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Havia um muro. Não parecia importante. Era feito de pedra bruta e argamassa grosseira. Um adulto conseguia olhar por cima dele, e até uma criança conseguia subir nele. No ponto em que atravessava a estrada, em vez de ter um portão, ele degenerava em mera geometria, uma linha, uma ideia de limite. Mas a ideia era real. Era importante. Por sete gerações não houve nada mais importante no mundo do que aquele muro.
Como todos os muros, era ambíguo, com dois lados. O que ficava dentro ou fora do muro dependia do lado em que se estava.
Visto de um lado, o muro encerrava um campo árido de sessenta acres, chamado Porto de Anarres. No campo havia dois grandes guindastes, uma plataforma de lançamento, uma garagem de caminhões e um alojamento. O alojamento era sólido, encardido e lúgubre; não tinha nenhum jardim, nenhuma criança; era evidente que ninguém vivia ali, nem sequer devia passar muito tempo ali. Era, na verdade, uma quarentena. O muro não cercava apenas o campo de pouso, mas também as naves que desciam do espaço, e os homens que vinham nas naves, e os mundos de onde vinham, e o resto do universo. O muro cercava o universo, deixando Anarres de fora, livre.
Visto do outro lado, o muro encerrava Anarres: o planeta inteiro estava dentro do muro, um grande campo de prisioneiros, apartado de outros mundos e outros homens, em quarentena.
Algumas pessoas vinham pela estrada em direção ao campo de pouso, outras paravam no ponto em que a estrada cruzava o muro.
As pessoas vinham com frequência da cidade vizinha de Abbenay, na esperança de ver uma espaçonave, ou simplesmente ver o muro. Afinal, era o único muro divisório do mundo. Em nenhum outro lugar podiam ver uma placa com os dizeres PASSAGEM PROIBIDA. Adolescentes, em particular, eram atraídos pelo muro. Talvez conseguissem observar uma equipe descarregando engradados de caminhões-lagarta nos depósitos. Talvez até houvesse um cargueiro na plataforma de lançamento. Os cargueiros desciam oito vezes por ano, sem aviso, exceto aos síndicos em serviço no porto. Assim, quando os espectadores tiveram a sorte de ver um, animaram-se, a princípio. Mas lá ficaram eles, parados, e lá ficou o cargueiro, parado, uma torre preta agachada em meio a uma confusão de guindastes móveis, do outro lado do campo. E então uma mulher saiu de um dos depósitos e disse:
– Estamos encerrando por hoje, irmãos.
Ela usava a braçadeira da Defesa, uma visão quase tão rara quanto a de uma espaçonave. Aquilo causou certa emoção. Mas, embora seu tom de voz fosse brando, foi categórico. Ela era a chefe da equipe e, se provocada, seria defendida pelos síndicos. De qualquer forma, não havia nada para se ver. Os alienígenas, os fora-do-mundo, ficaram escondidos na nave. Sem espetáculo.
Foi um espetáculo sem graça para a equipe de Defesa também. Às vezes a chefe desejava que alguém tentasse atravessar o muro, um tripulante alienígena pulando da nave, ou um garoto de Abbenay tentando uma entrada furtiva para ver o cargueiro mais de perto. Mas nunca aconteceu. Nada jamais aconteceu. Quando algo enfim aconteceu, ela não estava preparada.
O comandante do cargueiro Atento disse a ela:
– Aquela turba está atrás da minha nave?
A chefe olhou e viu que, de fato, havia uma verdadeira multidão em volta do portão, cem pessoas ou mais. Estavam por ali, paradas, do mesmo modo que as pessoas tinham ficado paradas nas estações, aguardando os trens de produtos agrícolas, durante a Fome. Aquilo assustou a chefe.
– Não. Eles, hã, protesto – ela disse, no iótico limitado e lento que sabia falar. – Protesto, hã, você sabe. Passageiro?
– Você quer dizer que eles estão atrás desse canalha que temos que levar? Eles vão tentar deter o homem ou a minha nave?
A palavra “canalha”, intraduzível no idioma da chefe, não significava nada para ela além de um termo estrangeiro, mas nunca gostou do som da palavra, nem do tom de voz do comandante, nem do comandante.
– Vocês conseguem se proteger sozinhos? – ela perguntou, lacônica.
– Claro que sim. É só você terminar de descarregar o resto da carga, rápido. E traga esse passageiro canalha a bordo. Não é uma turba de odos que vai causar problema para nós. – Ele bateu de leve na coisa que trazia no cinto, um objeto metálico parecido com um pênis deformado, e olhou com ar condescendente para a mulher desarmada.
Ela lançou para o objeto fálico, que sabia ser uma arma, um frio olhar.
– A nave estará carregada às 14h00 – ela disse. – Mantenha a tripulação de bordo segura. A decolagem será às 14h40. Se precisar de ajuda, deixe uma mensagem gravada no Controle Terrestre. – Ela saiu a passos largos antes de o comandante retrucar. A raiva deixou-a mais rígida com a equipe e com a multidão.
– Liberem a estrada aí! – ordenou. – Os caminhões vão passar, alguém pode se machucar. Afastem-se!
Os homens e as mulheres da multidão discutiram com ela e entre si. Continuaram a atravessar a estrada, e alguns entraram no muro. Mas deixaram o caminho mais ou menos livre. Se a chefe não tinha nenhuma experiência em controlar uma turba, eles não tinham nenhuma experiência em ser uma turba. Como membros de uma comunidade, não elementos de uma coletividade, não eram movidos pelo sentimento de massa; cada pessoa ali era regida por suas próprias emoções. E não esperavam que ordens fossem arbitrárias, então não tinham prática em desobedecê-las. A inexperiência deles salvou a vida do passageiro.
Alguns tinham vindo para matar o traidor. Outros tinham vindo impedir a sua partida, ou gritar-lhe insultos, ou apenas olhar para ele; e todos esses outros obstruíram a passagem abrupta dos assassinos. Nenhum deles portava armas de fogo, mas dois tinham facas. Para eles, ataque significava ataque físico; queriam pôr as próprias mãos no traidor. Esperavam que ele viesse protegido, num veículo. Enquanto tentavam revistar um caminhão de mercadorias e discutiam com o indignado motorista, o homem que todos queriam veio andando pela estrada, sozinho. Quando o reconheceram, ele já estava no meio do campo, seguido por cinco síndicos da Defesa. Os que desejavam matá-lo recorreram à perseguição, tarde demais, e começaram a atirar pedras, não tão tarde. Atingiram de raspão o ombro do passageiro no momento em que ele entrava na nave, mas uma pedra de dois quilos acertou a lateral da cabeça de um dos membros da Defesa, matando-o na hora.
As escotilhas da nave se fecharam. A equipe da Defesa retornou, carregando o colega morto; não fizeram nenhum esforço para deter os líderes da multidão que corriam em direção à nave, embora a chefe, lívida de assombro e fúria, os tenha mandado para o inferno quando eles passaram correndo, dando uma guinada para evitá-la. Quando chegaram à nave, a vanguarda da multidão espalhou-se, indecisa. O silêncio da nave, os movimentos bruscos dos enormes e esqueléticos guindastes, a estranha aparência queimada do solo, a ausência de qualquer coisa em escala humana deixaram-nos desorientados. Uma rajada de vapor, ou gás, ou algo conectado à nave assustou alguns deles; apreensivos, ergueram os olhos para os foguetes, grandes túneis pretos acima. Uma sirene soou em alarme do outro lado do campo. Uma a uma, as pessoas começaram a retornar ao portão. Ninguém as deteve. Em dez minutos o campo estava vazio, e a multidão, espalhada pela estrada que ia a Abbenay. No fim, parecia que nada havia acontecido.
Dentro da nave Atento, muita coisa acontecia. Como o Controle Terrestre havia antecipado o lançamento, toda a rotina teve de ser cumprida às pressas. O comandante ordenara que o passageiro fosse amarrado e trancado na sala de descanso da tripulação, junto com o médico, para que não atrapalhassem. Lá havia uma tela, e eles poderiam ver a decolagem, se quisessem.
O passageiro observava. Viu o campo, o muro em volta do campo e, do lado de fora do muro, as distantes encostas das Montanhas Ne Theras, salpicadas de arbustos de holum e espinhos-da-lua esparsos e prateados.
Tudo isso de repente deslizou na tela, turvando-a. O passageiro sentiu a cabeça pressionada contra o encosto almofadado. Era como uma consulta no dentista: a cabeça pressionada para trás, o maxilar aberto à força. Não conseguia respirar, sentiu náusea, sentiu o intestino solto de medo. Seu corpo inteiro gritava às poderosas forças que o dominaram: Agora não, ainda não, esperem!
Seus olhos o salvaram. O que insistiam em ver e relatar tirou-o do autismo de terror. Pois na tela agora havia uma estranha vista, uma grande e pálida planície rochosa. Era o deserto visto das montanhas acima do Vale Grande. Como ele voltara ao Vale Grande? Tentou se convencer de que estava numa aeronave. Não, numa espaçonave. A borda da planície cintilava como o brilho da luz na água, luz sobre um mar distante. Mas não havia água naqueles desertos. Então, o que ele estava vendo? A planície rochosa não era mais plana, mas convexa, como uma imensa tigela cheia de luz solar. Enquanto observava, maravilhado, ela ficou cada vez mais convexa, espalhando sua luz. De repente, foi atravessada por uma linha, abstrata, geométrica, o raio perfeito de um círculo. Além daquele arco, era a escuridão. Essa escuridão inverteu toda a imagem, tornando-a negativa. A parte real, rochosa da imagem não era mais côncava e cheia de luz, mas convexa, refletindo, rejeitando a luz. Não era uma planície ou uma tigela, mas uma esfera, uma bola de pedra branca caindo e sumindo na escuridão. Era o seu mundo.
– Não entendo – ele disse em voz alta.
Alguém respondeu. Por um instante, não conseguiu compreender que a pessoa em pé ao lado de sua cadeira estava falando com ele, pois não sabia mais o que era uma resposta. Só tinha certeza de uma única coisa: seu total isolamento. Lá embaixo, seu mundo desaparecera, e ele ficou sozinho.
Sempre temera que isso acontecesse, mais do que jamais temera a própria morte. Morrer é perder o eu e unir-se ao resto. Ele mantivera o eu, mas perdera o resto.
Finalmente, pôde olhar para o homem em pé ao seu lado. Era um estranho, claro. Dali em diante, haveria apenas estranhos. O estranho falava uma língua estrangeira, o iótico. As palavras faziam sentido. Todas as coisas pequenas faziam sentido; só que a coisa toda, não. O homem dizia algo sobre as amarras que o seguravam à cadeira. Desajeitado, tentou apalpá-las. A cadeira inclinou-se para trás e ele, com vertigem e sem equilíbrio, quase caiu. O homem não parava de perguntar se alguém estava ferido. Do que estava falando?
– Tem certeza de que ele não está ferido?
Em iótico, a forma educada de se dirigir diretamente a alguém era na terceira pessoa. O homem queria dizer ele, ele mesmo, não outra pessoa. Não sabia por que deveria estar ferido; o homem não parava de dizer algo sobre pedras sendo atiradas. Mas a pedra nunca irá atingi-lo, pensou. Olhou de novo para a tela, procurando a pedra, a pedra branca caindo na escuridão, mas a tela estava vazia.
– Estou bem – disse por fim, ao acaso.
Isso não apaziguou o homem.
– Por favor, venha comigo. Sou médico.
– Estou bem.
– Por favor, venha comigo, dr. Shevek!
– O senhor é doutor – disse Shevek, após uma pausa. – Eu não. Eu me chamo Shevek.
O médico, um homem baixo, calvo, de pele clara, fez uma careta impaciente.
– O senhor deveria estar em sua cabine... perigo de infecção... não era para o senhor ter contato com ninguém além de mim. Passei por duas semanas de desinfecção para nada. Maldito seja esse comandante! Por favor, venha comigo, senhor. Vão me responsabilizar...
Shevek percebeu que o homenzinho estava perturbado. Não sentiu nenhuma compunção, nenhuma empatia; mas até mesmo na situação em que se encontrava, de absoluta solidão, uma lei se mantinha, a única lei que jamais reconhecera.
– Tudo bem – ele disse, e levantou-se.
Ainda se sentia zonzo, e o ombro direito lhe doía. Sabia que a nave devia estar se movendo, mas não havia sensação de movimento; havia apenas silêncio, um terrível e completo silêncio lá fora, além daquelas paredes. O médico o conduziu por silenciosos corredores metálicos até uma sala.
Era uma sala muito pequena, com paredes vazias e emendadas. Isso desagradou Shevek, por lembrá-lo de um lugar que queria esquecer. Parou à porta. Mas o médico insistiu e implorou, e ele entrou.
Sentou-se numa cama semelhante a uma prateleira, ainda se sentindo tonto e letárgico, e, incurioso, observou o médico. Sentiu que deveria estar curioso, pois aquele homem era o primeiro urrasti que ele já tinha visto. Mas estava cansado demais. Poderia ter deitado e dormido ali mesmo, na hora.
Passara a noite anterior acordado, concluindo suas anotações. Três dias antes, despedira-se de Takver e das crianças, que foram para Paz-e-Fartura, e desde então estivera ocupado, correndo para a torre de rádio para trocar as últimas mensagens com as pessoas de Urras, discutindo planos e possibilidades com Bedap e os outros. Em todos aqueles dias corridos desde que Takver partira, sentira que não estava fazendo todas aquelas coisas, mas as coisas estavam fazendo por ele. Estivera nas mãos de outrem. Sua vontade própria não atuara. Não houvera necessidade de atuar. Foi sua própria vontade que dera início àquilo tudo, que criara aquele momento e aquelas paredes à sua volta agora. Há quanto tempo? Anos. Cinco anos atrás, no silêncio da noite, nas Montanhas de Chakar, quando dissera a Takver: “Vou a Abbenay derrubar muros”. Antes disso, até; muito antes, na Poeira, nos anos de fome e desespero, quando prometera a si mesmo só agir de acordo com seu próprio livre-arbítrio. E seguir essa promessa o trouxera até ali: até aquele momento sem tempo, aquele lugar sem chão, aquela saleta, aquela prisão.
O médico examinara seu ombro ferido (o ferimento surpreendeu Shevek; estivera tenso e apressado demais para perceber o que estava ocorrendo no campo de pouso e não sentiu a pedrada). Agora o doutor se voltava para ele segurando uma seringa.
– Não quero isso – disse Shevek. Falava num iótico lento e, como percebeu pelas conversas no rádio, mal pronunciado, mas a gramática era correta o suficiente; tinha mais dificuldade em entender do que em falar.
– Isto é vacina contra sarampo – disse o médico, com surdez profissional.
– Não – disse Shevek.
O médico conteve-se por um instante e perguntou:
– O senhor sabe o que é sarampo?
– Não.
– Uma doença. Contagiosa. Quase sempre grave em adultos. Vocês não têm essa doença em Anarres; medidas profiláticas a evitaram quando colonizaram o planeta. Mas ela é comum em Urras. Poderia matá-lo. Assim como uma dezena de outras infecções virais comuns. O senhor não tem resistência. O senhor é destro?
Shevek fez um sinal negativo com a cabeça, automaticamente. Com a destreza de um prestidigitador, o médico enfiou a agulha em seu braço direito. Shevek submeteu-se a esta e a outras injeções em silêncio. Não tinha direito a suspeitas ou protestos. Entregara-se àquelas pessoas; abdicara de seu direito nato à decisão. Esse direito desaparecera, junto com seu mundo, o mundo da Promessa, a pedra árida.
O médico falou de novo, mas ele não escutou.
Por horas ou dias, existiu num vácuo estéril e triste, num vazio sem passado nem futuro. As paredes à sua volta o oprimiam. Além das paredes, era o silêncio. Seus braços e suas nádegas doíam por causa das injeções; teve uma febre que não o levou ao completo delírio, mas o deixou num limbo entre a consciência e a inconsciência, uma terra de ninguém. O tempo não passava. Não havia tempo: apenas ele. Ele era o rio, a flecha, a pedra. Mas ele não se mexia. A pedra lançada pairava no meio do caminho. Não havia dia nem noite. Às vezes o médico apagava ou acendia a luz. Havia um relógio na parede, ao lado da cama; o ponteiro passava de um a outro dos vinte números do mostrador, sem significado.
Despertou após um longo e profundo sono e, como estava de frente para o relógio, estudou-o, sonolento. O ponteiro apontava para um pouco depois do número quinze, o que, se o mostrador fosse lido a partir da meia-noite como no relógio de vinte e quatro horas anarresti, devia significar que estavam no meio da tarde. Mas como poderiam estar no meio da tarde no espaço entre dois planetas? Bem, a nave deveria ter seu próprio horário, afinal de contas. Equacionar tudo isso o deixou imensamente animado. Sentou-se e não sentiu vertigem. Levantou-se da cama e testou seu equilíbrio: satisfatório, embora sentisse que o contato da sola dos pés com o chão não fosse muito firme. O campo gravitacional da nave devia ser bem fraco. Não gostou muito da sensação; precisava de firmeza, de solidez, de fatos concretos. Em busca dessas coisas, iniciou uma minuciosa investigação da saleta.
As paredes vazias eram cheias de surpresas, prontas a se revelarem após um breve toque no painel: lavatório, vaso sanitário, espelho, mesa, cadeira, armário, prateleiras. Conectados ao lavatório, havia vários dispositivos elétricos de um mistério total, e a válvula hidráulica não interrompia o fluxo quando se soltava a torneira, mas continuava a jorrar água até ser fechada – um sinal, pensou Shevek, de grande fé na natureza humana ou de grande quantidade de água quente. Acreditando na segunda hipótese, lavou-se todo e, não encontrando uma toalha, secou-se com um dos misteriosos dispositivos, de onde saía um agradável jato de ar quente que lhe fazia cócegas. Como não encontrou suas próprias roupas, tornou a vestir as que estava usando quando acordou: calças largas amarradas por um cordão e uma túnica sem forma, ambas amarelas com pontinhos azuis. Olhou-se no espelho. Achou o resultado desastroso. Era assim que se vestiam em Urras? Procurou em vão por um pente, contentou-se em fazer uma trança, prendendo os cabelos para trás, e, arrumado assim, decidiu sair do quarto.
Não conseguiu. A porta estava trancada.
A incredulidade inicial de Shevek tornou-se raiva, um tipo de raiva, um desejo cego de violência que ele jamais sentira antes na vida. Forçou a maçaneta imóvel, empurrou o metal liso da porta, depois se virou e golpeou o botão de chamada, que o médico lhe orientara a usar, se necessário. Nada aconteceu. Havia vários outros botõezinhos numerados de cores diferentes no painel de intercomunicação; bateu com a mão em todos eles. O alto-falante da parede começou a balbuciar:
– Quem diabos... sim, indo imediatamente... claro... de vinte e dois...
Shevek abafou a voz de todos eles: – Abram a porta!
A porta abriu deslizando, e o médico olhou para dentro. Ao ver seu rosto calvo, ansioso e amarelado, a ira de Shevek acalmou-se e retirou-se para uma escuridão interior.
– A porta estava trancada – disse.
– Desculpe, dr. Shevek... precaução... contágio... manter os outros do lado de fora...
– Trancar para fora, trancar para dentro, é a mesma ação – disse Shevek, encarando o médico com um olhar leve e distante.
– Segurança...
– Segurança? Precisam me manter numa caixa?
– Sala de descanso dos oficiais – o médico apressou-se em propor, para apaziguá-lo. – O senhor está com fome? Talvez queira se vestir antes de irmos para lá.
Shevek olhou para a roupa do doutor: calças azuis justas, enfiadas em botas que pareciam tão finas e macias quanto o próprio tecido; uma túnica roxa aberta na frente e fechada embaixo com alamares prateados; e, sob a túnica, mostrando apenas o colarinho e os punhos, uma camisa de malha de um branco ofuscante.
– Não estou vestido? – Shevek enfim perguntou.
– Ah, pode ir de pijama, é claro. Não há formalidades num cargueiro!
– Pijama?
– É o que o senhor está usando. Roupa de dormir.
– Roupa usada para dormir?
– Sim.
Shevek piscou. Não fez nenhum comentário. Perguntou:
– Onde está a roupa que eu estava usando?
– Sua roupa? Mandei lavar... esterilizar. Espero que o senhor não se importe... – Examinou um painel na parede que Shevek não havia descoberto e trouxe um pacote embrulhado em papel verde-claro. Desembrulhou o terno velho de Shevek, que parecia muito limpo e um tanto menor, amassou o papel verde, ativou outro painel, jogou o papel no cesto que se abriu e sorriu vacilante.
– Pronto, dr. Shevek.
– O que acontece com o papel?
– O papel?
– O papel verde.
– Ah, coloquei no lixo.
– Lixo?
– Descarte. Vai ser queimado.
– Vocês queimam papel?
– Talvez seja apenas jogado lá fora no espaço, não sei. Não sou médico espacial, dr. Shevek. Concederam-me a honra de atender o senhor pela minha experiência com visitantes de outros mundos, os embaixadores de Terran e de Hain. Conduzo os procedimentos de descontaminação e adaptação de todos os alienígenas que chegam a A-Io. Não que o senhor seja um alienígena no mesmo sentido, é claro. – Olhou timidamente para Shevek, que não conseguia acompanhar tudo o que ele dizia, mas podia discernir a natureza ansiosa, modesta e bem-intencionada de suas palavras.
– Não – assegurou-lhe Shevek –, talvez tenhamos a mesma avó, duzentos anos atrás, em Urras. – Estava pondo sua roupa velha e, enquanto vestia a camisa pela cabeça, viu o médico jogar a “roupa de dormir” amarela e azul no cesto de “lixo”. Shevek fez uma pausa, com o colarinho ainda sobre o nariz. Sua cabeça saiu por inteiro da camisa, ele ajoelhou-se e abriu o cesto. Estava vazio.
– As roupas são queimadas?
– Ah, esse pijama é barato, é de serviço... para usar e jogar fora. Custa menos do que mandar lavar.
– Custa menos – Shevek repetiu pensativo. Disse as palavras do mesmo modo que um paleontólogo examina um fóssil, o fóssil que determina a data de um estrato inteiro.
– Receio que sua bagagem tenha se perdido naquela correria do embarque. Espero que não contenha nada de importante.
– Eu não trouxe nada – disse Shevek. Embora seu terno tivesse sido alvejado até ficar quase branco e tivesse encolhido um pouco, ainda lhe servia, e o toque áspero e familiar do tecido de fibra de holum era agradável. Sentiu-se ele mesmo de novo. Sentou-se na cama de frente para o médico e disse:
– Veja bem, eu sei que vocês não encaram as coisas como nós. No seu mundo, em Urras, deve-se comprar coisas. Eu venho ao seu mundo sem dinheiro, não posso comprar, portanto devo trazer. Mas quanto posso trazer? Roupa, sim, talvez dois ternos. Mas comida? Como posso trazer comida suficiente? Não posso trazer, não posso comprar. Se for para me manterem vivo, vocês vão ter de me dar comida. Sou anarresti, farei os urrastis se comportarem como anarrestis: dar, não vender. Se quiserem. É claro que não é necessário me manterem vivo! Sou o Mendigo, veja bem.
– Oh, não, em absoluto, senhor, não, não. O senhor é um convidado de honra. Por favor, não nos julgue pela tripulação desta nave, eles são homens muito ignorantes e limitados... o senhor não faz ideia de como será bem-vindo em Urras. Afinal, o senhor é um cientista mundialmente famoso... galacticamente famoso! E nosso primeiro visitante de Anarres! Eu lhe asseguro que as coisas serão muito diferentes quando chegarmos ao Campo Peier.
– Não duvido que serão diferentes – disse Shevek.
Cada trecho da viagem à lua em geral levava quatro dias e meio, mas desta vez foram acrescentados cinco dias de adaptação para o passageiro, na viagem de volta. Shevek e o dr. Kimoe passaram esses dias em vacinações e conversas. O comandante da Atento passou-os mantendo a órbita em torno de Urras e praguejando. Quando tinha de falar com Shevek, fazia-o com desrespeito perturbador. O médico, disposto a explicar tudo, tinha sua justificativa pronta:
– Ele está acostumado a encarar todos os estrangeiros como inferiores, não como seres totalmente humanos.
– A criação de pseudoespécies, como dizia Odo. Sim. Achei que talvez em Urras as pessoas não pensassem mais assim, já que lá vocês têm tantas línguas e nações, e até visitantes de outros sistemas solares.
– Muito poucos, pois as viagens interestelares são muito caras e lentas. Talvez não vá ser sempre assim – acrescentou o dr. Kimoe, com evidente intenção de lisonjear Shevek ou estender o assunto, o que Shevek ignorou.
– O Segundo Oficial – disse – parece ter medo de mim.
– Ah, o problema dele é fanatismo religioso. Ele é Epifanista ortodoxo. Recita as Primas todas as noites. Tem uma mente muito rígida.
– Então... Como ele me vê?
– Como um ateu perigoso.
– Ateu! Por quê?
– Ora, porque o senhor é um odoniano de Anarres... Não existe religião em Anarres.
– Não existe religião? Nós somos feitos de pedra em Anarres?
– Eu quero dizer religião estabelecida... igrejas, credos... – Kimoe alterava-se com facilidade. Sua autoconfiança enérgica, própria dos médicos, era continuamente abalada por Shevek. Todas as suas explicações acabavam em embaraços, após duas ou três perguntas de Shevek. Cada um deles considerava como naturais certas relações que o outro sequer conseguia compreender. Por exemplo, essa curiosa questão de superioridade, de altura relativa, era importante aos urrastis; muitas vezes usavam a expressão “mais alto” como sinônimo de “melhor” em seus escritos, onde um anarresti usaria “mais central”. Mas o que ser mais alto tinha a ver com ser estrangeiro? Era apenas um dentre centenas de enigmas.
– Entendo – ele disse, agora que mais um enigma se elucidava. – Vocês não admitem nenhuma religião fora das igrejas, assim como não admitem nenhuma moralidade fora das leis. Sabe, eu nunca tinha entendido isso, em todas as minhas leituras dos livros urrastis.
– Bem, hoje em dia qualquer pessoa esclarecida admitiria...
– O vocabulário dificulta – disse Shevek, elaborando sua descoberta. – Em právico, a palavra religião é infrequente. Não, como vocês dizem... é rara. Não muito usada. Claro, é uma das Categorias: o Quarto Modo. Poucas pessoas aprendem a praticar todos os Modos. Mas os Modos são construídos a partir das capacidades naturais da mente. Não é possível que vocês acreditem que não temos capacidade religiosa. Que podemos estudar Física estando excluídos da relação mais profunda que o homem possui com o cosmos.
– Oh, não, em absoluto...
– Isso seria nos considerar, de fato, uma pseudoespécie!
– Homens instruídos com certeza entenderiam isso, mas esses oficiais são ignorantes.
– Mas então vocês só permitem que os fanáticos saiam em viagens pelo cosmos?
Todas as conversas entre eles eram assim: exaustivas para o médico e insatisfatórias para Shevek, embora muito interessantes para ambos. Eram o único meio de Shevek explorar o novo mundo que o aguardava. A nave em si e a mente de Kimoe eram seu microcosmo. Não havia livros a bordo da Atento, os oficiais evitavam Shevek, e os tripulantes eram mantidos rigorosamente a distância. Quanto à mente do doutor, embora inteligente e com certeza bem-intencionada, era uma mixórdia de artefatos intelectuais ainda mais confusos que todos os dispositivos, aparelhos e comodidades espalhados pela nave. Estas últimas Shevek achava divertidas; era tudo tão cheio de luxo, estilo e inventividade; mas não achava a mobília do intelecto de Kimoe tão confortável. As ideias de Kimoe pareciam nunca ser capazes de seguir uma linha reta; tinham de contornar isso e evitar aquilo, e então acabavam batendo contra um muro. Havia muros cercando todos os seus pensamentos, e ele parecia totalmente inconsciente disso, embora sempre se escondesse atrás deles. Somente uma vez Shevek viu uma brecha, em todos os dias de conversa entre os mundos.
Ele perguntara por que não havia mulheres na nave, e Kimoe respondera que operar um cargueiro espacial não era trabalho para mulheres. Cursos de história e o conhecimento dos escritos de Odo deram a Shevek um contexto para compreender essa resposta tautológica, e ele não disse mais nada. Mas o médico devolveu uma pergunta, uma pergunta sobre Anarres:
– É verdade, dr. Shevek, que as mulheres em sua sociedade são tratadas exatamente como homens?
– Isso seria desperdício de um bom material – disse Shevek, com uma risada, e depois uma segunda risada, à medida que se dava conta do ridículo da ideia.
O médico hesitou, contornando um dos obstáculos de sua mente, pareceu aturdido e disse:
– Ah, não, não estava falando de sexo... é óbvio que vocês... elas... Eu me referia à questão do status social das mulheres.
– Status é o mesmo que classe?
Kimoe tentou explicar o significado de status, fracassou e voltou ao primeiro tópico.
– Não há mesmo nenhuma distinção entre o trabalho do homem e o trabalho da mulher?
– Bem, não, isso parece uma base muito mecânica para a divisão do trabalho, não é? Uma pessoa escolhe o trabalho de acordo com seu interesse, seu talento, sua força... O que o sexo tem a ver com isso?
– Os homens são fisicamente mais fortes – afirmou o médico, com determinação profissional.
– Sim, com frequência, e maiores, mas o que isso importa, quando temos máquinas? E, mesmo quando não temos máquinas, quando temos de cavar com a pá, ou carregar peso nas costas, os homens podem trabalhar mais rápido... os que são grandes... mas as mulheres aguentam trabalhar mais tempo... Muitas vezes eu gostaria de ser tão resistente quanto uma mulher.
Kimoe o fitou chocado, a ponto de perder a polidez.
– Mas a perda de... de toda a feminilidade... da delicadeza... e a perda da dignidade masculina... Certamente o senhor não pode fingir, no seu trabalho, que as mulheres sejam iguais ao senhor? Em física, matemática, no intelecto? O senhor não pode fingir estar sempre se rebaixando ao nível delas!
Shevek sentou-se na confortável cadeira estofada e olhou em volta da sala de descanso dos oficiais. Na tela, a curva brilhante de Urras pairava imóvel contra a escuridão do espaço, como uma opala azul-esverdeada. Aquela visão adorável e a sala haviam se tornado familiares a Shevek nos últimos dias, mas agora as cores vivas, as cadeiras curvilíneas, a iluminação indireta, as mesas de jogos, tudo pareceu tão alienígena como da primeira vez que ele tinha visto.
– Acho que não sou de fingir muito, Kimoe – disse.
– É claro que conheci mulheres muito inteligentes, mulheres que pensavam como homens – o médico se apressou a dizer, ciente de que estivera quase gritando, de que, pensou Shevek, estivera esmurrando a porta trancada, gritando...
Shevek mudou de assunto, mas continuou a pensar a respeito. Aquela questão de inferioridade e superioridade devia ser fundamental da vida social urrasti. Se para sentir-se digno Kimoe precisava considerar metade da raça humana inferior a ele, como as mulheres faziam para se sentir dignas? Será que consideravam os homens inferiores? E como tudo isso afetava a vida sexual deles? Sabia, pelos escritos de Odo, que duzentos anos antes as principais instituições sexuais eram o “casamento”, uma parceria autorizada e imposta por meio de sanções legais e econômicas, e a “prostituição”, que parecia apenas ser um termo mais amplo, cópula em modo econômico. Odo condenava ambas, embora tivesse sido “casada”. De todo modo, as instituições talvez tivessem mudado bastante em duzentos anos. Já que ele iria viver em Urras com os urrastis, seria melhor descobrir.
Era estranho que até mesmo o sexo, fonte de tanta paz, deleite e alegria por anos a fio pudesse, da noite para o dia, tornar-se um território desconhecido, onde ele deveria pisar com cuidado, consciente de sua própria ignorância. No entanto, era assim. Ele foi alertado não só pelo estranho acesso de raiva e desprezo de Kimoe, mas por uma vaga impressão anterior que esse episódio pôs em foco. Nos primeiros dias a bordo da nave, naquelas longas horas de febre e desespero, distraíra-se, às vezes satisfeito e às vezes irritado, com uma sensação inteiramente simples: a maciez da cama. Embora fosse apenas um beliche, o colchão cedia sob seu peso, maleável como uma carícia. O colchão entregava-se a ele, entregava-se com tanta insistência que ele sempre sentia, e ainda sente, sua presença ao adormecer. Tanto o prazer quanto a irritação eram decididamente de natureza erótica. Havia também o aparelho-toalha-bocal-de-ar-quente: o mesmo tipo de efeito. Cócegas agradáveis. E o desenho dos móveis dispostos na sala, as suaves curvas de plástico onde a dureza da madeira e aço foi introduzida à força, a suavidade e a delicadeza das superfícies e texturas: não seria isso também um indicativo de um erotismo vago e difuso? Ele se conhecia o suficiente para ter certeza de que estar alguns dias sem Takver, mesmo sob forte pressão, não o deixaria tão excitado a ponto de sentir uma mulher em qualquer tampo de mesa. A menos que a mulher realmente estivesse ali.
Seriam os marceneiros urrastis todos castos?
Desistiu da resposta; em breve descobriria, em Urras.
Pouco antes de se atarem para a descida, o médico veio até a sua cabine para verificar o progresso das várias imunizações, a última das quais, uma inoculação contra a peste, deixara Shevek enjoado e grogue. Kimoe deu-lhe mais um comprimido.
– Isso vai animá-lo para a aterrissagem – ele disse.
Estoicamente, Shevek engoliu a coisa. Agitado, o médico mexeu em seu estojo e, de repente, começou a falar rápido:
– Dr. Shevek, não espero ter permissão de atendê-lo de novo, embora seja possível, mas, se não, queria lhe dizer que foi, que eu, que foi um grande privilégio para mim. Não porque... mas porque passei a respeitar... a apreciar... simplesmente como ser humano, sua bondade, sua verdadeira bondade...
Não lhe ocorrendo resposta melhor, por conta de sua dor de cabeça, Shevek estendeu a mão e apertou a de Kimoe, dizendo:
– Então vamos nos encontrar de novo, irmão! – Kimoe apertou-lhe a mão, nervoso, no estilo urrasti, e saiu às pressas. Após sua saída, Shevek percebeu que lhe falara em právico, chamando-o de ammar, irmão, numa língua que Kimoe não compreendia.
O alto-falante da parede balia ordens. Atado ao beliche, Shevek escutava, sentindo-se confuso e alheio. As sensações da entrada na atmosfera intensificaram a confusão; não tinha consciência de quase nada, exceto uma profunda esperança de não precisar vomitar. Só soube que tinham aterrissado quando Kimoe voltou correndo e o conduziu às pressas até a sala dos oficiais. A tela onde Urras pairara por tanto tempo, luminoso e envolto em nuvens espiraladas, estava em branco. A sala estava cheia de gente. De onde tinham vindo? Ficou surpreso e satisfeito com sua capacidade de ficar de pé, andar e cumprimentar com apertos de mão. Concentrou-se apenas nisso e deixou escapar o sentido daquilo tudo. Vozes, sorrisos, mãos, palavras, nomes. Seu nome o tempo todo: dr. Shevek, dr. Shevek... Agora ele e todos os estranhos à sua volta desciam uma rampa coberta, todas as vozes muito altas, palavras ecoando além das paredes. O alarido das vozes diminuiu. Um ar estranho tocou seu rosto.
Olhava para cima e, ao sair da rampa em direção ao nível do solo, tropeçou e quase caiu. Pensou em morte, naquele hiato entre o início e a conclusão de um passo e, ao final do passo, pisou num novo mundo.
Uma noite clara e cinzenta o rodeava. Luzes azuis, embaçadas pela neblina, ardiam do outro lado de um campo enevoado. O ar em seu rosto e suas mãos, nas narinas, garganta e pulmões era frio, úmido, perfumado, suave. Não era estranho. Era o ar de um planeta de onde sua raça viera. Era o ar de casa.
Alguém pegara em seu braço quando tropeçou. Refletores e flashes o iluminaram. Fotógrafos filmavam a cena para o noticiário. O Primeiro Homem Vindo da Lua: uma figura alta e frágil na multidão de dignitários, professores e agentes de segurança, os belos cabelos revoltos numa cabeça muito ereta (para que os fotógrafos pudessem capturar cada detalhe), como se ele tentasse olhar acima dos refletores, para o céu, o céu claro e nevoento que escondia as estrelas, a Lua e todos os outros mundos. Jornalistas tentavam atravessar os cordões de policiais.
– Poderia nos dar uma declaração, dr. Shevek, neste momento histórico?
Foram forçados a recuar no mesmo instante. Os homens à volta de Shevek o impeliam para a frente. Foi levado à limusine que o aguardava, fotografado até o último minuto, por conta de sua altura, seu cabelo longo e o estranho olhar de aflição e reconhecimento em seu rosto.
As torres da cidade elevavam-se em meio à névoa, grandes escadas de luz embaçada. Trens passavam no alto, riscos brilhantes guinchando. Imponentes paredes de pedra e vidro faceavam as ruas, acima da correria de carros e ônibus elétricos. Pedra, aço, vidro, luz elétrica. Nenhum rosto.
– Esta é Nio Esseia, dr. Shevek. Mas foi decidido que seria melhor mantê-lo afastado das multidões da cidade, por enquanto. Vamos direto para a universidade.
Havia cinco homens com ele no interior escuro e suavemente estofado do carro. Eles apontavam marcos, mas na névoa ele não sabia dizer qual prédio grande, vago e fugaz era a Alta Corte e qual era o Museu Nacional, qual o Diretório e qual o Senado. Cruzaram um rio ou estuário; os milhões de luzes de Nio Esseia, difusas pela névoa, tremeluziram na água escura atrás deles. A rodovia escureceu, a neblina adensou, o motorista diminuiu a velocidade do veículo. Os faróis iluminavam a bruma como se ela fosse um muro que não parava de recuar diante deles. Shevek inclinou-se um pouco para a frente, contemplando o lado de fora. Seus olhos não se fixavam em nada, nem sua mente, mas ele parecia reservado e circunspecto, e os outros homens falavam baixinho, em respeito ao seu silêncio.
O que seria a escuridão mais densa que fluía interminavelmente ao longo da estrada? Árvores? Poderia o carro estar passando por entre árvores desde que saíram da cidade? A palavra iótica lhe veio à lembrança: “floresta”. Eles não chegariam de repente ao deserto. As árvores prosseguiam sem parar, na colina seguinte, e na seguinte, e na seguinte, eretas no frio perfumado da névoa, intermináveis, uma floresta pelo mundo inteiro, uma esforçada e imóvel interação de vidas, um movimento escuro de folhas na noite. Então, enquanto Shevek se maravilhava, enquanto o carro saía da névoa do vale do rio e entrava no ar claro, lá estava, olhando para ele, sob a folhagem que margeava a estrada, por um instante, um rosto.
Não era um rosto humano. Era comprido como um braço e de uma palidez assustadora. A respiração esguichava vapor do que deviam ser narinas, e havia um olho, terrível, inconfundível. Um olho grande e escuro, fúnebre – talvez cínico? –, que sumiu na luz dos faróis.
– O que era aquilo?
– Um jumento, não?
– Um animal?
– Sim, um animal. Meu Deus, é mesmo! Vocês não têm animais de grande porte em Anarres, têm?
– Um jumento é uma espécie de cavalo – disse um dos outros homens; e outro, com voz firme e experiente:
– Aquilo era um cavalo. Jumentos não ficam daquele tamanho.
Queriam conversar com Shevek, mas ele não ouvia, de novo. Pensava em Takver. Imaginou o que aquele olhar profundo, seco e sombrio na escuridão teria significado para Takver. Ela sempre soubera que todas as vidas têm algo em comum, alegrando-se em reconhecer seu parentesco com os peixes nos tanques de seus laboratórios, buscando a experiência de existências fora dos limites humanos. Takver saberia corresponder àquele olhar na escuridão, sob as árvores.
– Lá adiante é Ieu Eun. Há uma multidão aguardando o senhor, dr. Shevek; o presidente e vários diretores, e o reitor, naturalmente. Todo tipo de figurão. Mas, se estiver cansado, acabamos com as amenidades o mais rápido possível.
As amenidades duraram várias horas. Nunca mais conseguiu se lembrar delas com clareza. Foi impelido para fora da pequena e escura caixa do carro em direção a uma imensa caixa brilhante cheia de gente – centenas de pessoas, sob um teto dourado de onde pendiam lustres de cristal. Foi apresentado a todas elas. Eram todas mais baixas que ele, e sem pelos. As poucas mulheres ali eram calvas; percebeu que elas deviam depilar todos os pelos, até o pelo corporal mais fino, macio e curto de sua raça, e o cabelo também. Mas isso era compensado pelas roupas maravilhosas, deslumbrantes no corte e nas cores, as mulheres em vestidos longos que se arrastavam no chão, os seios desnudos, cinturas, pescoços e cabeças enfeitados com joias, rendas e tules; os homens em calças e paletós ou túnicas em vermelho, azul, roxo, dourado, verde, com mangas bufantes e cascatas de rendas, ou longas becas em carmim, verde-escuro ou preto, que se abriam na altura dos joelhos, revelando as meias brancas com jarreteiras prateadas. Mais uma palavra iótica flutuou na cabeça de Shevek, para a qual jamais tivera uma referência, embora gostasse do som: “esplendor”. Aquelas pessoas tinham esplendor. Proferiram discursos. O presidente do Senado da Nação de A-Io, um homem de olhos estranhos e frios, propôs um brinde:
– À nova era de fraternidade entre os Planetas Gêmeos e ao arauto dessa nova era, nosso ilustre e muito bem-vindo convidado, dr. Shevek de Anarres!
O reitor da universidade conversou com ele encantado, o primeiro diretor conversou com ele sério, foi apresentado a embaixadores, astronautas, físicos, políticos, dezenas de pessoas, todas com longos títulos honoríficos antes e depois dos nomes, e conversaram com ele, e ele lhes respondeu, mas depois não se lembrou de nada do que disseram, e muito menos do que ele próprio dissera. Muito tarde da noite, viu-se com um pequeno grupo de homens caminhando na chuva morna por um grande parque ou uma praça. Havia uma sensação flexível de grama viva sob os pés; reconheceu-a por já ter caminhado no Parque Triângulo, em Abbenay. Aquela lembrança vívida e o toque vasto e frio do vento noturno o despertaram. Sua alma saiu do esconderijo.
Seus acompanhantes levaram-no a um prédio, e a um quarto, que, explicaram, era “dele”.
Era amplo, com cerca de dez metros de comprimento e, evidentemente, um quarto comunitário, pois não havia divisões nem estrados de dormir; os três homens que ainda o acompanhavam talvez fossem dividir o cômodo com ele. Era um quarto comunitário muito bonito, com uma parede inteira de janelas, cada uma delas separada por uma coluna delgada que subia como uma árvore, formando um arco duplo no topo. O chão era atapetado em carmim, e no outro extremo do cômodo ardia uma lareira aberta. Shevek atravessou o quarto e postou-se em frente ao fogo. Nunca tinha visto madeira queimada como aquecimento, mas ficou maravilhado. Estendeu as mãos para o calor agradável e sentou-se num banco de mármore polido ao lado da lareira.
O mais jovem dos homens que tinham vindo com ele sentou-se do outro lado da lareira. Os outros dois ainda conversavam. Conversavam sobre física, mas Shevek não tentou acompanhar o que diziam. O jovem falou calmamente:
– Imagino como deve estar se sentindo, dr. Shevek.
Shevek esticou as pernas e inclinou-se para a frente, a fim de sentir o calor do fogo em seu rosto.
– Sinto-me pesado.
– Pesado?
– Talvez a gravidade. Ou estou cansado.
Olhou para o outro homem, mas através da incandescência da lareira o rosto não era nítido, apenas a cintilação de uma corrente dourada e o vermelho-rubi do manto.
– Não sei o seu nome.
– Saio Pae.
– Ah, Pae, sim, conheço seus artigos sobre Paradoxo. – Ele falava de modo arrastado, sonhador.
– Deve haver um bar por aqui. Os dormitórios dos veteranos da faculdade sempre têm um armário de bebidas. Gostaria de beber alguma coisa?
– Sim, água.
O jovem reapareceu com um copo d’água, enquanto os outros dois uniam-se a eles perto da lareira. Shevek bebeu toda a água, sedento, e ficou sentado, admirando o copo em sua mão, uma peça frágil, finamente desenhada, refletindo o brilho do fogo em sua borda dourada. Estava atento aos três homens, às suas atitudes, enquanto sentavam ou se punham de pé ao seu lado, protetores, respeitosos, proprietários.
Ergueu os olhos para eles, rosto por rosto. Todos o olharam, em expectativa.
– Bem, aqui estou – ele disse. Sorriu. – Aqui está o seu anarquista. O que farão com ele?
2
°°°°°
Numa janela quadrada numa parede branca está o céu claro, sem nuvens. No centro do céu, o sol.
Há onze bebês na sala, a maioria confinada em berços almofadados, em pares ou trios, preparando-se, com agitação e burburinho, para a soneca.
Os dois mais velhos ainda estão à solta, um deles gorducho e ativo, tirando os pinos de uma placa perfurada, o outro magrinho, sentado no quadrado de luz solar amarela vinda da janela, olhando para os raios solares com uma expressão abobalhada e ingênua.
Na antessala, a supervisora, uma mulher caolha e de cabelo grisalho, conversa com um homem de 30 anos, alto, com ar triste.
– A mãe dele foi transferida para Abbenay – diz o homem. – Ela quer que ele fique aqui.
– Então devemos levá-lo à creche de período integral, Palat?
– Sim, vou voltar para um dormitório.
– Não se preocupe, ele conhece todo mundo aqui! Mas é claro que em breve a Divlab vai mandar você para junto da Rulag, não? Já que vocês dois são parceiros e engenheiros.
– Sim, mas ela... Foi o Instituto Central de Engenharia que a requisitou, entende? Eu não sou tão bom assim. Rulag tem um ótimo trabalho a fazer.
A supervisora assentiu com a cabeça e suspirou. – Mesmo assim...! – Ela disse, com energia, e não falou mais nada.
O olhar do pai dirigia-se ao bebê magrinho, que não notara a sua presença na antessala, por estar ocupado com a luz. O bebê gorducho, naquele instante, dirigia-se rápido para o magrinho, mas com um esquisito movimento de cócoras, devido à fralda molhada e caída. Aproximou-se dele por tédio ou sociabilidade, mas, ao chegar ao quadrado de luz, descobriu que ali estava quente. Sentou-se pesadamente ao lado do magrinho, empurrando-o para a sombra.
O semblante vago e embevecido do magrinho na mesma hora transformou-se em carranca de raiva. Empurrou o gordinho, gritando: – Vai ‘bora!
A supervisora foi até lá na hora. – Shev, não é para empurrar as pessoas.
O bebê magrinho levantou-se. Seu rosto brilhava de luz solar e raiva. Sua fralda estava prestes a cair. – Meu! – ele disse, numa voz alta e retumbante. – Meu sol!
– Não é seu – disse a mulher caolha, com a indulgência da certeza absoluta. – Nada é seu. É para usar. É para compartilhar. Se você não quer compartilhar, não pode usar. – E ela pegou o bebê magrinho com mãos delicadas e inexoráveis e o sentou fora do quadrado de luz solar.
O bebê gorducho continuava sentado, olhando com indiferença. O magrinho sacudiu-se todo, gritando: – Meu sol! – e caiu num choro raivoso.
O pai o pegou no colo e o abraçou. – Ora, Shev – disse. – Que é isso? Você sabe que não pode ter as coisas. Qual o problema? – Sua voz era suave e tremia como se ele também estivesse próximo das lágrimas. A criança magra, comprida e leve em seus braços prosseguia no choro colérico.
– Tem alguns que não conseguem tocar a vida com calma – disse a mulher caolha, em solidariedade.
– Vou levá-lo para uma visita domiciliar agora. A mãe vai partir hoje à noite.
– Tudo bem. Espero que você consiga logo um posto junto com ela – disse a supervisora, içando a criança gorducha ao seu quadril como um saco de cereal, com melancolia no rosto e dando uma piscadela no olho sadio. – Tchau, Shev, querido. Amanhã, escute, amanhã vamos brincar de caminhão e motorista.
O bebê ainda não a perdoara. Ele soluçava, apertando o pescoço do pai, na escuridão do sol perdido.
A orquestra precisava de todos os bancos para o ensaio daquela manhã, e o grupo de dança movimentava-se ruidosamente pelo salão do centro de aprendizagem, então as crianças que estudavam Falar-e-Ouvir sentaram-se em círculo no piso de cimento-espuma da oficina. O primeiro voluntário, um garoto magricela de 8 anos, com mãos e pés compridos, levantou-se. Ficou em pé bem ereto, como fazem as crianças saudáveis; a princípio, seu rosto ligeiramente coberto de penugem estava pálido, mas corou enquanto aguardava o silêncio das outras crianças.
– Pode falar, Shevek – disse o diretor do grupo.
– Bem, eu tive uma ideia.
– Mais alto – disse o diretor, um rapaz corpulento de 20 e poucos anos.
O garoto sorriu, envergonhado. – Bem, sabe, eu estava pensando. Digamos que você jogue uma pedra em alguma coisa. Numa árvore. Você joga, ela voa e bate na árvore. Certo? Mas ela não pode. Porque... Posso usar a lousa? Veja, aqui é você jogando a pedra, e aqui é a árvore – ele rabiscou na lousa –, isso é uma árvore, e aqui está a pedra, veja, no meio do caminho. – As crianças soltaram risadinhas ao verem o desenho de um pé de holum, e ele sorriu. – Para ir de você até a árvore, a pedra precisa estar no meio do caminho entre você e a árvore, não é? E depois ela precisa estar no meio do caminho entre o meio do caminho e a árvore. E depois ela precisa estar no meio do caminho entre esse ponto e a árvore. Por mais longe que ela vá, tem sempre um lugar, só que esse lugar na verdade é um momento, que está a meio caminho entre o último ponto e a árvore...
– Vocês acham isso interessante? – interrompeu o diretor, dirigindo-se às outras crianças.
– Por que a pedra não pode chegar até a árvore? – perguntou uma garota de 10 anos.
– Porque ela sempre tem que chegar até a metade do caminho que falta para onde ela tem que chegar – respondeu Shevek –, e sempre tem a metade do caminho faltando... Entende?
– Podemos dizer apenas que você não mirou bem a árvore? – observou o diretor, com um sorriso tenso.
– Não importa se você mirou bem ou não. A pedra não pode chegar até a árvore.
– De onde você tirou essa ideia?
– De lugar nenhum. Eu entendi isso. Acho que entendi como a pedra faz realmente...
– Chega.
Algumas das outras crianças estavam conversando, mas pararam como se emudecidas de susto. O garotinho com a lousa na mão continuou em pé, em silêncio. Pareceu amedrontado e fez uma carranca.
– Falar é compartilhar... uma arte cooperativa. Você não está compartilhando, está apenas egoizando.
Os acordes agudos e vigorosos da orquestra soaram no corredor.
– Você não entendeu isso sozinho, não foi espontâneo. Eu li algo muito parecido com isso num livro.
Shevek encarou o diretor.
– Que livro? Tem esse livro aqui?
O diretor levantou-se. Tinha cerca do dobro da altura e o triplo do peso de seu oponente, e era evidente em seu rosto que ele detestava aquela criança; mas não havia nenhuma ameaça de violência física em sua postura, apenas uma afirmação de autoridade, um pouco enfraquecida por sua reação irritada à estranha pergunta do garoto.
– Não! E pare de egoizar! – Em seguida, retomou o tom de voz melodioso e pedante: – Esse tipo de coisa é frontalmente contra o que buscamos num grupo Falar-e-Ouvir. A fala é uma função de mão dupla. Shevek não está preparado para entender isso ainda, como a maioria de vocês está, e assim sua presença perturba o grupo. Você próprio sente isso, não é, Shevek? Sugiro que você procure outro grupo que esteja no seu nível.
Ninguém mais disse nada. O silêncio e o volume alto da música aguda prosseguiram, enquanto o garoto devolvia a lousa e saía do círculo. Foi até o corredor e ali ficou parado. O grupo que deixou para trás começou, sob a orientação do diretor, uma narração coletiva, em que se revezavam. Shevek ouviu o som daquelas vozes domesticadas e do seu próprio coração, que ainda batia rápido. Havia um zumbido em seus ouvidos que não vinha da orquestra; era o que se ouve quando se reprime o choro. Já observara aquele zumbido várias vezes. Não gostava de ouvi-lo e não queria pensar na pedra e na árvore, então direcionou a mente para o Quadrado. Era feito de números, e números eram sempre tranquilos e sólidos; quando ele falhava, voltava-se para os números, pois neles não havia falhas. A visão do Quadrado em sua mente era nova, um desenho no espaço como os desenhos que a música faz no tempo: um quadrado dos nove primeiros números inteiros, com o número cinco no centro. Entretanto, quando se somavam as fileiras, o resultado era o mesmo, equilibrando toda a inequação; era agradável de olhar. Se ao menos pudesse formar um grupo que gostasse de falar sobre coisas assim! Mas havia apenas alguns garotos e garotas mais velhos que gostavam, e estavam ocupados. E o livro que o diretor mencionou? Seria um livro de números? Será que ele demonstrava como a pedra chegava até a árvore? Tinha sido burro em contar a brincadeira da pedra e da árvore, ninguém sequer entendeu que era uma brincadeira, o diretor estava certo. Sua cabeça doía. Olhou para dentro de si mesmo, para dentro, para as figuras calmas.
Se um livro fosse escrito só com números, seria verdadeiro. Seria justo. Nada expresso em palavras jamais resultava em algo equilibrado. Coisas em palavras tornavam-se distorcidas e embaralhadas, em vez de diretas e ajustadas. Mas, por baixo das palavras, no centro, como o centro do Quadrado, tudo se equilibrava. Tudo poderia mudar e, no entanto, nada se perderia. Quem compreendesse os números compreenderia isso, a harmonia, o padrão. Compreenderia as fundações do mundo. E elas eram sólidas.
Shevek aprendera a esperar. Era bom nisso, um perito. Começou a desenvolver essa capacidade quando esperou sua mãe Rulag voltar, embora fizesse tanto tempo que nem se lembrava; e ele aperfeiçoara essa habilidade esperando sua vez, esperando para partilhar, esperando uma partilha. Aos 8 anos, ele perguntara como, por que e e se, mas raras vezes perguntava quando.
Esperou seu pai vir buscá-lo para uma visita domiciliar. Foi uma longa espera: seis décades[1]. Palat aceitara um posto temporário na manutenção da Usina de Tratamento de Água do Monte Tambor e, depois disso, passaria uma décade na praia, em Malennin, onde iria nadar, descansar e copular com uma mulher chamada Pipar. Explicara tudo isso ao filho. Shevek confiava no pai, e ele merecia a confiança. Ao final dos sessenta dias, chegou ao dormitório infantil em Campina Vasta, um homem alto e magro, com um olhar mais triste do que nunca. Copular não era bem o que queria. O que ele queria era Rulag. Quando viu o garoto, sorriu e sua testa franziu-se de dor.
Sentiam prazer na companhia um do outro.
– Palat, você já viu algum livro só com números?
– Como assim, de matemática?
– Acho que sim.
– Como este?
Palat tirou um livro do bolso de sua túnica. Era pequeno, para ser levado no bolso e, como a maioria dos livros, encadernado em verde com o Círculo da Vida estampado na capa. A impressão ocupava todos os espaços, com letras pequenas e margens estreitas, pois papel era uma substância que exigia muitas árvores holum e muito trabalho humano para ser fabricada, conforme sempre observava o fornecedor no centro de aprendizagem quando alguém estragava uma folha e pedia uma nova. Palat ofereceu o livro aberto para Shevek. A página dupla era uma série de colunas de números. Lá estavam eles, como ele havia imaginado. Em suas mãos recebeu o pacto da justiça eterna. Tabelas Logarítmicas, Bases 10 e 12, dizia o título da capa, acima do Círculo da Vida.
O garotinho estudou a primeira página por um instante. – Para que servem? – perguntou, pois, evidentemente, aqueles algarismos não estavam ali apenas por sua beleza. O engenheiro, sentado ao lado dele num sofá duro do salão comum frio e mal iluminado do domicílio, incumbiu-se de lhe explicar os logaritmos. Dois velhos no outro lado do salão tagarelavam durante o jogo “Supere Todos”. Um casal adolescente entrou, perguntou se o quarto individual estava livre aquela noite e dirigiu-se para lá. A chuva caiu forte no telhado metálico do domicílio de um andar, e cessou. Nunca chovia por muito tempo. Palat pegou sua régua de cálculo e mostrou a Shevek como funcionava. Em troca, Shevek mostrou-lhe o Quadrado e o princípio de seu esquema. Era bem tarde quando perceberam que era tarde. Correram pela escuridão cheia de lama e do maravilhoso aroma de chuva até o dormitório infantil, onde levaram uma ligeira bronca do vigilante. Trocaram um beijo rápido, ambos tremendo de rir, e Shevek correu até a janela do grande dormitório, da qual pôde ver o pai voltando pela única rua de Campina Vasta, no escuro úmido e elétrico.
O garoto foi para a cama com as pernas enlameadas, e sonhou. Sonhou que estava numa estrada que passava numa região deserta. Lá na frente, viu uma linha cortando a estrada. Ao se aproximar atravessando a planície, viu que era um muro. Ia de um lado a outro do horizonte da terra árida. Era espesso, escuro e muito alto. A estrada subia nele e se interrompia.
Ele tinha de prosseguir, mas não podia. O muro o impedia. Um medo com dor e raiva apoderou-se dele. Tinha de prosseguir, ou jamais conseguiria voltar para casa. Mas o muro estava ali, impassível. Não havia como.
Bateu com as mãos na superfície lisa e gritou com ele. Sua voz saía sem palavras, corvejando. Assustado com o som da própria voz, encolheu-se, e então ouviu uma outra voz, que dizia: – Olhe! – Era a voz de seu pai. Teve a impressão de que sua mãe Rulag estava ali também, embora não a tenha visto (não se lembrava do rosto dela). Pareceu-lhe que ela e Palat estavam de quatro à sombra do muro e que eram mais volumosos que seres humanos, com formato diferente. Estavam apontando, mostrando-lhe algo lá no chão, na poeira estéril onde nada crescia. Era uma pedra. Escura como o muro, mas em cima dela, ou dentro dela, havia um número; era cinco, pensou de início, depois achou que era um, e então compreendeu o que era – o número primitivo, ao mesmo tempo unidade e pluralidade. – Essa é a pedra fundamental – disse uma voz querida e familiar, e Shevek foi trespassado por uma alegria. Não havia mais muro nas sombras, e ele sabia que havia voltado, que estava em casa.
Mais tarde, não conseguiu recordar os detalhes desse sonho, mas o ímpeto de alegria que o trespassou ele não esqueceu. Jamais sentira algo assim; tão firme era a certeza de sua permanência, como o vislumbre de uma luz que brilha constantemente, que ele nunca pensou naquela alegria como algo irreal, embora ele a tenha experimentado em sonho. Só que, por mais que tenha sido real lá, não conseguiu repeti-la, nem por força do desejo, nem por ato de vontade. Apenas se lembrou dela ao acordar. Quando tornou a sonhar com o muro, como às vezes lhe aconteceu, os sonhos eram sombrios e sem solução.
Eles tinham extraído a ideia de “prisões” de episódios de A Vida de Odo, que todos os que tinham optado por estudar história estavam lendo. O livro tinha muitos pontos obscuros, e não havia ninguém em Campina Vasta que soubesse história para elucidá-los; porém, quando chegaram aos anos de Odo no forte de Drio, o conceito de “prisão” tornara-se óbvio. E quando um professor itinerante de história veio à cidade, esclareceu o assunto, com a relutância de um adulto decente obrigado a explicar obscenidades a crianças. Sim, ele disse, prisão era um lugar onde o Estado punha as pessoas que não obedeciam às suas leis. Mas por que elas simplesmente não iam embora do lugar? Não podiam ir embora, as portas eram trancadas. Trancadas? Como as portas de um caminhão em movimento, para você não cair, burro! Mas o que eles faziam dentro de uma única sala o tempo todo? Nada. Não havia nada para fazer. Vocês viram fotos de Odo na cela da prisão em Drio, não viram? A imagem da paciência desafiadora, a cabeça grisalha inclinada, as mãos cerradas, imóvel nas sombras abusivas. Às vezes os prisioneiros eram condenados a trabalhar. Condenados? Bem, isso significa que um juiz, uma pessoa a quem a lei concedia o poder, ordenava que fizessem algum tipo de trabalho braçal. Ordenava? E se eles não quisessem fazer? Bem, eles eram obrigados; se não trabalhassem, apanhavam. Um calafrio de tensão percorreu as crianças que ouviam, todas entre 11 e 12 anos de idade, que nunca tinham apanhado, nem visto alguém apanhar, exceto num acesso de raiva imediato e pessoal.
Tirin fez a pergunta que estava em todas as mentes:
– Quer dizer que um monte de gente batia numa única pessoa?
– Sim.
– Por que as outras não impediam?
– Os guardas tinham armas. Os prisioneiros, não – respondeu o professor. Falava com a contrariedade de alguém forçado a dizer coisas detestáveis, e constrangido por isso.
A simples atração pela perversidade reuniu Tirin, Shevek e três outros garotos. Garotas foram excluídas do grupo, e eles não saberiam dizer por quê. Tirin encontrara a prisão ideal, sob a ala oeste do centro de aprendizagem. Era um lugar onde cabia apenas uma pessoa sentada ou deitada, formado por três paredes das fundações e o teto, que era a parte de baixo do andar acima; como as fundações faziam parte de um contorno de concreto, o piso era uma continuidade das paredes, e uma placa pesada de cimento-espuma na lateral isolaria o lugar por completo. Mas tinham de trancar a porta. Experimentando, descobriram que duas estacas presas entre uma das paredes e a placa lateral fechava o local de modo espantosamente definitivo. Ninguém lá dentro conseguiria abrir a porta.
– E a luz?
– Sem luz – disse Tirin. Falava com autoridade sobre essas coisas, pois sua imaginação o levava direto a elas. Usava todos os fatos que conhecia, mas não foi um fato que lhe concedeu essa certeza. – Eles deixavam os prisioneiros sentados no escuro, no forte de Drio. Durante anos.
– Ar, pelo menos – disse Shevek. – Essa porta se encaixa como uma tampa a vácuo. Temos que fazer um furo nela.
– Vai levar horas para a gente perfurar o cimento-espuma. De todo jeito, quem é que vai ficar tanto tempo nessa caixa a ponto de ficar sem ar?
Coro de voluntários e pretendentes.
Tirin olhou para eles, sarcástico. – Vocês são todos loucos. Quem vai mesmo querer ser trancado num lugar desses? Pra quê? – Fazer a prisão tinha sido ideia dele, e isso a ele bastava; não se deu conta de que, para algumas pessoas, só imaginação não basta: elas precisam entrar na cela, precisam tentar abrir a porta impossível de abrir.
– Quero ver como é – disse Kadagv, um garoto de 12 anos com peito largo, sério, insolente.
– Use a cabeça! – zombou Tirin, mas os outros apoiaram Kadagv. Shevek pegou uma broca na oficina, e eles fizeram um buraco de dois centímetros na “porta”, na altura do nariz. Levou quase uma hora, como Tirin previra.
– Quanto tempo quer ficar lá dentro, Kad? Uma hora?
– Veja – respondeu Kadagv –, se eu sou o prisioneiro, não posso decidir. Não sou livre. Vocês é que têm que decidir quando vão me deixar sair.
– Isso mesmo – disse Shevek, desanimado com essa lógica.
– Você não pode ficar muito tempo, Kad. Também quero a minha vez! – disse o mais jovem do grupo, Gibesh. O prisioneiro não se dignou a responder. Entrou na cela. Ergueram a porta e a colocaram no lugar com um estrondo, e prenderam as estacas, todos os quatro carcereiros martelando com entusiasmo. Amontoaram-se no buraco respiradouro para ver o prisioneiro, mas, como não havia luz dentro da prisão, exceto a que vinha do buraco, não viram nada.
– Não suguem todo o ar desse pobre idiota!
– Sopra um pouco de ar lá dentro pra ele.
– Solta um peido lá dentro pra ele!
– Quanto tempo ele vai ficar?
– Uma hora.
– Três minutos.
– Cinco anos!
– Faltam quatro horas para apagarem a luz. Acho que está bom.
– Mas eu quero a minha vez!
– Tudo bem, a gente deixa você aí dentro a noite inteira.
– Bem, eu quis dizer amanhã.
Quatro horas depois, arrancaram as estacas e soltaram Kadagv. Ele saiu tão dono da situação como quando entrara, disse que estava com fome e que aquilo não era nada; tinha apenas dormido a maior parte do tempo.
– Você faria de novo? – desafiou Tirin.
– Claro.
– Não, o segundo sou eu...
– Cale a boca, Gib. Então, Kad? Você entraria aí de novo, sem saber quando vamos deixá-lo sair?
– Claro.
– Sem comida?
– Eles alimentavam os prisioneiros – disse Shevek. – Isso é o mais esquisito de tudo.
Kadagv deu de ombros. Sua atitude de resistência superior era intolerável.
– Olhem aqui – Shevek disse aos dois garotos mais jovens –, peçam sobras de comida na cozinha. E tragam uma garrafa ou um pote cheio de água também. – Virou-se para Kadagv. – Vamos lhe dar um monte de coisas. Pode ficar o tempo que você quiser.
– O tempo que vocês quiserem – Kadagv corrigiu.
– Certo. Entre aí! – A autoconfiança de Kadagv despertou a veia satírica e teatral de Tirin. – Você é um prisioneiro. Não responde. Entendeu? Vire-se. Ponha as mãos na cabeça.
– Pra quê?
– Quer desistir?
Kadagv olhou-o com ar emburrado.
– Você não pode perguntar pra quê. Porque, se perguntar, podemos bater em você, e você vai ter que aceitar, ninguém vai te ajudar. Porque podemos chutar o seu saco e você não pode revidar. Porque você não é livre. E então, vai querer continuar até o fim?
– Claro. Podem me bater.
Tirin, Shevek e o prisioneiro ficaram se encarando, um grupo estranho e tenso em volta da lanterna, no escuro, em meio às paredes maciças da fundação do prédio.
Tirin sorriu com arrogância e cinismo. – Não me diga o que fazer, seu explorador. Cale a boca e entre na cela! – E, quando Kadagv virou-se para obedecer, Tirin o empurrou pelas costas com o braço estendido, fazendo-o cair desajeitado. Ele soltou um grunhido agudo de surpresa ou dor e sentou-se, protegendo um dedo que arranhara ou torcera na parede do fundo da cela. Shevek e Tirin não falaram nada. Ficaram imóveis, sem expressão no rosto, em seus papéis de guardas. Agora não representavam um papel, o papel é que os representava. Os garotos mais jovens voltaram com pão de holum, um melão e uma garrafa de água. Chegaram conversando, mas o estranho silêncio na cela os emudeceu na hora. A comida e a água foram empurradas para dentro, a porta foi erguida e escorada. Kadagv ficou sozinho no escuro. Os outros se reuniram em volta da lanterna. Gibesh sussurrou:
– Onde ele vai mijar?
– Na cama dele – Tirin respondeu, com objetividade sardônica.
– E se ele tiver que cagar? – Gibesh perguntou, e subitamente caiu numa estrepitosa gargalhada.
– Que tanta graça você vê em cagar?
– Eu imaginei... e se ele não conseguir enxergar... no escuro... – Gibesh não conseguiu explicar totalmente sua fantasia cômica. Todos começaram a rir sem explicação, divertindo-se até perder o fôlego. Sabiam que o garoto trancado na cela estava ouvindo as risadas.
Já tinham apagado a luz do dormitório infantil, e muitos adultos já dormiam, embora aqui e ali houvesse luzes acesas nos domicílios. A rua estava deserta. Os garotos a percorriam dobrando-se de rir, berrando entre si, enlouquecidos com o prazer de compartilhar um segredo, de incomodar os outros, de estarem unidos nas maldades. Acordaram a metade das crianças do dormitório com brincadeiras de pega-pega nos corredores e por entre as camas. Nenhum adulto interferiu; o tumulto logo cessou.
Tirin e Shevek ficaram cochichando por um bom tempo, sentados na cama de Tirin. Concluíram que Kadagv tinha pedido aquilo e ficaria preso duas noites inteiras.
O grupo deles se reuniu à tarde na oficina de reciclagem de madeira, e o chefe perguntou por Kadagv. Shevek trocou um olhar de relance com Tirin. Sentiu-se esperto, teve uma sensação de poder em não responder. Porém, quando Tirin respondeu calmamente que Kadagv devia estar em outro grupo naquele dia, Shevek ficou chocado com a mentira. A sensação secreta de poder de repente o deixou desconfortável: suas pernas coçaram, suas orelhas arderam. Quando o chefe lhe dirigiu a palavra, ele pulou de susto, de medo ou algum sentimento parecido, um sentimento que nunca experimentara, algo como vergonha, mas pior: íntimo e vil. Não parava de pensar em Kadagv, enquanto tapava e lixava os buracos das tábuas de três camadas de holum e lixava as tábuas até voltarem a ficar lisas como a seda. Toda vez que inspecionava sua mente, lá estava Kadagv. Era repulsivo.
Gibesh, que estivera de guarda, foi até Tirin e Shevek após o jantar, inquieto. – Acho que ouvi Kad falando alguma coisa lá dentro. Com a voz meio esquisita.
Houve uma pausa. – Vamos soltá-lo – disse Shevek.
Tirin virou-se para ele. – Ora, Shev, não me venha com pieguice. Não seja altruísta! Deixe-o terminar e se respeitar até o fim.
– Que altruísmo, que nada! Quero respeito a mim mesmo – retrucou Shevek, e partiu para o centro de aprendizagem. Tirin o conhecia; não perdeu mais nenhum minuto discutindo com ele e o acompanhou. Os outros dois, de 11 anos, seguiram atrás deles. Engatinharam debaixo do prédio até a cela. Shevek arrancou uma estaca, Tirin, a outra. A porta da prisão caiu para fora com um baque.
Kadagv estava deitado de lado no chão, todo encolhido. Sentou-se, depois levantou-se bem devagar e saiu. Curvou-se mais do que o necessário sob o teto baixo e piscou bastante à luz da lanterna, mas parecia o mesmo de sempre. O fedor que saiu com ele era inacreditável. Por algum motivo, tivera diarreia. A cela estava uma bagunça, e havia manchas de matéria fecal amarela em sua camisa. Quando as viu à luz da lanterna, tentou escondê-las com a mão. Ninguém falou muito.
Quando já tinham engatinhado para fora das fundações do prédio e se dirigiam ao dormitório, Kadagv perguntou:
– Quanto tempo fiquei lá?
– Umas trinta horas, contando as quatro primeiras.
– Bastante tempo – disse Kadagv, sem convicção.
Depois de levá-lo para tomar banho, Shevek correu para o banheiro. Ali, inclinou-se sobre a privada e vomitou. Os espasmos só o deixaram após quinze minutos. Estava trêmulo e exausto quando cessaram. Foi até o salão comum do dormitório, leu um pouco sobre física e foi para a cama cedo. Nenhum dos cinco garotos jamais voltou à prisão debaixo do centro de aprendizagem. Nenhum deles jamais mencionou o episódio, exceto Gibesh, que se gabou para alguns dos garotos e garotas mais velhos; mas eles não entenderam, e ele mudou de assunto.
A lua pairava alta acima do Instituto Regional de Ciências Nobres e Materiais do Poente Norte. Quatro garotos de 15 ou 16 anos estavam sentados no topo de um morro, por entre tufos rústicos de holum rasteira, olhando abaixo para o Instituto Regional e acima para lua.
– Estranho – disse Tirin –, eu nunca tinha pensado antes...
Comentários dos outros três sobre a obviedade dessa observação.
– Nunca tinha pensado – prosseguiu Tirin, inabalado – que existem pessoas sentadas num morro, lá em cima, em Urras, olhando para Anarres, para nós, e dizendo: “Olhe, lá está a lua”. Nosso planeta é a lua deles; nossa lua é o planeta deles.
– Onde, então, está a Verdade? – declamou Bedap, e bocejou.
– No topo do morro onde se estiver sentado – respondeu Tirin.
Todos continuaram fitando aquela pedra turquesa brilhante e vaga lá em cima, que não estava totalmente redonda, um dia após ter estado cheia. A calota polar norte faiscava.
– O norte está claro – disse Shevek. – Ensolarado. Aquilo é A-Io, aquela saliência marrom ali.
– Estão todas nuas, deitadas ao sol – disse Kvetur –, com joias no umbigo e sem cabelo.
Houve um silêncio.
Tinham ido ao topo do morro para companhia masculina. A presença de fêmeas lhes era opressiva. A impressão deles era que, ultimamente, o mundo estava cheio de garotas. Para todo lugar que olhavam, dormindo ou acordados, viam garotas. Todos tinham tentado copular com garotas; alguns deles, em desespero, também tinham tentado não copular com garotas. Não fazia diferença. As garotas estavam lá.
Três dias antes, durante uma aula de História do Movimento Odoniano, todos eles haviam assistido à mesma apresentação visual e, desde então, a imagem de joias iridescentes no orifício liso das barrigas bronzeadas e lambuzadas de óleo das mulheres tornara-se recorrente a cada um deles, em privado.
Tinham visto também cadáveres de crianças, cabeludas como eles, empilhados numa praia, como ferro-velho compactado e enferrujado, e um velho derramando gasolina sobre as crianças e ateando fogo. “Uma grande fome na província de Bachfoil, da Nação de Thu” – disse o comentarista. “Os corpos das crianças mortas de fome e doença são queimados nas praias. Nas praias de Tuis, a setecentos quilômetros de distância, na Nação de A-Io (e aí apareceram os umbigos enfeitados de joias), mulheres mantidas para uso sexual dos membros machos da classe de proprietários (usaram as palavras ióticas, pois não havia equivalente para nenhuma das duas em právico) ficam deitadas na areia o dia todo, até que o jantar lhes seja servido pela classe dos não proprietários”. Um close-up da hora do jantar: bocas macias mastigando e sorrindo, mãos macias pegando iguarias em calda de vasilhas de prata. Então, um corte rápido de volta ao rosto opaco e embotado de uma criança morta, boca aberta, vazia, preta, seca. “Lado a lado”, dissera a voz calma.
No entanto, a imagem que aumentara como uma bolha oleosa e iridescente nas mentes dos garotos era a mesma.
– De quando são aqueles filmes? – perguntou Tirin. – São de antes da Colonização ou são recentes? Eles nunca dizem.
– Que importância tem isso? – respondeu Kvetur. – Eles viviam assim em Urras antes da Revolução Odoniana. Todos os odonianos partiram e vieram para cá, para Anarres. Então, é provável que nada tenha mudado... Eles ainda fazem essas coisas lá – apontou para a grande lua azul-esverdeada.
– E como vamos saber?
– O que você quer dizer com isso, Tir? – perguntou Shevek.
– Se aquelas imagens tiverem 150 anos, as coisas podem estar totalmente diferentes agora em Urras. Não estou dizendo que estejam, mas, se estiverem, como vamos saber? Nós não vamos para lá, não falamos com eles, não há comunicação. Na verdade, não fazemos nenhuma ideia de como é a vida em Urras agora.
– O pessoal do CPD sabe. Eles falam com os tripulantes urrastis dos cargueiros que chegam ao Porto de Anarres. Eles se mantêm informados. E têm que se manter, para que possamos continuar o comércio com Urras, e para saber se eles são uma ameaça para nós. – Bedap falou com ponderação, mas a resposta de Tirin foi perspicaz:
– Então talvez o CPD esteja informado, mas nós não.
– Informados! – exclamou Kvetur. – Ouço falar em Urras desde a creche! Não aguento mais ver imagens de cidades imundas urrastis ou de corpos urrastis lambuzados de óleo!
– É isso mesmo! – disse Tirin, com o deleite de quem acompanha um raciocínio. – Todo o material disponível sobre Urras é a mesma coisa. Repugnante, imoral, excrementício. Mas veja: se tudo era tão ruim quando os Colonos partiram, como os urrastis sobreviveram 150 anos? Se eram tão doentes, por que não morreram? Por que a sociedade proprietária deles não entrou em colapso? Do que temos tanto medo?
– Contágio – disse Bedap.
– Somos tão fracos assim que não podemos nos expor um pouco? De qualquer forma, não é possível que todos sejam doentes. Não importa como seja a sociedade deles, alguns devem ser decentes. As pessoas variam aqui, não é? Somos todos odonianos perfeitos? Vejam aquele Pesus metido a besta!
– Mas, num organismo doente, mesmo uma célula sadia está condenada – disse Bedap.
– Ah, você consegue provar qualquer coisa usando analogia, e você sabe disso. De qualquer maneira, como sabemos de verdade que a sociedade deles é doente?
Bedap roeu a unha do polegar. – Está dizendo que o CPD e o sindicato do material escolar estão mentindo para nós?
– Não. Eu disse que só sabemos o que nos dizem. E sabem o que nos dizem? – O rosto moreno com nariz arrebitado de Tirin, iluminado pelo luar azulado, virou-se para os outros garotos. – Kvet já disse, um minuto atrás. Ele entendeu a mensagem. Vocês ouviram: detestem Urras, odeiem Urras, tenham medo de Urras.
– Por que não? – Kvetur inquiriu. – Vejam como eles nos trataram, a nós odonianos!
– Mas eles nos deram a lua deles, não deram?
– Sim, para nos impedir de destroçar seus estados exploradores e de estabelecer uma sociedade justa por lá. E, assim que se livraram de nós, aposto que começaram a construir governos e exércitos mais rápido do que nunca, pois não sobrou ninguém para detê-los. Se abríssemos nossos portos para eles, acham que eles viriam como amigos e irmãos? Um bilhão deles contra 20 milhões de nós? Eles iriam nos liquidar, ou nos fazer de... como é que chamam, como é mesmo a palavra? Escravos, para trabalharmos nas minas por eles!
– Tudo bem. Concordo que talvez seja sensato temer Urras. Mas por que odiar? O ódio não é funcional; por que nos ensinam a odiar? Será que é porque se soubéssemos como Urras é de verdade, nós iríamos gostar de lá? De algumas coisas de lá, alguns de nós? Será que o CPD não quer apenas evitar que eles venham para cá, mas também que alguns de nós queiram ir para lá?
– Ir para Urras? – disse Shevek, surpreso.
Discutiam porque gostavam de discussões, gostavam do movimento rápido da mente livre pelos caminhos das possibilidades, gostavam de questionar o que não se questionava. Eram inteligentes, suas mentes já estavam disciplinadas para a objetividade da ciência, e tinham 16 anos de idade. Porém, naquele ponto o prazer da discussão cessou para Shevek, assim como cessara antes para Kvetur. Ele ficou perturbado.
– Quem jamais iria querer ir para Urras? – interpelou. – Para quê?
– Para descobrir como é outro mundo. Para ver o que é um “cavalo”!
– Isso é infantilidade – disse Kvetur. – Existe vida em outros sistemas estelares – e fez um gesto com a mão, percorrendo o céu banhado pelo luar –, segundo dizem. E daí? Tivemos a sorte de nascer aqui!
– Se somos melhores do que qualquer outra sociedade humana – disse Tirin –, então deveríamos ajudá-las. Mas somos proibidos.
– Proibidos? Palavra não orgânica. Quem proíbe? Você está exteriorizando a própria função integrativa – disse Shevek, inclinando-se para a frente e falando com veemência. – Ordem não são “ordens”. Não saímos de Anarres porque somos Anarres. Sendo Tirin, você não pode sair da pele de Tirin. Talvez você queira tentar ser outra pessoa, para ver como é, mas não pode. Mas alguém impede você à força? Somos mantidos aqui à força? Que força? Que leis? As do governo, da polícia? Nada disso. Simplesmente a lei do nosso próprio ser, nossa natureza como odonianos. Está em sua natureza ser Tirin, e em minha natureza ser Shevek, e em nossa natureza comum sermos odonianos, responsáveis uns pelos outros. E essa responsabilidade é a nossa liberdade. Evitá-la seria perder nossa liberdade. Você gostaria mesmo de viver numa sociedade onde não se tem nenhuma responsabilidade, nenhuma liberdade, nenhuma escolha, apenas a falsa opção de obediência à lei, ou desobediência seguida de punição? Gostaria mesmo de ir viver numa prisão?
– Ora, claro que não! Não posso falar? O problema com você, Shev, é que você não fala nada até acumular um caminhão de argumentos pesados como tijolos, que então você descarrega de uma vez, sem nunca olhar o corpo ensanguentado e mutilado debaixo do monte...
Shevek reclinou-se, com ar satisfeito.
Mas Bedap, um rapaz corpulento, de rosto quadrado, continuou a mastigar a unha do polegar e disse:
– Mesmo assim, a ideia de Tir procede. Seria bom saber que sabemos toda a verdade sobre Urras.
– Quem você acha que está mentindo para nós? – Shevek interpelou.
Calmo, Bedap o encarou. – Quem, irmão? Quem, senão nós mesmos?
O planeta irmão brilhava sobre eles, sereno e luminoso, um belo exemplo da improbabilidade do real.
O reflorestamento do Litoral Tameniano Norte foi uma das grandes realizações da décima quinta décade da Colonização de Anarres, empregando quase 18 mil pessoas por um período de mais de dois anos.
Embora as extensas praias do Sudeste fossem férteis, sustentando muitas comunidades pesqueiras e agrícolas, a área cultivável era uma pequena faixa ao longo do mar. Do interior a oeste até as vastas planícies do Sudoeste, a terra era inabitada, exceto por algumas cidades mineradoras remotas. Era a região chamada Poeira.
Na era geológica anterior, a Poeira tinha sido uma imensa floresta de holuns, gênero de planta ubíquo e dominante de Anarres. O clima atual era mais quente e mais seco. Milênios de seca mataram as árvores e secaram o solo até torná-lo uma poeira fina e cinza que agora levantava ao menor vento, formando morros de linhas tão puras e estéreis quanto as de qualquer duna de areia. Os anarrestis tinham a esperança de restaurar a fertilidade daquela terra inquieta com o replantio da floresta. Isso estava de acordo, pensou Shevek, com o princípio da Reversibilidade Causal, ignorado pela Sequência, escola de física atualmente em voga em Anarres, mas ainda elemento íntimo e tácito do pensamento odoniano. Ele gostaria de escrever um artigo mostrando a relação entre as ideias de Odo e as ideias da Física Temporal e, particularmente, a influência da Reversibilidade Causal no modo como ela lidou com o problema dos meios e dos fins. Mas aos 18 anos Shevek não tinha conhecimento suficiente para escrever esse artigo, e jamais teria, se não voltasse a estudar física logo, longe daquela maldita poeira.
