharam e avaliaram por um momento, antes de falarem, Tom percebeu que o rosto de Sarah não era mais o de uma menina, mas quase o de uma mulher. Seu corpo mais alto também começava a ser de mulher. Viu que Sarah estava plenamente cônscia das diferenças no próprio rosto e corpo.
— Oh, meu Deus! — exclamou ela. — Você olharia para esse gesso?
— A verdade é que olho bastante para ele — disse Tom.
Ela sorriu, erguendo os olhos para os dele.
— Oh, Tom! — exclamou novamente.
Por um instante pairou entre eles a possibilidade de que Sarah Spence lhe seguraria a mão, tocaria seu rosto, talvez o beijasse, prorrompesse em lágrimas ou fizesse tudo junto — Tom quase ficou zonzo em seu desejo de que ela o tocasse, e quanto a Sarah, mal sabia o que queria fazer, como expressar a onda de ternura e pesar que sentira, ante a piada dele. Ela deu mais um passo para perto, estava a ponto de tocá-lo, quando viu o quanto a pele dele estava pálida, acinzentada logo abaixo da superfície dourada. Viu também que o cabelo estava escorrido e emaranhado. Por um rápido momento, Tom Pasmore, seu amigo do quinto grau, tornou-se um estranho. Ele parecia ter encolhido, os ossos estavam salientes e, embora aquele familiar estranho à sua frente fosse um garotinho — um garotinho — ele tinha feias nódoas escuras sob os olhos, como um velho. Então, o rosto de Tom pareceu readquirir as linhas tão conhecidas, e ele deixou de ser um garotinho com olhos de velho, novamente ajustando-se à borda da adolescência, ao garoto de quem mais gostava em sua classe, o amigo que passara horas diariamente conversando e brincando com ela nos verões e fins de semana passados — mas agora ela dera inconscientemente um meio passo para trás e entrelaçava as mãos, na altura da cintura.
De repente, ambos sentiam-se pouco à vontade.
A fim de dizer alguma coisa, qualquer coisa afinal, para que ela não saísse do quarto, Tom perguntou:
— Sabe quanto tempo fiquei aqui?
Arrependeu-se imediatamente, porque era como se a estivesse acusando de tê-lo ignorado. Então, pareceu-lhe que tentava dizer a Sarah, em apenas uma frase, todas as mudanças que se tinham operado nele. Assim, acrescentou:
— Fiquei aqui uma eternidade.
— Eu soube ontem — disse Sarah. — Acabamos de voltar lá do norte.
“Lá do norte”, uma expressão que Tom entendia tão bem quanto Sarah, não se referia à extremidade norte da ilha, mas à fileira norte de estados, na América do Norte continental. Como muitos dos residentes no extremo leste, os pais de Sarah (embora não os Pasmores) possuíam propriedade na região norte do Wisconsin, passando grande parte de junho, julho e agosto em uma casa de pinheiro, à beira de um lago de água doce. No fim de junho, o clã Redwing, a mais importante família de Mill Walk, como um só organismo, virtualmente transferia-se para um composto separado, junto ao Lago da Águia.
— Mamãe ficou sabendo pela sra. Jacobs, quando falou com ela no Mercado Ostend’s. — Ela fez uma pausa. — Você foi atropelado por um carro?
Tom assentiu. Podia perceber que também Sarah tinha perguntas que não faria: Qual foi a sensação? Você consegue lembrar-se? Doeu muito?
— Como foi que aconteceu? Você, simplesmente, caminhou na frente de um carro?
— Parece que eu ia atravessar a Calle Burleigh, era a hora do rush, e...
Incapaz de dizer mais, porque tudo quanto recordava agora daquele dia era a aparência do carro, antes de atingi-lo, ele deu de ombros.
— Como pôde ser tão idiota? — disse ela. — E o que vai fazer em seguida? Mergulhar em uma piscina vazia?
— Acho que meu próximo ato de desafio à morte será tentar sair desta cama.
— E quando vai ser? Quando voltará para casa?
— Não sei.
Uma inusitada expressão de adulto surgiu no rosto dela.
— Muito bem, e como irá para a escola, se não for para casa? — Como ele não respondesse, a exasperação foi substituída por um momento de pura confusão, depois por algo semelhante a incredulidade. — Não vai voltar para a escola?
— Não vou poder — disse ele. — Um ano inteiro será perdido. É verdade -acrescentou, diante da crescente incredulidade dela. Começava a sentir-se novamente deprimido. — Ainda ficarei na cama por mais oito semanas, pelo menos foi o que me disseram. Quando finalmente for para casa, vão colocar-me em uma cama de hospital, na sala de estar. Como posso ir para a escola, Sarah? Nem mesmo consigo sair da cama!
Ficou estarrecido ao ouvir-se fazendo terríveis e esfarrapados ruídos, como se as dores começassem a anunciar-se novamente. Achou que Sarah Spence parecia lamentar ter vindo ao hospital — e ela estava certa, ela não fazia parte daquele lugar. De um modo que não chegou a perceber inteiramente, refletiu que ela havia sido sua melhor e mais importante amiga, mas que agora se abria um vasto abismo entre eles.
Sarah não fugiu do quarto, mas, para Tom, foi quase pior do que se ela o visse secar o rosto e assoar o nariz, enquanto a ouvia proferir frases sem sentido sobre como tudo ia terminar bem. Viu-a recuar para o mundo ignorado da luz do dia, recuar em polido horror para longe do seu medo, sua dor e sua raiva. De qualquer modo, Sarah não sabia do pior — ela ignorava que tinha sido castrado, que entre suas pernas nada mais havia além de um tubo, um fato tão hediondo, que ele próprio não conseguia mantê-lo na mente por mais de alguns segundos a cada vez. Agora, sem ter consciência do que fazia, sua mão esquerda deslizou para a virilha lisa do gesso em seu corpo.
— Você deve sentir uma coceira danada — disse ela.
Ele puxou a mão, como se o gesso estivesse em brasa. Sarah continuou lá até o final do horário de visitas, contando a ele sobre um cachorro novo chamado Bingo, o que havia feito “lá no norte”, e como Buddy, o primo de Fritz Redwing, levara um dos barcos a motor da família para o meio do lago da Águia, onde tentara dinamitar os peixes. A voz dela ia e vinha, cheia de ternura, comedimento e compreensão, além de outros sentimentos que ele não podia ou não sabia identificar, até que Nancy Vetiver entrou, para dizer-lhe que precisava ir embora.
— Eu não sabia que você tinha uma namorada tão bonita — comentou. — Acho que vou ficar com ciúmes.
Todo o rosto de Sarah ficou vermelho, enquanto ela estendia a mão para a bolsa, prometendo voltar breve. Quando saiu, ofereceu a Tom apenas um sorriso de relance, e não falou nem olhou para Nancy. Sarah nunca mais voltou ao hospital.
Dois dias mais tarde, a porta de Tom se abriu pouco antes de encerrar-se o horário de visitas, e ele ergueu os olhos, com o coração batendo, na esperança de ver Sarah Spence. Lamont von Heilitz sorriu hesitantemente da soleira, de certo modo parecendo ter compreendido tudo de repente.
— Ah, você esperava outra pessoa! Infelizmente é apenas o seu velho e esquisito vizinho. Quer que o deixe a sós?
— Por favor, não, por favor, entre! — convidou Tom, mais satisfeito do que julgaria possível, à visão do velho.
O sr. von Heilitz vestia um terno azul-escuro com colete traspassado, tinha uma rosa vermelho-escura na botoeira e luvas tão vermelhas como a rosa. Parecia absurdo e bonito ao mesmo tempo, pensou Tom, e sentiu o que parecia um estranho desejo de ter aquela mesma aparência, quando fosse tão velho quanto o sr. von Heilitz. Então, sua mente empacou diante de uma lembrança sepultada, e ele arregalou os olhos para o velho, que lhe sorriu como se novamente houvesse compreendido tudo antes de Tom abrir a boca.
— O senhor veio visitar-me — disse Tom. — Há muito tempo.
— É verdade — disse o velho.
— O senhor falou... falou para eu me lembrar de sua visita.
— E você se lembrou — disse o sr. von Heilitz. — E agora eu voltei. Soube que logo estará indo para casa, mas achei que poderia distrair-se um pouco, lendo alguns livros meus. Se não quiser, não tem importância, mas acho que deveria tentar lê-los, pelo menos. — E de lugar nenhum, parecia, ele tirou dois livros finos — A faixa salpicada e Os crimes da rua Morgue — que estendeu para Tom. — Espero que tenha a gentileza de ir visitar-me, depois que estiver fora do hospital e inteiramente recuperado.
Tom assentiu, confuso, e logo depois o sr. von Heilitz esgueirou-se para fora do quarto.
— Diabo, quem era isso? — perguntou Nancy a ele. — Drácula?
Tom deixou o hospital no último dia de agosto, e foi acomodado na cama instalada na sala de estar. O enorme molde de gesso havia sido substituído por outro que o envolvia apenas do tornozelo à coxa. Enfim, parecia que não o tinham castrado. Nancy Vetiver visitou-o dias mais tarde, a princípio parecendo trazer consigo todo o ambiente ruidoso e bem regulado do hospital. Por um momento, Tom achou que seu mundo perdido lhe seria restituído. Ela contou histórias das outras enfermeiras e pacientes que ele conhecera — histórias que o envolveram, o que não ocorrera com as contadas por Sarah Spence sobre o Wisconsin — confidenciando que Hattie Bascombe tinha dito que lançaria um feitiço contra ele, se não fosse visitá-la. Foi então que sua mãe, em um de seus bons dias e os tendo deixado a sós, a fim de encomendar mantimentos no Ostend’s, retornou e se mostrou gelidamente polida com a enfermeira. Tom reparou que Nancy ficava cada vez mais constrangida com as perguntas de Glória Pasmore a respeito de seus pais e da educação que tivera. Pela primeira vez, ele percebeu que a gramática de Nancy era vacilante — ela falava “as coisa” e “eles é” — por vezes achando graça no que nada tinha de engraçado. Minutos mais tarde, sua mãe impeliu-a para a porta, agradecendo com elaborada insinceridade por tudo quanto havia feito.
Ao voltar para a sala de estar, Glória comentou:
— Não creio que enfermeiras esperem ser gratificadas, sabe? Não creio que devam ser.
— Oh, mamãe! — exclamou Tom, sabendo que isto dissimulava um veredito negativo.
— Achei essa moça muito persistente — disse sua mãe. — Muito persistente mesmo! Gente assim me mete medo!
ÓDIO E SALVAÇÃO
Mais tarde na vida, quando Tom Pasmore recordava o ano que passou sozinho em casa, não conseguia recordar os rostos das enfermeiras particulares que chegavam, eram contratadas e iam embora, nem dos professores que tentavam fazê-lo parar de ler, pelo tempo suficiente de lhe ensinarem alguma coisa. Ele tampouco era capaz de lembrar se passara qualquer espaço de tempo com os pais.
O que podia recordar, sem a menor dificuldade, era de estar sozinho e lendo. Aquele ano dentro de casa dividiu-se em três partes — as fases de cama, cadeira de rodas e muletas — e, durante elas, leu quase todos os livros existentes na casa dos pais e virtualmente todos os que seu pai levava para casa, seis a cada vez, da biblioteca pública. Ele lia, sem nada mais que apetite — não havia discriminação nem julgamento e, por vezes, não compreendia o tema. Tom releu todos os seus antigos livros infantis, leu obras de Zane Grey, Eric Ambler e Edgar Rice Burroughs, pertencentes a seu pai, de S.S. Van Dine, E. Phillips Oppenheim, Michel Arlen, Edgar Wallace e The search for Bridy Murphy, pertencentes a sua mãe. Leu Sax Rohmer, H.P. Lovecraft e Bulfinch’s mythology. Leu as novelas sobre cães, de Albert Payson Terhuna, e as novelas sobre cavalos, de Will James. Leu Call of the wild, Black beauty e Frog, do coronel S.P. Meeker. Leu uma novela a respeito de Galileu, escrita por um húngaro. Leu novelas falando de carros envenenados, escritas por Henry Greg Felson, especialmente Street Rod, na qual um menino era morto em um acidente de automóvel. Quando seu pai começou a trazer livros da biblioteca, ele percorreu tudo que possuíam escrito por Agatha Christie, Ngaio Marah, Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Leu Murder, incorporated, sobre as carreiras de Louis “Lepke” Buchalter e Abe “Kid Twist” Reles. Certa vez, um irritado Victor Pasmore entrou na sala de estar com uma sacola cheia de novelas encadernadas de Rex Stout, sobre Nero Wolfe, que Lamont von Heilitz lhe pusera nas mãos, com instruções para entregá-las a Tom, e este leu todas elas em seqüência, uma após outra. Leu aproximadamente um terço da Bíblia e metade de uma coleção das peças de Shakespeare, que encontrou escorando o aquário redondo de um peixo-dourado. Percorreu Sherlock Holmes, Richard Hannay e lorde Peter Wimsey. Leu Jurgen, Topper e Slan. Leu romances em que jovens governantes iam trabalhar em propriedades de antigas famílias, na França, e apaixonavam-se por jovens nobres que poderiam ter sido contrabandistas, mas não eram. Leu Drácula, Morro dos ventos uivantes e Casa desolada. Depois disso, foi pousar em Dickens, e leu Grandes expectativas, Documentos de Pickwick, Martin Chuzzlewit, Dombey e filho, O mistério de Edwin Drood, Nosso amigo comum, História de duas cidades e David Copperfield. Por recomendação de uma perplexa bibliotecária, passou de Dickens para Wilkie Collins e devorou A pedra da lua, Sem nome, Armadale e A mulher de branco. Não teve êxito com Edith Warton, outra recomendação da bibliotecária, mas encontrou nova mina em Mark Twain, Richard Henry Dana e Edgar Allan Poe. Então, topou com O castelo de Otranto, O monge e Grandes contos de terror e do sobrenatural. O sr. von Heilitz interceptou novamente seu pai na rua e enviou-lhe A casa da flecha, O último caso de Trent e Brat Farrar.
Antes do seu acidente, os livros tinham significado uma válvula de escape; por muito tempo depois disso, o significado era a própria vida. Era muito raro alguns dos garotos que tinham sido seus amigos ficarem com ele uma meia hora ou mais, durante cujas visitas Tom ficava sabendo que o mundo não havia parado na porta de entrada da casa — Buddy Redwing ganhara um Corvette de presente, ao completar 16 anos, Jamie Thielman havia sido expulso da Brooks-Lowood por fumar atrás das cortinas, no palco da escola, o time de futebol vencera oito jogos sucessivos, e o time de basquete, que jogava em uma liga com apenas mais quatro times, estava com uma fieira ininterrupta de derrotas — mas os garotos raramente o procuravam e logo iam embora. E Tom, faminto por informações sobre como era o mundo grande e desconhecido além de sua porta, além da Estrada Litorânea do Leste, inclusive, além de Mill Walk, enquanto lia podia esquecer que estava inválido e solitário. Graças ao transparente instrumento dos livros, ele deixava para trás o corpo e sua inútil raiva, para perambular por florestas e cidades, em íntima companhia de homens e mulheres que arquitetavam tramas envolvendo dinheiro, amor e vingança, que assassinavam, roubavam e salvavam a Inglaterra de conspirações estrangeiras, que se aventuravam em longas jornadas e seguiam seus oponentes como sombras, através da Londres envolta em fog do século dezenove. Tom odiava seu corpo e sua cadeira de rodas, embora os braços e ombros ficassem tão musculosos como os dos levantadores de peso. Quando se transferiu para as muletas, passou a odiar a inépcia e a desajeitada imitação de caminhar que representavam: vida real, sua vida real, estava entre as capas de várias centenas de novelas. Tudo o mais era horror e monstruosidade — cair, mover-se como um inseto de seis membros, gritar para seus tutores irritados, sonhar à noite com mares de sangue, com um corpo esmagado e mutilado.
Um ano após o acidente, Tom abandonou as muletas e reaprendeu a caminhar. A esta altura, em muitos sentidos ele se tornara uma pessoa diferente daquele menino que saltara da carroça do leite.
Tanto os Pasmores mais velhos como seu filho atribuiriam à imersão de Tom nos livros a verdadeira causa das mudanças operadas nele. Na opinião dos pais de Tom, aquele menino muito distante, agora singularmente irreconhecível, que se apoiava em mesas e cadeiras, enquanto tentava andar pela casa sobre pernas tão vulneráveis como as de uma criança de 18 meses, decidira voluntariamente ficar a um passo de distância da vida — e quando não inexplicavelmente enfurecido, dava a sensação de ter escolhido as sombras, a passividade, a irrealidade.
As próprias idéias de Tom eram quase diretamente opostas às deles. Tom achava que tinha penetrado na real corrente da vida: todas aquelas leituras não somente o tinham salvo da imediata insanidade da fúria e da lenta insanidade do tédio, mas também haviam proporcionado uma rápida e sedutora visão da vida adulta — ele fora participante invisível em centenas de dramas e, bem mais importante, ouvira milhares de conversas, testemunhara um sem-número de atos de discriminação e julgamento, tendo visto, em quase igual medida, a condenação da estupidez, da crueldade, hipocrisia, maus modos e duplicidade. A melodia do idioma inglês, um senso dos recursos da língua, uma idéia da eloqüência tão misteriosamente boa e moral em si haviam penetrado em sua mente para sempre, ao mesmo tempo que o começo de uma compreensão dos motivos humanos. Os livros de Tom constituíram sua educação, muito mais do que qualquer coisa oferecida pelos professores que o atendiam em casa. Por vezes, imerso na leitura, sentia o corpo começando a brilhar: uma glória invisível, mas potente, parecia pairar logo atrás das personagens, era como se estivessem prestes a fazer alguma grande descoberta que também seria dele — a descoberta de um extenso reino de radioso significado, que jazia escondido pouco abaixo da superfície do mundo de aparências ordinárias.
Chegando ao final do secundário da Brooks-Lowood, ele era capaz de fazer metade da classe dobrar-se de rir, com um comentário ou observação que a outra metade ignorava ou não compreendia; sobressaltava-se com ruídos fortes e recuava para dentro de si mesmo por longos períodos, conhecidos como seus “transes”; adquirira a reputação de ser “nervoso”, porque não tinha repouso físico, não ficava quieto por mais de alguns segundos, pois logo movia a cabeça, coçava ou esfregava o rosto, quando não tagarelava com quem estivesse mais próximo. Era perseguido por pesadelos e caminhava durante o sono. Se fosse tão bom na escola como os testes de aptidão indicavam que deveria, muito deste comportamento ficaria atribuído ao fato dele ser um “cérebro”, ter-lhe-iam predito um brilhante futuro acadêmico e o conselheiro vocacional conversaria com ele sobre a escola de medicina — havia uma permanente escassez de médicos em Mil Walk. Do jeito como se apresentava a situação, sua conduta apenas o tornava esquisito, e o conselheiro ofereceu-lhe apenas brochuras para universidades de terceira categoria, nos estados sulistas.
Os nove meses passados na cadeira de rodas o tinham deixado com ombros largos e bíceps bem desenvolvidos, que permaneceram mesmo quando o restante do corpo alongou-se para uma estatura de um metro e noventa e dois centímetros. O treinador de basquete, desesperado após as derrotas de sucessivas temporadas, conseguiu arranjar um encontro a que compareceriam Tom, Victor Pasmore, ele próprio e o diretor do colégio, que há muito tempo atrás acusara mentalmente Tom Pasmore de simular doença para esquivar-se aos seus deveres. Polidamente, Tom recusou ter qualquer ligação com as equipes da escola.
— É apenas por um acidente que sou tão alto — disse ele aos três petrificados homens no belo gabinete do diretor. — Por que não tentam imaginar-me sendo 30 centímetros mais baixo?
Com isto, queria dizer que, assim fazendo, eles estariam mais próximos da verdade, mas o treinador achou que Tom zombava dele, o diretor sentiu-se insultado e Victor Pasmore ficou furioso.
— Por favor, quer dirigir-se a estas pessoas como um ser humano? — bradou Victor Pasmore. — Você precisa tomar parte nas coisas! Não pode mais passar o dia todo sentado em cima de seu traseiro!
— Parece que o basquete acabou de tornar-se um tema compulsório — disse Tom, como que para si mesmo.
— E acabou de tornar-se mesmo — para você! — gritou seu pai.
Então, Tom fez um comentário que revoltou o estômago de cada um dos três homens adultos no gabinete.
— Eu nada entendo de basquete, a não ser o que aprendi com John Updike. Algum dos senhores já leu Coelho corre?
Claro está que nenhum deles tinha lido — o treinador pensou que Tom se referisse a um livro sobre animais.
Tom ficou um mês treinando basquete. O treinador descobriu que sua nova aquisição ignorava como fazer um drible ou passe, era incapaz de acertar com a bola na cesta e nem mesmo sabia o nome das posições. Tom fez seu amigo Fritz Redwing, um dos jogadores de defesa, ficar interessado em Coelho corre, quando descreveu um ato de sexo oral que acontecia no livro. Fritz absorveu-se de tal maneira no exemplar que surripiara da drugstore An Die Blumen (Tom jamais soube que nenhum Redwing gastaria bom dinheiro em algo tão ridículo como um livro), que despertou as suspeitas dos pais. Após três dias, eles arrancaram o exemplar dos dedos do filho e, com horror, incredulidade e constrangimento, viram-se fitando a própria passagem que Tom Pasmore descrevera a Fritz.
Os Redwings mais velhos, provavelmente se sentiriam bem melhor à idéia de que seu filho realmente praticasse alguns dos atos descritos na página diante deles, do que com o fato dele os estar lendo. Em um rapaz, a experimentação sexual pode ser atribuída à fogosidade, mas ler tais coisas tinha laivos de perversão. Ficaram chocados e, embora não percebessem isto inteiramente, sentiram seus valores traídos. Fritz rapidamente confessou que Tom Pasmore lhe mencionara o terrível livro. Então, como os Redwings eram a família mais rica, mais poderosa e mais respeitada de Mill Walk, a reputação de Tom sofreu um sutil escurecimento. Ele talvez não fosse — talvez não fosse inteiramente confiável.
A resposta de Tom foi de que preferia ser não inteiramente confiável. Evidentemente, não tinha interesse em ser um Redwing de imitação, embora fosse este o objetivo da maioria do que se passava por sociedade em Mill Walk. A confiabilidade Redwing se reduzia a uma descuidada e confortável aderência a um conjunto de hábitos e características, em geral mais aceitos como as únicas maneiras possíveis, do que como simples boas-maneiras.
Chegava-se a encontros de negócios com cinco minutos de atraso, e meia hora de atraso a atividades sociais. Jogava-se tênis, pólo e golfe tão bem quanto possível. Bebia-se uísque, gim, cerveja e champanha — na verdade, não se sabia grande coisa a respeito de outros vinhos — e usava-se lã no inverno, algodão no verão. (Apenas certas marcas e etiquetas eram aceitáveis, as demais reputadas como comicamente inadequadas ou mais ou menos invisíveis.) Sorria-se, eram contadas as últimas piadas; uma coisa nunca era desaprovada publicamente, jamais, e tampouco a aprovação pública era dada com entusiasmo exagerado, jamais. Fazia-se dinheiro (ou, no caso dos Redwings, conservava-se), porém isto nunca era vulgarmente discutido. Colecionava-se arte, mas não se dando a isso uma importância inconveniente; telas, em particular paisagens ou retratos a óleo, serviam para decorar paredes, aumentavam em valor e comprovavam o esplendor dos proprietários. (Se os Redwings e membros de seu círculo resolviam doar sua “arte” ao Museu del Kunst, de Mill Walk, geralmente estipulavam que o museu construísse fac-símiles de suas salas de estar, a fim de que as telas fossem vistas em seu contexto adequado.) Similarmente, as novelas significavam histórias que serviam para distrair as mulheres no verão; a poesia era algo belamente rimado para crianças ou absurdamente obscuro e auto-importante; quanto à música “clássica”, fornecia condescendentemente um apanhado de melodias familiares, como fundo para ser visto em público, nas melhores roupas. Tanto quanto possível, ignorava-se qualquer realidade desagradável, desconfortável ou irritante. Passava-se o verão na Europa, comprando coisas, em balneários sul-americanos, comprando outras coisas, ou “lá no norte”, de preferência no lago da Águia, entre bebidas, pescarias, organização de pródigas festinhas e cometendo-se adultério. Não se falava nenhuma língua estrangeira, sendo a idéia ridícula; no entanto, aceitava-se um falho e rudimentar conhecimento de alemão, se assimilado nos joelhos de um avô que, um dia, possuíra uma extensa propriedade junto às praias do leste e dela extraíra grande proveito. Freqüentava-se a Brooks-Lowood, com o aluno tomando parte no maior número possível de esportes; ignorava-se e ridicularizava-se o que não fosse atraente ou popular; pobres e nativos eram menosprezados; considerava-se qualquer outra parte do Hemisfério Ocidental (exceto o lago da Águia e seus arredores) um lugar infortunado, em precisa relação à sua dissimilaridade com Mill Walk; ia-se para a universidade para receber-se um “verniz”, não para ser corrompido pela exposição a pontos de vista interessantes, mas irrelevantes; o retorno da universidade implicava em casamento e procriação, a fim de que a riqueza fosse consolidada ou gerada. Jamais se ficava aborrecido realmente e jamais se dizia algo que não tivesse sido ouvido antes. Pertencia-se ao Clube dos Fundadores de Mill Walk, ao Iate Clube & Praia, um ou dois country-clubs, ao clube dos alunos da respectiva universidade, à Igreja episcopal e, no caso de algum jovem homem de negócios, ao Kiwanis Clube, para não haver idéia de esnobismo.
Em geral, era-se de estatura maior que a mediana, com cabelos louros e olhos azuis. Em geral, tinha-se dentes perfeitos. (Os próprios Redwings, no entanto, tendiam a ser baixos, morenos e atarracados, com amplos espaços entre os dentes.)
Um ramo da família Redwing tentara instaurar a caça à raposa, como uma parte regular da vida na ilha, mas devido à ausência de raposas nativas e da infalível aptidão dos felinos e doninhas nativos para escaparem à perseguição dos cães de caça importados, ofegantes e rendidos pelo calor, o costume degenerou rapidamente para uma participação anual regular ao Baile da Caçada, ao qual os varões locais compareciam de botas negras e túnicas vermelhas de cavaleiros. Como a natureza de tal tentativa poderia indicar prontamente a tradição, a sociedade de Mill Walk era reflexivamente anglófila em seus gostos, pendor pela chita e padrões florais, trajes conservadores, móveis de couro, apainelamento de madeira, cães de pequeno porte, jantares formais, o consumo de aves silvestres, “eloqüentes” retratos de animais de estimação da família, indiferença a temas intelectuais, jovial filintinismo, presunção habitual de superioridade moral etc., etc. Talvez também anglófila era a pressuposição de que o mundo civilizado — o mundo que importava — de maneira alguma incluía toda a Mill Walk, mas somente o extremo leste da ilha, onde viviam os Redwings, seus parentes, amigos, conhecidos e agregados, bem como, embora isto fosse discutível, a enseada do Olmo, que jazia na extremidade oeste do Glen Hollow Golfe Clube. Outros postos avançados do mundo civilizado eram: Bermudas, Mus-tique, Charleston, áreas particulares do Brasil e Venezuela — em especial “Tranqüilidade”, o refúgio que lá possuíam os Redwings — certas áreas de Richmond, Boston, Filadélfia, Nova Iorque e Londres, o lago da Águia, as terras altas da Escócia e a cabana de caça dos Redwings, no Alasca. Sem dúvida, era possível ir-se a qualquer lugar no mundo, porém certamente não havia uma real necessidade de ir-se a outros lugares que não estes, pois compunham o mapa de tudo quanto havia de desejável para uma pessoa que se baseia no que é certo.
Para uma pessoa confiável, poder-se-ia dizer.
Tom ficou interessado pelos poucos assassinatos em Mill Walk e tinha um álbum com recortes do Eyewitness, referentes aos crimes. Não sabia qual o motivo de seu interesse, mas cada um desses casos deixava para trás, na encosta de uma colina ou em um aposento, um corpo esbulhado prematuramente, um corpo que, em caso contrário, estaria cheio de vida.
Glória ficou desolada ao encontrar aquele álbum de recortes, cuja aparência era comum, inclusive mundana, com capas duras assemelhando-se a couro e páginas amarelas, grandes e rígidas. Uma parte de sua desolação era devida ao contraste entre o singelo álbum de recortes, sugerindo coleções de carteirinhas de fósforos e fotos de acampamentos de verão, e as manchetes que saltavam de suas páginas: cadáver encontrado no porta-malas. irmã do ministro das finanças assassinada em tentativa de assalto. Pensou em remover o álbum do quarto de Tom e confrontá-lo com seu filho, mas quase imediatamente resolveu fingir que não o tinha visto. O álbum de recortes foi apenas uma entre mil coisas que a afligiam, alarmavam ou perturbavam.
A maioria dos homicídios em Mill Walk era tão comum quanto o álbum em que Tom colava seus recortes de jornal. Um criador de porcos fora abatido com uma tijolada na cabeça, sendo o corpo “desovado” em um chiqueiro ao lado do celeiro, a fim de ser pisoteado e semidevorado pelos suínos. brutal assassinato de fazendeiro das planícies centrais, dizia o Eyewitness. Dois dias mais tarde, o jornal relatava: irmã de fazendeiro confessa: Ele disse que quando se casasse, eu teria que abandonar a fazenda da família. Um atendente de bar, nos antigos alojamentos dos escravos, tinha sido morto durante um assalto. Um irmão matara outro, na véspera do Natal: disputa de papai noel resulta em morte. Em seguida, uma mulher nativa fora encontrada esfaqueada e morta em um telheiro na rua Mogron: filho assassina mãe por dinheiro no colchão — mais de 300.000 dólares!
Eventualmente, Glória decidiu buscar tranqüilidade em uma fonte compreensiva.
O professor de inglês de Tom no Brooks-Lowood, Dennis Handley, sr. Handley ou “Handles”, para os rapazes, viera da Universidade Brown para Mill Walk, em busca de sol, dinheiro suficiente para viver razoavelmente bem, um pitoresco apartamento dando para a água e uma vida mais ou menos livre de tensão. Uma vez que gostava de ensinar, passara os mais felizes anos de sua vida em uma draconiana escola preparatória em New Hampshire, era de temperamento calmo, disposição amistosa e, virtualmente, sem qualquer tipo de desejo sexual, desde o início Dennis Handley apreciara sua vida em Mill Walk. Descobrira que apartamentos dando para a água estavam acima de seu bolso, porém quase todo o restante de sua vida nos trópicos era conveniente.
Quando Glória Pasmore lhe falou sobre o álbum de recortes, ele concordou em ter uma conversa com Tom. Não sabia exatamente por quê, mas o álbum de recortes parecia errado. Pensou que talvez se tratasse de uma coleção de temas para futuras histórias, mas o tom global da coisa o perturbava — demasiado mórbido, distorcido e obsessivo. Estaria Tom Pasmore pensando em escrever novelas de crimes? Novelas de detetives? Não era bem isso, disse para si mesmo, e para Glória, que parecia ter tomado uns dois drinques além de seu limite, falou que ia descobrir o que pudesse.
Algum tempo atrás, Dennis Handley mencionara a Tom que tinha começado a colecionar edições raras de certos autores, quando na Brown — F. Scott Fitzgerald, Graham Greene e Henry James, principalmente — e que ele poderia dar uma espiada em seus livros, quando quisesse. Na sexta-feira após sua conversa com Glória Pasmore, Dennis perguntou a Tom se estaria livre depois das aulas, a fim de ver seus livros e se queria algum emprestado. Ofereceu-se para levá-lo até seu apartamento e deixá-lo em casa depois disso. Tom concordou, satisfeito.
Os dois encontraram-se fora da sala de Dennis, após encerradas as aulas e, em meio a uma multidão de apressados alunos, desceram a ampla escada de madeira, ao lado de uma janela com um vitral que era a réplica do selo circular da escola. Sendo Dennis um professor popular, muitos alunos pararam para falar com ele ou desejar-lhe um bom fim-de-semana, porém bem poucos chegaram a dizer um olá para Tom. Mal olharam para ele. Exceto pelo tom saudável da pele, Tom não era um rapazinho particularmente bonito, mas tinha um metro e noventa e dois de altura. Os cabelos eram como os de sua mãe, louros, sedosos e alvoroçados, os ombros salientavam-se impressivamente, e havia uma boa dose de músculos e ossos sob seu amarrotado blusão de tweed. (Nesta fase de sua vida, Tom Pasmore jamais dera a impressão de preocupar-se muito com as roupas que vestia pela manhã e tampouco parecia percebê-las.) A um primeiro olhar, parecia um professor de faculdade singularmente jovem. Os outros alunos agiam como se ele fosse invisível, um espaço neutro. Os dois ficaram parados na escada por um momento, enquanto os alunos que partiam torvelinhavam à volta deles, e quando Dennis Handley falou com Will Thielman sobre o trabalho de casa para o fim-de-semana, olhou de relance para Tom, que estava encolhido e displicente, recebendo a amortecida claridade verde-e-vermelha que provinha dos vitrais coloridos. O professor notou a totalidade com que Tom se deixava ser diluído, parecendo ter aprendido a maneira de ficar despercebido em uma multidão — todos os alunos disparavam escada abaixo, através da claridade mortiça e das sombras, mas apenas Tom Pasmore parecia na iminência de desaparecer. Tal noção produziu em Dennis Handley um sabor desagradável, pois ele próprio era uma criatura sociável acima de tudo, bem-humorado e falante.
Em pouco chegavam ao pátio de estacionamento da faculdade, onde o conversível Corvette negro do professor de inglês parecia superiormente deslocado entre as surradas camionetas Ford, bicicletas antigas e sedãs parecidos a botes, que eram os veículos convencionais da faculdade. Tom abriu a porta do carona, dobrou-se ao meio para entrar no carro e sentou-se, com os joelhos quase flutuando nas proximidades do nariz. Sorriu de seu desconforto, e o sorriso dissipou a singular atmosfera de sigilo e sombras, que Handley certamente imaginara sobre o rapaz. Ele era a pessoa mais alta que já estivera no Corvette, e foi o que Dennis lhe disse, enquanto saíam do estacionamento.
Era como estar sentado perto de um enorme e amistoso cão-pastor, pensou Dennis, enquanto acelerava pela Road School, com o vento agitando os cabelos do rapaz e sacudindo sua gravata.
— Lamento que o espaço seja tão apertado — disse, — mas você pode empurrar o assento para trás.
— Já empurrei tudo que podia — disse Tom, sorrindo por entre os joelhos e dando a impressão de um contorcionista de circo.
— Bem, o trajeto é curto — disse Dennis.
O carrinho virou no sul da School Road para a Calle Berghofstrasse, depois para oeste, passando por fileiras de lojas que vendiam sabonetes e perfumes caros e depois ganhando a Calle Drosselmeyer, com suas quatro faixas. Tornaram a rumar para o sul durante um bom trajeto, passaram pelo centro comercial Dos de Mayo e a estátua de David Redwing, o primeiro primeiro-ministro de Mill Walk, deixaram para trás uma série de oficinas de ferreiro e improvisadas tendas de ledores da sorte na calçada, oficinas mecânicas e lojas que comerciavam com pitons e cascavéis. Seguiam em frente com o trânsito costumeiro de carros, bicicletas e veículos puxados a cavalo. Passaram diante da fábrica de latas e da refinaria de açúcar. Um pouco mais ao sul, internaram-se na pequena área de cabanas, lojas e moradias nativas chamada Baixada da Doninha, onde a mulher que dormia sobre um “resgate de rei” (o Eyewitness) tinha sido assassinada pelo filho. Dennis guinou habilidosamente para a Rua do Mercado, ziguezagueou por entre e em torno de uma série de furgões descarregando produtos no Mercado Ostend’s e disparou através de um sinal amarelo já nos últimos segundos, entrando na Calle Burleigh, onde finalmente seguiram sempre para oeste.
Tom falou pela primeira vez, desde que tinham deixado a escola.
— Onde você mora?
— Perto do parque.
Tom assentiu, imaginando que ele se referisse ao Parque do Litoral e que devia planejar fazer algumas compras, antes de ir para casa. Então, disse
— Aposto que minha mãe lhe pediu para falar comigo.
Dennis virou momentaneamente a cabeça para ele.
— Por que acha que ela faria isso?
— Você sabe por quê.
Dennis viu-se em um dilema. Deveria confessar que Glória Pasmore lhe descrevera o álbum de recortes do filho, assim admitindo para Tom que sua mãe vira o álbum, ou então negar qualquer conhecimento sobre as preocupações dela. Se negasse tudo, dificilmente poderia trazer à baila o assunto do álbum. Percebeu também que a negativa serviria principalmente para fazê-lo parecer idiota, o que ia contra seus instintos. Por outro lado, isto o colocaria sutilmente contra Tom e “do lado” de seus pais, algo também contrário à sua maneira de ser.
As palavras seguintes de Tom aumentaram seu constrangimento.
— Sinto muito, se ficou preocupado com meu álbum de recortes. Está perturbado e, realmente, não deveria estar.
— Bem, eu...
Handley interrompeu-se, não sabendo o que dizer. Percebeu que se sentia culpado e que Tom era perceptivo o suficiente para ver isso.
— Fale-me sobre seus livros — pediu Tom. — Aprecio essa idéia de livros raros,primeiras edições, coisas assim.
Então, com visível alívio, Dennis começou a descobrir seu maior achado, a descoberta de um manuscrito datilografado de The spoils of Poynton, em um antiquário de Bloomsbury.
— Assim que entrei naquela loja, tive um pressentimento, um pressentimento real, mais forte do que tudo quanto já senti — disse ele, e a atenção de Tom ficou de novo inteiramente concentrada em Handley. — Não sou místico e nem creio em fenômenos psíquicos, de maneira alguma, porém, quando entrei lá, foi como se alguma coisa me possuísse. Seja como for, eu estava pensando em Henry James, por causa da cena na pequena loja de antigüidades em A taça de ouro, quando Charlotte e o Príncipe compram um presente de casamento para Maggie — você conhece o livro?
Tom assentiu, extraordinário rapaz, e ficou ouvindo atentamente a enumeração de artigos de antiquários, a descrição um tanto exagerada do dono da loja, a intensidade do misterioso “pressentimento”, que aumentou quando Handley vagou por entre os objetos surrados, o excitamento com que viu uma estante de livros usados, bem nos fundos da loja e, por fim, a descoberta de uma caixa de papéis datilografados, imprensada entre um atlas e um dicionário, na última prateleira de baixo. Dennis abrira a caixa, já quase sabendo o que encontraria dentro dela. Por fim, ousara espiar.
— Eles começavam no meio de uma cena. Após algumas frases, reconheci aquilo como The spoils of Poynton — veja bem como eu estava sintonizado! Ora, aquele era o primeiro livro que James ditara — e ele não ditou a coisa toda. Começara a ter problemas no pulso, de modo que contratou um datilógrafo chamado William McAlpine, após começar a trabalhar no livro. Eu sabia que tinha encontrado a cópia ditada do livro, datilografada por McAlpine, que ele mais tarde redatilografou, incluindo os capítulos escritos a mão por James, a fim de preparar uma cópia corrigida, que seria enviada ao editor. Talvez eu jamais consiga provar isto, mas não tenho que provar coisa alguma. Eu sabia o que tinha nas mãos. Levei aquilo ao homenzinho, tremendo como uma folha, e ele me vendeu por cinco libras, evidentemente imaginando-me um lunático, capaz de comprar qualquer coisa. Na verdade, ele pensou que eu comprava o conteúdo, porque queria a caixa.
Dennis fez uma pausa, em parte porque seus ouvintes em geral riam neste ponto, e em parte porque fazia anos que não descrevia este momento, e agora, ao recontá-lo, tornava a experimentar sensações de triunfo, de um júbilo quase incontido.
A reação de Tom foi, para ele, como uma ducha de água fria.
— Você chegou a ler sobre o assassinato de Marita Hasselgard, a irmã do ministro das Finanças?
Estavam de volta ao álbum de recortes — Tom o driblara.
— É claro que li. Não fiquei o mês passado com a cabeça enfiada em um saco. — Ele olhou de relance para o banco do passageiro, com sincera irritação. Tom havia encostado as pernas ao painel de instrumentos e girava uma caneta esferográfica na boca, como se fosse um charuto. — Pensei que estivesse interessado no que eu dizia.
— Estou muito interessado no que disse. O que acha que aconteceu a ela?
Dennis suspirou.
— O que acho que aconteceu a Marita Hasselgard? Ela foi morta por engano. Um assassino a tomou pelo irmão, porque ela estava no carro dele. Era noite, já bem tarde. Quando descobriu o engano, o assassino colocou o corpo dela no porta-malas e deixou a ilha às pressas.
— Então, acha que o jornal está certo?
A teoria que Dennis Handley acabara de expressar, aceita pela maioria dos cidadãos de Mill Walk, havia sido delineada inicialmente nas colunas editoriais do Eyewitness.
— Basicamente, sim. Penso que está certo. Não recordava muito bem que havia sido este o posicionamento do jornal, mas se eles acham que foi assim, então penso que estão certos, claro. Poderia me dizer em que isto tem relação com The spoils of Poynton?
— De onde imagina que veio o assassino?
— Acho que foi contratado por algum inimigo político de Hasselgard — por alguém que discordasse de sua política.
— Alguma política em particular?
— Poderia ter sido qualquer coisa.
— Não concorda que Hasselgard agora devia ser cuidadosamente protegido? Não deveria ter uma forte guarda?
— Bem, a tentativa falhou. O assassino bateu asas. A polícia está em seu rastro e, quando for apanhado, dirá quem o contratou. Se alguém deve estar com medo, é o homem que contratou o matador.
Tudo isto, também, era sabedoria convencional.
— Por que acha que ele colocou o corpo da mulher no porta-malas?
— Olhe, para ser franco, não me importa onde ele colocou Marita — respondeu Dennis. — Aliás, não vejo que importância tenha isso. O homem espiou dentro do carro. Viu que matara a irmã de sua futura vítima. Escondeu o corpo no porta-malas. Ora, por que estamos falando desse negócio sórdido, afinal?
— Lembra-se de que tipo era o carro?
— Naturalmente. Era um Corvette. De fato, igual a este. Espero que as perguntas tenham terminado.
Tom inclinou-se de banda, na direção dele. Tirou a caneta da boca.
— Quase terminaram. Maria era uma mulher grande, não?
— Não vejo em que adianta continuarmos com...
— Tenho apenas mais duas perguntas.
— Promete?
— Aqui vai a primeira. Em sua opinião, onde aquela mulher da Baixada da Doninha conseguiu o dinheiro que escondeu no colchão?
— Qual é a segunda pergunta?
— De onde acha que veio aquela sensação no antiquário, o pressentimento de que você ia encontrar alguma coisa?
— Isto ainda é uma conversa ou estamos fazendo apenas uma livre associação?
— Quer dizer que não imagina de onde veio a tal sensação?
Dennis apenas meneou a cabeça.
Pela primeira vez, desde que rodavam pela Calle Burleigh, Tom prestou alguma atenção à paisagem de casas robustas que os circundava.
— Não estamos em lugar algum perto do Parque do litoral.
— Não moro nos arredores do Parque do Litoral. Por que você pensaria que... oh! — Ele sorriu para Tom. — Eu moro perto do Parque Goethe, não do Parque do Litoral. Bem próximo dos antigos alojamentos dos escravos. Noventa por cento das casas foram construídas nos anos vinte e trinta, imagino, mas são boas, sólidas, residências da classe média, com varandas, arcadas e alguns detalhes interessantes. Esta área é tremendamente subestimada. — A esta altura, Dennis já recuperara o costumeiro bom humor. — Não entendo por que Brooks-Lowood não amplia sua rede, por assim dizer.
Tom virou a cabeça lentamente e encarou o professor.
— Hasselgard não freqüentou a Brooks-Lowood.
— Ora, afinal de contas — disse o professor, — não imagino que relação tenha o lugar onde Hasselgard cursou o secundário, com o assassinato de sua irmã. — A expressão de Tom começava a alarmá-lo. Em segundos, o rosto dele ficara encovado, a pele parecia muito pálida, sob a fina superfície dourada. — Gostaria de descansar um pouco? Podíamos dar uma parada no parque e ver os zigurates.
— Não posso ir mais longe — disse Tom.
— Quê?
— Pare no lado da rua. Pode me deixar aqui. Sinto-me um pouco enjoado. Não se preocupe comigo. Por favor.
Dennis já parava junto ao meio-fio. Tom se inclinara para diante e descansava a cabeça no painel de instrumentos.
— Acha mesmo que vou deixá-lo aqui, em plena rua?
Tom girou a cabeça de um lado para outro, sem afastá-la do painel. O gesto parecia tão infantil, que Dennis afagou-lhe os cabelos espessos.
— Bem, porque é claro que não vou. Na verdade, vou levá-lo até minha casa e lá você descansará um pouco.
Gentilmente, ajudou Tom a reclinar-se no assento e recostar a cabeça no encosto do banco. Os olhos do rapaz brilhavam e pareciam sem profundidade, como brilhantes pedras pintadas.
— Deixe-me levá-lo para sua casa — disse Dennis.
Tom abanou a cabeça muito lentamente, depois passou as mãos pelo rosto.
— Você me levaria a um outro lugar?
Dennis ergueu as sobrancelhas.
— À Baixada da Doninha.
Tom girou a cabeça para fitar Dennis, e o professor de inglês teve a sensação de estar olhando, não para um rapaz de 17 anos, tomado de súbita indisposição, mas para um poderoso adulto. Ligou o motor do carro e perguntou:
— Algum lugar em especial na Baixada da Doninha?
— A Rua Mogrom.
— Rua Mogrom — repetiu Dennis. — Bem, isto faz sentido. Algum lugar em especial na Rua Mogrom?
Tom havia fechado os olhos e parecia dormir.
Em inícios do século XVIII, a civilização e cultura nativas e originais de Mill Walk tinham desaparecido por completo. Seus únicos remanescentes, além dos próprios nativos meio desdentados, eram os dois pequenos zigurates piramidais no campo aberto que se tornara o Parque Goethe. Na base de um deles, estava inscrita a palavra mogrom, e na base do outro, a palavra rambichure. Embora ninguém soubesse o significado de tais enigmáticas palavras, ambas haviam sido adotadas irrestritamente pela população nativa sobrevivente. No final do estreito vale que era a Baixada da Doninha, a Rua Mogrom cortava a Calle Rambichure. Em esquinas opostas, ficavam o Diner Mogrom e a Pizza Rambichure. A Loja de Ferragens Rambichure e o Ferreiro e Estábulos Mogrom flanqueavam a Casa de Penhores Rambi-Mog. Na Calle Rambichure, havia a Escola Zigurate para Crianças de Origem Indígena, o Drugstore Zig-Ram, a loja Artigos de Malha Rambi’s, a Livraria para Adultos Mogrom e a loja Membros Artificiais M-R.
Dennis rodou em silêncio, subindo a Calle Burleigh, virou para o norte da Rua do Mercado e passou velozmente pelo Ostend’s. Chegou à elevação conhecida como Ponto Pforzheimer. Através do estreito vale, as compridas formas acinzentadas da Companhia de Latas Impermeáveis Redwing e a Refinaria de Açúcar Thielman’s definiam o horizonte oposto. A Baixada da Doninha jazia abaixo. Tom ainda parecia cochilar. Dennis ultrapassou o topo da colina e começou a descer para a Mogrom.
— Muito bem, então... — disse Tom.
Estava sentado ereto, como se alguém houvesse puxado para trás um cordão de marionete preso à sua cabeça. Parecia impaciente, até um tanto febril. Dennis concluiu que, se descesse a colina muito devagar, Tom saltaria do carro.
Ao pé da colina, a Rua Mogrom seguia para leste, até a Calle Rambichure e ao centro da Baixada da Doninha. A metade oeste da rua levava diretamente para um labirinto de casebres de papelão alcatroado, tendas feitas de cobertores suspensos em varas, casas nativas construídas de pedras brancas e rosas e cabanas que pareciam feitas de tábuas amontoadas. Dois quarteirões abaixo, um enorme cachorro preto jazia ofegante no meio da rua. Cabras e galinhas perambulavam pela relva amarelada, entre destroços de carros e cabriolés arruinados. Dennis ouviu vagamente um rock and roll vindo de um rádio.
Tom inclinou-se para diante, a fim de examinar a numeração ao lado da entrada de uma casa nativa.
— Dobre à direita.
— Você percebe que não tenho a menor idéia do que está acontecendo, não percebe?
— Apenas dirija devagar.
Handley assim fez. Tom inspecionava as casas e galpões em seu lado da rua. Uma cabra virou a cabeça e galinhas correram apressadamente através da relva. Chegaram a um cruzamento, onde um sinal pintado a mão dizia Cale Friedrich Hasselgard. Duas criancinhas nativas de rostos sujos, uma delas usando shorts marrons em estilo militar e empunhando uma arma de brinquedo, a outra inteiramente nua, tinham-se materializado junto ao sinal e olharam para Dennis com uma grave e sóbria impertinência.
— O quarteirão seguinte — disse Tom.
Dennis rodou lentamente pelas crianças que espiavam. O cachorro levantou a cabeça do chão e ficou olhando, enquanto o carro se aproximava. Dennis deu a volta em torno dele. O cachorro baixou o focinho e suspirou.
— Pare — disse Tom. — É aqui,
Dennis parou. Tom havia torcido o corpo, a fim de espiar para um casebre de madeira. Ondas de calor irradiavam-se do teto corrugado de zinco. O lugar estava obviamente vazio.
Tom abriu a porta do carro, saiu e depois cruzou a alta relva amarelada, em direção à casa. Dennis esperava que ele espiasse pela janela, ao lado da porta da frente, mas o rapaz desapareceu na lateral da construção. Atrás do volante do Corvette, Dennis se sentia gordo, acalorado e conspícuo. Imaginou ter ouvido algo rastejando atrás de seu carro, mas ao espiar pela janela, viu que era apenas o cachorro, estremecendo as patas enquanto dormia. Consultou o relógio e viu que tinham passado quatro minutos. Fechou os olhos e gemeu. Então ouviu passos rangendo sobre a relva seca e quebradiça; abrindo os olhos, deparou com Tom Pasmore, voltando.
Tom caminhava muito depressa, o rosto fechado como um punho. Dobrando o corpo, deixou-se cair no assento, sem olhar para Dennis.
— Vire a esquina.
Dennis girou a chave na ignição, ergueu o pé da embreagem, e o carro saltou para diante.
Ouviram La Bamba, irradiando-se de trás das persianas de uma casa nativa e, por um momento, Dennis pensou no paraíso que seria estirar as pernas em um sofá e sorver um bom gole de gim-tônica.
— Entre na aléia — disse Tom. — Devagar.
Dennis manobrou para a estreita aléia murada; o Corvette fez estremecer o reduzido espaço entre muros roídos.
— Pare — disse Tom.
Tinham chegado a uma parte em que o muro desmoronara, e Tom inclinou a cabeça pela janela do passageiro, a fim de espreitar por entre a relva amarelada, cuja altura chegava à cintura de um homem.
— Mais adiante — indicou Tom.
Dennis fez o carro rodar para diante. Após um momento, chegaram às portas verdes de um estábulo para um só cavalo, transformado em garagem. Duas janelas empoeiradas, cobertas de teias de aranha, davam para a apertada aléia.
— É aqui — disse Tom, e saltou do carro.