À noite, nos acampamentos do Projeto, todo mundo tossia. Durante o dia, tossiam menos; estavam ocupados demais para tossir. A poeira era a inimiga deles, a coisa fina e seca que obstruía a garganta e os pulmões; era sua inimiga e seu ofício, sua esperança. Outrora aquela poeira jazia rica e escura à sombra das árvores. Após o longo trabalho deles, talvez voltasse a ser assim.
Ela faz brotar a folha verde na pedra,
E a água limpa e corrente do coração da rocha...
Gimar estava sempre murmurando essa canção, mas agora, na noite quente, ao atravessarem a planície de volta ao acampamento, ela cantava a letra em voz alta.
– Quem faz essas coisas? Quem é “ela”? – perguntou Shevek.
Gimar sorriu. Seu rosto largo e sedoso estava manchado e endurecido de poeira, seu cabelo estava cheio de poeira, ela exalava um cheiro forte e agradável de suor.
– Eu cresci no Nascente Sul – ela disse. – Onde estão os mineiros. É uma canção de mineiros.
– Que mineiros?
– Você não sabe? As pessoas que já estavam aqui quando os Colonos chegaram. Alguns ficaram e se uniram à solidariedade. Mineiros de ouro, mineiros de estanho. Eles ainda têm dias de festa e suas próprias canções. O babai[2] era mineiro, ele cantava para mim quando eu era criança.
– Tudo bem, mas quem é “ela”?
– Não sei, é apenas a letra da canção. Não é o que estamos fazendo aqui? Fazendo brotar folhas verdes nas pedras?
– Parece religioso.
– Você e suas palavras livrescas e infundadas. É só uma canção. Ah, como eu queria estar no outro acampamento para poder nadar. Estou fedendo!
– Eu estou fedendo.
– Estamos todos fedendo.
– Em solidariedade...
Mas aquele acampamento ficava a quinze quilômetros das praias do Mar Tameniano, por ali só havia um mar imenso de poeira.
Havia um homem no acampamento cujo nome, quando pronunciado, parecia com o de Shevek: Shevet. Quando chamavam um, o outro respondia. Shevek sentia certa afinidade com o homem, uma relação mais especial do que a fraternidade, por causa dessa semelhança casual. Algumas vezes, viu Shevet olhando para ele. Ainda não tinham se falado.
As primeiras décades de Shevek no projeto de reflorestamento foram passadas com ressentimento silencioso e exaustão. Pessoas que haviam optado por trabalhar em campos essencialmente funcionais como a física não deveriam ser designadas para esses projetos e recrutamentos especiais. Não era imoral realizar um trabalho sem prazer? O trabalho precisava ser feito, mas muitas pessoas não ligavam para que posto seriam enviadas e mudavam de emprego o tempo todo; essas pessoas deviam ter se apresentado como voluntários. Qualquer idiota podia fazer aquele trabalho. Na verdade, muitos o fariam melhor do que ele. Ele se orgulhava de sua força física e sempre se voluntariava para os “trabalhos pesados”, em rodízios de dez dias; mas ali era dia após dia, oito horas por dia, na poeira e no calor. O dia inteiro ansiava pela noite, quando poderia ficar sozinho e pensar, mas, no instante em que entrava na barraca depois do jantar, sua cabeça caía pesada e ele dormia feito uma pedra até o amanhecer, e nenhum pensamento jamais atravessava a sua mente.
Considerava os colegas de trabalho maçantes e grosseiros, e até mesmo os mais jovens do que ele tratavam-no como uma criança. Ressentido e zombador, seu único prazer era escrever aos amigos Tirin e Rovab num código que tinham elaborado no Instituto, um conjunto de equivalentes verbais dos símbolos da Física Temporal. Escritas, as palavras pareciam fazer sentido como mensagem, mas, na verdade, não queriam dizer nada, a não ser pela equação ou fórmula filosófica que dissimulavam. As fórmulas de Shevek e Rovab eram genuínas. As cartas de Tirin eram muito engraçadas e convenceriam a qualquer um de que se referiam a acontecimentos e emoções reais, mas a física que continham era questionável. Shevek passou a enviar-lhes esses enigmas com frequência, desde que descobriu que podia criá-los em sua mente enquanto cavava buracos na rocha com uma pá cega na tempestade de poeira. Tirin respondeu várias vezes, Rovab apenas uma. Era uma garota fria, ele sabia que ela era fria. Mas ninguém no Instituto sabia de sua desgraça, pois eles estavam desenvolvendo pesquisas independentes e não foram designados a um posto num maldito projeto de plantio de árvores. Estavam trabalhando, fazendo o que queriam fazer. Ele não estava trabalhando. Estava sendo trabalhado, usado.
No entanto, era estranho como dava orgulho trabalhar assim – todos juntos –, que satisfação isso trazia! E alguns dos colegas de trabalho eram pessoas realmente extraordinárias. Gimar, por exemplo. A princípio sua beleza muscular o intimidara, mas agora estava forte o suficiente para desejá-la.
– Venha comigo esta noite, Gimar.
– Ah, não – ela respondeu, e olhou-o com tanta surpresa que ele disse, com dignidade em sua dor:
– Pensei que fôssemos amigos.
– E somos.
– Então...
– Eu tenho um parceiro. Lá onde eu moro.
– Você poderia ter me contado – disse Shevek, corando.
– Bem, não me ocorreu que eu devia ter contado. Desculpe, Shev.
Ela o olhou de modo tão pesaroso que ele teve esperança. – Será que...
– Não. Não se pode ter uma parceria assim, um pouco para ele e um pouco para outros.
– Na verdade, acho que parceria por toda a vida vai contra a ética odoniana – disse Shevek, num tom rude e pedante.
– Merda – disse Gimar, em sua voz suave. – Ter é errado, compartilhar é certo. O que mais se pode compartilhar do que o seu ser inteiro, sua vida inteira, todas as noites e todos os dias?
Ele estava sentado com as mãos entre os joelhos, a cabeça baixa, um rapaz comprido, magro, abatido, inacabado. – Não estou preparado para isso – ele disse após alguns momentos.
– Você?
– Nunca conheci alguém de verdade. Veja como eu não consegui entender você. Estou excluído. Não consigo entrar. Nunca vou conseguir. Seria tolo da minha parte pensar em parceria. Esse tipo de coisa é para... seres humanos...
Com timidez, não um acanhamento sexual, mas a reserva do respeito, Gimar pôs a mão no ombro de Shevek. Ela não o consolou. Não disse que ele era como todo mundo. Disse:
– Nunca vou conhecer outra pessoa como você, Shev. Nunca vou esquecê-lo.
De qualquer maneira, uma rejeição é uma rejeição. Apesar de toda a delicadeza de Gimar, ele se afastou dela com a alma derrotada, contrariado.
Fazia muito calor. Só refrescava uma hora antes do amanhecer.
O homem chamado Shevet aproximou-se de Shevek uma noite após o jantar. Era um rapaz forte e bonito, de 30 anos.
– Estou cansado de ser confundido com você. Arranje um nome diferente.
A agressividade ameaçadora teria espantado Shevek algum tempo antes. Agora ele simplesmente respondeu na mesma moeda:
– Mude seu próprio nome, se não gosta dele – disse.
– Você é um desses exploradores que vão estudar para não sujar as mãos – disse o homem. – Sempre quis bater num de vocês.
– Não me chame de explorador! – disse Shevek, mas aquela batalha não era verbal. Shevet golpeou-lhe duas vezes. Recebeu vários socos de volta, pois Shevek tinha braços mais longos e muito mais vigor do que seu oponente esperava: contudo foi derrotado. Várias pessoas paravam para assistir, viam que era uma luta equilibrada, porém nada interessante, e iam embora. Nem se ofendiam nem se atraíam pela simples violência. Shevek não pediu ajuda, por isso aquilo não era da conta de ninguém, apenas dele. Quando voltou a si, estava deitado de costas no chão escuro entre duas barracas.
Ficou com um zumbido no ouvido direito por uns dois dias e um lábio fendido que demorou a sarar por causa da poeira, que irritava todos os ferimentos. Ele e Shevet nunca mais se falaram. Via o homem a distância, em outras refeições em volta de fogueiras, sem animosidade. Shevet lhe dera o que tinha de dar, e ele aceitara o presente, embora, por um longo tempo, jamais tenha ponderado ou refletido sobre a natureza da oferta. Quando finalmente o fez, não havia diferença entre aquele e outro presente, uma outra etapa de seu amadurecimento. Uma garota que acabara de se unir a seu grupo de trabalho aproximara-se dele do mesmo modo que Shevet, na escuridão, quando ele se afastava da fogueira, e seu lábio não estava curado ainda... Nunca conseguiu lembrar o que ela disse; ela o provocara; de novo, ele simplesmente reagira. Foram para a planície no meio da noite, e lá ela lhe deu a liberdade da carne. Foi este o presente dela, e ele aceitou. Como todas as crianças de Anarres, ele tivera experiências sexuais voluntárias tanto com garotas quanto com garotos, mas tanto ele quanto os outros eram crianças; jamais tinha ido além do que presumia ser todo o prazer do sexo. Beshun, perita em deleite, levou-o ao âmago da sexualidade, um lugar onde não há rancor nem inépcia, onde dois corpos esforçando-se para se unirem aniquilam o momento em seu esforço e transcendem a si mesmos, transcendem o tempo.
Foi tudo mais fácil ali, tão fácil e agradável, naquela poeira quente, à luz das estrelas. E os dias eram longos, quentes e luminosos, e a poeira tinha o cheiro do corpo de Beshun. Ele trabalhava agora numa equipe de plantio. Os caminhões tinham vindo do Nordeste cheios de pequenas árvores, milhares de mudas cultivadas nas Montanhas Verdes, onde chovia até 100 mm por ano, o cinturão pluvial. Plantaram as pequenas árvores na poeira.
Quando terminaram, as cinquenta equipes que tinham trabalhado durante o segundo ano do projeto partiram nos caminhões-plataforma, e olharam para trás enquanto partiam. Viram o que tinham feito. Havia uma névoa verde, muito tênue, nas curvas e nos terraços pálidos do deserto. Sobre a terra morta jazia, muito leve, um véu de vida. Eles comemoraram, cantaram e gritaram de um caminhão a outro. Os olhos de Shevek se encheram de lágrimas. Pensou: “Ela faz brotar a folha verde na pedra...”. Gimar tinha sido designada de volta ao Poente Sul há muito tempo.
– Por que está fazendo caretas? – Beshun lhe perguntou, espremida ao seu lado enquanto o caminhão sacolejava, e passando a mão de cima a baixo no braço dele, firme e branco de poeira.
– Mulheres – disse Vokep, na garagem de caminhões em Tin Ore, no Sudoeste. – As mulheres pensam que nos possuem. Nenhuma mulher pode ser odoniana de verdade.
– E a própria Odo...?
– Teoria. E ela não teve mais vida sexual após Asieo ser morto, certo? De qualquer modo, sempre há exceções. Mas, para a maioria das mulheres, a única relação que elas têm com o homem é de posse. Ou possuindo ou sendo possuída.
– Você acha então que elas são diferentes dos homens nesse ponto?
– Tenho certeza. O que os homens querem é liberdade. O que as mulheres querem é propriedade. Elas só o libertam se conseguirem trocá-lo por outra coisa. Todas as mulheres são proprietárias.
– Essa é uma afirmação e tanto a respeito de metade da raça humana – disse Shevek, perguntando-se se o homem tinha razão. Beshun tinha chorado até ficar doente quando ele foi designado de volta ao Noroeste. Ficou furiosa, chorosa e tentou fazê-lo dizer que não poderia viver sem ela, insistiu que não poderia viver sem ele e que eles deveriam ser parceiros. Parceiros, como se ela conseguisse ficar com qualquer homem por mais de meio ano!
A língua que Shevek falava, a única que conhecia, não possuía termos que expressassem a propriedade para o ato sexual. Em právico, não fazia sentido algum um homem dizer que “possuía” uma mulher. A palavra que mais se aproximava de “transar” – e tinha um uso secundário como insulto – era específica: significava estuprar. O verbo usual, utilizado apenas com o sujeito no plural, só pode ser traduzido por uma palavra neutra como copular. Significava algo que duas pessoas faziam, não algo feito ou possuído por uma pessoa só. Essa estrutura vocabular, como qualquer outra, não podia conter a totalidade das experiências, e Shevek estava ciente da área excluída, embora não tivesse certeza absoluta do que se tratava. Certamente sentira que possuía Beshun, em algumas daquelas noites estreladas na Poeira. E ela pensara que o possuía. Mas ambos estavam enganados; e Beshun, apesar de todo o sentimentalismo, sabia disso; despedira-se dele com um beijo, finalmente sorrindo, e o deixara partir. Ela não o possuíra. Seu próprio corpo, na primeira explosão de paixão sexual adulta, é que o possuíra de fato – e a ela. Mas tudo isso tinha terminado. Tinha acontecido. Não aconteceria de novo (pensou ele aos 18 anos de idade, sentado com um conhecido de viagem na garagem de caminhões de Tin Ore, à meia-noite, bebendo um copo de suco de fruta doce e viscoso, esperando para pegar uma carona num comboio que ia para o norte), não poderia acontecer nunca mais. Ele passaria por muita coisa ainda, mas não seria pego desprevenido uma segunda vez, derrubado, derrotado. Ser derrotado e rendido teve seus encantos. Mas a própria Beshun talvez nunca quisesse nenhuma alegria além disso. E por que deveria? Foi ela, em sua liberdade, que o libertara.
– Sabe, não concordo – disse a Vokep, um químico agrícola de rosto comprido que viajava para Abbenay. – Acho que a maioria dos homens precisa aprender a ser anarquista. As mulheres não precisam aprender.
Vokep balançou a cabeça severamente. – São as crianças – disse. – Ter bebês. Isso as torna proprietárias. Não largam os homens. – Suspirou. – Toque e vá embora, irmão. Essa é a regra. Nunca se deixe possuir.
Shevek sorriu e bebeu o suco de fruta.
– Não deixarei – ele disse.
Foi uma alegria para ele retornar ao Instituto Regional, ver os morros baixos salpicados de holum rasteira com folhas cor de bronze, os jardins da cozinha, domicílios, dormitórios, oficinas, salas de aula, laboratórios, lugares onde vivia desde os 13 anos de idade. Sempre seria alguém para quem o retorno era tão importante quanto a viagem. Ir não era suficiente para ele, apenas metade suficiente; tinha de retornar. Talvez essa tendência já prenunciasse a natureza da imensa exploração que iria empreender aos extremos do compreensível. Provavelmente não teria embarcado naquela empreitada de anos de duração se não tivesse a profunda segurança de que o retorno era possível, mesmo que ele próprio talvez não retornasse; de que, de fato, a verdadeira natureza da viagem, como a circunavegação do globo, implicava retorno. Não se pode descer o mesmo rio duas vezes, nem voltar para casa. Isso ele sabia; na verdade, era a base de sua visão de mundo. No entanto, a partir dessa aceitação da transitoriedade, desenvolveu sua vasta teoria, segundo a qual aquilo que é mais mutável demonstra ser a eternidade em seu grau mais elevado, e a relação de alguém com o rio, e a relação do rio com alguém e com ele mesmo torna-se logo mais complexa e mais segura do que a mera falta de identidade. Pode-se voltar para casa, afirma a Teoria Temporal Geral, desde que se compreenda que casa é um lugar onde nunca se esteve.
Portanto, estava alegre por voltar para o que mais próximo ele tinha ou queria ter de um lar. Mas achou seus amigos ali muito imaturos. Ele tinha amadurecido bastante no último ano. Algumas garotas tinham amadurecido tanto quanto ele, ou até mais; tinham se tornado mulheres. Entretanto, evitou qualquer contato, exceto casuais, com as garotas, pois ainda não queria mais uma farra de sexo; tinha outras coisas a fazer. Percebeu que as garotas mais inteligentes, como Rovab, eram cautelosas como ele; nos laboratórios e nas equipes de trabalho, ou nas áreas comuns dos dormitórios, comportavam-se como boas companheiras e nada mais. As garotas queriam concluir o treinamento e iniciar sua pesquisa ou encontrar um posto que lhes agradasse antes de terem um filho. Mas não se satisfaziam mais com a experimentação sexual da adolescência. Queriam uma relação madura, não uma estéril; mas não naquele momento, não ainda.
Essas garotas eram boa companhia, simpáticas e independentes. Os garotos da idade de Shevek pareciam presos ao final de uma infantilidade que estava se tornando superficial e enfadonha. Eles eram intelectualizados demais. Pareciam não querer se comprometer nem com o trabalho, nem com o sexo. Quem ouvisse Tirin falar pensaria que ele havia inventado a cópula, mas seus casos eram com meninas de 15 ou 16 anos; esquivava-se das garotas de sua idade. Bedap, que nunca tinha sido vigoroso no sexo, aceitou a deferência de um rapaz mais jovem que nutria por ele uma paixão homossexual idealista e deixou que isso lhe bastasse. Parecia não levar nada a sério; tornara-se irônico e reticente. Shevek sentiu-se excluído de sua amizade. Nenhuma amizade perdurou; até Tirin estava muito egocêntrico e, nos últimos tempos, emocionalmente instável para reatar os antigos laços – se Shevek o quisesse. Na verdade, não queria. Acolheu o isolamento de todo o coração. Nunca lhe ocorreu que o distanciamento que encontrou em Bedap e Tirin pudesse ser uma reação; que seu caráter gentil, mas já impiedosamente hermético, pudesse criar sua própria ambiência, que somente uma grande força, uma grande devoção poderia suportar. Tudo o que percebeu, na verdade, foi que, finalmente, tinha tempo de sobra para o trabalho.
Lá no Sudeste, depois de ter se acostumado ao trabalho braçal regular e ter parado de desperdiçar o cérebro com mensagens codificadas e o sêmen em poluções noturnas, começou a ter algumas ideias. Agora estava livre para desenvolver essas ideias, para ver se tinham fundamento.
A física mais graduada do Instituto chamava-se Mitis. Não estava, no momento, coordenando a grade curricular de física, pois havia um rodízio anual de todos os postos administrativos entre os vinte postos permanentes, mas ela trabalhava ali há trinta anos e era a mais inteligente dentre todos. Havia sempre uma espécie de espaço livre psicológico em volta de Mitis, como a inexistência de multidões em volta do pico de uma montanha. A ausência de intensificações ou imposições de autoridade deixava a autoridade real evidente. Existem pessoas com autoridade inerente; alguns imperadores têm, na verdade, roupa nova.
– Mandei aquele estudo que você escreveu sobre Frequência Relativa para Sabul, em Abbenay – ela disse a Shevek, com seu jeito abrupto e sociável. – Quer ver a resposta?
Empurrou até o outro lado da mesa um pedaço de papel amarrotado, obviamente uma ponta rasgada de uma folha maior. Nele havia uma equação rabiscada em letras miúdas:
ts (R) = 0
2
Shevek pôs seu peso nas mãos sobre a mesa e baixou os olhos para o pedacinho de papel, contemplando-o com serenidade. Seus olhos eram claros, e a claridade da janela os preencheu, tornando-os límpidos como a água. Ele tinha 19 anos, Mitis, 55. Ela o observou com compaixão e admiração.
– É isso que está faltando – ele disse. Sua mão tinha encontrado um lápis sobre a mesa. Começou a rabiscar no fragmento de papel. Enquanto escrevia, seu rosto pálido, prateado por uma leve penugem, ruborizou, e as orelhas avermelharam-se.
Mitis moveu-se discretamente atrás da mesa, sentando-se. Tinha problema de circulação nas pernas e precisava sentar-se. Seu movimento, entretanto, perturbou Shevek. Ele lançou-lhe um olhar fixo e frio.
– Posso terminar isso em um dia ou dois – ele disse.
– Sabul quer ver os resultados quando você terminar.
Houve uma pausa. A cor de Shevek voltou ao normal, e ele teve consciência de novo da presença de Mitis, a quem amava. – Por que a senhora mandou o estudo para Sabul? – ele perguntou. – Com aquele furo enorme! – Sorriu; o prazer de remendar o furo em seu pensamento o deixou radiante.
– Achei que ele talvez conseguisse ver onde você errou. Eu não consegui. Também queria que ele visse a sua pesquisa... Ele vai querer que você vá para lá, para Abbenay, você sabe.
O jovem não respondeu.
– Você quer ir?
– Ainda não.
– Foi o que pensei. Mas você deve ir. Pelos livros, e pelas mentes que vai encontrar lá. Você não vai desperdiçar sua mente no deserto! – Mitis falou com súbito entusiasmo. – É seu dever buscar o melhor, Shevek. Jamais se deixe enganar pelo falso igualitarismo. Você vai trabalhar com Sabul. Ele é competente, vai fazê-lo trabalhar muito. Mas você deve ser livre para encontrar a linha que vai querer seguir. Fique aqui mais um bimestre e depois vá. E tome cuidado em Abbenay. Permaneça livre. O poder está sempre vinculado a um centro. Você vai para o centro. Não conheço bem Sabul; não sei de nada contra ele; mas tenha isso em mente: você será o homem dele.
A forma singular dos pronomes possessivos em právico era utilizada principalmente para dar ênfase; o idioma a evitava. Criancinhas podiam dizer “minha mãe”, mas logo aprendiam a dizer “a mãe”. Em vez de dizer “minha mão está doendo”, dizia-se “a mão me dói”, e assim por diante; para expressar “isto é meu e aquilo é seu” em právico, dizia-se “eu uso isto e você usa aquilo”. A afirmação de Mitis “você será o homem dele” soou estranha. Shevek olhou-a sem entender.
– Você tem trabalho a fazer – disse Mitis. Ela tinha olhos negros, e eles brilharam como se estivessem com raiva. – Faça-o! – E então saiu, pois um grupo a aguardava no laboratório. Confuso, Shevek baixou os olhos para o pedaço de papel rabiscado. Pensou que Mitis lhe tivesse dito para se apressar e corrigir as equações. Só muito mais tarde compreendeu o que ela estava lhe dizendo.
Na noite anterior à sua partida para Abbenay, seus colegas estudantes lhe ofereceram uma festa de despedida. Festas eram frequentes, ao menor pretexto, mas Shevek surpreendeu-se com a energia gasta naquela em particular e imaginou por que ela tinha sido tão boa. Como não era influenciado por ninguém, nunca soube que ele os influenciava; não tinha ideia do quanto gostavam dele.
Muitos dos seus colegas devem ter economizado várias cotas diárias para fazer a festa. Havia uma quantidade incrível de comida. A encomenda de iguarias foi tão grande que o padeiro do refeitório soltou a imaginação e produziu delícias até então desconhecidas: folhados condimentados, canapés apimentados para acompanhar o peixe defumado, bolos doces fritos e suculentamente gordurosos. Havia coquetéis de frutas, frutas em conserva da região do Mar Keran, pequenos camarões salgados, pilhas de batatas fritas crocantes. A comida farta e saborosa era inebriante. Todos ficaram meio embriagados, e alguns passaram mal.
Houve esquetes e espetáculos, ensaiados e improvisados. Tirin vestiu-se com uma coleção de farrapos da lixeira e perambulou pela festa como o Pobre Urrasti, o Mendigo – uma das palavras ióticas que todo mundo aprendera nas aulas de história.
– Me dá dinheiro – ele suplicava, balançando a mão debaixo dos narizes dos outros. – Dinheiro! Dinheiro! Por que não me dão dinheiro? Vocês não têm? Mentirosos! Proprietários imundos! Exploradores! Olhem toda essa comida, como conseguiram, se não têm dinheiro? – Então se colocou à venda – Me cumprem, me cumprem, só por um pouquinho de dinheiro – adulou.
– Não é cumprem, é comprem – corrigiu Rovab.
– Me cumprem, me comprem, quem se importa? Vejam que lindo corpo eu tenho, não querem? – cantarolou, requebrando os quadris magros e piscando os olhos. Por fim, foi executado publicamente com uma faca de peixe e reapareceu vestido com um roupa normal. Havia harpistas e cantores talentosos entre eles, e houve muita música e dança, porém mais conversa. Todos conversavam como se fossem ficar mudos no dia seguinte.
Quando a noite avançou, jovens amantes começaram a sair para copular, procurando os quartos individuais; outros ficaram com sono e se retiraram para os dormitórios. No fim, sobrou um pequeno grupo em meio aos copos vazios, às espinhas de peixe e às migalhas de petiscos, que eles teriam de limpar antes de amanhecer. Mas ainda faltavam horas para o amanhecer. Conversavam. Mordiscavam isso e aquilo enquanto conversavam. Bedap, Tirin e Shevek estavam ali, mais dois rapazes e três garotas. Conversavam sobre a representação espacial do tempo como ritmos e sobre a relação entre as antigas teorias das Harmonias Numéricas e a Física Temporal Moderna. Conversavam sobre a melhor braçada para o nado de longa distância. Conversavam sobre suas infâncias, se tinham sido felizes. Conversavam sobre o que era a felicidade.
– O sofrimento é um engano – disse Shevek, inclinando-se para a frente, os olhos muito abertos e claros. Ele ainda era magricela, com mãos grandes, orelhas salientes e juntas ossudas, mas, na perfeita saúde e vigor do início da virilidade, era lindo. O cabelo castanho, como o dos outros, era fino e liso, muito comprido e preso com uma fita para não cair na testa. Só um deles usava o cabelo de um modo diferente, uma moça de bochechas elevadas e nariz chato. Ela cortara o cabelo escuro e brilhante no formato de uma touca arredondada. Observava Shevek com um olhar sério e firme. Os lábios estavam lambuzados de comer bolo frito, e tinha uma migalha grudada no queixo.
– O sofrimento existe – disse Shevek, abrindo as mãos. – É real. Posso considerá-lo um engano, mas não posso fingir que não existe ou que um dia deixará de existir. O sofrimento é a condição em que vivemos. E quando ele chega, nós o reconhecemos. Reconhecemos como a verdade. Claro que é certo curar doenças, evitar a fome e a injustiça, como faz o organismo social. Mas nenhuma sociedade pode mudar a natureza da existência. Não podemos evitar o sofrimento. Uma ou outra dor, sim, mas não a Dor. Uma sociedade só pode aliviar o sofrimento social, o sofrimento desnecessário. O resto permanece. A raiz, a realidade. Todos nós aqui conheceremos o sofrimento; se vivermos cinquenta anos, conheceremos a dor por cinquenta anos. E, no fim, morreremos. Esta é a condição em que nascemos. Tenho medo da vida! Às vezes eu... fico aterrorizado. Qualquer felicidade parece trivial. E, no entanto, me pergunto se tudo não passa de um engano... essa busca da felicidade, esse medo da dor... Se, em vez de temer a dor e fugir dela, se pudesse... atravessá-la, ir além dela. Há algo além da dor. É o ser que sofre, e há um lugar onde o ser... acaba. Não sei como expressar. Mas acredito que a realidade... a verdade que eu reconheço no sofrimento, mas não reconheço no conforto e na felicidade... que a realidade da dor não é dor. Se for possível atravessá-la. Se for possível suportá-la até o fim.
– A realidade de nossa vida está no amor, na solidariedade – disse uma garota alta, de olhos benevolentes. – O amor é a verdadeira condição da vida humana.
Bedap balançou a cabeça.
– Não, Shev está certo – ele disse. – O amor é apenas um dos caminhos, e pode dar errado, pode falhar. A dor nunca falha. Mas, por essa razão, não temos muita escolha sobre suportá-la! Suportaremos, queiramos ou não.
A garota de cabelo curto balançou a cabeça com veemência.
– Mas não suportaremos! Um em cada cem, um em cada mil atravessa todo o caminho, atravessa até o fim. O restante de nós continua fingindo que é feliz, ou senão fica entorpecido. Sofremos, mas não o suficiente. Assim, sofremos por nada.
– O que devemos fazer – perguntou Tirin –, dar marteladas nas nossas cabeças por uma hora todos os dias, para termos certeza de que sofremos o suficiente?
– Vocês estão fazendo um culto à dor – disse outro. – A meta de um odoniano é positiva, não negativa. Sofrer é disfuncional, exceto como um aviso do corpo contra o perigo. Psicológica e socialmente, é apenas destrutivo.
– O que motivou Odo senão uma sensibilidade excepcional ao sofrimento, dela e alheio? – retorquiu Bedap.
– Mas todo o princípio de ajuda mútua foi desenvolvido para evitar o sofrimento!
Shevek estava sentado na mesa, as longas pernas pendentes, o rosto intenso e calmo. – Vocês já viram alguém morrer? – perguntou aos outros. A maioria já tinha, num domicílio ou no trabalho voluntário num hospital. Todos, exceto um, já tinham ajudado uma ou duas vezes a enterrar os mortos.
– Houve o caso de um homem quando eu estava no acampamento no Sudeste. Foi a primeira vez que vi uma coisa assim. O motor do carro aéreo estava com algum defeito, ele despencou na decolagem e pegou fogo. O homem foi retirado com o corpo todo queimado. Viveu cerca de duas horas. Não poderia ter sido salvo; não havia motivo para ele viver tanto tempo, nenhuma justificativa para aquelas duas horas. Estávamos esperando que trouxessem anestésicos do litoral. Eu fiquei com ele, junto com duas garotas. Tínhamos abastecido a aeronave. Não havia um médico. Não era possível fazer nada por ele, a não ser ficar ali, ao seu lado. Ele estava em choque, mas consciente. Sentia uma dor terrível, principalmente nas mãos. Acho que ele não sabia que o resto do corpo estava todo carbonizado. Não se podia tocar nele para confortá-lo, a pele e a carne se desprenderiam ao toque, e ele gritaria. Não se podia fazer nada por ele. Não havia ajuda a oferecer. Talvez soubesse que estávamos ali, não sei. Nossa companhia não fez nenhum bem a ele. Não se podia fazer nada por ele. Então eu compreendi... sabem... eu compreendi que não se pode fazer nada por ninguém. Não podemos salvar uns aos outros. Nem a nós mesmos.
– Então o que sobra? Isolamento e desespero! Você está negando a fraternidade, Shevek! – exclamou a garota alta.
– Não... não estou. Estou tentando dizer o que a fraternidade significa realmente. Começa... começa com a dor compartilhada.
– Então onde ela termina?
– Não sei. Não sei ainda.
3
°°°°°
Quando Shevek acordou, após dormir o tempo todo durante sua primeira manhã em Urras, seu nariz estava entupido, a garganta doía e ele tossia muito. Pensou estar resfriado – nem mesmo a higiene odoniana tinha superado o resfriado comum –, mas o médico que aguardava para examiná-lo, um homem idoso e distinto, achou mais provável que fosse uma febre do feno generalizada, uma reação alérgica à poeira e ao pólen alienígenas de Urras. Prescreveu comprimidos e uma injeção, que Shevek aceitou com paciência, e uma bandeja de almoço, que Shevek aceitou com fome. O médico pediu-lhe que permanecesse em seu apartamento e foi embora. Assim que terminou de comer, começou sua exploração de Urras, cômodo por cômodo.
A cama, uma cama imensa de quatro pés, com um colchão muito mais macio do que o do beliche na nave Atento, e roupas de cama complexas, algumas sedosas, outras quentes e grossas, e um monte de travesseiros que pareciam nuvens cúmulos, tinha um cômodo só para ela. O piso era coberto com um tapete macio; havia uma cômoda de madeira lindamente entalhada e polida, e um armário com espaço para as roupas de um dormitório de dez homens. Havia também o grande salão comum com lareira, que ele tinha visto na noite anterior; e um terceiro cômodo, que continha uma banheira, um lavatório e uma privada elaborada. Era evidente que este cômodo servia para seu uso pessoal exclusivo, pois a porta dava para o quarto e ele continha apenas um de cada tipo de instalação, embora cada uma delas fosse de um luxo sensual que ultrapassava em muito o mero erotismo e fazia parte, na visão de Shevek, de um tipo de suprema apoteose excrementícia. Ele passou quase uma hora nesse terceiro cômodo, explorando uma instalação por vez, ficando muito limpo nesse processo. A distribuição da água era maravilhosa. As torneiras permaneciam abertas até serem fechadas; a banheira devia comportar sessenta litros, e a privada utilizava pelo menos cinco litros na descarga. Na verdade, isso não surpreendia. A superfície de Urras continha cinco sextos de água. Até os desertos eram desertos de gelo, nos polos. Não havia necessidade de economia; não havia seca... Mas o que acontecia com as fezes? Ficou remoendo o assunto, ajoelhado ao lado da privada, após examinar o seu mecanismo. Deviam filtrar as fezes da água em uma usina de adubos. Havia comunidades litorâneas em Anarres que utilizavam esse sistema de aproveitamento de resíduos. Ele pretendia perguntar sobre isso, mas nunca teve oportunidade. Havia muitas perguntas que nunca chegou a fazer em Urras.
Apesar da cabeça constipada, sentia-se bem, e inquieto. Os cômodos eram tão quentes que ele protelou o ato de vestir-se, andando nu de lá para cá, com altivez. Foi até as janelas do salão e ficou olhando para fora. O salão era alto. Assustou-se, a princípio, e recuou, não acostumado a edifícios de mais de um andar; era como estar olhando para baixo num dirigível; sentia-se separado do solo, dominante, indiferente. As janelas davam para um bosque que ia até um edifício branco com uma graciosa torre quadrada. Além desse edifício, o campo descia num extenso vale. O vale era todo cultivado, pois as inúmeras manchas de verde que o coloriam eram retangulares. Até onde o verde desaparecia no azul distante, ainda se viam as linhas escuras de alamedas, cercas-vivas ou árvores, uma rede tão delicada como a do sistema nervoso de um corpo vivo. Por fim, colinas elevavam-se bordejando o vale, ondulação azul atrás de ondulação azul, suaves e escuras sob o cinza pálido e uniforme do céu.
Era a vista mais linda que Shevek já vira. A leveza e vitalidade das cores, a mistura do desenho retilíneo humano e dos potentes e fecundos contornos naturais, a variedade e harmonia dos elementos davam a impressão de uma plenitude complexa que ele jamais vira, exceto, talvez, prenunciada numa pequena escala em alguns rostos humanos serenos e pensativos.
Comparado àquilo, qualquer paisagem oferecida por Anarres, mesmo a Planície de Abbenay e as gargantas das Montanhas Ne Theras, era pobre: estéril, árida e incompleta. Os desertos do Sudoeste tinham uma beleza vasta, mas eram hostis, e imemoriais. Até mesmo onde os homens cultivavam a terra de Anarres com mais rigor, a paisagem era como um esboço grosseiro em giz amarelo, comparada àquela plena magnificência de vida, rica de passado e de estações por vir, inesgotável.
Era assim que o mundo devia ser, pensou Shevek.
E em algum lugar, lá fora naquele esplendor azul e verde, algo cantava: uma voz fraca, no alto, começando e parando, incrivelmente meiga e agradável. O que seria? Uma vozinha meiga, silvestre, uma música no ar.
Ficou escutando, e sua respiração prendeu-se na garganta.
Alguém bateu na porta.
– Entre! – disse Shevek.
Um homem entrou, carregando pacotes. Parou no meio da porta. Shevek atravessou a sala, dizendo o próprio nome, no estilo anarresti, e, no estilo urrasti, estendendo a mão.
O homem, de uns 50 anos, de rosto enrugado e cansado, não estendeu a mão, e disse algo do qual Shevek não entendeu uma palavra. Talvez os pacotes o impedissem, mas ele não fez esforço algum para colocá-los em outro lugar e deixar as mãos livres. Seu rosto estava extremamente sério. Era possível que estivesse constrangido.
Shevek, que pensava ter dominado pelo menos os costumes de saudação urrastis, ficou embaraçado.
– Entre – repetiu, e acrescentou, já que os urrastis usavam títulos honoríficos o tempo todo –, senhor!
O homem disparou mais um discurso ininteligível, enquanto movia-se de lado em direção ao quarto. Shevek pegou várias palavras ióticas desta vez, mas não compreendeu o resto. Deu passagem ao camarada, já que ele parecia querer entrar ali. Seria, talvez, um companheiro de quarto? Mas havia apenas uma cama. Shevek desistiu dele e voltou à janela, e o homem entrou a passos rápidos e ficou andando e fazendo ruídos lá dentro por alguns minutos. Exatamente no momento em que Shevek concluíra que o homem trabalhava à noite e usava o aposento durante o dia, um arranjo que se fazia em domicílios temporariamente lotados, ele saiu de novo. Disse algo como “Pronto, senhor” – talvez? – e inclinou a cabeça de um jeito curioso, como se achasse que Shevek, a cinco metros de distância, estivesse prestes a lhe desferir um tapa na cara. O homem foi embora. Shevek ficou parado ao lado das janelas, lentamente se dando conta de que, pela primeira vez na vida, alguém se curvara diante dele.
Entrou no quarto e descobriu que a cama tinha sido arrumada.
Pensativo, ele se vestiu devagar. Estava calçando os sapatos quando ouviu uma nova batida na porta.
Um grupo entrou, de maneira diferente; de maneira normal, pareceu a Shevek, como se tivessem o direito de estar ali, ou em qualquer lugar que quisessem. O homem com os pacotes hesitara, entrara quase de maneira furtiva. No entanto, seu rosto, suas mãos e sua roupa se aproximaram mais da noção que Shevek tinha da aparência de um ser humano normal do que a dos novos visitantes. O homem furtivo se comportara de modo estranho, mas parecia um anarresti. Aqueles quatro se comportavam como anarrestis, mas pareciam, com seus rostos barbeados e belos trajes, criaturas de uma espécie alienígena.
Shevek conseguiu identificar um deles, Pae, e os outros como homens que lhe tinham feito companhia na noite anterior. Ele explicou que não se lembrava do nome deles, e eles se apresentaram de novo: dr. Chifoilisk, dr. Oiie e dr. Atro.
– Ah, caramba! – disse Shevek. – Atro! Prazer em conhecê-lo! – Colocou as mãos nos ombros do idoso e beijou-lhe a bochecha, sem pensar se aquele cumprimento fraterno, comum em Anarres, pudesse ser inaceitável ali.
Atro, entretanto, retribuiu-lhe com um abraço caloroso e ergueu para ele os olhos cinzentos e embaciados. Shevek percebeu que o homem estava quase cego.
– Meu caro Shevek – ele disse. – Bem-vindo a A-Io... Bem-vindo a Urras... Bem-vindo ao lar!
– Há tantos anos nos escrevemos e destruímos as teorias um do outro!
– Você sempre destruiu melhor. Espere, tenho uma coisa para você aqui. – O idoso apalpou os bolsos. Sob o jaleco de veludo da universidade ele usava um paletó; sob este, um colete, sob este, uma camisa e, sob esta, provavelmente mais uma camada. Todos esses trajes, e as calças, continham bolsos. Shevek observava fascinado, enquanto Atro verificava seis ou sete bolsos, todos contendo pertences, antes de encontrar um pequeno cubo de metal amarelo encaixado num pedaço de madeira polida. – Aí está – ele disse, olhando o objeto com dificuldade. – Sua recompensa. O prêmio Seo Oen, você sabe. O dinheiro está na sua conta. Aqui. Com nove anos de atraso, mas antes tarde do que nunca. – Suas mãos tremiam enquanto entregava a coisa para Shevek.
Era pesado; o cubo amarelo era de ouro maciço. Shevek ficou parado, imóvel, segurando-o.
– Não sei você, meu jovem – disse Atro –, mas eu vou me sentar. – Todos se sentaram nas poltronas macias, que Shevek já examinara, intrigado com o material que as revestia, uma coisa marrom não tecida que parecia pele humana. – Quantos anos você tinha nove anos atrás, Shevek?
Atro era o mais eminente físico vivo de Urras. Havia nele não apenas a dignidade de muitas décadas vividas, mas também a segurança brusca de alguém acostumado ao respeito. Nada disso era novo para Shevek. Atro tinha o único tipo exato de autoridade que Shevek reconhecia. Também sentiu prazer ao ser enfim tratado simplesmente pelo nome.
– Eu tinha 29 anos quando terminei o Princípios, Atro.
– Vinte e nove? Meu Deus! Isso o torna o mais jovem a receber o prêmio Seo Oen em mais ou menos um século. Eu só consegui receber o meu depois dos 60... Então, quantos anos você tinha quando me escreveu pela primeira vez?
– Uns 20.
Atro bufou.
– Na época achei que você fosse um homem de 40 anos!
– E Sabul? – Oiie perguntou. Oiie era ainda mais baixo em relação à maioria dos urrastis, que a Shevek pareciam todos baixos; tinha um rosto achatado e afável, e os olhos ovais muito pretos. – Houve um período de seis ou oito anos em que o senhor nunca escreveu, e Sabul manteve contato conosco; mas ele nunca usou o mesmo link de rádio que o senhor. Já nos perguntamos que tipo de relação vocês teriam.
– Sabul é o membro mais graduado do Instituto de Física de Abbenay – disse Shevek. – Eu trabalhava com ele.
– Um rival mais velho; ciumento; mexia nos seus livros; já está claro o suficiente. Nem precisamos de uma explicação, Oiie – disse o quarto homem, Chifoilisk, num tom áspero. Era um homem de meia-idade, moreno e atarracado, com as mãos finas de um trabalhador de gabinete. Era o único entre eles cujo rosto não era totalmente barbeado: tinha deixado alguns pelos eriçados no queixo para combinar com o cabelo curto e cinza. – Não precisa fingir que todos os irmãos odonianos são cheios de amor fraterno – ele disse. – Natureza humana é natureza humana.
Uma saraivada de espirros de Shevek evitou que sua falta de reação parecesse significativa.
– Não tenho lenço – desculpou-se, enxugando os olhos.
– Pegue o meu – disse Atro, tirando um lenço branquíssimo de um dos inúmeros bolsos. Enquanto Shevek pegava o lenço, uma lembrança inoportuna apertou seu coração. Pensou em sua filha Sadik, uma garotinha de olhos escuros, dizendo: “Pode compartilhar o lenço que eu uso”. Essa lembrança, que lhe era tão cara, foi insuportavelmente dolorosa naquele momento. Tentando fugir dela, sorriu ao acaso e disse:
– Sou alérgico ao planeta de vocês. É o que diz o médico.
– Meu Deus, você não vai ficar espirrando assim o tempo todo, vai? – perguntou o velho Atro, examinando seu rosto.
– O seu homem não veio ainda? – perguntou Pae.
– Meu homem?
– O criado. Era para ele ter lhe trazido algumas coisas. Inclusive lenços. Apenas o suficiente para supri-lo enquanto você não puder fazer as próprias compras. Nada selecionado... Receio que haja poucas opções de roupas prontas para um homem da sua altura!
Após Shevek ter compreendido tudo (Pae tinha uma fala arrastada que combinava com seus traços bonitos e delicados), disse:
– É muita gentileza de vocês. Eu me sinto... – Olhou para Atro. – Eu sou, vocês sabem, o Mendigo – disse ao velho, como tinha dito ao dr. Kimoe na nave Atento. – Não pude trazer dinheiro. Não o utilizamos. Não pude trazer presentes, não usamos nada que falte a vocês. Então, venho como um verdadeiro odoniano, “de mãos vazias”.
Atro e Pae lhe asseguraram que ele era um hóspede, não precisava pagar nada, o privilégio era deles.
– Além do mais – disse Chifoilisk, num tom irônico –, é o governo iota que está bancando tudo.
Pae lançou-lhe um olhar severo, mas Chifoilisk não o retribuiu. Em vez disso, olhou Shevek direto nos olhos. Havia em seu rosto moreno uma expressão que ele não fez esforço para esconder, mas que Shevek não conseguiu interpretar: advertência ou cumplicidade?
– Falou o thuviano incorrigível – disse Atro, bufando. – Mas quer dizer, Shevek, que você não trouxe absolutamente nada, nenhum estudo, nenhum trabalho novo? Eu estava ansioso por um livro. Mais uma revolução na física. Para ver esses jovens arrogantes ficarem abismados, como eu fiquei com os Princípios. No que você tem trabalhado?
– Bem, tenho lido Pae... O estudo do dr. Pae sobre o universo homogêneo, sobre o Paradoxo e a Relatividade.
– Tudo muito bem. Saio é a nossa grande estrela atual, sem dúvida. E quem menos duvida é você próprio, hein, Saio? Mas o que isso tem a ver com nosso assunto? Onde está a sua Teoria Temporal Geral?
– Na minha cabeça – disse Shevek, com um sorriso largo e simpático.
Houve uma breve pausa.
Oiie perguntou-lhe se ele tinha visto o trabalho sobre a Teoria da Relatividade de um físico alienígena, Ainsetain, do planeta Terran. Shevek disse que não. Eles estavam intensamente interessados nesse trabalho, exceto Atro, que já ultrapassara a intensidade. Pae correu até seu quarto e pegou uma cópia da tradução para Shevek.
– O trabalho tem centenas de anos, mas há algumas ideias novas nele para nós – ele disse.
– Talvez – disse Atro –, mas nenhum desses fora-do-mundo consegue acompanhar a nossa física. Os hainianos a chamam de materialismo, e os terranos a chamam de misticismo, e ambos acabam desistindo. Não deixe essa euforia passageira por tudo o que é estrangeiro desviá-lo do rumo, Shevek. Eles não têm nada a nos oferecer. Plante suas próprias sementes, como dizia meu pai. – Deu sua bufada senil e levantou-se, alavancando-se para fora da poltrona. – Venha comigo, vamos lá fora dar uma volta no bosque. Não é à toa que você está constipado, engaiolado desse jeito aqui.
– O médico disse para eu ficar aqui dentro do quarto por três dias. Posso ser... infectado? Infeccioso?
– Nunca dê atenção ao que os médicos dizem, meu caro amigo.
– Mas talvez, neste caso, ele deva, dr. Atro – sugeriu Pae, em seu tom calmo e conciliador.
– Afinal, o médico é do governo, não é? – observou Chifoilisk, com evidente malícia.
– O melhor homem que puderam encontrar, tenho certeza – Atro disse, sem achar graça, e foi embora sem insistir mais com Shevek. Chifoilisk o acompanhou. Os dois homens mais jovens permaneceram ali, conversando sobre física, por um longo tempo.
Com imenso prazer, e com aquela mesma sensação de reconhecimento, de encontrar algo do jeito que deveria ser, Shevek descobriu pela primeira vez na vida a conversa entre iguais.
Mitis, embora fosse uma professora esplêndida, jamais conseguira acompanhá-lo nas novas áreas de teoria que ele, incentivado por ela, tinha começado a explorar. Gvarab foi a única pessoa que encontrara com conhecimento e capacidade comparáveis aos dele, mas ele e Gvarab se conheceram tarde demais, quando ela já estava no fim da vida. Desde aqueles tempos, Shevek trabalhara com muitas pessoas de talento, mas, por nunca ter sido membro efetivo do Instituto de Abbenay, não conseguiu levá-las longe o bastante; permaneceram atoladas nos velhos problemas, na clássica Física Sequência. Ele não tivera iguais. Ali, no reino da iniquidade, enfim os encontrara.
Foi uma revelação, uma liberação. Físicos, matemáticos, astrônomos, lógicos, biólogos, estavam todos ali na universidade e vinham até ele, ou ele ia até eles, e conversavam, e novos mundos nasciam de suas conversas. É da natureza da ideia ser comunicada: escrita, falada, realizada. A ideia é como a grama. Anseia pela luz, gosta de multidões, prolifera por cruzamento, cresce melhor para ser pisada.
Mesmo naquela primeira tarde na universidade, com Oiie e Pae, sabia que encontrara algo que desejara desde que, ainda garotos e num nível infantil, ele, Tirin e Bedap passavam metade da noite conversando, provocando e desafiando uns aos outros em voos mentais cada vez mais audaciosos. Recordava-se vividamente de uma dessas noites. Ele viu Tirin dizendo: “Se soubéssemos como Urras é de verdade, talvez alguns de nós quiséssemos ir até lá”. E ele ficara tão chocado com a ideia que pulara em cima de Tirin, e Tir logo recuara, pobre alma condenada, e estivera certo o tempo todo.
A conversa cessara. Pae e Oiie estavam calados.
– Desculpem – ele disse. – A cabeça está pesada.
– Como está a gravidade? – Pae perguntou, com o sorriso charmoso de um homem que, como uma criança esperta, conta com o próprio charme.
– Não percebo – respondeu Shevek. – Só nos... o que é isso?
– Joelhos... articulações dos joelhos.
– Sim, joelhos. A função está prejudicada. Mas vou me acostumar. – Olhou para Pae e depois para Oiie. – Tenho uma pergunta. Mas não quero ser ofensivo.
– Nunca tenha receio disso, senhor! – disse Pae.
– Não tenho certeza se o senhor saberia como nos ofender – disse Oiie. Ele não era um camarada simpático, como Pae. Mesmo conversando sobre física, tinha um estilo evasivo e reservado. No entanto, Shevek sentiu que, sob esse estilo, havia algo para confiar; enquanto que, sob o charme de Pae, o que havia? Bem, não importava. Ele tinha de confiar em todos, e confiaria.
– Onde estão as mulheres?
Pae riu. Oiie sorriu e perguntou:
– Em que sentido?
– Todos os sentidos. Conheci mulheres na festa ontem à noite... cinco, dez... e centenas de homens. Nenhuma delas era cientista, eu acho. Quem eram elas?
– Esposas. Na verdade, uma delas era a minha esposa – disse Oiie, com seu sorriso reservado.
– Onde estão as outras mulheres?
– Ah, não há dificuldade nenhuma quanto a isso, senhor – disse Pae, prontamente. – Só nos diga quais são as suas preferências, e nada seria mais fácil de providenciar.
– Ouvem-se muitas especulações pitorescas sobre os costumes anarrestis, mas acho que conseguimos encontrar qualquer coisa que o senhor tenha em mente – disse Oiie.
Shevek não fazia ideia do que eles estavam falando. Coçou a cabeça:
– Então todos os cientistas daqui são homens?
– Cientistas? – perguntou Oiie, incrédulo.
– Cientistas. – Pae tossiu. – Ah, sim, certo, são todos homens. Existem algumas professoras nas escolas femininas, claro. Mas nunca ultrapassam o nível do Certificado.
– Por que não?
– Não conseguem entender matemática; não têm cabeça para pensamento abstrato; não pertencem ao meio científico. Sabe como é, o que as mulheres chamam de pensamento é feito com o útero! É claro que sempre existem algumas exceções, mulheres inteligentes e detestáveis, com atrofia vaginal.
– Vocês odonianos deixam as mulheres estudarem ciência? – indagou Oiie.
– Bem, elas estão nas ciências, sim.
– Não muitas, espero.
– Bem, cerca da metade.
– Eu sempre digo – disse Pae – que as moças técnicas devidamente orientadas poderiam aliviar boa parte da carga dos homens nos laboratórios. Na verdade, elas são até mais hábeis e rápidas do que os homens em tarefas repetitivas, e mais dóceis... se entediam com menos facilidade. Poderíamos liberar os homens para o trabalho criativo muito mais cedo, se utilizássemos mulheres.
– No meu laboratório, não – disse Oiie. – Deixem que fiquem no lugar delas.
– O senhor encontrou mulheres capazes de trabalho intelectual criativo, dr. Shevek?
– Bem, na verdade foram elas que me encontraram. Mitis, no Poente Norte, era minha professora. Gvarab também; acho que já ouviram falar nela.
– Gvarab era mulher? – perguntou Pae, com surpresa genuína, e riu.
Oiie pareceu não convencido e ofendido.
– Não dá para saber pelos nomes de vocês, é claro – disse friamente. – Vocês fazem questão, suponho, de não fazer distinção entre os sexos.
– Odo era mulher – disse Shevek calmamente.
– Pois é – disse Oiie. Ele não deu de ombros, mas por um triz não deu de ombros. Pae pareceu respeitoso e assentiu com um movimento da cabeça, do mesmo modo que fazia quando o velho Atro balbuciava.
Shevek percebeu que tocara numa animosidade impessoal muito profunda dentro daqueles homens. Aparentemente havia neles, como nas mesas da espaçonave, uma mulher, uma mulher reprimida, silenciada, bestializada, uma fúria enjaulada. Ele não tinha o direito de provocá-los. Eles só conheciam as relações de posse. Estavam possuídos.
– Uma mulher linda e virtuosa – disse Pae – é uma inspiração para nós... a coisa mais preciosa do mundo.
Shevek sentiu-se extremamente desconfortável. Levantou-se e foi até as janelas.
– Seu mundo é muito bonito – ele disse. – Gostaria de poder conhecer mais. Enquanto eu tiver que ficar aqui dentro, vocês podem me trazer livros?
– Claro, senhor! Que tipo de livro?
– História, fotos, contos, qualquer coisa. Talvez livros infantis. Vocês entendem, eu sei muito pouco. Estudamos sobre Urras, mas principalmente sobre a época de Odo. Antes disso são 8 500 anos de história! E depois, desde a Colonização de Anarres, já se passaram cento e cinquenta anos; desde que a última nave trouxe os últimos Colonos... ignorância. Nós os ignoramos; vocês nos ignoram. Vocês são nossa história. Nós somos talvez seu futuro. Quero aprender, não ignorar. Foi por isso que vim. Devemos nos conhecer. Não somos homens primitivos. Nossa moralidade não é mais tribal, não pode ser. Essa ignorância é errada, da qual surgirão erros. Por isso vim aprender.
Ele falou com muita honestidade. Pae assentiu com entusiasmo.
– Exatamente, senhor! Todos nós estamos de pleno acordo com seus objetivos!
Oiie olhou para ele com aqueles olhos pretos, opacos, ovais, e disse:
– Então o senhor vem, basicamente, como um emissário de sua sociedade?
Shevek voltou a sentar-se no banco de mármore ao lado da lareira, que ele já considerava o seu banco, seu território. Ele queria um território. Sentiu a necessidade de cautela. Mas sentia com mais força a necessidade que o fizera atravessar o abismo seco do seu planeta até ali, a necessidade de comunicação, o desejo de derrubar muros.
– Venho – ele disse, com cautela – como representante do Sindicato da Iniciativa, o grupo que tem conversado com Urras pelo rádio nos últimos dois anos. Mas não sou embaixador de nenhuma autoridade, nenhuma instituição. Espero que não tenham me convidado como tal.
– Não – disse Oiie. – Nós convidamos o senhor... Shevek, o físico. Com a aprovação do nosso governo e do Conselho dos Governos Mundiais, é claro. Mas o senhor está aqui como convidado particular da Universidade de Ieu Eun.
– Ótimo.
– Mas não temos certeza se o senhor veio ou não com a aprovação do... – ele hesitou.
Shevek deu um meio sorriso.
– Do meu governo?
– Sabemos que, nominalmente, não existe governo em Anarres. Entretanto, é óbvio que existe uma administração. E supomos que o grupo que o enviou, seu Sindicato, seja uma espécie de facção; talvez uma facção revolucionária.
– Todo mundo em Anarres é revolucionário, Oiie... A rede de administração e gerenciamento chama-se CPD, Coordenação de Produção e Distribuição. Eles são um sistema de coordenação de todos os sindicatos, federações e indivíduos que realizam trabalho produtivo. Eles não governam as pessoas; administram produção. Não têm nenhuma autoridade sobre mim, para me apoiar ou me impedir. Só podem nos dizer a opinião pública sobre nós... onde nos situamos na consciência social. É isso o que vocês querem saber? Bem, meus amigos e eu somos muito desaprovados. A maioria das pessoas de Anarres não quer aprender sobre Urras. Eles temem o seu mundo e não querem nenhum contato com os proprietários. Desculpe se estou sendo mal-educado! Acontece o mesmo aqui, com algumas pessoas, não é? O desprezo, o medo, o tribalismo. Bem, então eu vim para começar a mudar isso.
– Inteiramente por sua própria iniciativa – disse Oiie.
– É a única iniciativa que reconheço – disse Shevek, sorrindo com absoluta honestidade.
Passou os dois dias seguintes conversando com os cientistas que vieram vê-lo, lendo os livros que Pae lhe trouxera e às vezes apenas em pé, parado ao lado das janelas de arco duplo, para contemplar a chegada do verão no grande vale e para ouvir as breves e delicadas conversas soltas no ar lá fora. Pássaros: sabia o nome dos cantores agora e conhecia sua aparência pelas fotografias nos livros, mas sempre que ouvia o canto ou percebia o bater de asas de uma árvore a outra, ficava maravilhado como uma criança.
Tinha esperado sentir-se tão estranho, ali em Urras, tão perdido, alienígena e confuso – e não sentia nada disso. É claro que havia infinitas coisas que não compreendia. Só agora começava a vislumbrar quantas eram essas coisas: aquela sociedade incrivelmente complexa com todas as suas nações, classes, castas, cultos, costumes e sua história magnífica, estarrecedora, interminável. E cada indivíduo que conhecia era um enigma, cheio de surpresas. Mas não eram os egoístas grosseiros e frios que esperava encontrar; eram tão complexos e diversificados quanto a sua cultura, quanto a sua paisagem; e eram inteligentes; e eram gentis. Tratavam-no como um irmão, faziam tudo o que podiam para que ele não se sentisse perdido, não se sentisse um alienígena, para que se sentisse em casa. E, de fato, ele se sentia em casa. Não podia evitá-lo. O planeta inteiro, a suavidade do ar, a luz do sol nas colinas, até mesmo o puxão da gravidade mais pesado em seu corpo lhe asseguravam que ali era, na verdade, a sua casa, o planeta de sua raça; e toda a beleza daquele mundo era sua por herança.
O silêncio, o absoluto silêncio de Anarres: pensava nele à noite. Nenhum pássaro cantava lá. Não havia outras vozes senão vozes humanas. Silêncio, e as terras áridas.
No terceiro dia o velho Atro lhe trouxe uma pilha de jornais. Pae, companhia frequente de Shevek, não disse nada a Atro, mas, quando o velho saiu, disse a Shevek:
– Esses jornais são um lixo, senhor. Divertidos, mas não acredite em nada do que ler neles.
Shevek pegou o primeiro jornal da pilha. Era mal impresso, num papel áspero – o primeiro artefato malfeito que manuseava em Urras. Na verdade, parecia os boletins e relatórios regionais do CPD que serviam de jornais em Anarres, mas o estilo era bem diferente daquelas publicações borradas, práticas e factuais. Era cheio de pontos de exclamação e fotos. Havia uma foto de Shevek em frente à espaçonave, com Pae segurando seu braço e parecendo zangado. PRIMEIRO HOMEM DA LUA!, diziam as letras enormes acima da foto. Fascinado, Shevek continuou a ler.
Seu primeiro passo em Urras! Primeiro visitante da Colônia de Anarres em cento e setenta anos, o dr. Shevek foi fotografado ontem durante a sua chegada a bordo do cargueiro lunar regular que opera no Porto Espacial Peier. O ilustre cientista, ganhador do Prêmio Seo Oen por seus serviços a todas as nações através da ciência, aceitou uma cátedra na Universidade de Ieu Eun, uma honra jamais concedida antes a um fora-do-mundo. Indagado sobre como se sentiu ao ver Urras pela primeira vez, o ilustre cientista respondeu: “É uma grande honra ser convidado a visitar seu lindo planeta. Espero que uma nova era de amizade de todos os cetianos esteja começando agora, em que os planetas gêmeos seguirão juntos em fraternidade”.
– Mas eu nunca disse nada! – Shevek protestou para Pae.
– Claro que não. Não deixamos essa gente chegar perto do senhor. Mas isso não restringe a imaginação de um jornalista alpiste! Eles escrevem que alguém disse o que eles querem que se diga, não importa se aquilo foi dito ou não.
Shevek ficou pensativo.
– Bem – ele disse, enfim –, se eu tivesse dito alguma coisa, teria sido aquilo mesmo. Mas o que significa cetianos?
– Os terranos nos chamam de cetianos. Creio que seja por causa do nome que eles dão ao nosso sol. A imprensa popular tem usado o termo ultimamente, essa palavra está meio que na moda.
– Então, todos os cetianos significa Urras e Anarres juntos?
– Suponho que sim – disse Pae, com nítido desinteresse.
Shevek continuou a ler os jornais. Leu que ele era um homem gigantesco, que não estava barbeado e possuía uma “juba”, seja lá o que isso fosse, de cabelo grisalho, que tinha 37 anos, 43 e 56; que escrevera um excelente trabalho chamado (a grafia dependia do jornal) Principais da Simultaneidade ou Princípios da Simutanidade, que era um embaixador benevolente do governo odoniano, que era vegetariano e que, como todo anarresti, não bebia. Neste ponto caiu na gargalhada e riu até lhe doerem as costelas.
– Caramba! Eles realmente têm imaginação! Acham que vivemos de vapor d’água, como o musgo de rocha?
– Eles querem dizer que o senhor não bebe bebida alcoólica – disse Pae, também rindo. – Se há uma coisa que todo mundo sabe sobre os odonianos, suponho, é que vocês não bebem álcool. Aliás, isso é verdade?
– Algumas pessoas destilam álcool de raiz de holum fermentada para beber. Dizem que libera o inconsciente, como no treinamento das ondas cerebrais. A maioria prefere o treinamento. É muito fácil e não causa a doença. Isso é comum aqui?
– Beber, sim. Não sei essa doença. Como se chama?
– Alcoolismo, eu acho.
– Ah, sei... Mas o que os trabalhadores fazem em Anarres para terem um pouco de diversão, para escaparem juntos das aflições do mundo por uma noite?
Shevek ficou confuso.
– Bem, nós... Não sei. Talvez nossas aflições sejam inescapáveis?
– Excêntrico – disse Oiie, dando um sorriso afável.
Shevek prosseguiu a leitura. Um dos jornais estava numa língua que ele não conhecia, e outro num alfabeto totalmente diferente. Um era de Thu, explicou Pae, e o outro de Benbili, uma nação do hemisfério ocidental. O jornal de Thu era bem impresso e sóbrio no formato; Pae explicou que era uma publicação governamental.
– Aqui em A-Io, sabe, as pessoas cultas obtêm as notícias no telefax, no rádio, na televisão e nos semanários. Esses jornais são lidos quase exclusivamente pelas classes inferiores... e são escritos por semiletrados, como o senhor pode ver. Temos total liberdade de imprensa em A-Io, o que significa, inevitavelmente, que temos muito lixo. O jornal thuviano é muito mais bem escrito, mas relata apenas os fatos que o Comitê Central Thuviano quer ver relatados. A censura é absoluta em Thu. O Estado é tudo, e tudo é pelo Estado. Dificilmente o lugar para um odoniano, hein, senhor.
– E este jornal?
– Não faço a menor ideia. Benbili é um país do tipo retrógrado. Sempre tendo revoluções.
– Um grupo de pessoas de Benbili nos enviou uma mensagem pelo comprimento de onda do Sindicato, pouco antes de eu partir de Abbenay. Chamavam a si mesmos de odonianos. Existem esses grupos aqui em A-Io?
– Não, nunca ouvi falar, dr. Shevek.
O muro. Shevek, àquela altura, reconhecia o muro quando deparava com ele. O muro era o charme, a cortesia e a indiferença daquele jovem.
– Acho que você tem medo de mim, Pae – ele disse, de modo abrupto, mas cordial.
– Medo do senhor?
– Porque sou, pela minha própria existência, uma contestação da necessidade do Estado. Mas o que há para temer? Não vou lhe fazer mal, Saio Pae, você sabe. Sou totalmente inofensivo... Escute, não sou doutor. Não usamos títulos. Eu me chamo Shevek.
– Eu sei, desculpe, senhor. Em nossos termos parece desrespeitoso, entende? Não parece certo. – Ele se desculpou de maneira cativante, esperando perdão.
– Você não consegue me reconhecer como um igual? – Shevek perguntou, observando-o sem perdão nem raiva.
Pae, pela primeira vez, ficou constrangido.
– Mas o senhor é, realmente, o senhor sabe, um homem importante...
– Não há motivos para você mudar seus hábitos por minha causa – disse Shevek. – Não importa. Achei que você ficaria contente em se livrar do desnecessário, apenas isso.
Três dias de confinamento deixaram Shevek carregado de energia excedente, e quando foi liberado exauriu seus acompanhantes com a ânsia em ver tudo de uma vez. Levaram-no à universidade, uma cidade em si, 16 mil estudantes e o corpo docente. Com seus dormitórios, refeitórios, teatros, salas de reunião e por aí afora, não era muito diferente da comunidade odoniana, exceto por ser muito antiga, ser exclusivamente masculina, ser incrivelmente luxuosa e por não ter uma organização federativa, mas hierárquica, de cima para baixo. Mesmo assim, pensou Shevek, tinha a atmosfera de uma comunidade. Ele tinha de lembrar a si mesmo das diferenças.
Levaram-no a um passeio no campo em carros alugados, máquinas esplêndidas de uma elegância bizarra. Não havia muitos deles nas estradas: o aluguel era caro, e poucas pessoas possuíam carros particulares, pois os impostos eram pesados. Todos esses luxos, que, se permitidos livremente ao público tenderiam a drenar recursos naturais insubstituíveis ou sujar o ambiente com refugos, eram rigorosamente controlados por regulação ou taxação. Seus guias alongaram-se no assunto, com certo orgulho. A-Io guiara o mundo por séculos, disseram, em matéria de controle ecológico e economia de recursos naturais. Os excessos do Nono Milênio há muito eram uma página virada da história, e seu único efeito duradouro era a escassez de certos metais, que, felizmente, podiam ser importados da Lua.
Viajando de carro ou de trem, ele viu aldeias, fazendas, cidades; fortalezas dos dias feudais; ruínas das torres da antiga capital de um império de 4 400 anos. Viu as terras cultivadas, os lagos e as colinas da Província de Avan, o coração de A-Io, e no horizonte setentrional os picos da Cordilheira Meitei, brancos, gigantescos. A beleza da terra e o bem-estar do povo permaneciam uma eterna maravilha para ele. Os guias estavam certos: os urrastis sabiam usar o planeta. Quando criança, ensinaram-no que Urras era uma massa podre de desigualdade, iniquidade e desperdício. Mas todas as pessoas que conhecia, todas as pessoas que via, mesmo na menor aldeia do interior, estavam bem-vestidas, bem alimentadas e, contrariando suas expectativas, eram trabalhadoras. Não ficavam à toa, aguardando ordens para fazer as coisas. Assim como os anarrestis, estavam simplesmente ocupadas fazendo as coisas. Isso o espantou. Tinha presumido que, se se retirasse o incentivo natural do ser humano de trabalhar – sua iniciativa, sua energia criativa espontânea – e se substituísse por motivação e coerção externas, ele se tornaria um trabalhador preguiçoso e negligente. Mas nenhum trabalhador negligente manteria aquelas agradáveis terras cultivadas, ou fabricaria os soberbos carros e os confortáveis trens. A atração e a compulsão pelo lucro era, evidentemente, um substituto muito mais efetivo à iniciativa natural do que o tinham levado a crer.
Teria gostado de conversar com algumas daquelas pessoas de aparência robusta e respeitável que viu nas pequenas cidades, para lhes perguntar, por exemplo, se elas se consideravam pobres; pois, se aqueles fossem os pobres, ele teria de revisar seu conceito da palavra. Mas nunca parecia haver tempo, com tudo o que os guias queriam que ele visse.
As outras grandes cidades de A-Io eram muito distantes para se visitar em apenas um dia de passeio, mas levaram-no com frequência a Nio Esseia, a cinquenta quilômetros da universidade. Uma série de recepções foi realizada ali em sua homenagem. Ele não as apreciava muito, pois de modo algum correspondiam à concepção que ele fazia de uma festa. Todos eram muito educados e conversavam bastante, mas sobre nada interessante; e sorriam tanto que pareciam ansiosos. Mas suas roupas eram lindas; de fato, pareciam colocar a frivolidade que faltava às suas maneiras em suas roupas, sua comida, em todas as coisas diferentes que bebiam, e nos opulentos móveis e ornamentos pelos salões dos palácios onde se realizavam as recepções.
Mostraram-lhe os marcos de Nio Esseia: uma cidade de 5 milhões de habitantes – um quarto da população inteira de Anarres. Levaram-no à Praça do Capitólio e mostraram-lhe as altas portas de bronze do Diretório, sede do governo de A-Io; permitiram-lhe acompanhar um debate no Senado e uma reunião de um Comitê dos Diretores. Levaram-no ao zoológico, ao Museu Nacional, ao Museu da Ciência e da Indústria. Levaram-no a uma escola, onde crianças graciosas de uniformes azuis e brancos cantaram o hino nacional de A-Io para ele. Levaram-no para visitar uma fábrica de componentes eletrônicos, uma usina siderúrgica totalmente automatizada e uma usina de fusão nuclear, para que ele visse a eficiência com que a economia proprietária operava o suprimento de energia e manufatura. Levaram-no a um novo conjunto habitacional feito pelo governo, para que ele visse como o Estado cuidava do povo. Levaram-no a um passeio de barco pelo Estuário de Sua, lotado de navios oriundos de todas as partes do planeta. Levaram-no às Supremas Cortes de Justiça, e ele passou um dia inteiro ouvindo casos civis e criminais sendo julgados, uma experiência que o deixou desnorteado e estarrecido; mas insistiram que ele deveria ver o que havia para ser visto e ser levado aonde quer que desejasse ir. Quando ele perguntou, com certo retraimento, se poderia ver o lugar onde Odo estava enterrada, eles o conduziram direto para o antigo cemitério no bairro Trans-Sua. Até autorizaram que os jornalistas dos jornais infames o fotografassem lá, parado à sombra dos grandes e antigos salgueiros, olhando o túmulo simples e bem cuidado:
Laia Asieo Odo
698-769
Ser todo é ser parte;
a verdadeira viagem é o retorno.
Levaram-no a Rodarred, sede do Conselho dos Governos Mundiais, para discursar ao plenário daquela instituição. Esperava conhecer ou pelo menos ver alienígenas ali, os embaixadores de Terran ou de Hain, mas o planejamento rígido da agenda de eventos não lhe permitiu. Preparara meticulosamente seu discurso, um apelo à livre comunicação e reconhecimento mútuo entre o Novo e o Velho Mundo. O discurso foi recebido com uma ovação de dez minutos. Os semanários respeitáveis comentaram-no com aprovação, chamando-o de “um desinteressado gesto moral de fraternidade por um grande cientista”, mas não citaram nenhuma passagem dele, nem os jornais populares. Na verdade, apesar da ovação, Shevek teve a sensação esquisita de que ninguém o escutara.
Concederam-lhe muitos privilégios e acessos livres: aos Laboratórios de Pesquisa da Luz, aos Arquivos Nacionais, aos Laboratórios de Tecnologia Nuclear, à Biblioteca Nacional em Nio, ao Acelerador em Meafed, à Fundação de Pesquisa Espacial em Drio. Embora tudo o que visse em Urras o fizesse querer ver mais, ainda assim, várias semanas de turismo bastavam: era tudo tão fascinante, surpreendente e maravilhoso que, no fim, tornou-se opressivo. Queria estabilizar-se na universidade, trabalhar e refletir sobre tudo por um tempo. Mas, como último dia de passeio, pediu para visitar a Fundação de Pesquisa Espacial. Pae ficou muito satisfeito quando ele fez esse pedido.
Muito do que vira recentemente causou-lhe assombro por ser muito antigo, ter séculos de idade, até milênios. A Fundação, ao contrário, era nova: construída nos últimos dez anos, no estilo opulento e elegante da época. A arquitetura era dramática. Grandes massas de cor foram utilizadas. Alturas e distâncias eram exageradas. Os laboratórios eram espaçosos e arejados, as fábricas anexas e as oficinas mecânicas ficavam protegidas atrás de esplêndidos pórticos de arcos e colunas em estilo neo-saetano. Os hangares eram imensas cúpulas multicoloridas, translúcidas e fantásticas. Os homens que trabalhavam ali, em contraste, eram muito calmos e sérios. Afastaram Shevek de seus acompanhantes e mostraram-lhe toda a Fundação, inclusive cada estágio do sistema de propulsão estelar experimental em que estavam trabalhando, desde os computadores e as pranchetas de desenho até uma nave semiacabada, enorme e surreal à luz laranja, violeta e amarela dentro do vasto hangar geodésico.
– Vocês têm tanta coisa – Shevek disse ao engenheiro que se encarregara dele, um homem chamado Oegeo. – Têm tanto em que trabalhar e trabalham tão bem. Isso é magnífico... a coordenação, a cooperação, a grandiosidade da empreitada.
– Vocês não poderiam tocar nenhum projeto nessa escala de onde o senhor vem, não é? – disse o engenheiro, com um meio sorriso.
– Naves espaciais? Nossa frota espacial são as naves que levaram os Colonos de Urras... construídas aqui em Urras... há quase dois séculos. A construção de um simples navio para transporte de grãos, de uma barcaça, exige um ano de planejamento e um grande esforço de nossa economia.
Oegeo assentiu com um movimento da cabeça.
– Bem, é verdade que temos os produtos. Mas, sabe, o senhor é quem pode nos dizer quando descartar esse trabalho todo... jogá-lo fora.
– Jogá-lo fora? Como assim?
– Viagem mais rápida que a luz – disse Oegeo. – Salto temporal. A velha física diz que não é possível. Os terranos dizem que não é possível. Mas os hainianos, que afinal de contas inventaram a propulsão que utilizamos hoje, dizem que é possível, só que não sabem como fazer, pois estão aprendendo Física Temporal conosco. É evidente que, se a solução está no bolso de alguém nos mundos conhecidos, dr. Shevek, é no seu.
Shevek olhou para ele com distanciamento, os olhos claros, firmes e luminosos.
– Sou um teórico, Oegeo, não projetista.
– Se o senhor nos fornecer a teoria, a unificação da Sequência e da Simultaneidade num campo geral de Teoria Temporal, nós projetaremos as naves. E chegaremos a Terran, ou Hain, ou a outra galáxia no mesmo instante em que partirmos de Urras! Aquele tubo – e direcionou os olhos para o assombroso esqueleto da nave semiconstruída sob os feixes de luz violeta e laranja do hangar – será tão ultrapassado quanto um carro de boi.
– Vocês sonham como constroem: de modo soberbo – disse Shevek, ainda retraído e austero. Havia muito mais coisas que Oegeo e os outros queriam lhe mostrar e discutir com ele, mas ele não demorou a dizer, com a simplicidade que excluía qualquer intenção de ironia: – Acho que é melhor vocês me levarem de volta aos meus protetores.
Assim fizeram; despediram-se com mútua cordialidade. Shevek entrou no carro, mas logo saiu de novo.
– Eu estava esquecendo – disse. – Temos tempo de ver mais uma coisa em Drio?
– Não há mais nada em Drio – disse Pae, educado como sempre e tentando ocultar o aborrecimento por conta da escapada de cinco horas de Shevek entre os engenheiros.
– Gostaria de ver o forte.
– Que forte, senhor?
– Um antigo castelo da época dos reis. Foi usado depois como prisão.
– Qualquer coisa assim teria sido demolida. A Fundação reconstruiu a cidade inteira.
Quando estavam dentro do carro e o motorista estava fechando a porta, Chifoilisk (outra provável causa do mau humor de Pae) perguntou:
– Por que queria ver mais um castelo, Shevek? Pensei que já tivesse visto velhas ruínas o suficiente por um bom tempo.
– O forte em Drio foi onde Odo passou nove anos – respondeu Shevek. Seu rosto estava severo, como estivera desde que conversou com Oegeo. – Após a Insurreição de 747. Foi lá que ela escreveu as Cartas do Cárcere e a Analogia.
– Receio que tenha sido demolido – Pae disse, solidário. – Drio era uma espécie de cidade moribunda, e a Fundação simplesmente limpou tudo e começou do nada.
Shevek assentiu com um movimento da cabeça. Mas enquanto o carro percorria uma estrada à beira de um rio em direção à saída para Ieu Eun, passou por um penhasco na curva do rio Seisse, e sobre o penhasco havia uma construção, pesada, em ruínas, implacável, com torres quebradas de pedra preta. Nada poderia ser menos semelhante às belas e alegres construções da Fundação de Pesquisa Espacial, as cúpulas espetaculares, as fábricas iluminadas, os gramados e caminhos bem cuidados. Nada poderia ter feito tudo isso parecer tanto pedaços de papel colorido.
– Acredito que aquilo seja o forte – comentou Chifoilisk, com a habitual satisfação em fazer comentários sem tato quando são menos desejados.
– Totalmente em ruínas – disse Pae. – Deve estar vazio.
– Quer parar e dar uma olhada, Shevek? – perguntou Chifoilisk, pronto para bater no vidro do motorista.
– Não – respondeu Shevek.
Tinha visto o que queria ver. Ainda havia um forte em Drio. Não precisava entrar nele e procurar pelos corredores em ruínas a cela onde Odo passara nove anos. Sabia como era uma cela de prisão.
Ergueu os olhos, o rosto ainda severo e impassível, para as paredes escuras e pesadas que agora avultavam quase acima do carro. Estou aqui há muito tempo, dizia o forte, e ainda estou aqui.
Quando voltou aos seus aposentos, após o jantar no Refeitório dos Decanos, sentou-se sozinho ao lado da lareira apagada. Era verão em A-Io, o dia mais longo do ano se aproximava, e, embora passasse das oito horas, ainda não escurecera. O céu além dos arcos das janelas ainda mostrava um tom de cor de luz do dia, um azul puro e delicado. O ar estava ameno, com cheiro de grama cortada e terra molhada. Havia uma luz na capela, do outro lado do bosque, e um leve som de música naquele ar de brisa leve. Não de pássaros cantando, mas música humana. Shevek escutou. Alguém estava praticando as Harmonias Numéricas no harmônio da capela. As harmonias eram tão familiares a Shevek quanto a qualquer urrasti. Odo não tentara renovar as relações básicas da música quando renovou as relações dos homens. Ela sempre respeitara o necessário. Os Colonos de Anarres deixaram as leis do homem para trás, mas levaram consigo as leis da harmonia.
O salão calmo estava sombrio e silencioso, escurecendo. Shevek olhou à sua volta, os arcos duplos perfeitos das janelas, os cantos levemente cintilantes do assoalho, a curva firme e obscura da chaminé de pedra, as paredes almofadadas, admiráveis em sua proporção. Era uma sala linda e humana. Era uma sala muito antiga. Disseram-lhe que aquela Casa dos Decanos fora construída no ano 540, há quatrocentos anos, duzentos e trinta anos antes da Colonização de Anarres. Gerações de estudiosos moraram, trabalharam, conversaram, pensaram, dormiram e morreram naquele cômodo antes mesmo do nascimento de Odo. As Harmonias Numéricas há séculos flutuavam pelo gramado, através das folhas escuras do bosque. Estou aqui há muito tempo, a sala dizia a Shevek, e ainda estou aqui. O que você está fazendo aqui?
Ele não tinha resposta. Não tinha nenhum direito a toda a graça e abundância daquele mundo, conquistadas e mantidas pelo trabalho, pela devoção e pela fidelidade de seu povo. O Paraíso é para os que constroem o Paraíso. Ele não fazia parte daquilo. Era um desviado, de uma raça que renegara o seu passado, a sua história. Os Colonos de Anarres deram as costas ao Velho Mundo e seu passado, optando apenas pelo futuro. Mas, tão certo quanto o futuro se torna passado, o passado se torna futuro. Renegar é não realizar. Os odonianos que deixaram Urras erraram; erraram, em sua coragem desesperada, ao renegar sua história, ao renunciar à possibilidade de retorno. O explorador que não retorna ou não manda de volta suas naves para contar o que viu não é explorador, é só um aventureiro; e seus filhos nascem no exílio.
Ele passara a amar Urras, mas de que adiantava esse amor ardente? Ele não fazia parte daquele mundo, nem do mundo em que nascera.
A solidão, a certeza do isolamento que sentira na primeira hora a bordo da nave Atento ressurgiu nele e afirmou-se como sua verdadeira condição, ignorada, reprimida, mas absoluta.
Estava sozinho ali porque viera de uma sociedade autoexilada. Sempre estivera sozinho em seu próprio mundo porque se exilara de sua sociedade. Os Colonos tinham dado um passo para fora. Ele dera dois. Estava sozinho porque assumira o risco metafísico.
E tinha sido tolo o bastante para achar que seria capaz de unir dois mundos aos quais não pertencia.
O azul do céu noturno do lado de fora das janelas atraiu seus olhos. Além da vaga escuridão da folhagem e da torre da capela, acima da linha escura das colinas, que à noite sempre pareciam menores e mais remotas, uma luz crescia, uma luminosidade ampla e suave. A lua está subindo, pensou ele, com uma grata sensação de familiaridade. Não há ruptura na totalidade do tempo. Tinha visto a lua subir quando era bebê, da janela do domicílio na Campina Vasta, com Palat; sobre as colinas de sua infância; sobre a planície seca da Poeira; sobre os telhados de Abbenay, com Takver a contemplá-la ao seu lado.
Mas não tinha sido essa lua.
As sombras o envolveram, e ele permaneceu sentado, imóvel, enquanto Anarres surgia acima das colinas alienígenas, uma lua cheia, salpicada de cor parda e branca-azulada, bruxuleante. A luz de seu planeta encheu suas mãos vazias.
4
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O sol poente brilhando no rosto de Shevek o acordou, enquanto o dirigível, transpondo os últimos picos das Montanhas Ne Theras, virava para o sul. Ele dormira a maior parte do dia, o terceiro de sua longa jornada. A noite de sua festa de despedida estava a meio mundo para trás. Bocejou, esfregou os olhos e sacudiu a cabeça, tentando livrar os ouvidos do ronco intenso do motor do dirigível; já completamente acordado, percebeu que a jornada estava quase no fim, que se aproximavam de Abbenay. Pressionou o rosto na janela empoeirada e, de fato, lá embaixo, entre os dois cumes baixos e desbotados, havia um grande campo murado, o Porto. Ficou olhando ansioso, tentando ver se havia alguma nave na plataforma. Apesar de desprezível, Urras era outro planeta; ele queria ver a nave de outro planeta, uma viajante do terrível abismo seco, uma coisa feita por mãos alienígenas. Mas não havia nenhuma nave no Porto.
Os cargueiros de Urras só vinham oito vezes por ano e permaneciam ali apenas o tempo suficiente para carregar e descarregar. Não eram visitantes bem-vindos. Na verdade, eram, para alguns anarrestis, uma humilhação perpetuamente renovada.
Traziam óleos fósseis e derivados de petróleo, certas peças delicadas de máquinas e componentes eletrônicos que a manufatura anarresti não estava aparelhada para fornecer, e com frequência uma nova variedade de árvore frutífera ou semente para testes. Levavam para Urras um grande carregamento de mercúrio, cobre, alumínio, urânio, estanho e ouro. Para eles, era um bom negócio. A distribuição das cargas oito vezes por ano era a função mais prestigiada do Conselho dos Governos Mundiais urrasti e o principal evento do mercado de ações mundial de Urras. Na realidade, o Mundo Livre de Anarres era uma colônia mineradora de Urras.
Esse fato provocava rancor. A cada geração, todos os anos, nos debates do CDP em Abbenay, havia protestos veementes: “Por que continuamos a fazer transações de negócios exploradores com esses proprietários que promovem guerras?” E cabeças mais calmas sempre davam a mesma resposta: “Custaria mais caro aos urrastis extrair eles próprios o minério; por isso não nos invadem. Mas, se rompêssemos o acordo comercial, usariam a força”. Era difícil, entretanto, para um povo que nunca pagava nada em dinheiro, entender a psicologia do custo, o argumento do mercado. Sete gerações de paz não haviam trazido confiança.
Portanto, o posto de trabalho chamado Defesa nunca precisava chamar voluntários. O trabalho era tão monótono que não se chamava trabalho em právico, que usava a mesma palavra para trabalho e diversão, mas kleggich, labuta. Trabalhadores da Defesa tripulavam as doze velhas naves interplanetárias, efetuando reparos e mantendo-as em órbita como uma rede de proteção; esquadrinhavam lugares remotos com radar e radiotelescópios; realizavam tarefas enfadonhas no Porto. E, mesmo assim, sempre havia uma fila de espera de voluntários. Por mais pragmática que fosse a moralidade absorvida por um jovem anarresti, a vida transbordava nele, exigindo altruísmo, sacrifício pessoal e espaço para o gesto absoluto. Solidão, vigilância, perigo, naves espaciais: tudo isso oferecia a sedução do romantismo. Era puro romantismo o que mantinha Shevek achatando o nariz contra a janela até o Porto vazio ficar para trás do dirigível, e isso o decepcionou, pois não vira um cargueiro encardido de minério na plataforma de lançamento.
Bocejou de novo, se espreguiçou e olhou para fora, para a frente, para ver o que devia ser visto. O dirigível estava transpondo o último pico baixo das Ne Theras. Diante dele, para o sul a partir dos braços das montanhas, brilhando ao sol da tarde, estendia-se em declive uma grande baía verde.
Ele olhou-a maravilhado, do mesmo modo que seus antepassados a tinham olhado, seis mil anos antes.
No Terceiro Milênio em Urras, os sacerdotes astrônomos de Serdonou e Dhun observaram as estações mudarem o brilho castanho do Outro Mundo e deram nomes místicos às planícies, às cordilheiras e aos mares que refletiam o sol. Uma determinada região que verdejava antes de todas as outras no ano novo lunar recebeu o nome de Ans Hos, o Jardim da Mente: o Éden de Anarres.
Nos milênios seguintes, telescópios comprovaram que os antigos astrônomos estavam certos; e a primeira nave tripulada à Lua pousou ali naquele lugar verde entre as montanhas e o mar.
Mas o Éden de Anarres revelou-se árido, frio e ventoso, e o restante do planeta era pior. A vida ali não evoluíra além de peixes e plantas sem flores. O ar era rarefeito, como o ar de Urras em grandes altitudes. O sol queimava, o vento congelava, a poeira sufocava. Durante duzentos anos após o primeiro pouso, Anarres foi explorado, mapeado, examinado, mas não colonizado. Por que partir para um deserto uivante quando havia espaço de sobra nos vales graciosos de Urras?
Mas suas minas foram exploradas. As eras de autodevastação no Nono e início do Décimo Milênio esvaziaram os veios de Urras; e, à medida que se aperfeiçoaram os foguetes, tornou-se mais barato explorar a Lua do que extrair os metais necessários em áreas profundas ou na água do mar. No ano urrasti de IX-738, fundou-se uma colônia ao pé das Montanhas Ne Theras, onde se extraía mercúrio no velho Ans Hos. Chamavam o lugar de Cidade de Anarres. Não era uma cidade, não havia mulheres. Os homens se alistavam para o trabalho de dois ou três anos como mineiros ou técnicos e depois voltavam para o mundo real.
A Lua e seus mineiros estavam sob a jurisdição do Conselho dos Governos Mundiais, mas, do outro lado da Lua, no hemisfério oriental, a nação Thu ocultava um pequeno segredo: uma base de foguetes e uma colônia de mineiros de ouro, com suas esposas e filhos. Eles realmente viviam na Lua, mas ninguém sabia, exceto o governo de Thu. Foi o colapso desse governo no ano de 771 que levou à proposta, no Conselho dos Governos Mundiais, de doar a Lua à Sociedade Internacional de Odonianos – comprando-os com um mundo antes que eles fatalmente minassem a autoridade da lei e a soberania nacional de Urras. A Cidade de Anarres foi evacuada e, em meio ao tumulto em Thu, os dois últimos foguetes foram enviados às pressas para retirar os mineiros de ouro. Nem todos quiseram voltar. Alguns gostavam do deserto uivante.
Por mais de vinte anos, as doze naves concedidas aos Colonos Odonianos pelo Conselho dos Governos Mundiais iam e vinham entre os dois mundos, até que os milhões de almas que escolheram a nova vida tivessem atravessado o abismo seco. Então o porto foi fechado para imigração, ficando aberto apenas para cargueiros espaciais do Acordo Comercial. Àquela altura, a Cidade de Anarres possuía 100 mil habitantes e recebera um novo nome, Abbenay, que significava, na nova língua da nova sociedade, Mente.
A descentralização fora um elemento essencial nos planos de Odo para a sociedade que ela não viveu para ver fundada. Ela não tinha nenhuma intenção de tentar desurbanizar a civilização. Apesar de sugerir que o limite natural ao tamanho de uma comunidade fosse a dependência de sua própria região imediata para o abastecimento de alimentação básica e energia, ela pretendia que todas as comunidades se conectassem através de redes de comunicação e transporte, para que produtos e ideias chegassem aonde fossem necessários, e a administração das coisas pudesse funcionar com rapidez e facilidade. Nenhuma comunidade deveria ser excluída do câmbio e do intercâmbio. Mas as redes não deveriam ser operadas de cima para baixo. Não haveria um controle central, uma capital, um estabelecimento para perpetuar a engrenagem da burocracia e o impulso de dominação de indivíduos ávidos por se tornarem comandantes, patrões, chefes de Estado.
Seus planos, entretanto, eram baseados no solo generoso de Urras. No árido planeta Anarres, as comunidades tiveram de se espalhar amplamente em busca de recursos, e poucas puderam se tornar autossustentáveis, por mais que reduzissem suas noções do que era necessário para seu sustento. De fato, reduziram drasticamente, mas havia um limite mínimo que se recusaram a ultrapassar; não regressariam ao tribalismo pré-urbano, pré-tecnológico. Sabiam que seu anarquismo era produto de uma civilização altamente evoluída, de uma cultura complexa e diversificada, de uma economia estável e de uma tecnologia altamente industrializada, que poderia manter a alta produção e a rápida distribuição de mercadorias. Por maiores que fossem as distâncias que as separavam, as Colônias permaneceram fiéis ao ideal de organicismo complexo. Primeiro construíram as estradas, depois as casas. Os recursos e produtos especiais de cada região eram permutados continuamente com os de outras, num intricado processo de equilíbrio: o equilíbrio da diversidade característico da vida, da ecologia natural e social.
Mas, como diziam no modo analógico, não se pode ter um sistema nervoso sem pelo menos um gânglio e, de preferência, um cérebro. Era preciso haver um centro. Os computadores que coordenavam a administração das coisas, a divisão de trabalho, a distribuição de mercadorias e as federações centrais da maioria dos sindicatos trabalhistas ficavam em Abbenay, desde o início. E, desde o início, os Colonos estavam cientes de que essa inevitável centralização trazia uma ameaça permanente, a ser combatida pela vigilância permanente.
Ó, criança Anarquia, promessa infinita
infinita cautela
escuto, escuto na noite
junto ao berço, profundo como a noite
se está tudo bem com a criança
Pio Atean, que adotou o nome právico de Tober, escreveu esses versos no ano 14 da Colonização. Os primeiros esforços dos odonianos em expressar sua nova língua e seu novo mundo por meio da poesia foram formais, canhestros, comoventes.
Abbenay, a mente e o centro de Anarres, estava ali, agora, diante do dirigível, na grande planície verde.
Aquele verde brilhante e intenso dos campos era inconfundível: a cor não era nativa de Anarres. Somente ali e nos litorais quentes do Mar Keran floresciam as sementes do Velho Mundo. Nos outros lugares, as plantações básicas eram de holum rasteira e mene-capim pálido.
Quando Shevek tinha 9 anos, seu trabalho escolar vespertino fora, por vários meses, cuidar de plantas ornamentais da comunidade da Campina Vasta – espécies exóticas e delicadas que precisavam de alimento e banhos de sol, como os bebês. Ele auxiliara um velhinho na tarefa tranquila e minuciosa, gostara dele, gostara das plantas, da terra e do trabalho. Quando viu a cor da Planície de Abbenay, lembrou-se do velhinho, do cheiro do adubo de óleo de peixe e da cor dos primeiros brotos nos pequenos galhos despidos, aquele verde claro e vigoroso.
Viu ao longe, entre os campos vívidos, uma longa mancha branca, como sal espalhado, que se dividiu em cubos quando o dirigível se aproximou.
Um grupo de clarões ofuscantes no extremo leste da cidade o fez piscar e ver pontos pretos por um instante: os grandes espelhos parabólicos que forneciam energia solar para as refinarias de Abbenay.
O dirigível pousou num depósito de cargas no extremo sul da cidade, e Shevek saiu pelas ruas da maior cidade do mundo.
Eram ruas largas e limpas. Não havia sombras, pois Abbenay ficava a menos de trinta graus ao norte do equador, e todos os edifícios eram baixos, exceto as torres esparsas e potentes das turbinas eólicas. O sol brilhava num céu firme, escuro, azul-violeta. O ar era claro e limpo, sem fumaça ou umidade. Havia uma vivacidade nas coisas, uma firmeza de formas e ângulos, uma limpidez. Tudo se distinguia em separado, por si mesmo.
Os elementos que constituíam Abbenay eram os mesmos de qualquer outra comunidade odoniana, repetidos muitas vezes: oficinas, fábricas, domicílios, dormitórios, centros de aprendizagem, auditórios, distribuidores, depósitos, refeitórios. Os edifícios maiores eram quase sempre agrupados em volta de praças abertas, conferindo à cidade uma textura celular básica: era uma subcomunidade ou um bairro após o outro. Indústria pesada e fábricas de processamento de alimentos tendiam a se agrupar nos subúrbios da cidade, e o padrão celular se repetia, visto que indústrias similares quase sempre ficavam lado a lado em determinada rua ou praça. O primeiro desses lugares por onde Shevek caminhou tinha uma série de praças, o bairro têxtil, repleto de fábricas processadoras de fibra de holum, tecelagens, fábrica de tinturas, distribuidores de tecidos e roupas; no centro de cada praça havia uma pequena floresta de mastros amarrados de cima a baixo com bandeiras e flâmulas de todas as cores da arte dos tintureiros, orgulhosamente proclamando a indústria local. Os prédios da cidade eram muito parecidos, simples, integralmente feitos de pedra ou de cimento-espuma moldado. Alguns pareceram muito grandes aos olhos de Shevek, mas quase todos tinham apenas um andar, devido à frequência dos terremotos. Pelo mesmo motivo as janelas eram pequenas, feitas de um silício plástico rígido que não estilhaçava. Eram pequenas, mas eram muitas, pois não se fornecia luz artificial desde uma hora antes do amanhecer até uma hora após o pôr do sol. Tampouco se provinha aquecimento quando a temperatura externa ultrapassava doze graus Celsius. Não que faltasse energia em Abbenay, com suas turbinas eólicas e geradores diferenciais de temperatura terrestre utilizados no aquecimento, mas o princípio da economia orgânica era tão essencial ao funcionamento da sociedade que afetava profundamente a ética e a estética. “Excesso é excremento”, escreveu Odo na Analogia. “Excremento retido no corpo é veneno.”
Abbenay era livre de veneno: uma cidade simples, luminosa, de cores claras e firmes, de ar puro. Era tranquila. Podia ser vista por inteiro, tão evidente quanto sal espalhado.
Nada se escondia.
As praças, as ruas austeras, os edifícios baixos, as áreas de trabalho sem muros estavam carregados de vitalidade e atividade. Enquanto caminhava, Shevek tinha a constante percepção das outras pessoas andando, trabalhando, falando, rostos passando, vozes chamando, tagarelando, cantando, pessoas vivas, pessoas fazendo coisas, pessoas em ação. Oficinas e fábricas eram voltadas para as praças ou para pátios abertos, e as portas ficaram abertas. Ele passou por uma vidraria, e o operário pegou com uma concha uma grande bolha de vidro derretido com a facilidade de um cozinheiro que serve uma sopa. Ao lado da vidraria havia um pátio movimentado onde moldavam cimento-espuma para construção. A chefe da equipe, uma mulher corpulenta com o avental branco de pó, supervisionava o despejamento do cimento no molde com uma sonora e admirável torrente de palavras. Em seguida, havia uma pequena fábrica de arame, uma lavanderia do bairro, um luthier que fazia e consertava instrumentos musicais, o distribuidor de pequenos produtos do bairro, um teatro, uma cerâmica. As atividades exercidas em cada lugar eram fascinantes, a maioria feita em espaço aberto, à vista de todos. Havia crianças em volta, algumas envolvidas no trabalho com os adultos, algumas no chão fazendo brinquedos de barro, outras brincando na rua, uma empoleirada no telhado do centro de aprendizagem com o nariz afundado num livro. O fabricante de arame tinha decorado a fachada da oficina com desenhos de trepadeiras feitos em arame pintado, alegres e enfeitados. O jato de vapor e de vozes saindo pelas portas escancaradas da lavanderia era impressionante. Nenhuma porta estava trancada, poucas fechadas. Não havia disfarces, nem propaganda. Estava tudo ali, todo o trabalho, toda a vida da cidade, aberta aos olhos e às mãos. E de vez em quando, pela Rua do Depósito, vinha uma coisa em desabalada carreira, tocando um sino, um veículo abarrotado de gente, com gente pendurada por todo o lado de fora, velhinhas xingando com entusiasmo quando ele não diminuía a velocidade para que elas pudessem descer em seus pontos, um garotinho num triciclo caseiro perseguia o veículo loucamente, faíscas elétricas chuviscavam azuis dos fios acima, nos cruzamentos: como se aquela vitalidade tranquila e intensa das ruas de vez em quando atingisse o ponto de descarga e soltasse um estampido, um estalo azul e o cheiro de ozônio. Eram os ônibus de Abbenay e, quando passavam, dava vontade de aplaudir e aclamar.
A Rua do Depósito terminava num lugar amplo e arejado, onde cinco outras ruas desembocavam, formando um parque triangular de grama e árvores. A maioria dos parques em Anarres eram playgrounds de terra e areia, com um punhado de árvores e arbustos de holuns. Aquele era diferente. Shevek atravessou o asfalto sem tráfego e entrou no parque, atraído por ele, pois já o tinha visto várias vezes em fotografias, e porque queria ver de perto árvores alienígenas, árvores urrastis, para experimentar o verde daquelas folhas numerosas. O sol estava se pondo, o céu estava aberto e claro, escurecendo a cor púrpura do zênite, e o escuro do espaço se revelava através da fina atmosfera. Ele entrou, sob as árvores, com cautela e cuidado. Tantas folhas não seriam um desperdício? A árvore holum lidava muito bem com seus espinhos e folhas, e não havia excesso deles. Aquela folhagem extravagante não seria mero excesso, excremento? Tais árvores não conseguiriam florescer sem um solo rico, água constante e muito tratamento. Ele desaprovava aquela abundância, aquele desperdício. Caminhou por baixo, por entre as folhas. Sentiu a maciez da grama alienígena sob os pés. Era como andar sobre carne viva. Voltou para o caminho, assustado. Os membros escuros das árvores se estendiam sobre sua cabeça, apertando as mãos largas e verdes acima dele. Ele foi tomado por um assombro. Sabia que estava sendo abençoado, embora não tivesse pedido a bênção.
Um pouco adiante, no caminho que escurecia, uma pessoa lia sentada num banco de pedra.
Shevek prosseguiu lentamente. Aproximou-se do banco e ficou em pé olhando a figura sentada com a cabeça inclinada sobre o livro, no verde-dourado do lusco-fusco sob as árvores. Era uma mulher de 50 ou 60 anos, vestida de modo estranho, o cabelo preso para trás. A mão esquerda no queixo quase escondia a boca austera, a mão direita segurava os papéis sobre os joelhos. Eram pesados, aqueles papéis; a mão fria sobre eles era pesada. A luz morria rápido, mas ela não ergueu os olhos nenhuma vez. Continuava a ler as provas de O Organismo Social.
Shevek olhou para Odo por um instante e sentou-se ao lado dela no banco.
Ele desconhecia totalmente o conceito de status, e havia lugar de sobra no banco. Foi movido por simples impulso de companheirismo.
Olhou para o perfil forte e triste, para as mãos, as mãos de uma mulher idosa. Ergueu os olhos para os galhos ensombreados. Pela primeira vez na vida compreendeu que Odo, cujo rosto ele conhecia desde a infância, cujas ideias eram centrais e constantes em sua mente e na de todos que ele conhecia, que Odo jamais tinha posto os pés em Anarres: que ela tinha vivido e morrido, e estava enterrada, à sombra de árvores de folhas verdes, em cidades inimagináveis, entre pessoas falando línguas desconhecidas, num outro mundo. Odo era uma alienígena: uma exilada.
O jovem sentou-se ao lado da estátua no crepúsculo, ele quase tão quieto quanto ela.
Por fim, percebendo que escurecia, ele se levantou e voltou para as ruas, pedindo informações de como chegar ao Instituto Central de Ciências.
Não era longe; chegou lá não muito depois de as luzes se acenderem. Uma secretária ou vigilante estava na entrada, lendo. Teve de bater na porta aberta para chamar a atenção dela.
– Shevek – ele disse. Era costume iniciar a conversa com um estranho oferecendo o nome, como uma espécie de alça para o outro segurar. Não havia muitas outras alças a oferecer. Não havia nenhuma hierarquia, nenhum termo hierárquico, nenhuma forma respeitosa convencional de discurso.
– Kokvan – a mulher respondeu. – Não era para você ter chegado ontem?
– Mudaram a agenda do dirigível-cargueiro. Há alguma cama vaga nos dormitórios?
– O número 46 está vago. Depois do pátio, o prédio à esquerda. Há um bilhete de Sabul aqui. Diz para você ligar para ele de manhã no gabinete de física.
– Obrigado! – disse Shevek, e cruzou a passos largos o amplo pátio pavimentado, balançando na mão a bagagem: um casaco de inverno e um par de botas sobressalente. As luzes estavam acesas nos cômodos em toda a volta do quadrilátero. Havia um murmúrio, uma presença de pessoas na tranquilidade. Algo movia o ar claro e penetrante da noite na cidade, uma sensação de drama, de promessa.
O horário do jantar ainda não terminara, e ele fez um pequeno desvio para o refeitório do Instituto para ver se havia comida sobrando para um recém-chegado. Descobriu que seu nome já estava na lista regular e achou a comida excelente. Havia até sobremesa, fruta cozida em conserva. Shevek adorava doces e, como foi um dos últimos a jantar e havia frutas de sobra, repetiu a sobremesa. Comia sozinho a uma pequena mesa. Às mesas maiores perto dele, grupos de jovens conversavam diante de pratos vazios; entreouviu conversas sobre a reação do argônio em baixas temperaturas, a reação de um professor de química num colóquio, as supostas curvaturas do tempo. Alguns o olharam de relance, não foram falar com ele, como pessoas de uma pequena comunidade o fariam; o olhar deles não era hostil, talvez um pouco desafiador.
Encontrou o Quarto 46 num longo corredor de portas fechadas no domicílio. Evidentemente, eram todos quartos individuais, e ele se perguntou por que a secretária o enviara para lá. Desde os 2 anos de idade, sempre tinha morado em dormitórios, quartos com quatro a dez camas. Bateu na porta do 46. Silêncio. Abriu a porta. O cômodo era um pequeno quarto individual, vazio, vagamente iluminado pela luz do corredor. Acendeu a lâmpada. Duas cadeiras, uma mesa, uma régua de cálculo bastante usada, alguns livros e, cuidadosamente dobrado sobre a cama, um cobertor cor de laranja tecido à mão. Alguém morava ali, a secretária tinha cometido um erro. Fechou a porta. Abriu-a novamente e apagou a lâmpada. Na mesa sob a lâmpada havia um bilhete rabiscado num pedaço de papel rasgado: “Shevek, Dep. Física. Manhã 2-4-1-154. Sabul”.
Pôs o casaco numa das cadeiras, as botas no chão. Ficou parado um instante e leu os títulos dos livros, referências habituais de física e matemática, encadernados em verde, o Círculo da Vida estampado nas capas. Puxou a cortina do armário com cuidado. Atravessou o quarto até a porta: quatro passos. Ficou ali parado, hesitante, por mais um minuto, e então, pela primeira vez na vida, fechou a porta de seu próprio quarto.
Sabul era um homem de 40 anos, pequeno, atarracado e desleixado. Seu pelo facial era mais escuro e mais áspero que o normal e engrossava numa barba regular concentrada no queixo. Usava uma pesada túnica de inverno que, pela aparência, parecia estar sendo usada desde o inverno passado; os punhos estavam pretos de sujeira. Ele tinha modos bruscos e de má vontade.
– Você vai ter que aprender iótico – resmungou para Shevek.
– Aprender iótico?
– Eu disse aprender iótico.
– Para quê?
– Para poder ler os físicos urrastis! Atro, To, Baisk, esses homens. Ninguém os traduziu para právico, e é provável que ninguém traduza. Seis pessoas, talvez, em Anarres são capazes de entendê-los. Em qualquer língua.
– Como posso aprender iótico?
– Com uma gramática e um dicionário!
Shevek manteve-se firme.
– Onde posso encontrá-los?
– Aqui – resmungou Sabul. Revirou as prateleiras desarrumadas entre os livrinhos de capa verde. Seus movimentos eram bruscos e impacientes. Localizou dois volumes grossos e sem capa numa prateleira mais baixa e os jogou na mesa. – Me avise quando tiver competência para ler Atro em iótico. Não há nada que eu possa fazer com você até lá.
– Que tipo de matemática os urrastis usam?
– Nada que você não consiga entender.
– Alguém aqui está trabalhando em cronotopologia?
– Sim, Turet. Pode consultá-lo. Não precisa frequentar as aulas dele.
– Estava planejando assistir às aulas de Gvarab.
– Para quê?
– Pelo trabalho dela sobre frequência e ciclo...
Sabul sentou-se e tornou a se levantar. Estava insuportavelmente inquieto, inquieto, mas rígido, como lima desgastando madeira.
– Não perca tempo. Você está muito à frente daquela velha em Teoria Sequencial, e as outras ideias que ela apregoa são lixo.
– Estou interessado nos princípios da Simultaneidade.
– Simultaneidade! Que tipo de porcaria exploradora a Mitis andou metendo na sua cabeça? – O físico olhou-o com fúria, as veias das têmporas saltando sob o cabelo curto e grosso.
– Eu mesmo organizei um grupo para o curso.
– Cresça. Cresça. Já é hora de crescer. Você está aqui agora. Trabalhamos com física aqui, não religião. Esqueça o misticismo e cresça. Em quanto tempo pode aprender iótico?
– Levei vários anos para aprender právico – respondeu Shevek. A ironia sutil passou completamente despercebida a Sabul.
– Eu aprendi em dez décades. O suficiente para ler a Introdução de To. Ora, que diabos, você precisa de um texto para estudar. Pode ser esse mesmo. Aqui. Espere. – Remexeu uma gaveta abarrotada até encontrar um livro, um livro de aparência esquisita, encadernado em azul, sem o Círculo da Vida na capa. O título estava estampado em letras douradas e parecia dizer Poilea Afio-ite, que não fazia nenhum sentido, e o formato de algumas letras era desconhecido. Shevek olhou o livro, apanhou-o da mão de Sabul, mas não o abriu. Estava segurando algo que desejara ver, o artefato alienígena, a mensagem de outro mundo.
Lembrou-se do livro que Palat lhe mostrara, o livro dos números.
– Volte quando conseguir ler isso – resmungou Sabul.
Shevek virou-se para ir embora. Sabul elevou o tom do resmungo:
– Guarde esses livros com você! Eles não são para consumo geral.
O jovem parou, virou-se e disse após um instante, em sua voz calma, modesta:
– Não compreendo.
– Não deixe mais ninguém ler!
Shevek não respondeu.
Sabul tornou a se levantar e se aproximou dele.
– Escute, agora você é membro do Instituto Central de Ciências, um síndico do Departamento de Física, trabalhando comigo, Sabul. Está entendendo? Privilégio é responsabilidade. Correto?
– Vou adquirir conhecimento que não devo compartilhar – Shevek disse após uma breve pausa, dizendo a frase como se fosse uma proposição em lógica.
– Se encontrasse um pacote de cápsulas explosivas na rua, iria “compartilhá-las” com todas as crianças que passassem? Esses livros são explosivos. Agora está me entendendo?
– Sim.
– Muito bem – Sabul afastou-se, resmungando com o que parecia ser uma raiva endêmica, não específica. Shevek saiu, carregando a dinamite com cuidado, com ávida curiosidade e repulsa.
Começou a aprender iótico. Trabalhava sozinho no Quarto 46, por causa do aviso de Sabul, e porque lhe era natural trabalhar sozinho.
Desde muito jovem sabia que, em certos aspectos, ele era diferente de todos que conhecia. Para uma criança, a consciência dessa diferença é muito dolorosa porque, não tendo realizado nada ainda e sendo incapaz de realizar alguma coisa, não sabe justificá-la. A presença confiável e afetuosa de adultos que também são, de sua própria maneira, diferentes, é o único conforto que uma criança assim pode ter; e Shevek não a tivera. Seu pai de fato tinha sido totalmente confiável e afetuoso. O que Shevek fosse ou fizesse, Palat aprovava e era leal. Mas Palat não tivera essa maldição da diferença. Ele era como os outros, como todos os outros que aceitavam a comunidade de bom grado. Amava Shevek, mas não podia lhe mostrar o significado da liberdade, aquele reconhecimento da solidão de cada pessoa que, em si, já transcende a solidão.
Shevek estava, portanto, acostumado ao isolamento interior, atenuado por todos os contatos e diálogos cotidianos e fortuitos da vida comunitária e pela companhia de alguns amigos. Ali em Abbenay ele não tinha nenhum amigo e, como não tinha sido jogado num dormitório, não fez nenhuma amizade. Aos 20 anos, tinha consciência demais de sua mente e caráter para ser sociável; era introvertido e reservado; e seus colegas estudantes, percebendo que esse afastamento era real, não tentavam se aproximar dele com frequência.
A privacidade do quarto tornou-se preciosa para ele. Saboreava sua total independência. Só saía do quarto para o café da manhã e o jantar no refeitório, e para uma rápida caminhada diária pelas ruas da cidade, para satisfazer os músculos que sempre estiveram acostumados ao exercício; depois, voltava ao Quarto 46 e à gramática de iótico. A cada uma ou duas décades, era chamado para o revezamento da “dezena” de trabalho comunitário, mas as pessoas com quem trabalhava eram desconhecidas, não colegas próximos como era comum acontecer em comunidades pequenas; assim, nesses dez dias de trabalho braçal não havia interrupção de seu isolamento psicológico, nem do seu progresso em iótico.
A gramática em si, por ser complexa, ilógica e padronizada, dava-lhe prazer. O aprendizado foi rápido depois que ele construiu o vocabulário básico, pois conhecia o que estava lendo; conhecia a área e os termos e, mesmo quando emperrava, a intuição ou uma equação matemática lhe mostravam aonde ir. Nem sempre eram lugares em que estivera. A Introdução à Física Temporal de To não era nenhum manual para iniciantes. Quando enfim conseguiu chegar à metade do livro, Shevek não estava mais lendo iótico, estava lendo física; e entendeu por que Sabul o fez ler os físicos urrastis antes de qualquer outra coisa. Eles estavam muito à frente de tudo o que se fizera em Anarres por vinte ou trinta anos. As ideias mais brilhantes nos próprios trabalhos de Sabul sobre Sequência eram, na verdade, traduções inconfessas do iótico.
Mergulhou nos outros livros que Sabul lhe concedia, os principais trabalhos dos físicos urrastis contemporâneos. Sua vida tornava-se cada vez mais reclusa. Não era ativo no sindicato estudantil e não frequentava as reuniões de nenhum outro sindicato ou federação, exceto a letárgica Federação de Física. As reuniões desses grupos, veículos tanto da ação social quanto da sociabilidade, eram a estrutura da vida em pequenas comunidades, mas ali na cidade pareciam muito menos importantes. Uma pessoa só não era indispensável a eles; havia sempre outros prontos a administrar as coisas, e de modo satisfatório. Com exceção dos serviços da dezena e das habituais tarefas de zeladoria nos laboratórios e em seu domicílio, Shevek passava o tempo todo sozinho. Muitas vezes deixava de fazer exercícios e, de vez em quando, refeições. Entretanto, nunca perdia o único curso que fazia, as palestras de Gvarab sobre Frequência e Ciclo.
Gvarab já era velha e com frequência divagava e balbuciava. O comparecimento às suas aulas era reduzido e irregular. Ela logo percebeu que o rapaz magro de orelhas grandes era seu único ouvinte assíduo. Começou a dar aula para ele. Os olhos claros, firmes e inteligentes encontravam os dela, estabilizando-a, despertando-a, e ela reluzia, recobrava a visão perdida. Voava alto, e os outros alunos a olhavam confusos ou perplexos, até assustados, se tivessem imaginação suficiente para ficarem assustados. Gvarab via um universo muito mais amplo do que a maioria das pessoas era capaz de ver, e isso as fazia pestanejar. O rapaz de olhos claros a olhava com firmeza. No rosto dele, via a sua alegria. O que ela oferecia, o que oferecera a vida inteira, o que ninguém jamais compartilhara com ela, ele aceitava, ele compartilhava. Ele era seu irmão, separado pelo abismo de cinquenta anos, e sua redenção.
Quando se encontravam nos gabinetes de física ou no refeitório, às vezes começavam imediatamente a falar de física, mas noutras vezes a energia de Gvarab era insuficiente para isso, e então pouco se falavam, pois a mulher idosa era tão tímida quanto o jovem.
– Você come pouco – ela dizia.
Ele sorria, e suas orelhas coravam. Nenhum dos dois sabia o que falar.
Após meio ano no Instituto, Shevek entregou a Sabul um estudo de três páginas intitulado “Uma Crítica à Hipótese de Sequência Infinita de Atro”. Sabuk devolveu-lhe o estudo após uma décade, resmungando:
– Traduza para iótico.
– Em princípio, escrevi quase tudo em iótico – respondeu Shevek –, já que usei a terminologia de Atro. Vou copiar o original. Traduzir para quê?
– Para quê? Para que aquele maldito explorador do Atro possa ler! Vai chegar uma nave no quinto dia da próxima décade.
– Uma nave?
– Um cargueiro de Urras!
Assim, Shevek descobriu que os dois mundos separados não trocavam apenas petróleo e mercúrio, e nem apenas livros, como os que estivera lendo, mas também cartas. Cartas! Cartas para proprietários, para súditos de governos fundados na iniquidade do poder, para indivíduos inevitavelmente explorados por alguém ou exploradores de outrem, pois tinham consentido em ser elementos do Estado-Máquina. Essas pessoas realmente trocavam ideias com gente livre de maneira pacífica e voluntária? Poderiam mesmo admitir a igualdade e participar de uma solidariedade intelectual, ou estavam apenas tentando possuir, dominar, afirmar seu poder? A ideia de trocar cartas com proprietários o alarmava, mas seria interessante descobrir...
Tantas descobertas como essa lhe tinham sido impostas durante seu primeiro meio ano em Abbenay que ele teve de reconhecer que tinha sido – e é possível que ainda fosse – muito ingênuo: uma admissão nada fácil para um jovem inteligente.
A primeira, e ainda a menos aceitável, dessas descobertas foi a de que ele tinha de aprender iótico, mas guardar o conhecimento para si: uma situação tão nova e moralmente tão confusa que ainda não conseguira assimilar. É claro que ele não prejudicava ninguém ao não compartilhar seu conhecimento com outras pessoas. Por outro lado, que mal poderia haver se soubessem que ele sabia iótico e que poderiam aprender também? Com certeza a liberdade baseia-se mais na transparência do que no sigilo, e a liberdade sempre vale o risco. Mas ele não conseguia entender qual era o risco. Ocorreu-lhe uma vez que Sabul queria manter a nova física urrasti particular – possuí-la, como uma propriedade, uma fonte de poder sobre seus colegas de Anarres. Mas essa ideia era tão contrária aos hábitos mentais de Shevek que ele teve dificuldade de esclarecê-la em sua mente, e quando conseguiu, repudiou-a de imediato, com desprezo, como uma ideia repulsiva.
Depois foi a vez do quarto individual, mais um tormento moral. Quando criança, se uma delas dormisse sozinha num quarto assim significava que tinha aborrecido tanto os outros do dormitório que não a toleravam mais; ela tinha egoizado. Solidão era sinônimo de desgraça. Em termos adultos, a principal referência para quartos individuais era sexual. Todo domicílio tinha alguns quartos individuais, e um casal que quisesse copular usava um deles por uma noite, uma décade ou por quanto tempo desejasse. Um casal em parceria ocupava um quarto de casal; numa cidade pequena onde não houvesse quartos de casal disponíveis, muitas vezes construíam um na extremidade de um domicílio; desse modo, edifícios compridos, baixos e irregulares poderiam ser construídos quarto a quarto e eram chamados de “vagão dos parceiros”. Além da união sexual, não havia motivo para não se dormir num dormitório. Podia-se escolher um pequeno ou um grande e, quando não se gostava dos colegas, mudava-se para outro dormitório. Todos tinham oficina, laboratório, estúdio, celeiro ou escritório de que precisavam para desenvolver seu trabalho; os banheiros podiam ser privados ou públicos; a privacidade sexual era livremente acessível e socialmente esperada; além disso, a privacidade não era funcional. Era excesso, desperdício. A economia de Anarres não suportaria a construção, a manutenção, o aquecimento e a iluminação de casas e apartamentos individuais. Uma pessoa cuja natureza fosse genuinamente não sociável tinha de se afastar da sociedade e cuidar-se sozinha. Tinha total liberdade para isso. Podia construir uma casa onde quisesse (mas se estragasse uma bela paisagem ou um pedaço de terra fértil, poderia sofrer forte pressão dos vizinhos para se mudar). Havia um bom número de solitários e eremitas nos limites das comunidades anarrestis mais antigas, fingindo não serem membros de uma espécie social. Mas para aqueles que aceitavam o privilégio e a obrigação da solidariedade humana, privacidade era um valor apenas onde servisse a uma função.
A primeira reação de Shevek ao ser colocado num quarto particular, portanto, foi um misto de desaprovação e vergonha. Por que o enfiaram ali? Logo descobriu por quê. Era o tipo de lugar ideal para o seu tipo de trabalho. Se ideias surgissem à meia-noite, podia ligar a luz e anotá-las; se surgissem na alvorada, não eram expulsas de sua cabeça pela conversa e agitação de quatro ou cinco colegas de quarto se levantando; se não surgisse absolutamente nenhuma ideia, podia ficar dias inteiros sentado à mesa, olhando pela janela, sem ninguém ali para perguntar por que ele estava ficando negligente. A privacidade, na verdade, era tão desejável para a física quanto para o sexo. Mas, ainda assim, era necessária?
Sempre havia sobremesa no refeitório do Instituto, no jantar. Shevek gostava muito e, quando sobrava, ele repetia. E sua consciência, sua consciência orgânico-social, tinha indigestão. Pois todo mundo, em todos os refeitórios, de Abbenay a Confins, não recebia a mesma coisa, as partilhas não eram iguais? Sempre lhe disseram isso, e ele sempre acreditou. Claro que havia variações locais: especialidades regionais, desabastecimento, excedentes, produtos substitutos em situações como os Acampamentos de Projetos, maus cozinheiros, bons cozinheiros – de fato, variações intermináveis dentro de uma estrutura imutável. Mas nenhum cozinheiro era tão talentoso a ponto de preparar sobremesas sem os ingredientes necessários. A maioria dos refeitórios servia sobremesa uma ou duas vezes por décade. Ali serviam todos os dias. Por quê? Seriam os membros do Instituto Central de Ciências melhores do que as outras pessoas?
Shevek não fazia essas perguntas a mais ninguém.
A consciência social, a opinião alheia era a força moral mais poderosa a motivar o comportamento da maioria dos anarrestis, mas era um pouco menos poderosa nele do que na maioria. Seus problemas costumavam tanto ser de um tipo que os outros não entendiam que ele se habituou a desvendá-los sozinho, em silêncio. Assim, fazia o mesmo em relação a esses problemas específicos, que eram muito mais difíceis para ele, em certos aspectos, do que os de Física Temporal. Não pediu a opinião de ninguém. Parou de comer a sobremesa no refeitório.
Entretanto, não se mudou para um dormitório. Pôs na balança o desconforto moral e as vantagens práticas, e estas tinham mais peso. Trabalhava melhor no quarto individual. O trabalho valia a pena, e ele o fazia bem. Era um trabalho crucialmente funcional para a sua sociedade. A responsabilidade justificava o privilégio.
Então, trabalhou.
Perdeu peso; caminhava leve pela terra. Falta de trabalho braçal, falta de variedade de ocupações, falta de relações sociais e sexuais, nada disso lhe parecia falta, mas liberdade. Era um homem livre; podia fazer o que quisesse, quando quisesse e por quanto tempo quisesse. E fazia. Trabalhava. Trabalhava/se divertia.
Rascunhava anotações para uma série de hipóteses que levavam a uma teoria coerente da Simultaneidade. Mas isso começou a parecer um objetivo menor; havia um muito maior a alcançar, uma teoria unificada do Tempo, se ele conseguisse atingi-lo. Sentia-se num quarto trancado no meio de um campo aberto: estava tudo à sua volta, se conseguisse encontrar a saída, o caminho livre. A intuição tornou-se uma obsessão. Durante aquele outono e inverno, foi perdendo cada vez mais o hábito de dormir. Duas horas de sono à noite e duas durante o dia lhe bastavam, e esses cochilos não eram o tipo de sono profundo que sempre tivera, mas quase um despertar em outro nível, tão cheio de sonhos. Eram sonhos vívidos e faziam parte de seu trabalho. Viu o tempo recuar para si mesmo, um rio fluindo para cima, de volta à nascente. Segurou a contemporaneidade de dois momentos em suas mãos esquerda e direita; ao separá-las, sorriu ao perceber que os momentos se separavam como bolhas de sabão que se dividem. Levantou-se e rabiscou, sem de fato acordar, a fórmula matemática que lhe vinha escapando há dias. Viu o espaço encolher diante dele como as paredes de uma esfera caindo sobre um vácuo central, se fechando, se fechando, e ele acordou com um grito de socorro preso na garganta, lutando em silêncio para fugir da consciência de seu próprio vazio exterior.
Numa tarde fria de inverno, quando ia da biblioteca ao seu quarto, passou pelo gabinete de física para ver se havia alguma carta na caixa de correspondência. Não tinha motivo para esperar uma, já que nunca escrevera aos seus amigos do Instituto Regional do Poente Norte; mas não se sentia bem há dois dias; tinha refutado algumas de suas próprias hipóteses mais belas, regredindo, após meio ano de trabalho árduo, ao mesmo ponto onde começara, o modelo fásico era simplesmente vago demais para ser útil, a garganta lhe doía, ele desejava que houvesse uma carta de alguém conhecido, ou talvez alguém do gabinete de física a quem dizer olá, pelo menos. Mas não havia ninguém, exceto Sabul.
– Olhe isso aqui, Shevek.
Olhou para o livro que o homem mais velho segurava: um livro fino, encadernado em verde, o Círculo da Vida na capa. Pegou-o e leu o título: “Uma Crítica à Hipótese de Sequência Infinita de Atro”. Era seu estudo, a admissão e defesa de Atro, e sua réplica. Tudo tinha sido traduzido ou retraduzido para právico e impresso pelas gráficas do CPD em Abbenay. Havia dois nomes de autores: Sabul, Shevek.
Sabul esticou o pescoço sobre o exemplar que Shevek segurava, com um olhar de satisfação perversa. Seu resmungo tornou-se um cacarejo gutural.
– Acabamos com Atro! Acabamos com ele, aquele maldito explorador! Agora vamos ver se eles vão falar em “imprecisão pueril”! – Sabul havia nutrido um ressentimento de dez anos contra a Revista de Física da Universidade de Ieu Eun, que se referira ao seu trabalho teórico como “mutilado pelo provincianismo e pela imprecisão pueril com que o dogma odoniano infesta todas as áreas do pensamento”. – Eles vão ver quem é provinciano agora! – ele disse, com um meio sorriso. Conhecendo-o há quase um ano, Shevek não se lembrava de tê-lo visto sorrir.
Shevek sentou-se do outro lado da sala, para isso tendo de afastar uma pilha de papéis de um banco; é claro que o gabinete de física era comunitário, mas Sabul mantinha a sala abarrotada de material que estava usando, e por isso parecia nunca haver espaço para mais ninguém. Shevek baixou os olhos para o livro que ainda segurava, depois olhou pela janela. Sentia-se e parecia muito doente. Também parecia tenso; mas com Sabul ele nunca fora tímido ou desajeitado, como costumava ser com pessoas que teria gostado de conhecer.
– Não sabia que você estava traduzindo isso – disse.
– Traduzi e editei. Poli alguns pontos mais ásperos, preenchi transições que você tinha omitido, e por aí. Duas décades de trabalho. Você deveria se orgulhar, suas ideias formam, em grande parte, os princípios fundamentais de um livro acabado.
O livro consistia inteiramente das ideias de Shevek e Atro.
– Sim – disse Shevek. Baixou os olhos para as próprias mãos. Em seguida, acrescentou: – Gostaria de publicar o artigo que escrevi este trimestre sobre Reversibilidade. Deve ser enviado a Atro. Iria interessá-lo. Ele ainda está obcecado com a causalidade.
– Publicar? Onde?
– Em iótico, quero dizer... em Urras. Envie-o para Atro, como este último, e ele vai publicá-lo numa das revistas de lá.
– Você não pode lhes enviar um trabalho que não foi publicado aqui.
– Mas é o que fizemos com este. Tudo, exceto minha réplica, saiu na Revista de Ieu Eun antes de sair aqui.
– Não pude evitar isso, mas por que você acha que corri para imprimir este livro? Você não pensa que todo mundo no CPD aprova nossa troca de ideias com Urras, pensa? A Defesa insiste para que cada palavra que sai daqui naqueles cargueiros passe antes por um perito aprovado pelo CPD. Além do mais, você acha que todos os físicos provincianos que não têm acesso a esse canal com Urras não se ressentem conosco? Acha que não ficam com inveja? Há pessoas só esperando, esperando que a gente dê um passo em falso. E se um dia nos pegarem, perderemos o malote nos cargueiros urrastis. Está entendendo a situação agora?
– Como o Instituto conseguiu aquele malote, afinal?
– Com a eleição de Pegvur para o CPD, dez anos atrás – Pegvur tinha sido um físico de razoável importância. – Tenho pisado em ovos para mantê-lo desde então. Entende?
Shevek assentiu com um movimento da cabeça.
– De todo modo, Atro não vai querer ler aquela coisa que você escreveu. Dei uma lida naquele artigo e lhe devolvi décades atrás. Quando você vai parar de perder tempo com essas teorias reacionárias às quais Gvarab se agarra? Você não vê que ela perdeu a vida inteira nelas? Se você insistir nisso, vai se expor ao ridículo. O que, é claro, é seu direito inalienável. Mas não vai expor a mim ao ridículo.
– E se eu submeter o artigo para publicação aqui, em právico, então?
– Perda de tempo.
Shevek engoliu isso com uma leve inclinação da cabeça. Levantou-se, magricela e anguloso, e ficou em pé por um instante, absorto em seus pensamentos. A luz do inverno pousou destoante em seu cabelo, que ele trazia preso para trás numa trança, e em seu rosto sereno. Foi até a mesa e pegou um exemplar da pilha de livros novos.
– Gostaria de enviar um para Mitis – disse.
– Pegue quantos quiser. Escute. Se você acha que sabe mais o que está fazendo do que eu, submeta aquele artigo à Editora. Você não precisa de permissão! Isto aqui não é nenhuma hierarquia, você sabe! Não posso impedi-lo. Tudo o que posso fazer é aconselhá-lo.
– Você é o consultor do Sindicato da Editora para os manuscritos de física – disse Shevek. – Pensei que pouparia o tempo de todo mundo pedindo a você agora.
Sua delicadeza era intransigente; por não competir pela dominância, ele era indômito.
– Poupar tempo, o que quer dizer com isso? – Sabul resmungou, mas Sabul era também odoniano: contorceu-se como se atormentado fisicamente pela própria hipocrisia, afastou-se de Shevek, aproximou-se de novo e disse, com malevolência, a voz grossa de raiva: – Vá em frente! Submeta a maldita coisa! Vou me declarar incompetente para apreciá-la. Vou falar para eles consultarem Gvarab. Ela é a perita em Simultaneidade, não eu. Aquela mística gagá. O universo como uma gigantesca corda de harpa, oscilando dentro e fora da existência! Aliás, que nota ela toca? Passagens das Harmonias Numéricas, suponho? O fato é que não tenho competência, isto é, não tenho vontade de dar meu parecer ao CPD ou à Editora sobre esse excremento intelectual!
– O trabalho que fiz para você – disse Shevek – faz parte do trabalho que fiz seguindo as ideias de Gvarab sobre Simultaneidade. Se quiser um, vai ter de apoiar o outro. A semente cresce melhor na merda, como se diz no Poente Norte.
Ficou parado por um instante e, sem obter uma resposta verbal de Sabul, despediu-se e saiu.
Sabia que vencera uma batalha, e fácil, sem violência aparente. Mas houve violência.
Como Mitis previra, ele era “o homem de Sabul”. Há anos Sabul deixara de ser um físico atuante; sua grande reputação foi construída sobre expropriações de ideias alheias. O papel de Shevek era pensar para Sabul receber os créditos.
Uma situação eticamente intolerável, é óbvio, que Shevek iria denunciar e abandonar. Só que ele não o fez. Precisava de Sabul. Queria publicar o que escreveu e enviar aos homens que poderiam entendê-lo, os físicos urrastis; precisava das ideias deles, de suas críticas, de suas colaborações.
Assim tinham negociado, ele e Sabul, negociado como exploradores. Não fora uma batalha, mas uma venda. Eu lhe dou isto e você me dá aquilo. Recuse-me e eu o recusarei. Vendido? Vendido! A carreira de Shevek, como a existência de sua sociedade, dependia da continuidade de um fundamental e não admitido contrato de exploração. Não uma relação de ajuda mútua e solidariedade, mas uma relação exploratória; não orgânica, mas mecânica. Poderia a função verdadeira surgir de uma base disfuncional?
Porém, tudo o que quero é terminar um trabalho, Shevek alegava em sua mente, enquanto atravessava a alameda em direção ao quadrilátero de domicílios na tarde cinza e ventosa. É meu dever, é minha alegria, é o objetivo de toda a minha vida. O homem com quem tenho de trabalhar é competitivo e dominador, um explorador, mas não posso mudar isso; se eu quiser trabalhar, vou ter de trabalhar com ele.
Pensou no aviso de Mitis. Pensou no Instituto do Poente Norte e na festa da noite anterior à sua partida. Tudo parecia tão distante agora, e de uma tranquilidade e segurança tão infantis que ele quase chorou de saudade. Quando passou sob o pórtico do Prédio das Ciências da Vida, uma moça que caminhava por ali olhou de viés para ele, e ele achou que ela se parecia com aquela moça – qual era o nome dela? –, aquela de cabelo curto, que tinha comido todos aqueles bolos fritos na noite da festa. Parou e se virou, mas a moça dobrou a esquina e sumiu. De qualquer forma, esta tinha cabelo comprido. Sumiu, sumiu, tudo estava sumindo. Saiu da proteção do pórtico e foi para o vento. Havia uma chuva fina no vento, esparsa. A chuva era esparsa nas poucas vezes em que caía. Era um mundo árido. Árido, pálido, hostil. “Hostil”, Shevek disse em voz alta, em iótico. Nunca tinha ouvido o som daquela língua; soava muito estranha. A chuva picava seu rosto como cascalho atirado. Era uma chuva hostil. À dor de garganta uniu-se uma terrível dor de cabeça, da qual acabara de se dar conta. Chegou ao Quarto 46 e deitou-se na cama, que pareceu estar muito mais baixa do que de costume. Ele tremia, não conseguia parar de tremer. Enrolou-se no cobertor cor de laranja e se agasalhou, tentando dormir, mas não conseguia parar de tremer, pois estava sob constante bombardeio atômico vindo de todos os lados, aumentando conforme a temperatura aumentava.
Nunca tinha ficado doente e nunca conhecera nenhum desconforto físico pior do que o cansaço. Como não fazia ideia de como era febre alta, pensou durante os intervalos lúcidos daquela longa noite que estava ficando louco. O medo da insanidade levou-o a procurar ajuda quando amanheceu o dia. Estava por demais assustado consigo mesmo para pedir ajuda aos vizinhos do corredor: tinha ouvido seus próprios delírios noturnos. Arrastou-se à clínica local, a oito quarteirões de distância, as ruas frias brilhantes com o nascer do sol que rodopiava solenemente à sua volta. Na clínica, diagnosticaram sua insanidade como uma pneumonia branda e disseram-lhe para ocupar um leito na Ala Dois. Ele protestou. A enfermeira o acusou de estar egoizando e explicou que, se ele fosse para casa, um médico iria ter o trabalho de atendê-lo lá e providenciar tratamento particular para ele. Ele foi para o leito da Ala Dois. Todas as outras pessoas da ala eram velhas. Veio uma enfermeira e lhe ofereceu um copo d’água e um comprimido.
– O que é isso? – Shevek perguntou, com suspeita. Seus dentes batiam de novo.
– Antipirético.
– O que é isso?
– Para baixar a febre.
– Não preciso disso.
A enfermeira encolheu os ombros.
– Tudo bem – ela falou, e prosseguiu.
A maioria dos jovens anarrestis sentia vergonha de ficar doente: resultado da profilaxia muito bem-sucedida de sua sociedade e também, talvez, de uma confusão surgida do uso analógico das palavras “saudável” e “doente”. Consideravam a doença um crime, mesmo quando involuntária. Ceder ao impulso criminoso, entregar-se a ele tomando analgésicos era imoral. Evitavam comprimidos e injeções. Quando atingiam a meia-idade e a velhice, a maioria mudava de opinião. A dor superava a vergonha. A enfermeira deu os remédios dos velhos na Ala Dois, e eles brincaram com ela. Shevek observava com incompreensão inerte.
Mais tarde chegou um médico com uma seringa.
– Não quero – disse Shevek.
– Pare de egoizar – disse o médico. – Vire-se. – Shevek obedeceu.
Mais tarde veio uma mulher segurando um copo d’água para ele, mas ele tremia tanto que derramou a água, molhando o cobertor.
– Me deixe em paz – ele disse.
– Quem é você? – ela respondeu, mas ele não entendeu. Ele a mandou embora, sentia-se muito bem. Então explicou a ela por que a hipótese cíclica, embora improdutiva em si, era essencial à sua abordagem de uma possível teoria da Simultaneidade, uma pedra fundamental. Falou parte disso na própria língua, parte em iótico, e escreveu as fórmulas e equações numa lousa com um pedaço de giz, para que ela e o restante do grupo entendessem, e temia que eles se equivocassem sobre a pedra fundamental. Ela tocou no rosto dele e prendeu-lhe o cabelo. As mãos dela eram frias. Ele nunca sentira algo mais prazeroso em toda a sua vida do que o toque daquelas mãos. Tentou segurá-las. Mas a mulher não estava mais ali, tinha sumido.
Muito tempo depois, ele acordou. Conseguia respirar. Estava perfeitamente bem. Estava tudo bem. Não se sentiu inclinado a mover-se. Mover-se perturbaria o momento perfeito, estável, o equilíbrio do mundo. A luz de inverno no teto era de uma beleza indizível. Ficou deitado, apreciando-a. Os velhos da ala riam juntos gargalhadas velhas e roucas, um belo som. A mulher chegou e sentou-se ao lado de sua maca. Olhou para ela e sorriu.
– Como se sente?
– Renascido. Quem é você?
Ela também sorriu.
– A mãe.
– Renascimento. Mas eu deveria ganhar um corpo novo, não o mesmo corpo antigo.
– Do que você está falando?
– De Urras. O renascimento faz parte da religião deles.
– Você ainda está confuso. – Ela tocou a testa dele. – Sem febre. – A voz dela dizendo aquelas duas palavras atingiu algo muito profundo no ser de Shevek, um lugar escuro, um lugar murado, que reverberou de volta no escuro. Olhou para a mulher e disse, com terror:
– Você é Rulag.
– Eu lhe disse isso. Várias vezes!
Ela manteve uma expressão despreocupada, até mesmo bem-humorada. Shevek não tinha condições de manter nada. Não tinha força para se mover, mas encolheu-se, afastando-se dela com visível medo, como se ela não fosse sua mãe, mas a morte. Se ela percebeu esse fraco movimento, não o demonstrou.
Era uma mulher bonita, morena, de traços finos e bem proporcionados, sem rugas, embora devesse ter mais de 40 anos. Tudo nela era harmonioso e controlado. Tinha a voz baixa, de um timbre agradável.
– Não sabia que você estava em Abbenay – ela disse –, ou onde você estava... ou mesmo se estava vivo. Eu estava no depósito da Editora dando uma olhada nas novas publicações, escolhendo coisas para a biblioteca de engenharia e vi um livro escrito por Sabul e Shevek. Sabul eu conhecia, claro. Mas quem era Shevek? Por que esse nome soa tão familiar? Só me dei conta um ou dois minutos depois. Estranho, não é? Mas não fazia sentido. O Shevek que eu conhecia teria apenas 20 anos e era pouco provável que estivesse assinando a coautoria de tratados sobre metacosmologia com Sabul. Mas qualquer outro Shevek teria menos de 20 anos!... Então vim conferir. Um rapaz no domicílio me informou que você estava aqui... É chocante a falta de pessoal nesta clínica. Não entendo por que os síndicos não solicitam mais postos à Federação Médica, ou então por que não reduzem o número de internações; alguns desses médicos e enfermeiras trabalham oito horas por dia! Claro que existem pessoas nas artes médicas que de fato querem isso: o impulso do autossacrifício. Infelizmente, isso não leva à máxima eficiência... Foi estranho encontrar você. Jamais o teria reconhecido... Você e Palat mantêm contato? Como ele está?
– Ele morreu.
– Ah. – Não havia sinal de choque ou sofrimento na voz de Rulag, apenas uma espécie de aceitação melancólica, uma nota triste. Shevek ficou emocionado, capaz de vê-la, por um instante, como uma pessoa.
– Há quanto tempo ele morreu?
– Oito anos.
– Não devia ter mais de 35 anos.
– Houve um terremoto em Campina Vasta. Vivíamos lá há uns cinco anos, ele era engenheiro civil na comunidade. O tremor danificou o centro de aprendizagem. Ele e outras pessoas estavam tentando retirar algumas das crianças que ficaram presas lá dentro. Houve um segundo tremor, e o prédio todo ruiu. Morreram 32 pessoas.
– Você estava lá?
– Eu tinha ido iniciar meu treinamento no Instituto Regional uns dez dias antes do terremoto.
– Pobre Palat. – Ela refletiu, o rosto sereno e imóvel. – De certo modo, foi típico dele... morrer com os outros, uma estatística, 1 de 32...
– As estatísticas teriam sido maiores se ele não tivesse entrado no prédio – disse Shevek.
Ela então olhou para ele. Seu olhar não demonstrava que emoções sentia ou não sentia. O que disse pode ter sido espontâneo ou deliberado, não havia como saber.
– Você gostava de Palat.
Ele não respondeu.
– Você não se parece com ele. Na verdade, você se parece comigo, exceto na cor. Achei que você fosse ficar parecido com Palat. Foi o que pressupus. Estranho como a imaginação faz essas suposições. Ele ficou com você, então?
Shevek confirmou com a cabeça.
– Ele teve sorte. – Ela não suspirou, mas havia um suspiro reprimido em sua voz.
– Eu também.
Houve uma pausa. Ela deu um leve sorriso.
– Sim, eu poderia ter mantido contato com você. Você se ressente comigo por eu não ter feito isso?
– Ressentido com você? Eu nunca a conheci.
– Conheceu. Palat e eu o mantivemos no domicílio, mesmo depois que você desmamou. Nós dois quisemos. Os primeiros anos de contato são essenciais para o indivíduo; os psicólogos comprovaram isso de maneira conclusiva. A socialização plena só pode se desenvolver a partir desse início afetuoso... Eu tinha vontade de continuar a parceria. Tentei encontrar um posto para Palat aqui em Abbenay. Nunca tinha vaga na linha de trabalho dele, e ele se recusava a vir sem um posto. Era teimoso... No começo me escrevia para me contar como você estava, depois parou de escrever.
– Não tem importância – respondeu o jovem. Seu rosto, abatido pela doença, estava coberto de gotas de suor muito finas, o que dava às suas bochechas e à sua testa uma aparência lustrosa, como que untadas.
Houve novo silêncio, e Rulag disse em sua voz agradável e controlada:
– Ah, sim, teve importância, e ainda tem. Mas era Palat que devia ficar com você e acompanhá-lo nos seus anos de integração. Ele lhe dava apoio, era paterno, e eu não. Para mim, o trabalho vem em primeiro lugar. Mesmo assim, estou contente por você estar aqui agora, Shevek. Talvez eu lhe possa ser de alguma utilidade neste momento. Sei que Abbenay é um lugar ameaçador, no começo. A gente se sente perdido, isolado, carente da solidariedade simples das cidades pequenas. Conheço pessoas interessantes que talvez você queira conhecer. E pessoas que podem lhe ser úteis. Conheço Sabul; faço alguma ideia do que você deve ter passado com ele, com o Instituto inteiro. Eles fazem jogo de dominação lá. É preciso ter experiência para saber ganhar deles. De todo modo, estou contente por você estar aqui. Isso me dá um prazer que eu nunca procurei... uma espécie de júbilo... Li o seu livro. É seu, não é? Por que outro motivo Sabul publicaria em coautoria com um estudante de 20 anos? O assunto está além da minha compreensão, sou apenas uma engenheira. Confesso que estou orgulhosa de você. É estranho, não é? Insensato. Proprietário, até. Como se você fosse algo que me pertencesse! Mas, quando se envelhece, a gente necessita de algumas certezas que nem sempre são totalmente sensatas. Para poder seguir adiante.
Ele viu a solidão dela. Viu sua dor, e ressentiu-se. A dor o ameaçava. Ameaçava a lealdade de seu pai, aquele amor puro e constante ao qual sua vida se arraigara. Que direito ela tinha, ela que deixara Palat carente, de vir com suas próprias carências procurar o filho de Palat? Ele não tinha nada, nada para oferecer a ela, nem a mais ninguém.
– Teria sido melhor – ele disse – se você tivesse continuado a pensar em mim como uma estatística também.
– Ah – ela disse, a resposta suave, habitual e desolada. Desviou o olhar dele.
Os velhos nos fundos da enfermaria a admiravam, cutucando-se.
– Suponho – ela disse – que eu estava tentando recuperar você. Mas pensei que você também pudesse me recuperar. Se você quisesse.
Ele não disse nada.
– A não ser biologicamente, não somos mãe e filho, é claro. – Ela recobrou o leve sorriso. – Você não se lembra de mim, e o bebê de que me lembro não é esse homem de 20 anos. Tudo aquilo é passado, é irrelevante. Mas somos irmãos, aqui e agora. Que é o que importa, não é?
– Não sei.
Ela ficou sentada por um minuto, sem falar, então se levantou.
– Você precisa descansar. Estava bem doente da primeira vez que vim. Eles dizem que agora você vai ficar bom. Não creio que eu vá voltar.
Ele não falou.
– Adeus, Shevek – ela disse, e virou-se enquanto falava. Ele teve um vislumbre, ou um pesadelo da imaginação, do rosto dela mudando drasticamente enquanto falava, decompondo-se, despedaçando-se. Deve ter sido imaginação. Ela saiu da enfermaria com o andar gracioso e cadenciado de uma bela mulher, e ele a viu parar e falar, sorrindo, com a enfermeira no corredor.
Sucumbiu ao medo que viera com ela, à sensação de promessas quebradas, à incoerência do tempo. Desmoronou. Começou a chorar, tentando esconder o rosto no abrigo dos braços, pois não encontrou forças para se virar. Um dos velhos doentes aproximou-se, sentou-se na maca e deu-lhe uns tapinhas no ombro.
– Está tudo bem, irmão. Vai ficar tudo bem, irmãozinho – ele murmurou. Shevek o ouviu e sentiu seu toque, mas não sentiu nenhum reconforto. Mesmo vindo de um irmão, não existe conforto naquele momento doloroso, no escuro, ao pé do muro.
5
°°°°°
Shevek terminou sua carreira de turista com alívio. O novo período letivo estava começando em Ieu Eun; agora ele poderia se instalar para viver, e trabalhar, no Paraíso, em vez de simplesmente olhá-lo de fora.
Assumiu dois seminários e um curso livre. Não o tinham requisitado como professor, mas ele pediu para dar aulas, e os administradores lhe providenciaram os seminários. As aulas livres não foram ideia dele, nem dos administradores. Uma delegação de alunos veio até ele e lhe pediu para dar o curso. Concordou na hora. Era assim que os cursos eram organizados nos centros de aprendizagem anarrestis: pela demanda dos estudantes, ou pela iniciativa do professor, ou do professor e dos alunos juntos. Quando soube que os administradores ficaram preocupados, ele riu.
– Eles esperam que os estudantes não sejam anarquistas? – perguntou. – O que mais os jovens podem ser? Quando se está embaixo, deve-se organizar as coisas de baixo para cima!
Ele não tinha a menor intenção de deixar os administradores lhe tirarem o curso – já tinha enfrentado esse tipo de batalha – e, como comunicou sua firmeza aos alunos, os alunos também foram firmes. Para evitar publicidade desagradável, os reitores da universidade cederam, e Shevek iniciou o curso com uma plateia de 2 mil pessoas no primeiro dia. Esse número logo baixou. Ele só falava de física, jamais se desviando para assuntos pessoais ou de política, e era física num nível bem avançado. Mas várias centenas de estudantes continuaram a comparecer. Alguns vinham por mera curiosidade, para verem o homem da Lua; outros eram atraídos pela personalidade de Shevek, pelos vislumbres do homem e do libertário que podiam captar em suas palavras, mesmo quando não conseguiam acompanhar sua matemática. E um número surpreendente deles era capaz de acompanhar tanto a filosofia quanto a matemática.
Aqueles estudantes tinham um preparo soberbo. Suas mentes eram refinadas, perspicazes, lúcidas. Quando não estavam trabalhando, descansavam. Não eram embotadas ou distraídas por uma dúzia de outras obrigações. Nunca dormiam de cansaço nas aulas por terem trabalhado no rodízio no dia anterior. Sua sociedade os mantinha completamente livres de carências, distrações e preocupações.
O que estavam livres para fazer, entretanto, era outra questão. Parecia a Shevek que a liberdade de obrigações era exatamente proporcional à sua falta de liberdade de iniciativa.
Shevek ficou estarrecido com o sistema de avaliação, quando lhe explicaram; não conseguia imaginar impedimento maior ao desejo natural de aprender do que aquele modelo de se empanturrar de informações e vomitá-las por exigência. No início, recusou-se a aplicar quaisquer exames ou notas, mas isso desagradou tanto aos administradores que, por não desejar ser descortês com seus anfitriões, cedeu. Pediu aos alunos que escrevessem um artigo sobre qualquer problema de física que lhes interessasse e disse que daria a nota máxima a todos, para que os burocratas tivessem algo a escrever em suas listas e formulários. Para sua surpresa, muitos alunos foram reclamar com ele. Queriam que ele definisse os problemas, que fizesse as perguntas certas; não queriam pensar em perguntas, mas escrever as respostas que tinham aprendido. E alguns fizeram veemente objeção ao fato de ele dar a todos a mesma nota. Como os alunos diligentes poderiam se distinguir dos negligentes? Qual a vantagem de ter tanto trabalho? Se não haveria distinções competitivas, era melhor não fazer nada.
– Bem, é claro – disse Shevek, perturbado. – Se não querem fazer o trabalho, não devem fazê-lo.
Eles foram embora insatisfeitos, mas respeitosos. Eram rapazes agradáveis, de modos francos e civilizados. As leituras de Shevek sobre a história urrasti levaram-no a concluir que eles eram, na verdade, embora a palavra raramente fosse usada, aristocratas. Nos tempos feudais, a aristocracia enviara seus filhos à universidade, conferindo superioridade à instituição. Agora ocorria o contrário: a universidade conferia superioridade ao homem. Eles contaram a Shevek, com orgulho, que a competição por bolsas de estudo em Ieu Eun tornava-se mais acirrada a cada ano, provando a democracia essencial do instituto.
– Vocês colocam mais uma tranca na porta e chamam isso de democracia – ele disse.
Shevek gostava dos seus alunos educados e inteligentes, mas não sentia grande afeto por nenhum deles. Planejavam carreiras de acadêmicos ou cientistas industriais e, para eles, o que aprendiam com Shevek era um meio para um fim: sucesso em suas carreiras. Ou tinham isso, ou negavam a importância de qualquer outra coisa que ele lhes oferecesse.
Shevek viu-se, portanto, sem nenhuma outra obrigação além da preparação de seus três cursos; o restante do tempo era todo seu. Não estivera numa situação assim desde os 20 e poucos anos, em seus primeiros tempos no Instituto de Abbenay. Desde então, sua vida social e pessoal ficara cada vez mais complicada e exigente. Ele se tornara não apenas físico, mas também parceiro, pai, odoniano e, por fim, um reformador social. Como tal, não estivera a salvo, e não esperara estar a salvo, de quaisquer preocupações e responsabilidades que surgissem. Não estivera livre para nada: só estivera livre para fazer alguma coisa. Ali, ocorria o inverso. Como todos os alunos e professores, ele não tinha nada a fazer, exceto seu trabalho intelectual, literalmente nada. Arrumavam a cama para eles, varriam o chão para eles, administravam a rotina da faculdade para eles, liberavam o caminho para eles. E nada de esposas, nem famílias. Absolutamente nenhuma mulher. Os alunos da universidade não tinham permissão de se casar. Professores casados geralmente moravam, durante cinco dos sete dias da semana, em aposentos de solteiro no campus, indo para casa somente nos fins de semana. Nada os distraía. Total tempo livre para trabalhar; todos os materiais à mão; estímulo intelectual, discussões, conversas sempre que quisessem; nenhuma pressão. De fato, o Paraíso! Mas ele parecia incapaz de se dedicar ao trabalho.
Faltava algo – nele, pensou, não no lugar. Ele não estava à altura. Não era forte o suficiente para aceitar o que lhe era oferecido com tanta generosidade. Sentia-se seco, árido, como uma planta do deserto, naquele lindo oásis. A vida em Anarres o fechara, trancara sua alma; as águas da vida jorravam à sua volta e, no entanto, ele não conseguia beber.
Forçou-se a trabalhar, mas mesmo aí não encontrava segurança. Parecia ter perdido a intuição que, no conceito que fazia de si mesmo, considerava sua principal vantagem sobre a maior parte dos outros físicos, a habilidade de sentir onde estava o problema realmente importante, o indício que o guiava ao centro. Ali, parecia não ter o senso de direção. Durante o verão e o outono, trabalhava nos Laboratórios de Pesquisa da Luz, lia bastante e escreveu três artigos: um meio ano produtivo, pelos padrões normais. Mas sabia que, na verdade, não tinha feito nada de real.
De fato, quanto mais tempo vivia em Urras, menos real aquele lugar lhe parecia. Era como se tudo lhe escapasse – todo aquele mundo magnífico, inesgotável e cheio de vida que ele vira através das janelas do quarto, em seu primeiro dia no planeta. Tudo escorregava de suas mãos desajeitadas e alienígenas, tudo se esquivava dele e, quando tornava a olhar, estava segurando algo completamente diferente, algo que ele não queria de jeito nenhum, uma espécie de papel usado, de embalagem, de lixo.
Ganhou dinheiro com os artigos que escreveu. Já tinha em sua conta, no Banco Nacional, 10 mil Unidades Monetárias Internacionais, do prêmio Seo Oen, e 5 mil de doação do Governo Iota. Esta soma agora aumentava com seu salário como professor e o dinheiro pago a ele pela Editora Universitária pelas três monografias. No início, achou tudo isso engraçado; depois, ficou preocupado. Não deveria descartar como ridículo algo que, afinal de contas, era de tremenda importância para os urrastis. Tentou ler um texto elementar sobre economia, mas a leitura o entediou além do suportável; era como ouvir a narração interminável de um sonho longo e idiota. Não conseguia se forçar a entender como os bancos funcionavam e por aí afora, pois todas as operações do capitalismo eram-lhe tão sem sentido quanto os ritos de uma religião primitiva, tão bárbara, tão elaborada e tão desnecessária. No sacrifício humano a uma divindade talvez houvesse ao menos uma beleza equivocada e terrível; nos ritos dos cambistas, onde se presumia que a cobiça, a preguiça e a inveja movem as ações humanas, até mesmo o terrível tornava-se banal. Shevek olhava essa mesquinhez monstruosa com desprezo e sem interesse. Ele não admitia, e não podia admitir, que, na verdade, ela o amedrontava.
Saio Pae o levara às “compras” durante sua segunda semana em A-Io. Embora não tivesse intenção de cortar o cabelo – o cabelo, afinal, fazia parte dele –, queria algumas roupas e um par de sapatos no estilo urrasti. Desejava que sua aparência fosse alienígena somente naquilo que não pudesse evitar. A simplicidade de seu velho terno chamava muito a atenção, e as botas grosseiras do deserto eram realmente muito estranhas em meio aos luxuosos calçados dos iotas. Assim, a seu pedido, Pae o levara à Panomara Saemtenevia, a elegante rua de compras de Nio Esseia, para que um alfaiate e um sapateiro tirassem as suas medidas.
A experiência toda tinha sido tão perturbadora que ele a tirou da cabeça o mais rápido possível, mas sonhou com ela durante meses, teve pesadelos. A Panomara Saemtenevia tinha três quilômetros de extensão e era uma massa sólida de pessoas, tráfego e coisas; coisas para comprar, coisas à venda. Casacos, vestidos, túnicas, mantos, calções, camisas, blusas, chapéus, sapatos, meias, cachecóis, xales, coletes, capas, guarda-chuvas, roupas de dormir, de nadar, de praticar esportes, de festas à tarde, de festas à noite, de festas no campo, de viagem, de teatro, de cavalgada, de jardinagem, de recepção de convidados, de passeios de barco, de jantar, de caça – todas diferentes, todas em centenas de diferentes cortes, estilos, cores, texturas, materiais. Perfumes, relógios, luminárias, estátuas, cosméticos, velas, quadros, câmeras, jogos, vasos, sofás, chaleiras, quebra-cabeças, travesseiros, bonecas, escorredores de macarrão, pufes, joias, tapetes, palitos de dente, calendários, mordedores de bebês de platina com alças de cristal, uma máquina elétrica para apontar lápis, um relógio de pulso com números em diamante; bibelôs, suvenires, bugigangas, lembrancinhas, quinquilharias, bricabraques. Tudo inútil, para começo de conversa, ou enfeitado para disfarçar sua utilidade; quilômetros de luxos, quilômetros de excremento. No primeiro quarteirão, Shevek tinha parado para olhar um casaco todo felpudo e manchado, exibido no centro de uma resplandecente vitrine de roupas e joias.
– O casaco custa 8.400 unidades? – perguntou, incrédulo, pois recentemente tinha lido no jornal que o “salário mínimo” era cerca de 2.000 unidades por ano.
– Ah, sim, isso é pele legítima, muito rara, agora que os animais estão protegidos – disse Pae. – Bonito, não é? As mulheres adoram peles. – E eles continuaram. Depois de outro quarteirão, Shevek sentia-se completamente exausto. Não conseguia olhar mais nada. Queria esconder os olhos.
E o mais estranho daquela rua do pesadelo é que nenhuma daquelas milhões de coisas à venda era feita lá. Eram apenas vendidas lá. Onde estavam as oficinas, as fábricas, onde estavam os fazendeiros, os artesãos, os mineiros, os tecelões, os químicos, os entalhadores, os tintureiros, os desenhistas, os maquinistas, onde estavam as mãos, as pessoas que faziam tudo? Longe da vista, em algum outro lugar. Atrás de paredes. Todas as pessoas nas lojas eram compradoras ou vendedoras. Não tinham relação alguma com as coisas, exceto a de posse.
Descobriu que, depois que tirassem suas medidas, ele poderia encomendar qualquer coisa que precisasse pelo telefone, e decidiu jamais voltar à rua do pesadelo.
As roupas e os sapatos foram entregues em uma semana. Experimentou-os e olhou-se no espelho de corpo inteiro que havia no quarto. O paletó-túnica cinza bem ajustado, a camisa branca, os calções pretos, as meias e os sapatos caíam bem em sua figura comprida e magra e nos pés estreitos. Tocou com cuidado a superfície de um dos sapatos. Era feito da mesma coisa que revestia as cadeiras do outro aposento, do material que parecia pele; há pouco tempo perguntara a alguém o que era aquilo, e responderam que era pele – pele de animal, que chamavam de couro. Franziu a testa ao toque, ergueu-se e afastou-se do espelho, mas não antes de ser forçado a ver que, vestido assim, a semelhança com sua mãe Rulag era maior do que nunca.
Houve um longo intervalo entre os períodos letivos, no meio do outono. A maioria dos alunos foi para casa, de férias. Shevek partiu para alguns dias de passeio a pé nas montanhas, em Meiteis, na companhia de um grupo de alunos e pesquisadores do Laboratório de Pesquisa da Luz, depois voltou para solicitar algumas horas no grande computador, que era mantido muito ocupado durante o período de aulas. Mas, cansado do trabalho que não levava a lugar nenhum, não trabalhou muito. Dormiu mais do que o habitual, caminhou, leu e disse a si mesmo que o problema é que ele simplesmente se apressara demais; não se pode apreender todo um mundo novo em poucos meses. Os gramados e bosques da universidade estavam lindos e desalinhados, folhas douradas brilhando e voando ao vento chuvoso, sob um céu suave e cinza. Shevek pesquisou as obras dos grandes poetas iotas e as leu; agora os compreendia quando falavam de flores, de pássaros voando e as cores da floresta no outono. Essa compreensão lhe trouxe grande prazer. Ao anoitecer, era agradável retornar aos seus aposentos, cuja beleza calma e harmônica nunca deixou de satisfazê-lo. Estava acostumado ao conforto gracioso agora, tinha se tornado algo familiar – assim como a comida, em toda a sua variedade e quantidade, que a princípio o surpreendera. O homem que atendia a mesa conhecia seus gostos e o servia como se ele mesmo estivesse se servindo. Ainda não comia carne; tentara comer, por educação e para provar a si mesmo que não tinha preconceitos irracionais, mas seu estômago tinha motivos que a própria razão desconhece e se rebelou. Após algumas tentativas quase desastrosas, desistira e permanecera vegetariano, embora de bom apetite. Gostava muito do jantar. Engordara três ou quatro quilos desde que viera para Urras; estava com muito boa aparência agora, bronzeado de seu passeio nas montanhas, descansado pelas férias. Era uma figura impressionante quando se levantou da mesa no grande salão de jantar com teto de vigas escondidas na sombra lá no alto, paredes almofadadas com retratos pendurados e mesas com porcelana e prataria brilhando à luz de velas. Cumprimentou alguém da outra mesa e se retirou, com uma expressão de tranquilo distanciamento. Do outro lado do salão, Chifoilisk o viu e o seguiu, alcançando-o à porta.
– Tem alguns minutos, Shevek?
– Sim. Nos meus aposentos? – A essa altura, já se acostumara ao uso constante do pronome possessivo e o utilizava sem constrangimento.
Chifoilisk pareceu hesitar.
– Que tal na biblioteca? Fica no seu caminho, e eu quero pegar um livro lá.
Começaram a atravessar o quadrilátero em direção à Biblioteca da Ciência Nobre – o antigo termo para a física, que até em Anarres foi preservado em certos usos –, caminhando lado a lado no escuro chuvoso. Chifoilisk abriu um guarda-chuva, mas Shevek andava na chuva como os iotas andavam ao sol, com alegria.
– Você está ficando ensopado – Chifoilisk resmungou. – Você não tinha um problema nos pulmões? Melhor tomar cuidado.
– Estou me sentindo muito bem – respondeu Shevek, enquanto caminhava a passos largos na chuva fina e fresca. – Sabe aquele médico do governo em Anarres? Ele me prescreveu algumas inalações. Funcionou. Não estou tossindo mais. Pedi para o médico descrever o procedimento e os remédios, pelo rádio, ao Sindicato da Iniciativa, em Abbenay. Ele fez isso. Ficou feliz em fazê-lo. Foi tudo muito simples; deve aliviar muito o sofrimento da tosse provocada pela poeira. Por quê, por que não antes? Por que não trabalhamos juntos, Chifoilisk?
O thuviano soltou um leve resmungo sardônico. Entraram na sala de leitura da biblioteca. Corredores de livros antigos, sob delicados arcos duplos de mármore, repousavam em serenidade sombria; as luminárias das longas mesas de leitura eram globos simples de alabastro. Não havia mais ninguém ali, mas um atendente logo surgiu atrás deles para acender a lareira de mármore e verificar se não precisavam de mais nada antes que ele se retirasse de novo. Chifoilisk parou diante da lareira, observando a lenha começando a arder. Suas sobrancelhas estavam eriçadas acima dos olhos pequenos; seu rosto grosseiro, moreno e intelectual parecia mais velho que de hábito.
– Vou ser desagradável, Shevek – disse, em sua voz áspera. E acrescentou: – Até aí, nenhuma surpresa, suponho... – Humildade que Shevek não esperava dele.
– Qual o problema?
– Quero saber se você sabe o que está fazendo aqui.
Após uma pausa, Shevek disse:
– Acho que sei.
– Tem consciência, então, de que foi comprado?
– Comprado?
– Cooptado, se prefere. Ouça. Por mais que um homem seja inteligente, ele não pode ver o que não sabe ver. Como pode entender sua situação aqui, numa economia capitalista, num Estado plutocrático e oligárquico? Como pode entender, vindo da sua pequena comuna de idealistas famintos, lá no céu?
– Chifoilisk, não sobraram muitos idealistas em Anarres, posso lhe assegurar. Os Colonos foram idealistas, sim, ao trocar este planeta pelos nossos desertos. Mas isso foi há sete gerações! Nossa sociedade é prática. Talvez prática demais, preocupada demais só com a sobrevivência. O que há de idealismo na cooperação social e na ajuda mútua, se isso é apenas um meio de continuar vivo?
– Não posso discutir os valores odonianos com você. Não que eu não tenha tido vontade! Conheço bem o assunto, sabe. Estamos mais próximos desses valores, no meu país, do que estas pessoas aqui. Somos produtos do mesmo movimento revolucionário do oitavo século... somos socialistas, como você.
– Mas vocês são hierarquistas. O Estado de Thu é ainda mais centralizado do que o Estado de A-Io. Uma única estrutura de poder controla tudo: governo, administração, polícia, exército, educação, leis, comércio, manufaturas. E vocês têm a economia baseada em moeda.
– Uma economia baseada no princípio de que cada trabalhador é pago pelo que merece, pelo valor do seu trabalho... não por capitalistas a quem ele é obrigado a servir, mas pelo Estado, do qual ele é membro!
– É o trabalhador que estabelece o valor de seu próprio trabalho?
– Por que você não vai a Thu para ver como funciona o socialismo real?
– Eu sei como funciona o socialismo real – respondeu Shevek. – Eu poderia falar sobre isso para vocês, mas o seu governo me deixaria explicar, em Thu?
Chifoilisk atiçou com o pé uma lenha que ainda não começara a pegar fogo. Sua expressão, enquanto olhava a lareira, era amarga, as linhas entre o nariz e os cantos da boca, muito profundas. Não respondeu à pergunta de Shevek. Por fim, disse:
– Não vou tentar enganá-lo. Não adianta; de qualquer modo, não o farei. O que tenho a lhe perguntar é o seguinte: você estaria disposto a ir a Thu?
– Não neste momento, Chifoilisk.
– Mas o que você pode realizar... aqui?
– Meu trabalho. Além disso, aqui estou perto da sede do Conselho dos Governos Mundiais...
– O CGM? Eles são controlados por A-Io há trinta anos. Não conte com eles para salvá-lo.
Uma pausa.
– Então eu corro perigo?
– Nem isso você percebeu?
Mais uma pausa.
– Contra quem você está me alertando? – perguntou Shevek.
– Contra Pae, em primeiro lugar.
– Ah, sim, Pae. – Shevek apoiou as mãos na lareira adornada com ouro incrustado. – Pae é um físico muito bom. E muito solícito. Mas não confio nele.
– Por que não?
– Bem... ele é evasivo.