Fez sombra nos olhos para espiar por uma das janelas. Moveu-se imediatamente para a outra, depois retornou à primeira. Espichou o corpo em toda a sua altura, e. então cobriu o rosto com as mãos.
— Já terminou o que veio fazer? — perguntou Dennis.
Tom encolheu-se para tornar a entrar no carro.
— Agora vou levá-lo para casa — anunciou Dennis.
— Sr. Handley, quero que dê comigo a volta ao quarteirão. Vamos subir e descer cada rua e cada aléia, nesta parte da Baixada da Doninha, se for o que tivermos de fazer.
Não, eu agora vou levá-lo para casa, disse Dennis bem claramente em sua mente. No entanto, sua boca falou outra coisa:
— Bem, se é isso que você deseja...
O Corvette rodou até o final da apertada aléia e internou-se um pouco mais na Baixada da Doninha. Na esquina seguinte, virou à direita, para uma rua marginada de casebres, carros enferrujando sobre os aros das rodas e algumas casas nativas, , construídas aos fundos de gramados mortos e amarelados. Cabras pastavam ervas à frente de moradias que eram cobertores pendurados no estilo de tendas índias, à volta de vigas inclinadas. Tom emitiu um ruído curioso, como se estivesse ronronando. Vinte metros adiante, no meio da rua, parcialmente obscurecido por uma montanha de lixo — latas e garrafas vazias, cascas apodrecidas de cebola e viscosos pedaços de carne incrustados de moscas — havia um carro idêntico ao de Dennis, tão polido, que chegava a faiscar.
— Deixe-me saltar aqui — disse Tom.
Já estava abrindo a porta, antes mesmo de o carro parar.
Tom correu para o esguio carro negro e pousou as mãos no capô.
Por um momento — um longo momento, porém não mais do que isso — Tom teve a sensação de algo déjà vu, o eco de uma sensação, mais do que uma sensação em si, de que se tornara invisível para o mundo físico ordinário, tendo penetrado em um reino onde cada detalhe falava de sua verdadeira essência: era como se houvesse deslizado para baixo da pele do mundo. Sentiu-se invadir por doce e perigosa familiaridade. O suor parecia haver brotado de cada poro de seu corpo. Lentamente, Tom aproximou-se do lado do motorista. Inclinou-se. A janela do motorista fora perfurada por um buraco de bala, bem nítido, com dois centímetros e meio de largura. O assento do motorista estava salpicado de sangue. Uma espessa camada de sangue cobria o assento do passageiro.
Tom se moveu para a traseira do carro, forçou o porta-malas por um momento, e conseguiu abri-lo. Ali também havia algum sangue, embora muito menos do que nos bancos. Por um alucinatório segundo, ele viu o cadáver atarracado, comprimido naquele apertado espaço. Por fim, foi até a porta do passageiro, abriu-a e ficou de joelhos. Correu as mãos sobre o liso couro negro. Flocos de sangue negro desprenderam-se, caindo ao piso. Ele tornou a passar suavemente os dedos sobre o couro e, próximo à parte inferior da porta, tocou um chumaço de recheio seco, manchado de preto pelo sangue. Tateou delicadamente. Por baixo do couro dilacerado, sentiu a dureza arredondada de um pedaço de metal.
Tom soltou a respiração e levantou-se. Seu corpo parecia estranhamente leve, como se pudesse continuar subindo e desligar-se inteiramente do chão. Um evanescente fulgor tocou momentaneamente o monte de pneus carecas, no pátio fronteiro da casa rosa no outro lado da rua, e também um velho sedã verde, mais abaixo na rua. Tom olhou para Dennis Handley, que enxugava a testa com um enorme lenço branco, e um sorriso simplório estendeu-se por seu rosto. Começou a caminhar para Handley, com pernas que pareciam imensamente longas. Um movimento onde não devia haver ninguém captou sua atenção como uma bandeira agitada; Tom girou a cabeça, a fim de olhar para o sedã verde, estacionado junto ao meio-fio oposto. Lamont von Heilitz inclinou-se para a janela de seu banco traseiro. Um momento de total reconhecimento passou entre eles, e então o velho ergueu aos lábios um dedo enluvado.
Dennis Handley levou seu melhor e mais enigmático aluno para casa, em meio a um silêncio interrompido apenas por suas perguntas cada vez mais hesitantes e pelas respostas monossilábicas do rapaz. Tom parecia pálido e exausto durante o trajeto, produzindo em Dennis a estranha impressão de que se poupava para mais um último esforço. Ao tentar retratar a natureza desse esforço, Dennis pôde apenas imaginar Tom Pasmore sentado diante de uma velha Underwood — uma máquina de escrever bem semelhante àquela em que ele próprio datilografava suas observações de fim de termo letivo — e datilografando com um só dedo, no centro de uma folha de papel de boa qualidade, o pomposo título o caso do carro com o banco ensangüentado. Em dez minutos, ele saía da An Die Blumen para a Estrada Litorânea do Leste, e trinta segundos depois, sentado em seu carro, espiava a figura alta e de ombros largos de Tom caminhar pelo passadiço que levava à entrada da casa em que morava.
Dennis já havia rodado metade do caminho para casa, quando percebeu que ultrapassava em vinte quilômetros horários a velocidade limite estabelecida. E só percebeu que estava irritado, depois que quase atropelou um ciclista.
Duas semanas mais tarde, Dennis encontrava uma Glória Pasmore decididamente ébria, em um jantar em casa dos Thielman, e disse a ela que não havia motivo para preocupar-se. O garoto estava apenas atravessando uma espécie de fase adolescente. E, em resposta a uma pergunta de Katinka Redwing, disse que não, ele não estava acompanhando nenhum dos artigos do Eyewitness sobre Hasselgard, o ministro das Finanças — esse era o tipo de coisa que não interessava a ele, em absoluto.
Tom passou o anoitecer daquele dia datilografando em uma pequena Olivetti portátil verde, que seus pais haviam sido persuadidos a dar-lhe no ano anterior. Entretanto, o que escreveu foi uma carta, não o desajeitado começo de uma novela detetivesca. A carta era endereçada ao capitão Fulton Bishop, o detetive mencionado no jornal Eyewitness. Ele a reescreveu antes do jantar, tornando a reescrevê-la à noite. Assinou a carta como “Um amigo”.
Eram nove da noite, quando dobrou a carta e a fechou dentro do envelope selado. O telefone havia tocado duas vezes enquanto escrevia, porém ele não fora interrompido em seu trabalho. Ouvira a porta dos fundos ser fechada e os ruídos de um carro sendo ligado e afastando-se, de maneira que somente um de seus pais continuaria em casa. Pensou que tinha uma boa chance de sair sem ter que responder quaisquer perguntas, mas, por mera precaução, enfiou a carta dentro de um exemplar de A dama do lago e ancorou o livro debaixo do braço, antes de sair do quarto.
Do alto da escada, Tom viu que as luzes da sala de estar permaneciam acesas, estando fechadas as portas da sala no outro lado da escada. O som de vozes amplificadas chegou até ele.
Desceu silenciosamente os degraus. Faltavam alguns metros para chegar ao último, quando ouviu o ruído da maçaneta da biblioteca. Inconscientemente, endireitou o corpo, quando a porta se abriu, deixando escapar uma onda de tiros e gritos. Seu pai ficou delineado contra um fundo fumacento, em azul-pálido intermitente, como uma figura à boca de uma caverna.
— Pensa que sou surdo? — perguntou seu pai. — Pensa que não consigo ouvi-lo esgueirando-se escada abaixo, como um padre em um bordel?
— Eu ia apenas sair um pouco.
— E que diabo há para ver lá fora, a esta hora da noite?
Victor Pasmore havia cruzado a linha entre um pouco bêbado e um pouco mais bêbado, isto significando que se movera de uma espécie de benevolente exaltação para a grosseria.
— Tenho que levar este livro para Sarah Spence. — Tom estendeu o livro para o pai, que deitou um olhar à capa e depois fitou seu filho, por entre os olhos semicerrados. — Ela me pediu para levá-lo, assim que eu terminasse o trabalho de casa.
— Sarah Spence — disse seu pai. — Vocês eram muito bons amigos.
— Isso foi há bastante tempo, papai.
— Bem... seja como quer. O que sei eu? — Ele olhou de relance para a biblioteca, onde os ruídos vindos da televisão haviam aumentado dramaticamente — pneus estourando e mais tiroteios. — Imagino que terminou seu trabalho de casa, não?
— Terminei.
Victor Pasmore mascou algum pensamento não falado por um segundo, depois tornou a olhar para a crepitante caverna azul.
— Quer vir aqui um segundo? Eu não ia falar nada sobre isto, mas...
Tom seguiu o pai à sala da televisão. Victor foi até a mesinha ao lado de sua poltrona e ergueu um copo cheio pela metade. Uma mulher sorridente erguia uma embalagem de líquido para lavar pratos, enchendo a tela, e a música ficou subitamente mais forte. Victor sorveu vários goles generosos, recostou-se na poltrona e grudou os olhos na televisão.
— Recebi um curioso telefonema, faz algum tempo. De Lamont von Heilitz. Isso faz algum sentido para você?
Tom ficou calado.
— Estou esperando, mas ainda não ouvi nada.
— Eu nada sei sobre isso.
— O que acha que aquele velho tolo queria?Ele nunca telefonou, desde que a mãe de Glória morreu e nos mudamos para cá.
Tom deu de ombros.
— Ele queria convidá-lo para jantar.
— Que me conste — disse seu pai, — Lamont von Heilitz jamais convidou alguém para jantar. Fica enfurnado naquele casarão o dia inteiro, muda de roupa para vir cá fora e arrancar um dente-de-leão em seu gramado — eu sei, porque já vi — e a única vez que o vi agindo como um ser humano foi quando você sofreu aquele acidente e ele me deu uns livros para entregar-lhe. Livros que, em minha opinião, fizeram mais mal do que bem a você.
Victor Pasmore levou o copo à boca e bebeu, fitando Tom por sobre a borda, como se o desafiasse. Tom continuou calado. Seu pai baixou o copo e passou a língua sobre os lábios.
— Sabe como costumavam chamá-lo? O Sombra. Porque ele não existe. Há qualquer coisa errada com aquele velho. Certas pessoas têm um mau cheiro que as segue por toda parte — você devia saber disto, está caminhando para o mundo. Algum dia terá um negócio, garoto, sei que isto é um choque, mas você terá que trabalhar para viver, e precisará saber que é melhor evitar certas pessoas. Lamont von Heilitz nunca trabalhou um só dia, a vida inteira!
— Por que ele telefonou?
Victor se virou novamente para o aparelho de televisão.
— Ele telefonou convidando você para jantar. Respondi que você decidiria por si mesmo. Não quis dizer-lhe o que pensava, de maneira tão direta. Deixe passar umas duas semanas, deixe que ele esqueça o convite.
— Vou pensar nisso — respondeu Tom, começando a caminhar para a porta.
— Acho que não entendeu bem o que eu lhe disse — falou Victor Pasmore. — Não quero que tenha qualquer coisa a ver com aquele excêntrico. Ele dá azar. Seu avô lhe diria a mesma coisa.
— Acho melhor eu ir andando — disse Tom.
— Meta nos miolos o que eu lhe disse!
Fora de casa, na cálida e úmida escuridão, uma gorda gata negra chamada Corazón, animal de estimação dos Langenheims, materializou-se ao lado dele.
— Cory, Cory, Cory... — cantarolou Tom, abaixando-se para afagar o dorso sedoso do animal.
A enorme gata empurrou o corpo contra suas pernas. Tom coçou a cabeça em forma de cunha, e Corazón o fitou com misteriosos olhos amarelos, depois trotando à frente dele pelo passadiço até a calçada, o rabo espesso ereto como uma bandeira. Na calçada, a gata parou junto dele um momento, em um círculo de luz. Tom deu um passo à esquerda, em direção a An Die Blumen, que conduzia a The Sevens, a rua onde moravam os Spences, em uma fantástica construção de trinta cômodos, em estilo espanhol, com pátio interno, uma fonte e uma capela que fora convertida em sala de cinema. Corazón bandeou a cabeça, e a luz do poste da rua fez de seus olhos um transparente mistério. Ela começou a cruzar a rua em passos musculosos e deslizantes, pouco depois desaparecendo entre a casa dos Jacobs e a do sr. von Heilitz.
Tom engoliu em seco. Olhou para a carta que se projetava do livro em sua mão, depois para as janelas pesadamente encortinadas do sr. von Heilitz, no outro lado da rua. Durante todo o anoitecer, ele vira a imagem do rosto pálido daquele homem, espiando para ele do assento traseiro de um maltratado sedã verde, com um ar de pura gratidão.
Tom seguiu para An Die Blumen por entre círculos de luz, alternados com áreas de escuridão em forma de ampulheta. Chegou ao poste vermelho da caixa do correio, na esquina de An Die Blumen, e retirou das páginas do livro o comprido envelope branco. As palavras datilografadas no envelope, Capitão Fulton Bishop, Polícia Central, Divisão de Homicídios, Praça do Arsenal, Mill Walk, Distrito Um, pareciam perturbadoramente adultas e peremptórias. Tom empurrou o longo envelope pela boca aberta da caixa presa ao poste, tornou a puxar parte dele para fora, em seguida voltando a empurrá-lo para dentro, até seus dedos tocarem o metal morno. Então soltou o envelope e, um segundo mais tarde, ouvia-o cair maciamente sobre o monte de correspondência no fundo da caixa.
Tomado de súbita depressão, Tom se virou e, da An Die Blumen, olhou para a esquina da The Sevens, onde uma cabina telefônica fechada ficava quase toldada por um enorme maciço de buganvílias. Começou a descer o quarteirão lentamente.
O interior da cabina estava impregnado do perfume forte e espesso das buganvílias. Tom vacilou apenas um momento, desejando ser capaz de seguir pela The Sevens e tocar a cigarra da porta de Sarah Spence, mas então discou o número da telefonista de informações. Ela informou que havia quatro números para Lamont von Heilitz. Ele desejava o número da Calle Ranelagh, da Estrada Litorânea do Leste ou...
— Este mesmo — interrompeu ele. — Estrada Litorânea do Leste.
Após saber o número, tornou a discar. O telefone tocou duas vezes e uma voz surpreendentemente jovem atendeu.
— Talvez eu tenha discado o número errado — disse Tom. — Eu queria falar comum sr. von Heilitz.
— É você, Tom Pasmore?
— Sim, sou — disse Tom, tão suavemente, que mal ouvia a própria voz.
— Seu pai parece não querer que você aceite meu convite para jantar. Está em casa?
— Não, estou na rua — disse Tom. — Em uma cabine telefônica.
— A que fica aqui na esquina?
— Exatamente — Tom quase sussurrou.
— Então, espero-o dentro de poucos segundos — replicou a vibrante voz do velho.
Ele desligou após falar e Tom recolocou o fone no gancho. Sentia-se intensamente receoso e intensamente vivo.
O perfume espargia-se dos botões da buganvília, tão próximos dele. Gecos e salamandras correram através da relva e fugiram ao longe de escuras paredes de argamassa.
Tom chegou à Estrada Litorânea do Leste e dobrou para a esquerda.
Mais abaixo, atrás das casas, a água batia ritmadamente contra a linha do litoral. Uma caleça fechada desceu a Estrada Litorânea do Leste, chocalhando. O cocheiro usava um aprumado uniforme cinza, quase invisível na noite, e os cavalos eram baios bem igualados, de músculos polidos e pescoços arqueados. A equipagem se moveu com maciez ao lado de Tom Pasmore, produzindo surpreendentemente pouco som, como a imagem de um sonho, mas tão firme em sua realidade, que o fez imaginar-se também participante daquele sonho. A elegante aparição continuou além da esquina e seguiu para o norte, descendo a alameda que levava ao complexo Redwing.
A luz escapava em raios e fendas, nas janelas encortinadas da casa de Lamont von Heilitz.
Quando chegou à entrada da casa, Tom vacilou como antes, ao deixar a carta na caixa de correspondência suspensa ao poste. Queria cruzar a rua em fuga, escapar para seu quarto no andar de cima. Por um momento, lamentou tudo que o tinha feito dar ordens ao pobre Dennis Handley e seu carro. Naquele momento, devia ter desistido e voltado para casa, devia ter escolhido o que já sabia, em vez do mistério do que não sabia. Em uma encruzilhada semelhante, muitos dão as costas para aquilo que ignoram — seu medo, não somente do risco, é demasiado grande. Eles dizem não. Tom Pasmore queria dizer não, mas ergueu a mão e bateu à porta.
Naturalmente, quando fez isto, não tinha a menor idéia do que estava fazendo.
— Que bom! — exclamou von Heilitz. Até agora, quando seus olhos se defrontaram com dois outros, de um azul muito claro, Tom jamais havia realmente percebido que o velho era quase de sua altura. — De fato, muito bom! Por favor, entre em minha casa, Tom Pasmore.
O velho ficou a um lado e Tom entrou.
Por um momento, ele ficou surpreso demais para falar. Havia esperado encontrar o que a Estrada Litorânea do Leste definia como interior doméstico. O vestíbulo podia ser fechado ou não, mas devia dar passagem para uma sala de estar com sofás, mesas e poltronas, talvez um piano de cauda; além desta sala, haveria uma outra, menos formal, com mobiliário idêntico. Em algum ponto, uma porta se abriria para uma ampla sala de refeições, geralmente ostentando uma fileira de retratos de ancestrais (não necessariamente de ancestrais legítimos). A um lado, haveria uma porta, uma porta menor, talvez dando para uma sala de bilhar, apainelada em nogueira ou pau-rosa. Outra porta se comunicaria com uma grande e moderna cozinha. Poderia haver uma biblioteca, com estantes envidraçadas para os livros, uma galeria de arte ou mesmo uma estufa para plantas. Uma imponente escadaria levaria aos quartos de vestir e dormitórios, havendo uma escada separada e estreita para os quartos dos empregados. Haveria uma impressão geral de luxo, fosse franco ou subentendido, de dinheiro conscientemente gasto para obtenção de conforto e esplendor, produzida por tapetes orientais, esculturas, telas em maciças e enfeitadas molduras, com sua própria iluminação indireta, almofadas, as revistas adequadas...
Na casa de Lamont von Heilitz não havia nada disso.
A primeira impressão de Tom foi a de que entrara em um depósito; a segunda, de que estava em uma singular combinação de loja de móveis, escritório e biblioteca. O vestíbulo e a maioria das paredes do térreo tinham sido removidos, de modo que a porta de entrada se abria diretamente para um só e vasto recinto. Aquela sala imensa estava cheia de gabinetes para arquivo, pilhas de jornais, mesas de escritório comuns, algumas entulhadas de livros, outras exibindo tesouras, cola e recortes de jornais. Sofás e poltronas espalhavam-se ao acaso, naquele labirinto de papéis e gabinetes. Por toda a sala, antiquados abajures de pé e do tipo usado para leitura, em cima das mesas, espargiam sua claridade amortecidamente, como estrelas, ou brilhavam esplêndidos, como as lâmpadas nos postes da rua. No fundo da assombrosa sala, empurrada contra o escuro apainelado de mogno, havia uma mesa Sheraton para refeições, coberta com uma toalha de linho e mostrando uma garrafa aberta de Bordeaux tinto, ao lado de uma pilha de livros. Foi quando Tom reparou que ao lado da mesa erguia-se uma parede de livros, viu que pelo menos três quartos das paredes do enorme recinto eram cobertas de livros, em escuras estantes de madeira que iam até o teto. Diante destas paredes, situavam-se cadeiras de biblioteca com encosto alto ou sofás forrados de couro e mesinhas sustentando abajures de cobre para biblioteca, com cúpulas verdes. Entremeando os compridos setores de paredes destinados às estantes de livros, havia seções com o mesmo apainelado escuro que se via atrás da mesa de refeições. Telas destacavam-se daquelas paredes escuras e Tom julgou, corretamente, ter identificado uma paisagem de Monet e uma dançarina de Degas. (Ele viu, mas não soube identificar, telas de Bonnard, Vuillard, Paul Ranson, Maurice Denis e um desenho de flores, da autoria de Joe Brainard, que de maneira alguma parecia deslocado.)
Para onde quer que olhasse, ele via algo novo. Um enorme globo arrematava um suporte, sobre uma das mesas de trabalho. Uma intrincada bicicleta estava encostada a um gabinete para fichário, e uma rede havia sido pendurada entre dois outros gabinetes. Ao lado da rede, Tom viu um aparelho para exercícios com remos. O mais espetacular sistema de hi-fi que já vira na vida ocupava a maior parte de enorme mesa no fundo da sala; em cada um dos quatro cantos do recinto situava-se um alto-falante de grande altura.
Sentindo algo semelhante à admiração, Tom se virou para o dono da casa que, de braços cruzados sobre o peito, sorria para ele. O sr. von Heilitz usava um terno de linho azul-claro, colete traspassado, camisa rosa-pálida e uma gravata de seda azul-escura. As luvas, de um tom azul muito claro, abotoavam-se nos punhos. Seus cabelos grisalhos continuavam mostrando perfeitas pontas viradas aos lados da cabeça, porém mil ruguinhas, finas como fios de cabelo, se tinham impresso nas faces do velho, desde que o tinha visto no hospital. Tom refletiu que ele parecia maravilhoso e tolo ao mesmo tempo. Então, pensou: não, ele é majestoso, de maneira alguma parece tolo. Lamont von Heilitz não podia ser outra coisa que não isso. E isso era o que ele era. Ele era...
Tom abriu a boca, mas constatou que não sabia o que queria dizer. As finíssimas ruguinhas em torno da boca e dos olhos do velho imprimiram-se mais profundamente em seu rosto. Era um sorriso.
— O que é o senhor? — perguntou Tom finalmente.
O velho ergueu o queixo — dava a impressão de ter esperado algo melhor de seu visitante.
— Depois desta manhã, pensei que você poderia ter descoberto — replicou. — Eu sou um amador do crime.
O SOMBRA
Uma frase absurda, naturalmente — disse Lamont von Heilitz a ele, alguns minutos mais tarde. — Seria mais acurado denominar-me um detetive de homicídios amador, porém faço certas objeções a esta expressão. Evidentemente, não posso qualificar-me como detetive particular, uma vez que deixei de aceitar dinheiro de meus clientes. O único tipo de crime que me interessa é homicídio. Não posso negar que meu interesse é bastante intenso — de fato, uma paixão — porém, uma paixão privada...
Tom sorveu um gole da Coca-Cola que o velho despejara em um copo de cristal, tão refinado, que mal tinha peso, tendo gravadas transparentes imagens de mulheres em vestes flutuantes.
O sr. von Heilitz inclinava-se ligeiramente para diante, em uma das cadeiras à volta da mesa maciça. Tinha as costas muito eretas, e girava entre os dedos enluvados da mão direita a base de um copo de vinho, tendo gravados os mesmos motivos do de Tom.
— Você é mais ou menos como eu, sabia? — disse, em sua voz incongruentemente vibrante. Os olhos pareciam muito gentis. — Lembra-se de ter-me visto, quando era criança? Não me refiro às vezes em que expulsei você e os outros rufiões do meu gramado, mas creio dever dizer-lhe que, para mim, era impossível deixar que...
— Que espiássemos por suas janelas — disse Tom, compreendendo subitamente.
— Isso mesmo.
— Porque depois comentaríamos... quero dizer, contaríamos tudo, ao voltar para casa. — Tom fez uma pausa. — E, provavelmente, o senhor já achava que...
Von Heilitz esperou que ele terminasse. Como Tom continuasse calado, ele completou:
— Que minha reputação já era suficientemente peculiar?
— Mais ou menos isso — concordou Tom.
O sr. von Heilitz sorriu para ele.
— Não lhe parece que muito do que as pessoas dizem ser inteligência, na verdade é uma imaginação indulgente? E que essa imaginação indulgente, virtualmente...? Bem, seja como for, você sabe por que me tornei o rabugento da vizinhança. — Ele ergueu o copo de vinho, olhou para Tom de relance e sorveu um gole. — Ainda estou curioso em saber se recorda a primeira vez que o vi — que realmente o vi. Aconteceu em um dia significativo para você.
Tom assentiu.
— O senhor foi ao hospital inglês. E me levou livros. — Tom agora sorriu. — Sherlock Holmes. E a novela de Poe, Os assassinatos na rua Morgue.
— Houve uma época anterior, mas agora não vem ao caso. — Antes que Tom questionasse tal declaração, ele prosseguiu. — E, naturalmente, vimo-nos novamente esta manhã. Você sabe quem atirou na srta. Hasselgard?
— O irmão dela.
O sr. von Heilitz assentiu.
— E, naturalmente, estava sentada no banco do carona do Corvette dele, quando a baleou e matou.
— E ele colocou o corpo da irmã no porta-malas, porque tinha que dirigir até a Baixada da Doninha e, sendo ela muito corpulenta, todos que olhassem para o carro a veriam — disse Tom. — Ele nasceu na Baixada da Doninha, não foi?
— Como chegou a tal conclusão?
— Pelo Eyewitness — disse Tom. — Em verdade, eu sabia o tempo todo, mas esta tarde recordei que, segundo um dos artigos, ele freqüentara e...
— Escola Zigurate. Muito bem!
— Quem era a mulher que escondeu o dinheiro para ele?
— Sua tia.
— Suponho que Hasselgard roubou — cometeu um estelionato, como se diz, ou aceitou aquele dinheiro como suborno...
— Ainda não sabemos, mas tenho a impressão de que foi suborno.
— ... e Marita ficou sabendo...
— Em realidade, ela deve tê-lo visto aceitar o dinheiro, porque se achou no direito de reclamar uma parte.
— ... e ela exigiu metade do dinheiro ou alguma coisa. Ele então a mandou entrar em seu carro...
— Ou ela entrou espontaneamente, querendo que ele a levasse até o dinheiro.
— Então, ele se inclinou pela janela do motorista e a baleou na cabeça. Ergueu o vidro da janela do motorista e disparou através dele, para dar a impressão de que Marita estava atrás do volante. Em seguida, colocou o corpo dela no porta-malas e dirigiu até o distrito nativo. Abandonou lá o carro, depois voltando para casa. E, uma semana mais tarde, a velha foi morta por causa do dinheiro.
— Um dinheiro que agora é confiscado pelo governo de Mill Walk, que o passa às mãos de Friedrich Hasselgard, o ministro das Finanças.
— O que esperava por lá, esta manhã? — perguntou Tom.
— Queria saber quem viria. No melhor dos mundos, o ministro das Finanças Hasselgard teria aparecido, para retirar a primeira bala incrustada na porta, com um canivete.
— O que faria o senhor, se ele aparecesse?
— Ficaria de olho nele.
— Quero dizer, daria parte à polícia?
— Não.
— Nem mesmo escreveria à polícia, relatando o que sabia?
O sr. von Heilitz bandeou a cabeça e olhou para Tom de um jeito que o deixou constrangido — em sua expressão havia demasiadas tonalidades e significados, que penetraram diretamente em seus mais profundos segredos.
— Você escreveu para Fulton Bishop, não?
Tom ficou surpreso, ao ver o sr. von Heilitz agora olhar para ele com indisfarçada impaciência.
— E daí? O que há de errado nisso?
— O que seu pai falou a meu respeito? Quando lhe disse que eu telefonara? Ele certamente o advertiu.
— Bem... sim, ele fez isso. Disse-me que seria mais conveniente evitá-lo, que o senhor dava azar. Também disse que costumavam chamá-lo de “Sombra”.
— Devido ao meu primeiro nome, naturalmente.
Tom pareceu desconcertado, pois era evidente que o velho ficara irritado.
— Lamont Cranston? — perguntou, erguendo as sobrancelhas.
— Meu Deus! — suspirou o sr. von Heilitz. — Ainda na pré-história, um personagem fictício chamado Lamont Cranston foi herói de um seriado radiofônico, chamado “O Sombra”. Foi esse o meu azar, se preferir. Não obstante, seu pai referia-se a outra coisa.
O velho bebericou seu vinho e tornou a dirigir a Tom o mesmo olhar de irritada impaciência.
— Meus pais foram assassinados quando eu tinha 12 anos. Em realidade, foram chacinados. Encontrei seus corpos ao chegar da escola. Meu pai jazia morto nesta sala. Recebera vários tiros e havia uma impressionante quantidade de sangue. E também do que, provavelmente, ainda seja chamado “gore”.* Encontrei minha mãe na cozinha, perto da porta dos fundos. Evidentemente, ela tentara escapar. Imaginei que ainda pudesse estar viva, e então virei seu corpo. De repente, minhas mãos ficaram vermelhas de sangue. Ela havia sido baleada no peito e no estômago. Antes de virá-la e ver o que lhe tinham feito, nem mesmo notara a sangueira no chão.
* Sangue seco, coagulado. (N. da T.)
— Descobriram quem fez isso?
— Eu descobri, anos mais tarde. Quando esta casa foi fechada, fiquei morando com um tio e uma tia, enquanto a polícia investigava o assassinato de meus pais. Sabia que meu pai foi ministro do Interior de David Redwing, depois que Mill Walk se tornou independente? Era um homem importante. Não tanto quanto David Redwing, mas também importante. Assim teve lugar uma rigorosa investigação. Deu em nada, e seu fracasso foi uma permanente amargura. Como que em recompensa pela incapacidade da polícia em resolver seu assassinato, meu pai foi recompensado postumamente com a Medalha ao Mérito de Mill Walk. Eu a tenho na gaveta de uma dessas mesas por aí — poderia mostrá-la a você.
Von Heilitz ficou contemplando algum vago espaço interno, sem olhar para Tom.
— Esperei quase dez anos — prosseguiu ele. — Herdei esta casa e tudo o que continha. Após diplomar-me em Harvard, voltei para morar aqui. Possuía dinheiro bastante para não ter preocupações pelo resto da vida, porém me perguntava o que iria fazer. Poderia entrar para algum negócio. Se fosse um tipo diferente de pessoa, talvez me envolvesse na política local. Afinal de contas, meu pai era um mártir do lugar, não? No entanto, meu propósito era outro e me dispus a segui-lo. Quase imediatamente, constatei que a polícia bem pouco descobrira. Assim, voltei-me para as únicas fontes ao meu alcance, o registro público. Obtive toda uma coleção do Eyewitness. Examinei tudo — transferências de propriedades, negócios de terras, chegada de navios, registros judiciários, notícias de mortes. Havia tanto material, que precisei modificar a casa, a fim de estocar tudo. Eu procurava padrões que mais ninguém vira. Então, após três anos, comecei a encontrá-los. Foi o trabalho mais tedioso e frustrante que já fiz, mas também o que deu maior satisfação. Senti que estava salvando a própria vida. Eventualmente, concentrei-me em um só homem — um homem que tinha ido e vindo de Mill Walk inúmeras vezes, um ex-membro de nossa polícia secreta, que foi aposentado quando da dispersão da polícia secreta. Ele possuía casas aqui e em Charleston. Fui a Charleston, e o segui. O assassino de meu pai e minha mãe parecia um homem comum — poderia ser tomado por alguém que ganhara dinheiro suficiente em negócios de terras, para poder dedicar-se inteiramente ao golfe. Achei que poderia matá-lo, mas descobri que eu não era um assassino. Voltei a Mill Walk e apresentei o resultado de minha investigação ao secretário de Defesa Nacional, Gonzalo Redwing, que havia sido amigo de meu pai. Uma semana mais tarde, o assassino retornou a Mill Walk para comparecer a uma função de caridade, e a milícia o deteve no porto, em Mill Key. Ele foi preso, julgado, condenado e eventualmente enforcado, no complexo da prisão em Long Bay.
O sr. von Heilitz se virou para Tom, com uma expressão que o rapaz não conseguiu entender.
— Aquele devia ter sido um momento de triunfo para mim. Havia descoberto quem eu era. Encontrara o trabalho de minha vida. Era um detetive amador — um amador do crime. No entanto, quase imediatamente meu triunfo se tornou mais amargo do que fel. Transformou-se em desgraça. Durante os meses entre sua prisão e a execução, o homem que eu havia descoberto jamais parou de falar. Ele implicou meu pai no próprio assassinato.
— Como pôde fazer isso? — indagou Tom.
— O homem não disse que meu pai queria ser morto, mas que havia sido executado. Segundo ele, meu pai participara de certos arranjos ocorridos mais ou menos na época da independência de Mill Walk. Ele foi um parceiro ativo em tais arranjos, os quais envolviam a renda do açúcar, a maneira como a receita pública era manejada, a licitação para construção de estradas e remoção do lixo, verbas para água, os bancos, certas estruturas fundamentais que foram instaladas naquela época... Houve irregularidades e meu pai estava profundamente envolvido nelas. Segundo o assassino, meu pai deixara de colaborar e queria uma fatia desproporcional em todos esses arranjos fundamentais. Assim, esse homem fora contratado para matá-lo. O crime deveria ter as aparências de roubo.
— E quem o teria contratado?
— Ele nunca chegou a saber. Recebia instruções através da coluna de anúncios pessoais, no Eyewitness, sendo o pagamento em dinheiro depositado em sua conta de banco na Suíça. Naturalmente, a implicação era do envolvimento dos mais altos funcionários em Mill Walk e, quanto mais o homem falava, mais o público ficava ultrajado — obviamente, ele procurava turvar o caso, tentava afastar o foco de sobre si mesmo e acusar todo mundo. De qualquer modo, a polícia secreta era suspeita, tendo sido extinta pouco depois da independência. Quando a ficha deste homem se tomou pública, mesmo aqueles que imaginavam existir algo em suas acusações se voltaram contra ele. No fim, suas próprias histórias o condenavam. Eu mesmo adquiri certa fama, como a pessoa que provocara sua prisão.
— Então, por quê...?
— Por que terminei vivendo desta maneira? Por que sou contra você ter escrito ao capitão Bishop?
— Exatamente — disse Tom.
— Em primeiro lugar, eu gostaria de saber se assinou a carta.
Tom negou com a cabeça.
— Foi uma carta anônima? Bom garoto! Não fique surpreso se nada for feito. Você sabe o que sabe, e isso é o bastante.
— Depois que a polícia ler minha carta, pelo menos eles terão que examinar o carro mais cuidadosamente, em vez de apenas aceitarem o relato de Hasselgard como fato. E quando encontrarem a bala, saberão que esse relato não era verdadeiro.
— O capitão Bishop já sabe que não era — disse o velho.
— Não acredito!
— Logo após a execução do assassino de meu pai, descobri que, exceto por um detalhe, ele estivera dizendo a verdade o tempo todo. A morte de meu pai havia sido ordenada pelos mais altos níveis de nosso governo. A corrupção era um fato, na vida de Mill Walk.
— Bem, mas isso foi há muito tempo — disse Tom.
— Há quase cinqüenta anos. Houve muitas, muitíssimas mudanças em Mill Walk desde então. No entanto, os Redwings ainda exercem uma enorme influencia.
— Eles nem mesmo continuam fazendo parte do governo! — protestou Tom. — Cuidam apenas de negócios. Fazem vida social. Metade deles é desvairada demais para envolver-se com alguma coisa além de corridas de carros e dar festas, a outra metade sendo tão respeitável, que não faz mais nada senão ir à igreja e recortar cupons.
— Tais são os nossos líderes — disse o velho, sorrindo. — Veremos o que acontece!
Minutos mais tarde, Lamont von Heilitz levantava-se da mesa e caminhava até o labirinto dos arquivos. Tom o ouviu abrindo uma gaveta de metal.
— Você já esteve no lago da Águia, no Wisconsin? — perguntou ele a Tom, que conseguia apenas ver o topo de sua cabeça prateada, acima de uma pilha de papéis sobre um gabinete pintado de cinza.
— Não, não estive.
— Talvez fique interessado nisto — disse o velho, reaparecendo com um grande livro encapado em couro, debaixo do braço. — Tenho uma casa no lago da Águia -era de meus pais, claro. Passávamos o verão “lá no norte”, como dizem era Mill Walk, durante todo o meu tempo de criança. Depois que saí de Harvard, levei alguns anos usando a casa. — Ele pousou o grosso volume em cima da mesa, diante de Tom, e inclinou-se sobre o ombro dele. Seu dedo indicador descansou sobre a capa marrom do livro e, quando Tom olhou, viu que o velho sorria. — A maneira como você esteve falando — a maneira como posso ver o que sente — tudo o que sente, embora não tenha dito nem metade do que anda por sua cabeça — fez-me recordar este caso. Creio ter sido a terceira ou quarta vez que empreguei meus métodos para descobrir a identidade de um assassino, sendo uma das primeiras vezes em que tornei públicos os resultados de minhas investigações. Como você verá.
— Quantos casos o senhor investigou? — Tom quis saber subitamente.
Von Heilitz ergueu a mão do livro e a pousou no ombro dele.
— A esta altura, já perdi a conta. Creio que foram uns duzentos, aproximadamente.
— Duzentos! E quantos deles solucionou?
O velho detetive não respondeu à pergunta diretamente.
— Certa vez, passei um ano muito interessante em Nova Orleãs, por ocasião da morte por envenenamento de vários homens de negócios proeminentes. De fato, eu mesmo fui envenenado, mas tomara a precaução de munir-me de um bom suprimento do antídoto. — Ele quase deu uma risada, ao ver a expressão no rosto de Tom. — Lamento dizer que o antídoto não me poupou de uma semana extremamente desconfortável no hospital.
— Foi essa a única vez em que sofreu conseqüências?
— Fui baleado uma vez — no ombro — e baleado em quatro vezes mais. Um homenzarrão de Norway, no Maine, quebrou meu braço direito, ao surpreender-me fotografando uma Mercedes-Benz, em cima de cepos de madeira, no telheiro atrás de sua casa. Dois homens me cortaram ou esfaquearam, um deles em uma casa nativa, a um quarteirão de distância de onde nos vimos hoje na Baixada da Doninha, o outro em um motel chamado “Chaves Cruzadas”, em Bakersfield, Califórnia. Fui vigorosamente surrado apenas uma vez, por um homem que me atacou pelas costas, em um beco da Praça do Arsenal, perto da Central da Polícia. Não obstante, em Forth Worth, Texas, um senador estadual que havia matado perto de uma dúzia de prostitutas, por pouco não me mata também ao atingir-me com um martelo, pelas costas e na cabeça. Fraturou meu crânio, mas consegui sair do hospital em tempo de vê-lo enforcado.
Von Heilitz deu alguns tapinhas no ombro de Tom.
— Receio que, às vezes, seja uma vocação lamentável.
— O senhor já matou alguém?
— O único homem que cheguei a matar foi aquele que me quebrou o braço. O encerramento de cada investigação resulta em uma depressão, mas daquela vez foi pior. Cheguei a Mill Walk com o braço engessado e, durante dois meses, recusei-me a atender telefonemas ou sair desta casa. Quase não me alimentava. Creio que foi uma espécie de colapso nervoso. Por fim, internei-me em uma clínica e fiquei dois meses por lá. “Por que sempre usa luvas?”, perguntaram-me os médicos. “O mundo é tão sujo assim?” “Estou pelo menos tão sujo quanto o mundo”, recordo ter respondido; “talvez queira evitar contaminá-lo, e não o contrário”. Lembro-me de uma vez ter surpreendido a visão de meu rosto no espelho, de ter ficado chocado com o que vi — vi um adulto, a pessoa em que me tornara. Em pouco minha depressão começou a diminuir. Voltei para cá. Percebi que estava rejeitando mais casos no continente do que tinha aceitado. Após algum tempo, minha reputação não era nem mesmo uma vaga lembrança, eu estava livre para viver como queria. — Ele afastou a mão do ombro de Tom e puxou sua cadeira de volta. — Faz alguns anos, vi você em um lugar inesperado. Sabia que um dia nos encontraríamos, que teríamos esta conversa.
O velho tornou a sentar-se com vivacidade em sua cadeira.
— Eu queria mostrar-lhe as primeiras páginas deste livro e, no entanto, fiquei falando pelos cotovelos. Vamos folheá-lo, antes que você cabeceie de sono.
Tom jamais se sentira tão desperto. Olhou para Lamont von Heilitz, sentado a um metro de distância, de sobrancelhas arqueadas, os dedos enluvados abrindo o grande volume encadernado em couro. O velho tinha uma expressão sincera e nobre, o refinamento de seu rosto era mais decidido do que nunca àquela luz suave, a ponta virada e grisalha dos cabelos nos lados da cabeça brilhando como prata. Tom percebeu que estava vendo a coisa real. Sentado a um metro de distância dele, levemente majestoso e levemente desgastado, mais do que levemente contraído pela idade, estava um grande detetive, a realidade por trás de, literalmente, milhares de novelas, filmes e peças teatrais. Não cultivava orquídeas, não se injetava uma solução de sete por cento de cocaína e nem dizia coisas como “Arcontes de Atenas!” Era um velho que raramente abandonava a casa de seu pai. Durante a vida inteira de Tom, ele morara no outro lado da rua.
O livro, uma versão mais elegante de seu álbum de recortes, ficou aberto em cima da mesa. Tom leu a vistosa manchete na página esquerda. Milionária Veranista Desaparece de sua Casa. Mais abaixo, o subtítulo: Jeanine Thielman, personalidade de Mill Walk, vista pela última vez na sexta-feira. Abaixo disso, via-se uma granulosa foto de uma mulher loura em casaco de peles, descendo de uma carruagem de suas parelhas. Um colar de diamantes fulgurava em seu pescoço e tinha os cabelos repuxados para trás da testa. Parecia esguia, rica e poderosa, descendo do estribo com uma longa perna estirada. Seu sorriso para a câmera era uma careta de forçado artifício. Tom compreendeu imediatamente que a mulher havia sido fotografada quando chegava a um baile benemerente. Ela lhe recordava sua mãe, em antigas fotos tiradas quando tinha sido Glória Uspshaw, membro da Liga Júnior de Mill Walk.
Tom olhou para o nome e data do jornal — Gazeta do Lago da Águia, 17 de junho de 1925.
— O 17 de junho foi o dia seguinte ao de minha chegada ao lago da Águia, naquele ano. Jeanine Thielman, que foi a primeira esposa do pai de nosso vizinho Arthur Thielman, havia desaparecido na noite do dia 15. Arthur deu por falta dela quando foi ao quarto da esposa pela manhã. Então, enviou um mensageiro às outras moradias, incluindo-se o complexo Redwing, para saber se ela estaria visitando alguns de seus amigos. Ficou sabendo que ninguém vira Jeanine, desde um jantar na casa do Langenheim mais velho, na noite anterior, e esperou por todo o dia dezesseis, antes de comunicar o desaparecimento à polícia, na cidadezinha Lago da Águia. Vê? Parece apenas histeria de jornal, a respeito de uma mulher rica. As pessoas comentavam sobre este jovem casal, dormindo em quartos separados.
O sr. von Heilitz apontou para a página do lado esquerdo de seu enorme livro.
— Este foi o dia em que cheguei. Encontrei Arthur Thielman sentado em minha cadeira da varanda, com um enorme cadela setter deitada no piso, ao seu lado. Ele soube que eu estava para chegar e disse a seus criados que ia levar a cadela para dar uma volta. Arthur era um homem rude, e começou dizendo que eu tinha de ajudá-lo a encontrar sua esposa, ainda antes que eu descesse de minha carruagem.
Aumenta o mistério, dizia a espalhafatosa manchete. Von Heilitz prosseguiu:
— Ele disse que eu devia ficar em Miami, onde eles possuíam um apartamento, antes de voltar para Mill Walk. Não poderia contar para ninguém o que estava fazendo. Thielman achava que a polícia de Lago da Águia era incompetente, mas desejava manter em segredo que me contratara. “Você é o Sombra, não?” — disse para mim — esforçava-se para não gritar. “Pois quero que se comporte como uma maldita sombra! Apenas, encontre-a e comunique-se comigo. Quero que este assunto termine rapidamente.” Ele me pagaria o que eu pedisse. Depois, para minha surpresa, desculpou-se por estragar-me as férias. Respondi que não estava interessado em seu dinheiro, mas que veria o que era possível fazer, sem sair do Lago da Águia. Ele não pareceu muito satisfeito com minha decisão, mas por fim mostrou-se grato — portanto, tive a impressão de que, afinal de contas, imaginava-a em algum lugar naquela área. Seja como for, àquela altura lamentava ter entrado em pânico e ido à polícia. Em vista destas manchetes, tornara-se um prisioneiro em sua casa de campo — não podia aparecer no clube e estava farto de conversar apenas com os criados e o policial-chefe local.
Tom observou a foto de Arthur Thielman, em pé ao lado de sua “cabana”, uma construção rústica, com varandas em dois níveis. Era um homem corpulento, de jeito agressivo, com casaco de tweed e lamacentas botas de cano alto. Seu rígido rosto vitoriano mostrava apenas uma vaga semelhança com o do filho, atualmente um homem de meia-idade, vizinho dos Pasmores.
— Dois dias mais tarde, Kathleen Duffield, uma jovem de Atlanta que estava para casar-se com Jonathan, primo de Ralph Redwing, ficou com seu anzol preso em alguma coisa, na pantanosa extremidade norte do lago. Jonathan queria cortar a linha e procurar território mais promissor — ninguém costumava pescar na extremidade norte. Imagino que Kate tivesse gostado do lugar. Seja como for, a jovem continuou puxando e, eventualmente, Jonathan saltou do barco para provar à noiva que tudo quanto fisgara havia sido algum bote afundado. Seguiu a linha debaixo da água e descobriu que se enredara com o anzol em um chumaço de ervas. Não muito distante, a meio caminho para uma parte mais funda, viu um rolo de velho tecido para cortinas e nadou até lá, a fim de espiar. Quando puxou o tecido, o corpo de Jeanine rolou para fora. Ela havia sido baleada na parte de trás da cabeça.
Von Heilitz virou a página e outras duas manchetes saltaram aos olhos de Tom: Jeanine Thielman encontrada no lago e morador local acusado pelo assassinato Thielman. Fotos mostravam três policiais de botas atadas com cordões e cinturões Sam Browne, de pé em um ancoradouro, abaixo de uma visão dos fundos da cabana Thielman; uma comprida coisa frouxa sob um lençol e um homem com olhos como de coruja descendo um corredor circundado por policiais.
Tom pensou: então o Lago da Águia é assim... Teve um relance de Sarah Spence rompendo a superfície da água cinzenta, os cabelos caindo sobre os ombros e os olhos alegres. Depois, sentiu que já vira tudo aquilo, de algum modo sonhador, antes de seu acidente: o próprio formato das letras lhe era familiar.
— O homem que eles prenderam, Minor Truehart, era um guia metade-winnebago,* que arranjava iscas para anzóis e peixes de água doce para meia dúzia de famílias à volta do lago, incluindo-se os Thielmans. Morava em uma cabana perto do lago, com a mulher e filhos. Permanecia sóbrio até o meio-dia e, depois disso, os veranistas o consideravam irritante ou divertido, mas contratá-lo já era uma espécie de tradição. Aparentemente, ele tivera algum desentendimento com Jeanine Thielman na véspera dela desaparecer — ele cheirava a uísque, ela o mandara embora, ele alegara ser capaz de continuar fazendo um bom trabalho assim mesmo, e ela perdera as estribeiras. Os dois estavam no ancoradouro dos Thielmans e muita gente a ouviu gritando com ele. Eventualmente, Truehart entregou os pontos e foi embora. Alegou não recordar o que acontecera durante o resto do dia e que acordou na floresta por volta de cinco horas da manhã seguinte, com uma ressaca infernal. A polícia vasculhou sua cabana e encontrou um revólver Colt de cano longo debaixo da cama, o qual foi enviado para exame no laboratório do estado.
* Membro de uma tribo de índios sioux, que viviam na região leste do Wisconsin, onde alguns ainda sobrevivem. (N. da T.).
— A arma era dele? — perguntou Tom.
— Ele disse que tinha uma arma, porém que não era aquela. Entretanto, identificou-a — disse que a tinha vendido para o velho juiz Backer, um viúvo que passava duas semanas no Lado da Águia, todos os verões, e que gostava de praticar tiro ao alvo. A esposa de Truehart afirmou que muitas armas passavam pela casa. Seu marido fazia algum dinheiro negociando com elas, procurando itens especiais para os colecionadores de armas, entre os veranistas. Ela não reconheceu aquela.
Tom refletiu por um momento.
— Essa mulher recordava o nome de alguns compradores de armas do marido?
Lamont von Heilitz inclinou-se para trás em sua cadeira e ofereceu-lhe um sorriso quase paternal.
— Receio que Minor Truehart era desses maridos que nunca comentam coisa alguma com as esposas. Entretanto, é claro que pensei no que poderia ter acontecido à arma do juiz Baker, ainda mais porque o juiz negou toda a história. Ele jamais comprara ilegalmente uma arma de quem quer que fosse, é lógico. Se isso ficasse provado, ele perderia seu cargo. Fiquei perguntando a mim mesmo como seria possível que um guia bêbado, enfurecido pelo comportamento da esposa de um cliente, terminasse dando-lhe um tiro na parte de trás da cabeça.
— O que fez o senhor? — perguntou Tom.
— Falei com o juiz Backer e seu valete, Wendell Hasek, um rapaz do lado oeste da ilha. Conversei com pessoas do clube, fui aos escritórios da Gazeta do Lago da Águia e examinei atentamente os exemplares do início do verão. Estive com o xerife local, que já me conhecia através da publicidade em torno dos poucos casos em que eu trabalhara. Tive também uma longa conversa com Arthur Thielman.
— Foi ele! — exclamou Tom. — Roubou a arma da cabana do juiz, matou a esposa c. em um barco a remo, levou o corpo dela até a extremidade do lago aonde ninguém costumava ir, e o jogou na água. Então, incriminou o guia, esgueirando-se em sua cabana e lá escondendo a arma. Provavelmente arrancou uma cortina dele, usando-a para embrulhar o cadáver.
— Pense em minha situação — disse o velho, ignorando o que ele havia dito. — Isto aconteceu um ano depois que vi executado o assassino de meus pais. Quase inadvertidamente, solucionara um caso bem menor, vários meses antes — percebera um detalhe, nada mais, uma questão dos sapatos usados por um certo homem no dia do assassinato — o qual aumentou minha reputação, mas me deixou deprimido e entediado. Tinha ido ao Lago da Águia para esquecer o mundo e tentar planejar o que poderia fazer pelo resto da vida. No entanto, aquele assassinato me era atirado ao rosto, mal chegara à minha cabana, através do antipático Arthur Thielman, sentado em minha varanda com seu corpulento cachorro, ardendo de impaciência, ansioso por comprar meu tempo e minha atenção, em verdade, por comprar-me... “Você é o Sombra, não?” Eu desejei ser uma sombra, porque assim poderia deslizar ao lado dele e deixá-lo fora da minha casa! Estava tão exausto, que prometi ajudá-lo apenas para que me deixasse em paz. Achei que o mais provável era Jeanine simplesmente ter abandonado o marido. Assim que tive uma boa noite de descanso, decidi nada mais ter a ver com os Thielmans. Ignoraria todo o assunto.
— Só que, então, o corpo foi descoberto — disse Tom.
— E o guia foi preso. E Arthur Thielman me disse que não precisava mais dos meus serviços. Eu tinha que parar de falar com todas aquelas pessoas. Ele parecia particularmente aborrecido por eu haver falado com Wendell Hasek, o valete do juiz.
— Acho que ele queria ficar livre do senhor — disse Tom. — Temia o que pudesse descobrir.
— De certo modo. Lembra-se de quando falei sobre minha impressão, quanto a Thielman pensar que ela poderia estar em algum lugar na área do Lago da Águia?
— Claro. Ele sabia que ela estava no fundo do lago, embrulhada em uma cortina velha.
O velho sorriu e tossiu dentro do punho.
— Talvez. Seja como for, é uma inteligente suposição.
Tom se sentiu imensamente envaidecido.
— Lembre-se de que ele me via como uma espécie de detetive particular, inexplicavelmente, alguém de sua própria classe. Ele não admitiria para nenhum estranho que a esposa pudesse ter fugido, abandonando-o. Assim, quando ela foi encontrada assassinada, isso encerrou aquele constrangimento — ele não precisava mais de mim para poupar-lhe a vergonha. E, com toda certeza, não desejava maiores embaraços.
— Um momento — disse Tom. — Maiores embaraços? Ele a matou!
— Eu lhe disse para pensar em minha situação e, agora, quero que considere meu estado de ânimo. Uma vez descoberto o corpo, percebi que tudo em mim havia mudado. Poderia dizer-lhe que fiquei mais alerta, mais envolvido nas coisas ou que o Lago da Águia se tornara mais interessante. Só que foi muito mais do que isso. O Lago da Águia ficara mais bonito.
Tom gostaria de sacudi-lo.
— Como conseguiu fazê-lo confessar?
— Ouça-me. Não é sobre a solução que estou falando. Procuro descrever uma súbita mudança em meus sentimentos mais básicos. Quando caminhei ao lado de minha cabana e olhei para o lago, para as outras moradias espalhadas em torno dele, para os ancoradouros, as estacadas ao lado do complexo Redwing, os altos pinheiros da Noruega e os frondosos carvalhos, tudo aquilo parecia... energizado. Cada pequena parte daquilo falava para mim. Cada folha, cada agulha de pinheiro, cada trilha da floresta, cada canto de ave, tudo ganhara vida, era vibrante, cheio de significado. Tudo prometia. Tudo bimbalhava. Eu sabia mais do que sabia. Havia uma pulsação secreta sob a superfície de tudo quanto via.
— Compreendo — disse Tom, sem saber por que seus braços ficavam arrepiados.
— Sim — disse o velho. — Você também tem isso. Não sei o que seja — uma aptidão? Uma vocação?
Tom subitamente percebeu por que Lamont von Heilitz sempre usava luvas e quase deixou escapar esse segredo. Von Heilitz o viu olhando para suas mãos e as entrelaçou diante dele, sobre a mesa.
— Fui até a cabana do Juiz Backer e vi Wendell Hasek ajeitando o cupê do juiz. Hasek não tinha mais que 18 anos, e começou a parecer culpado, assim que me viu — não queria perder o emprego e receava o que eu pudesse arrancar dele.
— O que fez o senhor? — perguntou Tom, incapaz de desviar os olhos das mãos do velho, em suas elegantes luvas azuis, incapaz de não ver sangue nas mãos do rapaz que o velho tinha sido.
— Eu disse a ele já saber que Truehart vendera o Colt de cano longo para seu patrão, e que o juiz o dera a Arthur Thielman por algum motivo. Eu queria apenas saber que motivo fora. Prometi a ele — não de todo sinceramente — que jamais seria levado a público que o juiz era dono daquela arma.
— “Ninguém ficará sabendo sobre o juiz?”, perguntou ele. “Ninguém saberá que lhe contei?” “Ninguém”, respondi. “O Juiz Backer queria livrar-se daquela arma”, revelou Hasek. “Os tiros saíam desviados para a esquerda. Ele ficou mais furioso do que uma vespa, porque um mestiço lhe vendera uma arma ruim por bom dinheiro. Assim, ele a vendeu para o sr. Thielman, que, sendo um mau atirador, nunca poria a culpa na arma.”
— Muito bem! — exclamou Tom. — O senhor o tinha! — Ele começou a rir. — Arthur Thielman atirava tão mal, que precisou esgueirar-se até atrás da esposa e colocar o cano a cinco centímetros de sua cabeça, para ter certeza de que a acertaria!
O velho sorriu.
— Arthur Thielman não foi o assassino da esposa, mas o verdadeiro criminoso poderia fazer-me pensar o contrário. Ele sabia que fornecera a Arthur um dos motivos mais tradicionais para um assassinato. — Seu sorriso aumentou, ao ver a expressão no rosto de Tom. — Jeanine não fora apenas infiel ao marido, mas seu amante pensava que ela deixaria Arthur por ele. E Arthur pensou que ela o abandonara — pensou que havia fugido com o outro homem.
Pela segunda vez naquela noite, Tom ficou surpreso demais para dizer alguma coisa. Por fim, perguntou:
— Eram esses os maiores embaraços de que falava?
Von Heilitz assentiu.
— Assim, restava-me apenas descobrir qual dos homens visitando o Lago da Águia naquele verão estivera ausente do lago no dia do desaparecimento de Jeanine. Voltei à cabana de Truehart, para saber se alguém cancelara um compromisso com o guia. Se não obtivesse resultados, eu pretendia interrogar os dois ou três homens mais que trabalhavam como guias para os veranistas, porém não foi preciso. A esposa de Minor trabalhava de faxineira para a maioria das mesmas pessoas que seu marido guiava. A 16 de junho, ela faria duas faxinas. Foi à primeira cabana às oito da manhã, porém o homem que morava lá não atendeu à porta. Imaginando que ele poderia estar dormindo até mais tarde, após uma noite agitada, internou-se na floresta e seguiu para a segunda faxina, onde trabalhou até duas da tarde. Então, retornou à primeira casa. Novamente, ninguém atendeu às suas batidas — ninguém apareceu, nem mesmo quando chamou em voz alta. Decidiu então que ele devia ter ido à cidade ou qualquer outro lugar, sem preocupar-se em dizer-lhe que não estaria em casa. Ela rabiscou uma nota, dizendo que voltaria no dia seguinte, e foi embora para sua cabana, através da floresta. Ao voltar no dia 17, ele lhe abriu a porta, dizendo que lamentava muito, mas precisara fazer uma súbita viagem de negócios a Hurley, uma cidadezinha maior, situada a uns trinta quilômetros ao sul. Havia tomado o trem das seis e meia, só voltando já noite. Pagou-lhe dobrado pelo dia e lhe pediu que não mencionasse sua ausência a ninguém em cuja casa trabalhasse — seus negócios envolviam uma questão de terras, que queria manter em segredo.
— Ora, se ele ia fugir com ela, mas em vez disso a matou, por que teria de ausentar-se?
— Ele não foi a lugar algum. Arthur Thielman apenas pensou que tivesse ido. A sra. Truehart encontrou duas garrafas vazias de uísque no lixo desse homem, outra pela metade na bancada da cozinha e os restos de vários maços de Lucky Strike nas cestas de papel usado. Ele ficou lá mesmo, escondido em sua cabana, embriagando-se até o estupor. A sra. Truehart recebeu ordens de não entrar no quarto de hóspedes, e pensou que ele devia ter alguns pertences de mulher lá dentro, não querendo que fossem vistos. Era um homem sentimental. Matou a amante com um tiro na cabeça, quando ela se recusou a fugir em sua companhia, então passando o resto da noite e o dia seguinte pranteando-a. O sentimentalismo é uma máscara para a violência.
— Quem era ele? Como se chamava?
— Anton Goetz.
Tom ficou francamente decepcionado.
— Nunca ouvi falar nele.
— Eu imagino, mas era uma figura interessante — um alemão que tinha vindo para Mill Walk uns 15 anos antes e fizera um bocado de dinheiro. Comprou o St. Alwyn Hotel e depois melhorou alguns terrenos no lado oeste da ilha. Nunca se casou. Maneiras finas. Bom contador de casos... em sua maioria, creio eu, inteiramente inventados. Foi quem construiu essa casa imensa em estilo espanhol perto da esquina, na The Sevens. A casa em que moram os Spences. Sempre achei que isso revelava o homem com precisa exatidão — toda aquela grandiosidade, isso de estender-se além do necessário... — Notando a expressão de Tom, ele acrescentou rapidamente: — Talvez você a ache uma casa bonita. Sim, à sua maneira, é bastante bonita. E, naturalmente, agora estamos todos acostumados a ela.
— O senhor tinha alguma prova contra Goetz?
— Bem, eu tinha a cortina, claro. Ele seria apanhado, cedo ou tarde, porque havia decorado sua casa na primavera, logo depois de começar o caso sentimental com Jeanine Thielman. As cortinas velhas foram guardadas em uma das construções perto da casa. Até Jeanine recusar-se a fugir com ele, Goetz achava que ela se divorciaria, os dois se casariam e retornariam a Mill Walk, onde viveriam como um casal. Jeanine talvez sustentasse essa fantasia dele, porém nunca a levou a sério.
— E como descobriu que eles tinham um caso? Só porque a faxineira não entrou na casa dele?
— Aha! Certa noite, no verão anterior, fui ao clube já tarde, e encontrei Jeanine descendo precipitadamente a escada que vem do bar, na sala de refeições. Ela nada me disse, apenas passou ao meu lado, com um sorriso constrangido. Quando subi, vi Goetz no bar, sozinho diante de dois copos e um cinzeiro cheio de cigarros. Ele me contou uma história sobre tê-la encontrado ali casualmente, no que acreditei. Entretanto, pelo resto daquele verão, nunca mais vi os dois trocando a menor frase, quando em público. Eles até procuravam evitar-se, para não serem vistos juntos, e eu continuaria sem desconfiar de nada, em absoluto, se não fosse aquele único momento em que, claramente, haviam passado uma ou duas horas juntos. Assim, pareceu-me que ambos se empenhavam em não atrair suspeitas e, naturalmente, isto produziu em mim o efeito contrário.
Levantando-se, von Heilitz começou a andar em largas passadas, indo e vindo ao longo da mesa.
— Havia uma festa programada no Clube do Lago da Águia, para a noite após eu ter falado com a sra. Truehart. Fora cancelada, evidentemente, mas várias pessoas planejavam ir até lá assim mesmo, para trocar idéias, tomar alguns drinques, esse tipo de coisa. Mais pela falta do que fazer, do que por qualquer outro motivo. Cheguei ao clube por volta das seis da tarde, ainda tomado por aquela sensação que lhe descrevi — uma espécie de radiosa significância, cintilando através de tudo em que punha os olhos. Entretanto, quando subi para o bar e avistei Anton Goetz no terraço, o que mais senti foi melancolia. Ele havia feito as refeições em casa durante alguns dias, ficando fora de vista. Estava sentado a uma mesa com Maxwell Redwing, filho de David, e alguns dos primos mais jovens de Redwing. Naquela época, Maxwell era o patriarca dos Redwing — aquele que realmente continha a família fora da vida pública. De fato, era mais ou menos como seu avô.
“Para ser sincero, não sei se minha melancolia era pelo coitado do Goetz, que parecia nervoso e confuso, evidentemente lutando para assemelhar-se ao homem de antes, em meio àquele atraente grupo, ou se era por mim mesmo, porque tudo aquilo ia chegar ao fim. Fui até o canto oposto do bar e pedi um drinque. Fixei os olhos em Goetz, até ele erguer o rosto e dar comigo. Assenti, ele desviou os olhos. Continuei olhando fixamente para ele — parecia-me que podia ver sua vida inteira. Cada coisa, todas as emoções e o excitamento que haviam rodopiado à minha volta nos poucos dias anteriores, reduzira-se à visão daquele destroçado ser humano, que tentava ganhar as boas graças de Maxwell Redwing. Ele continuava erguendo o rosto, a ver-me e a baixar os olhos para beber o seu drinque.
“Por fim, Goetz desculpou-se e saiu da mesa. Caminhou através do terraço e parou ao meu lado, no bar, nervoso. Esperava que eu dissesse alguma coisa. Quando puxou um de seus cigarros Lucky Strike, acendi para ele. Após exalar uma baforada, deu um passo para trás. ‘Qual é o seu jogo, companheiro?’, perguntou-me finalmente.
“‘Você’, respondi. ‘Você não tem a menor chance. Mesmo que eu não tivesse descoberto, cedo ou tarde alguém começaria a pensar naquela cortina. Checariam, para saber se chegou a tomar aquele trem para Hurley. Haveria alguém que o tivesse visto com Jeanine. Eles examinariam seu bote, acabariam encontrando fios do tapete, uma mancha de sangue ou um fio do cabelo de Jeanine...’
“O rosto dele ficou vermelho-vivo. Olhou para trás, para o terraço, na direção do grupo de primos Redwings em animada conversa. Literalmente, o homem empinou o corpo. Então, perguntou o que eu pretendia fazer. Falei que queria levá-lo à cidade e tirar Minor Truehart da cadeia o mais depressa possível. ‘Você é realmente o Sombra, não?’, perguntou ele. Então se virou em minha direção, ficando de costas para o terraço. Inclinou-se para sussurrar, e suas feições já suplicavam. ‘Dê-me mais uma noite’, disse. ‘Não tentarei escapar. Quero apenas ter mais uma noite aqui, no Lago da Águia’. Era um sentimental, compreenda. Respondi que lhe daria tempo até o cair da noite.
— Por que até o cair da noite? Por que dar-lhe qualquer tempo?
— Bem, talvez pareça engraçado, mas eu queria dar a ele algum tempo para pensar, enquanto ainda era um homem livre. Apenas nós dois sabíamos o que ele havia feito, o que mudava tudo para ambos. Se eu lhe desse apenas uma ou duas horas antes do anoitecer, podia ter certeza de que ele não escaparia quando fosse noite fechada. Eu pretendia manter sua casa sob vigilância, é claro. Assim, concordei. Saí do clube e voltei para casa, corri até meu atracadouro, desatei meu barco e comecei a cruzar o lago. Pensei que meu pequeno motor de popa conseguiria levar-me ao atracadouro de Goetz, antes que ele chegasse em casa. Quando me encontrava na metade do lago, alguém disparou uma arma contra mim.
Tom abriu a boca, surpreso, imaginando-se no meio de um lago, enquanto Anton Goetz usava um rifle contra ele.
— O tiro acertou a água, a trinta centímetros do barco. Amaldiçoei-me por deixá-lo à solta e estirei-me no fundo do barco, encharcando as roupas. Um segundo depois houve outro tiro, este atingindo a lateral do barco e varando o fundo, três centímetros acima de minha cabeça. Encolhi-me para trás, sem ousar erguer a cabeça, por mais um ou dois minutos. Fiquei girando e girando, em um enorme círculo. Finalmente ganhei coragem, levantei a cabeça e consegui dirigir o barco para o ancoradouro de Goetz, enquanto continuava mais ou menos deitado no fundo. No ancora-douro, desliguei o motor e saltei — o barco já tinha um quarto de água em seu interior, e eu o deixei lá, para que terminasse de encher-se e afundasse. Corri para a casa, sabendo que agira como um maldito tolo — ele não apenas quase me matara, mas evidentemente dera um jeito de escapar. Eu tinha de admitir o que havia feito e convencer a polícia a iniciar a busca. Entretanto, quando chegasse a um telefone, Goetz já estaria a trinta quilômetros dali.
“Acontece que ele não tinha ido a lugar algum. Sua porta estava escancarada. Irrompi por ela e atirei-me ao chão, para o caso de ele estar à minha espera. Então, ouvi algo pingando no piso de madeira. Ergui os olhos e o vi. Estava pendendo de uma das vigas da sala de estar; passara pelo pescoço um pedaço de fortíssima linha de pescaria, que quase lhe cortara a cabeça fora.
— Ele poderia ter matado o senhor! — exclamou Tom.
— O curioso é que nem mesmo roubara o Colt de Arthur Thielman. O revólver jazia sobre uma mesa ao ar livre, perto do atracadouro dos Thielmans, na noite em que Goetz pensou que fugiria com Jeanine. Quando ela lhe disse que não tinha intenção de abandonar o marido e se virou, a fim de caminhar para a casa, ele pegou o revólver e a baleou na cabeça. No dia seguinte, decidiu que poderia pôr a culpa em Minor Truehart e, após a esposa de Truehart ir da casa dele para seu outro trabalho, Goetz internou-se na floresta, meio embriagado, foi até a cabana deles e jogou a arma debaixo da cama. Arthur Thielman era descuidado com tudo, incluindo-se sua esposa e suas armas.
— Então, quem atirou no senhor? Devia ter sido Goetz!
O sr. von Heilitz sorriu para Tom, depois entrelaçou os dedos na nuca e bocejou.
— A cabana de seu avô ficava cerca de quarenta metros à esquerda da dos Thielmans. À mesma distância aproximada para a direita, na direção do clube, ficavam os limites do complexo Redwing. Isto foi apenas um ano depois que descobri o assassino de meus pais, tendo ele falado à vontade sobre a corrupção em Mill Walk. Naturalmente, poderia ter sido Goetz. Ele atiraria em mim, jogaria o rifle no lago e depois se enforcaria. Entretanto, Goetz era bom atirador — a pelo menos dez metros de distância matara Jeanine, com uma arma que se desviava bastante para a esquerda.
Ele virou a página seguinte do livro de recortes. Mistério esclarecido em tragédia, dizia a manchete no topo da Gazeta do Lago da Águia. Dois artigos de uma coluna, lado a lado, tinham os títulos Guia Truehart liberado para chorosa esposa e filhos e O Sombra ataca outra vez! No meio da página, uma foto ocupando duas colunas mostrava um homem extraordinariamente atraente, de olhos claros e bem distanciados entre si, com um escuro bigodinho de gigolô, acima da legenda: O assassino Anton Goetz confessou o crime ao detetive particular, minutos antes de seu terrível suicídio. Ao lado desta, havia outra foto menor, de um rapaz jovem e esguio, usando um paletó Norfolk e uma camisa pregueada, de colarinho aberto. O rapaz parecia desejar que o fotógrafo virasse sua câmera para algum objetivo mais bem disposto. A legenda abaixo desta foto dizia: O detetive amador von Heilitz, de 25 anos, conhecido como “O Sombra”, procura evitar publicidade. Tom contemplou a foto do rapaz que seu vizinho tinha sido, novamente tomado pela sensação de sonhadora familiaridade que a página despertava. Mistério. Esclarecido. Tragédia. Ligada a estas palavras, como a tantas coisas de sua infância, erguia-se a imagem de sua mãe, fechada na própria e circundante infelicidade.
O jovem Lamont von Heilitz usara o cabelo mais curto, embora não tanto como era a moda na Escola Brooks-Lowood, no final dos anos cinqüenta, mas os malares altos, o rosto magro e inteligente de falcão eram os mesmos. Diferente era o senso de nervos retesados, de tensão, irradiando-se do rosto e da postura do rapaz: ele parecia um sismógrafo humano, uma pessoa cuja extraordinária sensibilidade transformava muito da rotineira vida diária em assunto quase insuportável.
Tom ergueu os olhos para o rosto mais velho, fitando-o afetuosamente do outro lado do volumoso livro, e foi como se ele lhe houvesse fornecido alguma pista enigmática sobre sua própria vida — algum insight que quase chegara a captar.
— Se quiser, posso emprestar-lhe isso — disse von Heilitz. — Ficamos bastante tempo juntos, porém a maioria foi gasta com você sendo polido e eu entregando-me a antigas recordações. Da próxima vez, você é que irá falar.
Von Heilitz fechou o antigo volume, ergueu-o com as duas mãos e o ofereceu a Tom, que o recebeu alegremente.
Os dois caminharam para a porta, por entre os corredores da sala apinhada. Tom ainda tinha uma pergunta, que fez quando von Heilitz abriu a porta da frente de sua casa.
Diante dele, jazia o mundo familiar da Estrada Litorânea do Leste, quase uma surpresa: Tom ficara tão absorto com a história de Jeanine Thielman e Anton Goetz que, sem saber, quase chegara a esperar ver uma estrelada floresta de pinheiros da Noruega e frondosos carvalhos além da porta, um amplo lago azul e trilhas entre enormes construções, “cabanas” com varandas e balcões.
— Sabe de uma coisa? — disse Tom, percebendo que, afinal de contas, não fazia uma pergunta. — Não creio que “O Sombra” estivesse no rádio em 1925. Aposto que deram esse nome ao programa por sua causa.
Lamont von Heilitz sorriu e fechou a porta. Tom olhou para seu relógio. Quase 11 da noite. Ele seguiu para casa, cruzando a rua em meio à escuridão.
Sem ter idéia de que havia começado uma nova era em sua vida, Tom ficou na cama até uma da madrugada, folheando o grosso livro de recortes de von Heilitz. Cada página era coberta por colunas impressas de diferentes jornais. Havia manchetes de Nova Orleãs, da Califórnia, de Chicago e Seattle. Por vezes, os artigos referiam-se ao assassinato de pessoas importantes, em outras, ao de prostitutas, jogadores, andarilhos sem lar. Entremeados aos artigos, havia telegramas enviados a Lamont von Heilitz, da Estrada Litorânea do Leste, Mill Walk.
Desejo Contratar seus Serviços Assunto de Grande Delicadeza e Importância Ponto
Meu Marido Injustamente Colocado Sob Suspeita Ponto Suplico Sua Ajuda Para Ele Ponto o Senhor e Minha Ultima Esperança Ponto
Se For Tão Bom Quanto as Pessoas Dizem Precisamos do Senhor com Rapidez Ponto
Tom olhou para fotos de seu vizinho em recortes de jornais da Louisiana, Texas e Maine — neste último, ele tinha o braço engessado e na tipóia. O rosto abatido parecia tão branco como a tipóia, inteiramente em desacordo com a legenda triunfante. Famoso detetive desmascara e mata assassino do celeiro vermelho.
As manchetes de todas aquelas metrópoles e cidadezinhas celebravam suas vitórias. O Sombra Triunfa Onde a Polícia Falha. Von Heilitz Desvenda Antigo Segredo e Revela Assassino. Cidade Comemora Vitória de O Sombra com Banquete. E ali estava o jovem Lamont von Heilitz, impecável e empertigado como nunca, olhando diretamente para a frente, com um leve sorriso, enquanto cem homens em compridas mesas saboreavam carne de alce e porco assado, acompanhando-se de garrafas de champanha. Ele conseguira evitar os fotógrafos em todas as ocasiões, exceto duas, nas quais olhava para a câmera como se ela fosse um pelotão de fuzilamento. Von Heilitz capturara ou revelara a identidade do Estrangulador da Beira da Estrada, do Louco de Deep River, do Matador da Rosa de Sharon e do Terror da Rota Oito. O Envenenador do Vale do Hudson se revelara como um jovem farmacêutico de expressão de poeta, com sentimentos complexos sobre as seis jovens às quais propusera casamento. A Viúva Alegre, cujos quatro maridos endinheirados haviam sofrido acidentes domésticos era, ficou-se sabendo, uma mulher corpulenta e feiosa na casa dos sessenta, sem nada que a tornasse notada, exceto por ter um olho castanho e outro azul. Um ginecologista da Park Avenue, chamado Luther Nelson, era o assassino que tinha escrito para The New York Times, identificando-se como “Neto de Jack, o Estripador”. O Monstro do Pátio de Estacionamento, de Cleveland, Ohio, havia sido um certo Horace M. Fetherstone, pai de nove filhas e gerente regional da Companhia de Cartões de Cumprimentos Corações Felizes. Em todos esses casos, Lamont von Heilitz, “o renomado detetive e consultor amador, residente na ilha de Mill Walk”, tinha “oferecido uma ajuda inestimável à polícia local” ou “auxiliara no fornecimento de provas” ou “através do uso de brilhante raciocínio, apresentara uma teoria coerente sobre a verdadeira natureza e causa dos desnorteantes crimes” — em outras palavras, fizera o trabalho da polícia... para a polícia.
Os casos sucediam-se, página após página. O sr. von Heilitz trabalhara incessantemente pelo final dos anos vinte e durante os anos trinta. A certa altura de fins dos anos trinta, alguns dos relatos jornalísticos começaram a referir-se a ele como “a réplica na vida real do mais famoso detetive ficcional do rádio, O Sombra”. Ele se acomodara em quartos de hotel, bibliotecas e redações de jornais em que efetuava pesquisas. A última foto do detetive contida no livro era acompanhada de um artigo do St. Louis Post-Dispatch, intitulado famoso e excêntrico detetive caminha sobre livros não em calçadas, e mostrava um homem de cabelos ficando grisalhos, sentado a uma secretária e enterrado sob pilhas de jornais, blocos de anotações e caixas de documentos. Excetuando-se as luvas nas mãos, a excelência de seu terno e o costumeiro ar de distinção, ele parecia um professor de ginásio sobrecarregado de trabalho.
O Sombra partira abruptamente de St. Louis, após solucionar os assassinatos de um cervejeiro e sua esposa, recusando-se a conceder mais entrevistas. (Do Post-Dispatch: após vitória dedutiva, excêntrico detetive consegue escapar.) O fluxo de recortes continuava depois disso, mas contendo bem menos referências ao detetive. Em Boulder, Colorado, o assassino de um conhecido novelista fora revelado como o agente literário local, enfurecido porque seu mais lucrativo cliente pretendia transferir-se para uma firma de Nova Iorque; a polícia de Boulder valorizava a orientação de um “suposto amador do crime”, que os ajudara na identificação do criminoso. Obviamente, Lamont von Heilitz escondia-se por trás daquelas palavras, e Tom viu seu vizinho na “fonte anônima” que ajudara a polícia, quando um astro de cinema havia sido morto a tiros, em seu dormitório em Los Angeles; ele era também o “cidadão preocupado” que surgira em Albany, Geórgia, para auxiliar a polícia quando toda uma família fora encontrada morta em um parque da cidade.
Em 1945, uma carta de “um amador especializado no crime, que deseja preservar seu anonimato”, forneceu à polícia de Knoxville os dados necessários à prisão de um excelente aluno local, pelo assassinato de três colegas de classe.
Após 1945, todos os recortes eram desta espécie. Von Heilitz recusava qualquer convite para dar assistência a particulares ou à polícia, preferindo apenas seguir relatos de jornais sobre casos que lhe despertassem o interesse e resolvendo-os a longa distância. Telegramas e cartas solicitavam sua ajuda — Prezado sr. von Heilitz, creio ser também um detetive, uma vez que lhe segui a pista até seu esconderijo da ilha... — haviam sido marcados com “Sem resposta” e colados ao livro. Quando se interessava por um caso, como aconteceu com a Ameaça do Vale do Rio Fox, a Fera da Alameda dos Namorados e o Matador Tatuado, ele fazia assinatura dos jornais da comunidade e escrevia à polícia local. “Há alguém em algum lugar que gosta de nós”, declarou o Chefe de Polícia Austin Beer, de Grand Forks, Nebraska, após prender uma mulher idosa que matara duas crianças matriculadas em uma escola maternal que ficava diante de sua casa, no outro lado da rua. “Certo dia, recebemos uma carta que colocou a situação sob um outro prisma. Não provinha de lugar algum das proximidades, mas posso afirmar-lhe que este indivíduo sabia tudo a nosso respeito — analisando transferências de propriedades a partir de anos passados, descobriu que a sra. Rupper tinha rancor das famílias dessas crianças. A carta que recebemos colocou-nos no caminho certo. Não me incomodo de afirmar que tudo isto faz com que acreditemos na bondade alheia.” O chefe Beers acrescentava que a carta tinha sido assinada apenas com as iniciais LVH, que ficaram sem identificação. Vinte anos após o auge da fama do detetive, “O Sombra” era Lamont Cranston, não Lamont von Heilitz.
Então, também estes casos foram diminuindo no grosso volume. As páginas finais a princípio deixaram Tom confuso, porque nada continham semelhante à seqüência de casos, às soluções brotando de provas cuidadosamente compiladas, que compunham o restante do diário. Todo ele parecia indicar um progresso para a invisibilidade, enquanto o detetive passava da proeminência para o anonimato; nas últimas páginas, até mesmo os casos pareciam ter desaparecido. O foco se concentrava inteiramente em Mill Walk, e os recortes provinham das páginas do Eyewitness, mas bem poucos relacionados a qualquer crime óbvio. Tom perguntou-se se o sr. von Heilitz se limitara a recortar histórias ao acaso, buscando um padrão tão invisível como ele próprio se tornara, porque nenhum existia.
O senso de deslocamento inicial de Tom foi explicado apenas parcialmente por uma singular distorção da cronologia do jornal — o amontoado de recortes sobre Mill Walk remontava aos anos vinte. Entre eles, havia artigos a respeito do final da construção do Hospital Shady Mount, “um centro médico”, nas palavras de Maxwell Redwing, seu primeiro diretor, “nivelado aos melhores do mundo”. Uma fileira de cidadãos de Mill Walk posava diante da entrada principal do Shady Mount. Eram os membros de sua primeira junta diretora. Dois rostos familiares olhavam gravemente da foto para ele. O dr. Bonaventure Milton, já mostrando indícios da futura papada e parecendo extremamente satisfeito com suas conquistas, vestia-se como um primeiro-ministro do século XIX: fraque, colete de cetim listrado e gravata-borboleta. E entre o baixote e rotundo Maxwell Redwing e o pomposo inexplicavelmente bem-sucedido dr. Milton, irradiando poder e retidão, agigantava-se o avô de Tom.
Tom experimentou a mistura de respeito, medo e reverência, que Glendenning Upshaw sempre lhe inspirara. O rosto largo e autoritário de seu avô encarava firmemente o fotógrafo, desafiando o mundo inteiro a negar que o hospital as suas costas fosse o máximo que tinha para exibir. Nos anos trinta, ele acabara de fundar a Construtora Mill Walk, e seu vigoroso corpo taurino parecia ainda mais forte do que nas antigas fotos que pendiam das salas da Brooks-Lowood, tiradas na época em que Glen Upshaw havia sido o Aluno Importante da escola e capitão do time de futebol. “Destinado a atender às necessidades médicas de nossa ilha”, dizia a legenda, embora, na prática, o Shady Mount houvesse preferido atender somente às necessidades dos que residiam na extremidade leste da ilha. O Shady Mount relegara os cidadãos carentes de Mill Walk aos cuidados do St. Mary Nieves, um hospital menos em moda e localizado no extremo oeste. Na foto acima da otimista legenda, Glendenning Upshaw usava um dos pesados ternos pretos que adotara após a morte da esposa, muito antes do nascimento de Tom. Sua enorme mão esquerda aferrava a cabeça de leão, que era o castão de sua marca registrada, o guarda-chuva com o panejamento frouxo. Na mão direita, segurava o chapéu preto.
Qualquer outro homem que se trajasse invariavelmente de preto, refletiu Tom, que sempre usasse uma camisa branca engomada, gravata e chapéu pretos, além de um guarda-chuva frouxo, ficaria tão parecido a um sacerdote, que na rua os estranhos o chamariam de “Padre”. No entanto, Glen Upshaw jamais ficara com aparência sacerdotal. Assemelhava-se mais a uma caixa-forte de banco ou a algum intimidativo edifício público, e ao seu redor, como uma nuvem, pairava a aura do mundo, do dinheiro e aposentos luxuosos, de camarotes de primeira classe em transatlânticos e de enormes, custosos apetites, saciados atrás de portas fechadas. Ele fazia com que todos os outros homens da foto parecessem insignificantes.
Tom virou a página.
Ali havia mais caos. Chegadas de navios e festas da sociedade, obituários — o juiz Morton Backer havia falecido, e Tom fitou o nome, até recordar ter sido ele o homem que vendera a Arthur Thielman o revólver Colt de cano longo, com o qual Jeanine Thielman havia sido assassinada. Compromissos governamentais, eleições de muito tempo atrás, promoções em negócios, anúncios de casamento. A Construtora Mill Walk edificara um hospital de quinhentos leitos, em Miami. Aqui estavam seus próprios pais, Victor Pasmore e Glória Ross Upshaw, entre uma dúzia de outros residentes no litoral leste, de sua idade e estatura social. Garden parties, lawn parties* festas de Natal e Ano Novo, bailes em clubes campestres.
* Reunião social formal em um gramado ou jardim, geralmente à tarde. (N. da T.)
Então, seus olhos se moveram para uma outra foto, esta já vista antes. Era de sua mãe, com vinte e poucos anos, esplendidamente trajada, descendo de uma carruagem quando chegava ao Clube dos Fundadores, para um baile benemerente. A fotografia de Jeanine Thielman o fizera recordar esta. A pose era idêntica, uma loura atraente, descendo de uma carruagem, com uma perna longa, elegante, projetando-se de um turbilhão de vestes. Glória Upshaw Pasmore também parecia fazer uma careta, em vez de sorrir, porém era 15 anos mais jovem do que Jeanine Thielman, menos coberta de jóias, absolutamente menos untuosa. Em vista do contraste com a foto da mulher assassinada, Tom decidiu que, mesmo então, sua mãe parecia vulnerável. Vagamente visível logo atrás dela, inclinando-se para ajudá-la a descer da carruagem, estava seu pai, cujo smoking o deixava como que fundido à escuridão do interior.
Lamont von Heilitz seguira os eventos mais triviais da vida de Mill Walk, na esperança de que um dia, um nome aqui, uma data acolá, poderiam interrelacionar-se, levando-o a uma conclusão. Ele havia lançado suas redes dia após dia, tendo recolhido aqueles peixinhos diminutos. As últimas dez páginas do grande livro de recortes eram uma coleção de fatos, nada mais.
Vários nomes prenderam-lhe a atenção. Maxwell Redwing e família foram à África, em safari, retornando intatos. O filho de Maxwell, Ralph, anunciava que, como seu pai, não nutria ambições políticas e dedicaria energias “à esfera privada, onde há tanto precisando ser feito”. Ele clamava que “todos os meus esforços serão voltados para a melhora da qualidade de vida em nossa amada ilha”. A Companhia de Valores Mobiliários Redwing fizera uma bem-sucedida oferta para a compra da mansão Backer, conhecida como “As Palmeiras”, situada em uma área de Mill Key, que agora se encontrava demasiado próxima do crescente centro da cidade e do distrito comercial para ser considerada em moda, renovara seus encanamentos, reformara-a e então a vendera à família Pforzheimer, para usá-la como hotel de luxo.
Maxwell Redwing afastara-se da presidência da Companhia de Valores Mobiliários, indicando seu filho Ralph como o novo membro principal da firma.
Um homem chamado Wendell Hasek, guarda de segurança noturno da Construtora Mill Walk, havia sido ferido em um assalto em que ficara perdido o dinheiro para pagamento dos funcionários, tendo sido aposentado com salário integral até o fim da vida. Tom esforçou-se para recordar onde ouvira o nome antes, e então lembrou-se: Hasek havia sido o valete e motorista do juiz Backer; fora ele que havia falado ao sr. von Heilitz sobre a venda de um Colt.
Dois dias mais tarde, os ladrões do banco foram mortos em uma troca de tiros com a polícia, nas ruas do antigo alojamento de escravos, porém nada foi recuperado do dinheiro roubado, uma quantia avaliada em mais de trinta mil dólares.
A Construtora Mill Walk anunciava planos para um enorme conjunto habitacional na extremidade oeste da ilha, perto da Enseada do Olmo.
Dois dias após vender sua própria companhia construtora à Construtora Mill Walk, Arthur Thielman faleceu enquanto dormia, atendido por sua família e pelo dr. Bonaventure Milton.
O juiz Backer, Wendell Hasek, Maxwell Redwing e Arthur Thielman — Tom finalmente compreendeu. O sr. von Heilitz nada mais fazia do que acompanhar a carreira daqueles que haviam estado envolvidos no assassinato de Jeanine Thielman, no Lago da Águia. Aquele caso, ainda mais do que a solução da morte de seus pais, determinara o resto de sua vida. Ele passara a viver o que se transformara em vinte anos de proeminência e atividade, por causa disso; de certa maneira, recordou Tom, von Heilitz despontara plenamente para a vida no Lago da Águia. Portanto, não era de surpreender que nunca se houvesse realmente desligado do caso.
Tom se despiu, apagou a luz e foi para a cama, decidido a interrogar seu avô sobre Lamont von Heilitz e os tempos antigos em Mill Walk. Era um pensamento estranho — seu avô e o Sombra deviam ter crescido juntos.
O CLUBE DOS FUNDADORES
Em Mill Walk, as cartas enviadas diretamente pelas agências dos correios, em geral, chegavam no mesmo dia, enquanto que a correspondência depositada nas caixas dos correios à noite sempre chegava no dia seguinte. Tom disse para si mesmo que nada aconteceria no dia em que o capitão Bishop recebesse sua carta, que se passaria uma semana ou mais, antes que a polícia agisse ou liberasse qualquer informação sobre o assassinato de Marita Hasselgard. E porque este era um sábado, sempre era possível que sua carta só chegasse à mesa de Fulton Bishop na segunda-feira seguinte. Nos fins de semana, tudo marchava com mais vagar. E se a carta chegasse à Central de Polícia na segunda-feira, talvez permanecesse metade do dia na sala de correspondência, antes de ser entregue no gabinete de Bishop. E talvez Bishop folgasse nos sábados ou só examinasse sua correspondência ao anoitecer...
— Sabe o que eu penso? — disse seu pai. — Acorde, estou falando com você!
A cabeça de Tom se ergueu em um gesto brusco. No outro lado da mesa do café da manhã, Victor Pasmore o encarava com inusitada intensidade. Tom nem mesmo ouvira o pai entrar na cozinha. Agora, ele se debruçava sobre o encosto da cadeira, espiando enquanto o filho usava alheadamente o garfo para rodar pelo prato os ovos que fritara para si mesmo. Como muitos bebedores inveterados, Victor era praticamente imune a ressacas, e a maneira como agora olhava para Tom era francamente confidencial, quase paternal, de um modo bem raro nele.
— Divertiu-se bastante à noite passada? Com a garota Spence?
— Sim, bastante.
Victor puxou a cadeira e sentou-se.
— Os Spences são boa gente. Gente muito boa mesmo.
Tom procurou recordar se vira recortes sobre os pais de Sarah no livro de von Heilitz, e decidiu que não vira. Recordou outra coisa e, em um impulso, interrogou o pai a respeito.
Você sabe alguma coisa sobre o homem que construiu aquela casa?
A expressão de Victor se tornou de confusa impaciência.
— Fala do sujeito que construiu a casa dos Spences? Ora, isso é pura perda de tempo.
— Certo, mas você recorda alguma coisa sobre ele?
— Cristo, o que você é, algum arqueólogo? — Victor procurou acalmar-se visivelmente e prosseguiu, em voz mais branda: — Acho que foi um alemão. Aconteceu antes do meu tempo, ele queria deixar todo mundo de olhos esbugalhados, e conseguiu, se conseguiu! O cara era um verdadeiro vigarista, creio eu. Meteu-se em enrascadas, lá no norte, e nunca mais ninguém o viu.
— Por que isto é uma perda de tempo?
Victor inclinou-se para diante, sua impaciência lutando com a vontade de partilhar uma confidência.
— Tudo bem, se quer mesmo saber, eu lhe direi. Você olha para aquela casa, e o que vê? Vê dólares e centavos. Montanhas de dólares e centavos. Bill Spence começou como contador, com seu avô, fez alguns bons investimentos e chegou aonde está hoje. Não interessa mais quem construiu aquela casa.
— Você não sabe nada sobre ele? — perguntou Tom.
— Não! — gritou Victor. — Você não está me escutando! Estou querendo dizer-lhe algo. Escute, está tudo ligado ao que pretendia dizer-lhe. Já pensou no que vai fazer, depois de Tulane?
— Ainda não — disse Tom, começando a ficar mais tenso que de costume.
Tinha ficado decidido que ele cursaria Tulane, a faculdade de seu avô, após diplomar-se.
— Pois então, ouça-me. Meu conselho é: pense em oportunidades de negócios — ir embora e começar vida nova, fazer sua própria vida. Não fique enterrado nesta ilha como fiquei! -Victor interrompeu-se, após esse surpreendente comentário, depois baixou os olhos para a mesa, antes de continuar. — Seu avô está querendo ajudá-lo a começar.
— No continente — disse Tom.
Quando olhava para o futuro, via apenas um aterrorizante abismo. O conselho do pai parecia dirigido a um tipo de pessoa totalmente diferente, alguém que saberia entender o que era uma oportunidade de negócios.
— Seu futuro não está aqui — disse Victor. — Você pode ter uma vida inteiramente nova — acrescentou, olhando através da mesa, como se tivesse muito mais para dizer.
— Como foi que você começou?
— Glen ajudou-me. — A revelação foi feita em um tom de voz monótono, rabugento, isto significando que a conversa essencialmente atingira um final. Victor Pasmore afastou os olhos do filho, a fim de espiar pela janela da cozinha. Lá fora, ao sol quente, buquês de buganvílias cor de púrpura, pesados demais para os galhos, pendiam sobre a parede branca da varanda. — Justamente como quando você esteve doente, quero dizer, depois que sofreu o acidente. Glen pagou enfermeiras, os professores particulares, um monte de coisas assim. Você tem que ser grato ao velho.
Para Tom. não ficou claro se Victor Pasmore falava a respeito de si mesmo ou dele, seu filho. A gratidão parecia uma obrigação pesada, que devia ser paga interminavelmente. Seu pai desviou os olhos da janela, barbado, como sempre acontecia nos fins de semana, vestindo uma inconvincente camisa esporte.
— Estou apenas querendo fazê-lo agir com sensatez — disse. — Evitar que cometa erros. Acha que ainda é muito cedo para um drinque?
Seu pai ergueu as sobrancelhas espessas e repuxou os cantos da boca, em uma careta cômica. A idéia de tomar um drinque já o deixava com melhor disposição de ânimo.
— Pense no que lhe falei. Não se tome... oh, você sabe. — Levantando-se, Victor caminhou para o gabinete das bebidas. — Algo brando, acho eu — disse, porém não estava mais falando com Tom.
Tom passou o resto do dia caminhando pela casa, incapaz de descansar por mais de meia hora. Leu algumas páginas de uma novela, mas continuava divagando entre as frases — as palavras emaranhavam-se em um borrão generalizado, enquanto ele imaginava um policial uniformizado lançando seu envelope sobre a mesa de Fulton Bishop, e Fulton Bishop olhando de relance para o envelope, apanhando-o ou ignorando-o...
Foi com o livro para a sala de estar. Do outro lado da escada vinham os gritos e rugidos de um jogo dos Yankees, estrondeando confusamente da televisão no estúdio, onde Victor Pasmore amara em sua poltrona. Como gladiadores, os que torciam no estádio sempre faziam uma incrível barulheira. As janelas da frente emolduravam a grande casa cinzenta de Lamont von Heilitz. Teria o pai de von Heilitz aconselhado o filho a começar a pensar nas oportunidades de negócios? Tom levantou-se de um salto, andou duas vezes em torno da sala de estar, desejando que o jogo terminasse, a fim de que pudesse ligar a televisão na estação de Mill Walk e aguardar o noticiário. Naturalmente, nada haveria no noticiário. Bazares nas igrejas para a venda de bolos e outros assados, os escores dos times da Liga Juvenil local, o anúncio da construção de um novo edifício-garagem... Tom subiu a escada e foi a seu quarto. De joelhos, espiou debaixo da cama. O livro encadernado em couro continuava lá, onde o deixara. Ouviu o engate do fecho na porta do quarto de seus pais sendo aberto e ficou em pé, quase tomado por um sentimento de culpa. As pisadas de sua mãe começaram a descer os primeiros degraus. Tom saiu do quarto e foi atrás dela.
Encontrou-a na cozinha, parecendo desanimada ante os pratos na pia e as latas vazias de cerveja que o marido deixara na mesa. Ela havia escovado os cabelos e usava uma comprida camisola de cetim cor de pêssego, com um casaquinho de quarto combinando, assim fazendo o que parecia um compromisso entre roupas de baixo e vestido.
— Eu lavo os pratos, mamãe — disse ele.
Quase pela primeira vez, percebia que, apesar das incertezas e enigmas de sua vida, por vezes os pais lhe davam a impressão de serem filhos seus. Glória pareceu, por um momento, absolutamente confusa sobre o que fazer em seguida. Caminhou em passos incertos até a mesa.
— Você está bem? — perguntou ele.
— Estou ótima — respondeu ela, em voz tão empastada quanto seu rosto.
Tom foi até a pia e abriu a torneira de água quente. Atrás dele, Glória movimentava-se na cozinha, lidando com uma chaleira, tilintando xícaras, abrindo uma caixa de chá. Ela parecia mover-se com extrema lentidão, fazendo-o pensar que o espiava, enquanto ocupado com a pilha de pratos sujos. Ouviu-a despejar água quente na xícara e tornar a sentar-se, com um suspiro. Então, não suportando mais o silêncio, disse:
— O sr. Handley convidou-me ontem a ir até sua casa, depois das aulas. Queria mostrar-me alguns livros raros. No entanto, achei que ele desejava mesmo era falar comigo.
Ela emitiu algum som indistinto.
— Pensei que você tinha pedido a ele que falasse comigo. Por causa do meu álbum de recortes. — Ele ficou de costas para a pia. Sua mãe se debruçara sobre a xícara de chá, os cabelos reluzentes pendendo como cortina, diante do rosto. — Não há nada para preocupar-se, mamãe.
— Onde é que ele mora? — A pergunta parecia entediá-la, mas era como se tivesse que preencher um espaço no diálogo.
— Perto do Parque Goethe, mas não fomos até sua casa.
Ela jogou o cabelo para trás e o encarou com firmeza.
— Eu fiquei enjoado... zonzo. Não podia continuar mais. Então, ele me trouxe para casa.
— Você esteve lá, na Rua Burleigh?
Ele assentiu.
— Foi onde sofreu seu acidente. Creio que... que sabe disso. Recordações desagradáveis.
Ela aceitou o sobressalto do filho — Tom quase deixou cair o prato que enxugava — com uma expressão de taciturna confirmação.
— Não pense que coisas assim ficam esquecidas. Eu lhe digo que não ficam. — Ela tornou a suspirar, pareceu trêmula.
Segurou a xícara de chá quente, inclinando-se tanto para ela, que a luzente cortina de cabelo tornou a cair, ocultando-lhe o rosto. Tom experimentava a sensação de que o insight lançado casualmente por ela em seu caminho o deixara sem respiração no corpo. Teve um rápido, misterioso relance mental de uma mulher velha e gorda gritando “Garoto vadio!” para ele, e sabia que de fato a vira, no dia de seu acidente. O mundo se rachara para permitir-lhe uma espiada abaixo de sua crosta, tornando a fechar-se em seguida. Abaixo da superfície havia uma velha irada sacudindo o punho fechado para ele — e o que mais?
Um instante antes de perceber que sua mãe chorava, ele captou o distante, penetrante odor daquele dia, a sensação de urgência, de impulsão. Então, viu que a mãe se retraíra ainda mais para dentro de si mesma e que os ombros dela sacudiam-se.
Tom enxugou as mãos nas calças e aproximou-se dela. Glória chorava silenciosamente e, quando ele chegou perto, ela levou o guardanapo aos olhos, forçou-se a ficar imóvel.
A mão de Tom pousou sobre a nuca da mãe; ele não saberia dizer se ela permitiria que a tocasse. Por fim, deixou que a mão descesse maciamente pelo pescoço dela.
— Lamento tanto o que aconteceu a você! — suspirou ela. — Penso que sempre me acusará, não?
— Acusá-la? Eu?
Tom puxou uma cadeira próxima e sentou-se perto da mãe. Um formigamento percorreu-lhe o corpo, ao compreender que, de fato, Glória estava falando com ele.
— Você não poderia dizer que fui uma grande mãe. — Glória enxugou os olhos com o guardanapo e dirigiu ao filho um olhar tão impregnado de pesar que, momentaneamente, pareceu outra pessoa muito diversa: uma pessoa que ele raramente via, a mãe que de fato estava presente de quando em quando, que o enxergava, porque podia enxergar além de si mesma. — Jamais quis que alguma coisa de ruim acontecesse a você, mas não pude protegê-lo, e você quase morreu!
Glória deixou o guardanapo cair em seu colo.
— Nada do que aconteceu foi culpa sua — disse Tom. — E, afinal de contas, isso foi há muito tempo atrás.
— Pensa que faz alguma diferença? — Glória agora parecia ligeiramente irritada com ele. Tom sentiu que o foco se movera para além dele, e a pessoa que ela poderia ter sido começou a desaparecer-lhe das feições. Então, percebeu-a esforçando-se para uma concentração. — Lembro-me de quando você era pequenino — disse ela, e chegou a sorrir para o filho. As mãos de Glória continuaram imóveis. — Era uma criança tão bonita, que às vezes eu chorava, só de contemplá-lo... não conseguia deixar de olhar para você... por vezes, pensava que ia derreter, olhando para você. Era perfeito... você era o meu filho — Glória estendeu a mão devagar, tocou a dele quase timidamente. Depois afastou-a. — Eu me sentia tão incrivelmente feliz em ser sua mãe!
A expressão no rosto dele a fez desviar os olhos e adquirir um momento de autocontrole, bebericando seu chá. Tom não lhe via o rosto.
— Oh, mamãe! — exclamou ele.
— Apenas, não esqueça que lhe disse isto — falou ela. — É a verdade. Eu odeio ser do jeito que sou.
O que ele precisava, e como estava carente, fez com que se inclinasse para a mãe, esperando que ela o abraçasse ou pelo menos voltasse a tocá-lo. O corpo dela parecia rígido, quase irado, mas Tom achou que a mãe não estaria zangada agora.
— Mãe?
Ela virou a cabeça de banda, mostrando a ele o rosto desfeito. O cabelo lhe cruzava a face, uma mecha pendia do lábio. Ela parecia um oráculo, e Tom ficou gélido, ante o significado do que quer que sua mãe se preparava para dizer. Então, ela pestanejou.
— Quer saber mais uma coisa?
Ele não podia mover-se.
— Fico feliz por você não ser mulher — disse ela. — Se eu tivesse uma filha, afogaria a cachorrinha!
Tom ficou em pé tão rapidamente, que quase derrubou a cadeira. Segundos depois, estava fora da cozinha.
Aquele dia arrastou-se. Glória Pasmore passou a tarde em seu quarto, ouvindo seus discos antigos — Benny Goodman, Count Basie, Duke Ellington, Glenroy Breakstone e os Targets — deitada na cama de olhos fechados e fumando um cigarro atrás do outro. Victor Pasmore só saiu de frente da televisão para ir ao banheiro. Por volta de quatro e meia, ferrou no sono e ficou recostado em sua poltrona, de boca aberta e roncando, diante de mais um jogo de beisebol. Tom sentou-se em outra poltrona e, durante meia hora, viu homens cujos nomes ignorava, marcando pontos incessantemente contra a equipe adversária. Perguntou-se o que Sarah Spence estaria fazendo, assim como o que estaria fazendo o sr. von Heilitz, por trás de suas veladas cortinas.
Às cinco horas, levantou-se e trocou de canal para o noticiário local. Victor espreguiçou-se e piscou em sua poltrona, acordando o suficiente para pegar o copo de líquido amarelado, na mesinha ao seu lado.
— Como foi o jogo?
— Podemos ver o noticiário?
Victor engoliu um uísque com água já morno, grunhiu para o sabor e fechou os olhos novamente. Houve um barulhento tema musical e um comercial ainda mais ruidoso sobre terras junto ao Lago do Vale Profundo, que era “outro Lago da Águia, somente a três quilômetros de distância e duas vezes mais acessível ao bolso!”
O pai de Tom roncou, em afável desdém.
Um homem de cabelos louros curtos e óculos de aros grossos sorriu para a câmera e disse:
— “Podem estar acontecendo fatos que mudem inteiramente a direção do mais chocante assassinato ocorrido na ilha em décadas, isto é, a morte de Marita Hasselgard, única irmã do ministro das Finanças Friedrich Hasselgard, que também consta do noticiário de hoje.”
— Ei! — exclamou Tom, sentando-se ereto na poltrona.