– Sim, uma avaliação psicológica perspicaz. Mas Pae não é perigoso para você por ser uma pessoa esquiva, Shevek. Ele é perigoso para você porque é um agente ambicioso e leal do governo iota. Ele faz relatórios sobre você, e sobre mim, regularmente ao Departamento de Segurança Nacional... a polícia secreta. Deus sabe que não o subestimo, Shevek, mas você não compreende que seu hábito de se aproximar de todo mundo como uma pessoa, um indivíduo, não vale aqui, não funciona. Você tem de entender as forças que estão por trás dos indivíduos.
Enquanto Chifoilisk falava, a postura descontraída de Shevek tornara-se tensa; agora estava ereto, como Chifoilisk, olhando a lareira.
– Como sabe essas coisas sobre Pae? – perguntou.
– Do mesmo jeito que sei que o seu quarto contém um microfone escondido, assim como o meu. Porque saber essas coisas faz parte do meu trabalho.
– Você também é agente do seu governo?
O rosto de Chifoilisk se fechou; então virou-se subitamente para Shevek, falando com suavidade e ódio.
– Sim – ele disse –, é claro que sou. Se não fosse, eu não estaria aqui. Todo mundo sabe disso. Meu governo manda para fora do país somente homens em quem confia. E eles podem confiar em mim! Porque não fui comprado, como todos esses malditos professores iotas ricos. Acredito no meu governo, no meu país. Tenho fé neles. – As palavras saíram à força, numa espécie de tormento. – Você tem de olhar à sua volta, Shevek! Você é uma criança entre ladrões. Eles são bons para você, lhe oferecem um belo quarto, palestras, alunos, dinheiro, passeios em castelos, passeios por fábricas modernas, visitas a belas aldeias. Tudo do melhor. Tudo ótimo, maravilhoso! Mas por quê? Por que o trazem aqui da Lua, o elogiam, publicam seus livros e o mantêm seguro e confortável nas salas de aula, laboratórios e bibliotecas? Você acha que fazem isso com desinteresse científico, por amor fraternal? Esta é uma economia de lucro, Shevek!
– Eu sei. Vim negociar com ela.
– Negociar... o quê? Para quê?
O rosto de Shevek assumira a mesma expressão fria e severa de quando visitou o forte em Drio.
– Você sabe o que eu quero, Chifoilisk. Quero que meu povo saia do exílio. Vim para cá porque acho que vocês não querem isso, em Thu. Vocês têm medo de nós, lá. Temem que possamos trazer de volta a revolução, a antiga, a real, a revolução por justiça que vocês começaram e depois abandonaram no meio do caminho. Aqui em A-Io eles me temem menos, pois se esqueceram da revolução. Não acreditam mais nela. Acham que se as pessoas conseguirem possuir coisas o suficiente ficarão satisfeitas em viver na prisão. Mas eu não acredito nisso, quero derrubar os muros. Quero solidariedade, solidariedade humana. Quero trocas livres entre Urras e Anarres. Trabalhei nisso o quanto pude em Anarres, agora trabalho nisso o quanto posso em Urras. Lá eu agi; aqui eu negocio.
– Com o quê?
– Ah, você sabe, Chifoilisk – Shevek disse numa voz baixa, desconfiado. – Você sabe o que eles querem de mim.
– Sim, eu sei, mas não sabia que você sabia – o thuviano disse, também falando baixo; sua voz áspera tornou-se um murmúrio mais áspero, ofegante e fricativo. – Então você tem mesmo... a Teoria Temporal Geral?
Shevek olhou para ele, talvez com um toque de ironia.
Chifoilisk insistiu:
– Ela já existe por escrito?
Shevek continuou a olhar para ele por um minuto e então respondeu diretamente:
– Não.
– Ótimo!
– Por quê?
– Porque, se existisse por escrito, eles já a teriam.
– O que quer dizer?
– Só isso. Escute, não foi Odo quem disse que onde há propriedade, há roubo?
– “Para fazer um ladrão, faça um proprietário; para criar o crime, crie leis.” O Organismo Social.
– Pois bem. Onde há papéis em salas trancadas, há pessoas com as chaves das salas!
Shevek estremeceu.
– Sim – ele disse, no mesmo instante –, isso é muito desagradável.
– Para você, não para mim. Não tenho os seus escrúpulos morais individualistas, você sabe. Eu sabia que você não tinha a teoria por escrito. Se eu achasse que tivesse, teria feito todo o esforço para obtê-la, fosse pela persuasão, pelo roubo ou pela força, caso conseguíssemos sequestrar você sem provocar uma guerra com A-Io. Qualquer coisa para que eu pudesse levá-la para longe destes porcos capitalistas iotas e entregá-la nas mãos do Comitê Central do meu país. Porque a maior causa a que posso servir é a força e a riqueza do meu país.
– Você está mentindo – Shevek disse, pacificamente. – Acho que você é um patriota, sim. Mas você põe o respeito à verdade acima do patriotismo, a verdade científica, e talvez também sua lealdade a indivíduos. Você não me trairia.
– Trairia, se pudesse – disse Chifoilisk, furiosamente. Ia continuar a falar, parou e por fim disse, com raivosa resignação: – Pense o que quiser. Não posso abrir seus olhos por você. Mas lembre-se: nós o queremos. Se você finalmente perceber o que está acontecendo aqui, então vá para Thu. Você escolheu as pessoas erradas para serem seus irmãos! E se... não cabe a mim dizer isso, mas não importa. Se você resolver não compartilhá-la conosco, pelo menos não dê sua Teoria aos iotas. Não dê nada aos usurários! Saia daqui. Volte para casa. Dê ao seu próprio povo o que você tem a oferecer!
– Eles não querem – Shevek disse, sem nenhuma expressão no rosto. – Acha que eu não tentei?
Quatro ou cinco dias depois, Shevek, ao perguntar por Chifoilisk, foi informado de que ele retornara a Thu.
– Para ficar? Ele não me disse que estava de partida.
– Um thuviano nunca sabe quando vai receber uma ordem de seu Comitê – disse Pae, pois é claro que Shevek fora informado por Pae. – Ele apenas sabe que, quando a ordem vem, é melhor ir embora. E sem parar no caminho para despedidas. Coitado do Chif! O que será que ele fez de errado?
Shevek visitava Atro uma ou duas vezes por semana na casa pequena e agradável na extremidade do campus, onde morava com dois criados tão velhos quanto ele. Aos quase 80 anos, era, como ele próprio se definia, um monumento à física de primeira classe. Embora não tivesse visto o trabalho de toda uma vida passar sem reconhecimento, como Gvarab, a mera idade o levara a adquirir um pouco do mesmo desinteresse dela. Seu interesse em Shevek, pelo menos, parecia ser inteiramente pessoal – uma camaradagem. Tinha sido o primeiro físico de Sequência a se converter à abordagem de Shevek para a compreensão do tempo. Tinha lutado, com as armas de Shevek, pelas teorias de Shevek, contra todo o establishment da respeitabilidade científica, e a batalha se arrastou por vários anos antes da publicação da versão integral, sem cortes, dos Princípios da Simultaneidade e da pronta e subsequente vitória dos simultaneístas. Essa batalha tinha sido o ponto alto da vida de Atro. Ele não teria lutado por nada menos do que a verdade, mas foi a luta que ele adorou, mais do que a verdade.
Atro conseguiu reconstituir sua árvore genealógica até onze séculos, passando por generais, príncipes, grandes proprietários de terras. A família ainda possuía uma propriedade de 7 mil acres e 14 aldeias na Província de Sie, a região mais rural de A-Io. Ele usava expressões provincianas em suas falas, arcaísmos aos quais se agarrava com orgulho. A riqueza em absoluto o impressionava, e ele se referia ao governo inteiro de seu país como “demagogos e políticos rasteiros”. Ninguém iria comprar o seu respeito. No entanto, ele o dava de graça a qualquer tolo que, segundo ele, tivesse “o nome certo”. Em certos aspectos, ele era totalmente incompreensível para Shevek – um enigma: o aristocrata. E, no entanto, seu desprezo genuíno tanto pelo dinheiro quanto pelo poder levou Shevek a se sentir mais próximo dele do que de qualquer outra pessoa que ele conhecera em Urras.
Certa vez, quando estavam sentados juntos na varanda envidraçada onde ele cultivava todo tipo de flores raras e fora da estação, ele por acaso usou a frase “nós, cetianos”. Shevek o pegou na hora:
– “Cetianos”... não é uma palavra alpiste? – “Alpiste” era uma gíria para a imprensa popular, jornais, programas de rádio e conteúdos de ficção feitos para o consumo do trabalhador urbano.
– Alpiste! – repetiu Atro. – Meu caro amigo, onde diabos você aprende esses vulgarismos? O que quero dizer com “cetianos” é exatamente o que os escritores de jornais diários e seus leitores papagaios entendem pelo termo: Urras e Anarres!
– Fiquei surpreso ao ouvi-lo usar uma palavra estrangeira... uma palavra não cetiana, na verdade.
– Definição por exclusão – defendeu-se o velho, de forma divertida. – Há cem anos, não precisávamos dessa palavra. “Humanidade” servia. Mas sessenta e tantos anos atrás isso mudou. Eu tinha 17 anos, era um belo dia ensolarado no início do verão, lembro vividamente. Eu estava exercitando o meu cavalo, e minha irmã gritou da janela: “Estão falando com alguém do Espaço Sideral no rádio!”. Minha pobre querida mãe achou que estávamos todos perdidos; demônios de outro mundo, você sabe. Mas eram só os hainianos, anunciando a paz e a fraternidade. Bem, hoje “humanidade” é um pouco inclusivo demais. O que define a fraternidade senão a não fraternidade? Definição por exclusão, meu caro! Você e eu somos parentes. Seu povo provavelmente pastoreava cabras nas montanhas, enquanto o meu oprimia servos em Sie, alguns séculos atrás; mas somos membros da mesma família. Para reconhecer isso, deve-se conhecer um alienígena, ou ouvir falar dele. Um ser de outro sistema solar. Um homem, por assim dizer, que não tem nada em comum conosco, exceto o esquema prático de duas pernas, dois braços e uma cabeça com algum tipo de cérebro dentro!
– Mas os hainianos não provaram que somos...?
– Todos de origem alienígena, descendentes de Colonos Hainianos interestelares, meio milhão de anos atrás, sim, eu sei. Provaram! Pelo amor do Número Primal, Shevek, você fala como um seminarista de primeiro ano! Como pode falar seriamente em prova histórica, num espaço de tempo tão longo? Esses hainianos brincam com milênios para lá e para cá como se fossem bolas, mas são só malabarismos. Provaram, pois sim! A religião dos meus antepassados me informa, com igual autoridade, que eu descendo de Pinra Od, que Deus expulsou do Jardim porque ele teve a audácia de contar os dedos das mãos e dos pés, chegar à soma de vinte, soltando assim o Tempo no universo. Prefiro essa história à dos alienígenas, se devo escolher!
Shevek riu; o humor de Atro lhe dava prazer. Mas o velho falava sério. Bateu de leve no braço de Shevek e, franzindo as sobrancelhas e mascando com os lábios, como fazia quando estava emocionado, disse:
– Espero que sinta o mesmo, meu caro. Espero sinceramente. Há muita coisa admirável na sua sociedade, tenho certeza, mas ela não lhe ensina a discriminar... o que, afinal, é a melhor coisa que a civilização ensina. Não quero aqueles malditos alienígenas cooptando você por meio das suas noções de fraternidade, mutualismo e tudo isso. Eles verterão sobre você rios inteiros de “humanidade comum”, “liga dos mundos” e por aí afora, e eu detestaria vê-lo engolir essa conversa. A lei da existência é a luta... a competição... eliminação dos fracos... uma guerra implacável pela sobrevivência. E quero ver os melhores sobreviverem. O tipo de humanidade que eu conheço. Os cetianos. Você e eu. Urras e Anarres. Estamos à frente deles agora, de todos aqueles hainianos e terranos e seja lá como eles se chamam, e temos de continuar à frente deles. Eles nos trouxeram o propulsor interestelar, mas agora nós estamos fazendo naves melhores do que as deles. Quando você publicar sua Teoria, eu sinceramente espero que você pense no seu dever para com o seu povo, sua própria espécie. No que significa lealdade e a quem ela é devida. – As lágrimas fáceis da idade avançada brotaram nos olhos semicegos de Atro. Shevek pôs as mãos no braço do velho, para tranquilizá-lo, mas não disse nada.
– Eles vão obtê-la, naturalmente. Com o tempo. E devem. A verdade científica se revelará, não se pode esconder o sol debaixo de uma pedra. Mas antes de obtê-la, quero que eles paguem por ela! Quero que ocupemos o lugar que nos é de direito. Quero respeito; e é isso que você pode conquistar para nós. Transiliência... se dominarmos a transiliência, o propulsor interestelar deles não vai valer mais nada. Não é dinheiro que eu quero, você sabe. Quero que reconheçam a superioridade da ciência cetiana. Se deve haver uma civilização interestelar, então, por Deus, não quero que meu povo seja membro de uma casta inferior! Devemos entrar como nobres, com uma grande dádiva em nossas mãos... É assim que deve ser. Ora, ora, às vezes eu me altero com esse assunto. A propósito, como vai indo o seu livro?
– Estou trabalhando na hipótese gravitacional de Skask. Tenho a impressão de que ele está errado em usar apenas as equações diferenciais parciais.
– Mas seu último artigo foi sobre gravidade. Quando você vai chegar à coisa real?
– Você deveria saber que os meios são o fim para nós, odonianos – Shevek disse, em tom de brincadeira. – Além disso, não posso apresentar uma teoria do tempo que omita a gravidade, não é?
– Quer dizer que você vai nos dar a sua Teoria aos pouquinhos? – perguntou Atro, com suspeita. – Isso não tinha me ocorrido. É melhor eu dar mais uma olhada naquele último artigo. Parte dele não fez sentido para mim. Meus olhos têm se cansado tanto nos últimos tempos. Acho que tem alguma coisa errada com aquela maldita coisa-projetora-lupa que eu tenho de usar para ler. Parece que não projeta mais as palavras com clareza.
Shevek olhou o homem com remorso e afeto, mas não lhe disse mais nada sobre o andamento de sua teoria.
Convites para recepções, inaugurações, estreias e por aí afora eram entregues a Shevek todos os dias. Comparecia a alguns desses eventos, pois viera a Urras numa missão e precisava tentar cumpri-la: precisava estimular a ideia de fraternidade, precisava representar, em sua própria pessoa, uma solidariedade de dois mundos. Ele falava, as pessoas o escutavam e diziam “é verdade”.
Perguntava-se por que o governo não o impedia de falar. Com seus próprios objetivos em mente, Chifoilisk deve ter exagerado a extensão do controle e da censura que podiam exercer. Ele falava em puro anarquismo, e não o impediam. Mas precisavam impedi-lo? Parecia que ele falava com as mesmas pessoas toda vez: bem-vestidas, bem alimentadas, de boas maneiras, sorridentes. Será que eram o único tipo de gente em Urras?
– É a dor que une os homens – dizia Shevek em pé diante delas, e elas concordavam com a cabeça e diziam: – É verdade.
Ele começou a odiá-las e, percebendo isso, abruptamente deixou de aceitar seus convites.
Mas fazer isso era aceitar o fracasso e aumentar seu isolamento. Não estava fazendo o que tinha vindo fazer ali. Não eram os outros que tinham rompido relações com ele, dizia a si mesmo; ele é que tinha – como sempre – rompido relações com os outros. Estava sozinho, uma solidão sufocante, em meio às pessoas que via todos os dias. O problema é que ele não estava em contato. Sentia que não havia feito contato com nada, com ninguém em Urras, durante todos aqueles meses.
Uma noite, sentado à mesa no Refeitório dos Decanos, ele disse:
– Sabe, não sei como vocês vivem aqui. Vejo as casas particulares por fora. Mas por dentro só conheço a sua vida não particular: sala de reuniões, refeitórios, laboratórios...
No dia seguinte, Oiie, com certa formalidade, perguntou se Shevek não gostaria de jantar e passar a noite em sua casa, no fim de semana seguinte.
Ficava em Amoeno, um vilarejo a alguns quilômetros de distância de Ieu Eun, e era, pelos padrões urrastis, uma casa modesta, mais antiga do que a maioria, talvez. Fora construída de pedra, cerca de trezentos anos antes, e os cômodos tinham paredes de madeira almofadadas. O característico arco duplo iota fora usado nas janelas e nas portas de entrada. Uma relativa ausência de mobília agradou os olhos de Shevek de imediato: os cômodos eram austeros, espaçosos, com amplos pisos fortemente polidos. Sempre se sentira perturbado em meio às decorações e confortos extravagantes dos edifícios públicos nos quais se realizavam as recepções, inaugurações e por aí afora. Os urrastis tinham bom gosto, o qual, entretanto, muitas vezes parecia estar em conflito com um impulso ao exibicionismo – ao gasto ostensivo. A origem natural e estética do desejo de possuir coisas era dissimulada e pervertida por compulsões competitivas e econômicas que, por sua vez, prejudicavam a qualidade das coisas: tudo o que alcançavam era uma espécie de prodigalidade mecânica. Ali naquela casa, ao contrário, havia graça, alcançada pela sobriedade.
Um criado os ajudou a tirar os casacos, à entrada. A esposa de Oiie subiu da cozinha no subsolo, onde estivera instruindo a cozinheira, e veio cumprimentar Shevek.
Enquanto conversavam antes do jantar, Shevek viu-se falando quase exclusivamente com ela, com simpatia, com desejo de que ela gostasse dele, e isso o surpreendeu. Mas era tão bom conversar com uma mulher de novo! Não era à toa que tinha a sensação de levar uma existência isolada, artificial, entre homens, sempre homens, faltando a tensão e a atração da diferença sexual. E Sewa Oiie era atraente. Olhando as delicadas linhas de sua nuca e de suas têmporas, ele perdeu as objeções que fazia à moda urrasti de raspar a cabeça das mulheres. Ela era reticente, bem tímida; tentou fazê-la sentir-se à vontade com ele e ficou satisfeito quando pareceu estar conseguindo.
Entraram para jantar e duas crianças se uniram a eles à mesa. Sewa Oiie desculpou-se:
– Simplesmente não se encontra mais uma babá decente nesta parte do país – ela disse. Shevek assentiu, sem saber o que era uma babá. Observava os garotinhos com o mesmo alívio, o mesmo deleite. Mal tinha visto uma criança desde que partira de Anarres.
Os garotos eram crianças muito asseadas e tranquilas, que só falavam quando lhe dirigiam a palavra, vestidos em casacos e calções de veludo azul. Olhavam Shevek com assombro, como uma criatura do espaço sideral. O de 9 anos era severo com o de 7 anos, murmurava para ele não ficar olhando e o beliscava com força quando ele desobedecia. O pequeno beliscava de volta e tentava chutá-lo por baixo da mesa. O Princípio da Superioridade parecia não estar bem introduzido em sua mente ainda.
Oiie era um homem mudado em casa. O olhar reservado sumiu de seu rosto, e ele não falava arrastado. Sua família o tratava com respeito, mas o respeito era mútuo. Shevek ouvira muitas opiniões de Oiie sobre as mulheres e surpreendeu-se ao ver que ele tratava sua esposa com cortesia, até delicadeza. “Isso é cavalheirismo“, pensou Shevek, por ter aprendido a palavra recentemente, mas logo concluiu que se tratava de algo melhor. Oiie gostava de sua esposa e confiava nela. Ele se comportava com ela e com as crianças como um anarresti poderia se comportar. Na verdade, em casa, ele de repente parecia um homem simples e fraternal, um homem livre.
Shevek considerou essa liberdade muito limitada, uma família muito reduzida, mas sentiu-se tão à vontade, tão mais livre ele próprio, que não se sentiu disposto a criticar.
Numa pausa após a conversa, o garoto mais novo disse com sua vozinha límpida:
– O sr. Shevek não tem muito boas maneiras.
– Por que não? – Shevek perguntou antes que a esposa de Oiie repreendesse a criança. – O que foi que eu fiz?
– O senhor não disse obrigado.
– Quando?
– Quando eu passei o prato de picles.
– Ini! Fique quieto!
Sadik! Não egoíze! O tom era exatamente o mesmo.
– Pensei que você estivesse compartilhando comigo. Era um presente? No meu país, só dizemos obrigado quando ganhamos presentes. As outras coisas nós compartilhamos, sem falar nelas, entende? Gostaria que eu lhe devolvesse os picles?
– Não, eu não gosto de picles – a criança disse, olhando o rosto de Shevek com seus olhos muito escuros e límpidos.
– Isso torna o compartilhamento bem mais fácil – disse Shevek. O garoto mais velho se contorcia pelo desejo reprimido de beliscar Ini, mas Ini riu, mostrando os dentinhos brancos. Após uns instantes, numa outra pausa, ele disse em voz baixa, inclinando-se para Shevek:
– O senhor gostaria de ver minha lontra?
– Sim.
– Ela está no quintal. Minha mãe pôs para fora porque achou que ela ia incomodar o senhor. Alguns adultos não gostam de animais.
– Eu gosto de vê-los. Não temos animais no meu país.
– Não? – perguntou o garoto mais velho, encarando-o. – Pai, o sr. Shevek está dizendo que eles não têm nenhum animal!
Ini também o encarou.
– Mas o que vocês têm?
– Outras pessoas. Peixes. Minhocas. E pés de holum.
– O que é holum?
A conversa prosseguiu por meia hora. Foi a primeira vez que pediram a Shevek, em Urras, para descrever Anarres. As crianças faziam as perguntas, mas os pais ouviam com interesse. Shevek deixou o modo ético de lado com algum escrúpulo; não estava ali para doutrinar os filhos de seu anfitrião. Apenas contou como era a poeira, como era Abbenay, que roupas usavam, o que as pessoas faziam quando queriam roupas novas, o que as crianças faziam na escola. Este último item virou propaganda, apesar de suas intenções. Ini e Aevi ficaram extasiados com a descrição do currículo, que incluía cultivo, carpintaria, tratamento de esgoto, impressão, encanamento, recuperação de estradas, dramaturgia e todas as outras ocupações da comunidade adulta, e com a informação de que ninguém jamais era punido por nada.
– Porém, às vezes – disse – eles mandam você ficar sozinho por um tempo.
– Mas o que – perguntou Oiie abruptamente, como se a pergunta, engasgada há longos minutos, explodisse dele sob pressão –, o que mantém as pessoas em ordem? Por que não roubam e não se matam uns aos outros?
– Ninguém possui nada para ser roubado. Se você quiser algo, é só pegar nos depósitos. Quanto à violência, bem, não sei, Oiie; você me mataria, via de regra? E se tivesse vontade, alguma lei o impediria? A coerção é o meio menos eficaz de se obter ordem.
– Tudo bem, mas como vocês conseguem que as pessoas façam o trabalho sujo?
– Que trabalho sujo? – perguntou a esposa de Oiie, sem entender.
– Coleta de lixo, abertura de covas – respondeu Oiie; Shevek acrescentou:
– Mineração – e quase disse “processamento de merda”, mas lembrou-se do tabu iota com relação a palavras escatológicas. Percebera, logo no início de sua estada em Urras, que os urrastis viviam em meio a montanhas de excremento, mas nunca mencionavam a palavra merda.
– Bem, todos nós fazemos esses serviços. Mas ninguém os faz por muito tempo, a menos que se goste do trabalho. Uma vez por décade, o comitê de gerenciamento da comunidade, ou o comitê do quarteirão, ou qualquer um que precise pode pedir que você entre para o trabalho, eles fazem listas de rodízio. E os postos de trabalho desagradáveis ou perigosos, como nas minas de mercúrio e usinas, normalmente são executados somente por meio ano.
– Mas então toda equipe deve consistir de pessoas que estão apenas aprendendo o serviço.
– Sim, não é eficiente, mas o que mais se pode fazer? Não se pode obrigar um homem a ficar num trabalho que vai mutilá-lo ou matá-lo em poucos anos. Por que ele faria isso?
– Ele pode recusar a ordem?
– Não é uma ordem, Oiie. Ele vai à Divlab, o escritório da Divisão Laboral, e diz “eu quero fazer tal e tal trabalho, o que vocês têm?”. E eles dizem onde existem postos.
– Mas então por que as pessoas escolhem fazer o serviço sujo? Por que aceitam fazer o trabalho dos rodízios da décade?
– Porque fazem juntas... E há outros motivos. Você sabe que a vida em Anarres não é tão rica quanto a daqui. Nas pequenas comunidades não há muita diversão, e há muito trabalho a fazer. Então, se você trabalha a maior parte do tempo num tear, a cada dez dias é agradável sair e instalar um cano, ou arar um campo, com um grupo diferente de pessoas... E também há o desafio. Aqui vocês acham que o incentivo para trabalhar é financeiro, necessidade de dinheiro ou desejo por lucro, mas onde não existe dinheiro as motivações reais ficam mais claras, talvez. As pessoas gostam de fazer as coisas. Gostam de fazer bem. As pessoas escolhem os serviços perigosos e difíceis porque se orgulham de fazê-los, elas podem... egoizar, como dizemos... se gabar?... aos mais fracos. Ei, vejam, meninos, como sou forte! Sabe como é? A pessoa gosta de fazer aquilo em que tem talento... Mas, na verdade, é uma questão de meios e fins. Afinal, o trabalho é feito só pelo trabalho em si. É o prazer duradouro da vida. A consciência particular sabe disso. E também a consciência social, a opinião do vizinho. Não há nenhuma outra recompensa, em Anarres, nenhuma outra lei. Só o próprio prazer e o respeito dos companheiros. Quando é assim, dá para entender que a opinião dos vizinhos torna-se uma força muito poderosa.
– Ninguém nunca a desafia?
– Talvez não com bastante frequência – disse Shevek.
– Então todo mundo trabalha muito? – perguntou a esposa de Oiie. – O que acontece com um homem que simplesmente se recusa a cooperar?
– Bem, ele vai embora. Os outros se cansam dele, sabe. Zombam, tratam mal, batem nele; numa comunidade pequena, podem concordar em tirar o nome dele das listas de refeições, para que ele cozinhe e coma sozinho; isso é humilhante. Então ele fica em outro lugar por algum tempo e depois pode se mudar outra vez. Alguns fazem isso a vida inteira. São chamados de nuchnibi. Eu sou meio nuchnib. Estou aqui, fugindo do meu próprio posto. Mudei-me para mais longe que a maioria – falou Shevek, com tranquilidade; se havia amargura em sua voz, não era discernível às crianças, nem explicável aos adultos. Mas um pequeno silêncio se seguiu às suas palavras.
– Não sei quem faz o serviço sujo aqui – ele disse. – Nunca o vejo sendo feito. É estranho. Quem faz? Por que fazem? Eles ganham mais?
– Para o trabalho perigoso, às vezes. Para tarefas meramente servis, não. Ganham menos.
– Por que fazem, então?
– Porque ganhar pouco é melhor do que não ganhar nada – disse Oiie, e a amargura em sua voz era muito clara. Sua esposa começou a falar de modo nervoso para mudar de assunto, mas ele continuou. – Meu avô era zelador. Esfregou o chão e trocou os lençóis sujos num hotel por cinquenta anos. Dez horas por dia, seis dias por semana. Ele fazia isso para a família poder comer. – Oiie parou abruptamente e olhou de relance para Shevek com seu velho olhar reservado e desconfiado, e depois, quase com desafio, para a sua esposa. Ela não olhou nos olhos dele. Sorriu e falou numa voz infantil e nervosa:
– O pai de Demaere foi um homem muito bem-sucedido. Era dono de quatro empresas quando morreu. – Seu sorriso era de o uma pessoa que sofria, e suas mãos delgadas e morenas pressionavam-se firmemente uma sobre a outra.
– Suponho que não haja homens bem-sucedidos em Anarres – disse Oiie, com pesado sarcasmo. Então a cozinheira entrou para trocar os pratos, e ele parou de falar na mesma hora. O garoto Ini, como se soubesse que a conversa séria não seria retomada enquanto a criada estivesse ali, disse:
– Mãe, o sr. Shevek pode ver minha lontra quando acabar o jantar?
Quando retornaram à sala de estar, Ini recebeu permissão de trazer o animal de estimação para dentro: uma lontra terrestre pequena, animal comum em Urras. Tinham sido domesticadas, explicou Oiie, desde os tempos pré-históricos, primeiro usadas como apanhadores de peixes, depois como animais de estimação. A criatura tinha pernas curtas, um lombo arqueado e flexível, pelo marrom-escuro brilhante. Era o primeiro animal solto que Shevek via de perto, e o bicho teve menos medo dele do que ele do bicho. Os dentes brancos e afiados eram impressionantes. Estendeu a mão com cautela para acariciá-lo, e Ini insistiu que o fizesse. A lontra sentou-se sobre os quadris e olhou para ele. Os olhos do animal eram escuros, raiados de dourado, inteligentes, curiosos, inocentes.
– Ammar – Shevek sussurrou, capturado por aquele olhar que atravessava o golfo da existência – irmão.
A lontra grunhiu, ficou de quatro e examinou os sapatos de Shevek com interesse.
– Ele gosta do senhor – Ini disse.
– E eu gosto dele – Shevek respondeu, com certa tristeza. Sempre que via um animal, o voo dos pássaros, o esplendor das árvores de outono, vinha-lhe aquela tristeza que dava um gosto amargo ao deleite. Ele não pensava conscientemente em Takver nesses momentos, não pensava em sua ausência. De certa forma, era como se ela estivesse lá, embora ele não estivesse pensando nela. Era como se a beleza e a estranheza dos animais e das plantas de Urras tivessem sido carregadas com uma mensagem de Takver, que jamais os veria, cujos ancestrais de sete gerações jamais tocaram o pelo morno de um animal, nem viram o bater de asas nas sombras das árvores.
Ele passou a noite num quarto no sótão, sob os beirais. O quarto era frio, algo bem-vindo depois do eterno e excessivo aquecimento dos cômodos da universidade, e muito simples: a cama, estantes de livros, uma cômoda e uma mesa de madeira pintada. Era como estar em casa, pensou, ignorando a altura da cabeceira da cama e a maciez do colchão, os delicados cobertores de lã e os lençóis de seda, os bibelôs de marfim sobre a cômoda, a encadernação de couro dos livros e o fato de que o quarto, e tudo o que havia nele, e a casa em que estava, e o terreno que a casa ocupava eram propriedade privada, a propriedade de Demaere Oiie, embora ele não a tivesse construído e não esfregasse o seu chão. Shevek pôs de lado essas discriminações tão cansativas. Era um ótimo quarto e não muito diferente de um quarto de solteiro num domicílio.
Dormindo naquele quarto, sonhou com Takver. Sonhou que ela estava com ele na cama, seus braços entrelaçados nele, o corpo junto ao seu... mas qual quarto, em que quarto estavam? Onde estavam? Estavam juntos na Lua, fazia frio, e eles caminhavam juntos. Era um lugar plano, a Lua, todo coberto de neve branca-azulada, embora a neve fosse fina e fácil de afastar com um pontapé, revelando o luminoso solo branco. Era morto, um lugar morto. “Não é bem assim”, ele disse a Takver, sabendo que ela estava com medo. Caminhavam na direção de algo, uma linha longínqua de algo que parecia frágil e brilhante, como plástico, uma barreira remota, quase invisível, do outro lado da planície de neve. Em seu coração, Shevek tinha medo de se aproximar, mas disse a Takver: “Logo chegaremos”. Ela não respondeu.
6
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Quando Shevek recebeu alta após uma décade no hospital, seu vizinho do Quarto 45 veio visitá-lo. Era um matemático, muito alto e magro. Tinha um olho estrábico não corrigido e, assim, nunca se tinha certeza se ele estava olhando para a pessoa e/ou a pessoa estava olhando para ele. Shevek e ele tinham uma convivência amigável, lado a lado no domicílio do Instituto, há um ano, sem nunca terem trocado uma frase inteira.
Então Desar entrou e encarou Shevek, ou o que estava ao lado dele.
– Alguma coisa? – perguntou.
– Eu estou bem, obrigado.
– Que tal jantar do refeitório?
– Com o seu? – perguntou Shevek, influenciado pelo estilo telegráfico de Desar.
– Tudo bem.
Desar trouxe dois jantares numa bandeja do refeitório do Instituto, e eles comeram juntos no quarto de Shevek. Ele fez a mesma coisa de manhã e à noite por três dias, até Shevek sentir-se em condições de sair de novo. Era difícil entender por que Desar fazia isso. Ele não era simpático, e as expectativas de fraternidade pareciam não significar muito para ele. Um dos motivos que o levavam a se afastar das pessoas era esconder sua desonestidade; ou era espantosamente preguiçoso ou francamente proprietário, pois o Quarto 45 estava cheio de coisas que ele não tinha direito, nem motivo, de guardar: pratos do refeitório, livros das bibliotecas, um conjunto de ferramentas talhadeiras do depósito de suprimentos de artes e ofícios, um microscópio de algum laboratório, oito cobertores diferentes, um armário cheio de roupas, algumas das quais claramente não serviam nem nunca tinham servido em Desar, outras que ele devia ter usado quando tinha 8 ou 10 anos. Era como se ele fosse a depósitos e armazéns e pegasse tudo o que pudesse carregar, precisasse desses objetos ou não.
– Por que você guarda essa tralha toda? – Shevek perguntou quando esteve no quarto do vizinho pela primeira vez.
Desar olhou para algum ponto entre ele e Shevek:
– Fui acumulando – ele respondeu de modo vago.
O campo da matemática escolhido por Desar era tão esotérico que ninguém no Instituto ou na Federação de Matemática conseguia de fato verificar o seu desempenho. Era precisamente por isso que ele o escolhera. Presumiu que a motivação de Shevek fosse a mesma.
– Que diabos – ele disse –, trabalho? Bom posto aqui. Sequência, Simultaneidade, merda. – Às vezes Shevek gostava de Desar, e às vezes o detestava, pelas mesmas qualidades. Apegou-se a ele, entretanto, deliberadamente, como parte de sua resolução para mudar de vida.
Sua doença o fizera perceber que, se tentasse continuar sozinho, iria desmoronar de uma vez. Via isso em termos morais e julgou a si próprio de maneira implacável. Vinha se guardando para si mesmo, contra o imperativo ético da fraternidade. Aos 21 anos, Shevek não era exatamente um pedante, devido à sua moralidade apaixonada e drástica; ainda assim, essa moralidade se ajustava a um modelo rígido, o Odonismo simplista ensinado às crianças por adultos medíocres, um sermão incorporado.
Estivera agindo errado. Tinha de agir certo. E agiu.
Proibiu-se de estudar física em cinco noites a cada dez. Voluntariou-se para o trabalho de comitê na gerência de domicílios do Instituto. Frequentava as reuniões da Federação de Física e do Sindicato dos Membros do Instituto. Matriculou-se num grupo que praticava exercícios de biofeedback e treinamento de ondas cerebrais. No refeitório, forçava-se a sentar às mesas grandes, em vez da pequena, com um livro à sua frente.
Era surpreendente: as pessoas pareciam estar à sua espera. Elas o incluíram, o acolheram, o convidaram como companheiro e colega. Levaram-no a todo lugar com eles e, em três décades, aprendeu mais sobre Abbenay do que tinha aprendido em um ano. Acompanhava animados grupos de jovens a campos de atletismo, centros de artes e ofícios, piscinas, festivais, museus, teatros, concertos.
Os concertos! Foram uma revelação, um choque de alegria, em parte porque ele pensava na música como algo para se fazer, não para se ouvir. Quando criança, sempre cantava ou tocava um instrumento ou outro, em corais e grupos locais; tinha gostado muito da experiência, mas não demonstrara muito talento. E isto era tudo o que conhecia de música.
Os centros de aprendizagem ensinavam todas as habilidades à prática da arte: treinamento em canto, métrica, dança, uso do pincel, do cinzel, da faca, do torno mecânico e assim por diante. Era tudo pragmático: as crianças aprendiam a ver, falar, ouvir, a se mexer, a manusear. Não havia distinção entre as artes e os ofícios; não se considerava a arte como tendo um lugar na vida, mas como sendo uma técnica básica da vida, como a fala. Desse modo, a arquitetura tinha desenvolvido, desde cedo e livremente, um estilo consistente, puro e simples, sutil em proporção. A pintura e a escultura serviam, em grande parte, como elementos da arquitetura e do planejamento urbano. Quanto às artes das palavras, a poesia e a narrativa tendiam a ser efêmeras, a ser ligadas à música e à dança; apenas o teatro se sustentava totalmente sozinho, e apenas o teatro era chamado de “a Arte” – algo completo em si mesmo. Havia muitas trupes regionais e itinerantes de atores e dançarinos, companhias de repertório, muitas vezes com o próprio dramaturgo. Encenavam tragédias, comédias semi-improvisadas, mímicas. As trupes eram bem-vindas como chuva nas cidades solitárias do deserto, eram a glória do ano aonde quer que fossem. O drama, fruto e encarnação do isolamento e do espírito comunitário anarresti, alcançara força e brilho extraordinários.
Shevek, entretanto, não era muito sensível à arte dramática. Gostava do esplendor verbal, mas a ideia toda de atuação não combinava com ele. Foi somente no segundo ano em Abbenay que ele finalmente descobriu a sua Arte: a arte feita do tempo. Alguém o levou a um concerto no Sindicato de Música. Ele voltou no dia seguinte. Foi a todos os concertos, com os novos conhecidos, se fosse possível, e sozinho, se necessário. A música era uma necessidade mais urgente, uma satisfação mais profunda do que o companheirismo.
Seus esforços para romper sua reclusão essencial foram, na verdade, um fracasso, e ele sabia disso. Não fez nenhum amigo íntimo. Copulou com algumas moças, mas a cópula não era o júbilo que deveria ser. Era mero alívio de uma necessidade, como evacuar, e ele sentia vergonha depois, pois envolvia outra pessoa como objeto. Era preferível a masturbação, uma conduta adequada a um homem como ele. Solidão era a sua sina; estava preso em sua hereditariedade. Ela havia dito: “O trabalho vem primeiro”. Rulag dissera isso calmamente, afirmando um fato, impotente para mudá-lo, para escapar de sua célula fria. E era assim também com ele. Seu coração ansiava por elas, pelas almas jovens e amáveis que o chamavam de irmão, mas ele não conseguia alcançá-las, nem elas a ele. Ele nascera para ser só, um maldito intelectual frio, um egoísta.
O trabalho vinha em primeiro lugar, mas não ia a lugar algum. Como o sexo, deveria ter sido um prazer, mas não era. Ele ficava remoendo os mesmos problemas, não se aproximando sequer um passo da solução do Paradoxo Temporal de To, muito menos da Teoria da Simultaneidade, que, no ano anterior, pensara estar quase ao seu alcance. Essa segurança agora lhe parecia inacreditável. Ele realmente se achara capaz, aos 20 anos, de desenvolver uma teoria que iria mudar as fundações da Física Cosmológica? Evidentemente, estivera fora de si muito antes da febre. Matriculou-se em dois grupos de trabalho em Matemática Filosófica, convencendo-se de que precisava deles e recusando-se a admitir que poderia conduzi-los tão bem quanto os instrutores. Evitava Sabul o máximo possível.
Na primeira explosão de novas resoluções, decidiu conhecer Gvarab melhor. Ela correspondeu da melhor maneira que pôde, mas o inverno tinha sido severo com ela; estava doente, surda e velha. Começou a ministrar um curso de primavera, mas desistiu. Estava errática, ora mal reconhecendo Shevek, ora arrastando-o até seu domicílio para uma noite inteira de conversa. Ele, de certa forma, já ultrapassara as ideias de Gvarab e achava penosas aquelas longas conversas. Ou deixava Gvarab aborrecê-lo por horas, repetindo o que ele já sabia ou havia em parte refutado, ou teria de magoá-la e confundi-la tentando corrigir-lhe o raciocínio. Isso estava além da paciência ou tato de qualquer pessoa da idade dele, e ele acabou por evitar Gvarab sempre que podia, e sempre com a consciência pesada.
Não havia mais ninguém com quem conversar sobre trabalho. Ninguém no Instituto sabia o suficiente sobre Física Temporal pura para acompanhá-lo. Ele teria gostado de ensinar a matéria, mas ainda não lhe haviam oferecido um posto de professor ou uma sala de aula no Instituto; o Sindicato dos Membros do corpo docente e discente recusou seu pedido. Não queriam entrar em atrito com Sabul.
No decorrer do ano, dedicou boa parte do tempo escrevendo cartas para Atro e outros físicos e matemáticos de Urras. Poucas dessas cartas foram enviadas. Algumas escrevia e depois simplesmente rasgava. Descobriu que o matemático Loai Na, a quem escrevera uma dissertação de seis páginas sobre a Reversibilidade do Tempo, já estava morto havia vinte anos; negligenciara a leitura do prefácio biográfico de Geometrias do Tempo, assinado por An. Outras cartas, que tentou enviar pelas naves cargueiras de Urras, foram interceptadas pelos administradores do Porto de Abbenay. O Porto estava sob o controle direto do CPD, já que sua operação envolvia a coordenação de muitos sindicatos, e alguns dos coordenadores tinham de saber iótico. Esses administradores do Porto, com seu conhecimento especial e posição importante, tendiam a adquirir a mentalidade burocrática: diziam “não” automaticamente. Desconfiavam das cartas a matemáticos, pois pareciam códigos, e não havia ninguém para lhes garantir que não eram códigos. Cartas a físicos passavam se Sabul, seu consultor, as aprovasse. Ele não aprovava as que tratavam de assuntos fora de sua própria área de Física Sequencial. “Está fora da minha competência”, resmungava, pondo a carta de lado. Ainda assim, Shevek a enviava aos administradores do Porto, e a carta era devolvida com o carimbo “Não aprovada para exportação”.
Levou a questão à Federação de Física, que Sabul raramente se dava ao trabalho de frequentar. Ninguém ali dava importância ao tema da livre comunicação com o inimigo ideológico. Alguns repreendiam Shevek por trabalhar num campo tão hermético que não havia, como ele próprio admitia, mais ninguém em seu próprio planeta com competência para entendê-lo.
– Mas é porque é um campo novo – dizia, o que não adiantava nada.
– Se é novo, compartilhe conosco, não com os proprietários!
– Já faz um ano que eu tento oferecer um curso todo trimestre. Vocês sempre dizem que não há demanda suficiente para o curso. Vocês estão com medo por ser algo novo?
Isso não o fez ganhar nenhum amigo. Ele os deixou furiosos.
Continuou a escrever cartas para Urras, mesmo quando não enviava nenhuma. O fato de escrever para alguém que talvez o entendesse – que talvez o tivesse entendido – tornava-lhe possível escrever, pensar. Senão, não seria possível.
As décades se passaram, e os trimestres. Duas ou três vezes por ano a recompensa chegava: uma carta de Atro ou de outro físico de A-Io ou Thu, uma longa carta, escrita no mesmo nível, argumentada no mesmo nível, da saudação à assinatura, toda com intensa e complexa Física Temporal Metamatemático-Ético-Cosmológica, escrita numa língua que ele não falava, por homens que ele não conhecia e que tentavam intensamente combater e destruir suas teorias, inimigos de sua terra natal, rivais, estranhos, irmãos.
Por vários dias após receber uma carta, ele ficava irascível e alegre, trabalhava dia e noite, jorrando ideias como uma fonte. Então, lentamente, debatia-se em esguichos curtos e desesperados e voltava à terra, ao solo árido, e secava.
Estava terminando o terceiro ano no Instituto quando Gvarab morreu. Ele pediu para falar no velório, que foi realizado, como era o costume, no local onde o falecido trabalhara: neste caso, uma das salas de aula no prédio do laboratório de física. Ele foi o único orador. Nenhum aluno compareceu; Gvarab não dava aulas havia dois anos. Alguns membros idosos do Instituto vieram, e o filho de meia-idade de Gvarab, um químico agrícola do Nordeste, estava lá. Shevek ficou em pé onde a idosa costumava ficar quando dava aulas. Disse àquelas pessoas, numa voz rouca pelo seu agora costumeiro resfriado de inverno, que Gvarab lançara as bases da ciência do tempo e era a maior cosmóloga que já trabalhara no Instituto.
– Nós da física temos nossa Odo agora – ele disse. – Nós a temos, mas não soubemos honrá-la. – Depois, uma idosa lhe agradeceu, com lágrimas nos olhos.
– Nós sempre fazíamos o serviço da dezena juntas, ela e eu, como zeladoras do nosso quarteirão, e passamos momentos tão bons, conversando – ela disse, estremecendo no vento gelado quando saíram do prédio. O químico agrícola murmurou cortesias e apressou-se para pegar uma carona de volta ao Nordeste. Num súbito acesso de sofrimento, impaciência e sensação de inutilidade, Shevek saiu caminhando a passos largos pela cidade.
Três anos ali, e ele tinha realizado o quê? Um livro, de que Sabul se apropriara; cinco ou seis estudos não publicados; e um discurso de velório por uma vida desperdiçada.
Nada do que fazia era compreendido. Para ser mais honesto, nada do que fazia tinha significado. Ele não estava exercendo nenhuma função necessária, pessoal ou social. Na verdade – e esse não era um fenômeno incomum em sua área –, estava esgotado aos 20 anos. Não realizaria mais nada. Tinha deparado com o muro para sempre.
Parou diante do auditório do Sindicato de Música para ler os programas da décade. Não havia nenhum concerto aquela noite. Afastou-se do cartaz e deu de cara com Bedap.
Bedap, sempre defensivo e bastante míope, não deu sinal de reconhecê-lo. Shevek pegou-lhe no braço.
– Shevek! Caramba, é você! – Abraçaram-se, beijaram-se, apartaram-se, voltaram a se abraçar. Shevek foi inundado de amor. Por quê? Ele nem gostava muito de Bedap naquele último ano no Instituto Regional. Nunca se corresponderam nos últimos três anos. A amizade deles era de infância, do passado. No entanto, o amor estava ali: flamejava como brasa atiçada.
Caminharam, conversaram, nenhum dos dois percebendo aonde iam. Abanavam os braços e se interrompiam. As ruas largas de Abbenay estavam calmas na noite de inverno. A cada cruzamento, a luz turva do poste de iluminação formava uma poça prateada, através da qual a neve seca se agitava como um cardume de peixinhos perseguindo a própria sombra. Lábios dormentes e dentes tiritando começaram a interferir na conversa. Pegaram o ônibus das dez, o último, para o Instituto; o domicílio de Bedap ficava no extremo leste da cidade, uma caminhada longa no frio.
Bedap olhou o Quarto 46 com admiração irônica.
– Shev, você vive como um urrasti explorador podre.
– Sem essa, não é tão mau assim. Mostre qualquer coisa excrementícia aqui! – De fato, o quarto continha praticamente as mesmas coisas de quando Shevek entrou ali pela primeira vez. Bedap apontou:
– Esse cobertor.
– Já estava aqui quando cheguei. Alguém fez à mão e deixou aí quando se mudou. Um cobertor é excessivo numa noite fria como esta?
– Mas a cor é definitivamente excrementícia – disse Bedap. – Como analista de funções, devo observar que não há necessidade da cor laranja. Essa cor não exerce nenhuma função vital no organismo social, no nível celular ou orgânico, e muito menos no nível ético mais central e holorgânico; e nesse caso a tolerância é uma opção pior do que a excreção. Mande tingi-lo de verde-sujo, irmão! E o que é tudo isso aqui?
– Anotações.
– Em código? – perguntou Bedap, folheando um caderno com a frieza que Shevek lembrava ser-lhe característica. Ele tinha ainda menos senso de privacidade – de propriedade privada – do que a maioria dos anarrestis. Bedap jamais tivera um lápis favorito que levasse para todo lugar, ou uma velha camisa à qual se afeiçoara, detestando ter de jogá-la no cesto de reciclagem, e se ganhasse um presente tentava mantê-lo em consideração ao doador, mas sempre o perdia. Tinha consciência dessa peculiaridade, e, segundo dizia, isso demonstrava que ele era menos primitivo do que a maioria das pessoas, um exemplo precoce do Homem Prometido, o verdadeiro e nato odoniano. Mas ele tinha, sim, um senso de privacidade. Começava na cabeça, dele ou de outrem, e dali em diante era completo. Jamais se metia na vida alheia. Disse agora: – Lembra aquelas cartas bobas que escrevíamos em código quando você estava no projeto de reflorestamento?
– Isso não é código, é iótico.
– Você aprendeu iótico? Por que escreve nessa língua?
– Porque ninguém neste planeta entende o que eu falo. Nem quer entender. A única pessoa que entendia morreu há três dias.
– O Sabul morreu?
– Não, Gvarab. Sabul não morreu. Sem chance!
– Qual o problema?
– O problema com Sabul? Em parte inveja e em parte incompetência.
– Pensei que o livro dele sobre causalidade fosse de primeira linha. Você mesmo disse.
– Eu pensava que sim, até ler as fontes. São todas ideias urrastis. E nem são novas. Ele não tem uma ideia própria há vinte anos. E há vinte anos não toma banho.
– E como vão as suas ideias? – perguntou Bedap, pondo a mão nos cadernos e olhando para Shevek com a testa franzida. Bedap tinha olhos pequenos e meio vesgos, um rosto forte, um corpo atarracado. Roía as unhas, e anos desse hábito reduziram-nas a meras tiras nas pontas de seus dedos grossos e sensíveis.
– Nada bem – disse Shevek, sentando-se na cama. – Estou no campo errado.
– Você? – Bedap deu um sorriso irônico.
– Acho que no fim do trimestre vou pedir uma remoção.
– Para onde?
– Pouco importa. Ensino, engenharia. Tenho que sair da física.
Bedap sentou-se na cadeira da escrivaninha, mordeu uma unha e disse:
– Isso é muito estranho.
– Reconheci minhas limitações.
– Não sabia que você tinha limitações. Em física, quero dizer. Você tinha todo tipo de defeitos e limitações. Mas não em física. Não sou nenhum temporalista, eu sei, mas não preciso saber nadar para conhecer um peixe, não preciso brilhar para reconhecer uma estrela...
Shevek olhou para seu amigo e deixou escapar o que nunca tinha conseguido dizer claramente a si mesmo:
– Pensei em suicídio. Pensei muito. Este ano. Parece a melhor solução.
– Dificilmente essa é a melhor solução para alcançar o outro lado do sofrimento.
– Você ainda se lembra disso? – Shevek deu um sorriso rígido.
– Vividamente. Foi uma conversa muito importante para mim. E para Takver e Tirin também, creio eu.
– Foi? – Shevek levantou-se. Só havia espaço para quatro passos no quarto, mas ele não conseguia ficar parado. – Foi importante para mim, na época – ele disse, em pé junto à janela. – Mas aqui eu mudei. Há algo errado aqui. Não sei o que é.
– Eu sei – disse Bedap. – O muro. Você se deparou com o muro.
Shevek virou-se com um olhar assustado.
– O muro?
– No seu caso, o muro parece ser Sabul, e os que o apoiam no Sindicato de Ciências, e o CPD. Quanto ao mim, estou em Abbenay há quatro décades. Quarenta dias. Tempo suficiente para ver que aqui, em quarenta anos, não vou realizar nada, absolutamente nada, do que quero fazer, o aperfeiçoamento do ensino de ciência nos centros de aprendizagem. A não ser que as coisas mudem. Ou a não ser que eu me junte aos inimigos.
– Inimigos?
– Os homenzinhos. Amigos de Sabul! As pessoas que estão no poder.
– Do que está falando, Dap? Não temos estrutura de poder.
– Não? Então por que Sabul é tão forte?
– Não uma estrutura de poder, um governo. Aqui não é Urras, afinal!
– Não. Não temos governo, nem leis, muito bem. Mas, pelo que eu saiba, ideias nunca foram controladas por leis e governos, mesmo em Urras. Se tivessem sido, como a Odo poderia ter desenvolvido as dela? Como o Odonismo teria se tornado um movimento mundial? Os hierarquistas tentaram esmagá-lo à força, mas fracassaram. Não se pode destruir ideias reprimindo-as. Só se pode destruí-las ignorando-as. Recusando-se a pensar, recusando-se a mudar. E é exatamente isso o que nossa sociedade está fazendo! Sabul usa você onde ele pode, e onde não pode ele o impede de publicar, de ensinar, e até de trabalhar. Certo? Em outras palavras, ele tem poder sobre você. E de onde ele tira esse poder? Não de uma autoridade investida, pois ela não existe. Ele tira o poder da covardia inata da mente humana média. Opinião pública! Essa é a estrutura de poder da qual ele faz parte e sabe usar. O não admitido e inadmissível governo que controla a sociedade odoniana pela repressão da mente individual.
Shevek apoiou as mãos no peitoril da janela, olhando através dos reflexos embaçados na vidraça para a escuridão lá fora. Por fim, disse:
– Que conversa maluca, Dap.
– Não, irmão, estou lúcido. O que enlouquece as pessoas é tentar viver fora da realidade. A realidade é terrível. Pode matá-lo. Com o tempo, é certeza de que irá matá-lo. A realidade é dor... Você disse isso! Mas são as mentiras, as fugas da realidade que o enlouquecem. São as mentiras que o fazem querer se matar.
Shevek virou-se para encará-lo.
– Mas você não pode estar falando sério sobre a existência de um governo aqui!
– Das Definições, de Tomar: “Governo: o uso legal do poder para manter e estender o poder”. Substitua “legal” por “habitual” e teremos Sabul, o Sindicato de Instrução e o CPD.
– O CPD!
– O CPD, a esta altura, é basicamente uma burocracia hierárquica.
Após um momento, Shevek riu, não com muita naturalidade, e disse:
– Ora, vamos, Dap, isso é divertido, mas um pouco doentio, não acha?
– Shevek, já lhe ocorreu que aquilo que o modo analógico chama de “doença”, desafeição social, descontentamento, alienação, pode ser analogicamente chamado de... dor, e foi o que você quis dizer quando falou sobre a dor e o sofrimento? E que, como a dor, ela tem uma função no organismo?
– Não! – respondeu Shevek, impetuosamente. – Eu estava falando em termos pessoais e espirituais.
– Mas você falou em sofrimento físico, de um homem morrendo com queimaduras. E eu falo de sofrimento espiritual! De pessoas vendo seu talento, seu trabalho, suas vidas serem desperdiçadas. De mentes inteligentes se submetendo a mentes burras. De força e coragem estranguladas pela inveja, pela cobiça por poder, pelo medo da mudança. Mudança é liberdade, mudança é vida... Existe alguma coisa mais básica ao pensamento odoniano do que isso? Mas não existe mais mudança! Nossa sociedade está doente. Você sabe disso. Você está sofrendo dessa doença. Dessa doença suicida!
– Chega, Dap. Pare com isso.
Bedap não disse mais nada. Começou a roer a unha do polegar metodicamente, pensativo.
Shevek tornou a sentar-se na cama e pôs a cabeça nas mãos. Houve um longo silêncio. A neve cessara. Um vento seco e escuro batia na vidraça. O quarto estava frio; nenhum dos dois jovens tirara o casaco.
– Escute, irmão – disse Shevek, enfim. – Não é a nossa sociedade que frustra a criatividade individual. É a pobreza de Anarres. Este planeta não é adequado à civilização. Se decepcionarmos uns aos outros, se não renunciarmos a nossos desejos pessoais pelo bem comum, nada, nada neste planeta árido pode nos salvar. A solidariedade humana é nosso único recurso.
– Sim, solidariedade! Até em Urras, onde a comida dá em árvores, até lá Odo disse que a solidariedade é a nossa esperança. Mas nós traímos essa esperança. Deixamos a cooperação virar obediência. Em Urras eles têm o governo da minoria. Aqui temos o governo da maioria. Mas é governo! A consciência social não é mais uma coisa viva, mas uma máquina, uma máquina de poder, controlada por burocratas!
– Você ou eu poderíamos nos voluntariar e sermos sorteados para um posto no CPD em algumas décades. Isso nos tornaria burocratas, patrões?
– Não são os indivíduos em postos no CPD, Shev. A maioria é como nós. Como nós até demais. Bem-intencionados, ingênuos. E não é só o CPD. É qualquer lugar em Anarres. Centros de aprendizagem, institutos, minas, usinas, indústria da pesca, de enlatados, estações de pesquisa e desenvolvimento agrícola, fábricas, comunidades de um só produto... qualquer lugar em que a função exija perícia e uma instituição estável. Mas essa estabilidade dá margem ao impulso autoritário. Nos primórdios da Colonização, tínhamos consciência disso, do cuidado que devíamos ter com isso. Naquela época, as pessoas faziam uma distinção meticulosa entre administrar coisas e governar pessoas. Fizeram isso tão bem a ponto de esquecermos que a vontade de dominar é tão crucial nos seres humanos quanto o impulso à ajuda mútua e que também deve ser treinada em cada indivíduo, em cada geração. Ninguém nasce odoniano, assim como ninguém nasce civilizado! Mas esquecemos isso. Não educamos para a liberdade. A educação, a atividade mais importante do organismo social, tornou-se rígida, moralista, autoritária. As crianças aprendem a papaguear as palavras de Odo como se fossem leis... a suprema blasfêmia!
Shevek hesitou. Tinha experimentado muito esse tipo de ensino quando criança, e até ali no Instituto, para ser capaz de negar a acusação de Bedap.
Bedap aproveitou sua vantagem de maneira implacável.
– É sempre mais fácil não pensar por si mesmo. É só encontrar uma bela e confortável hierarquia e se acomodar. Não faça mudanças, não corra o risco de ser desaprovado, não aborreça seus síndicos. É sempre mais fácil deixar-se governar.
– Mas não é governo, Dap! Os peritos e os mais experientes sempre vão dirigir qualquer equipe ou sindicato; eles conhecem melhor o trabalho. O trabalho tem de ser feito, afinal de contas! Quanto ao CPD, sim, ele poderia se tornar uma hierarquia, uma estrutura de poder, se não fosse organizado de modo a evitar exatamente isso. Veja como é constituído! Voluntários, escolhidos por sorteio; um ano de treinamento; depois, quatro anos como Alistado; depois, fora. Ninguém consegue conquistar poder, no sentido hierárquico, num sistema como esse, com apenas quatro anos dentro dele.
– Alguns ficam mais de quatro anos.
– Conselheiros? Eles não mantêm o voto.
– Votos não são importantes. Há pessoas nos bastidores...
– Ora! Isso é pura paranoia! Bastidores... como? Que bastidores? Qualquer um pode acompanhar qualquer reunião do CPD e, se for um síndico interessado, pode debater e votar! Você está tentando insinuar que temos políticos aqui? – Shevek estava furioso com Bedap; suas orelhas salientes ficaram vermelhas, sua voz se elevou. Era tarde, nenhuma luz acesa no quadrilátero. Desar, no Quarto 45, bateu na parede, pedindo silêncio.
– Estou dizendo o que você já sabe – respondeu Bedap, baixando a voz. – Que são pessoas como Sabul que de fato mandam no CPD, e mandam ano após ano.
– Se você sabe disso – Shevek acusou, num sussurro áspero –, então por que não tornou isso tudo público? Por que não convocou uma sessão crítica no seu sindicato, se existem fatos? Se suas ideias não resistem ao julgamento público, não quero ouvi-las em sussurros à meia-noite.
Os olhos de Bedap tinham ficado muito pequenos, como contas de aço.
– Irmão – ele disse –, você se acha moralmente superior. Sempre se achou. Olhe para fora de sua maldita consciência limpa pelo menos uma vez! Venho até você e sussurro porque sei que posso confiar em você, caramba! Com quem mais posso conversar? Você quer acabar como Tirin?
– Como Tirin? – Shevek assustou-se a ponto de erguer a voz. Bedap o silenciou com um gesto em direção à parede. – O que houve com Tirin? Onde ele está?
– No Manicômio da Ilha Segvina.
– No Manicômio?
Bedap sentou-se de lado na cadeira, levantou os joelhos até o queixo e os envolveu em seus braços. Falou calmamente agora, com relutância.
– Tirin escreveu uma peça e a encenou, no ano em que você foi embora. Era engraçada... louca... você conhece o jeito dele – Bedap passou a mão pelo cabelo áspero e ruivo, soltando o rabo de cavalo. – A peça poderia parecer antiodoniana a pessoas estúpidas. Há muita gente estúpida. Houve uma confusão. Ele foi repreendido. Repreensão pública. Nunca tinha visto uma. Todos vão à reunião do seu sindicato e o advertem. Era assim que reprimiam um chefe de equipe ou um administrador mandão. Agora usam a reprimenda pública para ordenar a um indivíduo que pare de pensar por si mesmo. Foi difícil. Tirin não aguentou. Acho que afetou um pouco mesmo a mente dele. Achou que todo mundo estava contra ele. Passou a falar demais... uma conversa amarga. Não irracional, mas sempre crítica, sempre amarga. E ele falava daquele jeito com todo mundo. Bem, ele terminou o Instituto, qualificou-se como instrutor de matemática e solicitou um posto. Conseguiu um. Na equipe de manutenção de estradas no Poente Sul. Ele protestou, alegando que havia algum engano, mas os computadores da Divlab repetiram a indicação. Então ele foi.
– Tirin nunca trabalhou ao ar livre no tempo todo em que o conheci – interrompeu Shevek. – Desde que tinha 10 anos. Ele sempre arranjava serviço em escritórios. A Divlab estava sendo justa.
Bedap não prestou atenção.
– Não sei o que realmente se passou lá no Poente Sul. Ele me escreveu várias vezes, e a cada vez tinha sido removido para um posto novo. Sempre trabalho braçal, em pequenas comunidades afastadas. Escreveu dizendo que ia abandonar o posto e voltar para o Poente Norte para me ver. Mas não veio. Parou de escrever. Finalmente, consegui localizá-lo através dos Arquivos Laborais de Abbenay. Enviaram-me a cópia do cartão dele, e a última entrada era apenas “Terapia. Ilha de Segvina”. Terapia! Tirin matou alguém? Violentou alguém? Por que motivo mandam gente para o Manicômio, além desses?
– Ninguém manda ninguém para um manicômio. Você é que solicita um posto lá.
– Não me venha com essa merda – Bedap disse, com fúria repentina. – Ele nunca pediu para ser mandado para lá! Eles o enlouqueceram e depois o mandaram para lá. É do Tirin que estou falando, Tirin, você se lembra dele?
– Eu o conheci antes de você. O que você acha que é o Manicômio... uma prisão? É um refúgio. Se lá existem assassinos e desertores inveterados do trabalho é porque eles pediram para ir para lá, onde não ficam sob pressão e estão a salvo de retaliações. Mas quem são essas pessoas de quem você não para de falar... “eles”? “Eles” o enlouqueceram e tal? Está insinuando que todo o sistema social é mau, que na verdade “eles”, os perseguidores de Tirin, seus inimigos, “eles” somos nós... o organismo social?
– Se você consegue descartar Tirin da sua consciência como um desertor do trabalho, acho que não tenho mais nada a lhe dizer – respondeu Bedap, encolhido na cadeira. Havia um pesar tão simples e sincero em sua voz que a ira virtuosa de Shevek cessou de repente.
Nenhum dos dois falou por um momento.
– É melhor eu ir para casa – disse Bedap, desdobrando as pernas rígidas e pondo-se de pé.
– É uma hora a pé daqui. Não seja estúpido.
– Bem, eu achei... já que...
– Não seja estúpido.
– Tudo bem. Onde é o banheiro?
– À esquerda, terceira porta.
Quando voltou, Bedap propôs dormir no chão, mas como não havia tapete e apenas um cobertor quente, essa ideia foi, como Shevek observou monotonamente, estúpida. Ambos estavam chateados e irritados; doloridos, como se tivessem trocado socos, mas sem pôr toda a raiva para fora. Shevek desenrolou a roupa de cama, e eles se deitaram. Quando a luz foi apagada, uma escuridão prateada entrou no quarto, a semiescuridão de uma noite na cidade quando há neve no chão e a luz reflete debilmente para cima a partir do solo. Estava frio. Cada um deles recebeu com agrado o calor do corpo do outro.
– Retiro o que eu disse sobre o cobertor.
– Escute, Dap, eu não quis...
– Ah, vamos conversar de manhã.
– Certo.
Chegaram mais perto um do outro. Shevek virou-se de bruços e dormiu em dois minutos. Bedap lutou para manter a consciência, entregou-se ao calor mais profundo, à vulnerabilidade, à confiança do sono, e dormiu. No meio da noite um deles gritou, sonhando. O outro estendeu o braço, sonolento, e murmurou algo tranquilizador, e o peso cego e quente daquele toque suplantou todo o medo.
Tornaram a se encontrar na noite seguinte e discutiram se deviam ou não ser pares por um tempo, como tinham sido na adolescência. O assunto precisava ser discutido, pois Shevek era definitivamente heterossexual e Bedap era definitivamente homossexual; o prazer seria sobretudo para Bedap. Shevek estava disposto, contudo, a reconfirmar a velha amizade; e quando percebeu que o elemento sexual significava bastante a Bedap, uma verdadeira consumação, tomou a iniciativa e, com muito carinho e obstinação, assegurou-se de que Bedap passaria a noite com ele outra vez. Foram a um quarto individual num domicílio no centro da cidade e moraram ali por uma décade; depois se separaram de novo, Bedap para seu dormitório e Shevek para o Quarto 46. Não havia um forte desejo sexual em nenhum dos dois para que a ligação durasse. Eles simplesmente reafirmaram a confiança.
No entanto, Shevek às vezes se perguntava, enquanto ia se encontrar com Bedap quase todos os dias, do que é que gostava em seu amigo e por que confiava nele. Considerava as atuais opiniões de Badap detestáveis, e sua insistência em conversar sobre elas, cansativa. Tinham discussões calorosas em quase todos os encontros. Magoavam-se bastante. Ao deixar Bedap, Shevek com frequência acusava a si mesmo de estar apenas se apoiando numa lealdade ultrapassada e, exasperado, jurava que não tornaria a vê-lo.
Mas o fato é que ele gostava mais de Bedap agora, como adulto, do que jamais gostara na adolescência. Inepto, insistente, dogmático, destrutivo: Bedap podia ser tudo isso, mas atingira a liberdade de pensamento que Shevek almejava, embora odiasse a expressão dessa liberdade. Ele mudara a vida de Shevek, e Shevek sabia disso, sabia que enfim seguiria em frente e que foi Bedap quem lhe possibilitara seguir em frente. Brigava com Bedap a cada passo do caminho, mas não deixava de ir vê-lo, para discutir, para magoar e ser magoado, para encontrar – sob raiva, negação e rejeição – o que procurava. Não sabia o que procurava, mas sabia onde procurar.
Foi, conscientemente, um período tão infeliz para ele como fora o ano anterior. Ainda não avançava em seu trabalho; na verdade, abandonara de uma vez a Física Temporal e retrocedera ao humilde trabalho de laboratório, realizando diversas experiências no laboratório de radiação, estudando velocidades subatômicas junto com um técnico hábil e silencioso. Era um campo muito explorado, e seu ingresso atrasado na área foi considerado por seus colegas como um reconhecimento de que ele finalmente tinha parado de tentar ser original. O Sindicato dos Membros do Instituto deu-lhe um curso para lecionar, Física Matemática para alunos iniciantes. Ele não teve nenhuma sensação de triunfo por finalmente terem lhe dado um curso, pois não passava disto: tinham lhe dado o curso, tinham lhe permitido. Não encontrava muito conforto em coisa alguma. O fato de os muros de sua consciência inflexível e puritana estarem se ampliando imensamente trazia-lhe tudo menos conforto. Sentia-se frio e perdido. Mas não tinha nenhum lugar para se refugiar, nenhum abrigo, então saía cada vez mais para o frio, ficando cada vez mais perdido.
Bedap fizera muitos amigos, um grupo errático e descontente, e alguns deles gostaram do homem tímido. Não se sentia mais próximo deles do que das pessoas mais convencionais do Instituto, embora a sua independência de pensamento fosse mais interessante. Preservavam a autonomia de consciência mesmo à custa de se tornarem excêntricos. Alguns eram nuchnibi intelectuais que há anos não trabalhavam num posto regular. Shevek os desaprovava com severidade quando não estava com eles.
Um desses amigos era um compositor chamado Salas. Salas e Shevek queriam aprender um com o outro. Salas sabia pouco de matemática, mas, quando Shevek conseguia explicar física nos modos analógico ou experimental, ele era um ouvinte ávido e inteligente. Do mesmo modo, Shevek ouvia qualquer coisa que Salas lhe dissesse sobre teoria musical e qualquer coisa que Salas tocasse no gravador ou em seu instrumento, o portátil. Mas achava algumas das coisas que Salas lhe dizia extremamente perturbadoras. Salas aceitara um posto na equipe de escavação de um canal nas Planícies de Temae, a leste de Abbenay. Ele vinha à cidade nos seus três dias de folga a cada décade e ficava com uma ou outra moça. Shevek presumiu que ele aceitara o posto porque queria um pouco de trabalho ao ar livre para variar; mas então descobriu que Salas nunca tivera um posto em música, ou em qualquer coisa a não ser trabalho não qualificado.
– Em que lista você está na Divlab? – Shevek perguntou, perplexo.
– Grupo de Serviços Gerais.
– Mas você é qualificado! Estudou seis ou oito anos no conservatório do Sindicato de Música, não foi? Por que não lhe dão um posto como professor de música?
– Eles me deram. Recusei. Só vou estar pronto para ensinar daqui a dez anos. Lembre que sou compositor, não intérprete.
– Mas deve haver postos para compositores.
– Onde?
– No Sindicato de Música, suponho.
– Mas os síndicos da Música não gostam das minhas composições. Quase ninguém gosta, ainda. Não posso formar um sindicato sozinho, posso?
Salas era um homenzinho ossudo, já calvo na fronte e no crânio; mantinha curto o cabelo que lhe restava, numa franja bege e sedosa em volta da nuca e no queixo. Tinha um sorriso doce que lhe enrugava o rosto expressivo.
– Eu não componho do modo como aprendi a compor no conservatório. Componho música disfuncional. – Deu um sorriso mais doce do que nunca. – Eles querem corais. Eu detesto corais. Querem peças de grande harmonia, como as que Sessur compôs. Eu odeio a música de Sessur. Estou escrevendo uma peça de câmara. Pensei em chamá-la de O Princípio da Simultaneidade. Cinco instrumentos, cada um tocando um tema cíclico independente; nenhuma causalidade melódica; todo o andamento na relação entre as partes. Daria uma harmonia adorável. Mas eles não a ouvem. Eles se recusam a ouvi-la. Não conseguem!
Shevek refletiu por um instante.
– Se você a chamasse de As Alegrias da Solidariedade, eles a ouviriam? – perguntou.
– Caramba! – exclamou Bedap, que estava ouvindo a conversa. – É a primeira coisa cínica que você disse na vida, Shev. Bem-vindo à equipe de trabalho!
Salas riu.
– Eles a ouviriam, mas a recusariam para gravação ou apresentação regional. Não é o Estilo Orgânico.
– Não é à toa que eu nunca ouvi nenhuma música profissional quando morei no Poente Norte. Mas como podem justificar esse tipo de censura? Você escreve música! Música é uma arte cooperativa, orgânica por definição, social. Talvez seja a forma mais nobre de comportamento social de que somos capazes. Seguramente é um dos trabalhos mais nobres que um indivíduo pode empreender. E por sua natureza, pela natureza de qualquer arte, é um compartilhamento. O artista compartilha, é a essência de seu ato. Não importa o que digam os seus síndicos, como a Divlab pode justificar não lhe darem um posto em seu próprio campo?
– Eles não querem compartilhar minha música – Salas disse, alegremente. – Ela os assusta.
Bedap falou com mais seriedade:
– Podem justificar porque a música não é útil. Escavar um canal é importante, você sabe; música é mera decoração. O círculo deu a volta ao tipo mais vil de utilitarismo explorador. A complexidade, a vitalidade, a liberdade de invenção e iniciativa, que eram o centro do ideal odoniano, jogamos fora. Retornamos à barbárie. Se é novo, fuja; se não pode comer, jogue fora!
Shevek pensou no próprio trabalho e não teve nada a dizer. No entanto, não podia se unir à crítica de Bedap. Bedap o forçara a perceber que ele era, na verdade, um revolucionário; mas sentia profundamente que o era somente por causa de sua criação e educação como um odoniano anarresti. Não podia se rebelar contra sua sociedade, pois sua sociedade, propriamente concebida, era uma revolução, uma revolução permanente, um processo contínuo. Para reafirmar sua validade e força, pensava ele, era preciso apenas agir, sem medo de punição e sem a esperança de recompensa; agir com o centro da alma.
Bedap e alguns de seus amigos iam tirar uma décade de folga juntos, numa excursão a pé pelas Ne Theras. Ele persuadira Shevek a ir também. Shevek gostava da perspectiva de dez dias nas montanhas, mas não da perspectiva de dez dias de opiniões de Bedap. A conversa de Bedap parecia demais uma Sessão de Crítica, a atividade comunitária de que ele sempre menos gostara, em que todos ficavam de pé e reclamavam dos defeitos no funcionamento da comunidade e, geralmente, dos defeitos no caráter de seus vizinhos. Quanto mais perto chegavam as férias, menos queria ir. Mas enfiou um caderno no bolso, para que pudesse se afastar dos outros e fingir que estava trabalhando, e foi.
Encontraram-se de manhã cedo atrás do depósito de mercadorias para transporte rodoviário Ponta Oriental, três mulheres e três homens. Shevek não conhecia nenhuma das mulheres, e Bedap o apresentou a apenas duas delas. Quando partiram na estrada rumo às montanhas, ele marchou ao lado da terceira mulher.
– Shevek – apresentou-se.
– Eu sei – ela disse.
Ele deu-se conta de que devia tê-la encontrado antes em algum lugar e deveria saber o nome dela. Suas orelhas ficaram vermelhas.
– Você está brincando? – Bedap perguntou, movendo-se para a esquerda. – Takver estava no Instituto do Poente Norte conosco. Ela mora em Abbenay há dois anos. Vocês não tinham se visto aqui até agora?
– Eu o vi umas duas vezes – disse a moça, e riu dele. Sua risada era de alguém que gostava de comer bem, um riso aberto e infantil. Era alta e um tanto magra, com braços arredondados e quadris largos. Não era muito bonita; tinha o rosto moreno, inteligente e animado. Em seus olhos havia uma escuridão, não a opacidade de olhos escuros e vivos, mas certa profundidade, quase como o negrume profundo de cinzas finas, muito suaves. Encontrando o olhar de Takver, Shevek sabia que havia cometido uma falta imperdoável ao esquecê-la e, no mesmo instante dessa percepção, compreendeu também que tinha sido perdoado. Que estava com sorte. Que a sorte havia mudado.
Começaram a subir as montanhas.
Na noite fria do quarto dia da excursão, ele e Takver sentaram-se na escarpa árida acima de um desfiladeiro. Quarenta metros abaixo deles, uma torrente ruidosa precipitava-se pelo barranco em meio às rochas molhadas pelos borrifos d’água. Havia pouca água corrente em Anarres; o lençol aquífero era baixo na maioria dos lugares, os rios eram curtos. Somente nas montanhas havia correntezas. O barulho da água gritando, chapinhando e cantando era novo para eles.
Os dois tinham passado o dia subindo e descendo desfiladeiros como aquele no platô e estavam com as pernas exaustas. O restante do grupo permaneceu no Abrigo do Caminho, um alojamento de pedra feito por e para excursionistas, e muito bem cuidado; a federação das Ne Theras era o mais ativo dos grupos de voluntários que administravam e protegiam as limitadas “paisagens deslumbrantes” de Anarres. Um guarda-florestal que vivia lá no verão estava ajudando Bedap e os outros a preparar o jantar com os ingredientes da despensa bem abastecida. Takver e Shevek tinham saído, nessa ordem, separadamente, sem dizer aonde iam e, na verdade, sem saber aonde iam.
Ele a encontrou na escarpa, sentada por entre os arbustos delicados de espinhos-da-lua que cresciam como laços de renda nas vertentes das montanhas, com seus ramos rígidos e frágeis prateados à luz do crepúsculo. Numa abertura entre os picos a leste, uma luminosidade descolorida do céu anunciava o luar. A correnteza fazia barulho no silêncio das colinas altas e áridas. Não havia nenhum vento, nenhuma nuvem. O ar acima das montanhas era como a ametista: duro, claro, profundo.
Estavam ali sentados há algum tempo sem falar.
– Nunca me senti tão atraído por uma mulher na minha vida como me senti por você. Desde que começamos a excursão. – O tom de voz de Shevek era frio, quase ressentido.
– Não tinha a intenção de estragar as suas férias – ela disse, com uma risada aberta e infantil, alta demais para o crepúsculo.
– Não estragou!
– Que bom. Pensei que você estava querendo dizer que isso o perturbou.
– Perturbou! Foi como um terremoto.
– Obrigada.
– Não é você – ele disse num tom áspero. – Sou eu.
– Isso é o que você pensa – ela retrucou.
Houve uma pausa um tanto longa.
– Se quer copular, por que não me pediu? – ela perguntou.
– Porque não tenho certeza se é isso o que realmente quero.
– Nem eu. – O sorriso dela sumiu. – Escute – ela disse, com a voz suave, sem muito timbre; tinha a mesma característica felpuda dos olhos. – Preciso lhe dizer. – Mas o que ela precisava lhe dizer permaneceu não dito por um longo instante. Por fim ele a olhou com apreensão tão aflita que ela se apressou a falar, e disse de uma vez:
– Bem, o que eu quero dizer é que não quero copular com você agora. Nem com ninguém.
– Você jurou não fazer mais sexo?
– Não! – ela respondeu com indignação, mas sem se explicar.
– Era melhor eu ter jurado – ele disse, jogando uma pedrinha na correnteza. – Ou então sou mesmo impotente. Já faz meio ano, e fiz apenas com o Dap. Quase um ano, na verdade. Cada vez menos satisfatório, até que eu desisti de tentar. Não valia a pena. Não valia o trabalho. Mesmo assim, eu... Eu me lembro... Sei o que deveria ser.
– Bem, é isso – disse Takver. – Eu me divertia muito copulando, até os meus 18 ou 19 anos. Era excitante, interessante, prazeroso. Mas aí... Não sei. Como você disse, ficou insatisfatório. Eu não queria prazer. Quer dizer, não só prazer.
– Quer ter filhos?
– Sim, quando chegar a hora.
Ele arremessou outro pedregulho na correnteza, que estava desaparecendo nas sombras do barranco, deixando apenas o barulho para trás, uma harmonia incessante composta de desarmonias.
– Eu quero realizar um trabalho – ele disse.
– Ser celibatário ajuda?
– Existe uma relação. Mas não sei qual é, não é causal. Mais ou menos na mesma época em que o sexo começou a ficar desagradável para mim, o trabalho também ficou. Cada vez mais. Três anos sem chegar a nada. Esterilidade. Esterilidade de todos os lados. Até onde a vista alcança, o deserto infértil se estende sob a luz impiedosa do sol inclemente, um descampado sem vida, sem caminho, sem energia, sem sexo, coberto de ossos dos caminhantes sem sorte...
Takver não riu; deu uma risadinha chorosa, como se doesse. Ele tentou claramente interpretar a expressão no rosto da moça. Atrás da cabeça escura de Takver o céu estava sólido e claro.
– O que há de errado com o prazer, Takver? Por que você não o quer?
– Não há nada de errado. E eu o quero. Só que não preciso dele. E se eu aceitar o que não necessito, nunca vou conseguir o que realmente necessito.
– E o que é que você necessita?
Ela baixou os olhos para o chão, arranhando a superfície de um afloramento rochoso com a unha. Não disse nada. Curvou-se para pegar um ramo de espinho-da-lua, mas não arrancou, apenas o tocou, sentiu o caule felpudo e a folha frágil. Shevek viu na tensão em seus movimentos que ela tentava com todas as forças conter ou reprimir uma torrente de emoções, para que conseguisse falar. Quando falou, sua voz era baixa e um pouco rouca.
– Preciso de uma ligação – ela disse. – Uma ligação real. Corpo e mente, por todos os anos da vida. Nada mais. Nada menos.
Lançou um olhar de desafio para ele, poderia ter sido de raiva.
Uma alegria surgiu misteriosamente dentro dele, como o som e o cheiro da água corrente subindo através da escuridão. Teve uma sensação de infinitude, de limpidez, total limpidez, como se tivesse sido libertado. Atrás da cabeça de Takver o céu brilhava com a lua nascente; os picos distantes flutuavam claros e prateados.
– Sim, é isso – ele disse, sem constrangimento, sem nenhum senso de estar conversando com outra pessoa; falou, pensativo, o que lhe veio à cabeça. – Eu nunca compreendi.
Ainda havia certo ressentimento na voz de Takver.
– Você nunca precisou compreender.
– Por que não?
– Porque nunca viu a possibilidade de ter uma ligação, suponho.
– Como assim, a possibilidade?
– A pessoa!
Ele refletiu sobre isso. Estavam sentados a cerca de um metro um do outro, abraçando os próprios joelhos, pois começava a esfriar. O ar entrava pela garganta como água gelada. Viam a respiração um do outro, um vapor fraco ao luar cada vez mais firme.
– A noite em que eu vi essa possibilidade – disse Takver – foi a noite antes de você deixar o Instituto do Poente Norte. Houve uma festa, você lembra. Nós ficamos sentados, conversando a noite toda. Mas isso foi há quatro anos. E você nem sabia o meu nome. – Não havia mais rancor em sua voz; ela parecia querer desculpá-lo.
– Você viu em mim, naquela época, o que eu vi em você nestes quatro últimos dias?
– Não sei. Não sei dizer. Não foi só sexual. Já tinha reparado em você assim. Mas aquilo foi diferente; eu vi você. Mas não sei o que você vê em mim agora. E eu na verdade não sei o que vi em você na época. Não sabia absolutamente nada sobre você. Só que, quando você falou, parece que eu vi claramente o seu interior, o seu centro. Mas você poderia ser bem diferente do que eu achei que era. Não seria culpa sua, afinal – ela acrescentou. – Eu apenas percebi que o que eu vi em você era o que eu precisava. Não apenas o que eu queria!
– E você está em Abbenay há dois anos e não...
– Não o quê? Era só do meu lado, na minha cabeça, você nem sequer sabia o meu nome. Afinal, uma pessoa só não pode formar uma ligação!
– E você teve medo de vir até mim e eu talvez não querer essa ligação.