— “O capitão de Polícia Fulton Bishop revelou hoje que uma fonte anônima forneceu à polícia valiosas informações referentes ao paradeiro do assassino da srta. Hasselgard. Segundo disse o capitão Bishop aos nossos repórteres, Foxhall Edwardes, o assassino de Marita Hasselgard foi recentemente liberado da Casa de Detenção de Long Bay, sendo um costumeiro transgressor da lei. O sr. Edwardes deixou Long Bay um dia antes do assassinato da srta. Hasselgard.”
A foto de um homem soturno, de rosto largo e cabelos curtos muito crespos, foi em seguida mostrada na tela.
— Ei! — exclamou Tom, em um diferente tom de voz.
— O que está havendo? — perguntou seu pai.
— “... muitas condenações por roubo, comportamento agressivo, apropriação indébita e outros crimes. A última condenação de Edwardes foi por assalto à mão armada. Supõe-se que esteja escondido no distrito da Baixada da Doninha, que já foi isolado pela polícia, até que as buscas estejam concluídas. Os motoristas e condutores de outros veículos estão sendo aconselhados a usar o desvio da Estrada Bigham, até novas ordens. Estou certo de que todos os telespectadores se juntam a nós, desejando uma rápida solução deste assunto.” — O locutor baixou os olhos para sua mesa, virou uma página e tornou a encarar a câmera. — “Em uma história paralela, informa-se que o pesaroso ministro das Finanças, Friedrich Hasselgard, foi dado como desaparecido em alto-mar, fora da costa oeste da ilha. Aparentemente, o ministro Hasselgard partiu em seu barco, o Mogrom’s Fortune, para uma viagem solitária em torno da ilha, aproximadamente às três horas desta tarde, após saber da iminente captura do assassino de sua irmã. Acredita-se que tenha sido surpreendido por alguma súbita borrasca na área do Poço do Diabo, tendo sido interrompido o contato pelo rádio, logo após o início da tempestade.” — Os olhos do locutor tornaram a baixar rapidamente para a mesa. — “Dentro de um momento, informaremos sobre o trânsito, através de nosso observador que cobre esta matéria, sobre a meteorologia, com Ted Weatherhead e sobre esportes, com Joe Ruddler.”
— Certo — disse Victor Pasmore. — Eles o pegaram.
— Eles pegaram quem?
Victor Pasmore começou a erguer-se da poltrona.
— O favelado que liquidou Marita Hasselgard, raios, de quem mais eu estaria falando? Bem, é melhor começarmos a pensar no jantar. Sua mãe hoje não anda muito boa.
— E quanto a Hasselgard?
— O que há sobre ele? Arrivistas nativos como Hasselgard sabem fazer qualquer coisa velejar, em qualquer lugar, em qualquer tempestade que apareça. Lembro-me de quando ele era rapazinho, com seus vinte anos — podia enfiar agulhas com um barco a vela!
— Você o conheceu?
— Não muito. Fred Hasselgard foi uma das descobertas de seu avô. Glen o tirou da Baixada da Doninha, mostrou-lhe um ponto de partida. Nos tempos em que eles faziam melhoramentos na região oeste, Glen melhorou também a vida de um punhado de nativos jovens e inteligentes — cuidou de educá-los, botou-os no caminho certo.
Tom viu o pai caminhar na direção da cozinha, depois lançar um olhar para a televisão.
O rosto corado de Joe Ruddler encheu a tela.
— “É isso aí, fãs do esporte!” — berrou Ruddler, a agressividade era sua marca registrada. — “Estamos encerrando os esporte por hoje! Fim da linha! Peçam o que quiserem, mas de nada vai adiantar! Ruddler vai dar uma checagem até as dez horas, portanto fiquem de cabeça fria ou de cabeça quente, mas não percam a cabeça!”
Tom desligou a televisão.
— A gente não pode perder a cabeça — disse Victor da cozinha, dando uma risadinha. Ele adorava Joe Ruddler. Achava-o um cara e tanto. — Temos uns bifes aqui, será melhor comê-los, antes que fiquem ruins. Você quer um?
Tom não estava com fome, mas assentiu:
— Claro!
Victor saiu da cozinha, enxugando as mãos nas calças.
— Ei, você quer prepará-los? Basta colocar na grelha. Há um pouco de alface e outras coisas, talvez pudesse fazer uma salada. Vou dar uma espiada em sua mãe, preparar-lhe um drinque ou qualquer coisa.
Meia hora mais tarde, Victor descia a escada à frente de Glória, quando Tom já preparava a mesa na sala de refeições. Em suas roupas de cetim cor de pêssego, os cabelos agora flácidos, a mãe de Tom parecia um fantasma de olhos vermelhos. Sentada diante de seu bife, ela cortou uma fatia da grossura de uma carta de baralho e, com o garfo, perseguiu-a através do prato.
Tom perguntou se ela se sentia bem.
— Vamos sair amanhã para jantar — disse Victor. — Você vai ver, amanhã à noite ela estará cheia de disposição. Não é mesmo Glor?
— Deixe-me em paz — replicou ela. — Quer todo mundo parar de implicar comigo, por favor?
Ela cortou outra minúscula porção do bife, levou-a a meio caminho até a boca, depois baixou o garfo e devolveu o diminuto pedaço de carne ao prato.
— Talvez fosse melhor eu chamar o dr. Milton — disse Victor. — Ele poderia receitar-lhe alguma coisa.
— Eu não preciso de nada — disse Gloria, agitada, — exceto que... me deixem... em... paz! Por que não liga para meu pai? Não é ele que sempre resolve tudo para você?
Victor fez o resto da refeição em silêncio. Glória virou a cabeça e dirigiu a Tom um olhar de verdadeira reprovação. Seus olhos pareciam inchados.
— Ele também o ajudará, dando-lhe um ponto de partida, seja para onde for que quiser ir. Você pode ir para qualquer lugar.
— Ninguém está querendo que eu fique em Mill Walk — disse Tom, compreendendo que os pais tinham virtualmente aceito a oferta do avô, em seu nome.
— Você não quer deixar Mill Walk? — A voz de sua mãe era quase violenta. — Pois seu pai bem gostaria de ir embora deste lugar. Pergunta a ele!
— Acho que não estamos com muita fome esta noite — disse Victor. — Deixe-me levá-la para cima, Glor. Você vai querer estar repousada, para amanhã ir ao jantar dos Langenheims.
— Oba! Piadas sujas e olhares sujos!
— Vou ligar para o dr. Milton — disse Victor.
Glória encolheu-se em sua cadeira, deixando a cabeça pender alarmantemente sobre o peito. Victor ficou em pé rapidamente e se postou atrás dela. Passou as mãos sob os braços da esposa e a puxou para cima. Ela resistiu por um ou dois segundos, depois empurrou as mãos dele e se pôs de pé sozinha.
Tomando-a pelo braço, Victor saiu com ela da sala de refeições. Tom ouviu os dois subindo a escada. A porta do quarto se fechou, e sua mãe começou a gritar, em um ritmo uniforme e sem pressa. Ele caminhou duas vezes em torno da sala, depois levou os pratos para a cozinha, envolveu os bifes não consumidos em saquinhos e os colocou na geladeira. Depois de lavar os pratos, saiu para o corredor da frente da casa e, por um momento, ficou ouvindo os gritos da mãe, agora soando singularmente recordados, desligados de qualquer raiva ou dor reais. Foi até a porta da frente e reclinou a cabeça contra ela.
Menos de meia hora mais tarde, uma caleça parava diante da casa. A cigarra da porta soou. Tom abandonou a sala da televisão, abriu a porta da frente, e recebeu o dr. Milton.
Victor estava parado no degrau mais baixo da escada. Uma mancha de vinho tinto, no formato do estado da Flórida, cobria a frente de sua camisa. O dr. Milton, vestindo o mesmo conjunto de fraque e calças listradas que usara para a foto no livro de recortes de Lamont von Heilitz, sorriu para Tom e caminhou com sua valise negra na direção da escada.
— Como está ela agora? Melhor?
— Parece que sim — respondeu Victor.
O dr. Milton virou o rosto pesado para Tom.
— Sua mãe está um pouco tensa, filho. Nada para causar preocupações. — Ele dava a impressão de querer remexer os cabelos de Tom. — Amanhã já poderá notar o quanto ela melhorou.
Tom balbuciou qualquer evasiva, e o médico subiu a escada com sua valise, atrás de Victor Pasmore.
Por volta das dez horas, Tom experimentava a sensação de encontrar-se inteiramente só na casa. Fazia horas que o médico se fora, e seus pais não haviam tornado a descer do quarto. Ele ligou a televisão para ver o jornal, depois sentando-se no braço da poltrona reclinável do pai, a ponta do pé dando pancadinhas no chão.
— “Dramática conclusão da busca ao assassino de Marita Hasselgard!” — anunciou o homem de expressão confiável e óculos de aros grossos. — “Teme-se pelo desaparecimento do ministro das Finanças. Maiores detalhes após o comercial.”
Tom escorregou para a poltrona, ajeitando o encosto móvel para uma posição ereta. Ficou esperando, enquanto os comerciais desfilavam.
Em seguida, surgiu o filme em cores do que parecia a inteira força policial de Mill Walk, equipada com rifles automáticos e coletes à prova de balas, atirando de trás de carros e viaturas policiais, na direção de uma familiar casa de madeira, na Baixada da Doninha.
— “A caçada a Foxhall Edwardes, principal suspeito da morte de Marita Hasselgard, chegou a uma dramática conclusão no final desta tarde, após serem disparados tiros no interior de um bangalô da Rua Mogron, neste anoitecer. Dois policiais, Michael Mendenhall e Roman Klink, ficaram feridos no início da troca de tiros. Rapidamente foram enviados reforços ao local, e o capitão Fulton Bishop, que identificou Edwardes como o homem que matou a srta. Hasselgard, através de uma informação anônima, falou com o suspeito através de um megafone. Edwardes preferiu atirar a entregar-se, terminando morto na resultante troca de disparos. Os dois policiais feridos encontram-se em estado crítico.”
Na tela, as janelas e batentes das janelas da casinha estilhaçavam-se sob o fogo cerrado, com lascas de pedra voando da frente da casa. Nas paredes surgiam buracos negros como ferimentos. Havia fumaça escapando pela porta arruinada. Brotaram chamas do teto, e um lado da casa desmoronou, em meio a uma nuvem de fumaça e poeira.
O locutor surgiu novamente na tela.
— “Em um caso relacionado, o ministro das Finanças, Friedrich Hasselgard, anteriormente dado como perdido em uma tempestade no Poço do Diabo, há uma hora atrás foi considerado oficialmente desaparecido. Seu luxuoso veleiro está sendo rebocado para o porto de Mill Walk por membros da Patrulha Marítima de Mill Walk, que encontrou o Mogrom’s Fortune à deriva no mar. Presume-se que o ministro Hasselgard tenha sido lançado ao mar no auge da tormenta. As buscas prosseguem, porém há poucas esperanças pela sobrevivência do ministro Hasselgard.” — O locutor baixou os olhos, como que pesaroso, depois tornou a erguê-los, contristados e neutros ao mesmo tempo. — “Depois dos comerciais, teremos a previsão meteorológica e o relato atualizado de Joe Ruddler sobre esportes. Fiquem conosco.”
Tom desligou a televisão, foi até o telefone e discou o número da casa no outro lado da rua. Deixou-o tocar dez vezes, antes de desligar.
No dia seguinte, sua mãe flutuou escada abaixo ao meio-dia, formalmente trajada, os cabelos tão escovados que luziam, o rosto cuidadosa e habilidosamente maquiado, e entrou na sala da televisão quase com as maneiras de uma jovenzinha. O milagre tornara a acontecer. Ela até estava usando pérolas e saltos altos, como se pretendesse sair de casa.
— Céus! — exclamou ela. — Não costumo dormir tanto, mas acho que estava precisando do descanso. — Sorriu para eles, enquanto cruzava o aposento e ia sentar-se no braço da poltrona do marido. — Creio que simplesmente esforcei-me demais, ontem.
— Tem razão — disse Victor, dando-lhe um tapinha nas costas.
Esforçou-se demais?, pensou Tom. Vir cá embaixo duas vezes, ouvir discos, fumar uns três maços de cigarro?
Ela se acomodou no braço da poltrona, com as pernas caídas.
— Em que estamos todos tão interessados?
— Bem, há um grande jogo sendo disputado, mas Tom queria ver o noticiário.
— Psst! — fez Tom para eles.
A irmã de Foxhall Edwardes, uma mulher baixa, morena e obesa, com falhas de vários dentes e falando à maneira nativa, condenava a maneira como a polícia conduzira a prisão de seu irmão.
— “Eles não precisava matar ele. Ele-ele tava muito assustado, inté demais. Foxy queria falar com a poliça, mais eles num queria falar, eles queria ele morto. Foxy tava fazendo alguns malfeito, mas ele num era ruim nele mesmo. Ele e o pai dele era muito chegado, e quando o pai dele morreu, ele roubou loja. Tava quebrado por dentro, será que vocês sente isso? A pena foi cumprida. Só tinha três dia fora da cadeia, ele ficou vendo a poliça com as arma, ele pensou que eles ia levar ele de volta pra lá. Fox num matou ninguém, veiz nenhuma, mas a poliça fica apontando o dedo pra ele, fica dizendo você é o nosso home. Ele era conveniente. E eu tô protestando isto-isto.”
— Eu desci para ver se posso preparar o almoço para alguém — declarou Glória, tocando as pérolas em seu pescoço.
Victor ficou rapidamente em pé.
— Eu irei dar uma ajuda.
Passou um braço pela cintura dela e os dois caminharam para a porta.
— Não é adorável a maneira como eles falam? — perguntou Glória. — “Ele e o pai dele.” Se fosse uma moça, eles diriam “ela e o pai dela”.
Glória deu uma risadinha contida, e Tom ouviu um dos sons centrais de sua vida, a histeria cabriolando por sob o frágil exterior de sua mãe.
Agora, o capitão Fulton Bishop dava entrevista à imprensa, encenada à maneira oficial, transbordante de congratulações, sentado atrás de uma mesa, na embandeirada sala de recepções da Praça do Arsenal. A cabeça lisa e tostada de sol do capitão Bishop, tão dura e inexpressiva como um nó-de-dedo, arqueava-se para a bancada de microfone.
— “Naturalmente, a irmã dele está angustiada, porém seria insensato aceitarmos suas alegações como algo mais do que uma explosão emocional. Concedemos ao sr. Edwardes uma ampla oportunidade para entregar-se e, como todos sabem, o suspeito preferiu reagir com fogo, ferindo gravemente os dois bravos homens que foram os primeiros a vê-lo.”
— “Os dois homens foram feridos no interior da casa?” — perguntou um repórter.
— “Exatamente. O suspeito franqueou-lhes a entrada, a fim de liquidá-los a portas fechadas. Não sabia que já fora solicitado um reforço para a área.”
— “As equipes de reforço foram chamadas antes dos primeiros disparos?”
— “Ele era um criminoso de alta periculosidade. Eu queria dar a meus homens toda a proteção possível. Sem mais perguntas.”
O capitão Bishop ficou em pé e se afastou da mesa, em meio a ruidosa algaravia, mas uma pergunta gritada chegou até ele.
— “O que nos pode dizer sobre o desaparecimento do ministro Hasselgard?”
Ele retornou para a multidão de repórteres e inclinou-se sobre os microfones. A luz crua e branca refletiu-se no topo de sua cabeça lisa. O capitão fez uma pausa ligeira, antes de falar.
— “Esse assunto está sendo plenamente investigado. Dentro de alguns dias mais, haverá uma ampla exposição dos resultados dessa investigação.” — Ele tornou a fazer uma pausa e pigarreou. — “Permitam-me acrescentar algo. Certos assuntos do Ministério das Finanças vieram à luz recentemente. Se me perguntarem, eu direi que Hasselgard não foi lançado ao mar por algum vagalhão — ele saltou de seu veleiro.”
O capitão Bishop endireitou o corpo, em meio a uma enxurrada de perguntas, e alisou a gravata sobre a camisa.
— “Eu gostaria de agradecer a alguém” — disse, gritando para ser ouvido acima das perguntas que vinham de todos os lados. — “Um bom cidadão escreveu para mim, enviando a informação que, indiretamente, levou à solução do assassinato da srta. Hasselgard. Seja você quem for, creio que está me vendo neste momento. Eu gostaria de que se identificasse, perante mim ou qualquer das pessoas na Praça do Arsenal, a fim de que possamos demonstrar nossa gratidão por sua ajuda.”
Em seguida, ele abandonou a mesa, ignorando os gritos dos repórteres.
Dispondo sanduíches e pratos de sopa sobre a pequena mesa da cozinha para o breakfast, Gloria fez Tom pensar em uma mãe glamourosa, em algum comercial de televisão. Ela lhe sorriu, os olhos brilhando com o esforço para demonstrar o quanto estava sendo bondosa.
— Deixarei alguma comida na geladeira, para você esta noite, Tom, mas aqui temos algo gostoso para alimentá-lo até lá. Nós vamos sair esta noite, sabia?
Foi quando ele compreendeu — sua mãe se vestira para o jantar, assim que saíra da cama. Sentou-se à mesa e comeu. Durante o almoço, seu pai comentou várias vezes o quanto a sopa estava saborosa, o quanto apreciava os sanduíches. Aquele era um grande almoço. Não era um grande almoço, Tom?
— Agora, eles estão alegando que Hasselgard afogou-se — disse Tom. — Logo estarão anunciando que ele dava desfalques no tesouro. Se alguém não houvesse escrito para a polícia, nada disto teria acontecido. Se a polícia nunca houvesse recebido aquela carta...
— Eles o teriam crucificado de qualquer jeito — interrompeu seu pai. — Hasselgard foi longe demais. Agora, mudemos de assunto.
Ele falava com Tom, mas olhando para Glória, que levara o sanduíche até meio caminho da boca, estremecera e tornara a depositá-lo no prato. Ela ergueu os olhos, porém não os via.
— “Ela e o pai dela”, era como os criados costumavam dizer. Porque só havia nós dois nesta casa.
— Deixe-me ajudá-la a ir para o quarto.
Victor lançou a Tom um olhar soturno, depois tomou a esposa pelo braço, a fim de que ela se levantasse, e a levou para fora dali.
Quando seu pai tornou a descer, Tom estava na salinha da televisão, comendo o resto de seu sanduíche e vendo um dos repórteres da TV-WMIL parado junto ao casco do Mogrom’s Fortune, no cais da polícia, descrevendo como os policiais tinham encontrado a embarcação.
— “Aqui no cais, rejeitam a teoria de que Hasselgard poderia ter sido lançado ao mar pela tempestade. Entre crescentes rumores...”
— Ainda não se fartou disto? — perguntou Victor incerimoniosamente, inclinando-se e trocando para o canal que mostrava um jogo de beisebol na tela. — Onde está meu sanduíche?
— Em cima da mesa.
Ele saiu, retornando quase imediatamente, com o enorme sanduíche gotejando em sua mão. Arriou em sua poltrona.
— Sua mãe logo estará ótima, porém não graças a você.
Tom subiu para seu quarto.
Às sete horas, seus pais desceram juntos, e Tom desligou a televisão pouco antes deles entrarem na sala. Sua mãe tinha a mesma aparência que mostrara ao meio-dia — vestida para sair, com suas pérolas e saltos altos. Ele lhes desejou “espero que se divirtam!” e ligou para Lamont von Heilitz, assim que os dois cruzaram a porta.
Eles se sentaram nos lados opostos de uma mesinha coberta de couro e entulhada de livros. Lamont von Heilitz reclinou-se contra o espaldar alto e estofado de um sofá de couro e olhou para Tom com os olhos apertados, através da fumaça do cigarro.
— Sinto-me inquieto, daí o motivo de estar fumando — disse ele. — Não costumava fumar quando trabalhava. Nos meus tempos de jovem, fumava entre um caso e outro, esperando para ver o que podia surgir à minha porta. Em resumo, agora devo ser uma criatura mais fraca do que então. Não gostei de ver a polícia em minha casa esta tarde.
— Bishop veio vê-lo? — perguntou Tom.
Tudo parecia diferente sobre o sr. von Heilitz, nessa noite.
— Ele enviou dois detetives chamados Holman e Natchez para falarem comigo. Os mesmos dois homens convidaram-me a ir à Praça do Arsenal, ontem à noite, a fim de discutir a morte do ministro das Finanças Hasselgard.
— Eles o consultaram?
Von Heilitz tragou a fumaça, depois a exalou luxuriantemente.
— Nem tanto. O capitão Bishop pensou que eu poderia ter escrito uma certa carta para eles.
— Oh, não! — exclamou Tom, recordando que tentara ligar para o velho na noite anterior, após ter visto o noticiário.
— O que quer que eles estivessem fazendo na Baixada da Doninha, ficou interrompendo o interrogatório. Só voltei para casa quase ao meio-dia. E os detetives Holman e Natchez só foram embora depois das três.
— Eles o interrogaram por outras três horas? O velho meneou a cabeça.
— Eles procuravam uma máquina de escrever cuja letra coincidisse com a da carta. Foi uma busca lenta e trabalhosa. Eu já havia esquecido quantas máquinas de escrever tinha em casa. Holman e Natchez acharam particularmente suspeito o fato de uma máquina antiga haver sido escondida nos arquivos.
— Por que escondeu essa máquina?
— Era justamente o que o detetive Natchez queria saber. Parecia muito aflito, esse detetive Natchez. Penso que um dos jovens policiais feridos na Baixada da Doninha — Mendenhall? — era importante para ele. Seja lá como for, a tal máquina de escrever era uma recordação do negócio do Neto de Jack o Estripador — leu a respeito ontem à noite? Era a máquina em que o dr. Nelson escrevia suas cartas à polícia de Nova Iorque.
Von Heilitz sorria e fumava, esparramado em sua poltrona, os pés em cima da mesinha baixa. Havia passado a noite na central de polícia e uma manhã vendo detetives vasculharem seus arquivos. Tomara uma ducha, fizera a barba e trocara de roupas, porém Tom o achava exaurido.
— Nada aconteceu da maneira como pensei — disse Tom. — Eles o detiveram a noite inteira...
O velho deu de ombros.
— ... esse tal Edwardes está morto, dois policiais foram feridos e Hasselgard se matou...
— Ele não se matou — disse von Heilitz, fitando Tom com olhos apertados, através de uma nuvem de fumaça. — Foi executado.
— Então, o que Foxhall Edwardes teve a ver com isso?
— Ele foi apenas — que palavra mesmo a irmã dele usou? Uma conveniência. Serviu para a maneira como eles fecham os livros.
— Isso significa que eu também o matei. Hasselgard e Edwardes estariam ainda vivos, se eu não tivesse escrito aquela carta!
— Você não os matou. Foi o sistema que os matou, a fim de proteger-se. — Ele baixou as pernas, sentou-se e esmagou o cigarro em um cinzeiro. — Lembra-se de eu lhe ter dito que o assassino de meus pais contou uma mentira? A mentira, naturalmente, foi sobre o envolvimento de meu pai na corrupção de Mill Walk — penso que a verdade foi ele odiar aquilo em que a ilha se tornara. Também penso que ele deve ter procurado seu amigo David Redwing, contado a ele o que descobrira e o que pretendia fazer a respeito. Digamos que David Redwing ficasse tão chocado quanto estava meu pai. Ele poderia ter conversado com a pessoa errada sobre as acusações de meu pai. Consideremos isto por um segundo. Se meu pai e minha mãe foram mortos logo depois de David Redwing ouvir o relato de meu pai, ele não teria achado suas mortes suspeitas? A resposta é óbvia — claro que acharia. A menos que alguém de sua absoluta confiança lhe garantisse que meu pai estava errado em suas alegações, e que um criminoso comum houvesse assassinado meus pais.
— De quem o senhor suspeita?
— Do próprio filho dele. Maxwell Redwing. Até sua exoneração, Maxwell havia sido o braço direito do pai.
Tom pensou em Maxwell Redwing, no terraço do clube no Lago da Águia, entretendo jovens sobrinhos e sobrinhas que agora estavam velhos; recordou o obituário no Eyewitness.
— Diga-me uma coisa: em que acha que tenho trabalhado atualmente?
— Não sei — respondeu Tom. — O senhor se ocupava de Hasselgard, porém acho que isto agora terminou.
— Nosso falecido ministro das Finanças era apenas uma pequena peça na engrenagem. É o meu último caso — eu poderia, inclusive, dizer que é o caso. De fato, ele recua todo o trajeto até Jeanine Thielman.
Ele nada fizera, exceto fazer Tom recuar ao círculo de sua obsessão com os Redwings.
— Ouça — começou Tom — não quero que o senhor pense...
Von Heilitz o interrompeu, erguendo uma mão enluvada.
— Antes que diga alguma coisa, quero que pense em algo. Acredita que alguém, olhando para você, chegaria a imaginar o que lhe aconteceu há sete anos?
Tom levou bastante tempo para perceber que, como sua mãe naquela tarde, von Heilitz referia-se ao seu acidente. A ele, parecia totalmente desligado — enterrado dentro de sua recente vida, como cachimbos de argila e garrafas velhas eram encontradas, volta e meia, enterrados em velhos quintais.
— Essa é uma parte essencial de quem você é. De quem você é.
Tom desejaria ir embora da casa do velho — era tão ruim como ser capturado em uma teia de aranha.
— Você quase morreu. Teve uma experiência que a maioria das pessoas tem apenas uma vez na vida — e poucas delas vivem para recordar ou falar a respeito. Você é como alguém que viu o lado escuro da Lua. Bem raros tiveram o privilégio de ir lá.
— Privilégio — disse Tom, pensando: O que torna Jeanine Thielman uma parte disto tudo?
— Sabe o que algumas pessoas relatariam sobre tal experiência?
— Não quero saber — respondeu Tom.
— Elas tiveram a sensação de mover-se ao longo de um túnel escuro. No final do túnel havia uma luz branca. Relatam um senso de paz e felicidade, inclusive de alegria...
Tom teve a impressão de que seu coração podia explodir, como se tudo em seu corpo houvesse sido acionado simultaneamente para o estouro. Por um momento, literalmente não conseguiu enxergar. Tentou ficar em pé, mas os músculos não obedeceram. Não conseguia respirar. Percebeu que podia ver, tão depressa como se sentira cego, mas o pânico ainda percorria seu corpo. Era como se houvesse sido dividido em átomos dispersos, que depois tornaram a juntar-se.
— Tom, você é um filho da noite — disse von Heilitz.
As palavras desencadearam algo novo dentro dele. No alto, Tom avistou a abóbada do céu noturno, como se o teto houvesse sido retirado da casa. Apenas algumas estrelas largamente espalhadas varavam a escuridão impenetrável. Tom recordou Hattie Bascombe, dizendo: “O mundo é metade noite”. Camada após camada de noite, camada após camada de estrelas e escuridão.
— Chega — disse ele. — Não suporto mais nada deste...
Olhou para seu corpo, acomodado frouxamente na poltrona de couro de Lamont von Heilitz. Era o corpo de um estranho. Suas pernas pareciam impossivelmente compridas.
— Eu queria apenas fazê-lo saber que tem tudo disso dentro de você — disse o velho. — Seja o que for — dor, terror, também espanto.
Tom sentiu cheiro de pólvora, depois percebeu que era o seu próprio cheiro. Sabia que, se começasse a chorar, nunca mais pararia. O velho sorriu para ele.
— O que acha que esteve fazendo naquele dia? Lá naquela zona no extremo oeste?
— Eu tinha um amigo na enseada do Olmo. Acho que estava indo para lá — disse, mas as palavras soaram falsas, mal as pronunciou.
Durante um momento, nenhum dos dois falou.
— Posso recordar esta sensação — de ter que ir a algum lugar.
— Lá — disse von Heilitz.
— Sim. Lá.
— Já voltou à área do Parque Goethe?
— Uma vez. Quase vomitei. Não suportava estar lá — em qualquer ponto dos arredores. Foi no dia em que o vi.
Tom recordou agudamente a maneira como o Sombra olhava para ele — como se ele estivesse imaginando mil coisas diferentes ao mesmo tempo. Fez um esforço para recompor-se.
— Posso perguntar-lhe uma coisa sobre Jeanine Thielman? — pediu.
— Fique à vontade.
— Isto me parece uma idiotice... provavelmente, apenas esqueci algo.
— Mesmo assim, pergunte.
— O senhor disse que Arthur Thielman deixou a arma em cima de uma mesa, perto do ancoradouro, e que Anton Goetz a apanhou, para atirar em Jeanine, atrás da cabeça, de uma distância de dez metros. Como Goetz saberia que a arma puxava para a esquerda? Não se pode saber disso, apenas olhando para uma arma, não é?
Von Heilitz baixou as pernas e inclinou-se para diante, por sobre a mesinha, estendendo a mão. Apertou a de Tom, com pressão surpreendentemente firme, e riu com vontade.
— Então, não deixei escapar nada?
Von Heilitz ainda sacudia a mão dele.
— Absolutamente nada. De fato, você viu o que estava faltando. — Ele soltou a mão de Tom e tornou a recostar-se na poltrona, com as mãos sobre os joelhos. — Goetz sabia que a arma puxava para a esquerda, porque deu dois tiros. O primeiro acertou a cabana dos Thielman. Ele corrigiu imediatamente a pontaria, acertando Jeanine no segundo tiro. Eu mesmo extraí a bala que se encravou na cabana.
— Então o senhor sabia onde Goetz estivera de pé. Descobriu onde a pistola tinha que estar, recuando a partir da bala encravada. Da maneira como fez com o carro de Hasselgard.
Von Heilitz sorriu e sacudiu a cabeça.
— Havia cartuchos gastos debaixo da mesa.
— Não havia cartuchos gastos.
— O senhor viu acontecer — disse Tom. — Não. Viu a arma em cima da mesa. — Ele refletiu sobre isto. — Não. Não consigo decifrar!
— Esteve bem perto. Outro veranista do Lago da Águia viu a arma na mesa, aquela noite. Um homem solteiro, na casa dos vinte anos, como eu mesmo. Um viúvo com uma filha jovem, vivendo sozinho na cabana de sua família. Ele foi embora do Lago da Águia na manhã após Jeanine ser morta,
Um arrepio desagradável percorreu o corpo de Tom.
— Quem era essa pessoa?
— Provavelmente a única que ouvira os tiros naquela noite, porque sua cabana era a seguinte, depois daquela. E havia uma festa da família Redwing na mesma noite. Todos eles no clube, comemorando o noivado de Jonathan Redwing com Kate Duffield. Tinham mandado vir uma banda de música de Chicago — Ben Pollack. Havia muito barulho.
Tom perguntou, em voz quieta:
— Ele estava construindo um hospital em Miami?
— Um dos primeiros grandes contratos da Construtora Mill Walk. Você viu o recorte em meu livro, não? Já nessa época, ele montara um escritório separado em Miami e acho que ainda faz bastantes negócios.
— Portanto, meu avô ouviu os tiros. Ele deve ter pensado...
— Que Arthur matou Jeanine? — O Sombra cruzou uma perna sobre a outra e entrelaçou os dedos sobre o estômago inexistente. — Fui vê-lo em Miami, após certificar-me de que Minor Truehart estava fora da prisão. Eu queria contar-lhe o que acontecera no Lago da Águia, após sua partida. De fato, levei-lhe exemplares de todos os jornais do Lago da Águia que cobriam o assassinato.
Alguma mensagem estava sendo transmitida a ele, mas Tom não conseguiu captá-la nas palavras ou maneiras de von Heilitz — não podia ser de que Glendenning Upshaw houvesse testemunhado um assassinato, para em seguida abandonar calmamente o cenário.
— O balcão da cabana de seu avô dava para o lago. Ele costumava ficar ali ao anoitecer, imaginando como conseguir um desconto melhor do que Arthur Thielman na compra de cimento, ou seja lá o que for. De seu balcão, Glen podia ver o ancoradouro dos Thielmans tão bem quanto o seu.
— Ele fugiu na manhã seguinte?
Von Heilitz soltou um grunhido.
— Glen Upshaw jamais fugiu de alguma coisa na vida. Penso que ele simplesmente não quis alterar arranjos que já tinha feito. Seja como for, esse foi o último verão que passou no Lago da Águia — a última vez que qualquer membro da sua família esteve no lago.
— Não, não — disse Tom. — Foi pelo pesar. Ele deixou de ir à cabana por pesar. Minha avó afogou-se naquele verão. Ele não suportava tornar a ver o lugar.
— Sua avó perdeu a vida em 1924, um ano antes disto tudo. Não foi o pesar que levou seu avô a abandonar o Lago da Águia. Foram os negócios — o hospital era muito mais importante para ele do que uma disputa conjugai entre um concorrente e a esposa.
— Ele teria deixado o guia ser executado?
— Bem, tudo quanto seu avô me disse foi que vira um Colt de cano longo em cima da mesa. Os tiros poderiam ter sido dados em qualquer lugar — em um lago, é quase impossível a gente saber de onde provêm os sons. Você ouve tiros por lá; as pessoas têm armas. Talvez ele não soubesse que Jeanine estava morta.
— O senhor quer dizer que talvez ele soubesse.
— Com que freqüência vê seu avô?
— Uma ou duas vezes por ano.
— Você é o único neto que ele tem. Seu avô mora a cerca de 25 quilômetros de sua casa. Nunca jogou bola com você? Nunca o levou para andar a cavalo ou velejar? A um cinema?
Qualquer de tais sugestões teria sido ridícula, e a resposta de Tom certamente ficou expressa em seu rosto.
— Não — disse o velho. — Acho que ele nunca fez nada disso. Glen é um homem arredio — absurdamente arredio. Entenda, há algo faltando nele.
— O senhor sabe como minha avó afogou-se? Ela saiu sozinha à noite, por conta própria? Estaria embriagada?
O velho deu de ombros e, novamente, foi como se estivesse tendo mil pensamentos ao mesmo tempo.
— Ela saiu à noite — disse ele por fim. — Naquele tempo, todo mundo no lago bebia bastante. — Von Heilitz baixou os olhos para a bainha de seu colete, virou-a e passou a mão esquerda na altura da cintura, a fim de limpar algo invisível para Tom. Depois ergueu o rosto. — Estou exausto. É melhor você ir para casa.
Os dois levantaram-se juntos. Tom tinha a impressão de que o sr. von Heilitz se comunicara de duas maneiras distintas, sendo silenciosa aquela em que dizia as coisas importantes. Se a pessoa não captar o sentido, então o perde para sempre.
Von Heilitz acompanhou-o por entre os fichários, deixando para trás as lâmpadas que eram como estrelas e luas no céu noturno. Abriu a porta da frente.
— Você está melhor do que eu, quando tinha a sua idade.
Tom sentiu o braço quase sem peso do velho em seus ombros.
No outro lado da rua havia uma lâmpada acesa brilhando por uma janela do andar de baixo de sua casa. Mais abaixo no quarteirão, cada luz estava acesa na casa dos Langenheims. Carros alongados e caleças puxadas por cavalos achavam-se parados junto ao meio-fio. Motoristas uniformizados recostavam-se contra seus carros e fumavam, afastados dos condutores das caleças, que não olhavam para eles e nem lhes dirigiam a palavra.
— Ah, a noite está tão bonita! — exclamou o velho, saindo fora da casa.
Tom despediu-se e o Sombra acenou com uma luva azul-escura, quase invisível à claridade cristalina do luar.
Durante algumas semanas, o escândalo Friedrich Hasselgard e uma série de revelações sobre o Tesouro encheram os noticiários noturnos e as manchetes do Eyewitness. O ministro das Finanças apropriara-se de fundos indevidamente, fora incompetente no emprego de fundos, sepultara fundos, desviara fundos de uma conta para outra e de um livro razão para livro razão. Por meio de uma combinação de criminalidade e incompetência, ele perdera ou roubara uma quantidade de dinheiro que se multiplicava a cada nova investigação, até totalizar a quase inacreditável soma de dez milhões de dólares. Agora, supunha-se que “associados criminosos”, em vez de terroristas, é que tinham baleado e liquidado a irmã do ministro. Quando Dennis Handley contou para Katinka Redwing, em um jantar festivo, que não estivera acompanhando os relatos sobre o escândalo e que não se interessava nem um pouco por tal tipo de coisas, bem poucos outros adultos da ilha de Mill Walk poderiam fazer a mesma declaração.
Certo dia, Dennis Handley pediu a Tom que fosse ao seu encontro depois das aulas.
Quando ele entrou em sua sala, Dennis falou:
— Penso que sei a resposta para esta pergunta, porém preciso fazê-la assim mesmo. — Ele baixou os olhos para sua mesa, depois espiou pela janela da sala de aulas, de onde tinha uma bela visão da Estrada da Escola, marginada de árvores, e da casa do diretor, oposta à escola. Tom esperava a pergunta. — Aquele carro que você queria saber — o Corvette, na Baixada da Doninha. Ele pertence à pessoa a que eu penso ter pertencido?
Tom suspirou.
— Ele pertenceu à pessoa a quem obviamente pertenceu.
Dennis grunhiu e apertou as palmas contra a testa.
— Por que não quer me dizer o nome do sujeito? Acha que poderia ficar enrascado? — perguntou Tom.
— Há coisa de duas semanas — disse Dennis, — eu quis ter uma conversa amistosa com você — sua mãe me pediu que arranjasse um motivo, uma coisa qualquer, mas pensei em convidá-lo ao meu apartamento para ver aquele manuscrito que, imaginei, podia interessar-lhe. No entanto, você simulou passar mal, forçando-me a levá-lo de carro por toda a extensão através da ilha, até um cenário de crime. No dia seguinte, o cavalheiro dono daquele carro desaparece. Outro homem é baleado e morto. Há derramamento de sangue. Duas vidas foram perdidas.
Dennis ergueu as mãos, em teatral horror.
— Você escreveu aquela carta que o policial mencionou, na entrevista à imprensa?
Tom franziu as sobrancelhas, mas ficou calado.
— Sinto-me nauseado — disse Dennis. — Toda esta situação é doentia e o meu estômago sabe disso. Não pode ver que não deve misturar-se a este tipo de coisa?
— Um homem escapou impune a um assassinato — disse Tom. — Cedo ou tarde, eles executariam um inocente e dariam o caso por encerrado!
— E o que aconteceu em vez disso? Acha que foi um chá dançante? Dennis meneou a cabeça e tornou a espiar pela janela, em vez de olhar para Tom. — Estou nauseado — disse ele, em voz lenta, furiosa. — Não se desperdice no lixo, Tom. Você tem um tesouro dentro de si. Será que não enxerga? — O rosto largo e carnoso de Dennis, mais apropriado para piadas, confidências e ruminações sobre novelistas, ficou tenso, expressando tudo o que ele sentia. — Existe um mundo real e um falso. O mundo real é interno. Quando temos sorte, e podemos tê-la, nós o sustentamos através do trabalho correto, de como reagimos a obras de arte, pela lealdade aos amigos, e a uma recusa a sermos apanhados em falsidades públicas ou privadas. Pense em E.M. Forster — dois vivas à democracia.
— Não sou candidato a um posto eletivo, sr. Handley — disse Tom.
O rosto de Dennis se fechou como uma armadilha. Baixou os olhos para as mãos grossas e pálidas, os dedos entrelaçados em cima da mesa.
— Sei que as coisas são difíceis em casa para você, Tom. Quero dizer-lhe que sempre pode contar comigo. Acho que nunca disse isto a outro aluno e nem direi, pouco importa quanto tempo ainda lecione, mas pode procurar-me a qualquer momento.
Um relance de percepção, parecendo provir do adulto que seria, disse a Tom que Dennis faria uma preleção similar a um aluno particularmente favorecido, a cada quatro ou cinco anos, pelo resto de sua vida.
— Não há nada de errado com minha vida em casa — disse ele, ouvindo os gritos quase despidos de emoção, dados por sua mãe.
— Apenas lembre-se do que lhe disse.
— Posso ir agora?
Dennis suspirou.
— Ouça, Tom, eu só queria saber quem você é. É com isto que me preocupo — quem você é.
Tom não pôde deixar de levantar-se. Sua respiração ficara presa em uma pequena bolsa quente, no fundo da garganta, não se movendo para cima ou para baixo. Dennis dedicou-lhe um olhar complicado, combinando ressentimento, surpresa e vontade de repetir tudo quanto acabara de dizer.
— Vá. — Tom recuou um passo. — Não quero detê-lo.
Tom saiu da sala e encontrou Fritz Redwing sentado no corredor, de costas contra a vidraça panorâmica dando para o pátio da escola. Fritz tinha sido retido no início do que seria seu ano de calouro, havendo permanecido na classe de Tom desde então.
— O que foi que ele fez? — perguntou Fritz, levantando-se prontamente.
Tom engoliu o ar queimante em sua garganta.
— Ele não fez nada.
— Ainda podemos tomar a carruagem para a aula de dança — os garotos que fizeram esporte continuam no vestiário.
Os dois adolescentes começara a descer o corredor.
Os cabelos de Fritz Redwing eram uma espessa massa loura, porém, na maioria de outros sentidos, era um típico Redwing — atarracado, de ombros largos, pernas curtas e grossas, além de praticamente sem cintura. Fritz era um garoto gentil e amistoso, encarado pela família em conceito não muito alto; ficara satisfeito em voltar a encontrar o velho amigo Tom Pasmore na classe para onde fora atirado pela reprovação, quase como se imaginasse que Tom lhe fizesse companhia em sua desgraça. Tom sabia que, quando as pessoas mencionavam a idiotice dos Redwings mais novos, era Fritz que a maioria tinha em mente. Para ele, entretanto, Fritz parecia ser apenas lento, por tal motivo não muito inclinado a pensar. Pensar tomava tempo, e Fritz tendia à indolência. Quando se dava ao trabalho de pensar, ele geralmente pensava com acerto. O alto de sua cabeça loura chegava somente ao meio do tórax de Tom. Ao lado de Tom, ele parecia um pequeno e atarracado urso louro.
Tom e Fritz saíram pela porta lateral da escola e caminharam para o pátio de estacionamento, ao calor firme do sol. A carruagem estava no extremo oposto do pátio, e dela vinha um zumbido de vozes agudas, de vez em quando pontilhado por gritos estridentes. Tom imediatamente viu a cabeça loura de Sarah Spence, na segunda das quatro filas da frente, que estavam ocupadas por garotas. A cobertura tremulante lançava um matiz esverdeado sobre as fileiras de garotas. Por motivos diferentes, Tom e Fritz Redwing diminuíram o passo e afastaram-se da alameda, permanecendo na sombra penumbrosa do lado do prédio da escola.
Tom achou que Sarah Spence, sentada entre Marion Hufstetter e Moonie Firestone, no segundo banco, olhava para ele de relance, ao inclinar-se para cochichar algo ao ouvido da primeira. Desconfiou que Sarah estivesse comentando alguma coisa sobre ele, e seu sangue gelou.
— Você pode esgaravatar o nariz — disse Fritz, virando-se para ele com um indicador ereto — e pode escolher os amigos. Entretanto, não pode esgaravatar o nariz de um amigo.
Ele riu; então, como Tom ficasse calado, fitou-o de banda, com seus singulares olhos cheios de luminosidade.
Um lagarto do tamanho de um gato correu sobre perninhas rodopiantes através do asfalto do pátio de estacionamento e desapareceu abaixo da carruagem. Sarah Spence sorriu de alguma coisa dita por Moonie Firestone. Tom pensava que ela já havia esquecido sua presença ali, porém os olhos dela se moveram naquele matiz esverdeado que a coberta da carruagem produzia, viraram-se em sua direção e o sangue dele tornou a gelar.
— Imagino que Buddy logo estará vindo para casa — disse ele a Fritz.
— Buddy é um folgado. Para ele, a vida é uma grande festa. Você deve ter sabido como ele destroçou o carro de sua mãe, no verão passado. Acabou com o carro. E deu o fora, como se nada tivesse acontecido. Mal posso esperar até irmos para o Lago da Águia este verão. ,
— E quando ele virá para casa?
— Quem?
— Buddy. Seu primo Buddy, o homem que, sozinho, vale uma turma de demolidores.
— O sr. Folgado — disse Fritz.
— Quando o sr. Folgado virá para Mill Walk?
— Ele não virá — respondeu Fritz. — Vai direto do Arizona para o Wisconsin. Ele e mais uns caras vão fazer um trajeto direto, de um estado á outro. Fes-ta. Cruzando o país de carro.
Os dois ficaram espiando uma corrente de garotos do terceiro e quarto anos saindo da Casa de Esportes, jogando os blusões sobre os ombros, enquanto subiam o outeiro para o pátio de estacionamento. Assim que os garotos passaram por eles, Tom e Fritz começaram a mover-se para a carruagem.
A Academia de Dança da srta. Ellinghausen ocupava um estreito prédio de quatro andares, em uma rua lateral à Calle Berghofstrasse. Somente uma pequena e reluzente placa de latão, acima da porta principal, identificava a escola de dança. Quando a carruagem parou diante dos degraus brancos de pedra, os estudantes da Brooks-Lowood desembarcaram e espalharam-se ao longo da calçada. O condutor sacudiu as rédeas e rodou o quarteirão. Enquanto esperavam na calçada, os garotos abotoaram colarinhos, ajustaram gravatas e deram uma rápida espiada às mãos. As garotas pentearam os cabelos e examinaram os rostos em espelhinhos de mão. Após um ou dois minutos, a porta no alto dos degraus foi aberta, a srta. Ellinghausen — uma mulherzinha de cabelos brancos, vestido cinza, pérolas e sapatos pretos de saltos baixos — surgiu na soleira e disse:
— Podem entrar, meus queridos, e façam fila para serem inspecionados!
As garotas antes dos garotos, começaram todos a subir os degraus. Dentro da casa, formaram uma comprida fila que ia da porta de entrada, seguia pelo vestíbulo e chegava à cozinha da srta. Ellinghausen, que cheirava a desinfetante e amônia. A mulherzinha percorreu a fila de alunos, examinando atentamente seus rostos e mãos. Fritz Redwing foi enviado ao andar de cima para lavar as mãos, e os restantes enfileiraram-se no mais amplo dos dois estúdios do andar térreo, uma sala grande com polido piso de tacos e uma janela abaulada, na qual havia um enorme arranjo de flores de seda. A srta. Gonsalves, mulher tão miúda e idosa como a srta. Ellinghausen, de lustrosos cabelos negros e elaborada maquiagem facial, sentou-se empertigada diante de um piano de armário. A srta. Ellinghausen e a srta. Gonsalves moravam nos andares superiores da academia, e ninguém já vira qualquer delas em outro lugar que não aquele prédio.
Quando Fritz Redwing desceu, sorrindo tolamente e enxugando as mãos no fundilho das calças, a srta. Ellinghausen disse:
— Começaremos com uma valsa, srta. Gonsalves, por favor. Formem pares, senhoritas e cavalheiros.
Havendo mais garotas do que garotos, dois ou três pares de garotas dançavam juntas, em tais aulas. Como namorada admitida de Buddy Redwing, Sarah Spence geralmente dançava com Moonie Firestone, cujo namorado cursava uma escola militar no Delaware.
Mais por uma questão de altura do que por compatibilidade, Tom há muito fazia par com uma garota chamada Posy Tuttle, com exatamente um metro e oitenta de estatura. Ela jamais falava com Tom durante as aulas e até evitava fitá-lo nos olhos.
A srta. Ellinghausen moveu-se com lentidão por entre os pares que valsavam laboriosamente, fazendo breves comentários enquanto se movia e, aos poucos, alcançou Tom e Posy. Parou ao lado deles, e Posy enrubesceu.
— Tente deslizar um pouco mais, Posy — observou ela.
Posy mordeu o lábio e tentou deslizar, seguindo a severa marcação do metrônomo, em cima do piano.
— Seus pais estão bem?
— Estão, srta. Ellinghausen — disse Posy, enrubescendo mais ainda.
— E sua mãe, Thomas?
— Ela está ótima, srta. Ellinghausen.
— Ela era uma... criança tão delicada!
Tom empurrou Posy em torno, descrevendo um desajeitado círculo.
— Thomas, eu gostaria que você fizesse par com Sarah Spence pelo resto da aula. Posy, tenho certeza de que seria mais proveitoso você dançar com Marybeth.
Marybeth era o nome verdadeiro de Moonie. Posy largou a mão de Tom, como se estivesse segurando um tijolo ardente, e ele a seguiu através da sala até o canto em que Sarah Spence e Moonie Firestone executavam perfeitos e tediosos passos de valsa.
— Novos parceiros, meninas! — exclamou a velha.
Tom se viu a centímetros de Sarah Spence, que quase instantaneamente foi para seus braços, sorrindo e fitando-o nos olhos com ar grave. Ele ouviu Posy Tuttle começar a chocalhar em sua voz inexpressiva e irônica para Moonie, dizendo tudo que estivera guardando.
Por um instante, Tom e Sarah dançaram desajeitadamente fora de ritmo um com o outro.
— Sinto muito — disse Tom.
— Não foi nada — respondeu Sarah. — Estou acostumada a dançar com Moonie, esqueci como era dançar com homem.
— Não se incomodou com a troca?
— Não. Até gostei.
Isso silenciou Tom por algum tempo.
— Há muito que não converso com você — disse ela por fim.
— É, eu sei.
— Está nervoso?
— Não — disse Tom, embora se sentisse trêmulo — Um pouquinho talvez.
— É uma pena que não tenha mais visto você.
— É mesmo? — perguntou Tom, surpreso.
— Claro. Éramos amigos, mas agora só o vejo na carruagem da srta. Ellinghausen.
A música cessou e, como os outros pares, Tom e Sarah separaram-se, aguardando instruções. Ele não imaginara que Sarah Spence realmente lhe prestava qualquer atenção, na carruagem da escola de dança.
— Foxtrote — anunciou a velha.
A srta. Gonsalves começou a martelar But not for me.
— Você continua fazendo os deveres de casa para Fritzie?
— Alguém tem de fazê-los — respondeu Tom.
Ela riu e o apertou de uma maneira que provocaria uma censura, se a srta. Ellinghausen houvesse percebido.
— Eu e Moonie ficamos tão entediadas dançando juntas! É como se estivéssemos sendo punidas. Pensei que o único rapaz com quem dançaria pelo resto da vida seria o Buddy. E o senso de ritmo de Buddy é uma coisa um tanto pessoal,
— Como é ele?
— Buddy Redwing daria a você a impressão de ser o tipo de pessoa que escreve cartas? Fico farta de pensar em Buddy — estou sempre farta de pensar nele, quando não está por perto.
— E quando ele está por perto?
— Oh, sabe como é... Buddy é tão ativo, que não se tem tempo de pensar em coisa alguma.
Esta frase deixou Tom um pouco deprimido. Baixou os olhos para o rosto sorridente de Sarah, e percebeu ser ela menor do que recordava, que os olhos cinza-azulados eram muito espaçados, que o sorriso era fácil e cálido, além de surpreendentemente amplo.
— Foi tão simpático da srta. Ellinghausen indicar você para mim! Ou prefere dançar com Posy Tuttle?
— Eu e Posy não temos muito a nos dizer.
— Acho que ela sente um medo danado de você.
— Ora, por quê?
— Você é tão volumoso, antes de mais nada, tem ombros tão largos! Posy está acostumada a olhar do alto para os rapazes, daí por que ficou com aquela horrível corcunda. Por outro lado, talvez ela ache sua reputação proibitiva. Quero dizer, sua reputação como o intelectual da escola.
— É isso que eu sou? — perguntou ele, achando aquilo sem muita sinceridade. But not for me chegou ao fim e começou Cocktails for two.
— Lembra-se de quando fui visitá-lo no hospital?
— Você falou sobre Buddy também.
— Eu estava impressionada com ele, admito. Era interessante... bem, o fato dele ser um Redwing era interessante.
— Meninos! — disse a srta. Ellinghausen. — Coloquem a mão direita na espinha de suas parceiras. Fritz, pare de devanear!
Como Tom nada dissesse, Sarah continuou:
— Quero dizer, eles são tão definidos! Tão reservados!
— O que acontece no complexo?
— Eles não se cansam de ver filmes. Falam sobre esportes. Os homens se reúnem e falam de negócios — vi seu avô umas duas vezes. Ele foi visitar Ralph Redwing. Se não fossem eles, penso que tudo seria um tanto tedioso. Aliás, Buddy não é muito tedioso.— Ela ergueu os olhos para Tom e esboçou um sorriso. — Sempre penso em você quando vejo seu avô.
— Eu também penso em você.
A depressão de Tom tinha desaparecido, como se nunca houvesse existido.
— Você não está mais tremendo — observou ela.
A srta. Gonsalves começou a martelar algo que soava como Begin the beguine.
— Fui tão idiota, naquele dia em que o visitei no hospital! Sabe como é, a gente fica recordando certas conversas mais tarde e pensa em quanta coisa terrível disse... É como me sinto sobre aquele dia.
— Pois eu fiquei feliz por você ter ido.
— Bem, você estava... — Ela parou de falar.
— Você estava muito diferente. Crescida.
— Ora, você está emparelhado comigo! Somos amigos de novo, não somos? Não teríamos deixado de ser amigos, se você não tivesse caminhado na frente de um carro. — Sarah ergueu para ele um rosto em que uma idéia começava a nascer. — Por que não vai para o Lago da Águia este verão? Afinal, Fritz poderia convidá-lo. Então, eu o veria todos os dias. Podíamos ficar por lá conversando, enquanto Buddy acaba com os peixes e destroça carros.
Tendo Sarah Spence nos braços, Tom sentiu-se reclamado pelo mundo diário, que lhe parecera tão insubstancial na casa de Lamont von Heilitz. Esta jovenzinha tão bonita e dona de si parecia implicar, com seu comprido e cálido sorriso, com a torrente de frases que penetravam nele diretamente, como uma série de bem torneadas flechas, que tudo poderia sempre ser como era naquele momento. Ele podia dançar, podia falar, podia abraçar o corpo surpreendentemente firme e sólido de Sarah Spence, sem tremer ou gaguejar. Ele era o intelectual da escola — ou alguma coisa da escola, afinal. Era volumoso, com seus ombros enormes.
— Não está satisfeito por eles terem apanhado aquele louco que matou Marita Hasselgard? — perguntou Sarah, em sua voz animada e despreocupada.
A música parou. A srta. Gonsalves começou a assassinar Lover. A srta. Ellinghausen passou ao lado e assentiu para ele, pelas costas de Sarah Spence. De fato, ela lhe deu um leve sorriso seco.
— Devemos ser amigos — disse Sarah, e recostou a cabeça no peito dele.
— Sim — respondeu Tom, pigarreando e afastando-se dela, quando a srta. Ellinghausen deu um tapinha no ombro de Sarah e tentou intimidá-los, com um olhar revelador e zangado. — Sim, devemos mesmo.
No final da aula, a srta. Ellinghausen bateu palmas, e a srta. Gonsalves fechou a tampa polida do piano.
— Senhoritas e cavalheiros, estão todos fazendo um excelente progresso — disse a srta. Ellinghausen. — Na próxima semana vou apresentá-los ao tango, uma dança que nos vem das terras da Argentina. O conhecimento básico do tango se tornou essencial em uma sociedade elegante e, considerada em si, esta dança é um refinado veículo através do qual podem ser expressadas as mais fortes emoções, de maneira delicada e controlada. Alguns de vocês perceberão o que quero dizer. Por favor, minhas recomendações a seus pais.
Ela se virou, a fim de abrir a porta para o corredor.
Sarah e Tom fizeram fila para a porta e assentiram diante da srta. Ellinghausen, que respondia a cada apressada inclinação de cabeça dos alunos com outra idêntica, de maneira quase mecânica. Pela primeira vez desde que se juntara à turma, Tom viu a velha senhora interromper sua performance à porta, o suficiente para fazer uma pergunta.
— Os dois estão satisfeitos com o novo arranjo?
— Sim — disse Tom.
— Muito — disse Sarah.
— Ótimo — disse a srta. Ellinghausen, — então não haverá mais tolices — e inclinou a cabeça, em sua mesura perfeita.
Tom seguiu Sarah até o alto dos degraus amplos à frente da casa. Fritz Redwing estava parado na calçada, girando os olhos e gesticulando para a carruagem à espera.
— Bem — disse Tom, desejando que não tivesse de deixar Sarah Spence e perguntando-se como ela iria para casa.
— Fritzie está à sua espera — disse Sarah. — Na semana que vem, aprenderemos a expressar as mais fortes emoções, de maneira delicada e controlada.
— Podíamos usar mais disso por aqui — replicou ele.
Sarah sorriu de maneira um tanto abstrata, olhou para baixo e depois por sobre o ombro dele. Ela se moveu para um lado, a fim de dar passagem aos alunos que ainda saíam do prédio. Para Tom, era como se Sarah se destacasse dentre todos que subiam e desciam os degraus — de certa maneira, parecia ser duas pessoas ao mesmo tempo, e ele pensou ter imaginado a mesma coisa certa vez sobre mais alguém, que não recordava agora quem fosse. Ela o fitou rapidamente de relance, depois voltou a contemplar o espaço vazio. Tom desejou poder abraçá-la, beijá-la ou capturá-la. Nos cinqüenta minutos em que a tivera nos braços enquanto dançavam, havia falado mais com ela do que durante os últimos cinco anos, mas agora parecia-lhe ter perdido tudo, desperdiçado cada segundo do tempo passado junto dela.
Os últimos alunos que tomariam a carruagem para casa permaneciam em fila na calçada, prontos para penetrar na sombra esverdeada da cobertura do veículo. Fritz Redwing contorcia-se de impaciência, dando a impressão de precisar ir ao banheiro.
— É melhor você ir — disse Sarah.
— Vejo você na semana que vem — disse ele, começando a descer os brancos degraus de pedra.
Ela desviou os olhos, como se ele houvesse dito algo demasiado óbvio.
Tom desceu os degraus brancos em direção a Fritz Redwing, e seus sentimentos contraditórios pareceram expandir-se, declarando guerra. Era como se houvesse perdido algo de supremo valor e transbordasse de alegria porque a coisa bela e necessária se fora para sempre. Algum objeto vivo dentro dele libertara-se e começara a bater as asas violentamente.
Então, por um instante, as emoções contraditórias que o percorriam de ponta a ponta obliteraram todo o resto do mundo, depois parecendo obliterá-lo também. Mal percebia Fritz Redwing, que olhava para ele em pueril agitação, como mal percebeu uma ornada carruagem que entrava na rua sombreada, vindo da Calle Berghofstrasse. O veículo parecia-lhe familiar. Tudo à sua volta parecia suspirar, e sua mão sobre o corrimão da escada ficou subitamente pálida e granulosa; então, Tom percebeu que podia enxergar perfeitamente através dela, ver o corrimão.
Em algum ponto diretamente abaixo dele ocorreu uma grande explosão, invisível, mas intensamente presente — um clarão de luz vermelha e um som de metal dilacerado, de vidro estilhaçado. Ele estava desaparecendo, tornando-se nada. Seu corpo continuou a desaparecer, enquanto descia os degraus. Em segundos, suas mãos e pés, seu corpo inteiro, eram apenas um bruxuleio no ar, depois somente um contorno. Quando chegou ao fim da escada, havia desaparecido por completo. Estava morto, estava livre. Os sentimentos mesclados, mas contraditórios dentro dele, entraram em combustão, enquanto a catástrofe pouco mais atrás permanecia acontecendo. Tudo isto era completo e integral. Ele cruzou a calçada. A boca de Fritz se moveu, mas saíram palavras invisíveis. Na lateral da carruagem que se movia para eles, Tom viu um R dourado, tão circundado de floreados e volutas, que se assemelhava a uma serpente dourada em um ninho dourado. Quando exalou o ar dos pulmões e se moveu para a carruagem que levaria os alunos, pôde ouvir Fritz Redwing se queixando de sua indolência ao caminhar.
Tom entrou na carruagem e sentou-se na última fila ao lado de Fritz, que nem chegara a notar como, durante três ou quatro intermináveis segundos, ele estivera absolutamente invisível. O condutor agitou as rédeas e a carruagem rodou para diante, atrás dos lentos cavalos da srta. Ellinghausen. Tom não viu Sarah descer os degraus, mas ouviu a porta da carruagem de Ralph Redwing estalar nas dobradiças, ao ser inteiramente aberta.
Uma vez por ano, Gloria Pasmore fazia de carro com Tom os quase 25 quilômetros ao longo do litoral leste da ilha, deixando para trás os muros do complexo Redwing e canaviais vazios plantados com filas de salgueiros, até a casinhola do guarda do Clube dos Fundadores de Mill Walk. Lá, um guarda uniformizado, com uma pesada pistola no quadril, anotava o número da chapa do carro e o checava na folha de uma prancheta, enquanto outro guarda dava um telefonema. Quando a entrada era aprovada, eles seguiam por uma estreita alameda asfaltada, chamada Caminho Ben Hogan, passavam por dunas de areia e giesta-das-vassouras, que desciam para o mar longo e plano rolando à sua esquerda. Passavam depois pela enorme estrutura mourisca azul e branca da sede do clube, em direção aos trinta acres de praia, nos quais os membros do Clube dos Fundadores haviam construído as imensas casas a que davam o nome de “bangalôs”. Quando a estrada se bifurcava, eles continuavam pela esquerda, a Alameda Suzanne Lenglen, serpenteando através das dunas e das casas, até dobrarem à direita, para a ramificação mais próxima do mar, a Trilha Bobby Jones. Em seguida, estacionavam na área de estacionamento comunal, bem perto da praia e do bangalô para onde Glendening Upshaw se mudara, ao deixar a casa na Estrada Litorânea do Leste para a filha e o marido.
A mãe de Tom desceu do carro e olhou quase desconfiadamente para os dois veículos puxados a cavalo, estacionados no pátio. Tom e Gloria os conheciam bem. A pequena carruagem leve de duas rodas, ligeiramente empoeirada, à qual estava atrelada uma égua negra, pertencia ao dr. Bonaventure Milton; o veículo maior, do qual um cavalariço acabara de desatrelar uma égua de pêlo castanho e conduzia para os estábulos, pertencia ao avô de Tom.
Aquele era o fim de semana após a aula de dança. Tom se sentira exaurido e nervoso durante toda a semana. Tivera o mesmo pesadelo várias noites seguidas, a ponto de quase sentir medo de dormir. Gloria também parecia cansada e ansiosa. Dissera ao filho apenas uma coisa durante a viagem da Estrada Litorânea do Leste até ali, quando ele comentou que voltara a ser amigo de Sarah Spence.
— Homens e mulheres não podem ser amigos — respondera ela.
Ir visitar Glendenning Upshaw era como ir à Academia da srta. Ellinghausen, pelo menos em um sentido: Tom devia submeter-se a uma inspeção, antes de sair de casa. Glória examinara-lhe as unhas, o nó da gravata, a condição de seus sapatos e dos cabelos.
— Eu é que tenho de ouvir, quando ele vê algo de que não gosta. Trouxe um pente, pelo menos?
Tom tirou um pente de bolso do casaco e o passou pelos cabelos.
— Você está com olheiras! O que andou fazendo?
— Jogando cartas, farreando, andando atrás de mulheres, coisas assim.
Glória meneou a cabeça, parecendo querer apenas entrar novamente no carro e voltar para casa. Atrás deles, uma porta se fechou através da Trilha Bobby Jones.
— Uh-oh! — exalou Gloria, e Tom sentiu cheiro de menta na respiração da mãe.
Virando-se, ele viu Kingsley, o valete de seu avô, descendo com lentidão os degraus reluzentes diante do bangalô. Kingsley era quase tão velho como seu empregador. Sempre usava um comprido casaco para a manhã, colarinho alto e calças listradas. Sua cabeça calva brilhava ao sol. Kingsley conseguiu chegar ao último degrau sem acidentar-se e encostou-se ao corrimão.
— Estávamos à sua espera, srta. Gloria! — exclamou ele, em sua voz esganiçada. — E sua também, Master Tom. Dá a impressão de que se tornará um belo rapaz, Master Tom.
Tom revirou os olhos, e sua mãe dirigiu-lhe um olhar agoniado, antes de seguir à frente dele pela Trilha Bobby Jones, em direção a Kingsley. O valete forçou-se a ficar ereto enquanto os dois se aproximavam e fez uma mesura, quando Gloria o cumprimentou. Conduziu-os lentamente para a varanda e cruzaram um arco branco que dava para um átrio. Um beija-flor voou até o fundo do átrio e depois por cima do bangalô, em um movimento longo e fluido. Kingsley abriu a porta e os fez entrar para o vestíbulo, ladrilhado com pequenos quadrados de porcelana azuis e brancos. Ao lado da porta, nove ou dez guarda-sóis pretos e fechados tinham enchido todo o espaço disponível de um porta-guarda-sóis chinês. No ano anterior, Glendenning Upshaw dissera a Tom que pessoas incapazes de pensar em guarda-chuvas senão quando chovia costumavam roubá-los diante dos próprios olhos da gente! Tom julgou entender o que o avô pensava: as pessoas roubavam seus guarda-chuvas porque eram os guarda-chuvas de Glendenning Upshaw. Talvez fosse realmente o motivo.
— A sala de estar, srta. Gloria — disse Kingsley, afastando-se para ir avisar a seu empregador.
Gloria saiu do vestíbulo atrás dele e dobrou na direção oposta, penetrando em um amplo corredor. Compridos tapetes, tecidos em padrões nativos semelhantes a mandalas, espichavam-se sobre ladrilhos vermelhos. Uma armadura espanhola, no tamanho e formato de um pequeno e barrigudo menino, montava guarda sobre uma mesa de refeitório. Passaram ao lado da mesa e entraram em um aposento comprido e estreito, com janelas altas dando para meio quilômetro de perfeita areia até a praia do Clube dos Fundadores. Alguns homens idosos ocupavam cadeiras de praia, comendo com os olhos jovenzinhas de biquíni que entravam e saíam das ondas correndo, sem mesmo molhar os cabelos. Um garçom vestido como Kingsley, mas usando um comprido avental branco, em vez do casaco da manhã, passava por entre os homens, oferecendo drinques de uma cintilante bandeja.
Tom se virou da janela e ficou de frente para o aposento. Sua mãe, já sentada em um rígido sofá de brocado, ergueu os olhos para ele, como se o esperasse derrubar algum vaso. Apesar das janelas altas voltadas para a praia e toda a vastidão de água luminosa, a sala de estar era escura como uma caverna. Uma samambaia verde-escura espumejava sobre o topo de um piano de cauda com dois metros e meio (que ninguém tocava), e estantes envidraçadas cobriam a parede dos fundos, com fileiras sobre fileiras de livros sem sobrecapas, que se esfumavam em uma nuvem acastanhada. Aqueles livros tinham títulos como Atividades da Real Sociedade Geográfica, Vol. LVI e Sermões e Ensaios Escolhidos de Sydney Smith. A quantidade de mobiliário era um pouco maior do que a sala poderia acomodar com facilidade.
Glória tossiu dentro do punho e, quando Tom olhou para ela, viu-a apontar irritadamente para uma poltrona excessivamente estofada, formando ângulo reto com o sofá de brocado. Queria que ele se sentasse, a fim de poder levantar-se, quando seu pai entrasse na sala. Tom sentou-se na poltrona excessivamente estofada e contemplou as mãos dobradas no colo. Eram tranqüilizadoramente sólidas.
Seu sonho repetitivo começara na noite após a aula de dança, e ele supôs que pudesse ter relação com o que lhe sucedera, quando descia os degraus da academia. Não conseguia ver uma conexão, mas... No sonho, fumaça e cheiro de pólvora enchiam o ar. Mais além à sua direita, pequenas fogueiras ardiam na atmosfera asfixiante e, à esquerda, havia um lago azul-gelo. O lago desprendia vapor ou fumaça, ele não saberia dizer. Era um mundo de pura perda — perda e morte. Acontecera qualquer coisa terrível, e Tom vagueava através de sua esteira reverberante. A paisagem assemelhava-se ao inferno, porém era apenas semelhança — o inferno real estava dentro dele. Experimentava um vazio e desespero tão grandes, que acabou percebendo: era para si mesmo que olhava — aquele lugar morto e arruinado era Tom Pasmore. Tropeçou alguns passos, antes de perceber o cadáver de uma mulher de emaranhados cabelos louros, jazendo na margem do lago. Seu vestido azul se rasgara contra as rochas e espalhava-se à volta dela, em uma forma amorfa. No sonho, Tom agachava-se e tomava nos braços aquele corpo frio e pesado. Pensava saber quem era a mulher morta, mas sob outro nome, e tal pensamento disparou através de seu corpo como um foguete, despertando-o, Sobressaltado e grunhindo.
O mundo era metade noite, havia dito Hattie Bascomb.
— O que há de errado com você? — sussurrou sua mãe.
Tom meneou a cabeça.
— Ele está vindo.
Os dois empertigaram-se nos assentos e sorriram, quando a porta se abriu.
Kingsley entrou e manteve a porta aberta. Um momento mais tarde, o avô de Tom surgia à vista, caminhando em passos pesados, em seu terno negro. Como sempre, trazia consigo a aura de decisões secretas e secretos poderes, de charutos cubanos e reuniões à meia-noite. Tom e sua mãe levantaram-se.
— Glória — disse o velho, e depois: — Tom.
Não retribuiu o sorriso deles. O dr. Milton entrou quase em seguida, falando desde que cruzara a porta, como que para preencher o silêncio.
— Que surpresa agradável, duas das minhas pessoas favoritas!
O dr. Milton sorria escancaradamente para Glória ao caminhar para ela que, no entanto, mantinha os olhos voltados para o pai, agora passando ruidosamente ao lado das estantes de livros. Então, o médico parou diante dela.
— Doutor... — disse Glória, inclinando-se para um beijo.
— Minha querida! — Ele a observou profissionalmente por um instante, depois se virando para apertar a mão de Tom. — Meu rapaz! Lembro-me de tê-lo trazido ao mundo. Nem parece que foi há 17 anos!
Tom já ouvira inúmeras vezes variantes deste comentário e nada disse, enquanto apertava a mão rechonchuda do médico.
— Olá, papai — disse Glória, então beijando o pai, que completara o círculo pela sala e inclinava-se a fim de beijá-la também.
O dr. Milton deu um tapinha na cabeça de Tom e moveu-se para o lado. Glendenning Upshaw libertou-se de Glória e se postou diante dele. Tom inclinou-se para diante e beijou a face coriácea do avô, profundamente sulcada de rugas. Seus lábios sentiram a friagem da pele, e o velho afastou-se instantaneamente.
— Garoto — disse seu avô, dando-se o trabalho de fitá-lo diretamente.
Como sempre que isto acontecia, Tom sentia que o avó olhava apenas para dentro dele, não se importando com o que via. Desta vez, no entanto, percebeu, quase com descrença, que ele, Tom, baixava o rosto para fitar a face ampla e poderosa do velho — estava uns três ou seis centímetros mais alto do que seu avô. O dr. Milton também notou o detalhe.
— Glen, o garoto está mais alto do que você! É uma experiência desacostumada, ter que erguer o rosto para olhar alguém, não?
— Ora, já chega disso — disse o avô de Tom. — Todos nós encolhemos com a idade, você inclusive.
— É claro, não há qualquer dúvida a respeito — disse o médico.
— O que me diz de Glória?
— Bem, vejamos...
Sorrindo, o médico tornou a mover-se para diante dela.
— Não vim aqui para um exame médico — vim almoçar!
— Sim, sim — disse o pai dela. — Dê uma boa espiada na menina, Boney.
O dr. Milton deu uma piscadela para Glória.
— Ela só precisa de um pouco mais de repouso do que vem tendo.
— Se ela precisa repousar, dê-lhe alguma coisa!
Upshaw retirou um gordo charuto de um estojo apropriado para mantê-los úmidos, em cima da mesa em forma de tambor. Partiu a extremidade, rolou-o entre os dedos e o acendeu com um fósforo.
Tom espiou seu avô seguir os passos do ritual com o charuto. Os cabelos brancos do velho eram fortes o bastante para ficarem desordenados, como os de Tom. Ele ainda parecia forte o bastante para suspender o piano de cauda nas costas. Era tão largo como dois homens, e parte da aura que sempre o tinha envolvido era o cru poder físico. Seria demais, supunha Tom, esperar que alguém assim agisse como um avô normal.
O dr. Milton havia rabiscado uma receita e a arrancava de seu bloco. Estendeu a folha para Glória, dizendo:
— Por isto, seu avô quis que eu esperasse até você chegar. Bem, ele queria uma consulta grátis.
O médico consultou seu relógio.
— Hum... Preciso ir andando. Gostaria de ficar para o almoço, mas há alguma coisinha acontecendo no hospital.
— Problemas?
— Nada sério. Pelo menos, por enquanto.
— Alguma coisa que eu deveria saber?
— Apenas uma coisa que precisa ser examinada. Uma situação envolvendo as enfermeiras. — O dr. Milton se virou para Tom, com um olhar expectante. — Alguém de quem deve lembrar, alguém do tempo de sua estada lá. Você conheceu Nancy Vetiver, não?
Tom sentiu uma pequena explosão dentro do peito e recordou seu pesadelo.
— Claro que sim.
— Sempre houve um problema com a atitude daquela jovem, como deve recordar.
— Ela era difícil — disse Glória. — Lembro-me dela. Muito difícil.
— E insubordinada — acrescentou o médico. — Manterei contato, Glen.
O avô de Tom exalou fumaça do charuto e assentiu.
— Ligue para mim se tiver problemas para dormir, Glória. Tom, você está ótimo. Cada dia mais parecido com seu avô.
— Nancy Vetiver foi uma das melhores pessoas no hospital — disse Tom.
O médico franziu as sobrancelhas e Glen Upshaw bandeou a cabeça maciça, fitando o neto com olhos apertados, através da fumaça do charuto.
— Bem — disse o médico. — É o que veremos.
Ele forçou um sorriso para Tom, tornou a repetir suas despedidas, e saiu da sala. Eles ouviram Kingsley conduzindo o médico até o vestíbulo e abrindo a porta para a varanda. O avô de Tom ainda o observava enviezadamente, movendo o charuto para dentro e para fora da boca, como se fosse um bico de mamadeira.
— Boney porá tudo nos eixos. Você gostava da moça, hein?
— Era uma excelente enfermeira. Sabia mais sobre medicina do que o dr. Milton.
— Ridículo! — exclamou sua mãe.
— Boney é mais um administrador — seria — disse seu avô, com perigosa brandura. — No entanto, sempre cuidou bem de mim e de minha família.
Tom viu um pensamento mover-se visivelmente pelo rosto de sua mãe, como um relâmpago, mas tudo quanto ela disse foi:
— É verdade.
— Um homem leal.
Glória assentiu taciturnamente e ergueu os olhos para o pai.
— Você tem sido leal com ele, papai.
— Bem, ele cuida de minha filha, não cuida? — O velho sorriu, olhou especulativamente para Tom e acrescentou: — Não se preocupe com sua enfermeirinha, garoto. Boney agirá da maneira certa, seja lá como for.
Um probleminha de hospital não é nada que nos deixe excitados. A sra. Kingsley está preparando um saboroso almoço para nós e, depois que eu fumar um pouco mais deste charuto, sairemos para apreciá-lo.
— Ainda estou preocupado com Nancy Vetiver — disse Tom. — O dr. Milton não gosta dela. Seria terrível ele deixar que isso lhe influenciasse o julgamento, não importa o que esteja acontecendo no...
— Esforce-se para que isto não influencie seu julgamento — disse seu avô. — Antes de mais nada, a moça devia conhecer o seu lugar. Boney é um médico, não importa o que você pense sobre a aptidão dele, fez uma escola de medicina e cuida de nós, da maioria de nossos amigos. Além do que, ele é o homem de proa no Shady Mount — esteve lá desde o começo. E, afinal de contas, é um dos nossos.
E era assim que a coisa funcionava, pensou Tom.
— Não acho que seja um dos meus — falou.
Sua mãe meneou a cabeça vagamente, como se perturbada por alguma mosca. Seu avô sugou uma boca cheia de fumaça, exalou-a e lançou um olhar na direção dele, que parecia apenas casual. Encaminhou-se para o sofá com a mesma falsa casualidade e sentou-se perto de Glória. Ela espantou a fumaça com gestos de mão.
— Você parece preocupar-se com essa enfermeira.
— Oh, papai, pelo amor de Deus! — exclamou Glória. — Ele tem 17 anos!
— É justamente o que quero dizer.
— Nunca mais a vi, desde que tinha dez anos. — Tom sentou-se na banqueta do piano. — Ela era uma boa enfermeira, nada mais. Sabia como tratar os pacientes, e o dr. Milton apenas entrava e saía. Ter o dr. Milton decidindo se Nancy Vetiver está com problemas parece-me uma coisa às avessas, eis tudo.
— Uma coisa às avessas — disse seu avô, repetindo as palavras neutramente.
— Não estou querendo ser rude. Não antipatizo com o dr. Milton.
— E, naturalmente, não tem a menor idéia do que está acontecendo no Shady Mount — algo sério o bastante para fazer Boney atravessar a ilha, quase de ponta a ponta.
Tom começou a sentir-se ressentido e encurralado.
— Sim — disse.
— Não obstante, impensadamente você toma o partido desta empregada do hospital, contra o doutor. E presume que este mesmo médico, o mesmo que o trouxe ao mundo e que foi ajudar sua mãe algumas noites atrás, não tem o direito de criticar essa moça.
— Estou apenas baseando-me no que vi — disse Tom.
— Quando tinha dez anos de idade. E, dificilmente, com as idéias em estado normal.
— Bem, eu poderia ter-me enganado...
— Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isto.
— ...mas não estou.
Uma parte de Tom o levava a dizer tais coisas. Erguendo o rosto, viu que o avô o encarava fixamente.
— Deixe-me recordar-lhe certos fatos. Bonaventure Milton cresceu a dois quarteirões de onde você mora hoje. Estudou em Brooks-Lowood. Foi para o Barnabie College e depois para a Escola de Medicina da Universidade de St. Thomas. Pertence ao Clube dos Fundadores. É diretor do Hospital Shady Mount e vai ser o diretor de instalações multimilionárias que vamos construir aqui. Ainda pensa que seria uma coisa às avessas, conforme disse, que o dr. Milton, com seu passado e qualificações, critique ou julgue essa enfermeira, com o passado e qualificações dela?
— Ela não tem berço — disse Glória, em voz fraca. — Foi até nossa casa, esperando ser gratificada por ter cuidado de Tom.
— Não, não foi nada disso — disse Tom. — E...
— Estava nos olhos dela — disse Glória.
— Escute, vovô, não acho que o passado do dr. Milton tenha qualquer coisa a ver com o tipo de médico que ele é. Policiais e motoristas de ônibus fazem partos. E tudo quanto ele faz por mamãe é dar-lhe injeções e pílulas.
— Não imaginava que você fosse um revolucionário tão ardoroso.
— É isso que eu sou?
O velho encarou Tom por um momento.
— Gostaria de que eu o informasse sobre essa chamada situação no Shady Mount? Uma vez que parece tão interessado na carreira desta enfermeira?
— Oh, não! — suspirou Glória.
— Eu gostaria. Afinal de contas, ela foi uma ótima enfermeira.
— Eu lhe telefonarei, quando souber o que aconteceu. Então, você poderá tirar sua própria conclusão.
— Obrigado — disse Tom.
— Bem, não sei se ainda me resta algum apetite, mas vamos a esse almoço!
O avô de Tom deixou em um cinzeiro o que sobrara do charuto e levantou-se, estendendo a mão para a filha.
A sala de refeições nos fundos do bangalô se abria para uma ampla varanda. A mesa fora posta ali para três pessoas, e a esposa de Kingsley ficou a um lado, quando eles chegaram. Usava vestido preto com uma gola de renda e avental branco. Como o marido, ficou visivelmente empertigada ao vê-los.
— Vai tomar um drinque hoje, senhor? — perguntou ela.
A sra. Kingsley era magra e idosa, com ralos cabelos brancos repuxados para trás em um coque apertado.
— Eu e minha filha tomaremos gim-tônica — disse Upshaw. — Não. Eu quero algo mais forte. Prepare um martíni. Para você também, Glória?
— Qualquer coisa serve — disse Glória.
— E para o Karl Marx, aqui, traga uma cerveja.
A sra. Kingsley cruzou o arco da varanda e entrou na sala de refeições. O avô de Tom puxou a cadeira para Glória sentar-se e depois acomodou-se à cabeceira da mesa. Tom sentou-se à frente da mãe. Estava fresco e sombreado, ali na varanda. Uma brisa vinda do oceano agitava a beirada da toalha de mesa e as folhas das buganvílias que cresciam ao longo da divisória, na extremidade da varanda. Glória estremeceu.
Glendenning Upshaw olhou azedamente para Tom, como se o responsabilizasse pelo desconforto de sua mãe, e perguntou:
— Quer um xale, Glória?
— Não, papai.
— O alimento a aquecerá.
— Sim, papai.
Ela suspirou. Olhou para Tom com pupilas vidradas e ele se perguntou se o dr. Milton não lhe dera alguma pílula às escondidas. Ela ficou quieta, esperando seu drinque, de lábios entreabertos. Tom desejou estar sentado à comprida mesa em casa do Sombra e conversando, em vez do qualquer que isto de agora fosse. Então, a lembrança do diário encadernado em couro o fez recordar algo dito por seu pai.
— Vovô, não foi o senhor que ajudou Friedrich Hasselgard a começar a subir na vida?
Upshaw grunhiu e franziu o cenho. Ainda parecia azedo.
— A que vem isto?
— Estou apenas curioso, nada mais.
— Não é assunto para despertar sua curiosidade.
— Acha que ele se matou?
— Por favor! — disse Glória.
— Você ouviu sua mãe. Faça-lhe a honra de obedecer — disse o velho.
A sra. Kingsley chegou com uma bandeja de drinques e passou a bebida para os três. Não parecia esperar agradecimentos. Glendenning Upshaw tomou um gole de gim gelado e recostou-se na cadeira, baixando o queixo a tal ponto, que seu rosto transformou-se em uma paisagem de montes e crateras. Começou a parecer menos infeliz, assim que provou seu drinque. Friedrich Hasselgard simplesmente desaparecera, pensou Tom: ele havia chegado ao clímax em sua carreira a serviço do governo, aceitando trezentos mil dólares de suborno e matando a irmã, depois partindo em seu barco. Glendenning Upshaw tomou um pequeno gole de martíni, e Friedrich Hasselgard se viu desaparecer.
— De qualquer modo, suponho que ele se matou, sim. O que mais poderia ter acontecido?
— Não tenho tanta certeza — disse Tom. — Pessoas não desaparecem simplesmente, não é?
— Depende das circunstâncias.
Houve um silêncio, e Tom sorveu um gole de pálida cerveja Pforzheimer, ligeiramente amarga.
— Tenho pensado ultimamente em um vizinho nosso — disse. — Lamont von Heilitz.
Tanto sua mãe como seu avô olharam para ele. Glória de um modo desfocalizado, que fez Tom perguntar-se que espécie de pílulas o dr. Milton lhe dera, e seu avô com uma rápida e surpresa irritação.
— Lamont? — repetiu Glória. — Você disse Lamont?
Seu avô franziu a testa e disse:
— Mudemos de assunto.
— Ele disse Lamont?
Glendenning Upshaw pigarreou e se virou para a filha.
— Como tem passado, Glória? Está saindo muito?
Ela se deixou recostar novamente na cadeira.
— Eu e Victor fomos à casa dos Langenheims semana passada.
— Isso é bom. E você, divertiu-se?
— Oh, sim. Sim, eu me diverti.
— O senhor não achou interessante que Hasselgard desaparecesse de seu barco, no mesmo dia em que a polícia matou aquele homem, na Baixada da Doninha? -perguntou Tom. — O que acha disso, vovô?
Glendenning Upshaw baixou o copo e se virou pesadamente para Tom.
— Está perguntando o que acho ou se acho interessante?
— Perguntei o que você realmente achou.
— Estou interessado no que você achou, Tom. Gostaria que me dissesse.
— Está bastante claro que ele vinha roubando dinheiro do Tesouro, não está? — Como Upshaw não respondesse, Tom continuou — Pelo menos, tudo que tem aparecido nos noticiários dá a entender isto. Quando ele trabalhou para o senhor deve ter sido honesto, mas depois de adquirir poder, começou a roubar com as duas mãos. Quando a irmã dele quis uma fatia, ele a assassinou e pensou que podia sair impune.
— Aí temos uma estranha suposição.
— É apenas o que tenho ouvido dizer. Hum... de outros alunos lá na escola.
Upshaw ainda o encarava fixamente.
— O que mais esses alunos pensam?
— Que a polícia matou o ministro e atirou a culpa naquele homem.
— Então, o departamento de polícia também é corrupto. Tom não respondeu.
— Isto significando, suponho, que o governo também é corrupto.
— Sim, é isso — disse Tom.
— Como foi que esses seus amigos comentaram a carta que Fulton Bishop recebeu?
— Oh — disse Tom.
— A carta de um cidadão privado, que ajudou a responsabilizar esse homem, Foxhall Edwardes, como o assassino da srta. Hasselgard. Eu diria que essa carta nega muito bem a maioria de sua teoria, em uma penada. Porque ela dá a entender que Hasselgard não matou a irmã. Portanto, ela não queria uma fatia do bolo e, portanto, a polícia não acobertou seu assassinato — de maneira que a corrupção parece parar em Hasselgard. Você acredita que o capitão Bishop recebeu essa carta ou acredita que ele inventou a coisa toda, a fim de corroborar a versão oficial?
— Acredito que ele recebeu a carta — disse Tom.
— Ótimo. A paranóia não destruiu de todo a sua mente. — Upshaw sorveu o resto de seu martíni e, como se isto fosse uma deixa, a sra. Kingsley surgiu com sua travessa presa sob o cotovelo e um balde de gelo nas mãos. Do topo do balde projetava-se o gargalo de uma garrafa de vinho aberta. — Você continua com a cerveja?
Tom assentiu.
A sra. Kingsley colocou laboriosamente o pesado balde ao lado do prato de Upshaw e retirou dois copos do gelo picado ao redor da garrafa. Endireitando a bandeja, colocou nela o copo de martíni do dono da casa e deu a volta, a fim de deixar o segundo copo de vinho diante de Glória. Esta segurou seu copo de martíni com as duas mãos, como uma criança temendo que lhe tirem um brinquedo. A sra. Kingsley desapareceu nas sombras da sala de refeições. Voltou um minuto mais tarde, com uma bandeja de tamanho maior, na qual havia três pratos fundos com gazpacho,* que ela colocou sobre o prato raso de cada um.
* Sopa fria, feita de pão, azeite, vinagre, alho e cebola. (N. da T.)
A mulher voltou para dentro da casa. Glendenning Upshaw provou a sopa fria e tornou a olhar para Tom. Não estava mais irritado.
— De certo modo, fico quase feliz por você ter falado como falou esta manhã. Isto significa que tomei a decisão correta.
Glória parou a colher a meio caminho da boca.
— Penso que seus horizontes precisam ampliar-se.
— Meu pai disse alguma coisa sobre o senhor estar querendo pôr-me nos negócios, depois que eu sair da faculdade. É muita generosidade sua e nem sei o que dizer, exceto agradecer. Portanto, obrigado.
Seu avô fez um gesto de mão, dando pouca importância àquilo.
— Você é candidato da Tulane?
Tom assentiu.
— A Louisiana é cheia de oportunidades. Conheço um bocado de homens excelentes por lá. Alguns deles ficariam felizes em aceitá-lo, assim que tiver seu diploma de engenharia.
— Ainda não decidi realmente o que estudar na faculdade — disse Tom.
— Fique firme na engenharia.
— Oh, isso mesmo, Tom! — disse Glória.
— Trata-se de uma fundação. Ela lhe dará tudo de que você precisa. Se quiser estudar poesia e as obras coligidas de V.I. Lenin, poderá fazê-lo em suas horas de folga.
— Não sei se eu seria um bom engenheiro — disse Tom.
— Afinal, em que acha que seria bom? Mordendo a mão que o alimenta? Insultando sua família? Não creio que Tulane já esteja oferecendo diplomas de tais matérias. — O velho ferveu de raiva por alguns momentos. Tom e Glória ocuparam-se com suas sopas. Pouco depois, Upshaw lembrou-se do vinho e arrancou iradamente a garrafa do balde. Despejou a bebida em seu copo, depois no de Glória. — Deixe-me dizer-lhe uma coisa: engenharia é a única matéria real. Tudo o mais não passa de exercício acadêmico.
— Levará algum tempo para que me acostume à idéia — disse Tom.
— Eu acho que é uma idéia maravilhosa, papai — disse Glória.
— Vejamos o que pensa Tom a respeito — replicou o velho, empurrando o prato de sopa.
— Continue — disse Glória.
— Bem, é uma idéia maravilhosa — respondeu Tom, sentindo o rosto começar a arder. E pensou: É assim que as pessoas ficam invisíveis.
— As despesas com seus estudos serão providenciadas, naturalmente. Ah, sra. Kingsley, o que temos — salada de lagosta? Excelente! Estamos comemorando a decisão de meu neto, quanto a diplomar-se em engenharia em Tulane.
— Isso é muito bom — disse a velha, colocando outra travessa sobre a mesa.
Quase assim que começaram a comer, o avô de Tom perguntou:
— Você já esteve no Lago da Águia?
Tom ergueu os olhos, surpreso.
— Não esteve, certo? Glória, quando foi a última vez que esteve no Lago da Águia?
— Não me lembro — disse ela, com uma expressão cautelosa e desconfiada.
— Seja como for, você era apenas uma garotinha. — Ele se virou novamente para Tom. — O Lago da Águia tem um significado mais triste para nós do que para nossos amigos. — Tom pensou que o avô se referisse a Jeanine Thielman, depois percebeu que aludia à morte da esposa. — Sofremos uma grande perda lá. Desde então, tive motivos para não voltar. — Exceto no verão depois da sua perda, pensou Tom. — Naturalmente, eu era um homem ocupado, meu trabalho me tomava praticamente o tempo todo — mas será que fui tão ocupado assim? Não tenho certeza...
— Esteve trabalhando muito, papai — disse Glória, e estremeceu.
Upshaw olhou de relance para a filha, impacientemente.
— De qualquer modo, a cabana ficou lá todos estes anos, cuidada por vários zeladores. Lembra-se da srta. Deane, não, Glória? Bárbara Deane?
Gloria baixou os olhos para seu prato.
— É claro.
— Bárbara Deane vem cuidando da cabana por cerca de vinte anos — um indivíduo do lugar, chamado Truehart, fazia o trabalho antes disso.
Tom ficou intrigado com o carrancismo da mãe, e pensou que Bárbara Deane devia ter sido outra das antigas amantes de Glendenning Upshaw.
— Enfim — disse o velho, com o ar de trazer à baila algum tema pesado — a velha cabana não tem tido visitantes reais há décadas. Em geral, um jovem de sua condição teria passado lá no norte cada verão dos últimos dez anos. A maioria de seus amigos deve passar os verões lá, e estive pensando que nossa tragédia já o impediu de fazer o mesmo por tempo demais.
Glória disse algo suave, mas veemente para si mesma.
— Glor?
Ela meneou a cabeça. Ele se voltou novamente para Tom.
— Estive pensando em levar um pouco de vida à velha cabana. O que me diz de passar um mês ou coisa assim no lago?
— Eu gostaria muito. Seria ótimo.
Sua mãe deixou escapar um suspiro quase inaudível, enquanto apalpava os lábios com um guardanapo rosa.
— Um verão despreocupado, antes de você começar a trabalhar duro.
Então, Tom compreendeu — o Lago da Águia era uma recompensa por ter concordado em tornar-se engenheiro. Seu avô não era um homem sutil.
— Não posso ir para o Lago da Águia — disse Glória. — Ou não fui incluída neste convite?
— Queremos mantê-la aqui, Glória. Eu me sentiria melhor, tendo-a por perto.
— Sua idéia é manter-me aqui. Acha que se sentiria melhor, tendo-me por perto. Enfim, está querendo dizer que pretende tirar tudo de mim novamente — não finja que não sabe o que estou dando a entender, porque sabe!
Upshaw baixou o garfo e a faca, assumindo uma expressão suave e inocente.
— Está insinuando que quer ir? Ou que eu não me preocuparia com você, sabendo que está lá tão longe?
— Você sabe que não posso ir lá. Sabe que eu não suportaria. Por que não diz logo?
— Não fique perturbada, Glória. Afinal, não estaria inteiramente só. Victor irá com você. No que me diz respeito, o principal trabalho dele sempre foi cuidar de seu bem-estar.
— Obrigada — disse ela. — Muito, muitíssimo obrigada. E, acima de tudo, obrigada por dizer isso na frente de Tom.
— Tom já é um rapaz.
— Está querendo dizer que ele tem idade suficiente para pensar...
— Estou querendo dizer que ele atingiu uma idade em que pode viajar e divertir-se com outras pessoas de sua própria idade. Nos ambientes adequados. Certo, Tom?
— Acho que sim — respondeu Tom.
Entretanto, a expressão de crescente infelicidade no rosto da mãe o fez desejar retratar-se da calorosa concordância. Ardia de vergonha. Mal seu avô falara, percebera que estava ouvindo a verdade — o verdadeiro emprego de seu pai era cuidar de sua mãe. Tom se sentiu ligeiramente nauseado.
— Eu ficarei em casa, mamãe — disse.
Ela dedicou-lhe um olhar sombrio.
— Não fale assim para agradar-me, porque não me agrada. Simplesmente, deixa-me aborrecida.
— Tem certeza? — perguntou ele, através da mesa.
Glória não ergueu o rosto.
— Não preciso de você para cuidar de mim.
— Seis semanas seriam ótimas — disse Upshaw. — Um período longo o bastante para ter uma experiência real. E quando você estiver de folga por conta própria, naquelas épocas em que os negócios o deixarem livre, a cabana estará lá à sua espera.
— Diga obrigado — falou sua mãe, em voz sem inflexões.
— Obrigado, vovô — disse Tom.
O PARAÍSO
No primeiro dia de suas férias de verão, um perturbado Tom Pasmore saiu de casa e começou a caminhar ao acaso pela Estrada Litorânea do Leste, em direção à An Die Blumen.
Os últimos dias de aula tinham sido acompanhados por uma enfiada de festas, nos quais ele caminhara de uma luxuosa sala para outra, sem ver Sarah Spence em qualquer delas. Perguntara-se por que tantos daqueles aposentos tinham sido pintados em matizes variados de rosa, até ouvir casualmente mãe de Posy Tuttle contar para a mãe de Moonie Firestone, que Katinka Redwing havia descoberto o melhor jovem decorador em Nova Iorque, o qual era um gênio do rosa.
— Um gênio — é a única palavra! E, naturalmente, Katinka o descobriu primeiro. Cada entardecer, às seis horas, olho para o mar, compreenda, a nossa praia, e é a coisa mais linda — o céu tem a mesma cor de minhas paredes!
Na sala vizinha, um de seus colegas vomitava dentro de um balde de champanha, em uma sala com paredes cor de um céu rosado, e várias horas mais tarde, um outro desmaiara na praia, as pernas das calças de seu traje a rigor enroladas até os joelhos. Só que, então, o céu estava tão negro como o estado de ânimo de Tom.
Ele havia dançado desajeitados tangos com Sarah, nas duas últimas aulas da srta. Ellinghausen daquele ano, mas quando lhe perguntou se Ralph Redwing vinha apanhá-la depois de cada aula, ela amuou-se e respondeu que isso nunca acontecera.
— Às vezes ele manda a carruagem — disse Sarah finalmente. — Eles são pessoas possessivas, você sabe. Não dê muita importância a isso.
Ela sorrira, quando ele lhe contou que iria ao Lago da Águia, porém depois disso, pareceu nervosa e calada, não tão falante quando durante o primeiro dia de ambos juntos; terminada a aula, Sarah escusou-se rapidamente e caminhou sozinha para a Calle Berghofstrasse — Tom ainda a achava bonita, mas quase desesperançada, um segredo que ele jamais saberia.
Quando Tom havia comparecido aos ensaios para a formatura, mantidos atrás do edifício principal da Brooks-Lowood, em uma atmosfera de tendas listradas e trajes de verão, Sarah se virou para sorrir-lhe, desde seu lugar na primeira fila, em companhia dos diplomandos mais adiantados. Ralph Redwing, o orador em uma dentre cada três formaturas na Brooks-Lowood, falou sobre “Responsabilidades Cívicas dos Líderes Cívicos”, anunciando que supervisionava a publicação de um livro intitulado Domicílios Históricos da Ilha, o qual apresentaria ilustrações de página inteira e plantas baixas de cada casa de Mill Walk em que membros da família Redwing tinham residido (exclamações abafadas, sussurros de antecipação das mães da Brooks-Lowood). Depois de entregues os diplomas e distribuídos os prêmios, Tom vagou para fora da tenda do chá, chegou ao campo de futebol e, através dele, olhou para o pátio de estacionamento dos visitantes, onde Sarah Spence e seus pais estavam entrando na cintilante carruagem de Ralph Redwing.
Chegando à esquina de An Die Blumen, Tom parou por um momento, olhando por entre as casas para o azul nevoento da baía. Na noite anterior à formatura, tinha visitado Lamont von Heilitz e teve a sensação de estar retornando ao seu verdadeiro lar — ele tanto gostava daquela sala vasta, excêntrica e atravancada, como de seu extraordinário morador — mas a noite se revelara experimental e inconclusiva. O Sombra parecia perturbado com a notícia da visita de Tom ao Lago da Águia. O mais aflitivo para Tom era que, pela maioria da noite, o velho negara sua relutância em que ele fizesse tal viagem.
— O senhor acha que eu não deveria ir ao Lago da Águia — dissera Tom. — Posso perceber isso. Quer que eu fique aqui e trabalhe com o senhor?
— Suponho que você fará o que quer fazer — respondera von Heilitz. — Em realidade, é uma questão de cronometragem.
— Está sugerindo que não quer que eu vá agora?
O Sombra respondeu com outra pergunta:
— Está pretendendo ir sozinho? Glen não incluiu sua mãe no convite?
Tom sacudiu a cabeça.
Pela primeira vez, o recluso detetive deu-lhe a impressão de intensamente solitário, de uma forma que iluminava a própria solidão de Tom. Se ficasse seis semanas ausente de Mill Walk, estaria privando o velho de seu único companheiro. Entretanto, Tom não falaria nisto. Von Heilitz continuou parecendo angustiado e pouco à vontade, como se tivesse a fazer certas coisas que Tom não testemunharia. Assim, Tom sentiu-se excluído, tão pouco à vontade quanto seu amigo — foi esta a primeira frieza real entre os dois. Tom pensara em perguntar a von Heilitz se ele estava a par de algum problema no Hospital Shady Mount, mas o velho havia cruzado a sala e posto um disco para tocar.
— Mahler — disse ele.
Pouco depois, sons semelhantes a tiros de pistola e gemidos de campo de batalha encheram a sala. O velho arriou em uma poltrona, colocou os pés em cima da mesinha e fechou os olhos. Tom viu-se rejeitado. Supunha que tudo fosse com seu avô — não se podia esperar que semelhante homem tivesse um comportamento de pessoa comum.
Agora, erguendo os olhos da calçada, viu a porta principal de uma enorme mansão espanhola em The Sevens abrindo-se inteiramente. No mesmo instante desejou ser invisível, em seguida, que estivesse bem diante da casa. Um cãozinho castanho e branco surgiu primeiro, forcejando em sua coleira e erguendo as patas dianteiras. Tom cedeu ao desejo de invisibilidade e moveu-se para o lado da cabina vermelha. Vestindo uma camisa azul com as mangas enroladas, shorts brancos e tênis também brancos, Sarah Spence apareceu segurando a correia do cachorrinho. Rindo, ela disse algo para o animal e fechou a porta atrás de si.
Sarah seguiu o ansioso cãozinho pelos degraus de tijolos vermelhos, os cabelos sacudindo-se, e começou a andar pelo amplo caminho de pedras, em direção à calçada. O braço livre oscilava, as pernas esguias e queimadas de sol oscilavam, até os bem-feitos pés brancos oscilavam. Tinha as costas muito eretas, e os cabelos amontoavam-se e soltavam-se a cada passo. O cão trotou pela calçada abaixo, puxando-a pelo quarteirão.
Tom afastou-se da cabine telefônica e ficou espiando Sarah afastar-se. Depois cruzou a An Die Blumen e começou a descer The Sevens, meio quarteirão atrás dela. O dia, que ele mal havia percebido antes, agora parecia admiravelmente límpido e fresco: um sol puro caía diretamente sobre o luzente cabelo de Sarah e a linha reta de seus ombros. Ele notou que sentia prazer simplesmente pela maneira eloqüente como ela caminhava, as pernas douradas movendo-se em passos quase grandes demais e os pés deslizando acima da calçada, como se possuíssem asas.
Tom acelerou o passo. Não podia imaginar por que quisera esconder-se de Sarah Spence, nem o que diria a ela quando finalmente a alcançasse.
Naquele momento, Sarah virou a cabeça e o viu.
— Tom! — ela quase gritou, parando de caminhar tão bruscamente, que as patas dianteiras do cão se ergueram do chão. Sarah se virou para encará-lo, transferiu a correia para a outra mão e cedeu um passo ao animalzinho, que começara a farejar uma árvore. — Por que está sorrindo para mim? Por que não disse nada?
— Eu ia alcançá-la — falou ele, respondendo à segunda pergunta.
— Ótimo — disse ela. — Você pode me ajudar a fazer Bingo passear. Acho que ainda não o conhecia, não é?
Ele meneou a cabeça e olhou para o cão subitamente atento, que o encarava de orelhas em pé e uma cauda minúscula espetada no ar.
Tom inclinou-se para afagar o cão, que continuou a fitá-lo com olhos muito atentos e inteligentes.
— Diga para Tom que seu nome é Bingo. Ele é um estranho, nem mesmo conhece você!
— Que idade ele tem?
— Sete anos. Eu lhe falei sobre ele — bem, não fico surpresa por ter esquecido. Foi naquele dia em que o visitei no hospital. Quando fiquei morta de constrangimento.
Tom abanou a cabeça. De boca aberta e língua pendendo, Bingo parou de olhar para ele e ficou esperando que sua dona reiniciasse a caminhada.
— Tudo bem — ele ficou sendo meu, no dia em que eu soube de seu acidente.
— Então, ele tem a minha idade — disse Tom, sem pensar no que dizia. Depois, reparando na expressão de Sarah, acrescentou: — Lamento, isso deve ter parecido engraçado. Eu queria dizer, ah, bem, acho que não sei o que quis dizer.
Deu um passo para diante e Sarah sorriu para ele, ainda com um resto de intrigado divertimento nítido no rosto, e começou a caminhar ao lado de Tom.
— Eu nem mesmo sei para que faculdade você vai — disse ele, depois de alguns momentos de silêncio.