– Não foi medo. Eu sabia que você era o tipo de pessoa que... que se recusa a ser forçado... Bem, sim, eu estava com medo. Estava com medo de você. Não de cometer um engano. Eu sabia que não estava enganada. Mas você é... você mesmo. Você não é como a maioria das pessoas, você sabe. Eu tinha medo de você porque sabia que éramos iguais! – Seu tom de voz quando terminou era veemente, mas logo falou com muita delicadeza, com bondade. – Sabe, Shevek, isso realmente não tem importância.
Era a primeira que ele a ouvia dizer seu nome. Virou-se para ela e disse balbuciando, quase se engasgando:
– Não tem importância? Primeiro você me mostra... me mostra o que importa, o que realmente importa, o que eu necessitei toda a minha vida... e depois diz que não tem importância!
Estavam cara a cara agora, mas não se tocaram.
– É disso que você precisa, então?
– Sim. A ligação. A chance.
– Agora... e por toda a vida?
– Agora e por toda a vida.
“Vida”, disse a torrente de água, caindo pelas rochas no frio escuro.
Quando Shevek e Takver desceram as montanhas, mudaram-se para um quarto de casal. Não havia nenhum quarto vago nos quarteirões próximos ao Instituto, mas Takver conhecia um não muito longe, num velho domicílio no extremo norte da cidade. A fim de conseguirem o quarto, foram falar com a administradora habitacional do quarteirão – Abbenay dividia-se em cerca de duzentas regiões administrativas locais, chamadas quarteirões –, uma esmeriladora de lentes que trabalhava em casa e mantinha os três filhos em casa com ela. Guardava, portanto, os arquivos numa prateleira alta do armário para que as crianças não os alcançassem. Verificou na papelada que o quarto estava registrado como vago; Shevek e Takver registraram-no como ocupado assinando seus nomes.
A mudança também não foi complicada; Shevek trouxe uma caixa de papéis, as botas de inverno e o cobertor laranja. Takver teve de fazer três viagens. Uma delas foi ao depósito de roupas do bairro para obter uma muda de roupa nova para os dois, um gesto que ela sentiu, de modo obscuro, mas intenso, ser essencial ao início da parceria. Depois foi ao seu antigo dormitório, uma vez para pegar roupas e papéis, e outra vez, com Shevek, para trazer alguns objetos curiosos: formas concêntricas complexas feitas de arame, que se moviam e mudavam devagar para o centro quando penduradas no teto. Ela tinha feito aquilo com restos de arame e ferramentas do depósito de suprimentos de artesanato e os chamava de Ocupações do Espaço Inabitado. Uma das cadeiras do quarto estava decrépita, então a levaram a uma oficina de consertos, onde a trocaram por uma em perfeito estado. Assim, a mobília ficou completa. O novo quarto tinha o teto alto, o que o tornava arejado e dava espaço de sobra para as Ocupações. O domicílio fora construído numa das colinas baixas de Abbenay, e o quarto tinha uma janela de canto que pegava o sol da tarde e oferecia uma vista da cidade: as ruas e praças, os telhados, os parques verdes, as planícies além.
A intimidade após longa solidão, a brusquidão do contentamento puseram à prova a estabilidade tanto de Shevek quanto de Takver. Nas primeiras décades, ele teve oscilações frenéticas entre euforia e ansiedade; ela teve acessos de mau humor. Ambos eram hipersensíveis e inexperientes. A tensão não durou, pois se tornaram peritos um no outro. O apetite sexual persistia como deleite apaixonado, o desejo por comunhão se renovava dia a dia, pois dia a dia era satisfeito.
Agora estava claro para Shevek, e ela acharia tolice pensar de outra forma, que os anos imprestáveis que ele passara naquela cidade tinham sido parte de sua grande felicidade atual, pois o conduziram a ela, o prepararam para ela. Tudo o que lhe acontecera fazia parte do que lhe acontecia agora. Takver não entendia esses obscuros encadeamentos de causa/efeito/causa, mas ela não era física temporal. Ingenuamente, via o tempo como um caminho traçado. Caminhava-se nele e chegava-se a algum lugar. Se houvesse sorte, chegava-se a algum lugar que valia a pena.
Mas quando Shevek pegou essa metáfora e a reformulou em seus próprios termos, explicando que se o passado e o futuro não fizessem parte do presente como memória e intenção, não haveria, em termos humanos, caminho algum e nenhum lugar aonde ir, ela concordou com a cabeça antes que ele concluísse.
– Exatamente – ela disse. – Era o que eu estava fazendo nos últimos quatro anos. Nem tudo é sorte. Só em parte.
Ela tinha 23 anos, meio ano mais nova que Shevek. Crescera numa comunidade agrícola, Vale Redondo, no Nordeste. Era um lugar isolado e, antes de vir para o Instituto do Poente Norte, Takver tinha trabalhado muito mais que a maioria dos jovens anarrestis. Mal havia a quantidade de gente necessária no Vale Redondo para realizar os serviços essenciais, mas a comunidade não era grande o suficiente, ou produtiva o suficiente na economia geral, para obter prioridade dos computadores da Divlab. Tinha de se cuidar sozinha. Aos 8 anos, Takver trabalhara três horas por dias nas usinas, tirando palha e pedra dos grãos de holum, depois de passar três horas de escola. Pouco de seu treinamento prático quando criança destinara-se ao aprimoramento pessoal: fizera parte da luta da comunidade para sobreviver. Nas estações de plantio e colheita, todos acima de 10 e abaixo de 60 anos trabalhavam nos campos o dia todo. Aos 15 anos, ela fora encarregada de coordenar as escalas de trabalho nos quatrocentos lotes agrícolas cultivados pela comunidade do Vale Redondo e auxiliara a nutricionista no planejamento do refeitório da cidade. Não havia nada incomum em tudo isso, e Takver não pensava muito no assunto, mas é claro que a experiência formou certos elementos de seu caráter e de suas opiniões. Shevek alegrava-se de ter feito sua parte no kleggich, pois Takver desprezava as pessoas que fugiam do trabalho braçal.
– Veja o Tinan – ela dizia –, choramingando e lamuriando só porque pegou um posto de quatro décades no grupo de colheita de raiz de holum. Ele é tão delicado que parece ovo de peixe! Nunca mexeu com terra? – Takver não era particularmente caridosa, e era temperamental.
Estudara biologia no Instituto Regional do Poente Norte, com distinção suficiente para decidir aprofundar os estudos no Instituto Central. Após um ano foi convidada a entrar em um novo sindicato que estava instalando um laboratório para estudar técnicas de aumento e melhoria das reservas de peixes comestíveis nos três oceanos de Anarres. Quando perguntavam o que fazia, ela respondia: “Sou geneticista de peixe”. Gostava do trabalho; ele reunia duas coisas de que ela gostava: pesquisa precisa, factual, e um objetivo específico de aumento ou aperfeiçoamento. Sem um trabalho assim, ela não estaria satisfeita. Mas só o trabalho não lhe bastava. A maior parte do que se passava na mente e no espírito de Takver pouco tinha a ver com genética de peixe.
Seu interesse em paisagens e criaturas vivas era passional. Esse interesse, debilmente chamado de “amor à natureza”, parecia a Shevek algo muito mais amplo do que amor. Existem almas, pensava ele, cujo cordão umbilical nunca foi cortado. Nunca foram desmamadas do universo. Não encaram a morte como inimiga; não veem a hora de apodrecer e virar húmus. Era estranho ver Takver pegar uma folha na mão, ou mesmo uma pedra. Ela se tornava uma extensão delas, e elas de Takver.
Mostrou a Shevek os tanques de água do mar no laboratório de pesquisa, mais de cinquenta espécies de peixe, grandes e pequenos, simples ou vistosos, elegantes e grotescos. Ele ficou fascinado e um pouco amedrontado.
Os três oceanos de Anarres eram repletos de vida animal, ao contrário da superfície terrestre, em que não havia nenhuma. Por vários milhões de anos, os mares estiveram separados, por isso as formas de vida seguiram cursos isolados de evolução. A variedade era desconcertante. Nunca ocorrera a Shevek que a vida poderia proliferar de maneira tão desenfreada e tão exuberante, que a exuberância talvez fosse uma característica essencial da vida.
Na terra, as plantas se desenvolveram bem, a seu modo esparso e espinhoso, mas quase todos os animais que tentaram respirar o ar desistiram do intento quando o clima do planeta entrou numa era milenar de poeira e estiagem. As bactérias sobreviveram, muitas delas litófagas, assim como algumas centenas de espécies de vermes e crustáceos.
O homem se inseriu com cuidado e risco nessa ecologia limitada. Se pescasse, mas não com muita avidez, e se cultivasse, utilizando detritos orgânicos como adubo principal, ele poderia se inserir. Mas não poderia inserir mais ninguém. Não havia pasto para herbívoros. Não havia herbívoros para carnívoros. Não havia insetos para fecundar plantas com flores; as árvores frutíferas importadas eram todas fertilizadas à mão. Não introduziram nenhum animal de Urras, para não ameaçar o delicado equilíbrio da vida. Só vieram os Colonos, e tão bem lavados interna e externamente que trouxeram um mínimo de sua fauna e flora pessoais. Nem uma pulga chegou a Anarres.
– Gosto de biologia marinha – Takver disse a Shevek, em frente aos tanques de peixes – porque é tão complexa, uma verdadeira teia. Esse peixe come aquele peixe que come aquele peixinho que come ciliados que comem bactérias, e o ciclo recomeça. Na terra só existem três filos, todos invertebrados... se você não contar o homem. É uma situação esquisita, biologicamente falando. Nós, anarrestis, somos isolados de forma artificial. No Velho Mundo há dezoito filos de animais terrestres; existem classes, como a dos insetos, com tantas espécies que nunca foi possível contá-las, e algumas dessas espécies têm populações de bilhões. Imagine: para todo lugar que você olhasse, animais, outras criaturas, partilhando a terra e o ar com você. Você se sentiria muito mais uma parte. – Seu olhar acompanhou a trajetória curva de um peixinho azul pelo tanque turvo. Shevek, atento, seguiu a trajetória do peixinho e a trajetória do raciocínio dela. Ele perambulou em meio aos tanques por um longo tempo e voltou com ela muitas vezes ao laboratório e aos aquários, submetendo sua arrogância de físico àquelas estranhas pequenas formas de vida, à existência de seres para quem o presente é eterno, seres que não explicam a si mesmos e jamais precisam justificar seu modo de ser ao homem.
A maioria dos anarrestis trabalhava de cinco a sete horas por dia, com dois a quatro dias de folga a cada décade. Detalhes sobre regularidade, pontualidade, quais os dias de folga e assim por diante eram resolvidos entre os indivíduos e sua equipe ou grupo de trabalho, sindicato ou federação, qualquer nível em que a cooperação e a eficiência atingisse melhor resultado. Takver dirigia seus próprios projetos de pesquisa, mas o trabalho e os peixes tinham as próprias exigências imperativas; ela passava de duas a dez horas por dia no laboratório, sem folga. Shevek tinha dois postos de professor agora, um curso de matemática avançada num centro de aprendizagem e outro no Instituto. Ambos os cursos eram de manhã, e ele voltava ao quarto ao meio-dia. Geralmente Takver ainda não havia chegado. O prédio era bem silencioso. A luz do sol ainda não tinha dado a volta até a janela dupla que dava para o sul e oeste da cidade, e para as planícies; o quarto ficava frio e sombreado. Os delicados móbiles concêntricos pendendo em alturas diferentes sobre a cabeça moviam-se com precisão introvertida, silêncio, mistério dos órgãos do corpo ou dos processos mentais em raciocínio. Shevek sentava-se à mesa sob as janelas e começava a trabalhar, lendo, fazendo anotações ou calculando. Aos poucos a luz do sol entrava, passava pelos papéis, por suas mãos sobre os papéis e enchia o quarto de esplendor. E ele trabalhava. Os falsos começos e futilidades dos anos anteriores revelaram-se como base, alicerces, assentados no escuro, mas bem assentados. Sobre esses alicerces, metódica e cuidadosamente – mas com uma habilidade e uma certeza que não pareciam vir de si próprio, mas de um conhecimento que operava através dele, usando-o como veículo –, ele construiu a bela e firme estrutura dos Princípios da Simultaneidade.
Para Takver, como para qualquer homem ou mulher que se compromete a acompanhar um espírito criador, nem sempre era fácil. Embora a existência de Takver fosse necessária a Shevek, sua presença física poderia perturbá-lo. Ela não gostava de chegar em casa muito cedo, pois ele quase sempre parava de trabalhar quando ela chegava, e ela sentia que isso era errado. Mais tarde, quando eles fossem de meia-idade e enfadonhos, ele iria poder ignorá-la, mas aos 24 anos, não podia. Portanto, ela organizou suas tarefas no laboratório de modo a chegar em casa no meio da tarde. Esse esquema também não era perfeito, pois Shevek precisava de cuidados. Nos dias em que ele não dava aulas, quando ela chegava ele poderia estar sentado à mesa há seis ou oito horas seguidas. Quando ele se levantava, cambaleava de fadiga, suas mãos tremiam e ele mal concatenava as ideias. O uso que o espírito criador faz de seus eleitos é rude, ele os esgota, os descarta e arranja um modelo novo. Mas para Takver não havia substitutos, e quando via o modo fatigante como Shevek era usado, ela protestava. Ela gritava como o marido de Odo, Asieo, já gritara certa vez: “Pelo amor de Deus, garota, você não pode servir à Verdade um pouco por vez?”. Só que ela era a garota e não tinha familiaridade com Deus.
Eles conversavam, saíam para uma caminhada ou para os banhos, depois jantavam no refeitório do Instituto. Após o jantar havia reuniões, ou um concerto, ou eles viam seus amigos, Bedap, Salas e seu círculo, Desar e outros do Instituto, os colegas e amigos de Takver. Mas as reuniões e os amigos eram periféricos a eles. A participação social ou sociável não lhes era necessária; sua parceria bastava, e eles não conseguiam esconder esse fato. Isso parecia não ofender os outros. Muito pelo contrário, Bedap, Salas, Desar e os demais vinham até eles como pessoas sedentas vão a uma fonte. Os outros lhes eram periféricos: mas eles eram centrais para os outros. Os dois não faziam nada de mais; não eram mais benevolentes que outras pessoas, nem interlocutores mais brilhantes; no entanto, seus amigos os adoravam, dependiam deles e não paravam de lhes trazer presentes – as pequenas ofertas que circulavam entre essas pessoas que não possuíam nada e tudo: um cachecol tricotado à mão, um pedaço de granito cravejado de granadas escarlates, um vaso moldado à mão na oficina da Federação de Cerâmica, um poema sobre o amor, um conjunto de botões de madeira entalhada, uma concha espiral do Mar Sorruba. Davam o presente a Takver, dizendo: “Tome, talvez Shev queira usar isto como peso de papel”; ou a Shevek, dizendo: “Tome, talvez Tak goste dessa cor”. Ao darem, buscavam partilhar o que Shevek e Takver partilhavam, e celebrar, e enaltecê-los.
Foi um longo verão, quente e luminoso, o verão do ano 160 da Colonização de Anarres. As chuvas copiosas da primavera tinham deixado verdes as Planícies de Abbenay e assentado a poeira, de modo que o ar estava excepcionalmente claro; o sol era quente durante o dia, e à noite as estrelas brilhavam densas. Quando a Lua estava no céu, podia-se discernir claramente os contornos das costas de seus continentes, sob as deslumbrantes espirais brancas de suas nuvens.
– Por que a Lua é tão linda? – perguntou Takver, deitada ao lado de Shevek debaixo do cobertor laranja, as luzes apagadas. Acima deles pendiam as Ocupações do Espaço Inabitado, obscuras; do lado de fora da janela pendia a lua cheia, brilhante. – Mesmo sabendo que ela é um planeta como o nosso, só que com um clima melhor e gente pior... mesmo sabendo que são todos proprietários, que fazem guerras, fazem leis e comem enquanto outros passam fome, e de qualquer modo estão todos envelhecendo, tendo azar, reumatismo no joelho e calos nos pés como as pessoas daqui... mesmo sabendo de tudo isso, por que a Lua ainda parece tão feliz... como se a vida lá fosse tão feliz? Não consigo olhar para a luminosidade e imaginar um homenzinho horrendo como Sabul, com as mangas lambuzadas e uma mente atrofiada, vivendo lá; simplesmente não consigo.
Seus braços e torsos desnudos eram luar. A luz delicada e desmaiada no rosto de Takver formava uma auréola indefinida sobre seus traços; o cabelo e as sombras estavam negros. Shevek tocou no braço prateado de Takver com sua mão prateada, maravilhando-se com o calor do toque naquela luz fria.
– Quando se vê uma coisa por inteiro, a distância – ele disse –, ela sempre parece bonita. Planetas, vidas... Mas, de perto, um mundo é feito todo de terra e pedras. E, dia após dia, a vida é um trabalho árduo, você se cansa, perde a perspectiva. Você precisa da distância, do intervalo. O jeito de ver como a terra é bela é vê-la como a lua. O jeito de ver como a vida é bela é vê-la da perspectiva da morte.
– Isso vale para Urras. Deixe-o lá, sendo a lua... não quero aquele lugar! Mas não vou subir num túmulo, olhar para a vida e dizer “Ó, que linda!”. Quero ver a vida por inteiro bem no meio dela, aqui, agora. Não dou a mínima para a eternidade.
– Não tem nada a ver com a eternidade – disse Shevek com um meio sorriso, um homem magro e descabelado, feito de prata e sombra. – Tudo o que você precisa fazer para ver a vida como um todo é vê-la como mortal. Eu vou morrer, você vai morrer; como podemos nos amar de outro modo? O sol vai se extinguir, e o que o mantém brilhando?
– Ah, sua conversa, sua maldita filosofia!
– Conversa? Não é conversa, não é raciocínio. É o toque da mão. Eu toco a totalidade, eu a seguro. O que é o luar e o que é Takver? Como vou temer a morte? Quando a seguro, quando seguro a luz em minhas...
– Não seja proprietário – murmurou Takver.
– Querida, não chore.
– Não estou chorando, é você que está. Essas lágrimas são suas.
– Estou com frio, o luar é frio.
– Deite-se.
Um grande arrepio percorreu o corpo de Shevek quando ela o tomou em seus braços.
– Estou com medo, Takver – ele sussurrou.
– Irmão, meu querido, calma, não diga mais nada.
Dormiram abraçados naquela noite, muitas noites.
7
°°°°°
Shevek achou uma carta no bolso do casaco novo forrado de lã que encomendara para o inverno na rua do pesadelo. Não fazia ideia de como a carta tinha ido parar ali. Seguramente não estava na correspondência que lhe entregavam três vezes por dia e que consistia inteiramente de manuscritos e cópias de físicos de toda parte de Urras, convites para recepções e mensagens ingênuas de alunos da escola primária. Aquele era um pedaço de papel frágil enfiado ali, sem envelope; não trazia nenhum selo ou carimbo de nenhuma das três empresas de correios concorrentes.
Ele a abriu, vagamente apreensivo, e leu: “Se você é anarquista, por que trabalha com o sistema de poder, traindo seu Mundo e a Esperança Odoniana? Ou você está aqui para nos trazer essa Esperança? Sofrendo injustiça e repressão, procuramos na Lua Irmã a luz da liberdade no escuro da noite. Junte-se a nós, seus irmãos!” Não havia nenhuma assinatura, nenhum endereço.
A carta abalou Shevek, moral e intelectualmente, fazendo-o estremecer, não de surpresa, mas com uma espécie de pânico. Sabia que eles estavam ali, mas onde? Não tinha conhecido nenhum, não tinha visto nenhum, não tinha conhecido nenhum homem pobre ainda. Tinha deixado erguerem um muro à sua volta e nunca percebera. Aceitara o abrigo, como um proprietário. Tinha sido cooptado – exatamente como Chifoilisk dissera.
Mas não sabia como derrubar o muro. E, se o derrubasse, aonde poderia ir? O pânico se apoderou dele. A quem poderia recorrer? Estava cercado por todos os lados pelos sorrisos dos ricos.
– Gostaria de conversar com você, Efor.
– Sim, senhor. Com licença, senhor. Pôr bandeja aqui.
O criado manipulou a bandeja pesada com habilidade, retirou com destreza as tampas dos pratos, serviu o chocolate amargo de modo a formar uma espuma na borda da xícara, sem derramar ou espirrar. Era evidente que ele gostava do ritual do café da manhã e de seu papel nele, bem como era evidente que não queria interrupções incomuns durante o ritual. Em geral falava um iótico bem claro, mas agora, assim que Shevek disse que queria conversar, Efor passara para o staccato do dialeto urbano. Shevek conseguia entendê-lo um pouco; uma vez aprendida, a mudança dos valores sonoros tornava-se coerente, mas as apócopes deixavam Shevek desorientado. Metade das palavras era omitida. Era como um código, pensou ele: como se os “nioti”, como chamavam a si mesmos, não quisessem ser entendidos pelos de fora.
O criado aguardou em pé as ordens de Shevek. Sabia – aprendera as idiossincrasias de Shevek na primeira semana – que Shevek não queria que ele segurasse a cadeira ou lhe servisse enquanto comia. A postura atenta e ereta do criado bastava para murchar qualquer esperança de informalidade.
– Sente-se, Efor.
– Se assim deseja, senhor – respondeu o homem. Moveu uma cadeira um centímetro, mas não se sentou nela.
– É sobre isso que quero conversar. Você sabe que não gosto de lhe dar ordens.
– Tento fazer as coisas como senhor gosta sem precisar de ordens.
– Você... Não é isso que quero dizer. Sabe, no meu país ninguém dá ordens.
– Já ouvi falar, senhor.
– Bem, quero conhecê-lo como meu igual, meu irmão. Você é o único que conheço aqui que não é rico... que não é um dos donos. Quero muito conversar com você, quero saber da sua vida...
Parou em desespero, vendo o desprezo no rosto enrugado de Efor. Tinha cometido todos os erros possíveis. Efor o tomou por um tolo paternalista e intrometido.
Soltou as mãos sobre a mesa num gesto de desalento e disse:
– Ah, que diabos, desculpe, Efor! Não consigo dizer o que quero. Por favor, ignore.
– Como queira, senhor. – Efor retirou-se.
E parou por aí. As “classes não proprietárias” permaneciam-lhe tão distantes como na época em que lera sobre elas nos livros de história do Instituto Regional do Poente Norte.
Nesse ínterim, prometera passar uma semana com os Oiies, entre os períodos letivos do inverno e da primavera.
Oiie o convidara para jantar várias vezes desde sua primeira visita, sempre com certa formalidade, como se cumprisse um dever de hospitalidade, ou talvez uma ordem do governo. Em sua própria casa, porém, embora nunca inteiramente à vontade com Shevek, ele era genuinamente simpático. Na segunda visita, seus dois filhos decidiram que Shevek era um velho amigo, e a confiança deles na reciprocidade de Shevek surpreendeu o pai dos garotos, deixou-o perturbado; não conseguia aprová-la com facilidade; mas não podia dizer que não era justificada. Shevek comportava-se com eles como um velho amigo, como um irmão mais velho. Eles o admiravam, e o mais novo, Ini, passou a adorá-lo com fervor. Shevek era gentil, sério, honesto e contava boas histórias sobre a Lua; mas não era só isso. Ele representava algo a Ini que o garoto não podia descrever. Mesmo anos mais tarde em sua vida, que foi profunda e obscuramente influenciada por aquele fascínio infantil, Ini não encontrava palavras para aquilo, apenas palavras que continham um eco desse sentimento: a palavra viajante, a palavra exílio.
A única neve pesada do inverno caiu naquela semana. Shevek jamais vira uma queda de neve acima de uns três centímetros. Ficou extasiado com a extravagância, com a mera quantidade da tempestade. Deleitou-se com aquele excesso. Era branca demais, fria demais, silenciosa e imparcial demais para ser chamada de excrementícia pelo mais sincero odoniano; vê-la como outra coisa senão uma magnificência inocente seria mesquinhez de alma. Assim que o céu clareou, ele saiu com os garotos, que apreciavam a neve tanto quanto ele. Correram pelo grande quintal da casa de Oiie, jogaram bolas de neve, construíram túneis, castelos e fortalezas de neve.
Sewa Oiie ficou à janela com sua cunhada Vea, observando as crianças, o homem e a pequena lontra brincarem. A lontra tinha feito um escorregador para ela numa parede do castelo e, animada, descia de barriga por ele sem parar. As bochechas dos garotos estavam pegando fogo. O homem, com seu cabelo longo, revolto, castanho-acinzentado amarrado com um pedaço de cordão e suas orelhas vermelhas de frio, executava escavações de túneis com energia.
– Aqui não! – Cavem ali! – Cadê a pá? – Gelo no meu bolso! – as vozes agudas dos garotos ressoavam continuamente.
– Eis nosso alienígena – Sewa disse sorrindo.
– O maior físico vivo – disse a cunhada. – Que engraçado!
Quando ele entrou ofegante, batendo os pés para tirar a neve e exalando o vigor e o bem-estar frios e frescos que só as pessoas recém-chegadas da neve possuem, foi apresentado à cunhada. Estendeu a mão grande, dura e gelada e olhou Vea com olhos simpáticos.
– Você é irmã de Demaere? – perguntou. – Você se parece com ele. – E esta observação, que, vinda de qualquer outra pessoa teria soado insípida a Vea, agradou-a imensamente. “Ele é um homem” – ela não parava de pensar naquela tarde – “um homem real. O que ele tem de especial?”
Vea Doem Oiie era seu nome, no modo iota; seu marido Doem era o chefe de um grande monopólio industrial e viajava bastante, passando metade de cada ano no exterior como representante do governo. Explicaram isso a Shevek enquanto ele a observava. Nela, a magreza, a cor pálida e os olhos negros ovais de Demaere tinham se transformado em beleza. Os seios, os ombros e os braços eram redondos, macios e muito brancos. Shevek sentou-se ao lado dela durante o jantar. Não parava de olhar aqueles seios desnudos, levantados pelo corpete rijo. A ideia de sair assim seminua num clima gélido era extravagante, tão extravagante quanto a neve, e os pequenos seios também tinham uma brancura inocente, como a neve. A curva do pescoço subia suavemente até a curva da cabeça altiva, raspada e delicada.
Ela realmente é muito atraente, Shevek informou a si mesmo. Ela é macia como as camas daquele lugar. Afetada, no entanto. Por que ela mede as palavras desse jeito?
Ele agarrou-se àquela voz um tanto fina e àqueles modos afetados como a uma jangada em águas profundas e nunca percebeu, nunca percebeu que estava se afogando. Ela iria voltar para Nio Esseia no trem após o jantar, tinha vindo apenas passar o dia, e ele jamais a veria de novo.
Oiie estava resfriado, Sewa estava ocupada com as crianças.
– Shevek, você poderia acompanhar Vea até a estação?
– Santo Deus, Demaere! Não obrigue o pobre homem a me proteger! Você não acha que há lobos no caminho, não é? Ou que algum bando selvagem de mingrads ataque a cidade e me rapte para o harém deles? Serei encontrada na porta do chefe da estação amanhã de manhã, com uma lágrima congelada no meu olho e as mãozinhas duras apertando um ramalhete de flores murchas? Oh, eu até que gosto da ideia! – A risada de Vea cobriu aquelas frases matraqueadas e tilintantes como uma onda, uma onda sombria, agradável e potente que lavou tudo, deixando a areia vazia. Ela não riu consigo mesma, mas de si mesma, a risada sombria do corpo, que apaga as palavras.
Shevek vestiu o casaco no corredor e a esperou na porta.
Caminharam em silêncio por meio quarteirão. A neve se esmigalhava e rangia sob seus pés.
– Você é educado demais para um...
– Para quê?
– Para um anarquista – ela disse, em sua voz fina e afetadamente arrastada (era a mesma entonação usada por Pae e por Oiie, quando ele estava na universidade). – Estou decepcionada. Achei que você fosse ser perigoso e esquisito.
– E sou.
Vea o olhou de soslaio. Um xale escarlate cobria-lhe a cabeça; os olhos estavam muito negros e vivos em contraste com aquela cor vívida e a brancura da neve à sua volta.
– Mas aí está você, me acompanhando mansamente até a estação, dr. Shevek.
– Shevek – ele disse brandamente. – Sem “doutor”.
– Esse é seu nome completo... nome e sobrenome?
Ele concordou com a cabeça, sorrindo. Sentia-se bem e vigoroso, satisfeito com o ar límpido, com o calor do casaco bem-feito que usava, com a beleza da mulher a seu lado. Nada o preocupava e nenhum pensamento lhe pesava naquele dia.
– É verdade que o nome de vocês é escolhido pelo computador?
– Sim.
– Que medonho, ter o nome escolhido por um computador!
– Por que medonho?
– É tão mecânico, tão impessoal.
– Mas o que é mais pessoal do que um nome que nenhuma outra pessoa viva tem?
– Ninguém mais? Você é o único Shevek?
– Enquanto eu estiver vivo. Houve outros, antes de mim.
– Quer dizer, parentes?
– Não levamos parentes muito em conta; somos todos parentes, entende? Não sei quem eram os meus, a não ser uma mulher, nos primeiros anos da Colonização. Ela projetou um tipo de suporte que usam em máquinas pesadas; esse suporte ainda é chamado de “shevek”. – Ele sorriu de novo, um sorriso mais aberto. – Eis aí uma boa imortalidade!
Vea balançou a cabeça.
– Santo Deus! Como vocês distinguem homens de mulheres?
– Bem, descobrimos alguns métodos...
Após um instante, Vea soltou sua risada agradável e intensa. Enxugou os olhos molhados pelo ar frio.
– É, talvez vocês sejam esquisitos mesmo!... Então, todos eles receberam nomes inventados e aprenderam uma língua inventada... tudo novo?
– Os Colonos de Anarres? Sim. Eram pessoas românticas, suponho.
– E vocês não são?
– Não. Somos muito pragmáticos.
– É possível ser as duas coisas – ela disse.
Ele não esperava que ela tivesse qualquer sutileza mental.
– Sim, isso é verdade – ele disse.
– O que é mais romântico do que você vir aqui para Urras, sozinho, sem um tostão no bolso, para defender o seu povo?
– E para ser mimado com luxos enquanto estou aqui.
– Luxos? Em quartos na universidade? Santo Deus! Meu pobre querido! Não o levaram a nenhum lugar decente?
– Muitos lugares, mas todos iguais. Gostaria de conhecer melhor Nio Esseia. Só conheci o exterior da cidade, o embrulho do pacote. – Usou a frase porque ficara fascinado desde o início pelo hábito urrasti de embrulhar tudo em papel limpo e caprichado, ou plástico, ou papelão. Roupas lavadas, livros, verduras e legumes, roupas, remédios, tudo vinha dentro de camadas e camadas de embrulhos. Até pacotes de papel vinham embrulhados em várias camadas de papel. Nada podia tocar em mais nada. Começara a sentir que ele também tinha sido empacotado.
– Eu sei. Eles o fizeram ir ao Museu Histórico, visitar o Monumento Dobunnae e ouvir um discurso no Senado! – Ele riu, pois aquele tinha sido exatamente o itinerário de um dia no verão. – Eu sei, eles são tão previsíveis com estrangeiros. Vou providenciar para que você conheça a verdadeira Nio!
– Eu iria gostar disso.
– Conheço todo tipo de gente maravilhosa. Eu coleciono gente. Aqui você está preso em meio a todos esses professores e políticos enfadonhos... – Ela continuou a matraquear. Ele apreciava a conversa inconsequente de Vea do mesmo modo que apreciava o brilho do sol e a neve.
Chegaram à pequena estação de Amoeno. Ela já tinha o bilhete de volta; o trem chegaria a qualquer momento.
– Não precisa esperar, você vai congelar.
Ele não respondeu, mas apenas ficou ali em pé, corpulento no casaco de lã, olhando-a com amabilidade.
Ela baixou os olhos para a punho do próprio casaco e removeu um pontinho de neve do bordado.
– Você tem esposa, Shevek?
– Não.
– Nenhuma família?
– Ah... sim. Uma parceira; nossos filhos. Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Uma “esposa”, entende, eu penso como algo que só existe em Urras.
– O que é uma parceira? – ela ergueu os olhos de relance, maliciosamente, para o rosto dele.
– Acho que é o que vocês chamariam de esposa ou marido.
– Por que ela não veio com você?
– Ela não quis; e nosso filho mais novo só tem 1 ano... não, 2 agora. E também... – Ele hesitou.
– Por que ela não quis vir?
– Bem, lá ela tem um trabalho a fazer, aqui não. Se eu soubesse que haveria tanta coisa aqui de que ela iria gostar, eu a teria chamado para vir. Mas não chamei. Havia a questão da segurança, entende?
– Segurança aqui em Urras?
Ele hesitou outra vez. Por fim, disse:
– E também quando eu voltar para casa.
– O que vai acontecer com você? – perguntou Vea, com os olhos arregalados. O trem freava na colina próxima à cidade.
– Oh, provavelmente nada. Mas alguns me consideram um traidor. Porque tento fazer amizade com Urras, entende? Talvez eles criem problema quando eu voltar. Não quero isso para ela e as crianças. Tivemos um pouco disso antes de eu sair de lá. Chega.
– Quer dizer que você estará correndo perigo real? – Ele inclinou-se para ouvi-la, pois o trem entrava na estação, freando com o barulho de rodas e vagões.
– Não sei – ele disse sorrindo. – Sabia que nossos trens são bem parecidos com esse? Um bom desenho não precisa mudar. – Foi com ela até o vagão da primeira classe. Como ela não abriu a porta, ele abriu. Enfiou a cabeça no vagão depois que ela entrou e deu uma olhada no compartimento. – Mas por dentro não são parecidos! Tudo isso aqui é privado... só para você?
– Oh, sim. Detesto a segunda classe. Homens mascando goma de maera e cuspindo. Eles mascam maera em Anarres? Não, claro que não. Oh, há tanta coisa que eu adoraria saber sobre você e sua terra!
– Eu adoro falar da minha terra, mas ninguém pergunta.
– Então, vamos nos encontrar de novo e conversar a respeito! Quando você voltar para Nio, ligue para mim. Promete?
– Prometo – ele respondeu, afável.
– Ótimo! Sei que você não quebra promessas. Ainda não sei nada a seu respeito, exceto isso. Posso ver isso. Até logo, Shevek. – Ela colocou a mão enluvada sobre a dele por um momento, enquanto ele segurava a porta. O trem deu seu apito de duas notas; ele fechou a porta e viu o trem partir, o rosto de Vea uma imagem trêmula, branca e escarlate na janela.
Caminhou de volta à casa dos Oiies num estado de espírito muito animado e brincou de batalha de bolas de neve com Ini até escurecer.
REVOLUÇÃO EM BENBILI! DITADOR FOGE!
LÍDERES REBELDES TOMAM CAPITAL!
SESSÃO EMERGÊNCIA NO CGM
POSSIBILIDADE A-IO POSSA INTERVIR
O jornal alpiste alardeou a notícia em letras garrafais. Ortografia e gramática ficaram de lado; o texto parecia Efor falando: “Ontem noite rebeldes tomam todo oeste Meskti e batendo duro no exército...” Era o modo verbal dos niotas, passado e futuro comprimiam-se num tempo presente instável e altamente carregado.
Shevek leu os jornais e consultou uma descrição de Benbili na Enciclopédia do CGM. A nação era uma forma de democracia parlamentarista, na verdade uma ditadura militar governada por generais. Era um país grande no hemisfério ocidental, com montanhas e savanas áridas, subpovoado, pobre. “Eu devia ter ido para Benbili”, pensou Shevek, pois essa ideia o atraía; imaginou planícies pálidas, o vento soprando. A notícia o deixara estranhamente perturbado. Escutava os boletins no rádio, que ele raramente ligava após descobrir que sua função básica era anunciar coisas à venda. As notícias, assim como as do telefax oficial nos lugares públicos, eram curtas e secas; um estranho contraste com os jornais populares, que gritavam Revolução! em todas as páginas.
O general Havevert, o presidente, fugiu ileso em seu famoso avião blindado, mas alguns generais menos importantes foram capturados e emasculados, um castigo que, tradicionalmente, os benbili preferiam à execução. O exército bateu em retirada, incendiando no caminho campos e cidades de seu próprio povo. Os partidários da guerrilha rechaçavam o exército. Os revolucionários em Meskti, a capital, abriram as prisões, anistiando todos os presos. Ao ler isto, o coração de Shevek disparou. Havia esperança, ainda havia esperança... Acompanhou as notícias da revolução distante com intensidade crescente. No quarto dia, ao assistir a uma transmissão no telefax de um debate no Conselho dos Governos Mundiais, viu o embaixador iota no CGM anunciar que A-Io, em apoio ao governo democrático de Benbili, estava enviando reforços ao general presidente Havevert.
Os revolucionários de Benbili, em sua maioria, nem sequer estavam armados. As tropas iotas chegariam com fuzis, carros blindados, aviões, bombas. Shevek leu no jornal a descrição dos equipamentos e ficou enojado.
Sentiu nojo e fúria, e não havia ninguém com quem conversar. Pae estava fora de cogitação. Atro era um militarista fervoroso. Oiie era um homem ético, mas suas inseguranças pessoais e suas ansiedades como proprietário faziam-no agarrar-se a ideias rígidas de lei e ordem. Só conseguia lidar com sua simpatia por Shevek porque se recusava a admitir que Shevek era anarquista. A sociedade odoniana chamava a si mesma de anarquista, dizia ele, mas era, de fato, composta de meros populistas primitivos cuja ordem social funcionava sem um governo aparente porque a população era muito reduzida e porque não havia países vizinhos. Se a sua propriedade fosse ameaçada por um rival agressivo, teriam de acordar para a realidade ou seriam aniquilados. Os rebeldes benbilis estavam acordando para a realidade agora: estavam descobrindo que não adianta ter liberdade se não se tem armas para defendê-la. Ele explicou isso a Shevek na única discussão que tiveram sobre o assunto. Pouco importava quem governava ou pensava que governava os benbilis: a política da realidade afetava a disputa pelo poder entre A-Io e Thu.
– Política da realidade – Shevek repetiu. Olhou para Oiie e disse: – É uma frase curiosa dita por um físico.
– Em absoluto. Tanto o político quanto o físico lidam com as coisas como elas são, com forças reais, as leis básicas do mundo.
– Você está comparando suas “leis” mesquinhas e desprezíveis que protegem a riqueza e suas “forças” de armas e bombas com a lei da entropia e a força da gravidade? Eu esperava mais de sua inteligência, Demaere!
Oiie recuou diante daquela trovoada de desprezo. Não disse mais nada, e Shevek não disse mais nada, mas Oiie nunca se esqueceu do comentário. Ficou gravado em sua mente desde então como o momento mais vergonhoso de sua vida. Pois se Shevek, o utopista iludido e simplório, o calara com tanta facilidade, isso era vergonhoso; mas se Shevek, o físico e o homem que ele apreciava e admirava tanto a ponto de ansiar por seu respeito, como se, de algum modo, fosse um grau mais refinado de respeito do que qualquer outro então disponível – se esse Shevek o desprezava, então a vergonha era intolerável e ele deveria ocultá-la, trancá-la pelo resto da vida no cômodo mais escuro de sua alma.
O assunto da revolução benbili aguçara alguns problemas para Shevek também: em particular, o problema de seu próprio silêncio.
Era difícil para ele desconfiar das pessoas com quem convivia. Tinha sido criado numa cultura que confiava deliberada e constantemente na solidariedade humana e ajuda mútua. Por mais alienado que fosse, em certos aspectos, daquela cultura, e por mais alienígena que fosse nesta, ainda assim o hábito de uma vida inteira permanecia: contava com a ajuda das pessoas. Confiava nelas.
Mas os avisos de Chifoisilik, que ele tentara ignorar, não paravam de voltar à sua lembrança. Suas próprias percepções e instintos os reforçavam. Gostasse ou não, precisava aprender a desconfiar. Precisava se calar; precisava manter sua propriedade; precisava manter seu poder de barganha.
Falou pouco naqueles dias e escreveu bem menos. Sua mesa era um amontoado de papéis insignificantes; trazia as poucas anotações de trabalho junto ao corpo, num dos inúmeros bolsos urrastis. Nunca saía da frente de seu computador de mesa sem apagar os dados.
Sabia que estava próximo de concluir a Teoria Temporal que os iotas tanto queriam para seus voos espaciais e seu prestígio. Sabia também que ainda não a concluíra e talvez jamais o fizesse. Jamais admitira nenhum dos dois fatos claramente a ninguém.
Antes de sair de Anarres, pensava que a coisa estava ao alcance da mão. Tinha as equações. Sabul sabia que ele as tinha e lhe oferecera reconciliação e reconhecimento, em troca da oportunidade de publicá-las e conquistar a glória. Ele recusara a oferta de Sabul, mas não fora um gesto de grandeza moral. O gesto moral, afinal, teria sido entregá-las à sua própria imprensa no Sindicato da Iniciativa, e ele tampouco fizera isso. Não tinha certeza se estava pronto para publicar as equações. Havia algo que não estava bem certo, algo que precisava de refinamento. Como estivera trabalhando dez anos na teoria, não custava nada demorar mais um pouco, para lhe dar mais um polimento e deixá-la perfeitamente lisa.
A coisinha que não estava bem certa parecia cada vez mais errada. Uma pequena falha no raciocínio. Uma grande falha. Uma rachadura por todo o alicerce... Na noite anterior à sua partida de Anarres, queimara todos os papéis que tinha sobre a Teoria Geral. Chegara a Urras sem nada. Por meio ano estivera, nos termos deles, blefando com os urrastis.
Ou estaria blefando consigo mesmo?
Era bem possível que uma teoria geral da temporalidade fosse um objetivo ilusório. Era também possível que, embora a Sequência e a Simultaneidade pudessem um dia ser unificadas numa teoria geral, ele não fosse o homem indicado para realizar a tarefa. Há dez anos vinha tentando, sem êxito. Matemáticos e físicos, atletas do intelecto, fazem seu trabalho ainda jovens. Era mais que possível – era provável – que ele estivesse esgotado, acabado.
Estava perfeitamente ciente de que tivera o mesmo desânimo e a mesma sensação de fracasso nos períodos que antecederam os momentos de maior criatividade. Descobriu-se tentando animar-se com esse fato e ficou furioso com a própria ingenuidade. Interpretar ordem temporal como ordem casual era uma coisa muito estúpida da parte de um cronosofista. Será que já estava senil? Era melhor simplesmente trabalhar na tarefa pequena, mas prática, de refinar o conceito de intervalo. Poderia ser útil a outra pessoa.
Mas mesmo nisso, mesmo conversando com outros físicos a respeito, sentia que estava escondendo algo. E eles sabiam que ele estava escondendo.
Estava cansado de esconder, cansado de não conversar, não conversar sobre a revolução, não conversar sobre física, não conversar sobre nada.
Atravessou o campus a caminho de uma palestra. Os pássaros cantavam nas árvores de folhagem nova. Não os ouvira cantar durante todo o inverno, mas agora ali estavam eles, vertendo as doces melodias. Piu-Piu, cantavam, piu-piu, esta é a minha propriedade, piu-piu, este é o meu território, piu-piu, ele me pertence, piu-piu.
Shevek ficou imóvel por um minuto debaixo das árvores, ouvindo.
Então saiu da alameda, atravessou o campus numa direção diferente, rumo à estação, e pegou um trem matutino para Nio Esseia. Deveria haver uma porta aberta em algum lugar naquele maldito planeta!
Pensou, enquanto se sentava no trem, em tentar sair de A-Io: em ir para Benbili, talvez. Mas não levou a ideia a sério. Teria de ir de navio ou avião, seria localizado e impedido. O único lugar onde poderia ficar longe da vista de seus anfitriões benevolentes e protetores era em sua própria grande cidade, debaixo de seus narizes.
Não era uma fuga. Mesmo se saísse do país, ainda estaria preso, preso em Urras. Não se podia chamar a isso de fuga, seja qual nome lhe deem os hierarquistas, com suas místicas fronteiras nacionais. Mas de repente sentiu-se animado, como não se sentia há dias, quando imaginou que seus anfitriões benevolentes e protetores poderiam pensar, por um momento, que ele tinha fugido.
Foi o primeiro dia realmente quente da primavera. Os campos estavam verdes e reluziam com água. Nos pastos, cada rês vinha acompanhada de seu filhote. Os carneirinhos eram particularmente graciosos, saltitando como bolas brancas elásticas, os rabinhos girando e girando. Num cercado, sozinho, o macho reprodutor do rebanho, carneiro, touro ou garanhão, de pescoço grosso, parecia potente como uma nuvem de trovoada, carregada de gerações. Gaivotas deslizavam sobre lagos transbordantes, branco sobre azul, e nuvens brancas iluminavam o pálido céu azul. Os galhos das árvores frutíferas inclinavam-se, cheios de vermelho, e alguns botões desabrochavam, rosados e brancos. Observando da janela do trem, Shevek percebeu que seu estado de espírito rebelde e inquieto estava pronto a desafiar até a beleza do dia. Era uma beleza injusta. O que os urrastis tinham feito para merecê-la? Por que lhes era dada com tanta opulência, tanta benevolência, e com tão pouca, muito pouca, para o seu próprio povo?
Estou pensando como um urrasti, disse a si mesmo. Como um maldito proprietário. Como se merecimento significasse alguma coisa. Como se alguém pudesse conquistar a beleza, ou a vida! Tentou não pensar em absolutamente nada, em deixar-se levar adiante, observando a luz do sol no céu tranquilo e as ovelhinhas saltitando nos campos da primavera.
Nio Esseia, uma cidade de 5 milhões de almas, erguia suas torres delicadas e reluzentes no outro lado dos pântanos do estuário, como se fossem feitas de névoa e luz solar. Quando o trem entrou oscilando suavemente num longo viaduto, a cidade ficou mais alta, mais brilhante, mais sólida, até de repente envolver o trem na escuridão tonitruante de uma aproximação subterrânea, vinte trilhos juntos, e depois soltá-lo, e aos seus passageiros, nos espaços enormes e brilhantes da Estação Central, sob a cúpula central de marfim e azul-celeste, considerada a maior cúpula já erguida em qualquer planeta pela mão do homem.
Shevek vagou pela estação, atravessando quilômetros de mármore polido sob aquela imensa abóboda etérea, e por fim chegou a uma longa série de portas através das quais multidões iam e vinham constantemente, todas apressadas, todas separadas. Todas lhe pareceram ansiosas. Tinha visto com frequência essa ansiedade nos rostos dos urrastis, e isso o intrigava. Seria porque, por mais dinheiro que tivessem, sempre se preocupavam em ganhar mais, a fim de não morrerem pobres? Seria culpa porque, por menos dinheiro que tivessem, sempre havia alguém mais pobre? Qualquer que fosse a causa, aquela ansiedade conferia aos rostos certa uniformidade, e ele se sentia muito só entre elas. Ao escapar de seus guias e guardas, ele não tinha considerado como seria estar sozinho numa sociedade onde os homens não confiavam uns nos outros, onde o pressuposto moral básico não era ajuda mútua, mas agressão mútua. Ficou um pouco assustado.
Pensara vagamente em perambular pela cidade e começar a conversar com as pessoas, com os membros da classe dos não proprietários, se tal coisa ainda existisse, ou com as classes trabalhadoras, como eram chamadas. Mas todas aquelas pessoas passavam apressadas, fazendo negócios, não querendo nenhuma conversa ociosa, nenhuma perda de seu precioso tempo. A pressa delas o contagiou. Tinha de ir a algum lugar, pensou, quando saiu para a luz do sol e para a imponência abarrotada na Rua Moie. Onde? A Biblioteca Nacional? O Zoológico? Mas ele não queria fazer turismo.
Indeciso, parou em frente a uma loja perto da estação que vendia jornais e bugigangas. A manchete do jornal dizia: THU ENVIA TROPAS PARA AJUDAR REBELDES BENBILIS, mas Shevek não reagiu a isso. Olhou as fotografias coloridas no mostruário, em vez do jornal. Ocorreu-lhe que ele não tinha nenhuma recordação de Urras. Quando se viaja, deve-se comprar um suvenir. Gostou das fotografias, cenas de A-Io: as montanhas que escalara, os arranha-céus de Nio, a capela da universidade (quase a vista de sua janela), uma garota do campo num bonito vestido provinciano, as torres de Rodarred e a que primeiro lhe chamou a atenção, um carneirinho numa relva florida, saltitando e, aparentemente, rindo. O pequeno Pilun ia gostar daquele carneirinho. Selecionou um cartão de cada e os levou ao balcão.
– E cinco dá cinquenta, e mais o carneiro, sessenta; e um mapa, aqui está, senhor, um e quarenta. Finalmente temos um belo dia de primavera, não é, senhor? Tem trocado, senhor? – Shevek apresentara uma nota do banco de vinte unidades. Apalpou os bolsos à procura do troco que recebera quando comprou o bilhete do trem e, após um pequeno estudo das denominações das cédulas e moedas, juntou um e quarenta. – Está certo, senhor. Obrigado e tenha um bom dia!
Será que o dinheiro também comprava a gentileza, além dos postais e do mapa? O atendente da loja teria sido tão educado se Shevek tivesse entrado como um anarresti entra num depósito de mercadorias, pegado o que quisesse, cumprimentado o registrador com um aceno de cabeça e saído?
Não adianta, não adianta pensar assim. Quando na Terra da Propriedade, pense como um proprietário. Vista-se como um, alimente-se como um, aja como um, seja um proprietário.
Não havia nenhum parque no centro de Nio, a terra era muito valiosa para ser desperdiçada com amenidades. Continuou a adentrar cada vez mais fundo naquelas mesmas ruas grandiosas e cintilantes aonde tinha sido levado tantas vezes. Chegou à Rua Saemtenevia a atravessou-a apressado, pois não queria a repetição do pesadelo diurno. Estava agora no distrito comercial. Bancos, edifícios comerciais, edifícios governamentais. Nio Esseia seria toda assim? Imensas caixas brilhantes de pedra e vidro, enormes embrulhos decorados, vazios, vazios.
Passando por uma vitrine no térreo onde se lia Galeria de Arte, ele entrou, imaginando fugir da claustrofobia moral das ruas e encontrar de novo a beleza de Urras num museu. Mas todos os quadros do museu tinham etiquetas com preços em suas molduras. Observou um nu pintado com talento. Na etiqueta lia-se 4.000 UMI.
– Esse é um Fei Feite – disse um homem moreno que apareceu silenciosamente ao seu lado. – Tínhamos cinco na semana passada. Não vai demorar muito para se valorizar no mercado da arte. Um Feite é um investimento seguro, senhor.
– Quatro mil unidades é quanto custa manter duas famílias vivas por um ano nesta cidade – disse Shevek.
O homem o olhou de cima a baixo e disse, com a voz arrastada: – Sim, bem, o senhor entende, acontece que isso é uma obra de arte.
– Arte? O homem faz arte porque ele tem de fazer. Por que esse quadro foi feito?
– O senhor é artista, suponho – disse o homem, agora com indisfarçada insolência.
– Não, sou alguém que sabe quando está vendo merda!
O marchand recuou. Quando estava fora do alcance de Shevek, começou a falar algo sobre a polícia. Shevek fez uma careta e saiu da loja a passos largos. No meio do quarteirão, parou. Não podia continuar por aquele caminho.
Mas aonde poderia ir?
Até alguém... até alguém, outra pessoa. Um ser humano. Alguém que lhe desse ajuda, não vendesse. Quem? Onde?
Pensou nos filhos de Oiie, os garotinhos que gostavam dele e, por algum tempo, não conseguiu pensar em mais ninguém. Então, surgiu uma imagem em sua mente, distante, pequena e clara: a irmã de Oiie. Qual era o nome dela? Prometa que vai me ligar, ela tinha dito, e desde então lhe escrevera duas vezes convidando-o para jantares, numa caligrafia arrojada e infantil, em papel grosso e perfumado. Ele os ignorara, dentre todos os convites de estranhos. Agora se lembrou deles.
Ao mesmo tempo, lembrou-se da outra mensagem, daquela que tinha aparecido inexplicavelmente no bolso de seu casaco: Junte-se a nós, seus irmãos. Mas não conseguia achar nenhum irmão em Urras.
Foi à loja mais próxima. Era uma doceria cheia de arabescos dourados e gesso cor-de-rosa, com fileiras de mostruários de vidro repletos de doces e confeitos, rosa, marrom, creme, dourado. Perguntou à mulher atrás dos mostruários se ela poderia ajudá-lo a encontrar um número de telefone. Estava agora mais calmo, depois do acesso de mau humor na galeria de arte, e tão humildemente ignorante e estrangeiro que conquistou a simpatia da mulher. Ela não apenas o ajudou a procurar o nome na pesada lista telefônica, como fez a ligação para ele no telefone da loja.
– Alô?
– Shevek – ele disse. Depois parou. Para ele, o telefone era um veículo de necessidades urgentes, notificações de mortes, nascimentos e terremotos. Não fazia ideia do que dizer.
– Quem? Shevek? É mesmo? Que delicadeza a sua de me ligar! Não me importo em absoluto de acordar, se for você.
– Você estava dormindo?
– Sono profundo, e ainda estou na minha cama adorável e quente. E você, onde é que está?
– Na Rua Sekae, eu acho.
– Fazendo o quê? Vamos sair. Que horas são? Santo Deus, quase meio-dia. Já sei, encontro você no meio do caminho. Perto do lago dos barcos nos jardins do Antigo Palácio. Você consegue encontrá-lo? Escute, você tem que ficar, vou dar uma festa absolutamente paradisíaca hoje à noite. – Ela continuou matraqueando por um momento, e ele concordou com tudo o que ela disse. Quando passou pelo balcão para sair, a atendente da loja sorriu para ele.
– Melhor levar uma caixa de doces para ela, não acha, senhor?
Ele parou.
– Será que devo?
– Mal nunca faz, senhor.
Havia algo de impudente e amável em sua voz. O ar da loja era doce e quente, como se todos os perfumes da primavera estivessem concentrados ali. Shevek aguardou de pé em meio aos mostruários de lindos pequenos luxos, alto, pesado, sonhador, como os pesados animais em seus cercados, os carneiros e touros entorpecidos pelo calor ardente da primavera.
– Vou preparar a coisa certa para o senhor – disse a mulher, enchendo uma caixinha de metal, finamente ornada, com folhinhas de chocolate e rosinhas de algodão-doce. Ela embrulhou a lata em papel de seda, pôs o embrulho numa caixa de papelão prateada, embrulhou a caixa num papel grosso rosado e amarrou-a com uma fita de veludo verde. Em todos os seus hábeis movimentos, podia-se sentir uma cumplicidade bem-humorada e solidária, e quando entregou o pacote pronto a Shevek, e ele o pegou murmurando um agradecimento e virando-se para sair, ela o lembrou, sem nenhum rigor na voz:
– São dez e sessenta, senhor. – Ela poderia até tê-lo deixado ir, com pena dele, como as mulheres sentem pena dos fortes; mas ele voltou, obediente, e entregou o dinheiro.
Chegou de metrô aos jardins do Antigo Palácio e foi até o lago dos barcos, onde crianças bem-vestidas velejavam navios de brinquedo, maravilhosos pequenos engenhos com cordames de seda e ornamentos de latão. Viu Vea do outro lado do círculo de água largo e brilhante e deu a volta no lago até ela, apreciando a luz do sol, o vento da primavera e as árvores escuras do parque mostrando suas primeiras e pálidas folhas verdes.
Almoçaram num restaurante do parque, num terraço coberto por uma cúpula de vidro muito alta. Ali, à luz do sol sob a cúpula, as árvores já estavam cheias de folhas, chorões pendentes sobre um lago onde aves brancas e gordas deslizavam, observando com gula indolente as pessoas que comiam, aguardando migalhas. Vea não se incubiu de fazer o pedido, deixando claro que Shevek estava encarregado dela, mas garçons habilidosos o aconselharam com tanta polidez que ele pensou ter conduzido tudo sozinho; e, felizmente, tinha dinheiro de sobra no bolso. A comida era extraordinária. Nunca tinha experimentado tantas sutilezas de sabor. Acostumado a duas refeições por dia, em geral pulava o almoço que os urrastis comiam, mas nesse dia comeu tudo, enquanto Vea delicadamente debicava e mordiscava. Por fim, ele teve de parar, e ela riu do olhar triste dele.
– Comi demais.
– Uma pequena caminhada deve ajudar.
Foi uma caminhada bem curta: um passeio vagaroso de dez minutos pela grama, e então Vea deixou-se cair graciosamente num talude à sombra de altos arbustos, todos radiantes de flores douradas. Ele sentou-se ao seu lado. Uma frase que Takver usava veio-lhe à mente quando olhou os pés delgados de Vea, enfeitados com sapatinhos brancos de saltos muito altos. “Uma exploradora do corpo”, Takver chamava as mulheres que usavam a sexualidade como arma na luta de poder com os homens. A julgar por sua aparência, Vea era a maior de todas as exploradoras de corpo. Sapatos, roupas, cosméticos, joias, gestos, tudo nela reafirmava a provocação. Possuía um corpo tão elaborado e ostensivamente feminino que mal parecia um ser humano. Encarnava toda a sexualidade que os iotas reprimiam e transferiam para seus sonhos, seus romances e poemas, seus intermináveis quadros de nus femininos, sua música, sua arquitetura cheia de curvas e cúpulas, seus doces, seus banheiros, seus colchões. Ela era a mulher contida na mesa.
A cabeça, totalmente raspada, tinha sido pulverizada com um talco composto de partículas de pó de mica, de modo que uma leve cintilação obscurecia a nudez dos contornos. Usava um xale ou estola transparente, sob a qual as formas e a textura de seus braços nus se mostravam suavizadas e protegidas. Os seios estavam cobertos: as mulheres iotas não saíam com os seios à mostra, reservando a nudez para seus donos. Os pulsos estavam carregados de pulseiras de ouro, e na cavidade da garganta uma única joia brilhava azul contra a pele macia.
– Como isso fica aí? – ele perguntou.
– O quê? – Como ela própria não conseguia ver a joia, podia fingir que não a percebia, obrigando-o a apontar, talvez erguer a mão por sobre os seios para tocar a joia. Shevek sorriu e tocou-a.
– Está colada?
– Ah, isso. Eu tenho um pequeno ímã implantado aí, e a joia tem um pedacinho de metal atrás, ou é o contrário? De todo modo, ficamos sempre juntas.
– Você tem um ímã sob a pele? – Shevek perguntou, com aversão genuína.
Vea sorriu e tirou a safira para que ele visse que não havia nada além de uma minúscula cicatriz prateada na cavidade.
– Você me desaprova totalmente mesmo... É animador. Sinto que, não importa o que eu diga ou faça, não posso me rebaixar mais em sua opinião, pois já estou no fundo do poço!
– Não é assim – ele protestou. Sabia que ela estava fazendo um jogo, mas ele conhecia poucas regras desse jogo.
– Não, não; reconheço o horror moral quando o vejo. Assim. – Ela fez uma carranca sinistra; os dois riram. – Sou assim tão diferente das mulheres anarrestis?
– Ah, sim, muito.
– São todas terrivelmente fortes, com músculos? Elas usam botas e têm pés grandes e chatos, usam roupas sérias e se depilam uma vez por mês?
– Elas nunca se depilam.
– Nunca? Em nenhuma parte? Ah, meu Deus! Vamos falar de outra coisa.
– De você. – Ele se recostou no talude gramado, perto o bastante de Vea para ser envolvido pelos perfumes naturais e artificiais de seu corpo. – Queria saber se a mulher urrasti se contenta em ser sempre inferior.
– Inferior a quem?
– Aos homens.
– Ah... isso! O que o faz pensar que sou inferior?
– Parece que tudo o que a sua sociedade faz é feito para os homens. Indústria, artes, administração, governo, decisões. E por toda a vida vocês carregam o nome do pai e do marido. Os homens vão para a escola e vocês não; todos os professores, juízes, policiais, governantes são homens, não são? Por que vocês não fazem o que querem?
– Mas nós fazemos. As mulheres fazem exatamente o que querem. E não precisam sujar as mãos, nem usar farda, nem ficar gritando para lá e para cá nas diretorias para fazerem o que querem.
– Mas o que é que vocês fazem?
– Ora, nós conduzimos os homens, é claro! E, sabe, é perfeitamente seguro dizer isso a eles, porque eles nunca acreditam. Eles dizem “Ha, ha, mulherzinhas engraçadas!”, passam a mão na sua cabeça e saem pomposos, com suas medalhas tilintando, perfeitamente satisfeitos.
– E você também está satisfeita?
– Decerto que sim.
– Não acredito.
– Porque isso não se encaixa nos seus princípios. Os homens sempre têm teorias, e as coisas sempre têm de se encaixar nelas.
– Não, não por causa de teorias, porque posso ver que você não está satisfeita. Que você é inquieta, insatisfeita, perigosa.
– Perigosa! – Vea deu uma risada radiante. – Que elogio absolutamente maravilhoso! Por que sou perigosa, Shevek?
– Ora, porque você sabe que, aos olhos dos homens, você é uma coisa, uma coisa possuída, comprada, vendida. Então você só pensa em enganar os donos, em se vingar...
Ela pôs a mãozinha deliberadamente na boca de Shevek.
– Quieto – ela disse. – Sei que você não tem a intenção de ser vulgar. Eu o perdoo. Mas já chega.
Ele fez uma carranca colérica diante da hipocrisia, e diante da percepção de que poderia tê-la magoado de fato. Ainda sentia o breve toque da mão dela em seus lábios.
– Desculpe! – ele disse.
– Não, não. Como pode entender, vindo da Lua? E você é só um homem, de qualquer maneira... Mas vou lhe dizer uma coisa. Se você pegasse uma de suas “irmãs” lá da Lua e lhe desse uma oportunidade de tirar as botas, tomar um banho de óleo e fazer uma depilação, pôr umas sandálias bem bonitas, uma joia na barriga e perfume, ela iria adorar! E você também! Ah, como você iria gostar! Mas vocês se recusam a fazer isso, coitadinhos, com suas teorias. Todos irmãos e irmãs e nenhuma diversão!
– Você tem razão – disse Shevek. – Nenhuma diversão. Nunca. O dia inteiro em Anarres nós cavamos chumbo nas entranhas das minas, e quando chega a noite, após a refeição de três grãos de holum cozidos numa colher de água salobra, recitamos em antifonia os Ensinamentos de Odo, até a hora de dormir. O que fazemos todos separadamente e usando botas.
Sua fluência em iota não era suficiente para lhe permitir o voo verbal que teria sido esse gracejo em sua própria língua, uma de suas súbitas fantasias que somente Takver e Sadik tinham ouvido o suficiente para se acostumarem; mas, apesar de imperfeito, o gracejo surtiu efeito em Vea. Soltou sua risada sombria, pesada e espontânea.
– Santo Deus, você é engraçado também! Existe algo que você não seja?
– Não sou vendedor – ele respondeu.
Ela o estudou, sorrindo. Havia algo profissional, de teatral em sua pose. As pessoas em geral não se olham atentamente quando estão tão próximas, a menos que sejam mães com filhos pequenos, ou médicos com pacientes, ou amantes.
Ele se levantou.
– Quero andar mais – disse.
Ela estendeu a mão para ele pegar e ajudá-la a se levantar. O gesto foi indolente e sedutor, mas ela disse com ternura incerta na voz:
– Você é mesmo como um irmão... Pegue a minha mão. Eu vou soltar depois!
Passearam pelos caminhos do grande jardim. Entraram no palácio, preservado como museu dos tempos antigos da realeza, pois Vea disse que adorava ver as joias expostas ali. Retratos de nobres e príncipes arrogantes os fitavam das paredes cobertas de brocados e das lareiras entalhadas. Os cômodos estavam repletos de prata, ouro, cristal, madeiras raras, tapeçarias e joias. Havia guardas a postos atrás de cordões de veludo. Os uniformes pretos e vermelhos dos guardas harmonizavam bem com aquela pompa, as tapeçarias bordadas a ouro, as colchas de plumas, mas seus rostos não combinavam com o ambiente; eram rostos entediados, cansados, cansados de ficarem em pé o dia inteiro no meio de estranhos, realizando uma tarefa inútil. Shevek e Vea foram até um mostruário de vidro onde jazia o manto da Rainha Teaea, feito com as peles bronzeadas de rebeldes esfolados vivos, que aquela mulher terrível e provocadora usara quando se dirigiu ao povo assolado pela peste e rezou a Deus para que acabasse com o flagelo, mil e quatrocentos anos antes.
– Para mim, isso tem a mesma aparência terrível do couro de cabra – disse Vea, examinando o farrapo desbotado pelo tempo no mostruário de vidro. Ergueu os olhos de soslaio para Shevek. – Tudo bem com você?
– Acho que eu gostaria de sair deste lugar.
Já do lado de fora, no jardim, o rosto de Shevek tornou-se menos lívido, mas ele olhou para as paredes do palácio com ódio. – Por que o seu povo se apega à sua vergonha? – ele perguntou.
– Mas isso tudo é história. Coisas assim não poderiam acontecer hoje em dia!
Ela o levou a uma matinê no teatro, uma comédia sobre jovens casados e suas sogras, cheia de piadas sobre cópula que nunca mencionavam a cópula. Shevek tentava rir quando Vea ria. Depois do teatro foram a um restaurante no centro da cidade, um lugar de incrível opulência. O jantar custou cem unidades. Shevek comeu muito pouco, pois já comera ao meio-dia, mas rendeu-se ao pedido de Vea e bebeu duas ou três taças de vinho, que era mais agradável do que esperara e pareceu não exercer nenhum efeito deletério em seu raciocínio. Ele não tinha dinheiro suficiente para pagar o jantar, mas Vea não se ofereceu para dividir a conta, apenas sugerindo que ele passasse um cheque, o que ele fez. Em seguida tomaram um táxi e foram para o apartamento de Vea; ela também deixou que ele pagasse o motorista. Será, ele se perguntou, que Vea era na verdade uma prostituta, aquela entidade misteriosa? Mas prostitutas, conforme Odo as descreveu, eram mulheres pobres, e Vea certamente não era pobre: “sua” festa, ela lhe disse, estava sendo preparada por “sua” cozinheira, “sua” criada e “seu” fornecedor. Além do mais, os homens da universidade falavam com desprezo de prostitutas como sendo criaturas sujas, enquanto Vea, apesar de suas incessantes provocações, demonstrava tal suscetibilidade em uma conversa franca sobre qualquer coisa sexual que Shevek media as palavras com ela como teria feito, em Anarres, com uma criança tímida de 10 anos. No final das contas, ele não sabia exatamente o que ela era.
Os aposentos de Vea eram grandes e luxuosos, com vistas cintilantes das luzes de Nio e inteiramente decorados em branco, até mesmo o tapete. Mas Shevek estava se tornando insensível ao luxo e, além disso, estava morrendo de sono. Os convidados só chegariam em uma hora. Enquanto Vea trocava de roupa, ele adormeceu numa enorme poltrona branca na sala. A criada fazendo um barulho qualquer sobre a mesa o despertou a tempo de ver Vea voltar, vestindo agora um formal traje noturno iota para mulheres, uma saia longa plissada a partir dos quadris, deixando todo o torso nu. No umbigo brilhava uma pequena joia, exatamente como as fotos que tinha visto com Tirin e Bedap, há um quarto de século, no Instituto Regional do Poente Norte, exatamente assim... Semiacordado e totalmente excitado, ele a fitou.
Ela retribuiu o olhar, sorrindo um pouco.
Ela se sentou num banquinho baixo e estofado perto dele, para que pudesse olhá-lo na altura do rosto. Arrumou a saia branca sobre os tornozelos e disse:
– Agora me conte o que realmente acontece entre homens e mulheres em Anarres.
Era inacreditável. A criada e o fornecedor estavam na sala; ela sabia que ele tinha uma parceira, e ele sabia que ela também; e nenhuma palavra sobre cópula tinha sido dita entre eles. No entanto, a roupa que ela estava usando, seus movimentos, seu tom de voz – o que era tudo aquilo senão o mais aberto convite?
– Entre um homem e uma mulher existe o que eles quiserem que exista entre eles – ele disse, um tanto ríspido. – Cada um deles, e ambos.
– Então é verdade, vocês realmente não têm moralidade? – ela perguntou, como se chocada, mas encantada.
– Não sei o que quer dizer. Magoar uma pessoa lá é o mesmo que magoar uma pessoa aqui.
– Quer dizer que vocês têm as mesmas velhas regras? Sabe, acredito que moralidade seja apenas mais uma superstição, como a religião. Tinha de ser descartada.
– Mas a minha sociedade – ele disse, em total perplexidade – é uma tentativa de atingir a moralidade. Descartar o que for moralista, sim, as regras, as leis, os castigos, para que os homens possam enxergar o bem e o mal e escolher um deles.
– Então vocês descartaram todas as imposições, todos os “faça isso”, “não faça aquilo”. Mas, sabe, acho que vocês, odonianos, não entenderam nada. Vocês descartaram os padres, os juízes, as leis do divórcio e tudo o mais, mas mantiveram o problema real por trás deles. Vocês só inseriram o problema em suas consciências. Mas ele ainda está lá. Vocês continuam os escravos de sempre! Não são livres de verdade.
– Como você sabe?
– Li um artigo sobre odonismo numa revista – ela disse. – E nós dois passamos o dia juntos. Não sei você, mas eu sei algumas coisas sobre você. Sei que você carrega uma... uma Rainha Teaea aí dentro, bem dentro dessa sua cabeça cabeluda. E ela manda em você tanto quanto a velha tirana mandava em seus servos. Ela diz “faça isso!” e você faz, “não faça isso”, e você não faz.
– E aqui é o lugar dela – ele disse, sorrindo. – Dentro da minha cabeça.
– Não. Melhor tê-la num palácio. Aí você poderia se rebelar contra ela. Você teria se rebelado! Seu tataravô se rebelou. Pelo menos ele foi para a Lua para tentar escapar. Mas levou a Rainha Teaea com ele, e você ainda está com ela!
– Pode ser. Mas ela aprendeu, em Anarres, que se ela me mandar machucar outra pessoa, eu machuco a mim mesmo.
– A mesma velha hipocrisia. A vida é uma luta, e o mais forte vence. Tudo o que a civilização faz é esconder o sangue e encobrir o ódio com palavras bonitas!
– A sua civilização, talvez. A nossa não esconde nada. Tudo é manifesto. Lá, a Rainha Teaea veste a própria pele. Seguimos uma lei, apenas uma: a lei da evolução humana.
– A lei da evolução é que o mais forte sobrevive!
– Sim, e os mais fortes, na existência de qualquer espécie social, são aqueles mais sociais. Em termos humanos, mais éticos. Entende, não temos presas ou inimigos em Anarres. Só temos uns aos outros. Não se conquista nenhuma força machucando alguém. Só fraqueza.
– Não me importo em machucar ou não machucar. Não me importo com outras pessoas, e ninguém mais se importa. Só fingem. Não quero fingir. Quero ser livre!
– Mas Vea – ele começou, com ternura, pois o apelo à liberdade o comoveu muito, mas a campainha tocou. Vea levantou-se, ajeitou a saia e avançou sorrindo para receber os convidados.
Durante a hora seguinte, trinta ou quarenta pessoas chegaram. A princípio Shevek sentiu-se irritado, insatisfeito e entediado. Era só mais uma festa em que todos ficavam de pé com um copo na mão, sorrindo e conversando alto. Mas logo se tornou mais divertida. As conversas e discussões continuaram, as pessoas sentaram-se para conversar, começou a parecer uma festa em seu planeta. Delicados salgadinhos e pedacinhos de carne e peixe foram servidos, as taças eram constantemente preenchidas pelo atencioso garçom. Shevek aceitou uma bebida. Vinha observando há meses a avidez dos urrastis por álcool, e nenhum deles parecera ter caído doente por causa disso. A coisa tinha gosto de remédio, mas alguém explicou que era sobretudo água carbonada, o que lhe agradou. Estava com sede, então bebeu tudo de uma vez.
Dois homens estavam determinados a conversar sobre física com ele. Um deles tinha boas maneiras, e Shevek conseguiu despistá-lo por um tempo, pois achava difícil discutir física com não físicos. O outro era arrogante, e não foi possível escapar dele. Mas a irritação, Shevek descobriu, tornava a conversa bem mais fácil. O homem sabia de tudo, aparentemente porque tinha muito dinheiro.
– A meu ver – ele declarou a Shevek –, sua Teoria da Simultaneidade simplesmente nega o fato mais óbvio sobre o tempo, o fato de que o tempo passa.
– Bem, na física tem-se cuidado com o que se chama de “fatos”. É diferente dos negócios – disse Shevek de modo brando e agradável, mas havia algo naquela brandura que fez Vea, que estava conversando com outro grupo próximo, virar-se e prestar atenção. – Nos termos estritos da Teoria da Simultaneidade, a sucessão não é considerada um fenômeno fisicamente objetivo, mas subjetivo.
– Agora pare de tentar assustar Dearri e diga o que isso significa em linguagem infantil – disse Vea. Sua perspicácia fez Shevek dar um meio sorriso.
– Bem, pensamos que o tempo “passa”, que flui por nós, mas e se formos nós que nos movemos para a frente, do passado para o futuro, sempre descobrindo o novo? Seria um pouco como ler um livro, entende? O livro está todo ali, todo de uma vez, entre as capas. Mas se você quer ler a história e entendê-la, deve começar na primeira página e avançar, sempre na ordem. Então o universo seria um grande livro, e nós, leitores muito pequenos.
– Mas o fato – disse Dearri – é que nós vivenciamos o universo como uma sucessão, um fluxo. Nesse caso, de que adianta essa teoria de que num plano mais alto o universo pode ser todo eternamente coexistente? Pode ser divertido para vocês, teóricos, mas não tem nenhuma aplicação prática, nenhuma relevância para a vida real. A menos que isso signifique que podemos construir uma máquina do tempo! – ele acrescentou, numa espécie de jovialidade severa e falsa.
– Mas nós não vivenciamos o universo apenas como uma sucessão – disse Shevek. – O senhor nunca sonha, sr. Dearri? – Sentiu orgulho de si mesmo por ter, pela primeira vez, se lembrado de chamar alguém se “senhor”.
– O que isso tem a ver com o assunto?
– Parece que é apenas na consciência que vivenciamos o tempo. Um bebê não tem noção de tempo; ele não consegue se distanciar do passado e compreender como ele se relaciona com o presente, ou planejar como o presente pode se relacionar com o futuro; ele não compreende a morte. A mente inconsciente do adulto ainda é assim. Num sonho não existe tempo, a sucessão é toda alterada, e causa e efeito se misturam. No mito e na lenda não existe tempo. A que passado se refere um conto quando diz “Era uma vez”? Assim, quando o místico reconecta razão e inconsciência, vê tudo se tornar um único ser e compreende o eterno retorno.
– Sim, os místicos – disse com avidez o homem mais tímido. – Tebores, no Oitavo Milênio. Ele escreveu: A mente inconsciente coexiste com o universo.
– Mas não somos bebês – interrompeu Dearri –, somos homens racionais. Sua Simultaneidade é algum tipo de regressão mística?
Houve uma pausa, quando Shevek se serviu de um salgadinho que ele não queria e o comeu. Já tinha perdido a calma uma vez nesse dia e feito papel de tolo. Uma vez bastava.
– Talvez você possa compreendê-la – disse – como um esforço para atingir um equilíbrio. A Sequência fornece uma bela explicação para nossa sensação de tempo linear, entende, e a evidência da evolução. Ela inclui a criação e a mortalidade. Mas para por aí. Lida com tudo o que muda, mas não consegue explicar por que as coisas também perduram. Fala somente da flecha do tempo... nunca do círculo do tempo.
– O círculo? – perguntou o inquiridor mais educado, com tão evidente anseio de aprender que Shevek esqueceu Dearri por completo e mergulhou no assunto com entusiasmo, gesticulando as mãos e os braços, como se tentasse mostrar ao ouvinte, materialmente, as flechas, os ciclos, as oscilações de que falava.
– O tempo avança em círculos, bem como em linha reta. Como o movimento de um planeta, entende? Um ciclo, uma órbita em torno do sol, dura um ano, não é? E duas órbitas, dois anos, e assim por diante. Pode-se contar as órbitas indefinidamente... um observador pode. De fato, é com esse sistema que contamos o tempo. Isso equivale ao indicador de tempo, ao relógio. Mas dentro do sistema, do ciclo, onde está o tempo? Onde está o começo ou o fim? Repetição infinita é um processo atemporal. Deve ser comparado, deve estar relacionado a algum outro processo cíclico ou não cíclico, para ser visto como temporal. Veja bem, isso é muito esquisito e interessante. Os átomos, você sabe, têm um movimento cíclico. Os compostos estáveis são feitos de elementos que têm um movimento regular e periódico em relação uns aos outros. Na verdade, são os minúsculos ciclos de tempo reversível do átomo que dão à matéria permanência suficiente para tornar possível a evolução. As pequenas atemporalidades somadas compõem o tempo. E depois, em grande escala, o cosmo. Bem, você sabe que achamos que o universo inteiro é um processo cíclico, uma oscilação entre expansão e contração, sem um antes ou um depois. Somente dentro de cada um dos grandes ciclos, onde vivemos, somente aí existe tempo linear, evolução, mudança. Portanto, o tempo tem dois aspectos. Existe a flecha, a correnteza do rio, sem a qual não há nenhuma mudança, nenhum progresso, nem direção, nem criação. E existe o círculo ou ciclo, sem o qual há o caos, há a sucessão de instantes sem sentido, um mundo sem relógios, sem estações, sem promessas.
– Não se pode fazer duas afirmações contraditórias sobre a mesma coisa – disse Dearri, com a calma do conhecimento superior. – Em outras palavras, um desses “aspectos” é real, ou outro é simples ilusão.
– Muitos físicos já disseram isso – Shevek reconheceu.
– Mas o que o senhor diz? – perguntou o que queria saber.
– Bem, acho que é uma saída fácil de uma dificuldade... Pode-se descartar o ser ou o vir a ser como uma ilusão? Vir a ser sem ser não faz sentido. Ser sem vir a ser é um grande tédio... Se a mente é capaz da percepção do tempo dessas duas formas, então uma verdadeira cronosofia deve fornecer um campo em que a relação dos dois aspectos ou processos do tempo poderia ser compreendida.
– Mas para que serve esse tipo de “compreensão” – perguntou Dearri –, se não resulta em aplicações práticas, tecnológicas? É só um jogo de palavras, não é?
– Você faz perguntas como um verdadeiro explorador – disse Shevek, e nenhuma alma ali sabia que ele insultara Dearri com a palavra mais desprezível em seu vocabulário; na verdade, Dearri até assentiu com a cabeça, aceitando o elogio com satisfação. Vea, entretanto, sentiu uma tensão e fez um aparte abrupto:
– Sabe, não entendo uma palavra do que você diz, mas me parece que se eu realmente entendi o que você disse sobre o livro... que tudo existe agora... então não seríamos capazes de prever o futuro? Se ele já está lá?
– Não, não – disse o homem mais tímido, sem nenhuma timidez. – Não está lá como um sofá ou uma casa. Tempo não é espaço. Não se pode andar nele! – Vea assentiu com um intenso movimento da cabeça, como se estivesse aliviada por ter sido colocada em seu devido lugar. Parecendo ganhar confiança por ter afastado a mulher dos domínios do pensamento superior, o homem tímido virou para Dearri e disse:
– Parece-me que a aplicação da Física Temporal está na ética. O senhor concordaria com isso, dr. Shevek?
– Ética? Bem, não sei. Meu trabalho predominante é a matemática, você sabe. Não se pode fazer equações do comportamento ético.
– Por que não? – disse Dearri.
Shevek o ignorou.
– Mas é verdade, a cronosofia realmente envolve a ética. Porque nossa sensação de tempo envolve numa capacidade de separar causa e efeito, meios e fins. De novo, o bebê ou animal não veem a diferença entre o que fazem agora e o que vai acontecer por causa disso. Não podem fazer uma roldana, ou uma promessa. Nós podemos. Vendo a diferença entre o agora e o não agora, conseguimos fazer a conexão. E é aí que entra a moralidade. Responsabilidade. Dizer que um bom fim será alcançado por um mau meio é como dizer que se eu puxar a corda dessa roldana, ela vai erguer um peso naquela outra. Quebrar uma promessa é negar a realidade do passado; portanto, é negar a esperança de um futuro real. Se o tempo e a razão são funções um do outro, se somos criaturas do tempo, é melhor sabermos disso e tirarmos o melhor proveito disso. Agir com responsabilidade.
– Mas olhe aqui – disse Dearri, com inefável satisfação por sua perspicácia –, você acabou de dizer que no seu sistema de Simultaneidade, não há passado e futuro, só uma espécie de eterno presente. Então como se pode ser responsável pelo livro que já está escrito? Tudo o que se pode fazer é ler o livro. Não sobra nenhuma escolha, nenhuma liberdade de ação.
– Esse é o dilema do determinismo. Você tem toda razão, está implícito no pensamento Simultaneísta. Mas o pensamento da Sequência também tem seu dilema. É mais ou menos assim, fazendo uma pequena comparação ridícula: você está jogando uma pedra numa árvore; se você é Simultaneísta, a pedra já bateu na árvore, mas se você é Sequencista, a pedra nunca vai poder bater na árvore. Então, qual dos dois você escolhe? Talvez você prefira jogar pedras sem pensar no assunto, sem escolher. Eu prefiro dificultar as coisas e escolher os dois.
– Como... como o senhor os concilia? – perguntou o tímido, com sinceridade.
Shevek quase riu de desespero.
– Não sei. Trabalho nisso há muito tempo! No fim, a pedra bate na árvore. Nem a sequência pura nem a unidade pura explicam isso. Não queremos pureza, mas complexidade, a relação entre causa e efeito, meio e fim. Nosso modelo do cosmo deve ser tão inesgotável quanto o cosmo. Uma complexidade que inclua não apenas duração, mas criação, não apenas ser, mas vir a ser, não apenas geometria, mas ética. Não estamos atrás da resposta, mas apenas de como fazer a pergunta...
– Tudo muito bem, mas a indústria precisa de respostas – disse Dearri.
Shevek virou-se devagar, olhou para ele e não disse nada.