— Oh, eu fui aceita na Hollins e na Goucher, mas estou indo para a Mount Holyoke — parecia interessante, e Moonie Firestone também foi aceita lá, portanto... — Ela ergueu os olhos de banda para Tom, fechou a boca, depois tornou a abri-la. Disse: -Tom... — e interrompeu-se. Baixou os olhos para o cãozinho forcejando a coleira à sua frente, e então falou novamente. — Meus pais querem muito que eu vá para um colégio feminino. Acho que vai ser legal durante um ou dois anos, mas já estou pensando em transferência. Não soa ridículo? Ainda nem estou lá! Butch acha que eu devia transferir-me para o Arizona. E você, sabe para onde vai?
— Tulane, talvez. Se for aceito.
— Então, é possível que eu me transfira para Tulane.
Sarah ergueu os olhos para ele, como fizera antes e, de repente, Tom recordou com exatidão como ela parecera, ao visitá-lo no hospital — como o rosto que tinha agora, que era um rosto de menina tornada mulher, havia sido formado daquele outro, ainda de criança, e com que ansiedade desejara que ela o tocasse. Sentiu vontade de passar o braço em torno dela, porém Sarah falou antes que ele se decidisse.
— Você vai mesmo para o Lago da Águia este verão? — Ele assentiu. — Escute, eu nem pensei, quando estive falando com você — na srta. Ellinghausen. É como se, a cada vez que falasse com você, eu sempre diga algo tão idiota, que mais tarde tenho vontade de encolher-me e morrer, quando recordo o que disse.
— E daí?
— Bem... se você vai realmente, acho que deve estar tudo certo. Está, não está?
— O que deveria estar certo?
— Oh, o Lago da Águia não é apenas um lugar qualquer para você, concorda?
Tom apenas baixou os olhos para ela.
— Eu compreendo que você não possa pensar naquele lugar do mesmo jeito que nós e, então, apenas fiquei surpresa... — Como ele permanecesse calado, Sarah parou de caminhar e agarrou-lhe o braço de leve. — Sei que sua mãe afogou-se, hum, morreu...
Por um momento, os dois pareceram absolutamente confusos: Tom recordava manchetes do diário de Lamont von Heilitz e viu uma foto de Jeanine Thielman, com uma bela perna à mostra, quando descia de uma carruagem.
— Oh, meu Deus! — exclamou Sarah. — Pronto, fiz de novo! Não sei o que há de errado comigo. Por favor, desculpe-me!
Ela parecia tão angustiada, que quase chorava.
— Não foi minha mãe — disse ele. — Foi minha...
— Eu sei, eu sei — disse Sarah. — Não imagino o que — sei que era sua avó, mas na minha cabeça... Bem, acho que é porque nunca vi sua mãe, e então comecei a pensar que...
Sarah estendeu as mãos, e Bingo rosnou. Os dois olharam para o cãozinho e depois para a esquina vazia, encarada fixamente por ele. O pequeno animal puxava a correia para diante e continuava rosnando surdamente.
— É fácil confundir-se — disse Tom, como se falasse por experiência própria.
— Eu tinha tanta certeza! — Ela começou a ficar vermelha. — Como consegui entrar em alguma faculdade? Como cheguei a terminar o ginásio? Começo a parecer um Redwing!
— Foi apenas um engano — disse Tom.
Bingo continuava emitindo ruídos ameaçadores e raivosos, sempre puxando sua correia para diante.
— Bingo! Ele odeia ficar preso, é tão impaciente... — Abalada pelo que havia dito, Sarah deixou que o cão a puxasse para frente. — Eu sinto muito, não posso...
Dando de ombros, ela fez um elaborado gesto de desculpas com a mão livre. Tom percebeu que podia caminhar até o hospital e ver por si mesmo o que tinha acontecido com Nancy Vetiver — então teve a sensação de que estivera planejando ir ao Shady Mount desde que saíra de casa.
— Tenho que ir a um lugar — disse ele, movendo-se à frente de Sarah e do cão forcejando a correia, o qual lhe lançou um olhar impaciente e irritado. — Está tudo bem! Até breve!
Ela girou os olhos e sacudiu a cabeça.
— Até breve! — gritou. — Por favor!
Tom olhou para trás, da esquina mais distante da rua de Sarah, e a viu espiando para ele. O pequeno terrier ainda puxava a correia, ela deu um passo em frente e acenou, hesitante. Ele retribuiu o aceno e cruzou a interseção de Yorkminster Place. Casas que vira e conhecera a vida inteira mostravam fachadas insossas e sem vida; aspersores giravam zumbindo acima de uma grama que parecia feita de algodão-doce. Através de janelas abertas às brisas, avistou imaculadas salas vazias, com pianos de cauda e quadros agigantados.
Deixou para trás a Estrada Salisbury, Ely Place e Círculo Stonehenge, depois Victoria Terrace e a Estrada Ondurman. Entre a Estrada Ondurman e a Alameda Balaclava, as casas ficavam ligeiramente menores e mais aproximadas umas das outras. Na altura da Parada Waterloo, eram edifícios comuns de três pavimentos e moradias de tijolos vermelhos. Um homem, lendo um jornal em sua varanda da frente, ergueu os olhos suspeitosamente, logo retornando à leitura do Eyewitness, ao ver que o passante era apenas um adolescente mais ou menos comum da Estrada Litorânea do Leste.
Carros, bicicletas e caleças tiradas por pôneis subiam enfileirados e enfileirados desciam pela Calle Berlinstrasse. Passou uma ambulância, depois uma segunda. Ao dar mais um passo, Tom percebeu que havia quatro viaturas policiais paradas em um caminho circular para veículos, no outro lado da rua. Suas luzes giravam e piscavam. Acima do torvelinho de ambulâncias e viaturas policiais, diante das quais começava a juntar-se uma multidão, erguia-se o prédio de tijolos vermelhos em que passara quase três meses, aos dez anos de idade.
Quando a luz do sinal mudou, ele cruzou a rua correndo e começou a abrir caminho através das pessoas espiando acima do topo dos veículos da polícia.
Um policial estava parado diante da porta giratória que conduzia à sala de espera e balcão de recepção do hospital. Teria vinte e tantos anos, o uniforme era bem passado e imaculado, o rosto parecendo muito branco abaixo de seu visor. Seus botões cinto e botas cintilavam. Ele mantinha os olhos à cautelosa altura de uns trinta centímetros, acima das cabeças das pessoas da multidão.
— O que aconteceu? — perguntou Tom a uma mulher robusta, carregando uma sacola de compras em plástico branco.
Ela parou e levantou os olhos para ele.
— Tive sorte em estar bem aqui, quando todos os tiras chegaram — segundo me parece, alguém foi morto aí dentro.
Tom avançou para o espaço vazio entre os espectadores e o policial solitário, parado no topo dos degraus da entrada do hospital. O jovem tira fitou-o com dureza, depois tornou a concentrar-se no nada. Quando Tom começou a subir os degraus, ele afastou as mãos do coldre da arma e cruzou os braços sobre o peito.
— Poderia me dizer o que aconteceu, policial?
Tom era uns quinze centímetros mais alto do que ele, e o policial precisou bandear o pescoço, a fim de encará-lo.
— Vai entrar ou não? Se não vai, é melhor ir embora.
Tom embrenhou-se na porta giratória, deu dois passos na direção da recepção, e parou de repente.
Seu passado havia sido reescrito. A pequena sala de espera, com duas ou três cadeiras desconjuntadas e uma divisória baixa de madeira, separando um recinto igualmente pequeno, com uma central telefônica e recepcionista, tinha agora o tamanho de uma estação para trens. Bancos de madeira e cadeiras de plástico moldado alinhavam-se contra as paredes, em ambos os lados. Pacientes em roupões de banho, a maioria deles olhando fixamente para o próprio colo, ocupavam algumas daquelas cadeiras. Um velho de bigode, em uma cadeira de rodas, ergueu os olhos bruscamente à chegada de Tom, e um fio de baba escorreu de seu lábio inferior. No extremo oposto do grande saguão, uma nova divisória, de espesso e translúcido vidro ou plástico, dividia a sala de recepção do saguão. Atrás daquela divisória, mulheres moviam-se entre arquivos, sentavam-se em mesas com telefones colados aos ouvidos e consultavam papéis em suas mesas.
No amplo piso de mármore entre a porta giratória e a divisória havia dois grupos de policiais, que fizeram Tom recordar o confuso ajuntamento de equipes opostas de futebol. O saguão estava muito mais escuro do que a rua.
— Natchez! O que está fazendo aí? — chamou um policial que estava no grupo mais numeroso. — Estamos aqui para fazer um trabalho!
Tom estivera procurando esgueirar-se ao lado dos velhos ocupando as cadeiras. Ergueu os olhos ao ouvir aquele nome. Um corpulento policial à paisana sussurrou algumas palavras a seus colegas e começou a mover-se na direção dos outros. Parecia um atleta, musculoso e cheio de si. Um rubor irritado cobriu-lhe as faces. Na maneira como os outros policiais se afastaram para admiti-lo, depois amontoando-se um pouco apertado demais à volta dele, Tom detectou uma hostilidade maldissimulada. Então, recordou o nome: Natchez era um dos dois detetives que tinham revistado a casa do Sombra.
Recuou para junto da parede e sentou-se, à espera de que os policiais deixassem o saguão. O detetive Natchez cruzou o piso e apertou um botão do elevador. Alguns dos outros policiais continuaram de olhos fixos nele. Os homens com quem Natchez estivera falando dispersaram-se.
— Minha filha vai vir hoje — disse o velho ao lado de Tom.
— O senhor sabe por que todos estes policiais estão aqui? — perguntou-lhe Tom.
O lábio inferior do velho pendeu e os olhos dele ficaram vermelhos.
— Conhece a minha filha?
— Não — respondeu Tom.
O velho aferrou-lhe o braço e inclinou-se bem perto dele.
— Alguém morreu — murmurou. — Assassinado. Hoje é o aniversário da minha filha.
Tom libertou o braço da pressão dos dedos do velho. Um buraco se abrira na superfície da terra, no qual ele acabara de cair.
— Eles querem enchê-la de balas de chumbo — disse o homem — mas eu não vou deixar.
Outro velho, algumas cadeiras mais adiante, caminhou com dificuldade para eles, sem dúvida não querendo perder aquela interessante conversa, e então Tom se levantou rapidamente. Um policial do grupo original lançou-lhe um olhar de hostilidade impessoal. Tom baixou os olhos e deu meia-volta. Foi quando viu as barras de calças azul-escuras muito bem passadas e lustrosas botas negras de botões, projetando-se da parte inferior do roupão usado pelo segundo velho. O primeiro e quase todos os demais pacientes sentados no saguão usavam pijamas frouxos e chinelos. Tom olhou para o rosto do homem e viu que ele também o olhava.
A princípio, o segundo velho era indistinguível de todos os demais — os cabelos grisalhos caídos sobre o rosto, o lábio pendido e gotejando, a cabeça trêmula. O homem apertou mais o roupão em torno do pescoço, inclinando-se a fim de murmura algo. Tom recuou, porém os olhos do homem permaneciam fixos nele. Eram olhos vivos e inteligentes, de maneira alguma aparentavam senilidade. Um choque de reconhecimento sacudiu o rapazinho. E então — com novo choque que quase o fez dar um grito — Tom percebeu que estava olhando para Lamont von Heilitz.
Por sobre o ombro, ele espiou para os policiais. O tira hostil encaminhava-se para Natchez, com a intenção de dizer-lhe algo desagradável, cara a cara. Tom deslizou para o assento ao lado de von Heilitz, fitou-o por um segundo e desviou os olhos. O Sombra clareara o rosto com maquilagem e colocara sobrancelhas espessas, desgrenhadas, sobre as suas. O rosto inteiro parecia macilento, imbecil e desiludido.
— Não olhe para mim — as palavras pareciam falar por si mesmas.
Tom passeou o olhar pelo vasto saguão que se esvaziava. O policial encarregado do primeiro grupo movia-se para um corredor à direita da nova recepção. Os outros encaminharam-se para as portas e elevadores: havia o mesmo senso de inatividade sentido por Tom, logo que entrara ali.
— O que o senhor está fazendo aqui? — sussurrou.
— Minha casa, esta noite — disse von Heilitz, na mesma maneira ventriloquista.
— Alguém morreu?
— Vá! — ordenou von Heilitz.
Tom levantou-se, como se espetado por um alfinete. Perambulou pelo enorme vazio. O elevador em que o detetive Natchez desaparecera retornava ao saguão, e quando Tom chegou à recepção suas portas se abriram. O detetive Natchez e dois policiais uniformizados emergiram a cada lado de uma maca com rodas e coberta por um lençol, que obviamente carregava um cadáver. Tom sentiu-se despencar novamente pelo buraco na superfície da terra. Eu fiz isso, pensou. Escrevi uma carta, e esse homem morreu.
— Em que posso ajudá-lo?
A mulher sentada à mesa da recepção de frente para a divisória baixara o telefone e olhava para Tom, com um ar de ríspido desafio, sugerindo preferir não fazer nada do que perguntava.
— Ah... eu visitava uma pessoa amiga, no andar de cima — disse Tom — quando vi todos estes policiais aqui e...
— Não, não foi nada disso — replicou ela.
— Como?
— Você não estava visitando um paciente, não neste hospital — disse ela. Seus cabelos perfeitamente negros, inertes, eram repuxados da testa baixa em uma crista alta, e óculos de meia armação empoleiravam-se logo abaixo da ponte do nariz, como se com ordem de não irem mais adiante. — Eu o vi entrar no saguão, há coisa de um ou dois minutos, rapazinho, e os únicos pacientes com quem teve algum contato foram aqueles dois homens sentados junto à parede. Vai deixar este hospital sozinho ou terei de providenciar-lhe uma escolta?
— Eu gostaria que me contasse o que aconteceu aqui.
— Isso não seria absolutamente da sua conta, seria?
— Duas pessoas me disseram que alguém foi assassinado.
Os olhos dela arregalaram-se, e seu queixo elevou-se mais um centímetro.
— Eu gostaria de falar com Nancy Vetiver — disse Tom. — É uma enfermeira que...
— Enfermeira Vetiver? Agora é a enfermeira Vetiver? E com quem gostaria de falar depois disso, o rei Luís XIV? Nosso pessoal está ocupado demais, para dar atenção a extraviados como você, em especial quando aparecem por aqui gaguejando sobre coisas que — Policial! Policial! Quer vir até aqui, por favor?
Todos os policiais do saguão olharam para eles e, após uma leve hesitação, o policial que enviara o detetive Natchez para o andar de cima encaminhou-se em direção à recepção. Ele nada disse, mas olhou primeiro para Tom e depois para a recepcionista, com um sorriso tenso, impaciente, inteiramente artificial.
— Policial...? — começou ela.
— Vá em frente com isso — falou ele.
De repente, toda a cena pareceu errada a Tom, essencialmente desajustada. A própria recepcionista havia sido atingida pela hostilidade do policial. Alguns homens no saguão pareciam irritados, outros quase triunfantes, sob sua máscara de indiferença.
— Este rapazinho — começou novamente a recepcionista — entrou aqui no hospital com falsas alegações. Disse algo sobre um assassinato, está perguntando por enfermeiras, está perturbando...
— Estou pouco ligando, dona — disse o policial, afastando-se e sacudindo a cabeça.
— É assim que fazem o seu trabalho? — gritou ela para o homem. Sua voz era ferina o bastante para partir madeira. Então, avistou uma fonte de ajuda mais provável. — Doutor, poderia ajudar-me aqui — por um momento?
O dr. Bonaventure Milton acabara de emergir do corredor à direita da recepção, acompanhado por um indivíduo esguio, moreno e anônimo, trajando uniforme azul, com um gritante alamar. O gordo e baixote médico, com seu pincenê e gravata borboleta, olhou da recepcionista para ele e sorriu.
— Naturalmente, srta. Dragonette. Algum problema com este meu jovem amigo?
— Amigo? — Ela agora parecia Sobressaltada. — Este rapazinho esteve dizendo coisas sobre assassinato — tentou penetrar no hospital — perguntava por uma enfermeira... Quero que seja expulso.
O dr. Milton fez gestos tranqüilizadores com as mãos.
— Estou certo de que podemos resolver isto, srta. Dragonette. Este jovem é Tom Pasmore, neto de Glendenning Upshaw. Faz apenas uma ou duas semanas, estive com ele no Clube dos Fundadores. Muito bem, o que deseja, Tom?
A srta. Dragonette havia abdicado para o pequenino médico, e agora tentava galvanizar o oficial ao lado dele, verrumando-lhe buracos na cabeça com os olhos.
— Eu apenas estava lá fora, quando vi todas as viaturas paradas aqui, e tive vontade de entrar... Recordei que meu avô não me tinha telefonado para falar sobre Nancy Vetiver...
Tom olhou para o oficial no garboso uniforme e ficou desconcertado, não só pela frieza nos olhos do homem, como pela impressão de já o ter visto antes.
— Eu não me admiraria! — exclamou a srta. Dragonette.
— Algum problema? — perguntou o oficial.
Desta vez, Tom reparou em sua cabeça calva, seu rosto anguloso, e reconheceu o capitão Fulton Bishop. Seu estômago gelou — por um momento, sua única vontade foi dar meia-volta e correr. O capitão era mais baixo do que parecia na televisão. O homem não tinha o menor humor. Parecia mais um torturador, em um desenho medieval.
O dr. Milton olhou rapidamente de Tom para o capitão Bishop, e então, de maneira questionante, outra vez para Tom.
— Oh, não creio que haja qualquer problema — concorda? O rapaz procurava a enfermeira Vetiver, uma velha conhecida sua. Por falar nisto, Tom, este é o capitão Bishop, que fez todo aquele excelente trabalho, levando o assassino da srta. Hasselgard à justiça.
Nem Tom e nem o capitão Bishop fizeram menção de apertar mãos.
— Este foi um dia infeliz para todos nós — prosseguiu o médico. — Um dos homens do capitão, um patrulheiro chamado Mendenhall, morreu esta manhã. Fizemos o que pudemos, porém ele estava seriamente ferido — teve uma morte de herói, foi um dos primeiros a entrar na casa do assassino; acreditamos que conseguiríamos salvá-lo, fizemos o máximo ao nosso alcance, apesar de certa interferência — aqui, um significativo olhar para Tom — mas o pobre Mendenhall escapuliu de nós, há cerca de meia hora. Uma tragédia, naturalmente.
— E por que há tantos policiais aqui? — perguntou Tom.
Não se achava inteiramente cônscio de estar falando, porque acabara de despencar novamente por aquele buraco na superfície da terra.
— Viemos recolher o corpo — disse Bishop, em voz sem entonação.
— Bem, isso não fez qualquer sentido para mim — disse a srta. Dragonette. — Ele falou qualquer coisa sobre um assassinato.
— Um daqueles velhos me disse isso — é um velho senil, ele realmente não dizia coisa com coisa...
Agora, tanto o médico como o capitão Bishop o encaravam fixamente.
— Qual deles? — perguntou o capitão.
Tom olhou de novo para o lado da sala. Von Heilitz já se fora.
— Aquele velho do roupão de banho amarelo. — Ele se virou outra vez para o médico. — Na verdade, eu entrei para ver Nancy Vetiver.
— O sr. Williams nem sabe que dia é hoje — disse a srta. Dragonette. — Fica lá sentado o dia inteiro, esperando a filha, mas não a reconheceria se ela entrasse por aquela porta. Aliás, uma coisa improvável, já que ela mora em Bangor, no Maine.
— Falarei com o senhor mais tarde, doutor — disse o capitão.
Em seguida, cruzou o saguão e desapareceu através da porta giratória, seguindo os homens que empurravam a maca com o corpo do policial morto. O dr. Milton suspirou, enquanto o via afastar-se.
— O que você está tentando fazer? Tem alguma noção...? — Ele meneou a cabeça. — Eu cuidarei disso, srta. Dragonette. Venha comigo, Tom.
O médico o levou para o corredor à direita da recepção. Deslizou o braço através do de Tom, dizendo:
— Deixe-me ter certeza de que entendi tudo isso. Você entrou aqui procurando a enfermeira Vetiver — por causa da conversa que ouviu em casa de seu avô. Queria certificar-se de que a moça está bem, acertei? Viu os policiais no saguão. Sentou se ao lado do tal velho, que começou a gaguejar sobre um assassinato.
— Exatamente — disse Tom.
— É preciso que você compreenda — as coisas ficam muito sensíveis, quando morre um membro da polícia. Os sentimentos inflamam-se.
Tom perguntou-se o que tinha visto. Uma demonstração de profundo sentimento? Recordou os dois grupos de policiais, o senso de hostilidade e alguma estranha vitória. Seu senso de culpa o fazia imaginar-se caminhando através de denso nevoeiro, incapaz de ver ou pensar adequadamente.
O médico fitou constrangidamente os olhos de Tom.
— É preciso ser cuidadoso, Tom. É preciso não perturbar as pessoas. Atualmente, estão todos um pouco sensíveis. O caso Hasselgard, tudo isso... sabe como é. Você é um rapazinho inteligente. Vem de uma boa família e tem uma longa vida pela frente.
— Esse tira, Mendenhall, morreu por causa do “caso Hasselgard”.
— Indiretamente, sim — disse o médico, começando a parecer aborrecido.
— Por causa da carta que o capitão Bishop recebeu.
— O que sabe sobre essa carta? Quem lhe disse...
— Estava no noticiário. Só que ninguém mais viu a carta, além do capitão Bishop, não é?
— Não entendo o seu ponto de vista, caso tenha algum.
— Meu ponto de vista é... — Tom vacilou, então prosseguiu. — E se a carta, em realidade, dissesse algo mais? E se nada houvesse dito sobre um pobre mestiço, ex-presidiário, chamado Foxhall Edwardes? E se provasse que, de fato, foi outra pessoa que matou Marita Hasselgard e que sua morte estava diretamente relacionada ao que acontecia com o Tesouro?
— Isto é ridículo! — exclamou o médico. — Um homem acabou de morrer aqui!
— E aqui há um bocado de outros homens que não parecem precisamente infelizes com isso — replicou Tom.
— Lembre-se de que existem policiais leais e policiais desleais — disse o dr. Milton. — O que está tentando fazer, Tom? Cartas reais e cartas irreais, perguntas sobre assassinato...?
— Como poderia esse Mendenhall ser desleal, se foi morto na linha do dever? Desleal a quê?
O dr. Milton procurou controlar-se visivelmente.
— Ouça, Tom, leal significa não abandonar os seus. Você sabe quem são eles: seus vizinhos, seus amigos, sua família. Eles são você. Não fuja de si mesmo!
O médico empinou as costas e alisou sua bata.
— Você tem que viver neste mundo com o resto de nós — disse ele. Olhou para seu relógio. — Espero que nós dois esqueçamos esta conversa. Hoje ainda tenho muito o que fazer. Por favor, dê recomendações minhas a sua mãe e a seu avô. -Ergueu rispidamente os olhos para Tom, ainda agitado, caminhou em tomo dele e começou a caminhar de volta ao saguão. Após dar alguns passos, fez alto e tornou a encarar Tom. — Por falar nisso, a enfermeira Vetiver foi suspensa. Esqueça todo esse assunto, Tom.
— E quando a Hattie Bascombe? — perguntou Tom.
Desta vez o médico riu.
— Hattie Bascombe! Imagino que esteja no antigo bairro dos escravos, caso ainda viva. Aposentou-se há alguns anos. Suponho que ande murmurando sobre um osso de galinha e lançando feitiços. Uma figura, não era?
— Sim, uma figura — disse Tom para o médico, que já recomeçara a andar.
— Eu queria saber se você gostaria de fazer uma excursão comigo — disse Tom.
Ele falava ao telefone com Sarah Spence, e passava pouco de quatro horas. Seu pai ainda estava no escritório, na Calle Hoffman — ou fazendo o que quer que fizesse, quando não se encontrava em casa — e Glória Pasmore permanecia em seu quarto, no andar de cima. Quando voltara do hospital, Tom abrira a porta do quarto dela, que deixara escapar uma onda de música suave e vapores de uísque, e espirrou, encontrando-a espalhada na cama, adormecida. Era a “soneca da tarde” de sua mãe.
— Parece interessante, mas estou um tanto ocupada — disse Sarah. — Eu e mamãe estamos nos preparando para viajar. Vamos lá para o norte. Papai enunciou de repente que iremos cedo este ano, de maneira que só temos dois dias para fazer as malas. Bem, o que ele disse, foi que iremos no avião particular dos Redwing. E eu não consigo encontrar Bingo em lugar nenhum! Enfim, claro que é ridículo preocupar-me com Bingo. — Após uma pausa, ela perguntou: — Que espécie de excursão?
— Pensei que podíamos ir a algum lugar.
— Você não ficará de boca aberta, pálido e fugirá, se eu disser alguma coisa totalmente idiota?
Tom deu uma risada.
— Não. E tampouco vou me lembrar, de repente, que tenho de ir a algum lugar qualquer.
— Então, quer começar tudo novamente, do ponto em que ficamos? Quando nos despedimos? Gosto da idéia.
— Eu estava pensando em ir a algum lugar diferente — disse Tom. — O antigo bairro dos escravos.
— Nunca estive lá.
— Nem eu. Ninguém da extremidade leste já pensou em ir lá.
— Não fica muito distante?
— Nem tanto. Não levaríamos mais de meia hora por lá.
— Fazendo o quê? Investigando antros de ópio, organizando algum bando para o tráfico de escravas brancas, seguindo a pista do dinheiro roubado do Tesouro ou...
— Que tipo de livros anda lendo?
— Principalmente o lixo que o vejo carregando pelos corredores do colégio. Acabei de ler Red Harvest. O que você pretende fazer lá?
— Visitar uma velha amizade — disse Tom.
— Será uma excursão ou uma aventura? Eu gostaria de saber. Também gostaria de saber quem será a velha amizade.
— Alguém que eu conhecia. Alguém do hospital.
— Aquela enfermeira que o achava tão interessante? Lembro-me dela. Por que ela estaria vivendo no antigo bairro dos escravos? Talvez queira libertá-la de um antro de vício e precisa de mim para distrair os tuaregues e marujos indianos.
— Não, não se trata daquela enfermeira, mas de outra — respondeu Tom, divertido e desconcertado ao mesmo tempo. — Chamava-se Hattia Bascombe. Enfim, ela talvez possa me dizer algo sobre a outra.
— A-ha! — exclamou Sarah. — Eu sabia! Tudo bem, irei com você, apenas para protegê-lo. Vai levar seu revólver ou devo levar o meu?
— Cada um leva o seu — disse Tom.
— Mais uma coisinha. Acho que esta será uma excursão automotiva, não uma viagem caminhativa.
— Eu não sei dirigir.
— Pois eu sei. — disse Sarah. — Sou um ás no volante. Posso pisar fundo no acelerador por entre um bando de criminosos, tão bem como qualquer um em Dashiell Hammett. Aliás, enquanto isso posso aproveitar para ir procurando Bingo.
— Devo ir aí ou...
— Esteja diante de sua casa em 15 minutos — disse ela. — Eu serei a boneca de óculos escuros e chapéu de aba elegante, atrás do volante do carro luxuoso.
Vinte minutos mais tarde, ele estava acomodado no banco do passageiro de um pequeno Mercedes branco conversível, provido do que lhe parecia um motor anormalmente ruidoso, vendo Sarah Spence engatar a mudança, enquanto acelerava através de um sinal amarelo no cruzamento e dobrava para a Calla Drosselmayer.
— Bingo não faz coisas assim — ela dizia. — Aliás, ele não é um cão muito aventureiro. Parece muito preocupado sobre se iremos ou não alimentá-lo.
— O que será dele, quando você for lá para o norte?
— Ficará em um canil.
— Então, ele provavelmente já adivinhou que vai voltar para o canil dentro de dois dias e resolveu dar umas andanças, a fim de matutar a respeito. Aposto que estará de volta à hora do jantar.
— Grande idéia! — exclamou ela. — Mesmo que não seja verdade, já me sinto melhor. — Depois acrescentou: — Na verdade, Bingo não é muito dado a matutar.
— Ele me deixou essa impressão — disse Tom.
Sarah dirigindo o deliciava — Sarah como companhia o deliciava. Tom pensou que jamais estivera em um carro com alguém que dirigisse como ela, mostrando tanto controle e euforia ao mesmo tempo. Sua mãe costumava dirigir a uns incertos oito quilômetros abaixo do limite permitido, murmurando consigo mesma a maioria do tempo, enquanto seu pai dirigia loucamente, com ódio dos outros motoristas, no segundo em que saía da entrada da garagem. Sarah riu do que ele disse. Quando freou em um sinal, inclinou-se e o beijou.
— Um cão matutador — disse ela. — Acho que você é o cão matutador, Tom Pasmore.
A luz do sinal mudou nesse momento, e o carrinho disparou pelo cruzamento, a claridade do sol os banhou por inteiro, e Tom sentiu que entrara em um momento de perfeição quase inumana. Seu senso de culpada responsabilidade desaparecera subitamente. Sarah ainda ria, provavelmente da expressão de seu rosto. Na calçada, as pessoas olharam para eles enquanto passavam em disparada. A luminosidade jorrava para baixo, e as fachadas de lojas elegantes na Calle Drosselmayer, de madeira dourada e vidro reluzente, cintilavam e brilhavam. Homens e mulheres sentavam sob guarda-sóis listrados em um café ao ar livre. Atrás de uma grande e brilhante vitrine, um trem de ferro de brinquedo bufava através de montanhas e passos nevados, sempre circulando de volta a um perfeito modelo em escala da Calle Drosselmayer — Tom viu o reflexo deles na vitrine, isto o fazendo imaginar-se com Sarah em um diminuto carro branco, na rua do modelo. Um grande paraíso inconsciente desdobrava-se em torno dele, o paraíso das coisas comuns.
Auer, pensou Tom. Our. Hour.* Recordou ter-se sentido da mesma forma pelo menos uma vez antes. Algum sepultado subcontinente de sua infância rompeu a superfície de seus pensamentos — ele recordou um senso de iminencialidade, de alguma coisa grande prestes a acontecer, da descoberta iminente de um lugar proibido...
* Ver a nota de rodapé da página 34.
Agora estavam na extremidade inferior da Calle Drosselmayer, rodando perto do St. Alwyn Hotel, cinzento, com uma semelhança de prisão. Anos atrás alguém fora assassinado ali — algum escândalo que desembocara em outro maior, tendo sido proibido pelos pais de ler a respeito, além de ser ainda novo demais para entender...
— Isto não é muito parecido a estar com Buddy — disse Sarah. — Ele só pensa em ir a lojas de armamentos.
— Já pensou no que quer ser? — perguntou ela, quando desciam a colina para a Rua Mogrom. — Você deve... Eu penso muito nisto. Meus pais querem que me case com alguém interessante e muito rico, e que more a uns dois quarteirões deles. Não imaginam por que eu desejaria fazer outra coisa.
— Meus pais querem que eu faça um monte de dinheiro e more a mil quilômetros de distância — disse Tom. — Só que, antes disso, querem que me diplome em engenharia, a fim de que possa estabelecer-me no ramo de construções. O sr. Handley quer que eu escreva novelas sobre Mill Walk. Meu avô quer que eu fique de boca fechada e me junte à sociedade John Birch.** A Escola Brooks-Lowood quer que eu finalmente tome jeito e aprenda a jogar basquete — vire aqui à direita, siga pelo beco e dobre novamente à direita para a próxima rua — e a srta. Ellinghausen quer que eu aprenda o tango. O dr. Milton, por sua vez, quer que eu pare inteiramente de pensar e seja um leal futuro membro do Clube dos Fundadores.
** Organização americana ultraconservadora, baseada principalmente no combate às atividades comunistas nos Estados Unidos. (N. da T.).
— E você, o que quer?
— Eu quero... quero ser o que realmente sou. Seja lá o que isso for. Bem, aqui estamos. Vamos parar e sair.
Sarah dirigiu a ele um olhar incerto e questionante, mas guinou o carro para a beira da calçada e parou quase dentro dos poucos metros de rua em que Dennis Handley havia estacionado seu Corvette. Os dois saíram. No vale que era a Baixada da Doninha, o ar recendia e fedia.
O cheiro de repolho cozido que vinha da casa amarela misturava-se ao fedor de lixo apodrecido que se desprendia do reluzente monte mais abaixo na rua, povoado de moscas. O monte de lixo havia crescido desde que Tom estivera ali com Dennis Handley: várias cadeiras quebradas e um tapete enrolado haviam sido adicionados a ele, juntamente com cinco ou seis manchadas sacolas de papel. Rádios de pouca potência enviavam para o ar fragmentos conflitantes de música quase inaudível. Uma criança gritou, muito longe dali.
— O que esteve queimando por aqui? — indagou Sarah, fungando.
— Uma casa e um carro. A casa fica a um quarteirão de distância, mas o carro está logo aí adiante.
Sarah caminhou até a rua vazia e o viu. Virando-se, olhou para Tom.
— Você já esteve aqui antes? — perguntou ela.
— Quando estive, o carro ainda não havia sido incendiado. O dono o largou aqui, pensando que ficaria seguro. Achou que ninguém o veria.
Tom caminhou até a rua de piso de terra e juntou-se a ela. Os restos do Corvette de Hasselgard assemelhavam-se a um inseto esmagado, abandonado ao sol. Os assentos, painel e volante agora eram esqueletos de metal queimado; os pneus, detritos negro-acinzentados debaixo dos aros; a carroceria inteira era uma concha enegrecida, já ficando alaranjada pela ferrugem. Alguém, na certa uma criança, a tinha martelado com um pesado bastão, depois atirando-o através do pára-brisa vazio.
— Quem era o dono?
Tom não respondeu à pergunta.
— Eu queria verificar se realmente o tinham queimado. Estava certo de que haviam incendiado a casa, pois ficou tão destruída pelo tiroteio, que devia correr o risco de desmoronar. Afinal, não sabiam bem o que haveria dentro dela. Eu não tinha certeza quanto ao carro; sem dúvida eles vieram na mesma noite — chegaram pelos terrenos baldios, com suas latas de gasolina. — Tom olhou para o rosto intrigado de Sarah. -O carro era de Hasselgard.
Ela franziu as sobrancelhas, mas nada disse.
— Viu só como eles agem? Como fazem as coisas? Nem se deram ao trabalho de retirar o carro furtivamente, na carroceria de um caminhão. Limitaram-se a encharcá-lo de gasolina e atear fogo. Eles resolvem tudo com marretas. As pessoas aqui certamente não dirão nada, não é mesmo? Porque sabem que, se abrirem a boca, suas casas serão incendiadas. A coisa nem apareceria nos noticiários da televisão.
— Está dizendo que a polícia queimou o carro de Hasselgard?
— Será que não deixei claro?
— Ora, Tom, mas por que...
Parecia que, afinal, ele teria de contar-lhe: as palavras quase saíram de sua boca por si mesmas.
— Eu escrevi a carta que a polícia recebeu — a carta que supostamente incriminaria aquele ex-presidiário, Foxhall Edwardes. Fulton Bishop a mencionou, em sua entrevista à imprensa. Era uma carta anônima, pois eu não queria deixá-los saber que um garoto a tinha escrito. Contei a eles como e por que motivo Hasselgard matou a própria irmã. No dia seguinte, o mundo veio abaixo. Eles mataram Hasselgard, mataram esse tal Edwardes, mataram um tira chamado Mendenhall e feriram Klink, seu parceiro, soltaram esta imensa nuvem negra...
Ele ergueu os braços, contido pela incongruência de dizer aquelas coisas terríveis a uma linda jovem de blusa azul e short branco, que estava pensando em um cão perdido.
— É todo este lugar! — exclamou. — Mill Walk! Supõe-se que devemos acreditar em cada palavra que eles dizem e continuar tendo lições de dança, supõe-se que devemos continuar procurando Boney Milton quando estamos doentes, supõe-se que devemos ficar excitados sobre um livro de fotos de cada casa em que os Redwings moraram!
Sarah deu um passo para mais perto dele.
— Não quero dizer que entendi tudo, mas você lamenta ter escrito a carta?
— Não sei. Sinceramente, não sei. Lamento a morte daqueles dois homens. Lamento o fato de Hasselgard não ter sido preso. Eu não sabia o suficiente.
Então, Sarah disse algo que o surpreendeu:
— Talvez você apenas tenha escrito para a pessoa errada.
— Se quer saber, acho que tem razão. Há um detetive chamado Natchez — eu pensava que ele fosse um dos vilões, porém um amigo me disse que Natchez era muito chegado a Mendelnhall. E esta manhã, no hospital, pensei ter visto que ele e alguns amigos seus...
— Por que não o procura?
— Eu preciso de mais. Preciso ter algo que ele já não saiba.
— Quem é este amigo? O que lhe falou sobre Natchez e Mendelnhall?
— Uma pessoa formidável — disse ele. — Um grande homem. Não posso dizer-lhe o nome, porque você zombaria de mim. Entretanto, gostaria que um dia o conhecesse. Que realmente o conhecesse.
— Realmente o conhecesse? Não está falando de Dennis Handley, está?
Tom deu uma risada.
— Não, não se trata de Handles. Handles já desistiu de mim.
— Porque não o levou para a cama.
— O quê?
Sarah sorriu para ele.
— Bem, de qualquer modo, fico satisfeito por não ser ele. Ainda iremos ao antigo bairro dos escravos?
— Você ainda quer ir?
— É claro que quero! Apesar do que meus pais desejam para mim, ainda não desisti inteiramente de esperar que eu possa levar uma vida interessante. — Sarah chegou mais perto dele e o fitou com uma expressão que fez Tom recordar a primeira vez em que a srta. Ellinghausen os reunira. — Eu realmente gostaria de saber aonde você vai. Também gostaria de saber aonde nós dois vamos.
Tom percebeu que ele não queria que a beijasse — acontecia apenas que Sarah via mais dele do que ele jamais esperara que visse. Ela não questionara nem descrera dele; ele não a tinha chocado; ela dera cada passo com ele. Esta garota que acusara mentalmente, pouco antes, de não pensar em outra coisa além de um cão perdido, de súbito parecia incomparável, imensa.
— Eu também — disse ele. — Talvez não devesse ter-lhe contado tudo isso.
— Imagino que teria de contar a alguém. Não foi o motivo de convidar-me para esta excursão?
E lá estava ela novamente; em suas próprias pegadas, desta vez ainda antes dele havê-las feito.
— Vai ou não apresentar-me a essa Hattie Bascombe?
Os dois sorriram um para o outro e retornaram ao carro.
— Fico contente por sua ida para o Lago da Águia — disse ela, quando já estavam no carro. — Tenho a impressão de que lá ficaria mais em segurança.
Ele pensou no rosto de Fulton Bishop e assentiu.
— Estou em segurança agora, Sarah. Nada vai acontecer.
— Então, se você é mesmo esse grande detetive que parece, encontre Bingo para mim.
Sarah ligou o motor e disparou para diante.
Tom estivera mais ou menos temendo e mais ou menos esperando que tornaria a sentir-se mal, ao se aproximarem do Parque Goethe; a esta altura, nem sabia o que esperar de uma visita a Hattie Bascombe, mas, pelo menos, tinha certeza de não querer ficar indisposto diante de Sarah Spence. Ainda não lhe contara que tudo quanto sabia do paradeiro da velha enfermeira era que ela morava no antigo bairro dos escravos, o que já era bastante embaraçoso.
Os números da rua passaram dos vintes para os trintas, enquanto desciam pela Calle Burleigh, e Tom ficou aliviado por não sentir qualquer sintoma de indisposição. Nenhum deles falou muito. Quando a fileira de casas e lojas diante deles cedeu lugar à grande fachada creme de uma igreja, e depois disso a árvores e campo aberto, ele lhe disse que dobrasse à esquerda no quarteirão seguinte. Sarah então manobrou em torno do focinho de um burro de carga e através de uma nuvem de bicicletas, entrando na Rua 35.
À direita deles, crianças impeliam os pais na direção de vendedores de cachorro-quente e balões de gás. Tigres e panteras exaustos jaziam achatados sobre os pisos de pedra de suas janelas. Um e outro animal uivavam no labirinto da trilhas entre as jaulas. Tom fechou os olhos.
Durante dois quarteirões após a extremidade sul do Parque Goethe, onde rapazes de jeans e camisetas jogavam críquete ante uma assistência de crianças pequeninas e cães vadios, as casas continuaram ordenadas e sóbrias, com varandas, águas-furtadas e canteiros de flores vivas. Bicicletas recostavam-se contra palmeiras nas calçadas. Então, Sarah dirigiu para o alto de um pequeno outeiro, onde um maciço de ciprestes se torcia na direção do sol, para em seguida descer em uma diferente paisagem.
Ao lado dos sujos tijolos vermelhos e janelas quebradas de uma fábrica abandonada vinha um desfile de tabernas e edifícios cambaios, muitos deles com acréscimos na parte dos fundos e conectados por passagens e passarelas. Nos dois lados da rua, avisos manuscritos nas janelas anunciavam quartos para alugar e todo tipo de refugo comprado a bons preços, roupas usadas baratas, cabelo humano comprado e vendido. As edificações de madeira, nos dois lados da rua, tapavam o sol da tarde. Em intervalos, arcadas e passagens abertas nas casas de cômodos, permitiam a Tom relances de pátios sem sol, nos quais homens ociosos passavam garrafas de um lado para outro. Das janelas, algumas faces espiavam para fora, tão estupidamente como os avisos: ossos, artigos comprados.
— Aqui, sinto-me como um turista — disse Tom.
— Eu também. É porque se supõe que nunca veríamos esta parte da ilha. Presume-se que não devemos conhecer os Pátios Elíseos, portanto, o lugar é como se fosse invisível para nós.
Sarah contornou um buraco no meio da rua estreita.
— Esse é o nome disto?
— Você não sabia sobre os Pátios Elíseos? Foram construídos para retirar pessoas do antigo bairro dos escravos — porque o bairro foi construído sobre um pântano e terminou ficando insalubre. Cólera, influenza, que sei eu! Estas casas de cômodos foram levantadas apressadamente, de modo que em pouco estavam ainda piores do que o bairro dos escravos.
— Onde foi que ouviu falar disto?
— Estas construções foram um dos primeiros projetos de Maxwell Redwing, por volta de 1900. Aliás, não foi um dos projetos mais bem-sucedidos. Exceto financeiramente, claro. Acho que os moradores de lá dão ao lugar o nome de Paraíso de Maxwell.
Tom se virou no assento, a fim de espiar para as cambaias casas de cômodos: as paredes externas formavam uma espécie de fortaleza e, através das arcadas e passagens, podia ver figuras difusas, movendo-se no labiríntico interior.
Agora estavam ao sol novamente e a claridade impiedosa batia nas pobres estruturas entre as paredes dos Pátios Elíseos e o antigo bairro ou quarteirões dos escravos — cabanas e choças de papel alcatroado esprimiam-se umas nas outras, nos dois lados da estreita rua em descida. Homens de expressão desesperançada encostavam aqui e ali nas soleiras. Um bêbado girava de um lado para outro à roda de um poste de iluminação com lâmpada quebrada, rodando sul-leste, leste-sul, como uma bússola quebrada.
As choças terminaram no final da ladeira. Pequenas casas de madeira, todas exatamente iguais, com um minúsculo alpendre coberto e uma só janela ao lado da porta, erguiam-se em terrenos pouco maiores do que elas próprias. O total da pequena área, não mais do que quatro ou cinco quarteirões quadrados, parecia opressivamente úmido. Na extremidade mais distante do antigo quarteirão dos escravos, visível entre as arrumadas fileiras de casas, havia um canavial abandonado que envolvera para um vasto e empilhado monturo de lixo; além da cerca de grades circundando essa lixeira, estendia-se o mar rutilante.
— Então, este é o antigo bairro dos escravos — disse Sarah. — Depois que se viu o Paraíso de Maxwell, presume-se que uma pessoa esteja preparada para tudo. Aonde vamos? Você tem o endereço dela, não tem?
— Dobre à direita — disse Tom, tendo visto algo entre as choças.
— Perfeitamente! — disse Sarah.
Ela dobrou para a rua que corria ao longo da orla norte do quarteirão. Diante deles havia uma cabana isolada, duas ou três vezes maior do que as outras e em condições visivelmente melhores, com um grande aviso feito a mão, pendurado do teto.
— Vá para trás dessa loja — disse Tom. — Depressa! Ele está saindo da porta dela!
Sarah olhou sobre o ombro, para ver se ele estava falando sério, e Tom apontou para a traseira da loja. Sarah engrenou e pisou fundo no acelerador. O Mercedes voou sobre a lama e pedras da rua, deslizando ao parar atrás da loja. Tom teve a sensação de que mal passara um segundo, após ele ter falado. Seu estômago ainda estava na rua mais atrás.
— Foi depressa o suficiente para você? — perguntou Sarah.
O rosto de uma menina de tranças e boca aberta assomou em uma janela, nos fundos da edificação.
— Hum-hum!
— E agora, pode me dizer o que está havendo?
— Escute — disse ele.
Dentro de segundos, eles ouviram um som de patas de cavalo e rangido de couro.
— Agora, espia para a rua — disse Tom, indicando o caminho por onde tinham vindo.
Durante muito tempo, o som do cavalo e de seu veículo foi ficando mais perto da loja; então, o som mudou subitamente, começando a afastar-se deles. Após um ou dois minutos surgiu uma caleça puxada por um pônei, recuando rua abaixo, dirigida por um homem de paletó preto e chapéu melão.
— É o dr. Milton! — exclamou Sarah. — O que estaria ele...
Uma forma pequena e em disparada lançou-se pela esquina da casa e saltou nos braços de Sarah. Quando parou de agitar-se e começou a lamber-lhe o rosto, Tom viu que era Bingo.
Sarah segurou o cãozinho nos dois braços e olhou para Tom, atônita.
— Acho que o dr. Milton deve tê-lo visto nos arredores do hospital, reconheceu-o e decidiu levá-lo em sua excursão, antes de devolvê-lo a você — disse ele.
— Sua excursão? No antigo bairro dos escravos? — admirou-se Sarah, erguendo o queixo para fora do alcance da língua de Bingo.
— Ele decidiu que me contara demais — replicou Tom. — Só que, agora, já sei onde Hattie Bascombe mora.
Sarah depositou Bingo no espaço vazio atrás dos assentos.
— Está querendo dizer que ele veio aqui, dizer a ela para não falar com você? Para ameaçá-la ou coisa assim?
— Se me lembro bem de Hattie Bascombe — disse Tom — isso não fará o menor efeito.
Sarah estacionou atrás de uma pilha de excrementos frescos de cavalo, e Tom saiu do carro.
— E se ele apenas veio ver um paciente? — aventurou ela. — Não seria nem remotamente possível?
— Quer vir comigo e descobrir?
Sarah dirigiu-lhe outro longo olhar, depois deu tapinhas na cabeça de Bingo, dizendo:
— Fique aqui!
Ela saiu do carro, olhou em torno para as filas de cabanas, para a cerca aramada e o enorme monturo de lixo. Gaivotas circulavam e mergulhavam; um odor leve, mas definido de excremento humano e podridão chegou até eles.
— Acho que, afinal de contas, eu devia ter trazido meu revólver — disse Sarah. — Tenho medo de que apareçam ratos para liquidar Bingo.
Entretanto, ela deu a volta pela frente do carro, juntou-se a ele e os dois caminharam para o alpendre. Tom bateu duas vezes.
— Vá embora daqui! — disse uma voz dentro da cabana. — Fora! Já tive o suficiente por hoje — não quero mais vê-lo!
Sarah recuou do alpendre e olhou para seu carro.
— Hattie...
— Já me disse tudo o que queria! Vai querer repetir tudo de novo? — Eles a ouviram mover-se lentamente para a porta. Depois disse, em voz mais moderada: — Olhei para você durante trinta anos, Boney. Não quero vê-lo nem um dia mais!
— Hattie, não é Boney! — disse Tom.
— Não? Então, acho que deve ser o Papai Noel.
— Abra a porta e verifique.
Ela abriu uma fresta e espiou para fora. Olhos negros e vivos em um rosto desconfiado avaliaram a figura alta de Tom, depois se moveram para Sarah. Ela abriu a porta um pouquinho mais. Seus cabelos brancos estavam repuxados para trás da testa, e as linhas do rosto, que tinham parecido amargas, agora mostravam uma curiosidade surpreendentemente jovem.
— Bem, de qualquer modo, você é um grandalhão, não é mesmo? Estão perdidos? Como sabe meu nome? — Olhou mais atentamente para Tom e todo o seu rosto abrandou-se. — Oh, minha nossa!
— Eu esperava que você me reconhecesse — disse Tom.
— Se não tivesse ficado esse gigante, eu o reconheceria no mesmo instante.
Virando-se, Tom apresentou Sarah, que aguardava embaraçosamente no pequeno pátio, com as mãos enfiadas nos bolsos do short.
— Sarah Spence? — disse Hattie. — Não fiquei sabendo por Nancy Vetiver, faz tanto tempo atrás, que você visitou este nosso menino no hospital?
Tom riu da recordação perfeita de Hattie, e Sarah disse:
— Acho que soube, mas como poderia lembrar...
— Eu me lembro de todos que foram visitar Tom Pasmore. Acho que ele era o garotinho mais se sentindo abandonado que já vi, em todo o meu tempo de trabalho no Shady Mount — e você era mesmo, sabe disso — falou ela, diretamente para Tom. — Espero que duas pessoas tão finas como vocês não pretendam ficar sua visita inteira paradas no meu alpendre. Não querem entrar?
Hattie sorriu, abriu a porta por inteiro, e Sarah e Tom passaram para o pequeno interior.
— Oh, mas que beleza! — exclamou Sarah, um segundo antes de Tom poder dizer a mesma coisa.
Tapetes gastos, mas limpos, cobriam todo o piso, e cada centímetro das paredes havia sido decorado com quadros emoldurados de todo tipo — retratos e paisagens, fotos de crianças, de animais, de casais e de casas. Após um segundo, Tom viu que a maioria deles havia sido recortado de revistas. Hattie também emoldurara cartões-postais, artigos de jornal, cartas, poemas manuscritos e páginas de livros. Ela deixara sua mesa e as cadeiras de encosto inclinado extremamente polidas, sendo o lustro intensificado por seus lampadários de bronze. A cama era uma envernizada plataforma de nogueira, suavizada por muitos travesseiros cobertos de tecido; a mesa-de-cabeceira poderia ter pertencido a George Washington. Em um canto, uma enorme gaiola continha um falcão empalhado. O efeito geral era de profusão e abundância. Uma amassada chaleira, pintada de vermelho-vivo, expelia vapor sobre o bico de gás ao lado do pequeno refrigerador branco contra a parede dos fundos, que também estava coberta por fotos emolduradas. Tom viu Martin Luther King, John Kennedy, Malcolm X, Paul Robeson, Duke Ellington e um auto-retrato de Rembrandt em vestes douradas, cujo rosto tinha a expressão mais sábia e desconcertante que ele já vira em qualquer outro.
— Faço o que posso — disse Hattie. — Moro perto da maior loja de móveis em toda Mill Walk e, além disso, tenho certa habilidade com as mãos. Muitas vezes, parece que os ricos preferem jogar coisas fora do que dá-las para os outros. Eu até sei de que casas vieram muitas de minhas coisas.
— Você tirou tudo isto da lixeira? — perguntou Sarah.
— A gente cata, escolhe, limpa e lustra. Por aqui, as pessoas sabem que gosto de quadros e me trazem molduras e coisas assim, quando as encontram. — A chaleira começou a sibilar. — Eu estava fazendo uma xícara de chá para Boney, mas ele não quis ficar — ficou só o tempo suficiente para dar um susto na Hattie. Era só o que ele queria. Vocês dois não estão tão apressados, estão?