Houve um silêncio pesado, no qual Vea se lançou, graciosa e inconsequente, retornando ao tema da previsão do futuro. Outros foram atraídos pelo assunto e todos começaram a narrar suas experiências com cartomantes e videntes.
Shevek decidiu não falar mais nada, qualquer que fosse a pergunta. Estava com mais sede do que nunca; deixou o garçom encher de novo sua taça e bebeu a coisa agradável e espumante. Olhou em volta da sala, tentando dissipar a raiva e a tensão observando as outras pessoas. Mas elas também se comportavam com muita emoção para os padrões iotas – gritando, rindo alto, interrompendo-se uns aos outros. Num canto, um casal entregava-se a preliminares sexuais. Shevek desviou o olhar, enojado. Eles egoizavam até o sexo? Acariciar-se e copular na frente de pessoas desacompanhadas era tão vulgar quanto comer na frente de pessoas famintas. Voltou a atenção para o grupo à sua volta. Haviam terminado o assunto das previsões do futuro e agora falavam de política. Estavam todos discutindo sobre a guerra, sobre o que Thu iria fazer, o que A-Io iria fazer, o que o CGM iria fazer.
– Por que vocês só falam em abstrações? – ele perguntou de repente, perguntando-se, enquanto falava, por que estava falando, se tinha decidido não falar. – Não são nomes de países, são pessoas se matando. Por que os soldados vão? Por que um homem vai matar estranhos?
– Mas é para isso que servem os soldados – disse uma mulher pequena e clara, com uma opala no umbigo. Vários homens começaram a explicar a Shevek o princípio de soberania nacional. Vea interrompeu. – Deixem que ele fale. Como você resolveria o problema, Shevek?
– A solução está bem à vista.
– Onde?
– Anarres!
– Mas o que o seu povo faz na Lua não resolve nossos problemas aqui.
– O problema do homem é sempre o mesmo. Sobrevivência. Da espécie, do grupo, do indivíduo.
– Autodefesa nacional... – alguém gritou.
Eles argumentaram, ele argumentou. Ele sabia o que gostaria de dizer e sabia que deveria convencer a todos, pois era claro e verdadeiro, mas, de algum modo, não conseguia dizê-lo adequadamente. Todos gritavam. A mulherzinha clara bateu no braço largo da poltrona em que estava sentada e ele se sentou ali. A cabeça raspada e acetinada da mulher surgiu olhando para ele sob seu braço.
– Olá, Homem da Lua! – Vea unira-se a outro grupo por um tempo, mas tornou a se aproximar dele. O rosto dela estava enrubescido e seus olhos, grandes e líquidos. Ele pensou ter visto Pae do outro lado da sala, mas havia tantos rostos que eles se misturavam e se tornavam indistintos. Coisas aconteciam aos trancos e barrancos, com lacunas no meio, como se o tivessem deixado testemunhar, dos bastidores, o funcionamento do Cosmo Cíclico da hipótese da velha Gvarab.
– O princípio da autoridade legal deve ser mantido, ou vamos degenerar em mera anarquia! – rugiu um homem gordo e carrancudo.
– Sim, sim, degenerem! Nós temos desfrutado essa degeneração há cento e cinquenta anos. – retrucou Shevek.
Os dedos dos pés da mulherzinha clara, em sandálias prateadas, surgiram por sob a saia toda bordada com centenas e centenas de pequenas pérolas.
– Mas fale de Anarres... como é, de verdade? Lá é tão maravilhoso assim? – Vea disse.
Ele estava sentado no braço da poltrona, e Vea estava encostada na almofada perto dos joelhos dele, ereta e dócil, os seios macios fitando-o com seus olhos cegos, o rosto sorrindo, complacente, enrubescido.
Algo sombrio revolveu-se na mente de Shevek, escurecendo tudo. Sua boca estava seca. Esvaziou a taça cheia que o garçom acabara de lhe servir.
– Não sei – ele disse; sentiu a língua semiparalisada. – Não. Não é maravilhoso. É um mundo feio. Não como este. Anarres só tem poeira e colinas áridas. Tudo escasso, tudo árido. As pessoas não são bonitas. Têm mãos e pés grandes, como eu e o garçom ali. Mas as barrigas não são grandes. Eles se sujam muito e tomam banho juntos, ninguém aqui faz isso. As cidades são muito pequenas e sem graça, são lúgubres. Nenhum palácio. A vida é sem graça, e o trabalho é duro. Não se pode ter sempre tudo o que se quer, ou mesmo o que se necessita, porque não há o suficiente. Vocês, urrastis, têm o suficiente. Ar suficiente, chuva suficiente, grama, oceanos, comida, música, prédios, fábricas, máquinas, livros, história. Vocês são ricos, vocês possuem. Nós somos pobres, somos carentes. Vocês têm, nós não temos. Tudo é lindo aqui. Só os rostos que não. Em Anarres nada é lindo, nada, exceto os rostos. Os outros rostos, dos homens e das mulheres. Aqui se veem joias, lá se veem olhos. E nos olhos se vê o esplendor, o esplendor do espírito humano. Porque nossos homens e mulheres são livres... por não possuírem nada, são livres. E vocês, os possuidores, são possuídos. Vocês estão todos presos. Cada um sozinho, solitário, com o monte de coisas que possui. Vocês vivem na prisão, morrem na prisão. É tudo que consigo ver nos seus olhos... o muro, o muro!
Estavam todos olhando para ele.
Ouviu o som alto da própria voz ainda ressoando no silêncio, sentiu as orelhas ardendo. A escuridão e o vazio revolveram-se outra vez em sua mente.
– Estou tonto – ele disse, e se levantou.
Vea segurou-lhe pelo braço.
– Venha comigo por aqui – ela disse, rindo um pouco e ofegante. Ele a seguiu enquanto ela abria caminho por entre as pessoas. Ele agora sentia o rosto muito pálido, e a tontura não passava; esperava que ela o estivesse levando ao lavatório, ou a uma janela onde pudesse respirar ar fresco. Mas o cômodo em que entraram era grande e parcialmente iluminado por um reflexo. Uma enorme cama branca estava encostada na parede; um espelho cobria a metade da outra parede. Havia uma fragrância densa e doce de cortinas, de roupas de cama, do perfume que Vea usava.
– Você é demais – Vea disse, postando-se na frente de Shevek e erguendo os olhos para o rosto dele, na escuridão parcial, com aquele sorriso ofegante. – Realmente demais... você é impossível... magnífico! – Colocou as mãos nos ombros dele. – Oh, a cara que eles fizeram! Preciso lhe dar um beijo por isso! – E ela se ergueu na ponta dos pés, mostrando-lhe a boca, o pescoço branco e os seios nus.
Ele a agarrou e deu-lhe um beijo na boca, forçando a cabeça dela para trás, e depois beijou o pescoço e os seios. Ela cedeu a princípio, como se não tivesse ossos, depois se contorceu um pouco, rindo e o empurrando de leve, e começou a falar.
– Oh, não, não, comporte-se – ela disse. – Agora vamos, temos que voltar para a festa. Não, Shevek, agora não, sossegue, assim não vai dar! – Ele não deu a menor atenção. Puxou-a com ele para a cama, e ela foi, mas continuou falando. Com uma das mãos, ele tateou as roupas complicadas que estava usando e conseguiu abrir a calça. Depois tateou a roupa de Vea, a saia de cintura baixa, mas apertada, que ele não conseguiu soltar.
– Agora pare – ela disse. – Não, escute, Shevek, não vai dar, não agora. Não tomei anticoncepcional, se eu engravidar vai ser a maior confusão, meu marido volta em duas semanas! Não, me solte! – Mas ele não conseguia soltá-la, seu rosto estava colado à carne macia, suada e perfumada. – Escute, não amasse a minha roupa, as pessoas vão notar, pelo amor de Deus. Espere... espere, podemos combinar, arranjar um lugar para um encontro, tenho que zelar pela minha reputação, não posso confiar na empregada, espere, agora não... Agora não! Agora não! – Por fim, assustada com a urgência cega de Shevek e sua energia, ela o empurrou com todas as suas forças, as mãos no peito dele. Ele deu um passo para trás, confuso com o tom de medo na voz dela e com sua relutância; mas ele não conseguia parar, a resistência dela o excitou ainda mais. Ele a apertou contra si, e seu sêmen jorrou na seda branca do traje de Vea.
– Me solte! Me solte! – ela repetia no mesmo sussurro alto. Ele a soltou. Ficou parado, entorpecido. Tateou sua calça, tentando fechá-la.
– Eu... desculpe... pensei que você quisesse...
– Pelo amor de Deus! – disse Vea, olhando a saia na penumbra, puxando o plissado. – Agora vou ter que mudar de roupa.
Shevek ficou parado, boquiaberto, respirando com dificuldade, os braços caídos; então de repente virou-se e saiu do quarto escuro. De volta à sala iluminada da festa, passou cambaleando pelas pessoas, tropeçou numa perna, viu que o caminho estava impedido por corpos, roupas, joias, seios, olhos, chamas de velas, mobília. Correu para uma mesa. Nela havia uma travessa de prata em que pequenos salgadinhos recheados de carne, creme e ervas formavam círculos concêntricos, como uma imensa flor pálida. Shevek ofegou para respirar, curvou-se e vomitou em cima da travessa inteira.
– Eu o levo para casa – disse Pae.
– Faça isso, pelo amor de Deus – disse Vea. – Você estava procurando por ele, Saio?
– Ah, um pouco. Felizmente Demaere te ligou.
– Com certeza ele vai precisar de você.
– Ele não vai dar trabalho. Desmaiou no corredor. Posso usar seu telefone antes de sair?
– Mande lembrança ao chefe – Vea disse, maliciosamente.
Oiie tinha vindo ao apartamento da irmã com Pae e saiu com ele. Sentaram-se no banco do meio na grande limusine do governo que Pae sempre deixava de sobreaviso, a mesma que trouxera Shevek do porto espacial no verão anterior. Shevek agora estava deitado no banco traseiro, na mesma posição em que o tinham jogado.
– Ele ficou com a sua irmã o dia inteiro, Demaere?
– Parece que desde o meio-dia.
– Graças a Deus!
– Por que você tem tanto medo de que ele entre nos bairros pobres? Qualquer odoniano já está convencido de que somos um monte de escravos assalariados e oprimidos; qual a diferença se ele vir um pouco de confirmação disso?
– Pouco me importa o que ele veja. Não queremos que ele seja visto. Você tem lido os jornais alpistes? Ou os cartazes que circularam semana passada pela Cidade Velha, sobre o “Precursor”? O mito... aquele que virá antes do milênio... “um estranho, um pária, um exilado, trazendo nas mãos vazias o tempo vindouro”. Eles citaram isso. Essa turba está num daqueles malditos surtos apocalípticos. Procurando um líder simbólico. Um catalisador. Falando em greve geral. Não vão aprender nunca. Mesmo assim, precisam de uma lição. Maldita ralé rebelde, mandem todos eles combaterem em Thu, só assim vão nos servir para alguma coisa.
Nenhum dos dois homens falou mais nada durante o percurso.
O vigia noturno da Casa dos Veteranos da Faculdade os ajudou a subirem com Shevek para o seu quarto. Carregaram-no até a cama. Ele começou a roncar na mesma hora.
Oiie ficou para tirar os sapatos de Shevek e cobri-lo com um cobertor. O bafo do homem embriagado era repugnante; Oiie afastou-se da cama, tomado pelo medo e pelo amor que sentia por Shevek, um sentimento sufocando o outro. Franziu o cenho e murmurou:
– Idiota obsceno. – Apagou a luz com um estalo e voltou ao outro cômodo. Pae estava em pé ao lado da escrivaninha, mexendo nos papéis de Shevek.
– Deixe isso – disse Oiie, e sua expressão de nojo se intensificava. – Vamos. São duas horas da manhã. Estou cansado.
– O que esse canalha tem feito, Demaere? Nada aqui ainda, absolutamente nada. Será que ele é uma completa fraude? Será que fomos enganados por um maldito camponês ingênuo de Utopia? Onde está a teoria dele? Onde está nossa nave espacial instantânea? Onde está nossa vantagem sobre os hainianos? Há nove, dez meses estamos alimentando o canalha, para nada! – No entanto, enfiou no bolso um dos papéis antes de acompanhar Oiie até a porta.
CONTINUA
Havia um muro. Não parecia importante. Era feito de pedra bruta e argamassa grosseira. Um adulto conseguia olhar por cima dele, e até uma criança conseguia subir nele. No ponto em que atravessava a estrada, em vez de ter um portão, ele degenerava em mera geometria, uma linha, uma ideia de limite. Mas a ideia era real. Era importante. Por sete gerações não houve nada mais importante no mundo do que aquele muro.
Como todos os muros, era ambíguo, com dois lados. O que ficava dentro ou fora do muro dependia do lado em que se estava.
Visto de um lado, o muro encerrava um campo árido de sessenta acres, chamado Porto de Anarres. No campo havia dois grandes guindastes, uma plataforma de lançamento, uma garagem de caminhões e um alojamento. O alojamento era sólido, encardido e lúgubre; não tinha nenhum jardim, nenhuma criança; era evidente que ninguém vivia ali, nem sequer devia passar muito tempo ali. Era, na verdade, uma quarentena. O muro não cercava apenas o campo de pouso, mas também as naves que desciam do espaço, e os homens que vinham nas naves, e os mundos de onde vinham, e o resto do universo. O muro cercava o universo, deixando Anarres de fora, livre.
Visto do outro lado, o muro encerrava Anarres: o planeta inteiro estava dentro do muro, um grande campo de prisioneiros, apartado de outros mundos e outros homens, em quarentena.
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Algumas pessoas vinham pela estrada em direção ao campo de pouso, outras paravam no ponto em que a estrada cruzava o muro.
As pessoas vinham com frequência da cidade vizinha de Abbenay, na esperança de ver uma espaçonave, ou simplesmente ver o muro. Afinal, era o único muro divisório do mundo. Em nenhum outro lugar podiam ver uma placa com os dizeres PASSAGEM PROIBIDA. Adolescentes, em particular, eram atraídos pelo muro. Talvez conseguissem observar uma equipe descarregando engradados de caminhões-lagarta nos depósitos. Talvez até houvesse um cargueiro na plataforma de lançamento. Os cargueiros desciam oito vezes por ano, sem aviso, exceto aos síndicos em serviço no porto. Assim, quando os espectadores tiveram a sorte de ver um, animaram-se, a princípio. Mas lá ficaram eles, parados, e lá ficou o cargueiro, parado, uma torre preta agachada em meio a uma confusão de guindastes móveis, do outro lado do campo. E então uma mulher saiu de um dos depósitos e disse:
– Estamos encerrando por hoje, irmãos.
Ela usava a braçadeira da Defesa, uma visão quase tão rara quanto a de uma espaçonave. Aquilo causou certa emoção. Mas, embora seu tom de voz fosse brando, foi categórico. Ela era a chefe da equipe e, se provocada, seria defendida pelos síndicos. De qualquer forma, não havia nada para se ver. Os alienígenas, os fora-do-mundo, ficaram escondidos na nave. Sem espetáculo.
Foi um espetáculo sem graça para a equipe de Defesa também. Às vezes a chefe desejava que alguém tentasse atravessar o muro, um tripulante alienígena pulando da nave, ou um garoto de Abbenay tentando uma entrada furtiva para ver o cargueiro mais de perto. Mas nunca aconteceu. Nada jamais aconteceu. Quando algo enfim aconteceu, ela não estava preparada.
O comandante do cargueiro Atento disse a ela:
– Aquela turba está atrás da minha nave?
A chefe olhou e viu que, de fato, havia uma verdadeira multidão em volta do portão, cem pessoas ou mais. Estavam por ali, paradas, do mesmo modo que as pessoas tinham ficado paradas nas estações, aguardando os trens de produtos agrícolas, durante a Fome. Aquilo assustou a chefe.
– Não. Eles, hã, protesto – ela disse, no iótico limitado e lento que sabia falar. – Protesto, hã, você sabe. Passageiro?
– Você quer dizer que eles estão atrás desse canalha que temos que levar? Eles vão tentar deter o homem ou a minha nave?
A palavra “canalha”, intraduzível no idioma da chefe, não significava nada para ela além de um termo estrangeiro, mas nunca gostou do som da palavra, nem do tom de voz do comandante, nem do comandante.
– Vocês conseguem se proteger sozinhos? – ela perguntou, lacônica.
– Claro que sim. É só você terminar de descarregar o resto da carga, rápido. E traga esse passageiro canalha a bordo. Não é uma turba de odos que vai causar problema para nós. – Ele bateu de leve na coisa que trazia no cinto, um objeto metálico parecido com um pênis deformado, e olhou com ar condescendente para a mulher desarmada.
Ela lançou para o objeto fálico, que sabia ser uma arma, um frio olhar.
– A nave estará carregada às 14h00 – ela disse. – Mantenha a tripulação de bordo segura. A decolagem será às 14h40. Se precisar de ajuda, deixe uma mensagem gravada no Controle Terrestre. – Ela saiu a passos largos antes de o comandante retrucar. A raiva deixou-a mais rígida com a equipe e com a multidão.
– Liberem a estrada aí! – ordenou. – Os caminhões vão passar, alguém pode se machucar. Afastem-se!
Os homens e as mulheres da multidão discutiram com ela e entre si. Continuaram a atravessar a estrada, e alguns entraram no muro. Mas deixaram o caminho mais ou menos livre. Se a chefe não tinha nenhuma experiência em controlar uma turba, eles não tinham nenhuma experiência em ser uma turba. Como membros de uma comunidade, não elementos de uma coletividade, não eram movidos pelo sentimento de massa; cada pessoa ali era regida por suas próprias emoções. E não esperavam que ordens fossem arbitrárias, então não tinham prática em desobedecê-las. A inexperiência deles salvou a vida do passageiro.
Alguns tinham vindo para matar o traidor. Outros tinham vindo impedir a sua partida, ou gritar-lhe insultos, ou apenas olhar para ele; e todos esses outros obstruíram a passagem abrupta dos assassinos. Nenhum deles portava armas de fogo, mas dois tinham facas. Para eles, ataque significava ataque físico; queriam pôr as próprias mãos no traidor. Esperavam que ele viesse protegido, num veículo. Enquanto tentavam revistar um caminhão de mercadorias e discutiam com o indignado motorista, o homem que todos queriam veio andando pela estrada, sozinho. Quando o reconheceram, ele já estava no meio do campo, seguido por cinco síndicos da Defesa. Os que desejavam matá-lo recorreram à perseguição, tarde demais, e começaram a atirar pedras, não tão tarde. Atingiram de raspão o ombro do passageiro no momento em que ele entrava na nave, mas uma pedra de dois quilos acertou a lateral da cabeça de um dos membros da Defesa, matando-o na hora.
As escotilhas da nave se fecharam. A equipe da Defesa retornou, carregando o colega morto; não fizeram nenhum esforço para deter os líderes da multidão que corriam em direção à nave, embora a chefe, lívida de assombro e fúria, os tenha mandado para o inferno quando eles passaram correndo, dando uma guinada para evitá-la. Quando chegaram à nave, a vanguarda da multidão espalhou-se, indecisa. O silêncio da nave, os movimentos bruscos dos enormes e esqueléticos guindastes, a estranha aparência queimada do solo, a ausência de qualquer coisa em escala humana deixaram-nos desorientados. Uma rajada de vapor, ou gás, ou algo conectado à nave assustou alguns deles; apreensivos, ergueram os olhos para os foguetes, grandes túneis pretos acima. Uma sirene soou em alarme do outro lado do campo. Uma a uma, as pessoas começaram a retornar ao portão. Ninguém as deteve. Em dez minutos o campo estava vazio, e a multidão, espalhada pela estrada que ia a Abbenay. No fim, parecia que nada havia acontecido.
Dentro da nave Atento, muita coisa acontecia. Como o Controle Terrestre havia antecipado o lançamento, toda a rotina teve de ser cumprida às pressas. O comandante ordenara que o passageiro fosse amarrado e trancado na sala de descanso da tripulação, junto com o médico, para que não atrapalhassem. Lá havia uma tela, e eles poderiam ver a decolagem, se quisessem.
O passageiro observava. Viu o campo, o muro em volta do campo e, do lado de fora do muro, as distantes encostas das Montanhas Ne Theras, salpicadas de arbustos de holum e espinhos-da-lua esparsos e prateados.
Tudo isso de repente deslizou na tela, turvando-a. O passageiro sentiu a cabeça pressionada contra o encosto almofadado. Era como uma consulta no dentista: a cabeça pressionada para trás, o maxilar aberto à força. Não conseguia respirar, sentiu náusea, sentiu o intestino solto de medo. Seu corpo inteiro gritava às poderosas forças que o dominaram: Agora não, ainda não, esperem!
Seus olhos o salvaram. O que insistiam em ver e relatar tirou-o do autismo de terror. Pois na tela agora havia uma estranha vista, uma grande e pálida planície rochosa. Era o deserto visto das montanhas acima do Vale Grande. Como ele voltara ao Vale Grande? Tentou se convencer de que estava numa aeronave. Não, numa espaçonave. A borda da planície cintilava como o brilho da luz na água, luz sobre um mar distante. Mas não havia água naqueles desertos. Então, o que ele estava vendo? A planície rochosa não era mais plana, mas convexa, como uma imensa tigela cheia de luz solar. Enquanto observava, maravilhado, ela ficou cada vez mais convexa, espalhando sua luz. De repente, foi atravessada por uma linha, abstrata, geométrica, o raio perfeito de um círculo. Além daquele arco, era a escuridão. Essa escuridão inverteu toda a imagem, tornando-a negativa. A parte real, rochosa da imagem não era mais côncava e cheia de luz, mas convexa, refletindo, rejeitando a luz. Não era uma planície ou uma tigela, mas uma esfera, uma bola de pedra branca caindo e sumindo na escuridão. Era o seu mundo.
– Não entendo – ele disse em voz alta.
Alguém respondeu. Por um instante, não conseguiu compreender que a pessoa em pé ao lado de sua cadeira estava falando com ele, pois não sabia mais o que era uma resposta. Só tinha certeza de uma única coisa: seu total isolamento. Lá embaixo, seu mundo desaparecera, e ele ficou sozinho.
Sempre temera que isso acontecesse, mais do que jamais temera a própria morte. Morrer é perder o eu e unir-se ao resto. Ele mantivera o eu, mas perdera o resto.
Finalmente, pôde olhar para o homem em pé ao seu lado. Era um estranho, claro. Dali em diante, haveria apenas estranhos. O estranho falava uma língua estrangeira, o iótico. As palavras faziam sentido. Todas as coisas pequenas faziam sentido; só que a coisa toda, não. O homem dizia algo sobre as amarras que o seguravam à cadeira. Desajeitado, tentou apalpá-las. A cadeira inclinou-se para trás e ele, com vertigem e sem equilíbrio, quase caiu. O homem não parava de perguntar se alguém estava ferido. Do que estava falando?
– Tem certeza de que ele não está ferido?
Em iótico, a forma educada de se dirigir diretamente a alguém era na terceira pessoa. O homem queria dizer ele, ele mesmo, não outra pessoa. Não sabia por que deveria estar ferido; o homem não parava de dizer algo sobre pedras sendo atiradas. Mas a pedra nunca irá atingi-lo, pensou. Olhou de novo para a tela, procurando a pedra, a pedra branca caindo na escuridão, mas a tela estava vazia.
– Estou bem – disse por fim, ao acaso.
Isso não apaziguou o homem.
– Por favor, venha comigo. Sou médico.
– Estou bem.
– Por favor, venha comigo, dr. Shevek!
– O senhor é doutor – disse Shevek, após uma pausa. – Eu não. Eu me chamo Shevek.
O médico, um homem baixo, calvo, de pele clara, fez uma careta impaciente.
– O senhor deveria estar em sua cabine... perigo de infecção... não era para o senhor ter contato com ninguém além de mim. Passei por duas semanas de desinfecção para nada. Maldito seja esse comandante! Por favor, venha comigo, senhor. Vão me responsabilizar...
Shevek percebeu que o homenzinho estava perturbado. Não sentiu nenhuma compunção, nenhuma empatia; mas até mesmo na situação em que se encontrava, de absoluta solidão, uma lei se mantinha, a única lei que jamais reconhecera.
– Tudo bem – ele disse, e levantou-se.
Ainda se sentia zonzo, e o ombro direito lhe doía. Sabia que a nave devia estar se movendo, mas não havia sensação de movimento; havia apenas silêncio, um terrível e completo silêncio lá fora, além daquelas paredes. O médico o conduziu por silenciosos corredores metálicos até uma sala.
Era uma sala muito pequena, com paredes vazias e emendadas. Isso desagradou Shevek, por lembrá-lo de um lugar que queria esquecer. Parou à porta. Mas o médico insistiu e implorou, e ele entrou.
Sentou-se numa cama semelhante a uma prateleira, ainda se sentindo tonto e letárgico, e, incurioso, observou o médico. Sentiu que deveria estar curioso, pois aquele homem era o primeiro urrasti que ele já tinha visto. Mas estava cansado demais. Poderia ter deitado e dormido ali mesmo, na hora.
Passara a noite anterior acordado, concluindo suas anotações. Três dias antes, despedira-se de Takver e das crianças, que foram para Paz-e-Fartura, e desde então estivera ocupado, correndo para a torre de rádio para trocar as últimas mensagens com as pessoas de Urras, discutindo planos e possibilidades com Bedap e os outros. Em todos aqueles dias corridos desde que Takver partira, sentira que não estava fazendo todas aquelas coisas, mas as coisas estavam fazendo por ele. Estivera nas mãos de outrem. Sua vontade própria não atuara. Não houvera necessidade de atuar. Foi sua própria vontade que dera início àquilo tudo, que criara aquele momento e aquelas paredes à sua volta agora. Há quanto tempo? Anos. Cinco anos atrás, no silêncio da noite, nas Montanhas de Chakar, quando dissera a Takver: “Vou a Abbenay derrubar muros”. Antes disso, até; muito antes, na Poeira, nos anos de fome e desespero, quando prometera a si mesmo só agir de acordo com seu próprio livre-arbítrio. E seguir essa promessa o trouxera até ali: até aquele momento sem tempo, aquele lugar sem chão, aquela saleta, aquela prisão.
O médico examinara seu ombro ferido (o ferimento surpreendeu Shevek; estivera tenso e apressado demais para perceber o que estava ocorrendo no campo de pouso e não sentiu a pedrada). Agora o doutor se voltava para ele segurando uma seringa.
– Não quero isso – disse Shevek. Falava num iótico lento e, como percebeu pelas conversas no rádio, mal pronunciado, mas a gramática era correta o suficiente; tinha mais dificuldade em entender do que em falar.
– Isto é vacina contra sarampo – disse o médico, com surdez profissional.
– Não – disse Shevek.
O médico conteve-se por um instante e perguntou:
– O senhor sabe o que é sarampo?
– Não.
– Uma doença. Contagiosa. Quase sempre grave em adultos. Vocês não têm essa doença em Anarres; medidas profiláticas a evitaram quando colonizaram o planeta. Mas ela é comum em Urras. Poderia matá-lo. Assim como uma dezena de outras infecções virais comuns. O senhor não tem resistência. O senhor é destro?
Shevek fez um sinal negativo com a cabeça, automaticamente. Com a destreza de um prestidigitador, o médico enfiou a agulha em seu braço direito. Shevek submeteu-se a esta e a outras injeções em silêncio. Não tinha direito a suspeitas ou protestos. Entregara-se àquelas pessoas; abdicara de seu direito nato à decisão. Esse direito desaparecera, junto com seu mundo, o mundo da Promessa, a pedra árida.
O médico falou de novo, mas ele não escutou.
Por horas ou dias, existiu num vácuo estéril e triste, num vazio sem passado nem futuro. As paredes à sua volta o oprimiam. Além das paredes, era o silêncio. Seus braços e suas nádegas doíam por causa das injeções; teve uma febre que não o levou ao completo delírio, mas o deixou num limbo entre a consciência e a inconsciência, uma terra de ninguém. O tempo não passava. Não havia tempo: apenas ele. Ele era o rio, a flecha, a pedra. Mas ele não se mexia. A pedra lançada pairava no meio do caminho. Não havia dia nem noite. Às vezes o médico apagava ou acendia a luz. Havia um relógio na parede, ao lado da cama; o ponteiro passava de um a outro dos vinte números do mostrador, sem significado.
Despertou após um longo e profundo sono e, como estava de frente para o relógio, estudou-o, sonolento. O ponteiro apontava para um pouco depois do número quinze, o que, se o mostrador fosse lido a partir da meia-noite como no relógio de vinte e quatro horas anarresti, devia significar que estavam no meio da tarde. Mas como poderiam estar no meio da tarde no espaço entre dois planetas? Bem, a nave deveria ter seu próprio horário, afinal de contas. Equacionar tudo isso o deixou imensamente animado. Sentou-se e não sentiu vertigem. Levantou-se da cama e testou seu equilíbrio: satisfatório, embora sentisse que o contato da sola dos pés com o chão não fosse muito firme. O campo gravitacional da nave devia ser bem fraco. Não gostou muito da sensação; precisava de firmeza, de solidez, de fatos concretos. Em busca dessas coisas, iniciou uma minuciosa investigação da saleta.
As paredes vazias eram cheias de surpresas, prontas a se revelarem após um breve toque no painel: lavatório, vaso sanitário, espelho, mesa, cadeira, armário, prateleiras. Conectados ao lavatório, havia vários dispositivos elétricos de um mistério total, e a válvula hidráulica não interrompia o fluxo quando se soltava a torneira, mas continuava a jorrar água até ser fechada – um sinal, pensou Shevek, de grande fé na natureza humana ou de grande quantidade de água quente. Acreditando na segunda hipótese, lavou-se todo e, não encontrando uma toalha, secou-se com um dos misteriosos dispositivos, de onde saía um agradável jato de ar quente que lhe fazia cócegas. Como não encontrou suas próprias roupas, tornou a vestir as que estava usando quando acordou: calças largas amarradas por um cordão e uma túnica sem forma, ambas amarelas com pontinhos azuis. Olhou-se no espelho. Achou o resultado desastroso. Era assim que se vestiam em Urras? Procurou em vão por um pente, contentou-se em fazer uma trança, prendendo os cabelos para trás, e, arrumado assim, decidiu sair do quarto.
Não conseguiu. A porta estava trancada.
A incredulidade inicial de Shevek tornou-se raiva, um tipo de raiva, um desejo cego de violência que ele jamais sentira antes na vida. Forçou a maçaneta imóvel, empurrou o metal liso da porta, depois se virou e golpeou o botão de chamada, que o médico lhe orientara a usar, se necessário. Nada aconteceu. Havia vários outros botõezinhos numerados de cores diferentes no painel de intercomunicação; bateu com a mão em todos eles. O alto-falante da parede começou a balbuciar:
– Quem diabos... sim, indo imediatamente... claro... de vinte e dois...
Shevek abafou a voz de todos eles: – Abram a porta!
A porta abriu deslizando, e o médico olhou para dentro. Ao ver seu rosto calvo, ansioso e amarelado, a ira de Shevek acalmou-se e retirou-se para uma escuridão interior.
– A porta estava trancada – disse.
– Desculpe, dr. Shevek... precaução... contágio... manter os outros do lado de fora...
– Trancar para fora, trancar para dentro, é a mesma ação – disse Shevek, encarando o médico com um olhar leve e distante.
– Segurança...
– Segurança? Precisam me manter numa caixa?
– Sala de descanso dos oficiais – o médico apressou-se em propor, para apaziguá-lo. – O senhor está com fome? Talvez queira se vestir antes de irmos para lá.
Shevek olhou para a roupa do doutor: calças azuis justas, enfiadas em botas que pareciam tão finas e macias quanto o próprio tecido; uma túnica roxa aberta na frente e fechada embaixo com alamares prateados; e, sob a túnica, mostrando apenas o colarinho e os punhos, uma camisa de malha de um branco ofuscante.
– Não estou vestido? – Shevek enfim perguntou.
– Ah, pode ir de pijama, é claro. Não há formalidades num cargueiro!
– Pijama?
– É o que o senhor está usando. Roupa de dormir.
– Roupa usada para dormir?
– Sim.
Shevek piscou. Não fez nenhum comentário. Perguntou:
– Onde está a roupa que eu estava usando?
– Sua roupa? Mandei lavar... esterilizar. Espero que o senhor não se importe... – Examinou um painel na parede que Shevek não havia descoberto e trouxe um pacote embrulhado em papel verde-claro. Desembrulhou o terno velho de Shevek, que parecia muito limpo e um tanto menor, amassou o papel verde, ativou outro painel, jogou o papel no cesto que se abriu e sorriu vacilante.
– Pronto, dr. Shevek.
– O que acontece com o papel?
– O papel?
– O papel verde.
– Ah, coloquei no lixo.
– Lixo?
– Descarte. Vai ser queimado.
– Vocês queimam papel?
– Talvez seja apenas jogado lá fora no espaço, não sei. Não sou médico espacial, dr. Shevek. Concederam-me a honra de atender o senhor pela minha experiência com visitantes de outros mundos, os embaixadores de Terran e de Hain. Conduzo os procedimentos de descontaminação e adaptação de todos os alienígenas que chegam a A-Io. Não que o senhor seja um alienígena no mesmo sentido, é claro. – Olhou timidamente para Shevek, que não conseguia acompanhar tudo o que ele dizia, mas podia discernir a natureza ansiosa, modesta e bem-intencionada de suas palavras.
– Não – assegurou-lhe Shevek –, talvez tenhamos a mesma avó, duzentos anos atrás, em Urras. – Estava pondo sua roupa velha e, enquanto vestia a camisa pela cabeça, viu o médico jogar a “roupa de dormir” amarela e azul no cesto de “lixo”. Shevek fez uma pausa, com o colarinho ainda sobre o nariz. Sua cabeça saiu por inteiro da camisa, ele ajoelhou-se e abriu o cesto. Estava vazio.
– As roupas são queimadas?
– Ah, esse pijama é barato, é de serviço... para usar e jogar fora. Custa menos do que mandar lavar.
– Custa menos – Shevek repetiu pensativo. Disse as palavras do mesmo modo que um paleontólogo examina um fóssil, o fóssil que determina a data de um estrato inteiro.
– Receio que sua bagagem tenha se perdido naquela correria do embarque. Espero que não contenha nada de importante.
– Eu não trouxe nada – disse Shevek. Embora seu terno tivesse sido alvejado até ficar quase branco e tivesse encolhido um pouco, ainda lhe servia, e o toque áspero e familiar do tecido de fibra de holum era agradável. Sentiu-se ele mesmo de novo. Sentou-se na cama de frente para o médico e disse:
– Veja bem, eu sei que vocês não encaram as coisas como nós. No seu mundo, em Urras, deve-se comprar coisas. Eu venho ao seu mundo sem dinheiro, não posso comprar, portanto devo trazer. Mas quanto posso trazer? Roupa, sim, talvez dois ternos. Mas comida? Como posso trazer comida suficiente? Não posso trazer, não posso comprar. Se for para me manterem vivo, vocês vão ter de me dar comida. Sou anarresti, farei os urrastis se comportarem como anarrestis: dar, não vender. Se quiserem. É claro que não é necessário me manterem vivo! Sou o Mendigo, veja bem.
– Oh, não, em absoluto, senhor, não, não. O senhor é um convidado de honra. Por favor, não nos julgue pela tripulação desta nave, eles são homens muito ignorantes e limitados... o senhor não faz ideia de como será bem-vindo em Urras. Afinal, o senhor é um cientista mundialmente famoso... galacticamente famoso! E nosso primeiro visitante de Anarres! Eu lhe asseguro que as coisas serão muito diferentes quando chegarmos ao Campo Peier.
– Não duvido que serão diferentes – disse Shevek.
Cada trecho da viagem à lua em geral levava quatro dias e meio, mas desta vez foram acrescentados cinco dias de adaptação para o passageiro, na viagem de volta. Shevek e o dr. Kimoe passaram esses dias em vacinações e conversas. O comandante da Atento passou-os mantendo a órbita em torno de Urras e praguejando. Quando tinha de falar com Shevek, fazia-o com desrespeito perturbador. O médico, disposto a explicar tudo, tinha sua justificativa pronta:
– Ele está acostumado a encarar todos os estrangeiros como inferiores, não como seres totalmente humanos.
– A criação de pseudoespécies, como dizia Odo. Sim. Achei que talvez em Urras as pessoas não pensassem mais assim, já que lá vocês têm tantas línguas e nações, e até visitantes de outros sistemas solares.
– Muito poucos, pois as viagens interestelares são muito caras e lentas. Talvez não vá ser sempre assim – acrescentou o dr. Kimoe, com evidente intenção de lisonjear Shevek ou estender o assunto, o que Shevek ignorou.
– O Segundo Oficial – disse – parece ter medo de mim.
– Ah, o problema dele é fanatismo religioso. Ele é Epifanista ortodoxo. Recita as Primas todas as noites. Tem uma mente muito rígida.
– Então... Como ele me vê?
– Como um ateu perigoso.
– Ateu! Por quê?
– Ora, porque o senhor é um odoniano de Anarres... Não existe religião em Anarres.
– Não existe religião? Nós somos feitos de pedra em Anarres?
– Eu quero dizer religião estabelecida... igrejas, credos... – Kimoe alterava-se com facilidade. Sua autoconfiança enérgica, própria dos médicos, era continuamente abalada por Shevek. Todas as suas explicações acabavam em embaraços, após duas ou três perguntas de Shevek. Cada um deles considerava como naturais certas relações que o outro sequer conseguia compreender. Por exemplo, essa curiosa questão de superioridade, de altura relativa, era importante aos urrastis; muitas vezes usavam a expressão “mais alto” como sinônimo de “melhor” em seus escritos, onde um anarresti usaria “mais central”. Mas o que ser mais alto tinha a ver com ser estrangeiro? Era apenas um dentre centenas de enigmas.
– Entendo – ele disse, agora que mais um enigma se elucidava. – Vocês não admitem nenhuma religião fora das igrejas, assim como não admitem nenhuma moralidade fora das leis. Sabe, eu nunca tinha entendido isso, em todas as minhas leituras dos livros urrastis.
– Bem, hoje em dia qualquer pessoa esclarecida admitiria...
– O vocabulário dificulta – disse Shevek, elaborando sua descoberta. – Em právico, a palavra religião é infrequente. Não, como vocês dizem... é rara. Não muito usada. Claro, é uma das Categorias: o Quarto Modo. Poucas pessoas aprendem a praticar todos os Modos. Mas os Modos são construídos a partir das capacidades naturais da mente. Não é possível que vocês acreditem que não temos capacidade religiosa. Que podemos estudar Física estando excluídos da relação mais profunda que o homem possui com o cosmos.
– Oh, não, em absoluto...
– Isso seria nos considerar, de fato, uma pseudoespécie!
– Homens instruídos com certeza entenderiam isso, mas esses oficiais são ignorantes.
– Mas então vocês só permitem que os fanáticos saiam em viagens pelo cosmos?
Todas as conversas entre eles eram assim: exaustivas para o médico e insatisfatórias para Shevek, embora muito interessantes para ambos. Eram o único meio de Shevek explorar o novo mundo que o aguardava. A nave em si e a mente de Kimoe eram seu microcosmo. Não havia livros a bordo da Atento, os oficiais evitavam Shevek, e os tripulantes eram mantidos rigorosamente a distância. Quanto à mente do doutor, embora inteligente e com certeza bem-intencionada, era uma mixórdia de artefatos intelectuais ainda mais confusos que todos os dispositivos, aparelhos e comodidades espalhados pela nave. Estas últimas Shevek achava divertidas; era tudo tão cheio de luxo, estilo e inventividade; mas não achava a mobília do intelecto de Kimoe tão confortável. As ideias de Kimoe pareciam nunca ser capazes de seguir uma linha reta; tinham de contornar isso e evitar aquilo, e então acabavam batendo contra um muro. Havia muros cercando todos os seus pensamentos, e ele parecia totalmente inconsciente disso, embora sempre se escondesse atrás deles. Somente uma vez Shevek viu uma brecha, em todos os dias de conversa entre os mundos.
Ele perguntara por que não havia mulheres na nave, e Kimoe respondera que operar um cargueiro espacial não era trabalho para mulheres. Cursos de história e o conhecimento dos escritos de Odo deram a Shevek um contexto para compreender essa resposta tautológica, e ele não disse mais nada. Mas o médico devolveu uma pergunta, uma pergunta sobre Anarres:
– É verdade, dr. Shevek, que as mulheres em sua sociedade são tratadas exatamente como homens?
– Isso seria desperdício de um bom material – disse Shevek, com uma risada, e depois uma segunda risada, à medida que se dava conta do ridículo da ideia.
O médico hesitou, contornando um dos obstáculos de sua mente, pareceu aturdido e disse:
– Ah, não, não estava falando de sexo... é óbvio que vocês... elas... Eu me referia à questão do status social das mulheres.
– Status é o mesmo que classe?
Kimoe tentou explicar o significado de status, fracassou e voltou ao primeiro tópico.
– Não há mesmo nenhuma distinção entre o trabalho do homem e o trabalho da mulher?
– Bem, não, isso parece uma base muito mecânica para a divisão do trabalho, não é? Uma pessoa escolhe o trabalho de acordo com seu interesse, seu talento, sua força... O que o sexo tem a ver com isso?
– Os homens são fisicamente mais fortes – afirmou o médico, com determinação profissional.
– Sim, com frequência, e maiores, mas o que isso importa, quando temos máquinas? E, mesmo quando não temos máquinas, quando temos de cavar com a pá, ou carregar peso nas costas, os homens podem trabalhar mais rápido... os que são grandes... mas as mulheres aguentam trabalhar mais tempo... Muitas vezes eu gostaria de ser tão resistente quanto uma mulher.
Kimoe o fitou chocado, a ponto de perder a polidez.
– Mas a perda de... de toda a feminilidade... da delicadeza... e a perda da dignidade masculina... Certamente o senhor não pode fingir, no seu trabalho, que as mulheres sejam iguais ao senhor? Em física, matemática, no intelecto? O senhor não pode fingir estar sempre se rebaixando ao nível delas!
Shevek sentou-se na confortável cadeira estofada e olhou em volta da sala de descanso dos oficiais. Na tela, a curva brilhante de Urras pairava imóvel contra a escuridão do espaço, como uma opala azul-esverdeada. Aquela visão adorável e a sala haviam se tornado familiares a Shevek nos últimos dias, mas agora as cores vivas, as cadeiras curvilíneas, a iluminação indireta, as mesas de jogos, tudo pareceu tão alienígena como da primeira vez que ele tinha visto.
– Acho que não sou de fingir muito, Kimoe – disse.
– É claro que conheci mulheres muito inteligentes, mulheres que pensavam como homens – o médico se apressou a dizer, ciente de que estivera quase gritando, de que, pensou Shevek, estivera esmurrando a porta trancada, gritando...
Shevek mudou de assunto, mas continuou a pensar a respeito. Aquela questão de inferioridade e superioridade devia ser fundamental da vida social urrasti. Se para sentir-se digno Kimoe precisava considerar metade da raça humana inferior a ele, como as mulheres faziam para se sentir dignas? Será que consideravam os homens inferiores? E como tudo isso afetava a vida sexual deles? Sabia, pelos escritos de Odo, que duzentos anos antes as principais instituições sexuais eram o “casamento”, uma parceria autorizada e imposta por meio de sanções legais e econômicas, e a “prostituição”, que parecia apenas ser um termo mais amplo, cópula em modo econômico. Odo condenava ambas, embora tivesse sido “casada”. De todo modo, as instituições talvez tivessem mudado bastante em duzentos anos. Já que ele iria viver em Urras com os urrastis, seria melhor descobrir.
Era estranho que até mesmo o sexo, fonte de tanta paz, deleite e alegria por anos a fio pudesse, da noite para o dia, tornar-se um território desconhecido, onde ele deveria pisar com cuidado, consciente de sua própria ignorância. No entanto, era assim. Ele foi alertado não só pelo estranho acesso de raiva e desprezo de Kimoe, mas por uma vaga impressão anterior que esse episódio pôs em foco. Nos primeiros dias a bordo da nave, naquelas longas horas de febre e desespero, distraíra-se, às vezes satisfeito e às vezes irritado, com uma sensação inteiramente simples: a maciez da cama. Embora fosse apenas um beliche, o colchão cedia sob seu peso, maleável como uma carícia. O colchão entregava-se a ele, entregava-se com tanta insistência que ele sempre sentia, e ainda sente, sua presença ao adormecer. Tanto o prazer quanto a irritação eram decididamente de natureza erótica. Havia também o aparelho-toalha-bocal-de-ar-quente: o mesmo tipo de efeito. Cócegas agradáveis. E o desenho dos móveis dispostos na sala, as suaves curvas de plástico onde a dureza da madeira e aço foi introduzida à força, a suavidade e a delicadeza das superfícies e texturas: não seria isso também um indicativo de um erotismo vago e difuso? Ele se conhecia o suficiente para ter certeza de que estar alguns dias sem Takver, mesmo sob forte pressão, não o deixaria tão excitado a ponto de sentir uma mulher em qualquer tampo de mesa. A menos que a mulher realmente estivesse ali.
Seriam os marceneiros urrastis todos castos?
Desistiu da resposta; em breve descobriria, em Urras.
Pouco antes de se atarem para a descida, o médico veio até a sua cabine para verificar o progresso das várias imunizações, a última das quais, uma inoculação contra a peste, deixara Shevek enjoado e grogue. Kimoe deu-lhe mais um comprimido.
– Isso vai animá-lo para a aterrissagem – ele disse.
Estoicamente, Shevek engoliu a coisa. Agitado, o médico mexeu em seu estojo e, de repente, começou a falar rápido:
– Dr. Shevek, não espero ter permissão de atendê-lo de novo, embora seja possível, mas, se não, queria lhe dizer que foi, que eu, que foi um grande privilégio para mim. Não porque... mas porque passei a respeitar... a apreciar... simplesmente como ser humano, sua bondade, sua verdadeira bondade...
Não lhe ocorrendo resposta melhor, por conta de sua dor de cabeça, Shevek estendeu a mão e apertou a de Kimoe, dizendo:
– Então vamos nos encontrar de novo, irmão! – Kimoe apertou-lhe a mão, nervoso, no estilo urrasti, e saiu às pressas. Após sua saída, Shevek percebeu que lhe falara em právico, chamando-o de ammar, irmão, numa língua que Kimoe não compreendia.
O alto-falante da parede balia ordens. Atado ao beliche, Shevek escutava, sentindo-se confuso e alheio. As sensações da entrada na atmosfera intensificaram a confusão; não tinha consciência de quase nada, exceto uma profunda esperança de não precisar vomitar. Só soube que tinham aterrissado quando Kimoe voltou correndo e o conduziu às pressas até a sala dos oficiais. A tela onde Urras pairara por tanto tempo, luminoso e envolto em nuvens espiraladas, estava em branco. A sala estava cheia de gente. De onde tinham vindo? Ficou surpreso e satisfeito com sua capacidade de ficar de pé, andar e cumprimentar com apertos de mão. Concentrou-se apenas nisso e deixou escapar o sentido daquilo tudo. Vozes, sorrisos, mãos, palavras, nomes. Seu nome o tempo todo: dr. Shevek, dr. Shevek... Agora ele e todos os estranhos à sua volta desciam uma rampa coberta, todas as vozes muito altas, palavras ecoando além das paredes. O alarido das vozes diminuiu. Um ar estranho tocou seu rosto.
Olhava para cima e, ao sair da rampa em direção ao nível do solo, tropeçou e quase caiu. Pensou em morte, naquele hiato entre o início e a conclusão de um passo e, ao final do passo, pisou num novo mundo.
Uma noite clara e cinzenta o rodeava. Luzes azuis, embaçadas pela neblina, ardiam do outro lado de um campo enevoado. O ar em seu rosto e suas mãos, nas narinas, garganta e pulmões era frio, úmido, perfumado, suave. Não era estranho. Era o ar de um planeta de onde sua raça viera. Era o ar de casa.
Alguém pegara em seu braço quando tropeçou. Refletores e flashes o iluminaram. Fotógrafos filmavam a cena para o noticiário. O Primeiro Homem Vindo da Lua: uma figura alta e frágil na multidão de dignitários, professores e agentes de segurança, os belos cabelos revoltos numa cabeça muito ereta (para que os fotógrafos pudessem capturar cada detalhe), como se ele tentasse olhar acima dos refletores, para o céu, o céu claro e nevoento que escondia as estrelas, a Lua e todos os outros mundos. Jornalistas tentavam atravessar os cordões de policiais.
– Poderia nos dar uma declaração, dr. Shevek, neste momento histórico?
Foram forçados a recuar no mesmo instante. Os homens à volta de Shevek o impeliam para a frente. Foi levado à limusine que o aguardava, fotografado até o último minuto, por conta de sua altura, seu cabelo longo e o estranho olhar de aflição e reconhecimento em seu rosto.
As torres da cidade elevavam-se em meio à névoa, grandes escadas de luz embaçada. Trens passavam no alto, riscos brilhantes guinchando. Imponentes paredes de pedra e vidro faceavam as ruas, acima da correria de carros e ônibus elétricos. Pedra, aço, vidro, luz elétrica. Nenhum rosto.
– Esta é Nio Esseia, dr. Shevek. Mas foi decidido que seria melhor mantê-lo afastado das multidões da cidade, por enquanto. Vamos direto para a universidade.
Havia cinco homens com ele no interior escuro e suavemente estofado do carro. Eles apontavam marcos, mas na névoa ele não sabia dizer qual prédio grande, vago e fugaz era a Alta Corte e qual era o Museu Nacional, qual o Diretório e qual o Senado. Cruzaram um rio ou estuário; os milhões de luzes de Nio Esseia, difusas pela névoa, tremeluziram na água escura atrás deles. A rodovia escureceu, a neblina adensou, o motorista diminuiu a velocidade do veículo. Os faróis iluminavam a bruma como se ela fosse um muro que não parava de recuar diante deles. Shevek inclinou-se um pouco para a frente, contemplando o lado de fora. Seus olhos não se fixavam em nada, nem sua mente, mas ele parecia reservado e circunspecto, e os outros homens falavam baixinho, em respeito ao seu silêncio.
O que seria a escuridão mais densa que fluía interminavelmente ao longo da estrada? Árvores? Poderia o carro estar passando por entre árvores desde que saíram da cidade? A palavra iótica lhe veio à lembrança: “floresta”. Eles não chegariam de repente ao deserto. As árvores prosseguiam sem parar, na colina seguinte, e na seguinte, e na seguinte, eretas no frio perfumado da névoa, intermináveis, uma floresta pelo mundo inteiro, uma esforçada e imóvel interação de vidas, um movimento escuro de folhas na noite. Então, enquanto Shevek se maravilhava, enquanto o carro saía da névoa do vale do rio e entrava no ar claro, lá estava, olhando para ele, sob a folhagem que margeava a estrada, por um instante, um rosto.
Não era um rosto humano. Era comprido como um braço e de uma palidez assustadora. A respiração esguichava vapor do que deviam ser narinas, e havia um olho, terrível, inconfundível. Um olho grande e escuro, fúnebre – talvez cínico? –, que sumiu na luz dos faróis.
– O que era aquilo?
– Um jumento, não?
– Um animal?
– Sim, um animal. Meu Deus, é mesmo! Vocês não têm animais de grande porte em Anarres, têm?
– Um jumento é uma espécie de cavalo – disse um dos outros homens; e outro, com voz firme e experiente:
– Aquilo era um cavalo. Jumentos não ficam daquele tamanho.
Queriam conversar com Shevek, mas ele não ouvia, de novo. Pensava em Takver. Imaginou o que aquele olhar profundo, seco e sombrio na escuridão teria significado para Takver. Ela sempre soubera que todas as vidas têm algo em comum, alegrando-se em reconhecer seu parentesco com os peixes nos tanques de seus laboratórios, buscando a experiência de existências fora dos limites humanos. Takver saberia corresponder àquele olhar na escuridão, sob as árvores.
– Lá adiante é Ieu Eun. Há uma multidão aguardando o senhor, dr. Shevek; o presidente e vários diretores, e o reitor, naturalmente. Todo tipo de figurão. Mas, se estiver cansado, acabamos com as amenidades o mais rápido possível.
As amenidades duraram várias horas. Nunca mais conseguiu se lembrar delas com clareza. Foi impelido para fora da pequena e escura caixa do carro em direção a uma imensa caixa brilhante cheia de gente – centenas de pessoas, sob um teto dourado de onde pendiam lustres de cristal. Foi apresentado a todas elas. Eram todas mais baixas que ele, e sem pelos. As poucas mulheres ali eram calvas; percebeu que elas deviam depilar todos os pelos, até o pelo corporal mais fino, macio e curto de sua raça, e o cabelo também. Mas isso era compensado pelas roupas maravilhosas, deslumbrantes no corte e nas cores, as mulheres em vestidos longos que se arrastavam no chão, os seios desnudos, cinturas, pescoços e cabeças enfeitados com joias, rendas e tules; os homens em calças e paletós ou túnicas em vermelho, azul, roxo, dourado, verde, com mangas bufantes e cascatas de rendas, ou longas becas em carmim, verde-escuro ou preto, que se abriam na altura dos joelhos, revelando as meias brancas com jarreteiras prateadas. Mais uma palavra iótica flutuou na cabeça de Shevek, para a qual jamais tivera uma referência, embora gostasse do som: “esplendor”. Aquelas pessoas tinham esplendor. Proferiram discursos. O presidente do Senado da Nação de A-Io, um homem de olhos estranhos e frios, propôs um brinde:
– À nova era de fraternidade entre os Planetas Gêmeos e ao arauto dessa nova era, nosso ilustre e muito bem-vindo convidado, dr. Shevek de Anarres!
O reitor da universidade conversou com ele encantado, o primeiro diretor conversou com ele sério, foi apresentado a embaixadores, astronautas, físicos, políticos, dezenas de pessoas, todas com longos títulos honoríficos antes e depois dos nomes, e conversaram com ele, e ele lhes respondeu, mas depois não se lembrou de nada do que disseram, e muito menos do que ele próprio dissera. Muito tarde da noite, viu-se com um pequeno grupo de homens caminhando na chuva morna por um grande parque ou uma praça. Havia uma sensação flexível de grama viva sob os pés; reconheceu-a por já ter caminhado no Parque Triângulo, em Abbenay. Aquela lembrança vívida e o toque vasto e frio do vento noturno o despertaram. Sua alma saiu do esconderijo.
Seus acompanhantes levaram-no a um prédio, e a um quarto, que, explicaram, era “dele”.
Era amplo, com cerca de dez metros de comprimento e, evidentemente, um quarto comunitário, pois não havia divisões nem estrados de dormir; os três homens que ainda o acompanhavam talvez fossem dividir o cômodo com ele. Era um quarto comunitário muito bonito, com uma parede inteira de janelas, cada uma delas separada por uma coluna delgada que subia como uma árvore, formando um arco duplo no topo. O chão era atapetado em carmim, e no outro extremo do cômodo ardia uma lareira aberta. Shevek atravessou o quarto e postou-se em frente ao fogo. Nunca tinha visto madeira queimada como aquecimento, mas ficou maravilhado. Estendeu as mãos para o calor agradável e sentou-se num banco de mármore polido ao lado da lareira.
O mais jovem dos homens que tinham vindo com ele sentou-se do outro lado da lareira. Os outros dois ainda conversavam. Conversavam sobre física, mas Shevek não tentou acompanhar o que diziam. O jovem falou calmamente:
– Imagino como deve estar se sentindo, dr. Shevek.
Shevek esticou as pernas e inclinou-se para a frente, a fim de sentir o calor do fogo em seu rosto.
– Sinto-me pesado.
– Pesado?
– Talvez a gravidade. Ou estou cansado.
Olhou para o outro homem, mas através da incandescência da lareira o rosto não era nítido, apenas a cintilação de uma corrente dourada e o vermelho-rubi do manto.
– Não sei o seu nome.
– Saio Pae.
– Ah, Pae, sim, conheço seus artigos sobre Paradoxo. – Ele falava de modo arrastado, sonhador.
– Deve haver um bar por aqui. Os dormitórios dos veteranos da faculdade sempre têm um armário de bebidas. Gostaria de beber alguma coisa?
– Sim, água.
O jovem reapareceu com um copo d’água, enquanto os outros dois uniam-se a eles perto da lareira. Shevek bebeu toda a água, sedento, e ficou sentado, admirando o copo em sua mão, uma peça frágil, finamente desenhada, refletindo o brilho do fogo em sua borda dourada. Estava atento aos três homens, às suas atitudes, enquanto sentavam ou se punham de pé ao seu lado, protetores, respeitosos, proprietários.
Ergueu os olhos para eles, rosto por rosto. Todos o olharam, em expectativa.
– Bem, aqui estou – ele disse. Sorriu. – Aqui está o seu anarquista. O que farão com ele?
2
°°°°°
Numa janela quadrada numa parede branca está o céu claro, sem nuvens. No centro do céu, o sol.
Há onze bebês na sala, a maioria confinada em berços almofadados, em pares ou trios, preparando-se, com agitação e burburinho, para a soneca.
Os dois mais velhos ainda estão à solta, um deles gorducho e ativo, tirando os pinos de uma placa perfurada, o outro magrinho, sentado no quadrado de luz solar amarela vinda da janela, olhando para os raios solares com uma expressão abobalhada e ingênua.
Na antessala, a supervisora, uma mulher caolha e de cabelo grisalho, conversa com um homem de 30 anos, alto, com ar triste.
– A mãe dele foi transferida para Abbenay – diz o homem. – Ela quer que ele fique aqui.
– Então devemos levá-lo à creche de período integral, Palat?
– Sim, vou voltar para um dormitório.
– Não se preocupe, ele conhece todo mundo aqui! Mas é claro que em breve a Divlab vai mandar você para junto da Rulag, não? Já que vocês dois são parceiros e engenheiros.
– Sim, mas ela... Foi o Instituto Central de Engenharia que a requisitou, entende? Eu não sou tão bom assim. Rulag tem um ótimo trabalho a fazer.
A supervisora assentiu com a cabeça e suspirou. – Mesmo assim...! – Ela disse, com energia, e não falou mais nada.
O olhar do pai dirigia-se ao bebê magrinho, que não notara a sua presença na antessala, por estar ocupado com a luz. O bebê gorducho, naquele instante, dirigia-se rápido para o magrinho, mas com um esquisito movimento de cócoras, devido à fralda molhada e caída. Aproximou-se dele por tédio ou sociabilidade, mas, ao chegar ao quadrado de luz, descobriu que ali estava quente. Sentou-se pesadamente ao lado do magrinho, empurrando-o para a sombra.
O semblante vago e embevecido do magrinho na mesma hora transformou-se em carranca de raiva. Empurrou o gordinho, gritando: – Vai ‘bora!
A supervisora foi até lá na hora. – Shev, não é para empurrar as pessoas.
O bebê magrinho levantou-se. Seu rosto brilhava de luz solar e raiva. Sua fralda estava prestes a cair. – Meu! – ele disse, numa voz alta e retumbante. – Meu sol!
– Não é seu – disse a mulher caolha, com a indulgência da certeza absoluta. – Nada é seu. É para usar. É para compartilhar. Se você não quer compartilhar, não pode usar. – E ela pegou o bebê magrinho com mãos delicadas e inexoráveis e o sentou fora do quadrado de luz solar.
O bebê gorducho continuava sentado, olhando com indiferença. O magrinho sacudiu-se todo, gritando: – Meu sol! – e caiu num choro raivoso.
O pai o pegou no colo e o abraçou. – Ora, Shev – disse. – Que é isso? Você sabe que não pode ter as coisas. Qual o problema? – Sua voz era suave e tremia como se ele também estivesse próximo das lágrimas. A criança magra, comprida e leve em seus braços prosseguia no choro colérico.
– Tem alguns que não conseguem tocar a vida com calma – disse a mulher caolha, em solidariedade.
– Vou levá-lo para uma visita domiciliar agora. A mãe vai partir hoje à noite.
– Tudo bem. Espero que você consiga logo um posto junto com ela – disse a supervisora, içando a criança gorducha ao seu quadril como um saco de cereal, com melancolia no rosto e dando uma piscadela no olho sadio. – Tchau, Shev, querido. Amanhã, escute, amanhã vamos brincar de caminhão e motorista.
O bebê ainda não a perdoara. Ele soluçava, apertando o pescoço do pai, na escuridão do sol perdido.
A orquestra precisava de todos os bancos para o ensaio daquela manhã, e o grupo de dança movimentava-se ruidosamente pelo salão do centro de aprendizagem, então as crianças que estudavam Falar-e-Ouvir sentaram-se em círculo no piso de cimento-espuma da oficina. O primeiro voluntário, um garoto magricela de 8 anos, com mãos e pés compridos, levantou-se. Ficou em pé bem ereto, como fazem as crianças saudáveis; a princípio, seu rosto ligeiramente coberto de penugem estava pálido, mas corou enquanto aguardava o silêncio das outras crianças.
– Pode falar, Shevek – disse o diretor do grupo.
– Bem, eu tive uma ideia.
– Mais alto – disse o diretor, um rapaz corpulento de 20 e poucos anos.
O garoto sorriu, envergonhado. – Bem, sabe, eu estava pensando. Digamos que você jogue uma pedra em alguma coisa. Numa árvore. Você joga, ela voa e bate na árvore. Certo? Mas ela não pode. Porque... Posso usar a lousa? Veja, aqui é você jogando a pedra, e aqui é a árvore – ele rabiscou na lousa –, isso é uma árvore, e aqui está a pedra, veja, no meio do caminho. – As crianças soltaram risadinhas ao verem o desenho de um pé de holum, e ele sorriu. – Para ir de você até a árvore, a pedra precisa estar no meio do caminho entre você e a árvore, não é? E depois ela precisa estar no meio do caminho entre o meio do caminho e a árvore. E depois ela precisa estar no meio do caminho entre esse ponto e a árvore. Por mais longe que ela vá, tem sempre um lugar, só que esse lugar na verdade é um momento, que está a meio caminho entre o último ponto e a árvore...
– Vocês acham isso interessante? – interrompeu o diretor, dirigindo-se às outras crianças.
– Por que a pedra não pode chegar até a árvore? – perguntou uma garota de 10 anos.
– Porque ela sempre tem que chegar até a metade do caminho que falta para onde ela tem que chegar – respondeu Shevek –, e sempre tem a metade do caminho faltando... Entende?
– Podemos dizer apenas que você não mirou bem a árvore? – observou o diretor, com um sorriso tenso.
– Não importa se você mirou bem ou não. A pedra não pode chegar até a árvore.
– De onde você tirou essa ideia?
– De lugar nenhum. Eu entendi isso. Acho que entendi como a pedra faz realmente...
– Chega.
Algumas das outras crianças estavam conversando, mas pararam como se emudecidas de susto. O garotinho com a lousa na mão continuou em pé, em silêncio. Pareceu amedrontado e fez uma carranca.
– Falar é compartilhar... uma arte cooperativa. Você não está compartilhando, está apenas egoizando.
Os acordes agudos e vigorosos da orquestra soaram no corredor.
– Você não entendeu isso sozinho, não foi espontâneo. Eu li algo muito parecido com isso num livro.
Shevek encarou o diretor.
– Que livro? Tem esse livro aqui?
O diretor levantou-se. Tinha cerca do dobro da altura e o triplo do peso de seu oponente, e era evidente em seu rosto que ele detestava aquela criança; mas não havia nenhuma ameaça de violência física em sua postura, apenas uma afirmação de autoridade, um pouco enfraquecida por sua reação irritada à estranha pergunta do garoto.
– Não! E pare de egoizar! – Em seguida, retomou o tom de voz melodioso e pedante: – Esse tipo de coisa é frontalmente contra o que buscamos num grupo Falar-e-Ouvir. A fala é uma função de mão dupla. Shevek não está preparado para entender isso ainda, como a maioria de vocês está, e assim sua presença perturba o grupo. Você próprio sente isso, não é, Shevek? Sugiro que você procure outro grupo que esteja no seu nível.
Ninguém mais disse nada. O silêncio e o volume alto da música aguda prosseguiram, enquanto o garoto devolvia a lousa e saía do círculo. Foi até o corredor e ali ficou parado. O grupo que deixou para trás começou, sob a orientação do diretor, uma narração coletiva, em que se revezavam. Shevek ouviu o som daquelas vozes domesticadas e do seu próprio coração, que ainda batia rápido. Havia um zumbido em seus ouvidos que não vinha da orquestra; era o que se ouve quando se reprime o choro. Já observara aquele zumbido várias vezes. Não gostava de ouvi-lo e não queria pensar na pedra e na árvore, então direcionou a mente para o Quadrado. Era feito de números, e números eram sempre tranquilos e sólidos; quando ele falhava, voltava-se para os números, pois neles não havia falhas. A visão do Quadrado em sua mente era nova, um desenho no espaço como os desenhos que a música faz no tempo: um quadrado dos nove primeiros números inteiros, com o número cinco no centro. Entretanto, quando se somavam as fileiras, o resultado era o mesmo, equilibrando toda a inequação; era agradável de olhar. Se ao menos pudesse formar um grupo que gostasse de falar sobre coisas assim! Mas havia apenas alguns garotos e garotas mais velhos que gostavam, e estavam ocupados. E o livro que o diretor mencionou? Seria um livro de números? Será que ele demonstrava como a pedra chegava até a árvore? Tinha sido burro em contar a brincadeira da pedra e da árvore, ninguém sequer entendeu que era uma brincadeira, o diretor estava certo. Sua cabeça doía. Olhou para dentro de si mesmo, para dentro, para as figuras calmas.
Se um livro fosse escrito só com números, seria verdadeiro. Seria justo. Nada expresso em palavras jamais resultava em algo equilibrado. Coisas em palavras tornavam-se distorcidas e embaralhadas, em vez de diretas e ajustadas. Mas, por baixo das palavras, no centro, como o centro do Quadrado, tudo se equilibrava. Tudo poderia mudar e, no entanto, nada se perderia. Quem compreendesse os números compreenderia isso, a harmonia, o padrão. Compreenderia as fundações do mundo. E elas eram sólidas.
Shevek aprendera a esperar. Era bom nisso, um perito. Começou a desenvolver essa capacidade quando esperou sua mãe Rulag voltar, embora fizesse tanto tempo que nem se lembrava; e ele aperfeiçoara essa habilidade esperando sua vez, esperando para partilhar, esperando uma partilha. Aos 8 anos, ele perguntara como, por que e e se, mas raras vezes perguntava quando.
Esperou seu pai vir buscá-lo para uma visita domiciliar. Foi uma longa espera: seis décades[1]. Palat aceitara um posto temporário na manutenção da Usina de Tratamento de Água do Monte Tambor e, depois disso, passaria uma décade na praia, em Malennin, onde iria nadar, descansar e copular com uma mulher chamada Pipar. Explicara tudo isso ao filho. Shevek confiava no pai, e ele merecia a confiança. Ao final dos sessenta dias, chegou ao dormitório infantil em Campina Vasta, um homem alto e magro, com um olhar mais triste do que nunca. Copular não era bem o que queria. O que ele queria era Rulag. Quando viu o garoto, sorriu e sua testa franziu-se de dor.
Sentiam prazer na companhia um do outro.
– Palat, você já viu algum livro só com números?
– Como assim, de matemática?
– Acho que sim.
– Como este?
Palat tirou um livro do bolso de sua túnica. Era pequeno, para ser levado no bolso e, como a maioria dos livros, encadernado em verde com o Círculo da Vida estampado na capa. A impressão ocupava todos os espaços, com letras pequenas e margens estreitas, pois papel era uma substância que exigia muitas árvores holum e muito trabalho humano para ser fabricada, conforme sempre observava o fornecedor no centro de aprendizagem quando alguém estragava uma folha e pedia uma nova. Palat ofereceu o livro aberto para Shevek. A página dupla era uma série de colunas de números. Lá estavam eles, como ele havia imaginado. Em suas mãos recebeu o pacto da justiça eterna. Tabelas Logarítmicas, Bases 10 e 12, dizia o título da capa, acima do Círculo da Vida.
O garotinho estudou a primeira página por um instante. – Para que servem? – perguntou, pois, evidentemente, aqueles algarismos não estavam ali apenas por sua beleza. O engenheiro, sentado ao lado dele num sofá duro do salão comum frio e mal iluminado do domicílio, incumbiu-se de lhe explicar os logaritmos. Dois velhos no outro lado do salão tagarelavam durante o jogo “Supere Todos”. Um casal adolescente entrou, perguntou se o quarto individual estava livre aquela noite e dirigiu-se para lá. A chuva caiu forte no telhado metálico do domicílio de um andar, e cessou. Nunca chovia por muito tempo. Palat pegou sua régua de cálculo e mostrou a Shevek como funcionava. Em troca, Shevek mostrou-lhe o Quadrado e o princípio de seu esquema. Era bem tarde quando perceberam que era tarde. Correram pela escuridão cheia de lama e do maravilhoso aroma de chuva até o dormitório infantil, onde levaram uma ligeira bronca do vigilante. Trocaram um beijo rápido, ambos tremendo de rir, e Shevek correu até a janela do grande dormitório, da qual pôde ver o pai voltando pela única rua de Campina Vasta, no escuro úmido e elétrico.
O garoto foi para a cama com as pernas enlameadas, e sonhou. Sonhou que estava numa estrada que passava numa região deserta. Lá na frente, viu uma linha cortando a estrada. Ao se aproximar atravessando a planície, viu que era um muro. Ia de um lado a outro do horizonte da terra árida. Era espesso, escuro e muito alto. A estrada subia nele e se interrompia.
Ele tinha de prosseguir, mas não podia. O muro o impedia. Um medo com dor e raiva apoderou-se dele. Tinha de prosseguir, ou jamais conseguiria voltar para casa. Mas o muro estava ali, impassível. Não havia como.
Bateu com as mãos na superfície lisa e gritou com ele. Sua voz saía sem palavras, corvejando. Assustado com o som da própria voz, encolheu-se, e então ouviu uma outra voz, que dizia: – Olhe! – Era a voz de seu pai. Teve a impressão de que sua mãe Rulag estava ali também, embora não a tenha visto (não se lembrava do rosto dela). Pareceu-lhe que ela e Palat estavam de quatro à sombra do muro e que eram mais volumosos que seres humanos, com formato diferente. Estavam apontando, mostrando-lhe algo lá no chão, na poeira estéril onde nada crescia. Era uma pedra. Escura como o muro, mas em cima dela, ou dentro dela, havia um número; era cinco, pensou de início, depois achou que era um, e então compreendeu o que era – o número primitivo, ao mesmo tempo unidade e pluralidade. – Essa é a pedra fundamental – disse uma voz querida e familiar, e Shevek foi trespassado por uma alegria. Não havia mais muro nas sombras, e ele sabia que havia voltado, que estava em casa.
Mais tarde, não conseguiu recordar os detalhes desse sonho, mas o ímpeto de alegria que o trespassou ele não esqueceu. Jamais sentira algo assim; tão firme era a certeza de sua permanência, como o vislumbre de uma luz que brilha constantemente, que ele nunca pensou naquela alegria como algo irreal, embora ele a tenha experimentado em sonho. Só que, por mais que tenha sido real lá, não conseguiu repeti-la, nem por força do desejo, nem por ato de vontade. Apenas se lembrou dela ao acordar. Quando tornou a sonhar com o muro, como às vezes lhe aconteceu, os sonhos eram sombrios e sem solução.
Eles tinham extraído a ideia de “prisões” de episódios de A Vida de Odo, que todos os que tinham optado por estudar história estavam lendo. O livro tinha muitos pontos obscuros, e não havia ninguém em Campina Vasta que soubesse história para elucidá-los; porém, quando chegaram aos anos de Odo no forte de Drio, o conceito de “prisão” tornara-se óbvio. E quando um professor itinerante de história veio à cidade, esclareceu o assunto, com a relutância de um adulto decente obrigado a explicar obscenidades a crianças. Sim, ele disse, prisão era um lugar onde o Estado punha as pessoas que não obedeciam às suas leis. Mas por que elas simplesmente não iam embora do lugar? Não podiam ir embora, as portas eram trancadas. Trancadas? Como as portas de um caminhão em movimento, para você não cair, burro! Mas o que eles faziam dentro de uma única sala o tempo todo? Nada. Não havia nada para fazer. Vocês viram fotos de Odo na cela da prisão em Drio, não viram? A imagem da paciência desafiadora, a cabeça grisalha inclinada, as mãos cerradas, imóvel nas sombras abusivas. Às vezes os prisioneiros eram condenados a trabalhar. Condenados? Bem, isso significa que um juiz, uma pessoa a quem a lei concedia o poder, ordenava que fizessem algum tipo de trabalho braçal. Ordenava? E se eles não quisessem fazer? Bem, eles eram obrigados; se não trabalhassem, apanhavam. Um calafrio de tensão percorreu as crianças que ouviam, todas entre 11 e 12 anos de idade, que nunca tinham apanhado, nem visto alguém apanhar, exceto num acesso de raiva imediato e pessoal.
Tirin fez a pergunta que estava em todas as mentes:
– Quer dizer que um monte de gente batia numa única pessoa?
– Sim.
– Por que as outras não impediam?
– Os guardas tinham armas. Os prisioneiros, não – respondeu o professor. Falava com a contrariedade de alguém forçado a dizer coisas detestáveis, e constrangido por isso.
A simples atração pela perversidade reuniu Tirin, Shevek e três outros garotos. Garotas foram excluídas do grupo, e eles não saberiam dizer por quê. Tirin encontrara a prisão ideal, sob a ala oeste do centro de aprendizagem. Era um lugar onde cabia apenas uma pessoa sentada ou deitada, formado por três paredes das fundações e o teto, que era a parte de baixo do andar acima; como as fundações faziam parte de um contorno de concreto, o piso era uma continuidade das paredes, e uma placa pesada de cimento-espuma na lateral isolaria o lugar por completo. Mas tinham de trancar a porta. Experimentando, descobriram que duas estacas presas entre uma das paredes e a placa lateral fechava o local de modo espantosamente definitivo. Ninguém lá dentro conseguiria abrir a porta.
– E a luz?
– Sem luz – disse Tirin. Falava com autoridade sobre essas coisas, pois sua imaginação o levava direto a elas. Usava todos os fatos que conhecia, mas não foi um fato que lhe concedeu essa certeza. – Eles deixavam os prisioneiros sentados no escuro, no forte de Drio. Durante anos.
– Ar, pelo menos – disse Shevek. – Essa porta se encaixa como uma tampa a vácuo. Temos que fazer um furo nela.
– Vai levar horas para a gente perfurar o cimento-espuma. De todo jeito, quem é que vai ficar tanto tempo nessa caixa a ponto de ficar sem ar?
Coro de voluntários e pretendentes.
Tirin olhou para eles, sarcástico. – Vocês são todos loucos. Quem vai mesmo querer ser trancado num lugar desses? Pra quê? – Fazer a prisão tinha sido ideia dele, e isso a ele bastava; não se deu conta de que, para algumas pessoas, só imaginação não basta: elas precisam entrar na cela, precisam tentar abrir a porta impossível de abrir.
– Quero ver como é – disse Kadagv, um garoto de 12 anos com peito largo, sério, insolente.
– Use a cabeça! – zombou Tirin, mas os outros apoiaram Kadagv. Shevek pegou uma broca na oficina, e eles fizeram um buraco de dois centímetros na “porta”, na altura do nariz. Levou quase uma hora, como Tirin previra.
– Quanto tempo quer ficar lá dentro, Kad? Uma hora?
– Veja – respondeu Kadagv –, se eu sou o prisioneiro, não posso decidir. Não sou livre. Vocês é que têm que decidir quando vão me deixar sair.
– Isso mesmo – disse Shevek, desanimado com essa lógica.
– Você não pode ficar muito tempo, Kad. Também quero a minha vez! – disse o mais jovem do grupo, Gibesh. O prisioneiro não se dignou a responder. Entrou na cela. Ergueram a porta e a colocaram no lugar com um estrondo, e prenderam as estacas, todos os quatro carcereiros martelando com entusiasmo. Amontoaram-se no buraco respiradouro para ver o prisioneiro, mas, como não havia luz dentro da prisão, exceto a que vinha do buraco, não viram nada.
– Não suguem todo o ar desse pobre idiota!
– Sopra um pouco de ar lá dentro pra ele.
– Solta um peido lá dentro pra ele!
– Quanto tempo ele vai ficar?
– Uma hora.
– Três minutos.
– Cinco anos!
– Faltam quatro horas para apagarem a luz. Acho que está bom.
– Mas eu quero a minha vez!
– Tudo bem, a gente deixa você aí dentro a noite inteira.
– Bem, eu quis dizer amanhã.
Quatro horas depois, arrancaram as estacas e soltaram Kadagv. Ele saiu tão dono da situação como quando entrara, disse que estava com fome e que aquilo não era nada; tinha apenas dormido a maior parte do tempo.
– Você faria de novo? – desafiou Tirin.
– Claro.
– Não, o segundo sou eu...
– Cale a boca, Gib. Então, Kad? Você entraria aí de novo, sem saber quando vamos deixá-lo sair?
– Claro.
– Sem comida?
– Eles alimentavam os prisioneiros – disse Shevek. – Isso é o mais esquisito de tudo.
Kadagv deu de ombros. Sua atitude de resistência superior era intolerável.
– Olhem aqui – Shevek disse aos dois garotos mais jovens –, peçam sobras de comida na cozinha. E tragam uma garrafa ou um pote cheio de água também. – Virou-se para Kadagv. – Vamos lhe dar um monte de coisas. Pode ficar o tempo que você quiser.
– O tempo que vocês quiserem – Kadagv corrigiu.
– Certo. Entre aí! – A autoconfiança de Kadagv despertou a veia satírica e teatral de Tirin. – Você é um prisioneiro. Não responde. Entendeu? Vire-se. Ponha as mãos na cabeça.
– Pra quê?
– Quer desistir?
Kadagv olhou-o com ar emburrado.
– Você não pode perguntar pra quê. Porque, se perguntar, podemos bater em você, e você vai ter que aceitar, ninguém vai te ajudar. Porque podemos chutar o seu saco e você não pode revidar. Porque você não é livre. E então, vai querer continuar até o fim?
– Claro. Podem me bater.
Tirin, Shevek e o prisioneiro ficaram se encarando, um grupo estranho e tenso em volta da lanterna, no escuro, em meio às paredes maciças da fundação do prédio.
Tirin sorriu com arrogância e cinismo. – Não me diga o que fazer, seu explorador. Cale a boca e entre na cela! – E, quando Kadagv virou-se para obedecer, Tirin o empurrou pelas costas com o braço estendido, fazendo-o cair desajeitado. Ele soltou um grunhido agudo de surpresa ou dor e sentou-se, protegendo um dedo que arranhara ou torcera na parede do fundo da cela. Shevek e Tirin não falaram nada. Ficaram imóveis, sem expressão no rosto, em seus papéis de guardas. Agora não representavam um papel, o papel é que os representava. Os garotos mais jovens voltaram com pão de holum, um melão e uma garrafa de água. Chegaram conversando, mas o estranho silêncio na cela os emudeceu na hora. A comida e a água foram empurradas para dentro, a porta foi erguida e escorada. Kadagv ficou sozinho no escuro. Os outros se reuniram em volta da lanterna. Gibesh sussurrou:
– Onde ele vai mijar?
– Na cama dele – Tirin respondeu, com objetividade sardônica.
– E se ele tiver que cagar? – Gibesh perguntou, e subitamente caiu numa estrepitosa gargalhada.
– Que tanta graça você vê em cagar?
– Eu imaginei... e se ele não conseguir enxergar... no escuro... – Gibesh não conseguiu explicar totalmente sua fantasia cômica. Todos começaram a rir sem explicação, divertindo-se até perder o fôlego. Sabiam que o garoto trancado na cela estava ouvindo as risadas.
Já tinham apagado a luz do dormitório infantil, e muitos adultos já dormiam, embora aqui e ali houvesse luzes acesas nos domicílios. A rua estava deserta. Os garotos a percorriam dobrando-se de rir, berrando entre si, enlouquecidos com o prazer de compartilhar um segredo, de incomodar os outros, de estarem unidos nas maldades. Acordaram a metade das crianças do dormitório com brincadeiras de pega-pega nos corredores e por entre as camas. Nenhum adulto interferiu; o tumulto logo cessou.
Tirin e Shevek ficaram cochichando por um bom tempo, sentados na cama de Tirin. Concluíram que Kadagv tinha pedido aquilo e ficaria preso duas noites inteiras.
O grupo deles se reuniu à tarde na oficina de reciclagem de madeira, e o chefe perguntou por Kadagv. Shevek trocou um olhar de relance com Tirin. Sentiu-se esperto, teve uma sensação de poder em não responder. Porém, quando Tirin respondeu calmamente que Kadagv devia estar em outro grupo naquele dia, Shevek ficou chocado com a mentira. A sensação secreta de poder de repente o deixou desconfortável: suas pernas coçaram, suas orelhas arderam. Quando o chefe lhe dirigiu a palavra, ele pulou de susto, de medo ou algum sentimento parecido, um sentimento que nunca experimentara, algo como vergonha, mas pior: íntimo e vil. Não parava de pensar em Kadagv, enquanto tapava e lixava os buracos das tábuas de três camadas de holum e lixava as tábuas até voltarem a ficar lisas como a seda. Toda vez que inspecionava sua mente, lá estava Kadagv. Era repulsivo.
Gibesh, que estivera de guarda, foi até Tirin e Shevek após o jantar, inquieto. – Acho que ouvi Kad falando alguma coisa lá dentro. Com a voz meio esquisita.
Houve uma pausa. – Vamos soltá-lo – disse Shevek.
Tirin virou-se para ele. – Ora, Shev, não me venha com pieguice. Não seja altruísta! Deixe-o terminar e se respeitar até o fim.
– Que altruísmo, que nada! Quero respeito a mim mesmo – retrucou Shevek, e partiu para o centro de aprendizagem. Tirin o conhecia; não perdeu mais nenhum minuto discutindo com ele e o acompanhou. Os outros dois, de 11 anos, seguiram atrás deles. Engatinharam debaixo do prédio até a cela. Shevek arrancou uma estaca, Tirin, a outra. A porta da prisão caiu para fora com um baque.