— Nós gostaríamos muito de um pouco de chá, Hattie — disse Tom.
Ela despejou a água fervente em um bule e o cobriu. Trouxe para a mesa três canecas desemparelhadas que tirou de um pequeno armário amarelo, meio litro de leite e açúcar, em um açucareiro de prata. Depois, sentando-se ao lado deles, começou a dizer para Sarah quais haviam sido os donos originais de alguns de seus pertences, enquanto esperavam que o chá ficasse pronto.
A gaiola enorme havia pertencido a Arthur Thielman — ou melhor, à sra. Arthur Thielman, a primeira sra. Arthur Thielman, da mesma forma que seus lampadários de bronze; alguns sapatos, chapéus e outras roupas também haviam sido da sra. Thielman, porque quando ela morrera, o marido jogara fora tudo quanto lhe pertencera. A pequena e antiquada secretária, na qual guardava seus papéis, bem como o velho sofá de couro, tinham vindo de um famoso senhor chamado Lamont von Heilitz, que se desfizera de quase metade dos móveis que possuía, ao fazer qualquer coisa em sua casa — Hattie não sabia bem o quê. E aquela enorme moldura dourada, em torno do retrato do sr. Rembrandt...
— O sr. von Heilitz? Famoso? — perguntou Sarah, como se só então ligasse o nome a pessoa. — Deve ser o homem mais inútil que já nasceu! Ele nem mesmo sai de casa, nunca visita ninguém — como poderia ser famoso?
— Você é jovem demais para saber sobre esse senhor — disse Hattie. — Acho que nosso chá ficou pronto. — Ela começou a servi-los. — E eu sei que ele sai de casa volta e meia — porque vem me ver.
— O sr. von Heilitz a visita? — perguntou Tom, agora tão surpreso quanto Sarah.
— Alguns antigos pacientes aparecem de vez em quando — respondeu Hattie, com um sorriso para ele. — O sr. von Heilitz trouxe para mim algumas coisas que foram de seus pais — trouxe-as pessoalmente — em vez de jogá-las no lixo e fazer-me arrastá-las até aqui. Talvez pareça um velho tolo para vocês, mas para mim é como esse retrato do sr. Rembrandt que tenho em minha parede. — Ela sorveu o chá. — Ele também visitou você, lembra-se? Naquela época em que ficou internado no hospital.
— Ora, mas por que era famoso? — perguntou Sarah.
— Houve um tempo em que todos sabiam sobre o Sombra — explicou Hattie. — Era o homem mais famoso em Mill Walk. Acho que foi o maior detetive do mundo — como esses de quem a gente lê nos livros. E deixou um bocado de gente pouco à vontade, se deixou! Eram pessoas que tinham segredos demais, com medo de que ele soubesse tudo a seu respeito. E ele ainda as deixa pouco à vontade. Acredito que muita gente nesta ilha seria mais feliz se ele falecesse logo.
Sarah dirigiu a Tom um olhar pensativo, e ele disse:
— Escute, Hattie, o dr. Milton veio aqui para adverti-la a não falar comigo?
— Deixe-me perguntar-lhe uma coisa: você está pretendendo processar o Shady Mount? E quer que Nancy Vetiver o ajude nisto?
— Foi o que ele disse?
— Porque você teve que fazer aquela segunda operação — eles meteram os pés pelas mãos da primeira vez, como sabe. Tom não é tão idiota, eu respondi. Se você fosse processado nesta ilha, isso já teria sido há muito tempo atrás. No entanto, se é o que pretende, Tom, siga em frente — talvez não leve a melhor, mas pode assustá-lo um pouco.
— O dr. Milton? — perguntou Sarah.
— Certa vez, Hattie me disse que eu devia pegar meu garfo e espetá-lo naquela mão gorda cor de peixe.
— E devia mesmo. De qualquer modo, se quiser o endereço de Nancy, eu tenho. Eu a vejo mais ou menos uma vez por semana — ela aparece aqui para conversar comigo. Boney pode tentar me tirar desta casa, mas talvez seja mais difícil do que ele pensa.
— Ele disse que a poria para fora? Esta casa não é sua?
— Dava um chute no meu velho traseiro negro, foi como ele disse. Todos os meses, exceto junho, julho e agosto, pago aluguel a um homem que faz a cobrança para a Redwing Holding Company. Jerry Hasek, é como se chama o homem. É o tipo do indivíduo que alguém enviaria, se quisesse arrancar à força o aluguel de senhoras de 77 anos. Ele não prestaria para muita coisa mais. Em setembro, ele leva quatro meses de aluguel, tudo de uma vez. Nos verões, viaja lá para o norte com todos os Redwings e mais dois outros cretinos que estão na folha de pagamento de Ralph Redwing.
— Eu o conheço — disse Sarah. — Bem, sei quem é ele. Tem cicatrizes de acne, sempre parece preocupado por alguma coisa.
— É esse mesmo, o meu cobrador de aluguel.
— Você o conhece? — perguntou Tom.
— Claro — é o motorista de Ralph, quando Ralph usa um carro. É também uma espécie de guarda-costas.
— Então — disse Hattie. — Você vai enfrentar Boney? Não é o que está parecendo para mim.
— Exato — respondeu Tom. — Eu apenas o vi no hospital esta manhã — perguntei-lhe sobre Nancy, e ele me disse que ela fora suspensa, mas não explicou o motivo. E acredito que o dr. Milton também não quer que você me conte.
Hattie espiou para sua caneca de chá, e todas as linhas de seu rosto aprofundaram-se alarmantemente. Foi tomada por uma tristeza quase feroz, e Tom viu que isso sempre estivera ali, sublinhando tudo quanto ela havia dito.
— Este chá ficou frio — disse ela. Levantou-se com esforço e caminhou até a pia, onde lavou a caneca. — Acho que aquele homem morreu. O policial que foi baleado. Isto me recorda os velhos tempos, com Barbara Deane.
— Mendelnhall — disse Tom. — Sim, ele morreu esta manhã. Vi quando retiravam seu corpo do hospital.
Hattie recostou-se contra a pia.
— Você acha que Nancy Vetiver era uma má enfermeira?
— Eu acho que era a única tão boa quanto você — disse Tom.
— Essa moça era uma enfermeira, tanto quanto eu — replicou Hattie. — Podia ter sido médica, mas ninguém lhe permitiria, de modo que ela fez o que ficava mais perto disso. Aliás, não tinha dinheiro para tornar-se médica, e então foi para a escola de enfermagem em St. Mary Nieves, como eu, e quando viram o quanto ela era competente, contrataram-na para o Shady Mount. — Ela fitou cada um deles com a tristeza bravia que Tom percebera pouco antes. — Não se pode dizer a alguém assim para não fazer o seu trabalho — não se pode dizer, trabalhe mal agora, não queremos que hoje você seja eficiente. — Hattie baixou a cabeça e passou os braços em torno do peito. — Esta ilha... que lugar é este! Sim, Mill Walk pode ser um lugar terrível...
Virando-se, ela pareceu olhar para sua parede de fotografias emolduradas.
— Nas últimas semanas, Nancy esteve aqui umas duas vezes. Parecia que a situação estava ficando pior. Entendam, se ela foi suspensa, isto significa que não poderá ter mais seu lugar para morar, porque o hospital é dono de seu apartamento. Eles disseram a ela. Disseram a ela.
Hattie tornou a virar-se.
— Querem saber? Boney está assustado por alguma coisa. Diz para você que Nancy foi suspensa, mas não tem senso bastante para inventar uma boa mentira sobre o motivo. — Ela tornou a cruzar os braços sobre o peito e ficou surpreendentemente parecida com o falcão empalhado na gaiola. — Isso me deixa furiosa — malditamente furiosa, porque quase acreditei no homem.
Hattie ergueu os olhos para Tom.
— Tudo sobre esta coisa me deixa furiosa. Dois tipos de lei — dois tipos de remédio. Boney vindo até aqui, todo gentil e meloso, para então me dizer que, se eu falar com você, ele talvez precisasse — “reagir à minha deslealdade”, foi exatamente como disse — por mais que isso lhe custasse, ele disse, quando já pusera Nancy para fora do hospital. Compreendam, ele então foi longe demais também! — Ela pareceu fumegar, quando caminhou para perto de Tom: era como se o falcão houvesse adquirido vida e se precipitasse para ele. Hattie pousou em seu ombro a mão magra e velha, e ele sentiu suas garras se crisparem. — Ele não sabe quem você é, Tom. Ele pensa que sabe, pensa que sabe tudo sobre você. Pensa que é apenas igual ao resto — exceto um. Sabe de quem estou falando, não sabe?
— Do Sombra. — Ele olhou para Sarah, que bebericava seu chá e lhe devolveu calmamente o olhar, por sobre a borda de caneca. — Você disse qualquer coisa sobre uma mulher chamada Barbara Deane. Ela era enfermeira?
— Por algum tempo. Barbara Deane foi sua parteira. — Hattie cravou os dedos na pele dele. — Você quer ver Nancy Vetiver? Se quiser, eu o levarei até ela.
— Eu também quero ir— disse Sarah.
— Você não sabe onde ela está — respondeu Hattie, virando-se bruscamente para encará-la.
— Aposto que sei. O dr. Milton, ou seja quem for, queria forçá-la a fazer o que eles queriam, certo? Então, quem é dono do hospital? E eles são donos do que mais?
Hattie assentiu.
— Vestida desse jeito? E com a sua aparência? Impossível.
— O que é impossível? — perguntou Tom.
— Ela ir com você aos Pátios Elíseos.
Tom ergueu os olhos para Hattie. A antiga enfermeira levantou as sobrancelhas, divertida e impressionada.
— Então, arranje alguma coisa para eu vestir. Não importa o que seja, só preciso de algo para cobrir-me.
— Tenho aqui uma coisa que pode servir — disse Hattie. Ela cruzou o aposento, ajoelhou-se ao lado da cama e puxou uma mala de sob o móvel. Abriu-a, empurrou para um lado camadas de tecidos vivos e retirou uma longa peça negra e informe. -Ninguém mais tocou nisto, desde a primeira sra. Arthur Thielman.
— O que é? — perguntou Tom. — Um pára-quedas?
— É uma capa — disse Sarah, levantando-se rapidamente para experimentá-la. -Acho perfeita!
O forro vermelho chamejou contra a seda negra, quando Sarah lançou a capa sobre os ombros. Então, a peça inteira amontoou-se, revoluteou e caiu no lugar, formando dobras naturais e cobrindo a jovem da cabeça aos pés. Ela imediatamente pareceu dez anos mais velha e mais sofisticada, uma outra pessoa por completo.
Durante um segundo, Tom pensou estar vendo Jeanine Thielman.
— Uau! — exclamou Sarah então. — Adorei isto! — Voltava a ser Sarah Spence de novo e, no próximo segundo, rodopiou até a janela e debruçou-se, a fim de ver se o cão continuava onde deixara. Devia continuar, porque ela endireitou o corpo, fez outro rodopio que mostrou os tênis e perguntou: — A avó de Jamie costumava usar isto? Como você acha que ela ficava?
Hattie olhou dissimuladamente para Tom e disse:
— Enfie seu cabelo para dentro da capa, levanta a gola, mantenha a parte da frente fechada, e estaremos prontos para visitar Nancy. Ninguém se intrometerá com você agora, enquanto estiver comigo ao lado.
Pelos fundos da casa, Hattie saiu com eles para o sol forte, para o cheiro adocicado e nauseante que vinha do monturo de lixo, as gaivotas revoluteantes e as fileiras de casas idênticas.
Bingo latiu uma vez, depois reconheceu Sarah.
— Como vão colocar três pessoas e um cachorro nesse carro? — perguntou Hattie.
— Você se incomoda de ir sentada no colo de Tom? — indagou Sarah.
— Não, se ele não se incomodar — respondeu Hattie. — Podemos deixar o carro do outro lado da rua do Paraíso de Maxwell. Um amigo meu cuidará dele em segurança — e do cachorrinho também.
Hattie entrou depois de Tom, e parecia não pesar mais do que Bingo. Como se ela fosse uma criança, Tom podia ver acima de sua cabeça.
— Tuaregues e indianos, lá vamos nós! — exclamou Sarah, e manobrou para a rua estreita.
— Que Deus nos ajude — disse Hattie.
Em pouco, eles rodavam na penumbra entre as casas de cômodos erguidas aos lados da rua. Hattie disse a Sarah que dobrasse para um caminho lajeado quase invisível, abaixo de uma sombria passagem em arco, contornasse várias esquinas, deixando para trás janelas encortinadas e paredes descascando, até chegarem a um pequeno pátio de lajes, com um retalho azul de céu no topo, como se estivessem no fundo de um poço. Aos lados erguiam-se janelas com grades e pesadas portas. O ar cheirava a mofo. Uma daquelas pesadas portas se abriu com um rangido, e surgiu um homem grande e barbudo, de avental e boné de couro, que espreitou os recém-chegados. O homem franziu o cenho ao ver o carro, antes de reconhecer Hattie, mas logo concordou em tomar conta dele e do cachorrinho por meia hora. Hattie apresentou-o como Percy. Percy em seguida colocou de bom grado o pequenino cão debaixo do braço, entrou com eles no prédio, subiu a escada e cruzou vastos aposentos vazios e outros pequenos, entulhados de sacos e barricas. Bingo olhava para tudo com visível interesse.
— Quem é Percy? — perguntou Tom em um sussurro.
— Ele é mercador de ossos. E de cabelos humanos.
O homem conduziu-os através de uma sala empoeirada e novamente para a rua enviezada. Estavam na rua diante do Paraíso de Maxwell.
— Agora, apenas siga-me, não falem com ninguém e nem fiquem olhando para coisa alguma — avisou Hattie.
Tom cruzou a rua estreita, um passo atrás dela. Sarah agarrou-lhe o braço, através da capa. As séries de cortiços, construídos unidos uns aos outros por Maxwell Redwing, pareciam altear-se mais a cada passo.
— Tem certeza de que quer vir conosco? — sussurrou ele.
— Está brincando? — sussurrou ela de volta. — Não vou deixar você andando por aí sozinho!
Hattie caminhou sem hesitar, penetrou em um corredor arqueado e desapareceu. Tom e Sarah a seguiram. A luz morreu. Hattie era visível apenas como uma pequena forma escura, delineada à frente deles. O ar imediatamente se tornou mais frio e das paredes exalavam-se odores de bolor e podridão ressequida — juntamente com mil outros. Eles apressaram-se em avançar e, segundos mais tarde, seguiam Hattie já fora do corredor.
— Este é o Primeiro Pátio — disse ela, olhando em torno. — Ao todo, são três. Nancy mora no segundo. O mais longe que estive foi em casa dela e acho que me perderia, indo mais além.
No emaranhado das primeiras impressões, Tom achara o espaço à sua volta vagamente semelhante a uma prisão, vagamente semelhante a uma favela européia e, mais do que isso, semelhante à ilustração de um sinistro livro de histórias em quadrinhos — ruelas inclinadas, conectadas por passagens de madeira, como vagões de carga suspensos no ar.
Três ou quatro maltrapilhos tinham começado a deslizar para eles, vindo de uma porta próxima a uma janela iluminada, no lado oposto do pátio. Hattie se virou para encará-los. Os homens arrastaram os pés e cochicharam entre si. Um deles acenou para ela, e toda a manga de seu casaco esvoaçou. Eles recuaram para a porta de onde tinham vindo e sentaram-se, engolidos em seus casacos, diante do Bar Bobcat’s.
— Não liguem para eles — disse Hattie. — Os três me conhecem. Tom! Leia o escrito aqui.
Ele se moveu para o lado dela e olhou para baixo. A seus pés havia uma placa quadrada de bronze, sobre a qual as letras em alto-relevo já se tinham gasto até quase a ilegibilidade, como as letras em uma lousa antiga de sepultura:
pátios elíseos
projeto so filantropo Maxwell Redwing
construção de Glendenning Upshaw
e da Cia. Construtora Mill Walk
para o maior bem
dos moradores desta ilha
19
“que cada homem tenha um lar
a que possa chamar de seu”
— Viu isso? — perguntou Hattie. — É o que eles dizem — “Que cada homem tenha um lar a que possa chamar de seu.” Filantropos, eis o que eles dizem que são.
19: dois anos antes da morte da esposa, três anos antes do assassinato de Jeanine Thielman e da construção do hospital em Miami. Os Pátios Elíseos haviam sido o primeiro grande projeto da Construtora Mill Walk, erigido com o dinheiro de Maxwell Redwing.
O Paraíso de Maxwell parecia uma pequena cidade. Do pátio, serpenteavam ruelas angulosas, sendo o pátio em si orlado de uma profusão de bares, casas de bebidas e moradias, tudo interligado no alto por passagens de madeira, que faziam Tom recordar vagões de carga. Através das alamedas e corredores labirínticos, ele viu uma proliferação interminável de “coelheiras” com ruas apertadas, prédios inclinados, paredes de portas estreitas e degraus de madeira. Anúncios de néon brilhavam em vermelho e azul. Fredo’s. 2 garotas. Bar Bobcat’s. Peças de roupa lavada pendiam de varais frouxos, estendidos entre janelas.
— Cuidado aí embaixo! — gritou uma mulher acima deles.
Ela se debruçava de uma janela estreita, em um prédio no lado oposto do pátio. Em seguida, despejou uma bacia de metal negro, e algo líquido começou a cair, parecendo dissolver-se no ar antes de atingir o chão. Um homem descalço e de roupas rasgadas conduzia um exaurido jumento a uma criança esfarrapada através de um dos corredores que penetravam no labirinto.
Hattie os guiou pela passagem de onde tinham vindo o homem e o jumento. No tijolo, letras brancas davam-lhe o nome de Trilha Beiramar. Essa passagem seguia por baixo de um dos vagões de carga suspensos.
— O velho Maxwell e seu avô — explicou Hattie — achavam que nomes de ruas da sua parte da cidade seriam uma influência benéfica para os moradores daqui — mais acima fica o Largo Yorkminster e, para onde vamos, temos o Largo Ely e o Círculo Stonehenge.
Os olhos negros de Hattie chamejaram para ele, enquanto ela os conduzia pela passagem.
— O correio não faz confusão nas entregas? — perguntou Tom.
— Aqui não há correio — respondeu Hattie, mais adiante dele. — Como também não há polícia nem bombeiros, médicos ou escolas, exceto para o que eles ensinam a si mesmos. Não há casas comerciais senão para a venda de bebidas, não há nada além do que você vê.
Tinham emergido para uma larga alameda lajeada, marginada por altas paredes de madeira enegrecida, aqui e ali incrustadas de janelas tortas. Havia as mesmas letras brancas na parede, algumas das quais haviam caído ou sido removidas, indicando-as como Vic ou um Terraço. Um bando de crianças sujas cruzou às carreiras a frente da alameda, chapinhando em um regato que fluía pelo meio da rua. Agora, o odor era quase visível no ar, e Sarah ergueu uma beira da capa, tapando o nariz e a boca.
Hattie saltou sobre o regato e os levou para um lance de degraus de madeira. Outro torcido lance, marcado como Alameda Waterloo, seguia para o alto, rumando para a escuridão. Hattie desceu apressadamente um tenebroso corredor e começou a mover-se com rapidez para o lance de escada seguinte.
— O que eles fazem aqui? — perguntou Tom. — De que vivem?
— Vendem coisas para Percy — seu próprio cabelo ou seus próprios farrapos. Alguns trabalham fora, como Nancy. Atualmente, a maioria dos jovens faz o possível para sair daqui, o mais depressa que pode. Alguns gostam de ficar neste lugar.
Tinham chegado a um amplo espaço, de onde passarelas de madeira abarcavam a fachada dos prédios, em todos os lados. Fileiras de portas erguiam-se nas extremidades mais distantes das passarelas. Um homem debruçava-se no corrimão de segunda passarela, olhando para eles mais abaixo e fumando um cachimbo.
— Como vêem — disse Hattie — isto aqui é um mundo, e agora estamos no centro dele. Ninguém vê este mundo, mas ele está aqui. — Ela ergueu os olhos para o homem debruçado no corrimão. — Nancy está em casa, Bill?
Com o cachimbo, ele apontou para uma porta mais além, ao longo da passarela.
Hattie os levou pela escada de madeira até a segunda passarela.
— Como vai ela, Bill? — perguntou, quando chegaram perto dele.
O homem virou a cabeça e fitou cada um deles, por baixo da aba do chapéu mole. Seu rosto estava muito sujo, era cheio de linhas duras e, à claridade acinzentada dos Pátios, o chapéu, o rosto e o cachimbo pareciam ter a mesma coloração lodosa. Ele demorou bastante a falar.
— Ocupada — disse por fim.
— E você, Bill?
Ele olhava para o cabelo de Sarah e, novamente, demorou a responder.
— Bem. Ajudei um homem a transportar um piano, faz dois dias.
— Então, vamos andando para vê-la — disse Hattie.
Bill se virou novamente para o corrimão. Eles três continuaram a caminhada pelas tábuas rangentes, até quase alcançarem o fim da passarela. Tom espiou por sobre o corrimão, e Sarah perguntou a Hattie:
— Bill é seu amigo?
— Ele é irmão de Nancy — respondeu Hattie.
Tom ia virar-se, a fim de ter certeza de que a ouvira corretamente, mas então um homem de terno cinza e blusa de gola rolê, de malha da mesma cor, surgiu à vista, movendo-se silenciosamente e com facilidade, enquanto descia os degraus da estrutura de madeira acima da vala de drenagem. Bill tirou o cachimbo da boca e recuou do corrimão. O homem de cinza penetrou no Segundo Pátio e começou a caminhar em urna linha reta que o levaria diretamente abaixo de Tom. Bill fez um gesto para que Tom recuasse, e este hesitou, antes de afastar-se do corrimão. O homem era calvo e seu rosto uma máscara lisa e anônima. Tom só percebeu que era o capitão Fulton Bishop quando começou a recuar para a proteção da passarela. Hattie bateu na última porta, depois tornou a bater. O capitão Bishop olhou para cima sem alterar as passadas, enquanto Tom recuava. O garoto viu os olhos dele através das falhas nas grades da passarela, tão vivos e atentos como dois fósforos acesos.
Então, a porta se abriu, e o capitão Bishop deixou para trás o Segundo Pátio, internando-se ainda mais no Paraíso de Maxwell. Suas pisadas retiniam contra a pedra. Tom ouviu Nancy Vetiver perguntando:
— Quem você me trouxe, Hattie?
Ela sorriu de Hattie para Sarah, e então o incluiu no mesmo sorriso. Não reconheceu Tom, mas ele a identificaria em seguida, se a tivesse visto em qualquer rua de Mill Walk. Os cabelos, de um louro mais escuro que os de Sarah, estavam cortados bem curtos e desgrenhados, as linhas formando parênteses em torno da boca haviam-se aprofundado, mas fora isso ela era a mesma mulher que o ajudara a suportar os piores meses de sua vida. Tom percebeu que então a amara absolutamente, e que parte dele ainda a amava.
— Um velho paciente seu veio visitá-la — disse Hattie.
Nancy olhou de Sarah para Tom, depois de novo para Sarah, tentando descobrir qual deles era o antigo paciente.
— Bem, é melhor entrarem. Encontrem algum lugar para sentar e, dentro de um minuto, poderei ficar algum tempo com vocês.
Ela sorriu, parecendo um tanto alvoroçada, mas de modo algum irritada, e recuou para que eles entrassem.
Hattie entrou primeiro, depois Sarah. Tom entrou no aposento. Várias crianças, algumas delas com bandagens, sentavam-se em cadeiras encostadas à parede. Todas contemplavam Sarah de olhos arregalados, agora que ela puxara o cabelo para fora da gola da capa.
— Oh, meu Deus! — exclamou Nancy, quando Tom passou a seu lado. — É Tom Pasmore! — Ele deu uma risada — uma risada de puro contentamento, parecendo deslocada nos Pátios Elíseos — e então passou os braços em torno dele, abraçando-o com força. Sua cabeça chegava ao meio do peito de Tom. — Como foi que ficou tão grande? — Nancy recuou um pouco e cantarolou para Hattie: — Ele é um gigante!
— Foi o que eu disse a ele — respondeu Hattie — mas isto não o fez encolher-se nem um pouco.
Agora, todas as crianças olhavam boquiabertas para Tom, em vez de para Sarah. Ele sentiu o rosto arder e avermelhar-se.
— Também sei quem é você — disse Nancy a Sarah, após um último abraço em Tom. — Lembro-me de vê-la com Tom, naquele tempo — Sarah.
— Como pode lembrar de mim? — perguntou Sarah, parecendo satisfeita e embaraçada. — Só estive no hospital para visitá-lo uma vez!
— Bem, eu costumo lembrar da maioria das coisas que acontecem aos meus bons pacientes. — Sorrindo amplamente, Nancy pôs as mãos na cintura e olhou para eles dois. — Sentem-se onde encontrarem lugar, enquanto cuido deste pessoalzinho terrível. Depois teremos uma longa conversa, para descobrir por que Hattie os arrastou para este lugar que Deus esqueceu.
Sarah retirou a capa com um floreio e a deixou no espaldar de uma cadeira. As crianças ficaram de boca aberta. Ela e Tom sentaram-se em um banco estofado, enquanto Hattie acomodava-se na beirada da cama baixa, ao lado deles.
Nancy foi de criança em criança, trocando ataduras e ministrando vitaminas, ouvindo queixas sussurradas, afagando cabeças e segurando mãos, de vez em quando levando algum menino ou menina sujos até uma pia nos fundos do aposento, para se lavarem. Examinou gargantas e ouvidos, e quando um garotinho magricela prorrompeu em lágrimas, colocou-o no colo e consolou-o até ele acalmar-se.
Dois velhos edredons, tão desbotados que mal tinham cor, pendiam das paredes. Um ornado lampadário, com a maioria das lâmpadas e braços ainda intacta, pousava sobre uma mesa-tambor, semelhante à que existia na sala de estar do avô de Tom. Uma moldura dourada e vazia, claramente recuperada da lixeira, estava pendurada na parede mais distante, perto da pia.
Hattie o viu olhando para a moldura, e disse:
— Eu a trouxe para Nancy — é quase tão bonita vazia como cheia, mas ando procurando outro retrato do sr. Rembrandt, como aquele que tenho. Você o viu.
— Oh, Hattie, eu não preciso de um retrato de Rembrandt1. — exclamou Nancy, passando uma atadura pelo dedo ferido de um menino. — Gostaria mais de ter um retrato seu, qualquer dia. Enfim, estarei de volta ao meu próprio lugar, dentro em pouco.
— É possível — replicou Hattie. — Quando você estiver lá, virei aqui duas vezes por semana para tratar destes pequenos rufiões. Se seu irmão não se importar.
Após despachada a última criança, Nancy lavou as mãos, enxugou-as em uma toalha de pratos e sentou-se em uma das cadeiras junto à parede. Por fim, ficou olhando para Tom, firme, durante um longo momento.
— Estou tão contente em ver você, mesmo aqui! — exclamou.
— Também estou contente em vê-la. Mesmo aqui — disse ele. — Ouça, Nancy, fiquei sabendo que...
Ela ergueu a mão para interrompê-lo.
— Antes de falarmos a sério, alguém quer uma cerveja?
Hattie meneou a cabeça. Tom e Sarah responderam que dividiriam uma.
— Vocês dividirão uma, tudo bem — disse Nancy.
Ela caminhou até uma pequena geladeira perto da pia e tirou de lá três garrafas; apanhou dois copos em uma prateleira; removeu as tampas e voltou carregando as garrafas pelos gargalos em uma das mãos, os copos na outra. Entregou um copo e uma garrafa para Tom, o mesmo para Sarah, sentou-se e ergueu sua própria garrafa.
— Saúde! — disse.
Tom riu, ergueu sua garrafa para Nancy e bebeu pelo gargalo. Sarah despejou um pouco em seu copo e agradeceu a Nancy.
— Se não vai usar o copo, acho que também quero um golinho — disse Hattie.
Tom despejou um pouco de sua garrafa no copo vazio, e Sarah fez o mesmo. Então, entreolharam-se todos, sorrindo, durante um momento.
— Você me deixava curiosa, sabia? — disse Nancy a Tom.
— Eu sei disso — falou Hattie.
— Curiosa por quê? — perguntou Sarah.
— Bem, Tom tinha qualquer coisa especial dentro de si. Ele via coisas. Viu o que eu sentia em relação a Boney, no mesmo instante. Entretanto, não é só a isto que me refiro. — Ele apontou a garrafa de cerveja para Tom e apertou os olhos, procurando as palavras certas. — Acho que, em verdade, nem sei mesmo como explicar — mas quando às vezes olhava para você na cama, costumava imaginá-lo como um pintor muito bom, ao ficar mais velho. Porque você tinha um jeito de olhar para as coisas, como se pudesse ver partes delas que ninguém mais via. Havia ocasiões em que o mundo simplesmente parecia deixá-lo radioso. Ou o destroçava por dentro, quando você enxergava o que havia de ruim.
— Eu disse isso a ele — falou Hattie.
Tom sentiu a vontade mais estranha de chorar.
— Era como se você tivesse alguma espécie de destino marcado — disse Nancy. — E ainda posso ver o motivo de estar falando tudo isto.
— Claro que pode — disse Hattie. — É tão claro como o dia. Sarah também pode ver.
— Deixem-me fora disto — disse Sarah. — Ele já é vaidoso o bastante. Seja como for, não se trata do que posso ver, do que vocês podem ver ou mesmo do que Tom possa ver. É...
Ela dirigiu um olhar embaraçado para Tom e ergueu as mãos.
— É o que ele faz — disse Hattie. — Isso mesmo. Bem, ele deve ter feito alguma coisa, porque Boney fez todo o trajeto para ver-me hoje e engambelou-me com uma história do arco-da-velha sobre Tom Pasmore estar pretendendo processá-lo e processar o hospital. Ele disse que se o garoto ou seus advogados aparecessem, eu devia mandá-los embora. Pois um minuto mais tarde, lá estava este sujeito grandão. Pensei que fosse algum jovem advogado, até espiar melhor para ele.
— Boney fez o quê? — perguntou Nancy, e Hattie teve que repetir toda a história.
— Eu perguntei por que você tinha sido suspensa — disse Tom. — E ele ficou atrapalhado. O lugar estava cheio de policiais.
— Atrapalhado — disse Nancy. — Isto foi hoje? No hospital?
Tom assentiu.
— Oh, céus! — exclamou Nancy. — Oh, droga! Oh, merda!
Ela se levantou precipitadamente, foi até o fundo do aposento, abriu um armário e bateu a porta com força.
— É isso mesmo — disse Hattie. — Aquele rapaz morreu.
— Oh, inferno! — exclamou Nancy novamente.
Sarah pegou a mão de Tom e a apertou.
— Isto tem alguma coisa a ver com aquela carta? Porque Tom me contou que...
Ele lhe apertou a mão e ela se calou. Nancy deu meia-volta, e Tom jamais a vira tão furiosa como agora.
— Por que você foi suspensa? — ele perguntou.
— Eu não ia deixá-lo morrer sozinho. Ele precisava de alguém com quem falar. Lembra-se de como eu costumava ir para seu quarto e passar tempo com você?
— Eles ordenaram que ficasse longe dele?
— Mike Mendelnhal estava ficando cada vez mais fraco — em coma, a maior parte do tempo — e eu não podia deixá-lo sozinho, nos momentos em que estava lúcido. Não havia nenhuma ordem — ninguém nos ordenou que ficássemos fora daquele quarto. Tão logo Boney soube que eu dedicava tempo a ele, recordou-me que pedira ao quadro de enfermeiras para nada mais fazer, além de trocar-lhe as roupas e cuidar de funções estritamente médicas. Eu respondi que, se aquilo era uma ordem, gostaria de vê-la colocada no quadro de avisos. Ele disse que podia compreender, mas não podia fazer semelhante coisa.
— Mendelnhal falou com você, quando estava consciente?
— É claro que falou.
— Poderia me contar o que ele disse?
Nancy pareceu perturbada e sacudiu a cabeça. Tom se virou para Hattie.
— Dois tipos de lei, dois tipos de remédio. Não foi o que disse em sua casa, Hattie?
— Bem sabe que sim — respondeu Hattie, mostrando novamente sua aparência de falcão. — Entretanto, eu não disse cite-me.
— Vou dizer por que pergunto isso — falou Tom. Em seguida, contou a ela sua certeza de que Hasselgard matara a irmã, falou da carta ao capitão de polícia e tudo o que se seguiu. Nancy Vetiver inclinou-se para diante, com os cotovelos fincados nos joelhos, ouvindo. — Aquela carta é o verdadeiro motivo de você estar aqui, em vez de no seu apartamento.
— Eu falei que você deve ter feito alguma coisa, e acho que fez mesmo — comentou Hattie. — Conte a ele, Nancy. — Não vai fazê-lo ir mais fundo do que ele próprio foi sozinho.
— Tem certeza de querer ouvir isto, Sarah? — perguntou Nancy.
— De qualquer modo, estou deixando a ilha dentro de dois dias.
— Bem, depois de tudo o que Tom falou, talvez não seja tão grande coisa assim. — Ela tomou um gole generoso de sua cerveja. — Mike Mendenhall era um homem amargo. Foi à Baixada da Doninha prender um homem chamado Edwardes por assassinato, e sabia que isto era perigoso — na Praça do Arsenal vinham acontecendo muitas coisas que o perturbavam.
— Que tipo de coisas? — perguntou Tom.
— Ele falou em Natchez, um homem que é um detetive honesto, David Natchez, que contava com o apoio de todos os policiais honestos. Os restantes fariam qualquer coisa que lhes fosse ordenado. Antes de perceberem que ele era honesto, alguns dos tiras mais velhos costumavam falar tudo em sua presença, sabe como é, vangloriavam-se de Mill Walk ser sempre a mesma coisa. Desde que prendessem criminosos comuns e mantivessem baixa a criminalidade na rua, podiam fazer o que bem quisesse, porque eram protegidos. Francamente, Tom, isto é terrível, mas nunca foi novidade para os moradores do Paraíso de Maxwell e do antigo bairro escravo. Nós sabemos o que eles são.
— Então, por que nós não sabemos? — perguntou Tom.
— Tudo parece uma maravilha, se visto da Estrada Litorânea do Leste. Quando o pessoal de lá chega perto demais de qualquer coisa parecendo demasiada rude para eles, viram todos a cabeça para outro lado. A coisa é assustadora demais, eles esperam que ela desapareça. Lá, onde eles ficam, tudo funciona bem.
Tom recordou Dennis Handley e soube que ele dizia a verdade.
— Sempre foi assim — prosseguiu Nancy. — Se alguém é capturado, eles fazem um grande alvoroço público a respeito, e então todo mundo fica tranqüilizado. Tudo recomeça a funcionar direitinho, a vida volta ao normal.
— Hasselgard, no entanto, era um problema maior do que estavam acostumados a manejar — disse Tom. — Era preciso que fizessem alguma coisa drástica, e depressa. Mendenhall contou o que aconteceu no dia em que foi baleado?
— Um pouco — disse Nancy. — Ele nem mesmo sabia quem Edwardes supostamente assassinara. Sabia apenas que sua tarefa era segura, porque seu parceiro estaria com ele. Roman Klink tinha 15 anos de força policial. Tenho a impressão de que Mendenhall achava Klink demasiado indolente para ser trapaceiro, e demasiado policial para ser absolutamente correto.
— Como eles souberam onde Edwardes estava?
— Tinham um endereço. Mike chegou primeiro à porta da frente. Então gritou “Polícia!” para depois arrombar a porta. Ele achava que ali não houvesse ninguém — pensou que Edwardes provavelmente tomara o barco para Antigua. Creio que ele entrou...
— Sozinho? — perguntou Tom.
— Pelo menos, à frente de Klink. Não viu ninguém na sala de estar, e então foi até a cozinha. Edwardes precipitou-se da cozinha, meteu-lhe uma bala no estômago, e ele caiu. Klink entrou atirando. Mike viu seu parceiro avançar para o quarto, e foi quando o mundo veio abaixo. Toda a força policial aproximou-se da casa aos gritos. O capitão Bishop começou a gritar por um megafone. Alguém na casa disparou um tiro, e foi quando a polícia em peso centralizou o fogo naquele alvo. Mike foi atingido mais quatro vezes. Estava furioso — sabia que eles queriam matá-lo. Eles queriam matar os três. Klink também era carta fora do baralho.
Nancy baixou os olhos para o colo. Bebeu mais cerveja, mas Tom não acreditava que ela houvesse sentido o sabor.
— Ele conseguiu contar-lhe um bocado de coisas — falou.
Ela apenas ergueu os olhos, parecendo tão miserável como um dos seus pequenos pacientes.
— Estou fazendo um apanhado geral. Na metade do tempo, não era comigo que ele falava. Às vezes, pensava que fosse Roman Klink. Em duas ocasiões, achou que falava com o capitão Bishop. O coitado ficava fora de si muito tempo e sofreu duas longas operações. O capitão Bishop entrou em seu quarto uma vez, porém ele permanecia em coma a maior parte do dia.
— E quanto a Klink?
— Basicamente, tudo quanto tínhamos a fazer era extrair uma bala e suturá-lo. Na semana passada, Bill o viu em um bar, em Mulroney’s. Disse que ele falava como um herói. O homem que pegou o assassino de Marita Hasselgard. Segundo Bill, Klink andava bebendo demais.
— E segundo Bill, ele falou um bocado — observou Hattie.
— Bill levou a maioria da noite para soltar o que houve. Meu irmão não é de falar muito — disse Nancy para Tom, sorrindo. — Tem um bom coração, o Bill. Ele m deixa trazer crianças à tarde para cá, ainda que isto lhe vire a vida de cabeça par, baixo.
— Lá fora, eu e Bill vimos o capitão Bishop cruzando o pátio — disse Tom. Hattie e Nancy entreolharam-se. — Se não fosse Bill, acho que Bishop me teria visto — ele me fez um gesto para que recuasse do corrimão.
— Tem certeza de que não foi visto?
— Não sei — respondeu Tom. — Não o reconheci logo, porque ele não vestia o uniforme.
Hattie resmungou algo, e Nancy ainda parecia inquieta.
— Bem, ele simplesmente se esgueira por aí. Como se fosse invisível. — Ela deu uma risada, mas sem contentamento. — A gente olha para ele, e os olhos apenas lhe deslizam pelo rosto. Bishop é uma pessoa com a qual ninguém procura muita aproximação.
— Talvez ele estivesse de visita — comentou Hattie.
— De visita? — estranhou Tom.
— Esse demônio nasceu no Terceiro Pátio — disse Hattie.
— Sua irmã Carmen ainda mora lá no fundo — explicou Nancy, como se falasse sobre uma densa floresta. — Na Estrada Litorânea do Leste — o Terceiro Pátio. Fica espiando por trás das cortinas, chova ou faça sol.
— Ela parece muito meiga e dócil, mas quando se olha para seus olhos...
— ...então a gente percebe que ela ficaria feliz em cortar a garganta de uma criança, para ficar com as moedinhas que a coitada teria nos bolsos.
Nancy estirou os braços para os lados e bocejou com o rosto inteiro, de algum modo conseguindo não ficar feia enquanto isso. Depois pousou as mãos na base da espinha e arqueou as costas. Parecia um gato, com seu corpo pequeno e flexível, os cabelos curtos e desarrumados. Tom percebeu que estivera fitando o rosto dela quase o tempo inteiro de sua permanência ali dentro — nem mesmo havia reparado o que Nancy vestia. Agora via suas roupas: uma blusa leve de malha branca, com gola rolê, e apertados jeans cor de trigo. Os tênis eram brancos, como os de Sarah, mas já surrados e sujos.
— Devemos deixar que Bill volte para seu quarto — disse ela. — Foi muito bom tornar a vê-lo, Tom. E a você também, Sarah. Contudo, eu não devia permitir que me fizesse falar.
Ela se levantou e correu as mãos através do cabelo.
— Voltará logo a trabalhar? — perguntou Tom.
Nancy lançou um olhar rápido a Hattie.
— Oh, admito que Boney me mande algum recado em uns dois dias. Seja como for, ele que se dane!
— Você tem esse direito — disse Hattie.
Eles começaram a mover-se para a porta. De repente, Nancy tornou a abraçar Tom, com tanta força, que ele não pôde respirar.
— Eu espero... Oh, não sei o que espero, mas seja cauteloso, Tom.
Saíram para a desconjuntada passarela de madeira e estavam naquele ambiente melancólico, antes dele perceber que Nancy o soltara. Bill empertigou-se, abandonando o corrimão, e sugou seu cachimbo.
— Era lhe pareceu bem, Hat? — perguntou ele, em um grunhido enrouquecido, que transpôs o zumbido de ruídos que vinham de toda parte à volta deles.
— Essa garota é forte — disse Hattie, referindo-se a Nancy.
— Sempre foi — disse Bill. — Boa gente.
Tom enfiou a mão no bolso e tirou a primeira nota que encontrou. Na penumbra, ele levou um momento para ver que era de dez dólares. Colocou-a na mão de Bill e sussurrou:
— Para alguma coisa que ela precise.
A nota desapareceu nas roupas surradas. O irmão de Nancy piscou um olho para Tom e começou a caminhar para a porta no fim da passarela.
— Oh — disse ele, virando-se. Os três pararam no topo da escada. — Você conseguiu. — Bill percebeu que Tom não entendera. — Ele não o viu.
Sarah agarrou o braço de Tom e, juntos, seguiram Hattie por baixo das passarelas suspensas, através das ruas estreitas com nomes zombeteiros e ao longo das paredes inclinadas. O ar cheirava a esgoto. Crianças troçavam deles e homens de rostos empedernidos movia-se na direção de Sarah, até perceberem Hattie, e então recuavam. Por fim, esgueirando-se rapidamente através da incongruência de concreto do Primeiro Pátio, cruzaram a escuridão do corredor abobadado e voltaram à rua penumbrosa, que lhes pareceu impossivelmente doce e clara.
Até mesmo o poeirento empório de Percy, com seus cômodos sombrios e escadas intermináveis, parecia delicioso e iluminado, depois do Paraíso de Maxwell. Mais abaixo no pequeno pátio lajeado, Percy e Bingo acomodavam-se amistosamente em um banco de ônibus, do qual o recheio de crina escapava por rasgões e bainhas soltas. O focinho de Bingo estava enterrado fundo nas dobras do avental de couro de Percy e sua cauda se movia freneticamente de um lado para outro.
— A garota está bem? — perguntou Percy.
— Nada consegue derrubar essa menina — disse Hattie.
— É o que eu digo.
Percy estendeu para Sarah o cãozinho que gania e se contorcia. Bingo continuou lançando olhares ansiosos e ardentes para o avental de couro, até eles dobrarem para a estreita via colina acima, porém, ainda assim, ele gania e espiava para trás.
— Animal volúvel! — exclamou Sarah, visivelmente irritada.
Quando chegaram ao alto da ladeira e saindo para a rua, uma viatura policial passou velozmente por eles e seus pneus cantaram ao dobrar a esquina da extremidade sul dos Pátios Elíseos, com as sirenes ligadas. Outro ululante carro da polícia seguia o primeiro.
Sarah dirigiu mais devagar do que antes, descendo a ladeira na direção do mar, da lixeira e do antigo quarteirão dos escravos.
— Tenho uma alta opinião sobre você, mocinha — disse Hattie, de seu poleiro no colo de Tom. — E também Nancy Vetiver.
— Você tem? — Sarah pareceu surpresa. — Ela também?
— Em caso contrário, por que ela falaria tanto? Faça a pergunta a si mesma. Se quer saber, Nancy Vetiver não é uma tola tagarela.
— Ela nada tem de tola — disse Sarah.
Diante de sua cabana, Hattie recolheu a capa que emprestara a Sarah e beijou eles dois, antes de despedir-se.
Sarah inclinou-se para diante e descansou a cabeça no volante. Um momento depois, com um suspiro, ligou o motor
— Sinto muito — disse Tom.
Ela lhe lançou um olhar vago.
— É mesmo? Por quê?
— Por arrastá-la àquele lugar. Por envolvê-la nisto tudo.
— Oh! — exclamou ela. — Então é isso que lamenta!
Ela fez o carro disparar, afastando-se do meio-fio, e Bingo achatou-se em seu espaço vago, por trás dos assentos.
Ela só voltou a falar quando deixaram o Parque Goethe para trás e manobrou por entre o trânsito seguindo para leste, na Calle Burleigh. Afinal, perguntou a ele que horas eram.
— Seis e dez.
— Só isso? Pensei que fosse muito mais tarde! — Outro prolongado silêncio. Então:
— Deve ser porque lá dentro parecia noite.
— Se soubesse o quanto seria ruim, eu teria ido sozinho.
— Não me arrependo de ter ido lá, Tom. Estou feliz por ter visto aquele lugar por dentro. Estou feliz por haver conhecido Hattie. Estou feliz por tudo.
— Está certo — disse ele.
Sarah ultrapassou três carros de uma só vez, causando um pandemônio temporário nas faixas de mão para oeste.
— Tudo quanto lhe disse hoje foi sincero — disse ela. — Não sou Moonie Firestone ou Posy Tuttle. Minha idéia de paraíso não é um marido rico e uma propriedade no Lago da Águia, com viagem à Europa a cada dois anos. Nós realmente vimos os tuaregues e os indianos. Vi lugares que jamais havia visto antes na vida, realmente descobri coisas e conheci duas mulheres admiráveis que, mesmo tendo levado sete anos sem vê-lo, ainda o acham maravilhoso. — Ela pisou fundo no acelerador, a fim de ultrapassar uma carruagem pela direita. — A cada vez que Hattie dizia “Sr. Rembrandt”, eu tinha vontade de abraçá-la.
Ela cortou pela frente da carruagem, e seu condutor gritou-lhe uma enfiada de palavrões. Sarah ergueu a mão em um aceno zombeteiro, e envolveu-se no trânsito novamente.
— Oh, bem... — disse ela, quando contornaram a Baixada da Doninha e passavam pelo Hotel St. Alyn, na Calle Drosselmayer. — Ela é realmente bonita, não?
— De vez em quando eu a achava um pouco parecida com seu falcão empalhado — disse Tom.
— Falcão empalhado? — Sarah se virou para ele, de boca aberta.
A expressão nos olhos parecia acusá-lo de uma idiotice profundamente irritante.
— Dentro daquela enorme gaiola.
Ela sacudiu a cabeça para diante.
— Não estou falando de Hattie. Estou falando que Nancy Vetiver é realmente bonita. Você não acha?
— Bem, talvez. Ela me causou uma certa surpresa. Acabou se tornando uma pessoa diferente da que imaginei. Minha mãe costumava dizer que ela era enérgica — e claro que não é — mas entendo o sentido que dava à palavra. Nancy é firme.
— E bonita, além disso.
— Eu acho que bonita é você — disse Tom. — Devia ter-se visto naquela capa.
— Eu sou bonita — disse Sarah. — Tenho um espelho, sei disso perfeitamente. Os outros vivem me dizendo que fui bonita a vida inteira. Tive apenas sorte bastante para nascer com bons cabelos, bons dentes e malares visíveis. Se quer saber a verdade, tenho a boca demasiado grande e meus olhos são muito afastados um do outro. Olho para meu rosto e vejo minhas fotos de bebê. Vejo uma perfeita garota Brooks-Lowood. Odeio beleza. Isto significa que a gente deve passar metade do tempo pensando na própria aparência, enquanto a maioria das pessoas nos considera uma espécie de brinquedo, com o qual eles podem fazer o que bem entendem. Aposto que Nancy Vetiver raramente se olha em um espelho. Aposto que corta os cabelos curtos, porque pode levá-los no chuveiro e enxugá-los com uma toalha. Aposto que é uma grande novidade para ela comprar um batom novo — e ela é bonita. Cada coisa boa nela, cada sentimento que já teve, estão em seu rosto. Quando estava naquela salinha cheguei a invejar as pequenas ruguinhas em suas faces — pode-se dizer que ela não permite que os outros a mandem fazer coisas. De fato, toda a idéia de ser como eu soaria ridícula para ela!
— Acho que você devia casar com ela — disse Tom. — Poderíamos morar todos juntos no Paraíso de Maxwell, você e eu. E Bill.
Ela o empurrou no ombro, com força.
— Esqueceu Bingo!
— De fato, Bingo e Percy parecem feitos um para o outro.
Sarah finalmente sorriu.
— Que história é essa de ser um brinquedo e fazer o que os outros querem?
— Oh, não ligue — respondeu ela. — Falei por falar.
— Não acho que seus olhos sejam muito afastados um do outro. Em realidade, os olhos de Posy Tuttle é que ficam nos lados opostos da cabeça, e ela enxerga coisas diferentes com cada um deles, feito um lagarto.
Sarah havia dobrado da Calle Berlinstrasse para a Trilha Beira-mar, e vindo para eles, da direção oposta, sorridente e erguendo o chapéu do assento de sua cabeça, estava o dr. Bonaventure Milton.
— Sarah! Tom! — gritou ele. — Uma palavrinha, por favor!
Ela parou ao lado da caleça, e o médico olhou veementemente para eles, tirou o chapéu e limpou a cabeça suada com um lenço.
— Preciso pedir-lhe desculpas, Sarah. Vi seu cachorrinho correndo a esmo perto do hospital, hoje à tarde ainda cedo, e o deixei aqui comigo — pensei em levá-lo até sua casa, quando encerrasse minhas visitas. O bichinho escapou de mim sem que eu visse, lamento dizer, mas certamente irá para casa, assim que ficar com fome.
— Não há problema — disse ela. — Na verdade, Bingo esteve conosco a tarde inteira.
Ouvindo seu nome, Bingo levantou a cabeça, no espaço vazio atrás dos assentos. Latiu para o médico, cujo cavalo recuou um pouco.
— Bem — disse o médico. — Bem, bem, bem! É, parece que me enganei. Hah!
— Foi muita gentileza sua preocupar-se com ele, dr. Milton. É o médico mais amável de toda a ilha.
— E você está excepcionalmente bonita hoje, minha querida — disse o médico, sorrindo e fazendo uma mesura, em desajeitada tentativa de galanteria.
— O senhor é muito lisonjeiro, doutor.
— De maneira nenhuma!
Ele tornou a erguer o chapéu e sacudiu as rédeas. Sua caleça rodou, afastando-se em direção ao hospital.
— Vou para casa — declarou Sarah. — Os Redwing vão dar o ar de sua graça dentro em pouco, para discutir etiqueta em aviões ou seja o que for, e preciso tomar um banho. Quero ter a mesma aparência de minhas fotos quando criança.
— Você está muito calado — disse Victor Pasmore. — Perdão, mas alguém disse alguma coisa? Só agora falei que “você está muito calado”? Como ninguém respondeu, então eu talvez estivesse apenas sonhando.
Estavam comendo um jantar que Victor havia preparado com muitos resmungos e queixas. Embora a mãe de Tom não houvesse emergido de seu quarto desde que ele chegara em casa, tinha sido preparado para ela um prato com carne indentificável e vegetais cozidos demais. Ruídos atroadores da televisão misturavam-se ao som fraco da música que vinha da escada.
— Que diabo, você é sempre caladão — disse Victor. — Isto não é nenhuma novidade. A esta altura, eu já devia ter-me acostumado. A gente diz uma coisa, e o filho brinca com sua comida.
— Sinto muito — disse Tom.