Kadagv estava deitado de lado no chão, todo encolhido. Sentou-se, depois levantou-se bem devagar e saiu. Curvou-se mais do que o necessário sob o teto baixo e piscou bastante à luz da lanterna, mas parecia o mesmo de sempre. O fedor que saiu com ele era inacreditável. Por algum motivo, tivera diarreia. A cela estava uma bagunça, e havia manchas de matéria fecal amarela em sua camisa. Quando as viu à luz da lanterna, tentou escondê-las com a mão. Ninguém falou muito.
Quando já tinham engatinhado para fora das fundações do prédio e se dirigiam ao dormitório, Kadagv perguntou:
– Quanto tempo fiquei lá?
– Umas trinta horas, contando as quatro primeiras.
– Bastante tempo – disse Kadagv, sem convicção.
Depois de levá-lo para tomar banho, Shevek correu para o banheiro. Ali, inclinou-se sobre a privada e vomitou. Os espasmos só o deixaram após quinze minutos. Estava trêmulo e exausto quando cessaram. Foi até o salão comum do dormitório, leu um pouco sobre física e foi para a cama cedo. Nenhum dos cinco garotos jamais voltou à prisão debaixo do centro de aprendizagem. Nenhum deles jamais mencionou o episódio, exceto Gibesh, que se gabou para alguns dos garotos e garotas mais velhos; mas eles não entenderam, e ele mudou de assunto.
A lua pairava alta acima do Instituto Regional de Ciências Nobres e Materiais do Poente Norte. Quatro garotos de 15 ou 16 anos estavam sentados no topo de um morro, por entre tufos rústicos de holum rasteira, olhando abaixo para o Instituto Regional e acima para lua.
– Estranho – disse Tirin –, eu nunca tinha pensado antes...
Comentários dos outros três sobre a obviedade dessa observação.
– Nunca tinha pensado – prosseguiu Tirin, inabalado – que existem pessoas sentadas num morro, lá em cima, em Urras, olhando para Anarres, para nós, e dizendo: “Olhe, lá está a lua”. Nosso planeta é a lua deles; nossa lua é o planeta deles.
– Onde, então, está a Verdade? – declamou Bedap, e bocejou.
– No topo do morro onde se estiver sentado – respondeu Tirin.
Todos continuaram fitando aquela pedra turquesa brilhante e vaga lá em cima, que não estava totalmente redonda, um dia após ter estado cheia. A calota polar norte faiscava.
– O norte está claro – disse Shevek. – Ensolarado. Aquilo é A-Io, aquela saliência marrom ali.
– Estão todas nuas, deitadas ao sol – disse Kvetur –, com joias no umbigo e sem cabelo.
Houve um silêncio.
Tinham ido ao topo do morro para companhia masculina. A presença de fêmeas lhes era opressiva. A impressão deles era que, ultimamente, o mundo estava cheio de garotas. Para todo lugar que olhavam, dormindo ou acordados, viam garotas. Todos tinham tentado copular com garotas; alguns deles, em desespero, também tinham tentado não copular com garotas. Não fazia diferença. As garotas estavam lá.
Três dias antes, durante uma aula de História do Movimento Odoniano, todos eles haviam assistido à mesma apresentação visual e, desde então, a imagem de joias iridescentes no orifício liso das barrigas bronzeadas e lambuzadas de óleo das mulheres tornara-se recorrente a cada um deles, em privado.
Tinham visto também cadáveres de crianças, cabeludas como eles, empilhados numa praia, como ferro-velho compactado e enferrujado, e um velho derramando gasolina sobre as crianças e ateando fogo. “Uma grande fome na província de Bachfoil, da Nação de Thu” – disse o comentarista. “Os corpos das crianças mortas de fome e doença são queimados nas praias. Nas praias de Tuis, a setecentos quilômetros de distância, na Nação de A-Io (e aí apareceram os umbigos enfeitados de joias), mulheres mantidas para uso sexual dos membros machos da classe de proprietários (usaram as palavras ióticas, pois não havia equivalente para nenhuma das duas em právico) ficam deitadas na areia o dia todo, até que o jantar lhes seja servido pela classe dos não proprietários”. Um close-up da hora do jantar: bocas macias mastigando e sorrindo, mãos macias pegando iguarias em calda de vasilhas de prata. Então, um corte rápido de volta ao rosto opaco e embotado de uma criança morta, boca aberta, vazia, preta, seca. “Lado a lado”, dissera a voz calma.
No entanto, a imagem que aumentara como uma bolha oleosa e iridescente nas mentes dos garotos era a mesma.
– De quando são aqueles filmes? – perguntou Tirin. – São de antes da Colonização ou são recentes? Eles nunca dizem.
– Que importância tem isso? – respondeu Kvetur. – Eles viviam assim em Urras antes da Revolução Odoniana. Todos os odonianos partiram e vieram para cá, para Anarres. Então, é provável que nada tenha mudado... Eles ainda fazem essas coisas lá – apontou para a grande lua azul-esverdeada.
– E como vamos saber?
– O que você quer dizer com isso, Tir? – perguntou Shevek.
– Se aquelas imagens tiverem 150 anos, as coisas podem estar totalmente diferentes agora em Urras. Não estou dizendo que estejam, mas, se estiverem, como vamos saber? Nós não vamos para lá, não falamos com eles, não há comunicação. Na verdade, não fazemos nenhuma ideia de como é a vida em Urras agora.
– O pessoal do CPD sabe. Eles falam com os tripulantes urrastis dos cargueiros que chegam ao Porto de Anarres. Eles se mantêm informados. E têm que se manter, para que possamos continuar o comércio com Urras, e para saber se eles são uma ameaça para nós. – Bedap falou com ponderação, mas a resposta de Tirin foi perspicaz:
– Então talvez o CPD esteja informado, mas nós não.
– Informados! – exclamou Kvetur. – Ouço falar em Urras desde a creche! Não aguento mais ver imagens de cidades imundas urrastis ou de corpos urrastis lambuzados de óleo!
– É isso mesmo! – disse Tirin, com o deleite de quem acompanha um raciocínio. – Todo o material disponível sobre Urras é a mesma coisa. Repugnante, imoral, excrementício. Mas veja: se tudo era tão ruim quando os Colonos partiram, como os urrastis sobreviveram 150 anos? Se eram tão doentes, por que não morreram? Por que a sociedade proprietária deles não entrou em colapso? Do que temos tanto medo?
– Contágio – disse Bedap.
– Somos tão fracos assim que não podemos nos expor um pouco? De qualquer forma, não é possível que todos sejam doentes. Não importa como seja a sociedade deles, alguns devem ser decentes. As pessoas variam aqui, não é? Somos todos odonianos perfeitos? Vejam aquele Pesus metido a besta!
– Mas, num organismo doente, mesmo uma célula sadia está condenada – disse Bedap.
– Ah, você consegue provar qualquer coisa usando analogia, e você sabe disso. De qualquer maneira, como sabemos de verdade que a sociedade deles é doente?
Bedap roeu a unha do polegar. – Está dizendo que o CPD e o sindicato do material escolar estão mentindo para nós?
– Não. Eu disse que só sabemos o que nos dizem. E sabem o que nos dizem? – O rosto moreno com nariz arrebitado de Tirin, iluminado pelo luar azulado, virou-se para os outros garotos. – Kvet já disse, um minuto atrás. Ele entendeu a mensagem. Vocês ouviram: detestem Urras, odeiem Urras, tenham medo de Urras.
– Por que não? – Kvetur inquiriu. – Vejam como eles nos trataram, a nós odonianos!
– Mas eles nos deram a lua deles, não deram?
– Sim, para nos impedir de destroçar seus estados exploradores e de estabelecer uma sociedade justa por lá. E, assim que se livraram de nós, aposto que começaram a construir governos e exércitos mais rápido do que nunca, pois não sobrou ninguém para detê-los. Se abríssemos nossos portos para eles, acham que eles viriam como amigos e irmãos? Um bilhão deles contra 20 milhões de nós? Eles iriam nos liquidar, ou nos fazer de... como é que chamam, como é mesmo a palavra? Escravos, para trabalharmos nas minas por eles!
– Tudo bem. Concordo que talvez seja sensato temer Urras. Mas por que odiar? O ódio não é funcional; por que nos ensinam a odiar? Será que é porque se soubéssemos como Urras é de verdade, nós iríamos gostar de lá? De algumas coisas de lá, alguns de nós? Será que o CPD não quer apenas evitar que eles venham para cá, mas também que alguns de nós queiram ir para lá?
– Ir para Urras? – disse Shevek, surpreso.
Discutiam porque gostavam de discussões, gostavam do movimento rápido da mente livre pelos caminhos das possibilidades, gostavam de questionar o que não se questionava. Eram inteligentes, suas mentes já estavam disciplinadas para a objetividade da ciência, e tinham 16 anos de idade. Porém, naquele ponto o prazer da discussão cessou para Shevek, assim como cessara antes para Kvetur. Ele ficou perturbado.
– Quem jamais iria querer ir para Urras? – interpelou. – Para quê?
– Para descobrir como é outro mundo. Para ver o que é um “cavalo”!
– Isso é infantilidade – disse Kvetur. – Existe vida em outros sistemas estelares – e fez um gesto com a mão, percorrendo o céu banhado pelo luar –, segundo dizem. E daí? Tivemos a sorte de nascer aqui!
– Se somos melhores do que qualquer outra sociedade humana – disse Tirin –, então deveríamos ajudá-las. Mas somos proibidos.
– Proibidos? Palavra não orgânica. Quem proíbe? Você está exteriorizando a própria função integrativa – disse Shevek, inclinando-se para a frente e falando com veemência. – Ordem não são “ordens”. Não saímos de Anarres porque somos Anarres. Sendo Tirin, você não pode sair da pele de Tirin. Talvez você queira tentar ser outra pessoa, para ver como é, mas não pode. Mas alguém impede você à força? Somos mantidos aqui à força? Que força? Que leis? As do governo, da polícia? Nada disso. Simplesmente a lei do nosso próprio ser, nossa natureza como odonianos. Está em sua natureza ser Tirin, e em minha natureza ser Shevek, e em nossa natureza comum sermos odonianos, responsáveis uns pelos outros. E essa responsabilidade é a nossa liberdade. Evitá-la seria perder nossa liberdade. Você gostaria mesmo de viver numa sociedade onde não se tem nenhuma responsabilidade, nenhuma liberdade, nenhuma escolha, apenas a falsa opção de obediência à lei, ou desobediência seguida de punição? Gostaria mesmo de ir viver numa prisão?
– Ora, claro que não! Não posso falar? O problema com você, Shev, é que você não fala nada até acumular um caminhão de argumentos pesados como tijolos, que então você descarrega de uma vez, sem nunca olhar o corpo ensanguentado e mutilado debaixo do monte...
Shevek reclinou-se, com ar satisfeito.
Mas Bedap, um rapaz corpulento, de rosto quadrado, continuou a mastigar a unha do polegar e disse:
– Mesmo assim, a ideia de Tir procede. Seria bom saber que sabemos toda a verdade sobre Urras.
– Quem você acha que está mentindo para nós? – Shevek interpelou.
Calmo, Bedap o encarou. – Quem, irmão? Quem, senão nós mesmos?
O planeta irmão brilhava sobre eles, sereno e luminoso, um belo exemplo da improbabilidade do real.
O reflorestamento do Litoral Tameniano Norte foi uma das grandes realizações da décima quinta décade da Colonização de Anarres, empregando quase 18 mil pessoas por um período de mais de dois anos.
Embora as extensas praias do Sudeste fossem férteis, sustentando muitas comunidades pesqueiras e agrícolas, a área cultivável era uma pequena faixa ao longo do mar. Do interior a oeste até as vastas planícies do Sudoeste, a terra era inabitada, exceto por algumas cidades mineradoras remotas. Era a região chamada Poeira.
Na era geológica anterior, a Poeira tinha sido uma imensa floresta de holuns, gênero de planta ubíquo e dominante de Anarres. O clima atual era mais quente e mais seco. Milênios de seca mataram as árvores e secaram o solo até torná-lo uma poeira fina e cinza que agora levantava ao menor vento, formando morros de linhas tão puras e estéreis quanto as de qualquer duna de areia. Os anarrestis tinham a esperança de restaurar a fertilidade daquela terra inquieta com o replantio da floresta. Isso estava de acordo, pensou Shevek, com o princípio da Reversibilidade Causal, ignorado pela Sequência, escola de física atualmente em voga em Anarres, mas ainda elemento íntimo e tácito do pensamento odoniano. Ele gostaria de escrever um artigo mostrando a relação entre as ideias de Odo e as ideias da Física Temporal e, particularmente, a influência da Reversibilidade Causal no modo como ela lidou com o problema dos meios e dos fins. Mas aos 18 anos Shevek não tinha conhecimento suficiente para escrever esse artigo, e jamais teria, se não voltasse a estudar física logo, longe daquela maldita poeira.
À noite, nos acampamentos do Projeto, todo mundo tossia. Durante o dia, tossiam menos; estavam ocupados demais para tossir. A poeira era a inimiga deles, a coisa fina e seca que obstruía a garganta e os pulmões; era sua inimiga e seu ofício, sua esperança. Outrora aquela poeira jazia rica e escura à sombra das árvores. Após o longo trabalho deles, talvez voltasse a ser assim.
Ela faz brotar a folha verde na pedra,
E a água limpa e corrente do coração da rocha...
Gimar estava sempre murmurando essa canção, mas agora, na noite quente, ao atravessarem a planície de volta ao acampamento, ela cantava a letra em voz alta.
– Quem faz essas coisas? Quem é “ela”? – perguntou Shevek.
Gimar sorriu. Seu rosto largo e sedoso estava manchado e endurecido de poeira, seu cabelo estava cheio de poeira, ela exalava um cheiro forte e agradável de suor.
– Eu cresci no Nascente Sul – ela disse. – Onde estão os mineiros. É uma canção de mineiros.
– Que mineiros?
– Você não sabe? As pessoas que já estavam aqui quando os Colonos chegaram. Alguns ficaram e se uniram à solidariedade. Mineiros de ouro, mineiros de estanho. Eles ainda têm dias de festa e suas próprias canções. O babai[2] era mineiro, ele cantava para mim quando eu era criança.
– Tudo bem, mas quem é “ela”?
– Não sei, é apenas a letra da canção. Não é o que estamos fazendo aqui? Fazendo brotar folhas verdes nas pedras?
– Parece religioso.
– Você e suas palavras livrescas e infundadas. É só uma canção. Ah, como eu queria estar no outro acampamento para poder nadar. Estou fedendo!
– Eu estou fedendo.
– Estamos todos fedendo.
– Em solidariedade...
Mas aquele acampamento ficava a quinze quilômetros das praias do Mar Tameniano, por ali só havia um mar imenso de poeira.
Havia um homem no acampamento cujo nome, quando pronunciado, parecia com o de Shevek: Shevet. Quando chamavam um, o outro respondia. Shevek sentia certa afinidade com o homem, uma relação mais especial do que a fraternidade, por causa dessa semelhança casual. Algumas vezes, viu Shevet olhando para ele. Ainda não tinham se falado.
As primeiras décades de Shevek no projeto de reflorestamento foram passadas com ressentimento silencioso e exaustão. Pessoas que haviam optado por trabalhar em campos essencialmente funcionais como a física não deveriam ser designadas para esses projetos e recrutamentos especiais. Não era imoral realizar um trabalho sem prazer? O trabalho precisava ser feito, mas muitas pessoas não ligavam para que posto seriam enviadas e mudavam de emprego o tempo todo; essas pessoas deviam ter se apresentado como voluntários. Qualquer idiota podia fazer aquele trabalho. Na verdade, muitos o fariam melhor do que ele. Ele se orgulhava de sua força física e sempre se voluntariava para os “trabalhos pesados”, em rodízios de dez dias; mas ali era dia após dia, oito horas por dia, na poeira e no calor. O dia inteiro ansiava pela noite, quando poderia ficar sozinho e pensar, mas, no instante em que entrava na barraca depois do jantar, sua cabeça caía pesada e ele dormia feito uma pedra até o amanhecer, e nenhum pensamento jamais atravessava a sua mente.
Considerava os colegas de trabalho maçantes e grosseiros, e até mesmo os mais jovens do que ele tratavam-no como uma criança. Ressentido e zombador, seu único prazer era escrever aos amigos Tirin e Rovab num código que tinham elaborado no Instituto, um conjunto de equivalentes verbais dos símbolos da Física Temporal. Escritas, as palavras pareciam fazer sentido como mensagem, mas, na verdade, não queriam dizer nada, a não ser pela equação ou fórmula filosófica que dissimulavam. As fórmulas de Shevek e Rovab eram genuínas. As cartas de Tirin eram muito engraçadas e convenceriam a qualquer um de que se referiam a acontecimentos e emoções reais, mas a física que continham era questionável. Shevek passou a enviar-lhes esses enigmas com frequência, desde que descobriu que podia criá-los em sua mente enquanto cavava buracos na rocha com uma pá cega na tempestade de poeira. Tirin respondeu várias vezes, Rovab apenas uma. Era uma garota fria, ele sabia que ela era fria. Mas ninguém no Instituto sabia de sua desgraça, pois eles estavam desenvolvendo pesquisas independentes e não foram designados a um posto num maldito projeto de plantio de árvores. Estavam trabalhando, fazendo o que queriam fazer. Ele não estava trabalhando. Estava sendo trabalhado, usado.
No entanto, era estranho como dava orgulho trabalhar assim – todos juntos –, que satisfação isso trazia! E alguns dos colegas de trabalho eram pessoas realmente extraordinárias. Gimar, por exemplo. A princípio sua beleza muscular o intimidara, mas agora estava forte o suficiente para desejá-la.
– Venha comigo esta noite, Gimar.
– Ah, não – ela respondeu, e olhou-o com tanta surpresa que ele disse, com dignidade em sua dor:
– Pensei que fôssemos amigos.
– E somos.
– Então...
– Eu tenho um parceiro. Lá onde eu moro.
– Você poderia ter me contado – disse Shevek, corando.
– Bem, não me ocorreu que eu devia ter contado. Desculpe, Shev.
Ela o olhou de modo tão pesaroso que ele teve esperança. – Será que...
– Não. Não se pode ter uma parceria assim, um pouco para ele e um pouco para outros.
– Na verdade, acho que parceria por toda a vida vai contra a ética odoniana – disse Shevek, num tom rude e pedante.
– Merda – disse Gimar, em sua voz suave. – Ter é errado, compartilhar é certo. O que mais se pode compartilhar do que o seu ser inteiro, sua vida inteira, todas as noites e todos os dias?
Ele estava sentado com as mãos entre os joelhos, a cabeça baixa, um rapaz comprido, magro, abatido, inacabado. – Não estou preparado para isso – ele disse após alguns momentos.
– Você?
– Nunca conheci alguém de verdade. Veja como eu não consegui entender você. Estou excluído. Não consigo entrar. Nunca vou conseguir. Seria tolo da minha parte pensar em parceria. Esse tipo de coisa é para... seres humanos...
Com timidez, não um acanhamento sexual, mas a reserva do respeito, Gimar pôs a mão no ombro de Shevek. Ela não o consolou. Não disse que ele era como todo mundo. Disse:
– Nunca vou conhecer outra pessoa como você, Shev. Nunca vou esquecê-lo.
De qualquer maneira, uma rejeição é uma rejeição. Apesar de toda a delicadeza de Gimar, ele se afastou dela com a alma derrotada, contrariado.
Fazia muito calor. Só refrescava uma hora antes do amanhecer.
O homem chamado Shevet aproximou-se de Shevek uma noite após o jantar. Era um rapaz forte e bonito, de 30 anos.
– Estou cansado de ser confundido com você. Arranje um nome diferente.
A agressividade ameaçadora teria espantado Shevek algum tempo antes. Agora ele simplesmente respondeu na mesma moeda:
– Mude seu próprio nome, se não gosta dele – disse.
– Você é um desses exploradores que vão estudar para não sujar as mãos – disse o homem. – Sempre quis bater num de vocês.
– Não me chame de explorador! – disse Shevek, mas aquela batalha não era verbal. Shevet golpeou-lhe duas vezes. Recebeu vários socos de volta, pois Shevek tinha braços mais longos e muito mais vigor do que seu oponente esperava: contudo foi derrotado. Várias pessoas paravam para assistir, viam que era uma luta equilibrada, porém nada interessante, e iam embora. Nem se ofendiam nem se atraíam pela simples violência. Shevek não pediu ajuda, por isso aquilo não era da conta de ninguém, apenas dele. Quando voltou a si, estava deitado de costas no chão escuro entre duas barracas.
Ficou com um zumbido no ouvido direito por uns dois dias e um lábio fendido que demorou a sarar por causa da poeira, que irritava todos os ferimentos. Ele e Shevet nunca mais se falaram. Via o homem a distância, em outras refeições em volta de fogueiras, sem animosidade. Shevet lhe dera o que tinha de dar, e ele aceitara o presente, embora, por um longo tempo, jamais tenha ponderado ou refletido sobre a natureza da oferta. Quando finalmente o fez, não havia diferença entre aquele e outro presente, uma outra etapa de seu amadurecimento. Uma garota que acabara de se unir a seu grupo de trabalho aproximara-se dele do mesmo modo que Shevet, na escuridão, quando ele se afastava da fogueira, e seu lábio não estava curado ainda... Nunca conseguiu lembrar o que ela disse; ela o provocara; de novo, ele simplesmente reagira. Foram para a planície no meio da noite, e lá ela lhe deu a liberdade da carne. Foi este o presente dela, e ele aceitou. Como todas as crianças de Anarres, ele tivera experiências sexuais voluntárias tanto com garotas quanto com garotos, mas tanto ele quanto os outros eram crianças; jamais tinha ido além do que presumia ser todo o prazer do sexo. Beshun, perita em deleite, levou-o ao âmago da sexualidade, um lugar onde não há rancor nem inépcia, onde dois corpos esforçando-se para se unirem aniquilam o momento em seu esforço e transcendem a si mesmos, transcendem o tempo.
Foi tudo mais fácil ali, tão fácil e agradável, naquela poeira quente, à luz das estrelas. E os dias eram longos, quentes e luminosos, e a poeira tinha o cheiro do corpo de Beshun. Ele trabalhava agora numa equipe de plantio. Os caminhões tinham vindo do Nordeste cheios de pequenas árvores, milhares de mudas cultivadas nas Montanhas Verdes, onde chovia até 100 mm por ano, o cinturão pluvial. Plantaram as pequenas árvores na poeira.
Quando terminaram, as cinquenta equipes que tinham trabalhado durante o segundo ano do projeto partiram nos caminhões-plataforma, e olharam para trás enquanto partiam. Viram o que tinham feito. Havia uma névoa verde, muito tênue, nas curvas e nos terraços pálidos do deserto. Sobre a terra morta jazia, muito leve, um véu de vida. Eles comemoraram, cantaram e gritaram de um caminhão a outro. Os olhos de Shevek se encheram de lágrimas. Pensou: “Ela faz brotar a folha verde na pedra...”. Gimar tinha sido designada de volta ao Poente Sul há muito tempo.
– Por que está fazendo caretas? – Beshun lhe perguntou, espremida ao seu lado enquanto o caminhão sacolejava, e passando a mão de cima a baixo no braço dele, firme e branco de poeira.
– Mulheres – disse Vokep, na garagem de caminhões em Tin Ore, no Sudoeste. – As mulheres pensam que nos possuem. Nenhuma mulher pode ser odoniana de verdade.
– E a própria Odo...?
– Teoria. E ela não teve mais vida sexual após Asieo ser morto, certo? De qualquer modo, sempre há exceções. Mas, para a maioria das mulheres, a única relação que elas têm com o homem é de posse. Ou possuindo ou sendo possuída.
– Você acha então que elas são diferentes dos homens nesse ponto?
– Tenho certeza. O que os homens querem é liberdade. O que as mulheres querem é propriedade. Elas só o libertam se conseguirem trocá-lo por outra coisa. Todas as mulheres são proprietárias.
– Essa é uma afirmação e tanto a respeito de metade da raça humana – disse Shevek, perguntando-se se o homem tinha razão. Beshun tinha chorado até ficar doente quando ele foi designado de volta ao Noroeste. Ficou furiosa, chorosa e tentou fazê-lo dizer que não poderia viver sem ela, insistiu que não poderia viver sem ele e que eles deveriam ser parceiros. Parceiros, como se ela conseguisse ficar com qualquer homem por mais de meio ano!
A língua que Shevek falava, a única que conhecia, não possuía termos que expressassem a propriedade para o ato sexual. Em právico, não fazia sentido algum um homem dizer que “possuía” uma mulher. A palavra que mais se aproximava de “transar” – e tinha um uso secundário como insulto – era específica: significava estuprar. O verbo usual, utilizado apenas com o sujeito no plural, só pode ser traduzido por uma palavra neutra como copular. Significava algo que duas pessoas faziam, não algo feito ou possuído por uma pessoa só. Essa estrutura vocabular, como qualquer outra, não podia conter a totalidade das experiências, e Shevek estava ciente da área excluída, embora não tivesse certeza absoluta do que se tratava. Certamente sentira que possuía Beshun, em algumas daquelas noites estreladas na Poeira. E ela pensara que o possuía. Mas ambos estavam enganados; e Beshun, apesar de todo o sentimentalismo, sabia disso; despedira-se dele com um beijo, finalmente sorrindo, e o deixara partir. Ela não o possuíra. Seu próprio corpo, na primeira explosão de paixão sexual adulta, é que o possuíra de fato – e a ela. Mas tudo isso tinha terminado. Tinha acontecido. Não aconteceria de novo (pensou ele aos 18 anos de idade, sentado com um conhecido de viagem na garagem de caminhões de Tin Ore, à meia-noite, bebendo um copo de suco de fruta doce e viscoso, esperando para pegar uma carona num comboio que ia para o norte), não poderia acontecer nunca mais. Ele passaria por muita coisa ainda, mas não seria pego desprevenido uma segunda vez, derrubado, derrotado. Ser derrotado e rendido teve seus encantos. Mas a própria Beshun talvez nunca quisesse nenhuma alegria além disso. E por que deveria? Foi ela, em sua liberdade, que o libertara.
– Sabe, não concordo – disse a Vokep, um químico agrícola de rosto comprido que viajava para Abbenay. – Acho que a maioria dos homens precisa aprender a ser anarquista. As mulheres não precisam aprender.
Vokep balançou a cabeça severamente. – São as crianças – disse. – Ter bebês. Isso as torna proprietárias. Não largam os homens. – Suspirou. – Toque e vá embora, irmão. Essa é a regra. Nunca se deixe possuir.
Shevek sorriu e bebeu o suco de fruta.
– Não deixarei – ele disse.
Foi uma alegria para ele retornar ao Instituto Regional, ver os morros baixos salpicados de holum rasteira com folhas cor de bronze, os jardins da cozinha, domicílios, dormitórios, oficinas, salas de aula, laboratórios, lugares onde vivia desde os 13 anos de idade. Sempre seria alguém para quem o retorno era tão importante quanto a viagem. Ir não era suficiente para ele, apenas metade suficiente; tinha de retornar. Talvez essa tendência já prenunciasse a natureza da imensa exploração que iria empreender aos extremos do compreensível. Provavelmente não teria embarcado naquela empreitada de anos de duração se não tivesse a profunda segurança de que o retorno era possível, mesmo que ele próprio talvez não retornasse; de que, de fato, a verdadeira natureza da viagem, como a circunavegação do globo, implicava retorno. Não se pode descer o mesmo rio duas vezes, nem voltar para casa. Isso ele sabia; na verdade, era a base de sua visão de mundo. No entanto, a partir dessa aceitação da transitoriedade, desenvolveu sua vasta teoria, segundo a qual aquilo que é mais mutável demonstra ser a eternidade em seu grau mais elevado, e a relação de alguém com o rio, e a relação do rio com alguém e com ele mesmo torna-se logo mais complexa e mais segura do que a mera falta de identidade. Pode-se voltar para casa, afirma a Teoria Temporal Geral, desde que se compreenda que casa é um lugar onde nunca se esteve.
Portanto, estava alegre por voltar para o que mais próximo ele tinha ou queria ter de um lar. Mas achou seus amigos ali muito imaturos. Ele tinha amadurecido bastante no último ano. Algumas garotas tinham amadurecido tanto quanto ele, ou até mais; tinham se tornado mulheres. Entretanto, evitou qualquer contato, exceto casuais, com as garotas, pois ainda não queria mais uma farra de sexo; tinha outras coisas a fazer. Percebeu que as garotas mais inteligentes, como Rovab, eram cautelosas como ele; nos laboratórios e nas equipes de trabalho, ou nas áreas comuns dos dormitórios, comportavam-se como boas companheiras e nada mais. As garotas queriam concluir o treinamento e iniciar sua pesquisa ou encontrar um posto que lhes agradasse antes de terem um filho. Mas não se satisfaziam mais com a experimentação sexual da adolescência. Queriam uma relação madura, não uma estéril; mas não naquele momento, não ainda.
Essas garotas eram boa companhia, simpáticas e independentes. Os garotos da idade de Shevek pareciam presos ao final de uma infantilidade que estava se tornando superficial e enfadonha. Eles eram intelectualizados demais. Pareciam não querer se comprometer nem com o trabalho, nem com o sexo. Quem ouvisse Tirin falar pensaria que ele havia inventado a cópula, mas seus casos eram com meninas de 15 ou 16 anos; esquivava-se das garotas de sua idade. Bedap, que nunca tinha sido vigoroso no sexo, aceitou a deferência de um rapaz mais jovem que nutria por ele uma paixão homossexual idealista e deixou que isso lhe bastasse. Parecia não levar nada a sério; tornara-se irônico e reticente. Shevek sentiu-se excluído de sua amizade. Nenhuma amizade perdurou; até Tirin estava muito egocêntrico e, nos últimos tempos, emocionalmente instável para reatar os antigos laços – se Shevek o quisesse. Na verdade, não queria. Acolheu o isolamento de todo o coração. Nunca lhe ocorreu que o distanciamento que encontrou em Bedap e Tirin pudesse ser uma reação; que seu caráter gentil, mas já impiedosamente hermético, pudesse criar sua própria ambiência, que somente uma grande força, uma grande devoção poderia suportar. Tudo o que percebeu, na verdade, foi que, finalmente, tinha tempo de sobra para o trabalho.
Lá no Sudeste, depois de ter se acostumado ao trabalho braçal regular e ter parado de desperdiçar o cérebro com mensagens codificadas e o sêmen em poluções noturnas, começou a ter algumas ideias. Agora estava livre para desenvolver essas ideias, para ver se tinham fundamento.
A física mais graduada do Instituto chamava-se Mitis. Não estava, no momento, coordenando a grade curricular de física, pois havia um rodízio anual de todos os postos administrativos entre os vinte postos permanentes, mas ela trabalhava ali há trinta anos e era a mais inteligente dentre todos. Havia sempre uma espécie de espaço livre psicológico em volta de Mitis, como a inexistência de multidões em volta do pico de uma montanha. A ausência de intensificações ou imposições de autoridade deixava a autoridade real evidente. Existem pessoas com autoridade inerente; alguns imperadores têm, na verdade, roupa nova.
– Mandei aquele estudo que você escreveu sobre Frequência Relativa para Sabul, em Abbenay – ela disse a Shevek, com seu jeito abrupto e sociável. – Quer ver a resposta?
Empurrou até o outro lado da mesa um pedaço de papel amarrotado, obviamente uma ponta rasgada de uma folha maior. Nele havia uma equação rabiscada em letras miúdas:
ts (R) = 0
2
Shevek pôs seu peso nas mãos sobre a mesa e baixou os olhos para o pedacinho de papel, contemplando-o com serenidade. Seus olhos eram claros, e a claridade da janela os preencheu, tornando-os límpidos como a água. Ele tinha 19 anos, Mitis, 55. Ela o observou com compaixão e admiração.
– É isso que está faltando – ele disse. Sua mão tinha encontrado um lápis sobre a mesa. Começou a rabiscar no fragmento de papel. Enquanto escrevia, seu rosto pálido, prateado por uma leve penugem, ruborizou, e as orelhas avermelharam-se.
Mitis moveu-se discretamente atrás da mesa, sentando-se. Tinha problema de circulação nas pernas e precisava sentar-se. Seu movimento, entretanto, perturbou Shevek. Ele lançou-lhe um olhar fixo e frio.
– Posso terminar isso em um dia ou dois – ele disse.
– Sabul quer ver os resultados quando você terminar.
Houve uma pausa. A cor de Shevek voltou ao normal, e ele teve consciência de novo da presença de Mitis, a quem amava. – Por que a senhora mandou o estudo para Sabul? – ele perguntou. – Com aquele furo enorme! – Sorriu; o prazer de remendar o furo em seu pensamento o deixou radiante.
– Achei que ele talvez conseguisse ver onde você errou. Eu não consegui. Também queria que ele visse a sua pesquisa... Ele vai querer que você vá para lá, para Abbenay, você sabe.
O jovem não respondeu.
– Você quer ir?
– Ainda não.
– Foi o que pensei. Mas você deve ir. Pelos livros, e pelas mentes que vai encontrar lá. Você não vai desperdiçar sua mente no deserto! – Mitis falou com súbito entusiasmo. – É seu dever buscar o melhor, Shevek. Jamais se deixe enganar pelo falso igualitarismo. Você vai trabalhar com Sabul. Ele é competente, vai fazê-lo trabalhar muito. Mas você deve ser livre para encontrar a linha que vai querer seguir. Fique aqui mais um bimestre e depois vá. E tome cuidado em Abbenay. Permaneça livre. O poder está sempre vinculado a um centro. Você vai para o centro. Não conheço bem Sabul; não sei de nada contra ele; mas tenha isso em mente: você será o homem dele.
A forma singular dos pronomes possessivos em právico era utilizada principalmente para dar ênfase; o idioma a evitava. Criancinhas podiam dizer “minha mãe”, mas logo aprendiam a dizer “a mãe”. Em vez de dizer “minha mão está doendo”, dizia-se “a mão me dói”, e assim por diante; para expressar “isto é meu e aquilo é seu” em právico, dizia-se “eu uso isto e você usa aquilo”. A afirmação de Mitis “você será o homem dele” soou estranha. Shevek olhou-a sem entender.
– Você tem trabalho a fazer – disse Mitis. Ela tinha olhos negros, e eles brilharam como se estivessem com raiva. – Faça-o! – E então saiu, pois um grupo a aguardava no laboratório. Confuso, Shevek baixou os olhos para o pedaço de papel rabiscado. Pensou que Mitis lhe tivesse dito para se apressar e corrigir as equações. Só muito mais tarde compreendeu o que ela estava lhe dizendo.
Na noite anterior à sua partida para Abbenay, seus colegas estudantes lhe ofereceram uma festa de despedida. Festas eram frequentes, ao menor pretexto, mas Shevek surpreendeu-se com a energia gasta naquela em particular e imaginou por que ela tinha sido tão boa. Como não era influenciado por ninguém, nunca soube que ele os influenciava; não tinha ideia do quanto gostavam dele.
Muitos dos seus colegas devem ter economizado várias cotas diárias para fazer a festa. Havia uma quantidade incrível de comida. A encomenda de iguarias foi tão grande que o padeiro do refeitório soltou a imaginação e produziu delícias até então desconhecidas: folhados condimentados, canapés apimentados para acompanhar o peixe defumado, bolos doces fritos e suculentamente gordurosos. Havia coquetéis de frutas, frutas em conserva da região do Mar Keran, pequenos camarões salgados, pilhas de batatas fritas crocantes. A comida farta e saborosa era inebriante. Todos ficaram meio embriagados, e alguns passaram mal.
Houve esquetes e espetáculos, ensaiados e improvisados. Tirin vestiu-se com uma coleção de farrapos da lixeira e perambulou pela festa como o Pobre Urrasti, o Mendigo – uma das palavras ióticas que todo mundo aprendera nas aulas de história.
– Me dá dinheiro – ele suplicava, balançando a mão debaixo dos narizes dos outros. – Dinheiro! Dinheiro! Por que não me dão dinheiro? Vocês não têm? Mentirosos! Proprietários imundos! Exploradores! Olhem toda essa comida, como conseguiram, se não têm dinheiro? – Então se colocou à venda – Me cumprem, me cumprem, só por um pouquinho de dinheiro – adulou.
– Não é cumprem, é comprem – corrigiu Rovab.
– Me cumprem, me comprem, quem se importa? Vejam que lindo corpo eu tenho, não querem? – cantarolou, requebrando os quadris magros e piscando os olhos. Por fim, foi executado publicamente com uma faca de peixe e reapareceu vestido com um roupa normal. Havia harpistas e cantores talentosos entre eles, e houve muita música e dança, porém mais conversa. Todos conversavam como se fossem ficar mudos no dia seguinte.
Quando a noite avançou, jovens amantes começaram a sair para copular, procurando os quartos individuais; outros ficaram com sono e se retiraram para os dormitórios. No fim, sobrou um pequeno grupo em meio aos copos vazios, às espinhas de peixe e às migalhas de petiscos, que eles teriam de limpar antes de amanhecer. Mas ainda faltavam horas para o amanhecer. Conversavam. Mordiscavam isso e aquilo enquanto conversavam. Bedap, Tirin e Shevek estavam ali, mais dois rapazes e três garotas. Conversavam sobre a representação espacial do tempo como ritmos e sobre a relação entre as antigas teorias das Harmonias Numéricas e a Física Temporal Moderna. Conversavam sobre a melhor braçada para o nado de longa distância. Conversavam sobre suas infâncias, se tinham sido felizes. Conversavam sobre o que era a felicidade.
– O sofrimento é um engano – disse Shevek, inclinando-se para a frente, os olhos muito abertos e claros. Ele ainda era magricela, com mãos grandes, orelhas salientes e juntas ossudas, mas, na perfeita saúde e vigor do início da virilidade, era lindo. O cabelo castanho, como o dos outros, era fino e liso, muito comprido e preso com uma fita para não cair na testa. Só um deles usava o cabelo de um modo diferente, uma moça de bochechas elevadas e nariz chato. Ela cortara o cabelo escuro e brilhante no formato de uma touca arredondada. Observava Shevek com um olhar sério e firme. Os lábios estavam lambuzados de comer bolo frito, e tinha uma migalha grudada no queixo.
– O sofrimento existe – disse Shevek, abrindo as mãos. – É real. Posso considerá-lo um engano, mas não posso fingir que não existe ou que um dia deixará de existir. O sofrimento é a condição em que vivemos. E quando ele chega, nós o reconhecemos. Reconhecemos como a verdade. Claro que é certo curar doenças, evitar a fome e a injustiça, como faz o organismo social. Mas nenhuma sociedade pode mudar a natureza da existência. Não podemos evitar o sofrimento. Uma ou outra dor, sim, mas não a Dor. Uma sociedade só pode aliviar o sofrimento social, o sofrimento desnecessário. O resto permanece. A raiz, a realidade. Todos nós aqui conheceremos o sofrimento; se vivermos cinquenta anos, conheceremos a dor por cinquenta anos. E, no fim, morreremos. Esta é a condição em que nascemos. Tenho medo da vida! Às vezes eu... fico aterrorizado. Qualquer felicidade parece trivial. E, no entanto, me pergunto se tudo não passa de um engano... essa busca da felicidade, esse medo da dor... Se, em vez de temer a dor e fugir dela, se pudesse... atravessá-la, ir além dela. Há algo além da dor. É o ser que sofre, e há um lugar onde o ser... acaba. Não sei como expressar. Mas acredito que a realidade... a verdade que eu reconheço no sofrimento, mas não reconheço no conforto e na felicidade... que a realidade da dor não é dor. Se for possível atravessá-la. Se for possível suportá-la até o fim.
– A realidade de nossa vida está no amor, na solidariedade – disse uma garota alta, de olhos benevolentes. – O amor é a verdadeira condição da vida humana.
Bedap balançou a cabeça.
– Não, Shev está certo – ele disse. – O amor é apenas um dos caminhos, e pode dar errado, pode falhar. A dor nunca falha. Mas, por essa razão, não temos muita escolha sobre suportá-la! Suportaremos, queiramos ou não.
A garota de cabelo curto balançou a cabeça com veemência.
– Mas não suportaremos! Um em cada cem, um em cada mil atravessa todo o caminho, atravessa até o fim. O restante de nós continua fingindo que é feliz, ou senão fica entorpecido. Sofremos, mas não o suficiente. Assim, sofremos por nada.
– O que devemos fazer – perguntou Tirin –, dar marteladas nas nossas cabeças por uma hora todos os dias, para termos certeza de que sofremos o suficiente?
– Vocês estão fazendo um culto à dor – disse outro. – A meta de um odoniano é positiva, não negativa. Sofrer é disfuncional, exceto como um aviso do corpo contra o perigo. Psicológica e socialmente, é apenas destrutivo.
– O que motivou Odo senão uma sensibilidade excepcional ao sofrimento, dela e alheio? – retorquiu Bedap.
– Mas todo o princípio de ajuda mútua foi desenvolvido para evitar o sofrimento!
Shevek estava sentado na mesa, as longas pernas pendentes, o rosto intenso e calmo. – Vocês já viram alguém morrer? – perguntou aos outros. A maioria já tinha, num domicílio ou no trabalho voluntário num hospital. Todos, exceto um, já tinham ajudado uma ou duas vezes a enterrar os mortos.
– Houve o caso de um homem quando eu estava no acampamento no Sudeste. Foi a primeira vez que vi uma coisa assim. O motor do carro aéreo estava com algum defeito, ele despencou na decolagem e pegou fogo. O homem foi retirado com o corpo todo queimado. Viveu cerca de duas horas. Não poderia ter sido salvo; não havia motivo para ele viver tanto tempo, nenhuma justificativa para aquelas duas horas. Estávamos esperando que trouxessem anestésicos do litoral. Eu fiquei com ele, junto com duas garotas. Tínhamos abastecido a aeronave. Não havia um médico. Não era possível fazer nada por ele, a não ser ficar ali, ao seu lado. Ele estava em choque, mas consciente. Sentia uma dor terrível, principalmente nas mãos. Acho que ele não sabia que o resto do corpo estava todo carbonizado. Não se podia tocar nele para confortá-lo, a pele e a carne se desprenderiam ao toque, e ele gritaria. Não se podia fazer nada por ele. Não havia ajuda a oferecer. Talvez soubesse que estávamos ali, não sei. Nossa companhia não fez nenhum bem a ele. Não se podia fazer nada por ele. Então eu compreendi... sabem... eu compreendi que não se pode fazer nada por ninguém. Não podemos salvar uns aos outros. Nem a nós mesmos.
– Então o que sobra? Isolamento e desespero! Você está negando a fraternidade, Shevek! – exclamou a garota alta.
– Não... não estou. Estou tentando dizer o que a fraternidade significa realmente. Começa... começa com a dor compartilhada.
– Então onde ela termina?
– Não sei. Não sei ainda.
3
°°°°°
Quando Shevek acordou, após dormir o tempo todo durante sua primeira manhã em Urras, seu nariz estava entupido, a garganta doía e ele tossia muito. Pensou estar resfriado – nem mesmo a higiene odoniana tinha superado o resfriado comum –, mas o médico que aguardava para examiná-lo, um homem idoso e distinto, achou mais provável que fosse uma febre do feno generalizada, uma reação alérgica à poeira e ao pólen alienígenas de Urras. Prescreveu comprimidos e uma injeção, que Shevek aceitou com paciência, e uma bandeja de almoço, que Shevek aceitou com fome. O médico pediu-lhe que permanecesse em seu apartamento e foi embora. Assim que terminou de comer, começou sua exploração de Urras, cômodo por cômodo.
A cama, uma cama imensa de quatro pés, com um colchão muito mais macio do que o do beliche na nave Atento, e roupas de cama complexas, algumas sedosas, outras quentes e grossas, e um monte de travesseiros que pareciam nuvens cúmulos, tinha um cômodo só para ela. O piso era coberto com um tapete macio; havia uma cômoda de madeira lindamente entalhada e polida, e um armário com espaço para as roupas de um dormitório de dez homens. Havia também o grande salão comum com lareira, que ele tinha visto na noite anterior; e um terceiro cômodo, que continha uma banheira, um lavatório e uma privada elaborada. Era evidente que este cômodo servia para seu uso pessoal exclusivo, pois a porta dava para o quarto e ele continha apenas um de cada tipo de instalação, embora cada uma delas fosse de um luxo sensual que ultrapassava em muito o mero erotismo e fazia parte, na visão de Shevek, de um tipo de suprema apoteose excrementícia. Ele passou quase uma hora nesse terceiro cômodo, explorando uma instalação por vez, ficando muito limpo nesse processo. A distribuição da água era maravilhosa. As torneiras permaneciam abertas até serem fechadas; a banheira devia comportar sessenta litros, e a privada utilizava pelo menos cinco litros na descarga. Na verdade, isso não surpreendia. A superfície de Urras continha cinco sextos de água. Até os desertos eram desertos de gelo, nos polos. Não havia necessidade de economia; não havia seca... Mas o que acontecia com as fezes? Ficou remoendo o assunto, ajoelhado ao lado da privada, após examinar o seu mecanismo. Deviam filtrar as fezes da água em uma usina de adubos. Havia comunidades litorâneas em Anarres que utilizavam esse sistema de aproveitamento de resíduos. Ele pretendia perguntar sobre isso, mas nunca teve oportunidade. Havia muitas perguntas que nunca chegou a fazer em Urras.
Apesar da cabeça constipada, sentia-se bem, e inquieto. Os cômodos eram tão quentes que ele protelou o ato de vestir-se, andando nu de lá para cá, com altivez. Foi até as janelas do salão e ficou olhando para fora. O salão era alto. Assustou-se, a princípio, e recuou, não acostumado a edifícios de mais de um andar; era como estar olhando para baixo num dirigível; sentia-se separado do solo, dominante, indiferente. As janelas davam para um bosque que ia até um edifício branco com uma graciosa torre quadrada. Além desse edifício, o campo descia num extenso vale. O vale era todo cultivado, pois as inúmeras manchas de verde que o coloriam eram retangulares. Até onde o verde desaparecia no azul distante, ainda se viam as linhas escuras de alamedas, cercas-vivas ou árvores, uma rede tão delicada como a do sistema nervoso de um corpo vivo. Por fim, colinas elevavam-se bordejando o vale, ondulação azul atrás de ondulação azul, suaves e escuras sob o cinza pálido e uniforme do céu.
Era a vista mais linda que Shevek já vira. A leveza e vitalidade das cores, a mistura do desenho retilíneo humano e dos potentes e fecundos contornos naturais, a variedade e harmonia dos elementos davam a impressão de uma plenitude complexa que ele jamais vira, exceto, talvez, prenunciada numa pequena escala em alguns rostos humanos serenos e pensativos.
Comparado àquilo, qualquer paisagem oferecida por Anarres, mesmo a Planície de Abbenay e as gargantas das Montanhas Ne Theras, era pobre: estéril, árida e incompleta. Os desertos do Sudoeste tinham uma beleza vasta, mas eram hostis, e imemoriais. Até mesmo onde os homens cultivavam a terra de Anarres com mais rigor, a paisagem era como um esboço grosseiro em giz amarelo, comparada àquela plena magnificência de vida, rica de passado e de estações por vir, inesgotável.
Era assim que o mundo devia ser, pensou Shevek.
E em algum lugar, lá fora naquele esplendor azul e verde, algo cantava: uma voz fraca, no alto, começando e parando, incrivelmente meiga e agradável. O que seria? Uma vozinha meiga, silvestre, uma música no ar.
Ficou escutando, e sua respiração prendeu-se na garganta.
Alguém bateu na porta.
– Entre! – disse Shevek.
Um homem entrou, carregando pacotes. Parou no meio da porta. Shevek atravessou a sala, dizendo o próprio nome, no estilo anarresti, e, no estilo urrasti, estendendo a mão.
O homem, de uns 50 anos, de rosto enrugado e cansado, não estendeu a mão, e disse algo do qual Shevek não entendeu uma palavra. Talvez os pacotes o impedissem, mas ele não fez esforço algum para colocá-los em outro lugar e deixar as mãos livres. Seu rosto estava extremamente sério. Era possível que estivesse constrangido.
Shevek, que pensava ter dominado pelo menos os costumes de saudação urrastis, ficou embaraçado.
– Entre – repetiu, e acrescentou, já que os urrastis usavam títulos honoríficos o tempo todo –, senhor!
O homem disparou mais um discurso ininteligível, enquanto movia-se de lado em direção ao quarto. Shevek pegou várias palavras ióticas desta vez, mas não compreendeu o resto. Deu passagem ao camarada, já que ele parecia querer entrar ali. Seria, talvez, um companheiro de quarto? Mas havia apenas uma cama. Shevek desistiu dele e voltou à janela, e o homem entrou a passos rápidos e ficou andando e fazendo ruídos lá dentro por alguns minutos. Exatamente no momento em que Shevek concluíra que o homem trabalhava à noite e usava o aposento durante o dia, um arranjo que se fazia em domicílios temporariamente lotados, ele saiu de novo. Disse algo como “Pronto, senhor” – talvez? – e inclinou a cabeça de um jeito curioso, como se achasse que Shevek, a cinco metros de distância, estivesse prestes a lhe desferir um tapa na cara. O homem foi embora. Shevek ficou parado ao lado das janelas, lentamente se dando conta de que, pela primeira vez na vida, alguém se curvara diante dele.
Entrou no quarto e descobriu que a cama tinha sido arrumada.
Pensativo, ele se vestiu devagar. Estava calçando os sapatos quando ouviu uma nova batida na porta.
Um grupo entrou, de maneira diferente; de maneira normal, pareceu a Shevek, como se tivessem o direito de estar ali, ou em qualquer lugar que quisessem. O homem com os pacotes hesitara, entrara quase de maneira furtiva. No entanto, seu rosto, suas mãos e sua roupa se aproximaram mais da noção que Shevek tinha da aparência de um ser humano normal do que a dos novos visitantes. O homem furtivo se comportara de modo estranho, mas parecia um anarresti. Aqueles quatro se comportavam como anarrestis, mas pareciam, com seus rostos barbeados e belos trajes, criaturas de uma espécie alienígena.
Shevek conseguiu identificar um deles, Pae, e os outros como homens que lhe tinham feito companhia na noite anterior. Ele explicou que não se lembrava do nome deles, e eles se apresentaram de novo: dr. Chifoilisk, dr. Oiie e dr. Atro.
– Ah, caramba! – disse Shevek. – Atro! Prazer em conhecê-lo! – Colocou as mãos nos ombros do idoso e beijou-lhe a bochecha, sem pensar se aquele cumprimento fraterno, comum em Anarres, pudesse ser inaceitável ali.
Atro, entretanto, retribuiu-lhe com um abraço caloroso e ergueu para ele os olhos cinzentos e embaciados. Shevek percebeu que o homem estava quase cego.
– Meu caro Shevek – ele disse. – Bem-vindo a A-Io... Bem-vindo a Urras... Bem-vindo ao lar!
– Há tantos anos nos escrevemos e destruímos as teorias um do outro!
– Você sempre destruiu melhor. Espere, tenho uma coisa para você aqui. – O idoso apalpou os bolsos. Sob o jaleco de veludo da universidade ele usava um paletó; sob este, um colete, sob este, uma camisa e, sob esta, provavelmente mais uma camada. Todos esses trajes, e as calças, continham bolsos. Shevek observava fascinado, enquanto Atro verificava seis ou sete bolsos, todos contendo pertences, antes de encontrar um pequeno cubo de metal amarelo encaixado num pedaço de madeira polida. – Aí está – ele disse, olhando o objeto com dificuldade. – Sua recompensa. O prêmio Seo Oen, você sabe. O dinheiro está na sua conta. Aqui. Com nove anos de atraso, mas antes tarde do que nunca. – Suas mãos tremiam enquanto entregava a coisa para Shevek.
Era pesado; o cubo amarelo era de ouro maciço. Shevek ficou parado, imóvel, segurando-o.
– Não sei você, meu jovem – disse Atro –, mas eu vou me sentar. – Todos se sentaram nas poltronas macias, que Shevek já examinara, intrigado com o material que as revestia, uma coisa marrom não tecida que parecia pele humana. – Quantos anos você tinha nove anos atrás, Shevek?
Atro era o mais eminente físico vivo de Urras. Havia nele não apenas a dignidade de muitas décadas vividas, mas também a segurança brusca de alguém acostumado ao respeito. Nada disso era novo para Shevek. Atro tinha o único tipo exato de autoridade que Shevek reconhecia. Também sentiu prazer ao ser enfim tratado simplesmente pelo nome.
– Eu tinha 29 anos quando terminei o Princípios, Atro.
– Vinte e nove? Meu Deus! Isso o torna o mais jovem a receber o prêmio Seo Oen em mais ou menos um século. Eu só consegui receber o meu depois dos 60... Então, quantos anos você tinha quando me escreveu pela primeira vez?
– Uns 20.
Atro bufou.
– Na época achei que você fosse um homem de 40 anos!
– E Sabul? – Oiie perguntou. Oiie era ainda mais baixo em relação à maioria dos urrastis, que a Shevek pareciam todos baixos; tinha um rosto achatado e afável, e os olhos ovais muito pretos. – Houve um período de seis ou oito anos em que o senhor nunca escreveu, e Sabul manteve contato conosco; mas ele nunca usou o mesmo link de rádio que o senhor. Já nos perguntamos que tipo de relação vocês teriam.
– Sabul é o membro mais graduado do Instituto de Física de Abbenay – disse Shevek. – Eu trabalhava com ele.
– Um rival mais velho; ciumento; mexia nos seus livros; já está claro o suficiente. Nem precisamos de uma explicação, Oiie – disse o quarto homem, Chifoilisk, num tom áspero. Era um homem de meia-idade, moreno e atarracado, com as mãos finas de um trabalhador de gabinete. Era o único entre eles cujo rosto não era totalmente barbeado: tinha deixado alguns pelos eriçados no queixo para combinar com o cabelo curto e cinza. – Não precisa fingir que todos os irmãos odonianos são cheios de amor fraterno – ele disse. – Natureza humana é natureza humana.
Uma saraivada de espirros de Shevek evitou que sua falta de reação parecesse significativa.
– Não tenho lenço – desculpou-se, enxugando os olhos.
– Pegue o meu – disse Atro, tirando um lenço branquíssimo de um dos inúmeros bolsos. Enquanto Shevek pegava o lenço, uma lembrança inoportuna apertou seu coração. Pensou em sua filha Sadik, uma garotinha de olhos escuros, dizendo: “Pode compartilhar o lenço que eu uso”. Essa lembrança, que lhe era tão cara, foi insuportavelmente dolorosa naquele momento. Tentando fugir dela, sorriu ao acaso e disse:
– Sou alérgico ao planeta de vocês. É o que diz o médico.
– Meu Deus, você não vai ficar espirrando assim o tempo todo, vai? – perguntou o velho Atro, examinando seu rosto.
– O seu homem não veio ainda? – perguntou Pae.
– Meu homem?
– O criado. Era para ele ter lhe trazido algumas coisas. Inclusive lenços. Apenas o suficiente para supri-lo enquanto você não puder fazer as próprias compras. Nada selecionado... Receio que haja poucas opções de roupas prontas para um homem da sua altura!
Após Shevek ter compreendido tudo (Pae tinha uma fala arrastada que combinava com seus traços bonitos e delicados), disse:
– É muita gentileza de vocês. Eu me sinto... – Olhou para Atro. – Eu sou, vocês sabem, o Mendigo – disse ao velho, como tinha dito ao dr. Kimoe na nave Atento. – Não pude trazer dinheiro. Não o utilizamos. Não pude trazer presentes, não usamos nada que falte a vocês. Então, venho como um verdadeiro odoniano, “de mãos vazias”.
Atro e Pae lhe asseguraram que ele era um hóspede, não precisava pagar nada, o privilégio era deles.
– Além do mais – disse Chifoilisk, num tom irônico –, é o governo iota que está bancando tudo.
Pae lançou-lhe um olhar severo, mas Chifoilisk não o retribuiu. Em vez disso, olhou Shevek direto nos olhos. Havia em seu rosto moreno uma expressão que ele não fez esforço para esconder, mas que Shevek não conseguiu interpretar: advertência ou cumplicidade?
– Falou o thuviano incorrigível – disse Atro, bufando. – Mas quer dizer, Shevek, que você não trouxe absolutamente nada, nenhum estudo, nenhum trabalho novo? Eu estava ansioso por um livro. Mais uma revolução na física. Para ver esses jovens arrogantes ficarem abismados, como eu fiquei com os Princípios. No que você tem trabalhado?
– Bem, tenho lido Pae... O estudo do dr. Pae sobre o universo homogêneo, sobre o Paradoxo e a Relatividade.
– Tudo muito bem. Saio é a nossa grande estrela atual, sem dúvida. E quem menos duvida é você próprio, hein, Saio? Mas o que isso tem a ver com nosso assunto? Onde está a sua Teoria Temporal Geral?
– Na minha cabeça – disse Shevek, com um sorriso largo e simpático.
Houve uma breve pausa.
Oiie perguntou-lhe se ele tinha visto o trabalho sobre a Teoria da Relatividade de um físico alienígena, Ainsetain, do planeta Terran. Shevek disse que não. Eles estavam intensamente interessados nesse trabalho, exceto Atro, que já ultrapassara a intensidade. Pae correu até seu quarto e pegou uma cópia da tradução para Shevek.
– O trabalho tem centenas de anos, mas há algumas ideias novas nele para nós – ele disse.
– Talvez – disse Atro –, mas nenhum desses fora-do-mundo consegue acompanhar a nossa física. Os hainianos a chamam de materialismo, e os terranos a chamam de misticismo, e ambos acabam desistindo. Não deixe essa euforia passageira por tudo o que é estrangeiro desviá-lo do rumo, Shevek. Eles não têm nada a nos oferecer. Plante suas próprias sementes, como dizia meu pai. – Deu sua bufada senil e levantou-se, alavancando-se para fora da poltrona. – Venha comigo, vamos lá fora dar uma volta no bosque. Não é à toa que você está constipado, engaiolado desse jeito aqui.
– O médico disse para eu ficar aqui dentro do quarto por três dias. Posso ser... infectado? Infeccioso?
– Nunca dê atenção ao que os médicos dizem, meu caro amigo.
– Mas talvez, neste caso, ele deva, dr. Atro – sugeriu Pae, em seu tom calmo e conciliador.
– Afinal, o médico é do governo, não é? – observou Chifoilisk, com evidente malícia.
– O melhor homem que puderam encontrar, tenho certeza – Atro disse, sem achar graça, e foi embora sem insistir mais com Shevek. Chifoilisk o acompanhou. Os dois homens mais jovens permaneceram ali, conversando sobre física, por um longo tempo.
Com imenso prazer, e com aquela mesma sensação de reconhecimento, de encontrar algo do jeito que deveria ser, Shevek descobriu pela primeira vez na vida a conversa entre iguais.
Mitis, embora fosse uma professora esplêndida, jamais conseguira acompanhá-lo nas novas áreas de teoria que ele, incentivado por ela, tinha começado a explorar. Gvarab foi a única pessoa que encontrara com conhecimento e capacidade comparáveis aos dele, mas ele e Gvarab se conheceram tarde demais, quando ela já estava no fim da vida. Desde aqueles tempos, Shevek trabalhara com muitas pessoas de talento, mas, por nunca ter sido membro efetivo do Instituto de Abbenay, não conseguiu levá-las longe o bastante; permaneceram atoladas nos velhos problemas, na clássica Física Sequência. Ele não tivera iguais. Ali, no reino da iniquidade, enfim os encontrara.
Foi uma revelação, uma liberação. Físicos, matemáticos, astrônomos, lógicos, biólogos, estavam todos ali na universidade e vinham até ele, ou ele ia até eles, e conversavam, e novos mundos nasciam de suas conversas. É da natureza da ideia ser comunicada: escrita, falada, realizada. A ideia é como a grama. Anseia pela luz, gosta de multidões, prolifera por cruzamento, cresce melhor para ser pisada.
Mesmo naquela primeira tarde na universidade, com Oiie e Pae, sabia que encontrara algo que desejara desde que, ainda garotos e num nível infantil, ele, Tirin e Bedap passavam metade da noite conversando, provocando e desafiando uns aos outros em voos mentais cada vez mais audaciosos. Recordava-se vividamente de uma dessas noites. Ele viu Tirin dizendo: “Se soubéssemos como Urras é de verdade, talvez alguns de nós quiséssemos ir até lá”. E ele ficara tão chocado com a ideia que pulara em cima de Tirin, e Tir logo recuara, pobre alma condenada, e estivera certo o tempo todo.
A conversa cessara. Pae e Oiie estavam calados.
– Desculpem – ele disse. – A cabeça está pesada.
– Como está a gravidade? – Pae perguntou, com o sorriso charmoso de um homem que, como uma criança esperta, conta com o próprio charme.
– Não percebo – respondeu Shevek. – Só nos... o que é isso?
– Joelhos... articulações dos joelhos.
– Sim, joelhos. A função está prejudicada. Mas vou me acostumar. – Olhou para Pae e depois para Oiie. – Tenho uma pergunta. Mas não quero ser ofensivo.
– Nunca tenha receio disso, senhor! – disse Pae.
– Não tenho certeza se o senhor saberia como nos ofender – disse Oiie. Ele não era um camarada simpático, como Pae. Mesmo conversando sobre física, tinha um estilo evasivo e reservado. No entanto, Shevek sentiu que, sob esse estilo, havia algo para confiar; enquanto que, sob o charme de Pae, o que havia? Bem, não importava. Ele tinha de confiar em todos, e confiaria.
– Onde estão as mulheres?
Pae riu. Oiie sorriu e perguntou:
– Em que sentido?
– Todos os sentidos. Conheci mulheres na festa ontem à noite... cinco, dez... e centenas de homens. Nenhuma delas era cientista, eu acho. Quem eram elas?
– Esposas. Na verdade, uma delas era a minha esposa – disse Oiie, com seu sorriso reservado.
– Onde estão as outras mulheres?
– Ah, não há dificuldade nenhuma quanto a isso, senhor – disse Pae, prontamente. – Só nos diga quais são as suas preferências, e nada seria mais fácil de providenciar.
– Ouvem-se muitas especulações pitorescas sobre os costumes anarrestis, mas acho que conseguimos encontrar qualquer coisa que o senhor tenha em mente – disse Oiie.
Shevek não fazia ideia do que eles estavam falando. Coçou a cabeça:
– Então todos os cientistas daqui são homens?
– Cientistas? – perguntou Oiie, incrédulo.
– Cientistas. – Pae tossiu. – Ah, sim, certo, são todos homens. Existem algumas professoras nas escolas femininas, claro. Mas nunca ultrapassam o nível do Certificado.
– Por que não?
– Não conseguem entender matemática; não têm cabeça para pensamento abstrato; não pertencem ao meio científico. Sabe como é, o que as mulheres chamam de pensamento é feito com o útero! É claro que sempre existem algumas exceções, mulheres inteligentes e detestáveis, com atrofia vaginal.
– Vocês odonianos deixam as mulheres estudarem ciência? – indagou Oiie.
– Bem, elas estão nas ciências, sim.
– Não muitas, espero.
– Bem, cerca da metade.
– Eu sempre digo – disse Pae – que as moças técnicas devidamente orientadas poderiam aliviar boa parte da carga dos homens nos laboratórios. Na verdade, elas são até mais hábeis e rápidas do que os homens em tarefas repetitivas, e mais dóceis... se entediam com menos facilidade. Poderíamos liberar os homens para o trabalho criativo muito mais cedo, se utilizássemos mulheres.
– No meu laboratório, não – disse Oiie. – Deixem que fiquem no lugar delas.
– O senhor encontrou mulheres capazes de trabalho intelectual criativo, dr. Shevek?
– Bem, na verdade foram elas que me encontraram. Mitis, no Poente Norte, era minha professora. Gvarab também; acho que já ouviram falar nela.
– Gvarab era mulher? – perguntou Pae, com surpresa genuína, e riu.
Oiie pareceu não convencido e ofendido.
– Não dá para saber pelos nomes de vocês, é claro – disse friamente. – Vocês fazem questão, suponho, de não fazer distinção entre os sexos.
– Odo era mulher – disse Shevek calmamente.
– Pois é – disse Oiie. Ele não deu de ombros, mas por um triz não deu de ombros. Pae pareceu respeitoso e assentiu com um movimento da cabeça, do mesmo modo que fazia quando o velho Atro balbuciava.
Shevek percebeu que tocara numa animosidade impessoal muito profunda dentro daqueles homens. Aparentemente havia neles, como nas mesas da espaçonave, uma mulher, uma mulher reprimida, silenciada, bestializada, uma fúria enjaulada. Ele não tinha o direito de provocá-los. Eles só conheciam as relações de posse. Estavam possuídos.
– Uma mulher linda e virtuosa – disse Pae – é uma inspiração para nós... a coisa mais preciosa do mundo.
Shevek sentiu-se extremamente desconfortável. Levantou-se e foi até as janelas.
– Seu mundo é muito bonito – ele disse. – Gostaria de poder conhecer mais. Enquanto eu tiver que ficar aqui dentro, vocês podem me trazer livros?
– Claro, senhor! Que tipo de livro?
– História, fotos, contos, qualquer coisa. Talvez livros infantis. Vocês entendem, eu sei muito pouco. Estudamos sobre Urras, mas principalmente sobre a época de Odo. Antes disso são 8 500 anos de história! E depois, desde a Colonização de Anarres, já se passaram cento e cinquenta anos; desde que a última nave trouxe os últimos Colonos... ignorância. Nós os ignoramos; vocês nos ignoram. Vocês são nossa história. Nós somos talvez seu futuro. Quero aprender, não ignorar. Foi por isso que vim. Devemos nos conhecer. Não somos homens primitivos. Nossa moralidade não é mais tribal, não pode ser. Essa ignorância é errada, da qual surgirão erros. Por isso vim aprender.
Ele falou com muita honestidade. Pae assentiu com entusiasmo.
– Exatamente, senhor! Todos nós estamos de pleno acordo com seus objetivos!
Oiie olhou para ele com aqueles olhos pretos, opacos, ovais, e disse:
– Então o senhor vem, basicamente, como um emissário de sua sociedade?
Shevek voltou a sentar-se no banco de mármore ao lado da lareira, que ele já considerava o seu banco, seu território. Ele queria um território. Sentiu a necessidade de cautela. Mas sentia com mais força a necessidade que o fizera atravessar o abismo seco do seu planeta até ali, a necessidade de comunicação, o desejo de derrubar muros.
– Venho – ele disse, com cautela – como representante do Sindicato da Iniciativa, o grupo que tem conversado com Urras pelo rádio nos últimos dois anos. Mas não sou embaixador de nenhuma autoridade, nenhuma instituição. Espero que não tenham me convidado como tal.
– Não – disse Oiie. – Nós convidamos o senhor... Shevek, o físico. Com a aprovação do nosso governo e do Conselho dos Governos Mundiais, é claro. Mas o senhor está aqui como convidado particular da Universidade de Ieu Eun.
– Ótimo.
– Mas não temos certeza se o senhor veio ou não com a aprovação do... – ele hesitou.
Shevek deu um meio sorriso.
– Do meu governo?
– Sabemos que, nominalmente, não existe governo em Anarres. Entretanto, é óbvio que existe uma administração. E supomos que o grupo que o enviou, seu Sindicato, seja uma espécie de facção; talvez uma facção revolucionária.
– Todo mundo em Anarres é revolucionário, Oiie... A rede de administração e gerenciamento chama-se CPD, Coordenação de Produção e Distribuição. Eles são um sistema de coordenação de todos os sindicatos, federações e indivíduos que realizam trabalho produtivo. Eles não governam as pessoas; administram produção. Não têm nenhuma autoridade sobre mim, para me apoiar ou me impedir. Só podem nos dizer a opinião pública sobre nós... onde nos situamos na consciência social. É isso o que vocês querem saber? Bem, meus amigos e eu somos muito desaprovados. A maioria das pessoas de Anarres não quer aprender sobre Urras. Eles temem o seu mundo e não querem nenhum contato com os proprietários. Desculpe se estou sendo mal-educado! Acontece o mesmo aqui, com algumas pessoas, não é? O desprezo, o medo, o tribalismo. Bem, então eu vim para começar a mudar isso.
– Inteiramente por sua própria iniciativa – disse Oiie.
– É a única iniciativa que reconheço – disse Shevek, sorrindo com absoluta honestidade.
Passou os dois dias seguintes conversando com os cientistas que vieram vê-lo, lendo os livros que Pae lhe trouxera e às vezes apenas em pé, parado ao lado das janelas de arco duplo, para contemplar a chegada do verão no grande vale e para ouvir as breves e delicadas conversas soltas no ar lá fora. Pássaros: sabia o nome dos cantores agora e conhecia sua aparência pelas fotografias nos livros, mas sempre que ouvia o canto ou percebia o bater de asas de uma árvore a outra, ficava maravilhado como uma criança.
Tinha esperado sentir-se tão estranho, ali em Urras, tão perdido, alienígena e confuso – e não sentia nada disso. É claro que havia infinitas coisas que não compreendia. Só agora começava a vislumbrar quantas eram essas coisas: aquela sociedade incrivelmente complexa com todas as suas nações, classes, castas, cultos, costumes e sua história magnífica, estarrecedora, interminável. E cada indivíduo que conhecia era um enigma, cheio de surpresas. Mas não eram os egoístas grosseiros e frios que esperava encontrar; eram tão complexos e diversificados quanto a sua cultura, quanto a sua paisagem; e eram inteligentes; e eram gentis. Tratavam-no como um irmão, faziam tudo o que podiam para que ele não se sentisse perdido, não se sentisse um alienígena, para que se sentisse em casa. E, de fato, ele se sentia em casa. Não podia evitá-lo. O planeta inteiro, a suavidade do ar, a luz do sol nas colinas, até mesmo o puxão da gravidade mais pesado em seu corpo lhe asseguravam que ali era, na verdade, a sua casa, o planeta de sua raça; e toda a beleza daquele mundo era sua por herança.
O silêncio, o absoluto silêncio de Anarres: pensava nele à noite. Nenhum pássaro cantava lá. Não havia outras vozes senão vozes humanas. Silêncio, e as terras áridas.
No terceiro dia o velho Atro lhe trouxe uma pilha de jornais. Pae, companhia frequente de Shevek, não disse nada a Atro, mas, quando o velho saiu, disse a Shevek:
– Esses jornais são um lixo, senhor. Divertidos, mas não acredite em nada do que ler neles.
Shevek pegou o primeiro jornal da pilha. Era mal impresso, num papel áspero – o primeiro artefato malfeito que manuseava em Urras. Na verdade, parecia os boletins e relatórios regionais do CPD que serviam de jornais em Anarres, mas o estilo era bem diferente daquelas publicações borradas, práticas e factuais. Era cheio de pontos de exclamação e fotos. Havia uma foto de Shevek em frente à espaçonave, com Pae segurando seu braço e parecendo zangado. PRIMEIRO HOMEM DA LUA!, diziam as letras enormes acima da foto. Fascinado, Shevek continuou a ler.
Seu primeiro passo em Urras! Primeiro visitante da Colônia de Anarres em cento e setenta anos, o dr. Shevek foi fotografado ontem durante a sua chegada a bordo do cargueiro lunar regular que opera no Porto Espacial Peier. O ilustre cientista, ganhador do Prêmio Seo Oen por seus serviços a todas as nações através da ciência, aceitou uma cátedra na Universidade de Ieu Eun, uma honra jamais concedida antes a um fora-do-mundo. Indagado sobre como se sentiu ao ver Urras pela primeira vez, o ilustre cientista respondeu: “É uma grande honra ser convidado a visitar seu lindo planeta. Espero que uma nova era de amizade de todos os cetianos esteja começando agora, em que os planetas gêmeos seguirão juntos em fraternidade”.
– Mas eu nunca disse nada! – Shevek protestou para Pae.
– Claro que não. Não deixamos essa gente chegar perto do senhor. Mas isso não restringe a imaginação de um jornalista alpiste! Eles escrevem que alguém disse o que eles querem que se diga, não importa se aquilo foi dito ou não.
Shevek ficou pensativo.
– Bem – ele disse, enfim –, se eu tivesse dito alguma coisa, teria sido aquilo mesmo. Mas o que significa cetianos?
– Os terranos nos chamam de cetianos. Creio que seja por causa do nome que eles dão ao nosso sol. A imprensa popular tem usado o termo ultimamente, essa palavra está meio que na moda.
– Então, todos os cetianos significa Urras e Anarres juntos?
– Suponho que sim – disse Pae, com nítido desinteresse.
Shevek continuou a ler os jornais. Leu que ele era um homem gigantesco, que não estava barbeado e possuía uma “juba”, seja lá o que isso fosse, de cabelo grisalho, que tinha 37 anos, 43 e 56; que escrevera um excelente trabalho chamado (a grafia dependia do jornal) Principais da Simultaneidade ou Princípios da Simutanidade, que era um embaixador benevolente do governo odoniano, que era vegetariano e que, como todo anarresti, não bebia. Neste ponto caiu na gargalhada e riu até lhe doerem as costelas.
– Caramba! Eles realmente têm imaginação! Acham que vivemos de vapor d’água, como o musgo de rocha?
– Eles querem dizer que o senhor não bebe bebida alcoólica – disse Pae, também rindo. – Se há uma coisa que todo mundo sabe sobre os odonianos, suponho, é que vocês não bebem álcool. Aliás, isso é verdade?
– Algumas pessoas destilam álcool de raiz de holum fermentada para beber. Dizem que libera o inconsciente, como no treinamento das ondas cerebrais. A maioria prefere o treinamento. É muito fácil e não causa a doença. Isso é comum aqui?
– Beber, sim. Não sei essa doença. Como se chama?
– Alcoolismo, eu acho.
– Ah, sei... Mas o que os trabalhadores fazem em Anarres para terem um pouco de diversão, para escaparem juntos das aflições do mundo por uma noite?
Shevek ficou confuso.
– Bem, nós... Não sei. Talvez nossas aflições sejam inescapáveis?
– Excêntrico – disse Oiie, dando um sorriso afável.
Shevek prosseguiu a leitura. Um dos jornais estava numa língua que ele não conhecia, e outro num alfabeto totalmente diferente. Um era de Thu, explicou Pae, e o outro de Benbili, uma nação do hemisfério ocidental. O jornal de Thu era bem impresso e sóbrio no formato; Pae explicou que era uma publicação governamental.
– Aqui em A-Io, sabe, as pessoas cultas obtêm as notícias no telefax, no rádio, na televisão e nos semanários. Esses jornais são lidos quase exclusivamente pelas classes inferiores... e são escritos por semiletrados, como o senhor pode ver. Temos total liberdade de imprensa em A-Io, o que significa, inevitavelmente, que temos muito lixo. O jornal thuviano é muito mais bem escrito, mas relata apenas os fatos que o Comitê Central Thuviano quer ver relatados. A censura é absoluta em Thu. O Estado é tudo, e tudo é pelo Estado. Dificilmente o lugar para um odoniano, hein, senhor.
– E este jornal?
– Não faço a menor ideia. Benbili é um país do tipo retrógrado. Sempre tendo revoluções.
– Um grupo de pessoas de Benbili nos enviou uma mensagem pelo comprimento de onda do Sindicato, pouco antes de eu partir de Abbenay. Chamavam a si mesmos de odonianos. Existem esses grupos aqui em A-Io?
– Não, nunca ouvi falar, dr. Shevek.
O muro. Shevek, àquela altura, reconhecia o muro quando deparava com ele. O muro era o charme, a cortesia e a indiferença daquele jovem.
– Acho que você tem medo de mim, Pae – ele disse, de modo abrupto, mas cordial.
– Medo do senhor?
– Porque sou, pela minha própria existência, uma contestação da necessidade do Estado. Mas o que há para temer? Não vou lhe fazer mal, Saio Pae, você sabe. Sou totalmente inofensivo... Escute, não sou doutor. Não usamos títulos. Eu me chamo Shevek.
– Eu sei, desculpe, senhor. Em nossos termos parece desrespeitoso, entende? Não parece certo. – Ele se desculpou de maneira cativante, esperando perdão.
– Você não consegue me reconhecer como um igual? – Shevek perguntou, observando-o sem perdão nem raiva.
Pae, pela primeira vez, ficou constrangido.
– Mas o senhor é, realmente, o senhor sabe, um homem importante...
– Não há motivos para você mudar seus hábitos por minha causa – disse Shevek. – Não importa. Achei que você ficaria contente em se livrar do desnecessário, apenas isso.
Três dias de confinamento deixaram Shevek carregado de energia excedente, e quando foi liberado exauriu seus acompanhantes com a ânsia em ver tudo de uma vez. Levaram-no à universidade, uma cidade em si, 16 mil estudantes e o corpo docente. Com seus dormitórios, refeitórios, teatros, salas de reunião e por aí afora, não era muito diferente da comunidade odoniana, exceto por ser muito antiga, ser exclusivamente masculina, ser incrivelmente luxuosa e por não ter uma organização federativa, mas hierárquica, de cima para baixo. Mesmo assim, pensou Shevek, tinha a atmosfera de uma comunidade. Ele tinha de lembrar a si mesmo das diferenças.
Levaram-no a um passeio no campo em carros alugados, máquinas esplêndidas de uma elegância bizarra. Não havia muitos deles nas estradas: o aluguel era caro, e poucas pessoas possuíam carros particulares, pois os impostos eram pesados. Todos esses luxos, que, se permitidos livremente ao público tenderiam a drenar recursos naturais insubstituíveis ou sujar o ambiente com refugos, eram rigorosamente controlados por regulação ou taxação. Seus guias alongaram-se no assunto, com certo orgulho. A-Io guiara o mundo por séculos, disseram, em matéria de controle ecológico e economia de recursos naturais. Os excessos do Nono Milênio há muito eram uma página virada da história, e seu único efeito duradouro era a escassez de certos metais, que, felizmente, podiam ser importados da Lua.
Viajando de carro ou de trem, ele viu aldeias, fazendas, cidades; fortalezas dos dias feudais; ruínas das torres da antiga capital de um império de 4 400 anos. Viu as terras cultivadas, os lagos e as colinas da Província de Avan, o coração de A-Io, e no horizonte setentrional os picos da Cordilheira Meitei, brancos, gigantescos. A beleza da terra e o bem-estar do povo permaneciam uma eterna maravilha para ele. Os guias estavam certos: os urrastis sabiam usar o planeta. Quando criança, ensinaram-no que Urras era uma massa podre de desigualdade, iniquidade e desperdício. Mas todas as pessoas que conhecia, todas as pessoas que via, mesmo na menor aldeia do interior, estavam bem-vestidas, bem alimentadas e, contrariando suas expectativas, eram trabalhadoras. Não ficavam à toa, aguardando ordens para fazer as coisas. Assim como os anarrestis, estavam simplesmente ocupadas fazendo as coisas. Isso o espantou. Tinha presumido que, se se retirasse o incentivo natural do ser humano de trabalhar – sua iniciativa, sua energia criativa espontânea – e se substituísse por motivação e coerção externas, ele se tornaria um trabalhador preguiçoso e negligente. Mas nenhum trabalhador negligente manteria aquelas agradáveis terras cultivadas, ou fabricaria os soberbos carros e os confortáveis trens. A atração e a compulsão pelo lucro era, evidentemente, um substituto muito mais efetivo à iniciativa natural do que o tinham levado a crer.
Teria gostado de conversar com algumas daquelas pessoas de aparência robusta e respeitável que viu nas pequenas cidades, para lhes perguntar, por exemplo, se elas se consideravam pobres; pois, se aqueles fossem os pobres, ele teria de revisar seu conceito da palavra. Mas nunca parecia haver tempo, com tudo o que os guias queriam que ele visse.
As outras grandes cidades de A-Io eram muito distantes para se visitar em apenas um dia de passeio, mas levaram-no com frequência a Nio Esseia, a cinquenta quilômetros da universidade. Uma série de recepções foi realizada ali em sua homenagem. Ele não as apreciava muito, pois de modo algum correspondiam à concepção que ele fazia de uma festa. Todos eram muito educados e conversavam bastante, mas sobre nada interessante; e sorriam tanto que pareciam ansiosos. Mas suas roupas eram lindas; de fato, pareciam colocar a frivolidade que faltava às suas maneiras em suas roupas, sua comida, em todas as coisas diferentes que bebiam, e nos opulentos móveis e ornamentos pelos salões dos palácios onde se realizavam as recepções.
Mostraram-lhe os marcos de Nio Esseia: uma cidade de 5 milhões de habitantes – um quarto da população inteira de Anarres. Levaram-no à Praça do Capitólio e mostraram-lhe as altas portas de bronze do Diretório, sede do governo de A-Io; permitiram-lhe acompanhar um debate no Senado e uma reunião de um Comitê dos Diretores. Levaram-no ao zoológico, ao Museu Nacional, ao Museu da Ciência e da Indústria. Levaram-no a uma escola, onde crianças graciosas de uniformes azuis e brancos cantaram o hino nacional de A-Io para ele. Levaram-no para visitar uma fábrica de componentes eletrônicos, uma usina siderúrgica totalmente automatizada e uma usina de fusão nuclear, para que ele visse a eficiência com que a economia proprietária operava o suprimento de energia e manufatura. Levaram-no a um novo conjunto habitacional feito pelo governo, para que ele visse como o Estado cuidava do povo. Levaram-no a um passeio de barco pelo Estuário de Sua, lotado de navios oriundos de todas as partes do planeta. Levaram-no às Supremas Cortes de Justiça, e ele passou um dia inteiro ouvindo casos civis e criminais sendo julgados, uma experiência que o deixou desnorteado e estarrecido; mas insistiram que ele deveria ver o que havia para ser visto e ser levado aonde quer que desejasse ir. Quando ele perguntou, com certo retraimento, se poderia ver o lugar onde Odo estava enterrada, eles o conduziram direto para o antigo cemitério no bairro Trans-Sua. Até autorizaram que os jornalistas dos jornais infames o fotografassem lá, parado à sombra dos grandes e antigos salgueiros, olhando o túmulo simples e bem cuidado:
Laia Asieo Odo
698-769
Ser todo é ser parte;
a verdadeira viagem é o retorno.