— Meu Deus, um sinal de vida! — exclamou Victor, meneando a cabeça soturnamente. — Devo estar sonhando! Como pensamento seguinte, acha que sua mãe descerá para jantar? Ou ficará lá em cima, ouvindo Rosa azul sem parar?
— Rosa azul?
— Sim! Está querendo dizer que nunca ouviu? Sua mãezinha toca a maldita coisa incessantemente, acho que nem a ouve mais, que ela apenas...
— Rosa azul é o nome de um disco?
— “Rosa azul é um nome de um disco?” — Seu pai falava arrastadamente, procurando imitá-lo. — Sim, é o nome de um disco. O famoso disco inteiramente de baladas de Glenroy Breakstone, que sua mãe prefere ouvir a descer e comer o jantar que preparei. O que equivale a uma refeição, imagino, como você ficar aí sentado e parecendo um pateta, quando lhe pergunto o que fez o dia inteiro.
— Saí de carro com Sarah Spence.
— Que grande homem você é, não?
Tom olhou para o pai, no outro lado da mesa. Uma mancha de gordura reluzia no queixo dele. Marcas de suor escureciam as axilas da camisa que usara no escritório. Veias rompidas e poros negros cobriam-lhe o nariz. Os cabelos negros, parecendo molhados, colavam-se à testa. Seu pai debruçava-se sobre o prato, segurando um copo de bourbon e água nas duas mãos. Seus olhos negros brilharam. A hostilidade fluía dele como uma torrente gelada. Estava muito mais bêbado do que Tom havia pensado.
— O que fez o dia inteiro? — perguntou.
Tom viu o pai procurando dizer algo que considerasse espantoso — ele realmente queria dizer essa coisa espantosa, empurrada em sua garganta pelo álcool e pela raiva. Erguendo o copo, engoliu uísque para mantê-la calada. Sorriu, como um anão maligno. Seus olhos não mostravam a menor profundidade e as pupilas eram invisíveis — a luz batia nelas e ricocheteava.
— Ralph Redwing foi hoje ao meu escritório. O grande homem em pessoa. Para falar comigo.
Seu pai não revelaria o que para ele era uma notícia espetacular, sem deixar de vangloriar-se — sua novidade era uma vantagem insuperável sobre a pessoa a quem fosse apresentada. Tomou outro gole da bebida e sorriu, com absoluta desolação.
— O edifício Redwing fica a um quarteirão do meu edifício — mas você acha que Ralph Redwing vai andando a algum lugar? Uma ova que vai! O motorista o levou até lá em seu Bentley — o negócio é sério, quando Ralph usa um carro. Ele comprou dois charutos de cinco dólares, no estande do saguão. “Em que pavimento fica a firma Pasmore Trading?” pergunta ele — como se não soubesse, entende? Ralph Redwing quer apenas dar a entender que respeita Vic Pasmore.
— Isso é formidável — disse Tom. — O que ele queria?
— Qual é o único motivo para Ralph Redwing visitar Vic Pasmore? Você não me conhece, Tom — pensa que conhece, mas está enganado a si mesmo. Não conhece. Ninguém conhece Vic Pasmore. — Inclinando-se para o prato, ele mostrou duas fileiras de pequenos dentes pontudos, no que era menos um sorriso, do que o gesto de um cão desagradável, guardando algum asqueroso tesouro. Então, endireitou o corpo, olhou para Tom como que de cima dele, e cortou um pedaço de carne. Começou a mastigar. — Você ainda não entendeu, certo? Não tem a mais remota idéia sobre o que estou falando, certo? A quem imagina que Ralph Redwing visita? A quem pensa que ele dá charutos de cinco dólares?
A qualquer um que ele queira iludir, pensou Tom, mas disse:
— Não a muitas pessoas, suponho.
— A ninguém! Sabe qual é o seu problema? Você não tem a menor idéia do que está acontecendo. Quanto mais velho fica, mais eu o acho parecido a um daqueles sujeitos que nunca chegam a lugar algum. Há muito de sua mãe em você, garoto.
— Ele lhe ofereceu um emprego? — perguntou Tom.
Seu pai não percebia que podia ser insultante o que ele dizia; Victor Pasmore tinha o ar de oferecer grandes verdades imparciais.
— Você pensa que um homem desses entra valsando em um escritório e diz, olá, que tal um novo emprego, Vic? Se é o que está pensando, é melhor mudar de idéia.
Assim era seu pai, quando se sentia realmente feliz. — Ele falou que esteve reparando como dirijo bem o meu pequeno negócio — talvez não nos últimos anos, quando as coisas não iam tão bem, mas no momento presente. Ele insinuou. Talvez precise do que chama de bom negociante em geral — alguém que não esteja usando antolhos, como a maioria dos cretinos em Mill Walk. Talvez pense em comprar meu negócio e deixar que outra pessoa o dirija, a fim de que eu maneje coisas maiores para ele.
— Ele disse isso?
— Insinuou, foi o que falei. — Mais mastigação, mais comida engolida, mais bourbon. — Sabe o que penso? Penso que finalmente vou poder escapar de baixo do polegar de Glendenning Upshaw. E não existe nada melhor do que isso que eu preferisse fazer.
— Como, está sob o polegar dele?
— Oh, céus! — Seu pai meneou a cabeça. O triunfo abandonou-lhe o rosto, deixando apenas acritude. — Suponhamos apenas que é preciso muito dinheiro para morar-se na Estrada Litorânea do Leste, certo? E, digamos assim — quando vim para cá, tive mais ou menos um empurrão de Glen para começar a vida — mas como ele fez isso? Tornou-me vice-presidente da Construtora Mill Walk, como eu tinha imaginado? É assim que ele se preocupa com os outros? Diabo, não! Mantive meu nariz limpo por dezessete anos, agora chegou o momento de tirar algum proveito. Raios, eu mereço!
— Espero que tudo dê certo — disse Tom.
— Ralph Redwing tem esta ilha no bolsinho do colete, não se engane quanto a isto. Glen Upshaw está velho, a caminho de aposentar-se. E Ralph tem coisas planejadas.
— Que tipo de coisas?
— Não sei, garoto, sei apenas o que falei. Ralph Redwing planeja com antecedência. Muita antecedência. Acredita que ele vai deixar Buddy andar sempre à solta? Buddy está em correia mais curta do que você pensa, garoto, e muito em breve terá de arcar com responsabilidades — vai ficar preso na armadilha de mel. O homem não assume riscos.
O olhar de maligno triunfo agora retornara com pleno vigor.
— O que quer dizer com armadilha de mel?
— Termine seu jantar e desapareça da minha vista!
— Já terminei — disse Tom, levantando-se.
— Você tem um ano mais nesta casa — disse seu pai. — Aí está. Depois irá para o continente, e Glen Upshaw pagará 25 centavos, a cada vez que você der uma mijada. — Ele sorriu, e foi como se fosse morder alguma coisa. — Acredite, será melhor para você. Já lhe disse. Pegue o que puder, enquanto puder pegar. Porque você não existe.
— Existo! — gritou Tom, agora empurrado longe demais. — É claro que existo!
— Não para mim. Para mim você não existe. Sempre me deu náuseas.
Tom teve a impressão de estar sendo massacrado. Por um segundo, sua única vontade foi pegar uma faca e enterrá-la no coração do pai.
— O que está querendo? — bradou. — Quer que eu apenas seja como você? Eu não seria igual a você nem por um milhão de dólares! Viveu às custas do sogro a vida inteira, e agora está mais feliz do que um porco espojando-se em bosta, porque acha que recebeu oferta melhor!
Victor levantou-se, derrubando a cadeira, e precisou apoiar-se à mesa para não cair. Seu rosto ficara vermelho, os olhos e boca pareciam ter diminuído — ele parecia um porco, pensou Tom, um porco de cara vermelha, cambaleando para longe da gamela. Por um segundo, pensou que o pai ia atacá-lo.
— Fique com sua matraca fechada! — urrou Victor. — Ouviu bem?
Bem, ele se limitaria a berrar. Tom tremia descontroladamente e tinha as mãos crispadas em punhos.
— Você não sabe de nada a meu respeito! — disse Victor, ainda muito alto, mas não chegando a gritar.
— Sei o suficiente — replicou Tom, mais alto.
— Você tampouco sabe de coisa alguma sobre si mesmo!
— Sei mais do que você pensa! — gritou Tom para ele.
Sua mãe começou a dar gritos lamentosos no andar de cima, e o horror daquela cena deu-lhe vontade de chorar. Ele ainda tremia. O comportamento do pai mudou por completo — ainda tinha o rosto vermelho mas, de repente, ficara muito mais sóbrio.
— O que é que você sabe?
— Não importa — replicou Tom, desgostoso.
No andar de cima, Gloria passou para um padrão de gritos firmes e ritmados, como uma criança desolada batendo a cabeça contra o berço.
— Como se ainda não bastasse — disse Victor — agora mais esta!
— Suba e vá acalmá-la — disse Tom. — Ou isso também acabou, agora que seu amigo Ralph lhe comprou um charuto?
— Eu cuidarei de você, espertinho!
Victor pegou um guardanapo na mesa e enxugou o rosto. A recordação do charuto e da visita de Ralph Redwing o tinha restaurado. O telefone começou a soar no estúdio. Seu pai disse:
— Vá atender e, se for para mim, diga que ligarei em cinco minutos.
Victor saiu, Tom entrou no estúdio e ergueu o fone.
— O que é isso, a televisão? — soou a voz de seu avô. — Baixe o volume, para que eu possa dizer-lhe alguma coisa.
Tom desligou a televisão.
— Temos que conversar sobre o Lago da Águia — disse seu avô. — O que andou fazendo no hospital esta manhã?
— Eu queria saber o que houve com Nancy Vetiver.
— Eu não lhe telefonei sobre isso?
— Acho que o senhor esqueceu — disse Tom.
— Ela estará de volta ao trabalho dentro de um ou dois dias. Parece que alegou estar doente e faltou quatro ou cinco dias seguidos. O dr. Milton fez indagações e descobriu que ela ficava fora até muito tarde, provavelmente bebendo além da conta, e chamou-lhe a atenção. Ela procurou enganá-lo com evasivas, de maneira que ele a suspendeu por duas semanas. Tinha que fazê-la dar o exemplo, pois do contrário as outras todas acabariam também agindo como bem entendesse. Nenhuma daquelas moças tem um passado muito recomendável, é claro. Aí tem a história toda.
Seu avô tossiu ruidosamente, e Tom podia imaginá-lo segurando o fone em uma das mãos, o charuto na outra.
— Ela tentou enganá-lo com evasivas? — perguntou Tom.
— Tentou mentir para o dr. Milton, sair-se bem da situação. Entretanto, com a escassez de enfermeiras, até mesmo o Shady Mount tem que aceitar o que aparece. — Ele fez uma pausa. — Espero que este assunto esteja encerrado.
— Está encerrado — respondeu Tom. — De maneira absoluta, completa e irrevogavelmente.
— É bom saber que atende à razão. Agora, tenho uma sugestão para você, com relação à sua viagem para o Lago da Águia.
Tom ficou calado.
— Ainda está ouvindo? — gritou seu avô.
— Estou. — Ele ouviu sua mãe gritar algo estridentemente para o marido. — Continuo aqui, completa, inteiramente, e em nenhum outro lugar.
— O que há de errado com você?
— Não sei bem. Acabei de ter uma briga com papai.
— Dê-lhe tempo para acalmar-se ou peça-lhe desculpas, faça alguma coisa. — A mãe de Tom gritou novamente. — O que foi isso?
— A televisão.
Seu avô suspirou.
— Ouça. Nos velhos tempos, para ir-se ao Lago da Águia, tínhamos que chegar a Miami, tomar um trem para Chicago e depois outro para Hurley. A viagem inteira demorava quatro dias. Acabei de imaginar um meio de você fazê-la em um só trajeto, desde que possa viajar depois de amanhã. Penso que deveria aceitar.
Tom assentiu, mas nada disse.
— Ralph Redwing usa um avião particular para ir e vir do lado, além de também levar e trazer seus amigos. O avião está vindo para cá a fim de recolher os Spences e, como um favor pessoal a mim, Ralph concordou em levá-lo também. Faça suas malas e esteja no campo às oito da manhã de sexta-feira.
— Tudo bem. Obrigado — disse Tom.
— Respire um pouco daquele ar puro, dê caminhadas pelas florestas. Nade bastante. Pode usar meus direitos de membro no clube. Não fique preocupado sobre quando voltar. Cuidaremos disso ao chegar o momento. — Tom jamais ouvira Glendenning Upshaw mostrar-se tão amistoso. — Você vai adorar aquele lugar. Eu e Glória costumávamos pensar nos verões no Lago da Águia como a melhor época do ano. Ela gostava muito de lá. Ficava horas sentada ao balcão, contemplando as florestas.
— E o lago, suponho — disse Tom.
— Não. Alguns dos chalés possuem varandas altas, dando para o lago, mas a nossa fica no outro lado — dá diretamente para as matas. Você poderá ficar no ancoradouro, vendo o lago o quanto quiser.
— Da varanda não posso ver os outros ancoradouros?
— Quem quer ver ancoradouros dos outros? Eu e Glória íamos para lá com intenção de afastar-nos dos demais. Aliás, até você aparecer — até Glória casar-se e você aparecer — eu pensava em aposentar-me e ir para lá com ela, quando chegasse a hora. Então, não sabia que jamais desejaria aposentar-me.
— Ela não gostaria de ir comigo?
— Glória não voltará mais lá — disse seu avô. — Já tentamos uma vez, no ano depois que minha esposa morreu — não adiantou. De maneira alguma. Ela não podia suportar. Eventualmente, acabei desistindo e voltei antes do esperado, envolvi-me com meus negócios de Miami. A longo prazo, foi melhor assim.
— Foi melhor assim? — perguntou Tom, abismado.
— Terminei a construção daquele hospital em tempo recorde. — Talvez percebendo que ele e Tom falavam de temas diferentes, acrescentou: — Marquei umas duas consultas para Glória com um médico de Miami, o tipo de sujeito que naquele tempo chamavam de alienista. Acabei descobrindo que ele era apenas um impostor. A maioria dessa gente não passa disso, compreende. Queria que também eu o consultasse. Respondi-lhe que era mais lúcido do que ele. Encerrei o assunto aí mesmo. Glória era apenas uma criança que havia perdido a mãe no verão anterior, esse era todo o problema.
Tom recordou a mãe aferrando o copo de martíni, à mesa de Glen, na varanda.
— Não imagina algo mais que pudesse tê-la perturbado naquele verão? — perguntou ao avô.
— Não houve nada mais. Fora o problema de Glor, foi um verão perfeito. Um dos jovens Redwing, Jonathan, estava para casar-se com uma bonita moça de Atlanta. Um casamento Redwing é sempre um grande acontecimento, e aquele prometia ser um verão delicioso, com tantas festas no clube.
— E não foi — disse Tom.
— Você terá melhor sorte. Basta chegar ao aeroporto em tempo.
Tom prometeu que chegaria, e seu avô desligou, sem esperar para receber agradecimentos ou dizer adeus.
Tom viu-se no corredor, ao pé da escada, sem qualquer lembrança de como fora parar ali. Suaves gemidos intermitentes e imprecações estridentes, sem palavras, fluíam do andar de cima. Ele espiou para a ampla sala de estar e viu que tudo nela estava morto. Todos os móveis, as poltronas, mesas e o comprido sofá, eram móveis mortos.
— Quer dizer que ela se saiu com evasivas — murmurou ele. — Então, tentou mentir para levar a melhor... — A voz de seu pai estrondeou. — Deveria ter sido um verão delicioso...
No andar de cima, algo caiu com ruído e se quebrou. Seus pés o levaram de volta ao estúdio. Sentando-se no braço da cadeira reclinável de seu pai, ele contemplou a lisa tela acinzentada da televisão durante algum tempo, antes de perceber que estava desligada. Suas pernas o levaram através do aposento e sua mão pressionou o botão que ligava o aparelho. Em uma fileira de homens com paletós esporte, atrás de uma longa mesa encurvada, Joe Ruddler careteava violentamente para a câmara. Enormes letras impressas na parte inferior da tela anunciavam A seguir, notícias de toda a ilha ao vivo! Um comercial de cera para automóveis entrou no ar. Tom baixou o volume, caminhou para uma poltrona de fundo de junco, e esperou.
— Espero que tenha dito a eles que eu ligaria em seguida — disse seu pai.
Tom virou a cabeça e viu seu pai parado na soleira.
— Era para mim. De vovô.
Uma camada de células morreu logo abaixo da superfície do rosto de Victor Pasmore.
— Tivemos uma longa conversa. Talvez a conversa mais longa que já tive com ele. Em uma base de um-para-um, quero dizer.
Algo aconteceu às bolsas escuras sob os olhos de seu pai.
— Ralph Redwing surgiu. Vou lá para o norte, no avião de seu amigo, depois de amanhã. Vovô parecia satisfeito consigo mesmo.
Os olhos de seu pai pareciam machucados — era isso. Não as bolsas, mas os próprios olhos.
— Nada falei sobre a maravilhosa visita e o charuto de cinco dólares. Não contei a ele absolutamente nada. Como poderia? Eu não existo!
Victor colocou as duas mãos no batente da porta e inclinou a metade superior do corpo para dentro da sala. Um negro anel de cabelo colava-se em sua testa. Ela abriu a boca, a expressão machucada aumentando em seus olhos.
— Eu cuidarei de você mais tarde — disse, tornando a desaparecer da sala.
Um tema musical, vivo e saltitante, saltou ruidoso da televisão, enquanto uma voz ressonante anunciava:
— Chegou a hora da equipe noticiosa de Toda-a-Ilha entrar em ação ao vivo!
Bochechas salientes e olhos faiscantes surgiram na tela por um momento, declarando que Joe Ruddler preparava-se para soltar ferozmente palavras, frases e parágrafos por entre seus quadrados e alvos dentes.
Em seguida, um homem louro com uma quase clerical expressão de pesar nas feições regulares olhou para Tom e disse:
— Trágica morte de um herói local. A seguir.
Durante trinta segundos, um comercial de xampu lançou para ele imagens de encapelados cabelos. O homem louro tornou a olhar para Tom, dizendo:
— Hoje, Mill Walk perdeu um herói. O patrulheiro Roman Klink, um dos dois policiais feridos no tiroteio no quarteirão nativo, que resultou na morte de Edwardes Foxhall, suspeito de assassinato, sofreu fatais ferimentos a bala, durante uma tentativa de assalto ao Bar Mulroney’s, no final desta tarde. O patrulheiro Klink trabalhava em horário parcial nesse bar, enquanto esperava a plena recuperação de seus ferimentos e, ao empunhar sua arma regularmente para tentar deter o assalto, os assaltantes derrubaram-no a tiros. O patrulheiro Klink foi atingido na cabeça, tendo morte instantânea. Foram vistos três homens fugindo da área e, embora não sendo conseguida qualquer identificação, há iminência de prisões.
Uma foto imprecisa da Academia de Polícia, em preto e branco, apareceu na tela, mostrando um homem de rosto largo, tendo na cabeça o quepe do uniforme.
— Um veterano com 15 anos na Força Policial de Mill Walk, o patrulheiro Roman Klink tinha 42 anos, e deixa esposa e um filho.
O homem louro baixou os olhos para sua mesa, depois tornando a fitar a câmara e Tom.
— Em um caso relacionado, o parceiro do patrulheiro Klink, o patrulheiro Michael Mendenhall, faleceu hoje no Hospital Shady Mount, em decorrência de ferimentos recebidos de Foxwall Edwardes, no tiroteio da Baixada da Doninha. O patrulheiro Mendenhall permaneceu em coma desde o evento, um dos mais violentos na história de Mill Walk.
“Os dois policiais serão sepultados com todas as honras policiais no Cemitério Christchurch, às duas da tarde do domingo, havendo em seguida um serviço em memória, na Igreja da Santa Hilda. O capitão Fulton Bishop declarou que serão gratamente aceitos donativos para o Fundo Beneficente da Polícia.”
Virando-se de perfil para a câmara, ele disse:
— Um triste comentário, Joe.
Joe Ruddler explodiu, acima de uma camisa azul abotoada até o alto, presa pelo apertado nó de uma gravata amarela de lã fina:
— Terrível! Chocante! Quer saber o que penso? Pois eu lhe direi o que penso! Certas pessoas acreditam que enforcamentos públicos...
Tom ficou em pé e desligou a televisão.
— Ei, aquele era Joe Ruddler! — exclamou Victor.
Virando-se, Tom viu seu pai em pé na porta. Ele tinha as mãos enfiadas nos bolsos.
— Eu gosto de Joe Ruddler.
O estômago de Tom comprimiu-se — seu corpo, dos pulmões aos intestinos, parecia um punho fechado. Inclinando-se, tornou a ligar a televisão.
— ...ovardes de coração mole, hipócritas que não aceitam...
Tom torceu o controle do volume e eliminou o som.
— Um policial foi assassinado hoje.
— Os tiras aceitam o risco. Acredite, eles ganham para isso. — Victor insinuou-se na sala, parecendo envergonhado. — Bem, Tom, eu disse certas coisas... — Ele sacudiu a cabeça. — Não se trata de... não desejo que fique pensando...
— Ninguém quer que eu pense — respondeu Tom.
— Sim, mas, quero dizer, foi bom não ter contado a Glen nada sobre... você não contou, contou?
— Eu reparei algo em vovô — disse Tom. — Ele gosta de dizer-nos coisas interessantes, porém nunca quer ouvi-las ele mesmo.
— Certo. Certo. Ótimo. — Victor contornou o assento de Tom, a fim de chegar à sua poltrona reclinável. — Quer subir a ver sua mãe agora? Pode aumentar o som nessa coisa?
Tom torceu o botão do volume, até Joe Ruddler ficar gritando:
— Então atirem em mim! Eis o que eu penso!
Victor deu uma espiada para ele. Tom deixou a sala e subiu para o andar de cima.
Glória jazia em sua cama, vestindo um amarrotado pijama para homem, com um travesseiro calçando-lhe as costas e as cobertas amarfanhadas sobre um punhado de revistas. As persianas estavam fechadas. Um abajur, coberto por uma echarpe, lançava uma claridade difusa do alto do toucador. O outro abajur, que geralmente ficava ao lado da cama, jazia em dois pedaços, um espesso suporte e um comprido, fino pescoço, no chão perto da cama. Próximo ao lugar em que deveria estar o abajur havia um vidro de plástico castanho, com uma etiqueta datilografada de receita médica. Alguns turvos pedacinhos de vidro cintilavam no carpete azul. Tom começou a recolhê-los, dizendo:
— Você poderá cortar-se.
— Fiquei tão cansada o dia inteiro, que dificilmente sairia da cama. Então pensei ter ouvido você e Victor gritando um com o outro, e...
Tom ergueu os olhos acima da beirada da cama. Glória cobrira o rosto com as mãos. Ele recolheu o máximo de cacos que pôde, deixou-os cair sobre um bolo de lenços de papel na cesta de papéis ao lado da cama, para então sentar-se perto da mãe.
— Tivemos uma discussão, mas já terminou. — Ele passou os braços em torno da mãe. Ela dava a impressão de não ter ossos e ser rígida ao mesmo tempo. — Apenas aconteceu.
Por um momento, Glória reclinou a cabeça contra o ombro do filho, para depois recuar bruscamente.
— Não me toque! Não gosto disso!
Ele imediatamente afastou os braços. Ela lhe dirigiu um olhar nublado, deu um puxão na parte superior do pijama e o ajeitou em torno do corpo, até sentir-se satisfeita.
— Quer que eu saia?
— Não, não. É que odeio brigas — fico tão assustada quando ouço pessoas discutindo...
— E eu odeio ouvi-la gritar — disse ele. — Faz com que me sinta muito mal. Não creio que possa fazer algo por você...
— Acha que gosto disso? Apenas acontece. Há uma coisinha dentro de mim que explode — pop! — e então mal sei onde estou. Eu costumava pensar... Era como se a eu real fugisse para algum lugar e me visse forçada a esconder me dentro de mim mesma, até ela voltar. Mais tarde compreendi que meu eu real era esta... esta coisa que é como uma pessoa morta.
— Você nem sempre é assim — disse ele.
— Quer desligar o toca-discos? Por favor?
Ele não havia reparado no disco, girando no prato do toca-discos portátil, em cima de uma cômoda. Virando-se, apertou o botão reject, e o braço da agulha levantou-se dos sulcos finais, retornando a seu posto. Tom viu a etiqueta parando de girar, e então pôde ler as palavras que continha. Rosa azul, de Glenroy Breakstone e os Targets. Retirou o disco do toca-discos e procurou a capa na pilha de discos amontoados no chão contra a cômoda, depois a viu meio escondida, debaixo da cama. As dobras abertas na parte superior e inferior da capa do disco tinham sido reparadas com fita adesiva transparente, já amarelecida. Tom deixou o disco escorregar para dentro da capa.
— O que ele está fazendo agora? Vendo televisão?
Tom assentiu.
— Como isso o tornou tão superior a mim? Fico aqui em cima e ouço música, enquanto ele vê a estúpida televisão lá embaixo e bebe.
— Você está se sentindo melhor — disse Tom.
— Se realmente me sentisse melhor, dificilmente saberia como agir.
Ela virou o corpo de lado, equilibrando-se para puxar as cobertas e enfiar as pernas sob elas. Algumas revistas deslizaram para o chão. Glória puxou as cobertas sobre o corpo e recostou-se nos travesseiros.
Era como estar no quarto de uma adolescente, pensou Tom de súbito: o pequeno toca-discos em cima da cômoda, o pijama masculino, a barafunda de revistas, a penumbra, a cama de solteiro. Haveria posters e flâmulas nas paredes, mas as paredes estavam nuas.
— Quer que eu vá embora? — ele perguntou.
— Pode ficar um pouquinho mais. — Ela fechou os olhos. — Ele parecia envergonhado de si mesmo, não?
— Acho que sim.
Tom levantou se da cama e sentou-se de costas na cadeira diante do toucador. Ainda segurava o disco dentro da capa.
— Vovô telefonou há pouco.
Gloria abriu os olhos e empurrou-se contra a cabeceira da cama. Estendeu a mão para o vidro de pílulas e deixou duas caírem na palma.
— É mesmo?
Ela partiu as pílulas ao meio e engoliu, sem água, duas das pequeninas metades.
— Ele quer que eu vá para o Lago da Águia depois de amanhã. Posso conseguir uma carona no avião dos Redwings, com os Spences.
— Os Spences vão voar lá para o norte no avião dos Redwings? — Um segundo depois, ela acrescentou: — E você vai com eles?
Glória colocou na boca as duas diminutas metades da outra pílula, fez uma careta e engoliu.
— Você gostaria que eu ficasse aqui? — perguntou ele. — Não sou obrigado a ir.
— Talvez você devesse afastar-se de casa um pouco. Talvez lá no norte seja mais interessante.
— Você costumava ir lá durante o verão — disse ele.
— Eu costumava ir a muitos lugares. Durante algum tempo, levei outra espécie de vida.
— Consegue lembrar do chalé no lago?
— Era grande, uma casa grande. Toda de madeira. Tudo era feito de madeira. Todas as cabanas, os chalés, eram assim. Eu sabia onde cada pessoa morava. Até mesmo Lamont von Heilitz. Papai não quis que eu falasse sobre ele durante o almoço — no dia em que fomos ao Clube dos Fundadores, lembra-se?
Tom assentiu.
— Ele era famoso — disse sua mãe. — Era muito mais famoso do que papai, e fazia coisas maravilhosas. Sempre o achei um grande homem, Lamont von Heilitz.
A que vem isto agora?, estranhou Tom.
— E eu conheci uma senhora chamada Jeanine. Também era minha amiga. Isso é outra terrível história. No fim, tudo se resume em uma terrível história após outra.
— Você conheceu Jeanine Thielman?
— Há muita coisa sobre a qual não devo falar. Então, não falo.
— Por que não deveria falar sobre Jeanine Thielman?
— Oh, isso não importa mais — disse Glória, parecendo mais adulta e desperta. — No entanto, eu poderia contar coisas dela.
— Que idade você tinha, quando sua mãe morreu? — perguntou Tom.
— Quatro anos. Aliás, por muito tempo não entendi bem o que aconteceu — pensei que ela tivesse ido embora, para fazer com que me sentisse uma menina má. Pensei que ela queria castigar-me.
— Por que ela faria isso, mamãe?
Ela arregalou os olhos, e seu rosto emaciado pareceu infantil e malicioso.
— Porque eu era má. Porque tinha meus segredos. — Por um momento, Tom pensou que a malícia era como um pedaço de manteiga na boca de sua mãe. — Às vezes, Jeanine vinha e conversava comigo. E me punha no colo. E eu conversava com ela. Queria que fosse a minha nova mamãe. Queria mesmo!
— Eu sempre quis saber como minha avó morreu — disse Tom. — Nunca alguém falou comigo a respeito.
— Nem comigo! — exclamou Glória. — Coisas assim não podem ser ditas a uma criancinha.
— Coisas assim, como?
— Ela se matou. — Glória disse isto em voz inexpressiva, sem a menor emoção. — Era algo que eu não devia saber. Entenda, acho que papai nem mesmo queria que eu a soubesse morta. Você conhece papai. Dentro em pouco, ele agia como se nunca tivesse havido qualquer mamãe. Éramos só nós dois. Ela e o pai dela. — Glória apertou mais as cobertas contra si, firmemente, e as revistas ainda na cama moveram-se com elas. — Havia apenas ela e o pai dela, isso era tudo que havia. Porque ele a amou, de verdade, e ela o amou. E ela sabia de tudo quanto aconteceu.
Glória escorregou para mais fundo na cama.
— Entretanto, isto foi há muito e muito tempo atrás. Jeanine estava zangada. Então, um homem a matou e também a jogou no lago. Eu o ouvi atirando — ouvi os tiros em meu quarto. Pam! Pam! Pam! Atravessei a casa, cheguei à varanda e vi um homem correndo pela floresta. Comecei a chorar, não encontrava papai e, por fim, fui dormir, imagino, porque quando acordei, ele estava lá. Contei para ele o que tinha visto, e papai me levou para a casa de Barbara Deane. Lá, eu estaria segura.
— Está querendo dizer que ele a levou para Miami.
— Não. Primeiro, papai me levou para a casa de Barbara Deane, na cidadezinha, onde fiquei algum tempo. Poucos dias. Ele voltou ao lago, a fim de procurar Jeanine. Quando voltou, foi então que partimos para Miami.
— Não entendo...
Ela fechou os olhos.
— Eu não gostava de Barbara Deane. Ela nunca conversou comigo. Não era gentil.
Glória ficou longo tempo calada, respirando fundo.
— Estarei melhor amanhã — disse por fim.
Tom levantou-se e foi para o lado da cama dela. As pálpebras de Glória tremularam. Ele se inclinou para beijá-la. Quando seus lábios lhe tocaram a testa, ela estremeceu e murmurou:
— Não.
No estúdio, Victor Pasmore estava enviezado em sua cadeira reclinável, diante da televisão ligada. Um cigarro que era apenas uma coluna de cinza queimava no cinzeiro, enviando para o alto uma linha fina de fumaça.
Tom foi até a porta da frente e saiu para a noite fresca. Filetes de luz infiltravam-se pelas cortinas da casa de Lamont von Heilitz.
— Você está preocupado — disse o sr. von Heilitz, assim que viu Tom em sua porta. — Entre depressa, deixe-me vê-lo melhor.
Tom cruzou a porta com o que sentia ser sua última energia, e recostou-se contra um arquivo. O Sombra enfiou um cigarro na boca, acendeu-o e observou Tom por entre olhos semicerrados, enquanto inalava.
— Você parece absolutamente exaurido, Tom. Vou trazer-lhe uma xícara de café, e então quero que me conte tudo o que houve.
Tom endireitou o corpo e esfregou o rosto.
— Estar aqui faz com que me sinta melhor — disse. — Ouvi tanta coisa hoje — fiquei sabendo de tanto — e agora, tudo ficou girando dentro de minha cabeça. Não consigo ordenar as idéias — não consigo raciocinar.
— Cuidarei bem de você — disse von Heilitz. — Você me parece algo sobrecarregado.
Ele conduziu Tom através da enorme sala até a cozinha, pegou um par de xícaras e pires, e despejou café de um velho bule negro que estivera borbulhando em um fogão a gás, também negro, que devia ter pertencido a seus pais. Tom gostou da cozinha inteira, com seus lambris, lâmpadas pendentes, pias antiquadas, altas prateleiras de madeira e piso de tábuas limpas, de suave antiguidade.
— Em homenagem à ocasião — disse o velho — acho que podíamos acrescentar algo ao café, certo?
Ele tirou uma garrafa de conhaque de outra prateleira, da qual despejou um pouquinho em cada xícara.
— Que ocasião? — perguntou Tom.
— Você estar aqui.
Von Heilitz estendeu uma xícara para ele e sorriu-lhe. Tom sorveu a mistura quente e deliciosa, sentiu que a tensão o abandonava.
— Eu não sabia que o senhor conhecia Hattie Bascombe.
— Hattie Bascombe é uma das pessoas mais extraordinárias desta ilha. Se está a par de nossa amizade, significa que deve tê-la visto hoje! Bem, não vou mantê-lo na cozinha. Vamos para a sala e ouvirei sobre o que o deixa tão perturbado.
Tom espalhou-se no velho sofá de couro e colocou os pés sobre a mesinha entulhada de livros. Von Heilitz disse:
— Um minuto!
Em seguida, colocou um disco em seu fulgurante equipamento estereofônico. Tom preparou-se para mais uma dose de Mahler, porém um cálido e dolente sax-tenor começou a tocar uma das melodias da srta. Ellinghausen, But not for me, e ele achou que soava exatamente da maneira como havia sido o sabor do café e do brandy: então, identificou-a.
— Isso é Rosa azul — disse. — Minha mãe tem esse disco.
— O melhor disco de Glenroy Breakstone. É o que devemos ouvir, esta noite. — Tom o fitou com uma mescla de dor e confusão. Von Heilitz disse: — O estado em que se encontra... Sei que é uma condição terrível, mas penso significar que você está quase chegando lá. Os eventos agora praticamente se movem por si mesmos, e isto acontece por sua causa. — Sentando-se diante de Tom, ele bebeu de sua xícara. — Outro homem foi assassinado hoje — assassinado, porque falou demais, entre outros motivos.
— Aquele policial — disse Tom.
— Era uma ponta solta. Eles não podiam confiar em tal pessoa, de maneira que tiveram de livrar-se dele. Fariam o mesmo comigo e com você também, se soubessem a nosso respeito. Compreenda, de agora em diante precisamos ser muito cuidadosos.
— Sabia que minha avó suicidou-se? — perguntou Tom. Von Heilitz parou a xícara a meio caminho da boca. — É como... se fosse um choque, mas não foi. E o senhor mentiu para mim! — explodiu ele. — Meu avô não poderia ter visto o ancoradouro dos Thielmans, de seu balcão! Aquele balcão não dá para a água, mas para a floresta! Então, por que me disse aquilo? Por que todo mundo me diz tantas mentiras? E por que minha mãe é tão incapaz?. Como meu avô iria deixá-la na casa de outra pessoa e retornar sozinho ao Lago da Águia? — Tom soltou um longo suspiro que foi quase um soluço. Cobriu o rosto com as mãos, depois tornou a baixá-las. — Sinto muito. Fico pensando em quatro ou cinco coisas ao mesmo tempo.
— Eu não menti para você. Apenas não lhe disse tudo — há certas coisa que eu então não sabia e outras que até agora não sei. — Ele esperou um momento. — Quando vai para o Lago da Águia?
— Depois de amanhã. — Quando von Heilitz ergueu os olhos bruscamente, ele disse: — Estava tudo decidido. Foi para isso que meu avô telefonou. Viajo no avião dos Redwings.
— Bem, bem! — O velho cruzou as pernas e recostou-se na poltrona. — Conte-me o que lhe aconteceu hoje.
Tom olhou para ele por sobre a mesinha e viu um sorriso de perfeita compreensão.
Contou tudo para von Heilitz. Sobre o hospital e David Natchez, o homem-morte e o dr. Milton; sobre sua “excursão” ao antigo bairro escravo e o Paraíso de Maxwell; sobre ver Fulton Bishop deslizando através do pátio como uma serpente esfaimada; sobre Nancy Vetiver e o que Michael Mendenhall havia dito; sobre dr. Milton em sua caleça; sobre a embriagada hostilidade de seu pai; sobre sua mãe no quarto, recordando o Lago da Águia e os tempos de criança.
— Meu Deus! — exclamou o velho, quando ele terminou. — Agora sei por que estava naquele estado, ao chegar aqui. Penso que tudo isso requer um pouco mais de brandy, desta vez sem o café. Aceita?
— Eu cairia no sono se tomasse um pouco mais — disse Tom. — Já estou quase dormindo agora!
Colocar em palavras tudo o que lhe sucedera tinha ajudado. Apesar do que havia dito, estava cansado, mas de maneira alguma sonolento, e agora sentia-se muito mais calmo.
O Sombra sorriu para ele, deu um tapinha em seu joelho e levou sua xícara para a cozinha. Voltou com um copinho de brandy, colocou-o em cima da mesa, e então virou o outro lado do disco de Glenroy Breakstone. A sala se encheu com os sons apaixonantes, confidenciais, que Tom associaria a este momento a sua mãe, pelo resto da vida.
Von Heilitz tornou a sentar-se defronte dele e o encarou fixamente. Tom achou que a expressão do velho era de visível afeição, enquanto ele girava o brandy dentro do copinho.
— Neste momento, você me forneceu duas informações muito úteis e confirmou algo que sempre julguei ser verdade — que você foi à área do Parque Goethe, sete anos atrás, pelo mesmo motivo que o levou a fazer seu professor de inglês levá-lo de carro à Baixada da Doninha. Eu o vi naquele dia e sabia que você também me tinha visto. Não me reconheceu, mas me viu.
O sr. von Heilitz parecia muito excitado, e seu excitamento contagiou Tom.
— O senhor esteve lá? Tinha me contado... Naquela primeira vez que vim aqui, perguntou se eu recordava a primeira vez...
— E assim foi, Tom! Pense!
Então, Tom recordou uma sombria casa gótica, assim como um rosto semelhante a um crânio, espiando por entre as cortinas. Ficou de queixo caído. Von Heilitz sorria para ele.
— O senhor estava naquela casa da Calle Burleigh!
— Sim, eu estava naquela casa. — Seus olhos brilharam para Tom, acima da borda do copinho, enquanto ele bebia. — Eu o vi descendo o quarteirão, espiando por entre as casas, a fim de ver a Rua 44.
— O que estava fazendo lá?
— Costumo alugar casas e apartamentos em vários pontos de Mill Walk. Em geral, uso-os quando preciso ficar de olho em certas coisas, mas sem que me vejam. Aquela casa era o mais próximo que consegui da casa de Wendell Hasek, na Rua 44. Do andar de cima, podia avistar todo o quarteirão da Rua 44.
— Wendell Hasek... — disse Tom. Então, ele o viu: um homem gordo, de eriçado cabelo à escovinha, recostado contra uma janela abaulada na casa pintada de castanho e amarelo, depois o mesmo homem surgindo à entrada e gesticulando. -Ele estava lá! — exclamou. — Devia ter-me visto, porque mandou... — Parou de falar, vendo um garoto mais velho e uma garota morena surgirem em sua memória. Jerryzinho. O que vai fazer agora, Jerryzinho? — Ele mandou os filhos atrás de mim. Jerry e Robyn. Eles queriam saber...
Quer mesmo saber o que está acontecendo? Por que você mesmo não me diz, hein? O que está fazendo aqui?
— ... o que eu estava fazendo lá. E então...
Ele viu dois outros garotos mais velhos; um menino gordo que já parecia furioso e um garoto magro como um esqueleto, surgindo da esquina de uma casa nativa. Toda a aterradora e apinhada cena daqueles poucos minutos lhe voltou à memória em um só jato: recordou Jerry atingindo-o, recordou a onda súbita de dor, como arremetera e quebrara o nariz de Jerry...
Nappy! Robbie! Peguem ele!
Tom recordou as facas. A correria. Wendell Hasek surgindo à entrada da casa e sacudindo a mão no ar. O medo daquilo e o senso de sobrenaturalidade: de estar capturado em um filme ou um sonho.
— Jerry deve ter mandado chamar os amigos — disse ele.
Tom começou a tremer. Agora podia recordar tudo: a faísca refletindo-se em uma das facas, a maneira insolente como o chamado Robbie tinha aguardado, antes dele começar a correr, o nome branco da rua no ar púrpura, AUER, a certeza de que Robbie ia enfiar nele sua comprida peixeira, o tráfego na Calle Burleigh, dividindo-se subitamente à volta dele, e um homem grisalho de bicicleta, cambaleando enquanto caía no chão, como um cavaleiro fazendo truques em algum circo. Tapou os olhos com as mãos. A confusão do radiador de um carro e de um rosto apontados para ele.
— Nappy e Robbie — murmurou.
— Nappy LaBarre e Robbie Wintergreen. Exato. Os Garotos da Esquina.
O tremor de Tom foi parando aos poucos e ele olhou para o velho.
— Era como eles chamavam a si mesmos — disse von Heilitz. — Todos deixaram a escola aos 14 anos e faziam alguns serviços para Wendell Hasek. Roubavam. Vigiavam a chegada da polícia. Em geral, não faziam nada decente, até chegarem aos vinte e poucos anos, quando de repente ficaram respeitáveis e começaram a trabalhar para a Redwing Holding Company.
— O que eles fazem na Redwing? — Tom recordou algo que Sarah havia dito à tarde. — Oh... são guarda-costas.
— Suponho que seja o nome que dão.
— E sobre Robyn? O que foi feito dela?
Von Heilitz sorriu e sacudiu a cabeça.
— Robyn arranjou um emprego para cuidar de uma velha doente. A velha morreu quando faziam uma viagem ao continente, e Robyn herdou tudo o que ela possuía. A família levou o caso aos tribunais no continente, porém ela saiu vencedora. Agora, está apenas gastando o dinheiro da velha.
— Hasek reconheceu-me — disse Tom. — Daí por que mandou chamar os Garotos da Esquina. Dias antes, ele tinha à nossa casa. Deve ter seguido meu avô — primeiro havia parado em uns dois bares também, pois estava caindo de bêbado. Seja como for, gritava e jogava pedras. Meu avô foi até a rua para controlá-lo. Eu o segui, e Hasek me viu. Meu avô expulsou-o, entrei em casa e, quando chegou, vovô foi para o andar de cima. Eles ficaram falando a respeito do caso. Ouvi minha mãe gritar, De onde veio esse homem? O que ele queria? E meu avô respondeu, Ele veio dos arredores da Rua 44 com Auer, se está interessada. Sobre o que ele quer, o que pensa que ele quer? Ele quer mais dinheiro.
— Você ouviu isso por acaso e, dias mais tarde, foi até lá — atravessou a ilha por conta própria, aos dez anos de idade. Porque ouviu o suficiente para pensar que, se fosse àquele lugar, seria capaz de entender tudo. Em vez disso, quase foi morto e acabou no hospital.
— É este o motivo de todos viverem perguntando o que eu fazia lá — disse Tom, e outro nível de confusão envolveu-o. — Por que o senhor foi hoje ao hospital?
— Queria ver por mim mesmo o que você ouvira sobre Nancy Vetiver. Sabia que o pobre Michael Mendenhall não teria muito mais tempo, e fiquei umas duas horas por dia naquele saguão — no disfarce que você viu — a fim de verificar o que aconteceria quando ele morresse. Pude constatar que minha impressão sobre David Natchez era correta — ele é um homem realmente direito. O fato de continuar vivo todo este tempo significa que também é um sujeito habilidoso. Algum dia, Tom, iremos precisar desse homem — e ele irá precisar de nós.
Von Heilitz levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos. Ficou andando de um lado para outro, entre sua poltrona e a mesinha.
— Agora, deixe-me fazer-lhe outra pergunta. O que sabe sobre Wendell Hasek?
— Ele foi ferido certa vez — disse Tom. — No roubo da folha de pagamento da companhia de meu avô. Os ladrões foram mortos a tiros, porém o dinheiro nunca foi encontrado.
Von Heilitz parou de andar e fixou os olhos na tela de Degas, mostrando uma bailarina. Parecia ouvir a musica atentamente.
— E isso o faz recordar alguma coisa?
Tom assentiu.
— Faz-me recordar montes de coisas. Hasselgard. O dinheiro do Tesouro. Entretanto, o que...
Von Heilitz virou-se bruscamente, a fim de encará-lo.
— Wendell Hasek, que estava no Lago da Águia naquele verão quando Jeanine Thielman foi assassinada, foi até sua casa, procurando seu avô. Ele queria dinheiro, ou pelo menos assim parece. Podemos especular que, na opinião dele, merecia mais dinheiro por ter sido ferido no assalto à companhia, embora já tendo recebido o suficiente para comprar uma casa. E quando você aparece, pouco tempo depois, ele se mostra ansioso o bastante para enviar o filho em sua perseguição, além de convocar os amigos do filho, a fim de descobrir o que você fazia lá. Isto não sugere que ele esteja escondendo alguma coisa?
Von Heilitz fixou os olhos em Tom.
— Talvez ele houvesse planejado o assalto ao dinheiro do pagamento — disse Tom. — Talvez estivesse recebendo mais dinheiro de meu avô por um ferimento deliberado.
— Talvez. — Von Heilitz recostou-se no encosto da poltrona e encarou Tom com o mesmo excitamento nos olhos. Estiva guardando algo consigo mesmo, compreendeu Tom: Aquele talvez escondia uma outra possibilidade, e ele queria descobri-la sozinho. As palavras seguintes do velho pareceram um passo deliberado afastando-se do tema não falado: — Quero que você fique atento ao que acontece à sua volta no Lago da Águia. Seja muito cauteloso e escreva para mim, sempre que vir algo capaz de intrigá-lo. Não coloque as cartas na caixa de correspondência de seu avô. Entregue-as a Joe Truehart — o filho de Minor. Ele trabalha para o correio do Lago da Águia e recorda o que fiz por seu pai. Entretanto, não deixe que ninguém o veja falando com ele. Você não deve enfrentar riscos desnecessários.
— Tudo bem — disse Tom — mas que tipo de riscos haveria?
— Bem, as coisas estão alcançando uma certa altura — disse von Heilitz. — Talvez você instigue alguma coisa, apenas por estar lá. No mínimo, tem de esperar que Jerry Hasek e seus amigos possam reconhecê-lo. Eles certamente reconhecerão seu nome — devem ter pensado que o mataram. Se ajudaram Wendell Hasek a esconder algo, sete anos atrás, esse algo ou seus traços podem ainda estar escondidos.
— O dinheiro?
— Quando vigiei a casa dele, do andar de cima daquela que aluguei na Calle Burleigh, por duas vezes vi um carro parar diante da casa de Hasek. Dele saiu um homem carregando uma pasta, que entrou na casa. Da segunda vez era um carro diferente. O homem também era outro. Hasek foi até a porta dos fundos, entrou em um galpão em seu quintal e saiu de lá com pequenos embrulhos nas mãos. Os visitantes foram embora, ainda levando as pastas.
— Por que ele entregou o dinheiro?
— Pagamentos. — Von Heilitz deu de ombros, como se dissesse: Para que mais seria? — A polícia certamente ficou com parte daquele dinheiro, mas ainda não sabemos responder quem mais o recebeu.
— Ele estava protegendo dinheiro roubado — disse Tom.
— O dinheiro da folha de pagamentos. — Aqui havia novamente o sabor do assunto não falado. O velho baixou a cabeça e pareceu examinar as mãos enluvadas, que descansavam nos braços encurvados da poltrona. — Uma coisa que você me contou é muito sinistra, enquanto que outra faz várias peças cruciais ajustarem-se no quebra-cabeças global do Lago da Águia. Sabe o que percebi esta noite? O que somente minha vaidade me impedia de ver antes.
Agitado demais para continuar sentado, von Heilitz tornou a levantar-se em meio a esta surpreendente declaração, e agora andava de um lado para outro, por trás da poltrona.
— O que é? — perguntou Tom, alarmado.
— Que preciso mais de você do que você de mim! — Ele parou, girou para encarar Tom e abriu os braços. Seu rosto velho e simpático irradiava uma série de sentimentos contraditórios — espanto, ultraje, egoístico desespero e também uma sorte de tolo prazer — a tal ponto, que Tom sorriu da exibição. — É verdade! Verdade absoluta! — O velho baixou os braços teatralmente. — Tudo isto — este imenso caso, depende absolutamente de você, Tom. Com toda certeza será a última, e certamente a mais importante coisa em que já trabalhei. É a culminação de minha vida, surge como a primeira coisa real que já fiz, mas sem você, eu ainda estaria colando recortes em meus livros, perguntando-me quando conseguiria aquilo de que preciso, a fim de dar um caso por encerrado. Fico em segundo plano no palco, em minha mesura final!
Ele riu e se virou para a sala, desejando que ela testemunhasse a merecida punição. Tornou a rir, com verdadeira felicidade. Depois, colocando as mãos no final das costas, ergueu o corpo para trás. Suspirou, e seus cabelos caíram sobre o colarinho.
— Ah, o que será de nós?
Contornou a poltrona lentamente, depois a mesinha, e sentou-se ao lado de Tom no sofá. Deu-lhe dois tapinhas nas costas.
— Bem, se soubéssemos, não faria sentido algum continuarmos, não acha?
Von Heilitz pousou os pés na borda da mesinha, e Tom fez o mesmo. Por um momento, ficaram na mesma posição, tão relaxados como dois gêmeos.
— Posso perguntar-lhe uma coisa? — disse Tom finalmente.
— O que você quiser.
— O que lhe disse eu, capaz de ajustar outra peça do quebra-cabeças no lugar?
— Que seu avô levou sua mãe para uma casa que pertencia a Barbara Deane, durante alguns dias, imediatamente após a morte de Jeanine Thielman. E que sua mãe viu um homem correndo pela floresta.
— Ela não o reconheceu.
— Não. Ou reconheceu, mas não quis reconhecer, e disse a si mesma que não reconhecera. Havia bem poucos homens lá que sua mãe não conhecesse.
— E qual foi a coisa sinistra que eu lhe disse?
— Que Ralph Redwing fez uma lisonjeira visita a seu pai. — Von Heilitz baixou as pernas e sentou-se ereto. — Consideradas todas as circunstâncias, achei isso confrangedor.
Von Heilitz levantou-se decididamente do sofá e Tom fez o mesmo, perguntando-se o que viria em seguida. O velho o fitou de um modo que se equivalia a frases não ditas: entretanto, ao contrário de Victor Pasmore, ele não proferiu as palavras que poderia ter dito.
— É melhor que se vá — disse ele, em vez disso. — Está ficando tarde e não queremos que você tenha de responder a quaisquer perguntas incômodas.
Os dois começaram a caminhar por entre os arquivos e outros móveis desordenados até a porta. Por um momento, dois meses pareciam quase perigosamente longos, e Tom perguntou-se se tornaria a ver aquela sala.
— O que devo procurar, lá no norte? — perguntou. — O que faço?
— Procure informar-se sobre Jeanine Thielman. Descubra se mais alguém viu aquele homem correndo pela floresta. — Von Heilitz abriu a porta. — Quero que você agite um pouco a situação. Veja se consegue fazer as coisas acontecerem, mas sem que fique em perigo. Seja cauteloso, Tom. Por favor.
Tom estendeu a mão, porém von Heilitz tornou a surpreendê-lo, e o abraçou.
O melhor da literatura para todos os gostos e idades