Levaram-no a Rodarred, sede do Conselho dos Governos Mundiais, para discursar ao plenário daquela instituição. Esperava conhecer ou pelo menos ver alienígenas ali, os embaixadores de Terran ou de Hain, mas o planejamento rígido da agenda de eventos não lhe permitiu. Preparara meticulosamente seu discurso, um apelo à livre comunicação e reconhecimento mútuo entre o Novo e o Velho Mundo. O discurso foi recebido com uma ovação de dez minutos. Os semanários respeitáveis comentaram-no com aprovação, chamando-o de “um desinteressado gesto moral de fraternidade por um grande cientista”, mas não citaram nenhuma passagem dele, nem os jornais populares. Na verdade, apesar da ovação, Shevek teve a sensação esquisita de que ninguém o escutara.
Concederam-lhe muitos privilégios e acessos livres: aos Laboratórios de Pesquisa da Luz, aos Arquivos Nacionais, aos Laboratórios de Tecnologia Nuclear, à Biblioteca Nacional em Nio, ao Acelerador em Meafed, à Fundação de Pesquisa Espacial em Drio. Embora tudo o que visse em Urras o fizesse querer ver mais, ainda assim, várias semanas de turismo bastavam: era tudo tão fascinante, surpreendente e maravilhoso que, no fim, tornou-se opressivo. Queria estabilizar-se na universidade, trabalhar e refletir sobre tudo por um tempo. Mas, como último dia de passeio, pediu para visitar a Fundação de Pesquisa Espacial. Pae ficou muito satisfeito quando ele fez esse pedido.
Muito do que vira recentemente causou-lhe assombro por ser muito antigo, ter séculos de idade, até milênios. A Fundação, ao contrário, era nova: construída nos últimos dez anos, no estilo opulento e elegante da época. A arquitetura era dramática. Grandes massas de cor foram utilizadas. Alturas e distâncias eram exageradas. Os laboratórios eram espaçosos e arejados, as fábricas anexas e as oficinas mecânicas ficavam protegidas atrás de esplêndidos pórticos de arcos e colunas em estilo neo-saetano. Os hangares eram imensas cúpulas multicoloridas, translúcidas e fantásticas. Os homens que trabalhavam ali, em contraste, eram muito calmos e sérios. Afastaram Shevek de seus acompanhantes e mostraram-lhe toda a Fundação, inclusive cada estágio do sistema de propulsão estelar experimental em que estavam trabalhando, desde os computadores e as pranchetas de desenho até uma nave semiacabada, enorme e surreal à luz laranja, violeta e amarela dentro do vasto hangar geodésico.
– Vocês têm tanta coisa – Shevek disse ao engenheiro que se encarregara dele, um homem chamado Oegeo. – Têm tanto em que trabalhar e trabalham tão bem. Isso é magnífico... a coordenação, a cooperação, a grandiosidade da empreitada.
– Vocês não poderiam tocar nenhum projeto nessa escala de onde o senhor vem, não é? – disse o engenheiro, com um meio sorriso.
– Naves espaciais? Nossa frota espacial são as naves que levaram os Colonos de Urras... construídas aqui em Urras... há quase dois séculos. A construção de um simples navio para transporte de grãos, de uma barcaça, exige um ano de planejamento e um grande esforço de nossa economia.
Oegeo assentiu com um movimento da cabeça.
– Bem, é verdade que temos os produtos. Mas, sabe, o senhor é quem pode nos dizer quando descartar esse trabalho todo... jogá-lo fora.
– Jogá-lo fora? Como assim?
– Viagem mais rápida que a luz – disse Oegeo. – Salto temporal. A velha física diz que não é possível. Os terranos dizem que não é possível. Mas os hainianos, que afinal de contas inventaram a propulsão que utilizamos hoje, dizem que é possível, só que não sabem como fazer, pois estão aprendendo Física Temporal conosco. É evidente que, se a solução está no bolso de alguém nos mundos conhecidos, dr. Shevek, é no seu.
Shevek olhou para ele com distanciamento, os olhos claros, firmes e luminosos.
– Sou um teórico, Oegeo, não projetista.
– Se o senhor nos fornecer a teoria, a unificação da Sequência e da Simultaneidade num campo geral de Teoria Temporal, nós projetaremos as naves. E chegaremos a Terran, ou Hain, ou a outra galáxia no mesmo instante em que partirmos de Urras! Aquele tubo – e direcionou os olhos para o assombroso esqueleto da nave semiconstruída sob os feixes de luz violeta e laranja do hangar – será tão ultrapassado quanto um carro de boi.
– Vocês sonham como constroem: de modo soberbo – disse Shevek, ainda retraído e austero. Havia muito mais coisas que Oegeo e os outros queriam lhe mostrar e discutir com ele, mas ele não demorou a dizer, com a simplicidade que excluía qualquer intenção de ironia: – Acho que é melhor vocês me levarem de volta aos meus protetores.
Assim fizeram; despediram-se com mútua cordialidade. Shevek entrou no carro, mas logo saiu de novo.
– Eu estava esquecendo – disse. – Temos tempo de ver mais uma coisa em Drio?
– Não há mais nada em Drio – disse Pae, educado como sempre e tentando ocultar o aborrecimento por conta da escapada de cinco horas de Shevek entre os engenheiros.
– Gostaria de ver o forte.
– Que forte, senhor?
– Um antigo castelo da época dos reis. Foi usado depois como prisão.
– Qualquer coisa assim teria sido demolida. A Fundação reconstruiu a cidade inteira.
Quando estavam dentro do carro e o motorista estava fechando a porta, Chifoilisk (outra provável causa do mau humor de Pae) perguntou:
– Por que queria ver mais um castelo, Shevek? Pensei que já tivesse visto velhas ruínas o suficiente por um bom tempo.
– O forte em Drio foi onde Odo passou nove anos – respondeu Shevek. Seu rosto estava severo, como estivera desde que conversou com Oegeo. – Após a Insurreição de 747. Foi lá que ela escreveu as Cartas do Cárcere e a Analogia.
– Receio que tenha sido demolido – Pae disse, solidário. – Drio era uma espécie de cidade moribunda, e a Fundação simplesmente limpou tudo e começou do nada.
Shevek assentiu com um movimento da cabeça. Mas enquanto o carro percorria uma estrada à beira de um rio em direção à saída para Ieu Eun, passou por um penhasco na curva do rio Seisse, e sobre o penhasco havia uma construção, pesada, em ruínas, implacável, com torres quebradas de pedra preta. Nada poderia ser menos semelhante às belas e alegres construções da Fundação de Pesquisa Espacial, as cúpulas espetaculares, as fábricas iluminadas, os gramados e caminhos bem cuidados. Nada poderia ter feito tudo isso parecer tanto pedaços de papel colorido.
– Acredito que aquilo seja o forte – comentou Chifoilisk, com a habitual satisfação em fazer comentários sem tato quando são menos desejados.
– Totalmente em ruínas – disse Pae. – Deve estar vazio.
– Quer parar e dar uma olhada, Shevek? – perguntou Chifoilisk, pronto para bater no vidro do motorista.
– Não – respondeu Shevek.
Tinha visto o que queria ver. Ainda havia um forte em Drio. Não precisava entrar nele e procurar pelos corredores em ruínas a cela onde Odo passara nove anos. Sabia como era uma cela de prisão.
Ergueu os olhos, o rosto ainda severo e impassível, para as paredes escuras e pesadas que agora avultavam quase acima do carro. Estou aqui há muito tempo, dizia o forte, e ainda estou aqui.
Quando voltou aos seus aposentos, após o jantar no Refeitório dos Decanos, sentou-se sozinho ao lado da lareira apagada. Era verão em A-Io, o dia mais longo do ano se aproximava, e, embora passasse das oito horas, ainda não escurecera. O céu além dos arcos das janelas ainda mostrava um tom de cor de luz do dia, um azul puro e delicado. O ar estava ameno, com cheiro de grama cortada e terra molhada. Havia uma luz na capela, do outro lado do bosque, e um leve som de música naquele ar de brisa leve. Não de pássaros cantando, mas música humana. Shevek escutou. Alguém estava praticando as Harmonias Numéricas no harmônio da capela. As harmonias eram tão familiares a Shevek quanto a qualquer urrasti. Odo não tentara renovar as relações básicas da música quando renovou as relações dos homens. Ela sempre respeitara o necessário. Os Colonos de Anarres deixaram as leis do homem para trás, mas levaram consigo as leis da harmonia.
O salão calmo estava sombrio e silencioso, escurecendo. Shevek olhou à sua volta, os arcos duplos perfeitos das janelas, os cantos levemente cintilantes do assoalho, a curva firme e obscura da chaminé de pedra, as paredes almofadadas, admiráveis em sua proporção. Era uma sala linda e humana. Era uma sala muito antiga. Disseram-lhe que aquela Casa dos Decanos fora construída no ano 540, há quatrocentos anos, duzentos e trinta anos antes da Colonização de Anarres. Gerações de estudiosos moraram, trabalharam, conversaram, pensaram, dormiram e morreram naquele cômodo antes mesmo do nascimento de Odo. As Harmonias Numéricas há séculos flutuavam pelo gramado, através das folhas escuras do bosque. Estou aqui há muito tempo, a sala dizia a Shevek, e ainda estou aqui. O que você está fazendo aqui?
Ele não tinha resposta. Não tinha nenhum direito a toda a graça e abundância daquele mundo, conquistadas e mantidas pelo trabalho, pela devoção e pela fidelidade de seu povo. O Paraíso é para os que constroem o Paraíso. Ele não fazia parte daquilo. Era um desviado, de uma raça que renegara o seu passado, a sua história. Os Colonos de Anarres deram as costas ao Velho Mundo e seu passado, optando apenas pelo futuro. Mas, tão certo quanto o futuro se torna passado, o passado se torna futuro. Renegar é não realizar. Os odonianos que deixaram Urras erraram; erraram, em sua coragem desesperada, ao renegar sua história, ao renunciar à possibilidade de retorno. O explorador que não retorna ou não manda de volta suas naves para contar o que viu não é explorador, é só um aventureiro; e seus filhos nascem no exílio.
Ele passara a amar Urras, mas de que adiantava esse amor ardente? Ele não fazia parte daquele mundo, nem do mundo em que nascera.
A solidão, a certeza do isolamento que sentira na primeira hora a bordo da nave Atento ressurgiu nele e afirmou-se como sua verdadeira condição, ignorada, reprimida, mas absoluta.
Estava sozinho ali porque viera de uma sociedade autoexilada. Sempre estivera sozinho em seu próprio mundo porque se exilara de sua sociedade. Os Colonos tinham dado um passo para fora. Ele dera dois. Estava sozinho porque assumira o risco metafísico.
E tinha sido tolo o bastante para achar que seria capaz de unir dois mundos aos quais não pertencia.
O azul do céu noturno do lado de fora das janelas atraiu seus olhos. Além da vaga escuridão da folhagem e da torre da capela, acima da linha escura das colinas, que à noite sempre pareciam menores e mais remotas, uma luz crescia, uma luminosidade ampla e suave. A lua está subindo, pensou ele, com uma grata sensação de familiaridade. Não há ruptura na totalidade do tempo. Tinha visto a lua subir quando era bebê, da janela do domicílio na Campina Vasta, com Palat; sobre as colinas de sua infância; sobre a planície seca da Poeira; sobre os telhados de Abbenay, com Takver a contemplá-la ao seu lado.
Mas não tinha sido essa lua.
As sombras o envolveram, e ele permaneceu sentado, imóvel, enquanto Anarres surgia acima das colinas alienígenas, uma lua cheia, salpicada de cor parda e branca-azulada, bruxuleante. A luz de seu planeta encheu suas mãos vazias.
4
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O sol poente brilhando no rosto de Shevek o acordou, enquanto o dirigível, transpondo os últimos picos das Montanhas Ne Theras, virava para o sul. Ele dormira a maior parte do dia, o terceiro de sua longa jornada. A noite de sua festa de despedida estava a meio mundo para trás. Bocejou, esfregou os olhos e sacudiu a cabeça, tentando livrar os ouvidos do ronco intenso do motor do dirigível; já completamente acordado, percebeu que a jornada estava quase no fim, que se aproximavam de Abbenay. Pressionou o rosto na janela empoeirada e, de fato, lá embaixo, entre os dois cumes baixos e desbotados, havia um grande campo murado, o Porto. Ficou olhando ansioso, tentando ver se havia alguma nave na plataforma. Apesar de desprezível, Urras era outro planeta; ele queria ver a nave de outro planeta, uma viajante do terrível abismo seco, uma coisa feita por mãos alienígenas. Mas não havia nenhuma nave no Porto.
Os cargueiros de Urras só vinham oito vezes por ano e permaneciam ali apenas o tempo suficiente para carregar e descarregar. Não eram visitantes bem-vindos. Na verdade, eram, para alguns anarrestis, uma humilhação perpetuamente renovada.
Traziam óleos fósseis e derivados de petróleo, certas peças delicadas de máquinas e componentes eletrônicos que a manufatura anarresti não estava aparelhada para fornecer, e com frequência uma nova variedade de árvore frutífera ou semente para testes. Levavam para Urras um grande carregamento de mercúrio, cobre, alumínio, urânio, estanho e ouro. Para eles, era um bom negócio. A distribuição das cargas oito vezes por ano era a função mais prestigiada do Conselho dos Governos Mundiais urrasti e o principal evento do mercado de ações mundial de Urras. Na realidade, o Mundo Livre de Anarres era uma colônia mineradora de Urras.
Esse fato provocava rancor. A cada geração, todos os anos, nos debates do CDP em Abbenay, havia protestos veementes: “Por que continuamos a fazer transações de negócios exploradores com esses proprietários que promovem guerras?” E cabeças mais calmas sempre davam a mesma resposta: “Custaria mais caro aos urrastis extrair eles próprios o minério; por isso não nos invadem. Mas, se rompêssemos o acordo comercial, usariam a força”. Era difícil, entretanto, para um povo que nunca pagava nada em dinheiro, entender a psicologia do custo, o argumento do mercado. Sete gerações de paz não haviam trazido confiança.
Portanto, o posto de trabalho chamado Defesa nunca precisava chamar voluntários. O trabalho era tão monótono que não se chamava trabalho em právico, que usava a mesma palavra para trabalho e diversão, mas kleggich, labuta. Trabalhadores da Defesa tripulavam as doze velhas naves interplanetárias, efetuando reparos e mantendo-as em órbita como uma rede de proteção; esquadrinhavam lugares remotos com radar e radiotelescópios; realizavam tarefas enfadonhas no Porto. E, mesmo assim, sempre havia uma fila de espera de voluntários. Por mais pragmática que fosse a moralidade absorvida por um jovem anarresti, a vida transbordava nele, exigindo altruísmo, sacrifício pessoal e espaço para o gesto absoluto. Solidão, vigilância, perigo, naves espaciais: tudo isso oferecia a sedução do romantismo. Era puro romantismo o que mantinha Shevek achatando o nariz contra a janela até o Porto vazio ficar para trás do dirigível, e isso o decepcionou, pois não vira um cargueiro encardido de minério na plataforma de lançamento.
Bocejou de novo, se espreguiçou e olhou para fora, para a frente, para ver o que devia ser visto. O dirigível estava transpondo o último pico baixo das Ne Theras. Diante dele, para o sul a partir dos braços das montanhas, brilhando ao sol da tarde, estendia-se em declive uma grande baía verde.
Ele olhou-a maravilhado, do mesmo modo que seus antepassados a tinham olhado, seis mil anos antes.
No Terceiro Milênio em Urras, os sacerdotes astrônomos de Serdonou e Dhun observaram as estações mudarem o brilho castanho do Outro Mundo e deram nomes místicos às planícies, às cordilheiras e aos mares que refletiam o sol. Uma determinada região que verdejava antes de todas as outras no ano novo lunar recebeu o nome de Ans Hos, o Jardim da Mente: o Éden de Anarres.
Nos milênios seguintes, telescópios comprovaram que os antigos astrônomos estavam certos; e a primeira nave tripulada à Lua pousou ali naquele lugar verde entre as montanhas e o mar.
Mas o Éden de Anarres revelou-se árido, frio e ventoso, e o restante do planeta era pior. A vida ali não evoluíra além de peixes e plantas sem flores. O ar era rarefeito, como o ar de Urras em grandes altitudes. O sol queimava, o vento congelava, a poeira sufocava. Durante duzentos anos após o primeiro pouso, Anarres foi explorado, mapeado, examinado, mas não colonizado. Por que partir para um deserto uivante quando havia espaço de sobra nos vales graciosos de Urras?
Mas suas minas foram exploradas. As eras de autodevastação no Nono e início do Décimo Milênio esvaziaram os veios de Urras; e, à medida que se aperfeiçoaram os foguetes, tornou-se mais barato explorar a Lua do que extrair os metais necessários em áreas profundas ou na água do mar. No ano urrasti de IX-738, fundou-se uma colônia ao pé das Montanhas Ne Theras, onde se extraía mercúrio no velho Ans Hos. Chamavam o lugar de Cidade de Anarres. Não era uma cidade, não havia mulheres. Os homens se alistavam para o trabalho de dois ou três anos como mineiros ou técnicos e depois voltavam para o mundo real.
A Lua e seus mineiros estavam sob a jurisdição do Conselho dos Governos Mundiais, mas, do outro lado da Lua, no hemisfério oriental, a nação Thu ocultava um pequeno segredo: uma base de foguetes e uma colônia de mineiros de ouro, com suas esposas e filhos. Eles realmente viviam na Lua, mas ninguém sabia, exceto o governo de Thu. Foi o colapso desse governo no ano de 771 que levou à proposta, no Conselho dos Governos Mundiais, de doar a Lua à Sociedade Internacional de Odonianos – comprando-os com um mundo antes que eles fatalmente minassem a autoridade da lei e a soberania nacional de Urras. A Cidade de Anarres foi evacuada e, em meio ao tumulto em Thu, os dois últimos foguetes foram enviados às pressas para retirar os mineiros de ouro. Nem todos quiseram voltar. Alguns gostavam do deserto uivante.
Por mais de vinte anos, as doze naves concedidas aos Colonos Odonianos pelo Conselho dos Governos Mundiais iam e vinham entre os dois mundos, até que os milhões de almas que escolheram a nova vida tivessem atravessado o abismo seco. Então o porto foi fechado para imigração, ficando aberto apenas para cargueiros espaciais do Acordo Comercial. Àquela altura, a Cidade de Anarres possuía 100 mil habitantes e recebera um novo nome, Abbenay, que significava, na nova língua da nova sociedade, Mente.
A descentralização fora um elemento essencial nos planos de Odo para a sociedade que ela não viveu para ver fundada. Ela não tinha nenhuma intenção de tentar desurbanizar a civilização. Apesar de sugerir que o limite natural ao tamanho de uma comunidade fosse a dependência de sua própria região imediata para o abastecimento de alimentação básica e energia, ela pretendia que todas as comunidades se conectassem através de redes de comunicação e transporte, para que produtos e ideias chegassem aonde fossem necessários, e a administração das coisas pudesse funcionar com rapidez e facilidade. Nenhuma comunidade deveria ser excluída do câmbio e do intercâmbio. Mas as redes não deveriam ser operadas de cima para baixo. Não haveria um controle central, uma capital, um estabelecimento para perpetuar a engrenagem da burocracia e o impulso de dominação de indivíduos ávidos por se tornarem comandantes, patrões, chefes de Estado.
Seus planos, entretanto, eram baseados no solo generoso de Urras. No árido planeta Anarres, as comunidades tiveram de se espalhar amplamente em busca de recursos, e poucas puderam se tornar autossustentáveis, por mais que reduzissem suas noções do que era necessário para seu sustento. De fato, reduziram drasticamente, mas havia um limite mínimo que se recusaram a ultrapassar; não regressariam ao tribalismo pré-urbano, pré-tecnológico. Sabiam que seu anarquismo era produto de uma civilização altamente evoluída, de uma cultura complexa e diversificada, de uma economia estável e de uma tecnologia altamente industrializada, que poderia manter a alta produção e a rápida distribuição de mercadorias. Por maiores que fossem as distâncias que as separavam, as Colônias permaneceram fiéis ao ideal de organicismo complexo. Primeiro construíram as estradas, depois as casas. Os recursos e produtos especiais de cada região eram permutados continuamente com os de outras, num intricado processo de equilíbrio: o equilíbrio da diversidade característico da vida, da ecologia natural e social.
Mas, como diziam no modo analógico, não se pode ter um sistema nervoso sem pelo menos um gânglio e, de preferência, um cérebro. Era preciso haver um centro. Os computadores que coordenavam a administração das coisas, a divisão de trabalho, a distribuição de mercadorias e as federações centrais da maioria dos sindicatos trabalhistas ficavam em Abbenay, desde o início. E, desde o início, os Colonos estavam cientes de que essa inevitável centralização trazia uma ameaça permanente, a ser combatida pela vigilância permanente.
Ó, criança Anarquia, promessa infinita
infinita cautela
escuto, escuto na noite
junto ao berço, profundo como a noite
se está tudo bem com a criança
Pio Atean, que adotou o nome právico de Tober, escreveu esses versos no ano 14 da Colonização. Os primeiros esforços dos odonianos em expressar sua nova língua e seu novo mundo por meio da poesia foram formais, canhestros, comoventes.
Abbenay, a mente e o centro de Anarres, estava ali, agora, diante do dirigível, na grande planície verde.
Aquele verde brilhante e intenso dos campos era inconfundível: a cor não era nativa de Anarres. Somente ali e nos litorais quentes do Mar Keran floresciam as sementes do Velho Mundo. Nos outros lugares, as plantações básicas eram de holum rasteira e mene-capim pálido.
Quando Shevek tinha 9 anos, seu trabalho escolar vespertino fora, por vários meses, cuidar de plantas ornamentais da comunidade da Campina Vasta – espécies exóticas e delicadas que precisavam de alimento e banhos de sol, como os bebês. Ele auxiliara um velhinho na tarefa tranquila e minuciosa, gostara dele, gostara das plantas, da terra e do trabalho. Quando viu a cor da Planície de Abbenay, lembrou-se do velhinho, do cheiro do adubo de óleo de peixe e da cor dos primeiros brotos nos pequenos galhos despidos, aquele verde claro e vigoroso.
Viu ao longe, entre os campos vívidos, uma longa mancha branca, como sal espalhado, que se dividiu em cubos quando o dirigível se aproximou.
Um grupo de clarões ofuscantes no extremo leste da cidade o fez piscar e ver pontos pretos por um instante: os grandes espelhos parabólicos que forneciam energia solar para as refinarias de Abbenay.
O dirigível pousou num depósito de cargas no extremo sul da cidade, e Shevek saiu pelas ruas da maior cidade do mundo.
Eram ruas largas e limpas. Não havia sombras, pois Abbenay ficava a menos de trinta graus ao norte do equador, e todos os edifícios eram baixos, exceto as torres esparsas e potentes das turbinas eólicas. O sol brilhava num céu firme, escuro, azul-violeta. O ar era claro e limpo, sem fumaça ou umidade. Havia uma vivacidade nas coisas, uma firmeza de formas e ângulos, uma limpidez. Tudo se distinguia em separado, por si mesmo.
Os elementos que constituíam Abbenay eram os mesmos de qualquer outra comunidade odoniana, repetidos muitas vezes: oficinas, fábricas, domicílios, dormitórios, centros de aprendizagem, auditórios, distribuidores, depósitos, refeitórios. Os edifícios maiores eram quase sempre agrupados em volta de praças abertas, conferindo à cidade uma textura celular básica: era uma subcomunidade ou um bairro após o outro. Indústria pesada e fábricas de processamento de alimentos tendiam a se agrupar nos subúrbios da cidade, e o padrão celular se repetia, visto que indústrias similares quase sempre ficavam lado a lado em determinada rua ou praça. O primeiro desses lugares por onde Shevek caminhou tinha uma série de praças, o bairro têxtil, repleto de fábricas processadoras de fibra de holum, tecelagens, fábrica de tinturas, distribuidores de tecidos e roupas; no centro de cada praça havia uma pequena floresta de mastros amarrados de cima a baixo com bandeiras e flâmulas de todas as cores da arte dos tintureiros, orgulhosamente proclamando a indústria local. Os prédios da cidade eram muito parecidos, simples, integralmente feitos de pedra ou de cimento-espuma moldado. Alguns pareceram muito grandes aos olhos de Shevek, mas quase todos tinham apenas um andar, devido à frequência dos terremotos. Pelo mesmo motivo as janelas eram pequenas, feitas de um silício plástico rígido que não estilhaçava. Eram pequenas, mas eram muitas, pois não se fornecia luz artificial desde uma hora antes do amanhecer até uma hora após o pôr do sol. Tampouco se provinha aquecimento quando a temperatura externa ultrapassava doze graus Celsius. Não que faltasse energia em Abbenay, com suas turbinas eólicas e geradores diferenciais de temperatura terrestre utilizados no aquecimento, mas o princípio da economia orgânica era tão essencial ao funcionamento da sociedade que afetava profundamente a ética e a estética. “Excesso é excremento”, escreveu Odo na Analogia. “Excremento retido no corpo é veneno.”
Abbenay era livre de veneno: uma cidade simples, luminosa, de cores claras e firmes, de ar puro. Era tranquila. Podia ser vista por inteiro, tão evidente quanto sal espalhado.
Nada se escondia.
As praças, as ruas austeras, os edifícios baixos, as áreas de trabalho sem muros estavam carregados de vitalidade e atividade. Enquanto caminhava, Shevek tinha a constante percepção das outras pessoas andando, trabalhando, falando, rostos passando, vozes chamando, tagarelando, cantando, pessoas vivas, pessoas fazendo coisas, pessoas em ação. Oficinas e fábricas eram voltadas para as praças ou para pátios abertos, e as portas ficaram abertas. Ele passou por uma vidraria, e o operário pegou com uma concha uma grande bolha de vidro derretido com a facilidade de um cozinheiro que serve uma sopa. Ao lado da vidraria havia um pátio movimentado onde moldavam cimento-espuma para construção. A chefe da equipe, uma mulher corpulenta com o avental branco de pó, supervisionava o despejamento do cimento no molde com uma sonora e admirável torrente de palavras. Em seguida, havia uma pequena fábrica de arame, uma lavanderia do bairro, um luthier que fazia e consertava instrumentos musicais, o distribuidor de pequenos produtos do bairro, um teatro, uma cerâmica. As atividades exercidas em cada lugar eram fascinantes, a maioria feita em espaço aberto, à vista de todos. Havia crianças em volta, algumas envolvidas no trabalho com os adultos, algumas no chão fazendo brinquedos de barro, outras brincando na rua, uma empoleirada no telhado do centro de aprendizagem com o nariz afundado num livro. O fabricante de arame tinha decorado a fachada da oficina com desenhos de trepadeiras feitos em arame pintado, alegres e enfeitados. O jato de vapor e de vozes saindo pelas portas escancaradas da lavanderia era impressionante. Nenhuma porta estava trancada, poucas fechadas. Não havia disfarces, nem propaganda. Estava tudo ali, todo o trabalho, toda a vida da cidade, aberta aos olhos e às mãos. E de vez em quando, pela Rua do Depósito, vinha uma coisa em desabalada carreira, tocando um sino, um veículo abarrotado de gente, com gente pendurada por todo o lado de fora, velhinhas xingando com entusiasmo quando ele não diminuía a velocidade para que elas pudessem descer em seus pontos, um garotinho num triciclo caseiro perseguia o veículo loucamente, faíscas elétricas chuviscavam azuis dos fios acima, nos cruzamentos: como se aquela vitalidade tranquila e intensa das ruas de vez em quando atingisse o ponto de descarga e soltasse um estampido, um estalo azul e o cheiro de ozônio. Eram os ônibus de Abbenay e, quando passavam, dava vontade de aplaudir e aclamar.
A Rua do Depósito terminava num lugar amplo e arejado, onde cinco outras ruas desembocavam, formando um parque triangular de grama e árvores. A maioria dos parques em Anarres eram playgrounds de terra e areia, com um punhado de árvores e arbustos de holuns. Aquele era diferente. Shevek atravessou o asfalto sem tráfego e entrou no parque, atraído por ele, pois já o tinha visto várias vezes em fotografias, e porque queria ver de perto árvores alienígenas, árvores urrastis, para experimentar o verde daquelas folhas numerosas. O sol estava se pondo, o céu estava aberto e claro, escurecendo a cor púrpura do zênite, e o escuro do espaço se revelava através da fina atmosfera. Ele entrou, sob as árvores, com cautela e cuidado. Tantas folhas não seriam um desperdício? A árvore holum lidava muito bem com seus espinhos e folhas, e não havia excesso deles. Aquela folhagem extravagante não seria mero excesso, excremento? Tais árvores não conseguiriam florescer sem um solo rico, água constante e muito tratamento. Ele desaprovava aquela abundância, aquele desperdício. Caminhou por baixo, por entre as folhas. Sentiu a maciez da grama alienígena sob os pés. Era como andar sobre carne viva. Voltou para o caminho, assustado. Os membros escuros das árvores se estendiam sobre sua cabeça, apertando as mãos largas e verdes acima dele. Ele foi tomado por um assombro. Sabia que estava sendo abençoado, embora não tivesse pedido a bênção.
Um pouco adiante, no caminho que escurecia, uma pessoa lia sentada num banco de pedra.
Shevek prosseguiu lentamente. Aproximou-se do banco e ficou em pé olhando a figura sentada com a cabeça inclinada sobre o livro, no verde-dourado do lusco-fusco sob as árvores. Era uma mulher de 50 ou 60 anos, vestida de modo estranho, o cabelo preso para trás. A mão esquerda no queixo quase escondia a boca austera, a mão direita segurava os papéis sobre os joelhos. Eram pesados, aqueles papéis; a mão fria sobre eles era pesada. A luz morria rápido, mas ela não ergueu os olhos nenhuma vez. Continuava a ler as provas de O Organismo Social.
Shevek olhou para Odo por um instante e sentou-se ao lado dela no banco.
Ele desconhecia totalmente o conceito de status, e havia lugar de sobra no banco. Foi movido por simples impulso de companheirismo.
Olhou para o perfil forte e triste, para as mãos, as mãos de uma mulher idosa. Ergueu os olhos para os galhos ensombreados. Pela primeira vez na vida compreendeu que Odo, cujo rosto ele conhecia desde a infância, cujas ideias eram centrais e constantes em sua mente e na de todos que ele conhecia, que Odo jamais tinha posto os pés em Anarres: que ela tinha vivido e morrido, e estava enterrada, à sombra de árvores de folhas verdes, em cidades inimagináveis, entre pessoas falando línguas desconhecidas, num outro mundo. Odo era uma alienígena: uma exilada.
O jovem sentou-se ao lado da estátua no crepúsculo, ele quase tão quieto quanto ela.
Por fim, percebendo que escurecia, ele se levantou e voltou para as ruas, pedindo informações de como chegar ao Instituto Central de Ciências.
Não era longe; chegou lá não muito depois de as luzes se acenderem. Uma secretária ou vigilante estava na entrada, lendo. Teve de bater na porta aberta para chamar a atenção dela.
– Shevek – ele disse. Era costume iniciar a conversa com um estranho oferecendo o nome, como uma espécie de alça para o outro segurar. Não havia muitas outras alças a oferecer. Não havia nenhuma hierarquia, nenhum termo hierárquico, nenhuma forma respeitosa convencional de discurso.
– Kokvan – a mulher respondeu. – Não era para você ter chegado ontem?
– Mudaram a agenda do dirigível-cargueiro. Há alguma cama vaga nos dormitórios?
– O número 46 está vago. Depois do pátio, o prédio à esquerda. Há um bilhete de Sabul aqui. Diz para você ligar para ele de manhã no gabinete de física.
– Obrigado! – disse Shevek, e cruzou a passos largos o amplo pátio pavimentado, balançando na mão a bagagem: um casaco de inverno e um par de botas sobressalente. As luzes estavam acesas nos cômodos em toda a volta do quadrilátero. Havia um murmúrio, uma presença de pessoas na tranquilidade. Algo movia o ar claro e penetrante da noite na cidade, uma sensação de drama, de promessa.
O horário do jantar ainda não terminara, e ele fez um pequeno desvio para o refeitório do Instituto para ver se havia comida sobrando para um recém-chegado. Descobriu que seu nome já estava na lista regular e achou a comida excelente. Havia até sobremesa, fruta cozida em conserva. Shevek adorava doces e, como foi um dos últimos a jantar e havia frutas de sobra, repetiu a sobremesa. Comia sozinho a uma pequena mesa. Às mesas maiores perto dele, grupos de jovens conversavam diante de pratos vazios; entreouviu conversas sobre a reação do argônio em baixas temperaturas, a reação de um professor de química num colóquio, as supostas curvaturas do tempo. Alguns o olharam de relance, não foram falar com ele, como pessoas de uma pequena comunidade o fariam; o olhar deles não era hostil, talvez um pouco desafiador.
Encontrou o Quarto 46 num longo corredor de portas fechadas no domicílio. Evidentemente, eram todos quartos individuais, e ele se perguntou por que a secretária o enviara para lá. Desde os 2 anos de idade, sempre tinha morado em dormitórios, quartos com quatro a dez camas. Bateu na porta do 46. Silêncio. Abriu a porta. O cômodo era um pequeno quarto individual, vazio, vagamente iluminado pela luz do corredor. Acendeu a lâmpada. Duas cadeiras, uma mesa, uma régua de cálculo bastante usada, alguns livros e, cuidadosamente dobrado sobre a cama, um cobertor cor de laranja tecido à mão. Alguém morava ali, a secretária tinha cometido um erro. Fechou a porta. Abriu-a novamente e apagou a lâmpada. Na mesa sob a lâmpada havia um bilhete rabiscado num pedaço de papel rasgado: “Shevek, Dep. Física. Manhã 2-4-1-154. Sabul”.
Pôs o casaco numa das cadeiras, as botas no chão. Ficou parado um instante e leu os títulos dos livros, referências habituais de física e matemática, encadernados em verde, o Círculo da Vida estampado nas capas. Puxou a cortina do armário com cuidado. Atravessou o quarto até a porta: quatro passos. Ficou ali parado, hesitante, por mais um minuto, e então, pela primeira vez na vida, fechou a porta de seu próprio quarto.
Sabul era um homem de 40 anos, pequeno, atarracado e desleixado. Seu pelo facial era mais escuro e mais áspero que o normal e engrossava numa barba regular concentrada no queixo. Usava uma pesada túnica de inverno que, pela aparência, parecia estar sendo usada desde o inverno passado; os punhos estavam pretos de sujeira. Ele tinha modos bruscos e de má vontade.
– Você vai ter que aprender iótico – resmungou para Shevek.
– Aprender iótico?
– Eu disse aprender iótico.
– Para quê?
– Para poder ler os físicos urrastis! Atro, To, Baisk, esses homens. Ninguém os traduziu para právico, e é provável que ninguém traduza. Seis pessoas, talvez, em Anarres são capazes de entendê-los. Em qualquer língua.
– Como posso aprender iótico?
– Com uma gramática e um dicionário!
Shevek manteve-se firme.
– Onde posso encontrá-los?
– Aqui – resmungou Sabul. Revirou as prateleiras desarrumadas entre os livrinhos de capa verde. Seus movimentos eram bruscos e impacientes. Localizou dois volumes grossos e sem capa numa prateleira mais baixa e os jogou na mesa. – Me avise quando tiver competência para ler Atro em iótico. Não há nada que eu possa fazer com você até lá.
– Que tipo de matemática os urrastis usam?
– Nada que você não consiga entender.
– Alguém aqui está trabalhando em cronotopologia?
– Sim, Turet. Pode consultá-lo. Não precisa frequentar as aulas dele.
– Estava planejando assistir às aulas de Gvarab.
– Para quê?
– Pelo trabalho dela sobre frequência e ciclo...
Sabul sentou-se e tornou a se levantar. Estava insuportavelmente inquieto, inquieto, mas rígido, como lima desgastando madeira.
– Não perca tempo. Você está muito à frente daquela velha em Teoria Sequencial, e as outras ideias que ela apregoa são lixo.
– Estou interessado nos princípios da Simultaneidade.
– Simultaneidade! Que tipo de porcaria exploradora a Mitis andou metendo na sua cabeça? – O físico olhou-o com fúria, as veias das têmporas saltando sob o cabelo curto e grosso.
– Eu mesmo organizei um grupo para o curso.
– Cresça. Cresça. Já é hora de crescer. Você está aqui agora. Trabalhamos com física aqui, não religião. Esqueça o misticismo e cresça. Em quanto tempo pode aprender iótico?
– Levei vários anos para aprender právico – respondeu Shevek. A ironia sutil passou completamente despercebida a Sabul.
– Eu aprendi em dez décades. O suficiente para ler a Introdução de To. Ora, que diabos, você precisa de um texto para estudar. Pode ser esse mesmo. Aqui. Espere. – Remexeu uma gaveta abarrotada até encontrar um livro, um livro de aparência esquisita, encadernado em azul, sem o Círculo da Vida na capa. O título estava estampado em letras douradas e parecia dizer Poilea Afio-ite, que não fazia nenhum sentido, e o formato de algumas letras era desconhecido. Shevek olhou o livro, apanhou-o da mão de Sabul, mas não o abriu. Estava segurando algo que desejara ver, o artefato alienígena, a mensagem de outro mundo.
Lembrou-se do livro que Palat lhe mostrara, o livro dos números.
– Volte quando conseguir ler isso – resmungou Sabul.
Shevek virou-se para ir embora. Sabul elevou o tom do resmungo:
– Guarde esses livros com você! Eles não são para consumo geral.
O jovem parou, virou-se e disse após um instante, em sua voz calma, modesta:
– Não compreendo.
– Não deixe mais ninguém ler!
Shevek não respondeu.
Sabul tornou a se levantar e se aproximou dele.
– Escute, agora você é membro do Instituto Central de Ciências, um síndico do Departamento de Física, trabalhando comigo, Sabul. Está entendendo? Privilégio é responsabilidade. Correto?
– Vou adquirir conhecimento que não devo compartilhar – Shevek disse após uma breve pausa, dizendo a frase como se fosse uma proposição em lógica.
– Se encontrasse um pacote de cápsulas explosivas na rua, iria “compartilhá-las” com todas as crianças que passassem? Esses livros são explosivos. Agora está me entendendo?
– Sim.
– Muito bem – Sabul afastou-se, resmungando com o que parecia ser uma raiva endêmica, não específica. Shevek saiu, carregando a dinamite com cuidado, com ávida curiosidade e repulsa.
Começou a aprender iótico. Trabalhava sozinho no Quarto 46, por causa do aviso de Sabul, e porque lhe era natural trabalhar sozinho.
Desde muito jovem sabia que, em certos aspectos, ele era diferente de todos que conhecia. Para uma criança, a consciência dessa diferença é muito dolorosa porque, não tendo realizado nada ainda e sendo incapaz de realizar alguma coisa, não sabe justificá-la. A presença confiável e afetuosa de adultos que também são, de sua própria maneira, diferentes, é o único conforto que uma criança assim pode ter; e Shevek não a tivera. Seu pai de fato tinha sido totalmente confiável e afetuoso. O que Shevek fosse ou fizesse, Palat aprovava e era leal. Mas Palat não tivera essa maldição da diferença. Ele era como os outros, como todos os outros que aceitavam a comunidade de bom grado. Amava Shevek, mas não podia lhe mostrar o significado da liberdade, aquele reconhecimento da solidão de cada pessoa que, em si, já transcende a solidão.
Shevek estava, portanto, acostumado ao isolamento interior, atenuado por todos os contatos e diálogos cotidianos e fortuitos da vida comunitária e pela companhia de alguns amigos. Ali em Abbenay ele não tinha nenhum amigo e, como não tinha sido jogado num dormitório, não fez nenhuma amizade. Aos 20 anos, tinha consciência demais de sua mente e caráter para ser sociável; era introvertido e reservado; e seus colegas estudantes, percebendo que esse afastamento era real, não tentavam se aproximar dele com frequência.
A privacidade do quarto tornou-se preciosa para ele. Saboreava sua total independência. Só saía do quarto para o café da manhã e o jantar no refeitório, e para uma rápida caminhada diária pelas ruas da cidade, para satisfazer os músculos que sempre estiveram acostumados ao exercício; depois, voltava ao Quarto 46 e à gramática de iótico. A cada uma ou duas décades, era chamado para o revezamento da “dezena” de trabalho comunitário, mas as pessoas com quem trabalhava eram desconhecidas, não colegas próximos como era comum acontecer em comunidades pequenas; assim, nesses dez dias de trabalho braçal não havia interrupção de seu isolamento psicológico, nem do seu progresso em iótico.
A gramática em si, por ser complexa, ilógica e padronizada, dava-lhe prazer. O aprendizado foi rápido depois que ele construiu o vocabulário básico, pois conhecia o que estava lendo; conhecia a área e os termos e, mesmo quando emperrava, a intuição ou uma equação matemática lhe mostravam aonde ir. Nem sempre eram lugares em que estivera. A Introdução à Física Temporal de To não era nenhum manual para iniciantes. Quando enfim conseguiu chegar à metade do livro, Shevek não estava mais lendo iótico, estava lendo física; e entendeu por que Sabul o fez ler os físicos urrastis antes de qualquer outra coisa. Eles estavam muito à frente de tudo o que se fizera em Anarres por vinte ou trinta anos. As ideias mais brilhantes nos próprios trabalhos de Sabul sobre Sequência eram, na verdade, traduções inconfessas do iótico.
Mergulhou nos outros livros que Sabul lhe concedia, os principais trabalhos dos físicos urrastis contemporâneos. Sua vida tornava-se cada vez mais reclusa. Não era ativo no sindicato estudantil e não frequentava as reuniões de nenhum outro sindicato ou federação, exceto a letárgica Federação de Física. As reuniões desses grupos, veículos tanto da ação social quanto da sociabilidade, eram a estrutura da vida em pequenas comunidades, mas ali na cidade pareciam muito menos importantes. Uma pessoa só não era indispensável a eles; havia sempre outros prontos a administrar as coisas, e de modo satisfatório. Com exceção dos serviços da dezena e das habituais tarefas de zeladoria nos laboratórios e em seu domicílio, Shevek passava o tempo todo sozinho. Muitas vezes deixava de fazer exercícios e, de vez em quando, refeições. Entretanto, nunca perdia o único curso que fazia, as palestras de Gvarab sobre Frequência e Ciclo.
Gvarab já era velha e com frequência divagava e balbuciava. O comparecimento às suas aulas era reduzido e irregular. Ela logo percebeu que o rapaz magro de orelhas grandes era seu único ouvinte assíduo. Começou a dar aula para ele. Os olhos claros, firmes e inteligentes encontravam os dela, estabilizando-a, despertando-a, e ela reluzia, recobrava a visão perdida. Voava alto, e os outros alunos a olhavam confusos ou perplexos, até assustados, se tivessem imaginação suficiente para ficarem assustados. Gvarab via um universo muito mais amplo do que a maioria das pessoas era capaz de ver, e isso as fazia pestanejar. O rapaz de olhos claros a olhava com firmeza. No rosto dele, via a sua alegria. O que ela oferecia, o que oferecera a vida inteira, o que ninguém jamais compartilhara com ela, ele aceitava, ele compartilhava. Ele era seu irmão, separado pelo abismo de cinquenta anos, e sua redenção.
Quando se encontravam nos gabinetes de física ou no refeitório, às vezes começavam imediatamente a falar de física, mas noutras vezes a energia de Gvarab era insuficiente para isso, e então pouco se falavam, pois a mulher idosa era tão tímida quanto o jovem.
– Você come pouco – ela dizia.
Ele sorria, e suas orelhas coravam. Nenhum dos dois sabia o que falar.
Após meio ano no Instituto, Shevek entregou a Sabul um estudo de três páginas intitulado “Uma Crítica à Hipótese de Sequência Infinita de Atro”. Sabuk devolveu-lhe o estudo após uma décade, resmungando:
– Traduza para iótico.
– Em princípio, escrevi quase tudo em iótico – respondeu Shevek –, já que usei a terminologia de Atro. Vou copiar o original. Traduzir para quê?
– Para quê? Para que aquele maldito explorador do Atro possa ler! Vai chegar uma nave no quinto dia da próxima décade.
– Uma nave?
– Um cargueiro de Urras!
Assim, Shevek descobriu que os dois mundos separados não trocavam apenas petróleo e mercúrio, e nem apenas livros, como os que estivera lendo, mas também cartas. Cartas! Cartas para proprietários, para súditos de governos fundados na iniquidade do poder, para indivíduos inevitavelmente explorados por alguém ou exploradores de outrem, pois tinham consentido em ser elementos do Estado-Máquina. Essas pessoas realmente trocavam ideias com gente livre de maneira pacífica e voluntária? Poderiam mesmo admitir a igualdade e participar de uma solidariedade intelectual, ou estavam apenas tentando possuir, dominar, afirmar seu poder? A ideia de trocar cartas com proprietários o alarmava, mas seria interessante descobrir...
Tantas descobertas como essa lhe tinham sido impostas durante seu primeiro meio ano em Abbenay que ele teve de reconhecer que tinha sido – e é possível que ainda fosse – muito ingênuo: uma admissão nada fácil para um jovem inteligente.
A primeira, e ainda a menos aceitável, dessas descobertas foi a de que ele tinha de aprender iótico, mas guardar o conhecimento para si: uma situação tão nova e moralmente tão confusa que ainda não conseguira assimilar. É claro que ele não prejudicava ninguém ao não compartilhar seu conhecimento com outras pessoas. Por outro lado, que mal poderia haver se soubessem que ele sabia iótico e que poderiam aprender também? Com certeza a liberdade baseia-se mais na transparência do que no sigilo, e a liberdade sempre vale o risco. Mas ele não conseguia entender qual era o risco. Ocorreu-lhe uma vez que Sabul queria manter a nova física urrasti particular – possuí-la, como uma propriedade, uma fonte de poder sobre seus colegas de Anarres. Mas essa ideia era tão contrária aos hábitos mentais de Shevek que ele teve dificuldade de esclarecê-la em sua mente, e quando conseguiu, repudiou-a de imediato, com desprezo, como uma ideia repulsiva.
Depois foi a vez do quarto individual, mais um tormento moral. Quando criança, se uma delas dormisse sozinha num quarto assim significava que tinha aborrecido tanto os outros do dormitório que não a toleravam mais; ela tinha egoizado. Solidão era sinônimo de desgraça. Em termos adultos, a principal referência para quartos individuais era sexual. Todo domicílio tinha alguns quartos individuais, e um casal que quisesse copular usava um deles por uma noite, uma décade ou por quanto tempo desejasse. Um casal em parceria ocupava um quarto de casal; numa cidade pequena onde não houvesse quartos de casal disponíveis, muitas vezes construíam um na extremidade de um domicílio; desse modo, edifícios compridos, baixos e irregulares poderiam ser construídos quarto a quarto e eram chamados de “vagão dos parceiros”. Além da união sexual, não havia motivo para não se dormir num dormitório. Podia-se escolher um pequeno ou um grande e, quando não se gostava dos colegas, mudava-se para outro dormitório. Todos tinham oficina, laboratório, estúdio, celeiro ou escritório de que precisavam para desenvolver seu trabalho; os banheiros podiam ser privados ou públicos; a privacidade sexual era livremente acessível e socialmente esperada; além disso, a privacidade não era funcional. Era excesso, desperdício. A economia de Anarres não suportaria a construção, a manutenção, o aquecimento e a iluminação de casas e apartamentos individuais. Uma pessoa cuja natureza fosse genuinamente não sociável tinha de se afastar da sociedade e cuidar-se sozinha. Tinha total liberdade para isso. Podia construir uma casa onde quisesse (mas se estragasse uma bela paisagem ou um pedaço de terra fértil, poderia sofrer forte pressão dos vizinhos para se mudar). Havia um bom número de solitários e eremitas nos limites das comunidades anarrestis mais antigas, fingindo não serem membros de uma espécie social. Mas para aqueles que aceitavam o privilégio e a obrigação da solidariedade humana, privacidade era um valor apenas onde servisse a uma função.
A primeira reação de Shevek ao ser colocado num quarto particular, portanto, foi um misto de desaprovação e vergonha. Por que o enfiaram ali? Logo descobriu por quê. Era o tipo de lugar ideal para o seu tipo de trabalho. Se ideias surgissem à meia-noite, podia ligar a luz e anotá-las; se surgissem na alvorada, não eram expulsas de sua cabeça pela conversa e agitação de quatro ou cinco colegas de quarto se levantando; se não surgisse absolutamente nenhuma ideia, podia ficar dias inteiros sentado à mesa, olhando pela janela, sem ninguém ali para perguntar por que ele estava ficando negligente. A privacidade, na verdade, era tão desejável para a física quanto para o sexo. Mas, ainda assim, era necessária?
Sempre havia sobremesa no refeitório do Instituto, no jantar. Shevek gostava muito e, quando sobrava, ele repetia. E sua consciência, sua consciência orgânico-social, tinha indigestão. Pois todo mundo, em todos os refeitórios, de Abbenay a Confins, não recebia a mesma coisa, as partilhas não eram iguais? Sempre lhe disseram isso, e ele sempre acreditou. Claro que havia variações locais: especialidades regionais, desabastecimento, excedentes, produtos substitutos em situações como os Acampamentos de Projetos, maus cozinheiros, bons cozinheiros – de fato, variações intermináveis dentro de uma estrutura imutável. Mas nenhum cozinheiro era tão talentoso a ponto de preparar sobremesas sem os ingredientes necessários. A maioria dos refeitórios servia sobremesa uma ou duas vezes por décade. Ali serviam todos os dias. Por quê? Seriam os membros do Instituto Central de Ciências melhores do que as outras pessoas?
Shevek não fazia essas perguntas a mais ninguém.
A consciência social, a opinião alheia era a força moral mais poderosa a motivar o comportamento da maioria dos anarrestis, mas era um pouco menos poderosa nele do que na maioria. Seus problemas costumavam tanto ser de um tipo que os outros não entendiam que ele se habituou a desvendá-los sozinho, em silêncio. Assim, fazia o mesmo em relação a esses problemas específicos, que eram muito mais difíceis para ele, em certos aspectos, do que os de Física Temporal. Não pediu a opinião de ninguém. Parou de comer a sobremesa no refeitório.
Entretanto, não se mudou para um dormitório. Pôs na balança o desconforto moral e as vantagens práticas, e estas tinham mais peso. Trabalhava melhor no quarto individual. O trabalho valia a pena, e ele o fazia bem. Era um trabalho crucialmente funcional para a sua sociedade. A responsabilidade justificava o privilégio.
Então, trabalhou.
Perdeu peso; caminhava leve pela terra. Falta de trabalho braçal, falta de variedade de ocupações, falta de relações sociais e sexuais, nada disso lhe parecia falta, mas liberdade. Era um homem livre; podia fazer o que quisesse, quando quisesse e por quanto tempo quisesse. E fazia. Trabalhava. Trabalhava/se divertia.
Rascunhava anotações para uma série de hipóteses que levavam a uma teoria coerente da Simultaneidade. Mas isso começou a parecer um objetivo menor; havia um muito maior a alcançar, uma teoria unificada do Tempo, se ele conseguisse atingi-lo. Sentia-se num quarto trancado no meio de um campo aberto: estava tudo à sua volta, se conseguisse encontrar a saída, o caminho livre. A intuição tornou-se uma obsessão. Durante aquele outono e inverno, foi perdendo cada vez mais o hábito de dormir. Duas horas de sono à noite e duas durante o dia lhe bastavam, e esses cochilos não eram o tipo de sono profundo que sempre tivera, mas quase um despertar em outro nível, tão cheio de sonhos. Eram sonhos vívidos e faziam parte de seu trabalho. Viu o tempo recuar para si mesmo, um rio fluindo para cima, de volta à nascente. Segurou a contemporaneidade de dois momentos em suas mãos esquerda e direita; ao separá-las, sorriu ao perceber que os momentos se separavam como bolhas de sabão que se dividem. Levantou-se e rabiscou, sem de fato acordar, a fórmula matemática que lhe vinha escapando há dias. Viu o espaço encolher diante dele como as paredes de uma esfera caindo sobre um vácuo central, se fechando, se fechando, e ele acordou com um grito de socorro preso na garganta, lutando em silêncio para fugir da consciência de seu próprio vazio exterior.
Numa tarde fria de inverno, quando ia da biblioteca ao seu quarto, passou pelo gabinete de física para ver se havia alguma carta na caixa de correspondência. Não tinha motivo para esperar uma, já que nunca escrevera aos seus amigos do Instituto Regional do Poente Norte; mas não se sentia bem há dois dias; tinha refutado algumas de suas próprias hipóteses mais belas, regredindo, após meio ano de trabalho árduo, ao mesmo ponto onde começara, o modelo fásico era simplesmente vago demais para ser útil, a garganta lhe doía, ele desejava que houvesse uma carta de alguém conhecido, ou talvez alguém do gabinete de física a quem dizer olá, pelo menos. Mas não havia ninguém, exceto Sabul.
– Olhe isso aqui, Shevek.
Olhou para o livro que o homem mais velho segurava: um livro fino, encadernado em verde, o Círculo da Vida na capa. Pegou-o e leu o título: “Uma Crítica à Hipótese de Sequência Infinita de Atro”. Era seu estudo, a admissão e defesa de Atro, e sua réplica. Tudo tinha sido traduzido ou retraduzido para právico e impresso pelas gráficas do CPD em Abbenay. Havia dois nomes de autores: Sabul, Shevek.
Sabul esticou o pescoço sobre o exemplar que Shevek segurava, com um olhar de satisfação perversa. Seu resmungo tornou-se um cacarejo gutural.
– Acabamos com Atro! Acabamos com ele, aquele maldito explorador! Agora vamos ver se eles vão falar em “imprecisão pueril”! – Sabul havia nutrido um ressentimento de dez anos contra a Revista de Física da Universidade de Ieu Eun, que se referira ao seu trabalho teórico como “mutilado pelo provincianismo e pela imprecisão pueril com que o dogma odoniano infesta todas as áreas do pensamento”. – Eles vão ver quem é provinciano agora! – ele disse, com um meio sorriso. Conhecendo-o há quase um ano, Shevek não se lembrava de tê-lo visto sorrir.
Shevek sentou-se do outro lado da sala, para isso tendo de afastar uma pilha de papéis de um banco; é claro que o gabinete de física era comunitário, mas Sabul mantinha a sala abarrotada de material que estava usando, e por isso parecia nunca haver espaço para mais ninguém. Shevek baixou os olhos para o livro que ainda segurava, depois olhou pela janela. Sentia-se e parecia muito doente. Também parecia tenso; mas com Sabul ele nunca fora tímido ou desajeitado, como costumava ser com pessoas que teria gostado de conhecer.
– Não sabia que você estava traduzindo isso – disse.
– Traduzi e editei. Poli alguns pontos mais ásperos, preenchi transições que você tinha omitido, e por aí. Duas décades de trabalho. Você deveria se orgulhar, suas ideias formam, em grande parte, os princípios fundamentais de um livro acabado.
O livro consistia inteiramente das ideias de Shevek e Atro.
– Sim – disse Shevek. Baixou os olhos para as próprias mãos. Em seguida, acrescentou: – Gostaria de publicar o artigo que escrevi este trimestre sobre Reversibilidade. Deve ser enviado a Atro. Iria interessá-lo. Ele ainda está obcecado com a causalidade.
– Publicar? Onde?
– Em iótico, quero dizer... em Urras. Envie-o para Atro, como este último, e ele vai publicá-lo numa das revistas de lá.
– Você não pode lhes enviar um trabalho que não foi publicado aqui.
– Mas é o que fizemos com este. Tudo, exceto minha réplica, saiu na Revista de Ieu Eun antes de sair aqui.
– Não pude evitar isso, mas por que você acha que corri para imprimir este livro? Você não pensa que todo mundo no CPD aprova nossa troca de ideias com Urras, pensa? A Defesa insiste para que cada palavra que sai daqui naqueles cargueiros passe antes por um perito aprovado pelo CPD. Além do mais, você acha que todos os físicos provincianos que não têm acesso a esse canal com Urras não se ressentem conosco? Acha que não ficam com inveja? Há pessoas só esperando, esperando que a gente dê um passo em falso. E se um dia nos pegarem, perderemos o malote nos cargueiros urrastis. Está entendendo a situação agora?
– Como o Instituto conseguiu aquele malote, afinal?
– Com a eleição de Pegvur para o CPD, dez anos atrás – Pegvur tinha sido um físico de razoável importância. – Tenho pisado em ovos para mantê-lo desde então. Entende?
Shevek assentiu com um movimento da cabeça.
– De todo modo, Atro não vai querer ler aquela coisa que você escreveu. Dei uma lida naquele artigo e lhe devolvi décades atrás. Quando você vai parar de perder tempo com essas teorias reacionárias às quais Gvarab se agarra? Você não vê que ela perdeu a vida inteira nelas? Se você insistir nisso, vai se expor ao ridículo. O que, é claro, é seu direito inalienável. Mas não vai expor a mim ao ridículo.
– E se eu submeter o artigo para publicação aqui, em právico, então?
– Perda de tempo.
Shevek engoliu isso com uma leve inclinação da cabeça. Levantou-se, magricela e anguloso, e ficou em pé por um instante, absorto em seus pensamentos. A luz do inverno pousou destoante em seu cabelo, que ele trazia preso para trás numa trança, e em seu rosto sereno. Foi até a mesa e pegou um exemplar da pilha de livros novos.
– Gostaria de enviar um para Mitis – disse.
– Pegue quantos quiser. Escute. Se você acha que sabe mais o que está fazendo do que eu, submeta aquele artigo à Editora. Você não precisa de permissão! Isto aqui não é nenhuma hierarquia, você sabe! Não posso impedi-lo. Tudo o que posso fazer é aconselhá-lo.
– Você é o consultor do Sindicato da Editora para os manuscritos de física – disse Shevek. – Pensei que pouparia o tempo de todo mundo pedindo a você agora.
Sua delicadeza era intransigente; por não competir pela dominância, ele era indômito.
– Poupar tempo, o que quer dizer com isso? – Sabul resmungou, mas Sabul era também odoniano: contorceu-se como se atormentado fisicamente pela própria hipocrisia, afastou-se de Shevek, aproximou-se de novo e disse, com malevolência, a voz grossa de raiva: – Vá em frente! Submeta a maldita coisa! Vou me declarar incompetente para apreciá-la. Vou falar para eles consultarem Gvarab. Ela é a perita em Simultaneidade, não eu. Aquela mística gagá. O universo como uma gigantesca corda de harpa, oscilando dentro e fora da existência! Aliás, que nota ela toca? Passagens das Harmonias Numéricas, suponho? O fato é que não tenho competência, isto é, não tenho vontade de dar meu parecer ao CPD ou à Editora sobre esse excremento intelectual!
– O trabalho que fiz para você – disse Shevek – faz parte do trabalho que fiz seguindo as ideias de Gvarab sobre Simultaneidade. Se quiser um, vai ter de apoiar o outro. A semente cresce melhor na merda, como se diz no Poente Norte.
Ficou parado por um instante e, sem obter uma resposta verbal de Sabul, despediu-se e saiu.
Sabia que vencera uma batalha, e fácil, sem violência aparente. Mas houve violência.
Como Mitis previra, ele era “o homem de Sabul”. Há anos Sabul deixara de ser um físico atuante; sua grande reputação foi construída sobre expropriações de ideias alheias. O papel de Shevek era pensar para Sabul receber os créditos.
Uma situação eticamente intolerável, é óbvio, que Shevek iria denunciar e abandonar. Só que ele não o fez. Precisava de Sabul. Queria publicar o que escreveu e enviar aos homens que poderiam entendê-lo, os físicos urrastis; precisava das ideias deles, de suas críticas, de suas colaborações.
Assim tinham negociado, ele e Sabul, negociado como exploradores. Não fora uma batalha, mas uma venda. Eu lhe dou isto e você me dá aquilo. Recuse-me e eu o recusarei. Vendido? Vendido! A carreira de Shevek, como a existência de sua sociedade, dependia da continuidade de um fundamental e não admitido contrato de exploração. Não uma relação de ajuda mútua e solidariedade, mas uma relação exploratória; não orgânica, mas mecânica. Poderia a função verdadeira surgir de uma base disfuncional?
Porém, tudo o que quero é terminar um trabalho, Shevek alegava em sua mente, enquanto atravessava a alameda em direção ao quadrilátero de domicílios na tarde cinza e ventosa. É meu dever, é minha alegria, é o objetivo de toda a minha vida. O homem com quem tenho de trabalhar é competitivo e dominador, um explorador, mas não posso mudar isso; se eu quiser trabalhar, vou ter de trabalhar com ele.
Pensou no aviso de Mitis. Pensou no Instituto do Poente Norte e na festa da noite anterior à sua partida. Tudo parecia tão distante agora, e de uma tranquilidade e segurança tão infantis que ele quase chorou de saudade. Quando passou sob o pórtico do Prédio das Ciências da Vida, uma moça que caminhava por ali olhou de viés para ele, e ele achou que ela se parecia com aquela moça – qual era o nome dela? –, aquela de cabelo curto, que tinha comido todos aqueles bolos fritos na noite da festa. Parou e se virou, mas a moça dobrou a esquina e sumiu. De qualquer forma, esta tinha cabelo comprido. Sumiu, sumiu, tudo estava sumindo. Saiu da proteção do pórtico e foi para o vento. Havia uma chuva fina no vento, esparsa. A chuva era esparsa nas poucas vezes em que caía. Era um mundo árido. Árido, pálido, hostil. “Hostil”, Shevek disse em voz alta, em iótico. Nunca tinha ouvido o som daquela língua; soava muito estranha. A chuva picava seu rosto como cascalho atirado. Era uma chuva hostil. À dor de garganta uniu-se uma terrível dor de cabeça, da qual acabara de se dar conta. Chegou ao Quarto 46 e deitou-se na cama, que pareceu estar muito mais baixa do que de costume. Ele tremia, não conseguia parar de tremer. Enrolou-se no cobertor cor de laranja e se agasalhou, tentando dormir, mas não conseguia parar de tremer, pois estava sob constante bombardeio atômico vindo de todos os lados, aumentando conforme a temperatura aumentava.
Nunca tinha ficado doente e nunca conhecera nenhum desconforto físico pior do que o cansaço. Como não fazia ideia de como era febre alta, pensou durante os intervalos lúcidos daquela longa noite que estava ficando louco. O medo da insanidade levou-o a procurar ajuda quando amanheceu o dia. Estava por demais assustado consigo mesmo para pedir ajuda aos vizinhos do corredor: tinha ouvido seus próprios delírios noturnos. Arrastou-se à clínica local, a oito quarteirões de distância, as ruas frias brilhantes com o nascer do sol que rodopiava solenemente à sua volta. Na clínica, diagnosticaram sua insanidade como uma pneumonia branda e disseram-lhe para ocupar um leito na Ala Dois. Ele protestou. A enfermeira o acusou de estar egoizando e explicou que, se ele fosse para casa, um médico iria ter o trabalho de atendê-lo lá e providenciar tratamento particular para ele. Ele foi para o leito da Ala Dois. Todas as outras pessoas da ala eram velhas. Veio uma enfermeira e lhe ofereceu um copo d’água e um comprimido.
– O que é isso? – Shevek perguntou, com suspeita. Seus dentes batiam de novo.
– Antipirético.
– O que é isso?
– Para baixar a febre.
– Não preciso disso.
A enfermeira encolheu os ombros.
– Tudo bem – ela falou, e prosseguiu.
A maioria dos jovens anarrestis sentia vergonha de ficar doente: resultado da profilaxia muito bem-sucedida de sua sociedade e também, talvez, de uma confusão surgida do uso analógico das palavras “saudável” e “doente”. Consideravam a doença um crime, mesmo quando involuntária. Ceder ao impulso criminoso, entregar-se a ele tomando analgésicos era imoral. Evitavam comprimidos e injeções. Quando atingiam a meia-idade e a velhice, a maioria mudava de opinião. A dor superava a vergonha. A enfermeira deu os remédios dos velhos na Ala Dois, e eles brincaram com ela. Shevek observava com incompreensão inerte.
Mais tarde chegou um médico com uma seringa.
– Não quero – disse Shevek.
– Pare de egoizar – disse o médico. – Vire-se. – Shevek obedeceu.
Mais tarde veio uma mulher segurando um copo d’água para ele, mas ele tremia tanto que derramou a água, molhando o cobertor.
– Me deixe em paz – ele disse.
– Quem é você? – ela respondeu, mas ele não entendeu. Ele a mandou embora, sentia-se muito bem. Então explicou a ela por que a hipótese cíclica, embora improdutiva em si, era essencial à sua abordagem de uma possível teoria da Simultaneidade, uma pedra fundamental. Falou parte disso na própria língua, parte em iótico, e escreveu as fórmulas e equações numa lousa com um pedaço de giz, para que ela e o restante do grupo entendessem, e temia que eles se equivocassem sobre a pedra fundamental. Ela tocou no rosto dele e prendeu-lhe o cabelo. As mãos dela eram frias. Ele nunca sentira algo mais prazeroso em toda a sua vida do que o toque daquelas mãos. Tentou segurá-las. Mas a mulher não estava mais ali, tinha sumido.
Muito tempo depois, ele acordou. Conseguia respirar. Estava perfeitamente bem. Estava tudo bem. Não se sentiu inclinado a mover-se. Mover-se perturbaria o momento perfeito, estável, o equilíbrio do mundo. A luz de inverno no teto era de uma beleza indizível. Ficou deitado, apreciando-a. Os velhos da ala riam juntos gargalhadas velhas e roucas, um belo som. A mulher chegou e sentou-se ao lado de sua maca. Olhou para ela e sorriu.
– Como se sente?
– Renascido. Quem é você?
Ela também sorriu.
– A mãe.
– Renascimento. Mas eu deveria ganhar um corpo novo, não o mesmo corpo antigo.
– Do que você está falando?
– De Urras. O renascimento faz parte da religião deles.
– Você ainda está confuso. – Ela tocou a testa dele. – Sem febre. – A voz dela dizendo aquelas duas palavras atingiu algo muito profundo no ser de Shevek, um lugar escuro, um lugar murado, que reverberou de volta no escuro. Olhou para a mulher e disse, com terror:
– Você é Rulag.
– Eu lhe disse isso. Várias vezes!
Ela manteve uma expressão despreocupada, até mesmo bem-humorada. Shevek não tinha condições de manter nada. Não tinha força para se mover, mas encolheu-se, afastando-se dela com visível medo, como se ela não fosse sua mãe, mas a morte. Se ela percebeu esse fraco movimento, não o demonstrou.
Era uma mulher bonita, morena, de traços finos e bem proporcionados, sem rugas, embora devesse ter mais de 40 anos. Tudo nela era harmonioso e controlado. Tinha a voz baixa, de um timbre agradável.
– Não sabia que você estava em Abbenay – ela disse –, ou onde você estava... ou mesmo se estava vivo. Eu estava no depósito da Editora dando uma olhada nas novas publicações, escolhendo coisas para a biblioteca de engenharia e vi um livro escrito por Sabul e Shevek. Sabul eu conhecia, claro. Mas quem era Shevek? Por que esse nome soa tão familiar? Só me dei conta um ou dois minutos depois. Estranho, não é? Mas não fazia sentido. O Shevek que eu conhecia teria apenas 20 anos e era pouco provável que estivesse assinando a coautoria de tratados sobre metacosmologia com Sabul. Mas qualquer outro Shevek teria menos de 20 anos!... Então vim conferir. Um rapaz no domicílio me informou que você estava aqui... É chocante a falta de pessoal nesta clínica. Não entendo por que os síndicos não solicitam mais postos à Federação Médica, ou então por que não reduzem o número de internações; alguns desses médicos e enfermeiras trabalham oito horas por dia! Claro que existem pessoas nas artes médicas que de fato querem isso: o impulso do autossacrifício. Infelizmente, isso não leva à máxima eficiência... Foi estranho encontrar você. Jamais o teria reconhecido... Você e Palat mantêm contato? Como ele está?
– Ele morreu.
– Ah. – Não havia sinal de choque ou sofrimento na voz de Rulag, apenas uma espécie de aceitação melancólica, uma nota triste. Shevek ficou emocionado, capaz de vê-la, por um instante, como uma pessoa.
– Há quanto tempo ele morreu?
– Oito anos.
– Não devia ter mais de 35 anos.
– Houve um terremoto em Campina Vasta. Vivíamos lá há uns cinco anos, ele era engenheiro civil na comunidade. O tremor danificou o centro de aprendizagem. Ele e outras pessoas estavam tentando retirar algumas das crianças que ficaram presas lá dentro. Houve um segundo tremor, e o prédio todo ruiu. Morreram 32 pessoas.
– Você estava lá?
– Eu tinha ido iniciar meu treinamento no Instituto Regional uns dez dias antes do terremoto.
– Pobre Palat. – Ela refletiu, o rosto sereno e imóvel. – De certo modo, foi típico dele... morrer com os outros, uma estatística, 1 de 32...
– As estatísticas teriam sido maiores se ele não tivesse entrado no prédio – disse Shevek.
Ela então olhou para ele. Seu olhar não demonstrava que emoções sentia ou não sentia. O que disse pode ter sido espontâneo ou deliberado, não havia como saber.
– Você gostava de Palat.
Ele não respondeu.
– Você não se parece com ele. Na verdade, você se parece comigo, exceto na cor. Achei que você fosse ficar parecido com Palat. Foi o que pressupus. Estranho como a imaginação faz essas suposições. Ele ficou com você, então?
Shevek confirmou com a cabeça.
– Ele teve sorte. – Ela não suspirou, mas havia um suspiro reprimido em sua voz.
– Eu também.
Houve uma pausa. Ela deu um leve sorriso.
– Sim, eu poderia ter mantido contato com você. Você se ressente comigo por eu não ter feito isso?
– Ressentido com você? Eu nunca a conheci.
– Conheceu. Palat e eu o mantivemos no domicílio, mesmo depois que você desmamou. Nós dois quisemos. Os primeiros anos de contato são essenciais para o indivíduo; os psicólogos comprovaram isso de maneira conclusiva. A socialização plena só pode se desenvolver a partir desse início afetuoso... Eu tinha vontade de continuar a parceria. Tentei encontrar um posto para Palat aqui em Abbenay. Nunca tinha vaga na linha de trabalho dele, e ele se recusava a vir sem um posto. Era teimoso... No começo me escrevia para me contar como você estava, depois parou de escrever.
– Não tem importância – respondeu o jovem. Seu rosto, abatido pela doença, estava coberto de gotas de suor muito finas, o que dava às suas bochechas e à sua testa uma aparência lustrosa, como que untadas.
Houve novo silêncio, e Rulag disse em sua voz agradável e controlada:
– Ah, sim, teve importância, e ainda tem. Mas era Palat que devia ficar com você e acompanhá-lo nos seus anos de integração. Ele lhe dava apoio, era paterno, e eu não. Para mim, o trabalho vem em primeiro lugar. Mesmo assim, estou contente por você estar aqui agora, Shevek. Talvez eu lhe possa ser de alguma utilidade neste momento. Sei que Abbenay é um lugar ameaçador, no começo. A gente se sente perdido, isolado, carente da solidariedade simples das cidades pequenas. Conheço pessoas interessantes que talvez você queira conhecer. E pessoas que podem lhe ser úteis. Conheço Sabul; faço alguma ideia do que você deve ter passado com ele, com o Instituto inteiro. Eles fazem jogo de dominação lá. É preciso ter experiência para saber ganhar deles. De todo modo, estou contente por você estar aqui. Isso me dá um prazer que eu nunca procurei... uma espécie de júbilo... Li o seu livro. É seu, não é? Por que outro motivo Sabul publicaria em coautoria com um estudante de 20 anos? O assunto está além da minha compreensão, sou apenas uma engenheira. Confesso que estou orgulhosa de você. É estranho, não é? Insensato. Proprietário, até. Como se você fosse algo que me pertencesse! Mas, quando se envelhece, a gente necessita de algumas certezas que nem sempre são totalmente sensatas. Para poder seguir adiante.
Ele viu a solidão dela. Viu sua dor, e ressentiu-se. A dor o ameaçava. Ameaçava a lealdade de seu pai, aquele amor puro e constante ao qual sua vida se arraigara. Que direito ela tinha, ela que deixara Palat carente, de vir com suas próprias carências procurar o filho de Palat? Ele não tinha nada, nada para oferecer a ela, nem a mais ninguém.
– Teria sido melhor – ele disse – se você tivesse continuado a pensar em mim como uma estatística também.
– Ah – ela disse, a resposta suave, habitual e desolada. Desviou o olhar dele.
Os velhos nos fundos da enfermaria a admiravam, cutucando-se.
– Suponho – ela disse – que eu estava tentando recuperar você. Mas pensei que você também pudesse me recuperar. Se você quisesse.
Ele não disse nada.
– A não ser biologicamente, não somos mãe e filho, é claro. – Ela recobrou o leve sorriso. – Você não se lembra de mim, e o bebê de que me lembro não é esse homem de 20 anos. Tudo aquilo é passado, é irrelevante. Mas somos irmãos, aqui e agora. Que é o que importa, não é?
– Não sei.
Ela ficou sentada por um minuto, sem falar, então se levantou.
– Você precisa descansar. Estava bem doente da primeira vez que vim. Eles dizem que agora você vai ficar bom. Não creio que eu vá voltar.
Ele não falou.
– Adeus, Shevek – ela disse, e virou-se enquanto falava. Ele teve um vislumbre, ou um pesadelo da imaginação, do rosto dela mudando drasticamente enquanto falava, decompondo-se, despedaçando-se. Deve ter sido imaginação. Ela saiu da enfermaria com o andar gracioso e cadenciado de uma bela mulher, e ele a viu parar e falar, sorrindo, com a enfermeira no corredor.
Sucumbiu ao medo que viera com ela, à sensação de promessas quebradas, à incoerência do tempo. Desmoronou. Começou a chorar, tentando esconder o rosto no abrigo dos braços, pois não encontrou forças para se virar. Um dos velhos doentes aproximou-se, sentou-se na maca e deu-lhe uns tapinhas no ombro.
– Está tudo bem, irmão. Vai ficar tudo bem, irmãozinho – ele murmurou. Shevek o ouviu e sentiu seu toque, mas não sentiu nenhum reconforto. Mesmo vindo de um irmão, não existe conforto naquele momento doloroso, no escuro, ao pé do muro.
5
°°°°°
Shevek terminou sua carreira de turista com alívio. O novo período letivo estava começando em Ieu Eun; agora ele poderia se instalar para viver, e trabalhar, no Paraíso, em vez de simplesmente olhá-lo de fora.
Assumiu dois seminários e um curso livre. Não o tinham requisitado como professor, mas ele pediu para dar aulas, e os administradores lhe providenciaram os seminários. As aulas livres não foram ideia dele, nem dos administradores. Uma delegação de alunos veio até ele e lhe pediu para dar o curso. Concordou na hora. Era assim que os cursos eram organizados nos centros de aprendizagem anarrestis: pela demanda dos estudantes, ou pela iniciativa do professor, ou do professor e dos alunos juntos. Quando soube que os administradores ficaram preocupados, ele riu.
– Eles esperam que os estudantes não sejam anarquistas? – perguntou. – O que mais os jovens podem ser? Quando se está embaixo, deve-se organizar as coisas de baixo para cima!
Ele não tinha a menor intenção de deixar os administradores lhe tirarem o curso – já tinha enfrentado esse tipo de batalha – e, como comunicou sua firmeza aos alunos, os alunos também foram firmes. Para evitar publicidade desagradável, os reitores da universidade cederam, e Shevek iniciou o curso com uma plateia de 2 mil pessoas no primeiro dia. Esse número logo baixou. Ele só falava de física, jamais se desviando para assuntos pessoais ou de política, e era física num nível bem avançado. Mas várias centenas de estudantes continuaram a comparecer. Alguns vinham por mera curiosidade, para verem o homem da Lua; outros eram atraídos pela personalidade de Shevek, pelos vislumbres do homem e do libertário que podiam captar em suas palavras, mesmo quando não conseguiam acompanhar sua matemática. E um número surpreendente deles era capaz de acompanhar tanto a filosofia quanto a matemática.
Aqueles estudantes tinham um preparo soberbo. Suas mentes eram refinadas, perspicazes, lúcidas. Quando não estavam trabalhando, descansavam. Não eram embotadas ou distraídas por uma dúzia de outras obrigações. Nunca dormiam de cansaço nas aulas por terem trabalhado no rodízio no dia anterior. Sua sociedade os mantinha completamente livres de carências, distrações e preocupações.
O que estavam livres para fazer, entretanto, era outra questão. Parecia a Shevek que a liberdade de obrigações era exatamente proporcional à sua falta de liberdade de iniciativa.
Shevek ficou estarrecido com o sistema de avaliação, quando lhe explicaram; não conseguia imaginar impedimento maior ao desejo natural de aprender do que aquele modelo de se empanturrar de informações e vomitá-las por exigência. No início, recusou-se a aplicar quaisquer exames ou notas, mas isso desagradou tanto aos administradores que, por não desejar ser descortês com seus anfitriões, cedeu. Pediu aos alunos que escrevessem um artigo sobre qualquer problema de física que lhes interessasse e disse que daria a nota máxima a todos, para que os burocratas tivessem algo a escrever em suas listas e formulários. Para sua surpresa, muitos alunos foram reclamar com ele. Queriam que ele definisse os problemas, que fizesse as perguntas certas; não queriam pensar em perguntas, mas escrever as respostas que tinham aprendido. E alguns fizeram veemente objeção ao fato de ele dar a todos a mesma nota. Como os alunos diligentes poderiam se distinguir dos negligentes? Qual a vantagem de ter tanto trabalho? Se não haveria distinções competitivas, era melhor não fazer nada.
– Bem, é claro – disse Shevek, perturbado. – Se não querem fazer o trabalho, não devem fazê-lo.
Eles foram embora insatisfeitos, mas respeitosos. Eram rapazes agradáveis, de modos francos e civilizados. As leituras de Shevek sobre a história urrasti levaram-no a concluir que eles eram, na verdade, embora a palavra raramente fosse usada, aristocratas. Nos tempos feudais, a aristocracia enviara seus filhos à universidade, conferindo superioridade à instituição. Agora ocorria o contrário: a universidade conferia superioridade ao homem. Eles contaram a Shevek, com orgulho, que a competição por bolsas de estudo em Ieu Eun tornava-se mais acirrada a cada ano, provando a democracia essencial do instituto.
– Vocês colocam mais uma tranca na porta e chamam isso de democracia – ele disse.
Shevek gostava dos seus alunos educados e inteligentes, mas não sentia grande afeto por nenhum deles. Planejavam carreiras de acadêmicos ou cientistas industriais e, para eles, o que aprendiam com Shevek era um meio para um fim: sucesso em suas carreiras. Ou tinham isso, ou negavam a importância de qualquer outra coisa que ele lhes oferecesse.
Shevek viu-se, portanto, sem nenhuma outra obrigação além da preparação de seus três cursos; o restante do tempo era todo seu. Não estivera numa situação assim desde os 20 e poucos anos, em seus primeiros tempos no Instituto de Abbenay. Desde então, sua vida social e pessoal ficara cada vez mais complicada e exigente. Ele se tornara não apenas físico, mas também parceiro, pai, odoniano e, por fim, um reformador social. Como tal, não estivera a salvo, e não esperara estar a salvo, de quaisquer preocupações e responsabilidades que surgissem. Não estivera livre para nada: só estivera livre para fazer alguma coisa. Ali, ocorria o inverso. Como todos os alunos e professores, ele não tinha nada a fazer, exceto seu trabalho intelectual, literalmente nada. Arrumavam a cama para eles, varriam o chão para eles, administravam a rotina da faculdade para eles, liberavam o caminho para eles. E nada de esposas, nem famílias. Absolutamente nenhuma mulher. Os alunos da universidade não tinham permissão de se casar. Professores casados geralmente moravam, durante cinco dos sete dias da semana, em aposentos de solteiro no campus, indo para casa somente nos fins de semana. Nada os distraía. Total tempo livre para trabalhar; todos os materiais à mão; estímulo intelectual, discussões, conversas sempre que quisessem; nenhuma pressão. De fato, o Paraíso! Mas ele parecia incapaz de se dedicar ao trabalho.
Faltava algo – nele, pensou, não no lugar. Ele não estava à altura. Não era forte o suficiente para aceitar o que lhe era oferecido com tanta generosidade. Sentia-se seco, árido, como uma planta do deserto, naquele lindo oásis. A vida em Anarres o fechara, trancara sua alma; as águas da vida jorravam à sua volta e, no entanto, ele não conseguia beber.
Forçou-se a trabalhar, mas mesmo aí não encontrava segurança. Parecia ter perdido a intuição que, no conceito que fazia de si mesmo, considerava sua principal vantagem sobre a maior parte dos outros físicos, a habilidade de sentir onde estava o problema realmente importante, o indício que o guiava ao centro. Ali, parecia não ter o senso de direção. Durante o verão e o outono, trabalhava nos Laboratórios de Pesquisa da Luz, lia bastante e escreveu três artigos: um meio ano produtivo, pelos padrões normais. Mas sabia que, na verdade, não tinha feito nada de real.
De fato, quanto mais tempo vivia em Urras, menos real aquele lugar lhe parecia. Era como se tudo lhe escapasse – todo aquele mundo magnífico, inesgotável e cheio de vida que ele vira através das janelas do quarto, em seu primeiro dia no planeta. Tudo escorregava de suas mãos desajeitadas e alienígenas, tudo se esquivava dele e, quando tornava a olhar, estava segurando algo completamente diferente, algo que ele não queria de jeito nenhum, uma espécie de papel usado, de embalagem, de lixo.
Ganhou dinheiro com os artigos que escreveu. Já tinha em sua conta, no Banco Nacional, 10 mil Unidades Monetárias Internacionais, do prêmio Seo Oen, e 5 mil de doação do Governo Iota. Esta soma agora aumentava com seu salário como professor e o dinheiro pago a ele pela Editora Universitária pelas três monografias. No início, achou tudo isso engraçado; depois, ficou preocupado. Não deveria descartar como ridículo algo que, afinal de contas, era de tremenda importância para os urrastis. Tentou ler um texto elementar sobre economia, mas a leitura o entediou além do suportável; era como ouvir a narração interminável de um sonho longo e idiota. Não conseguia se forçar a entender como os bancos funcionavam e por aí afora, pois todas as operações do capitalismo eram-lhe tão sem sentido quanto os ritos de uma religião primitiva, tão bárbara, tão elaborada e tão desnecessária. No sacrifício humano a uma divindade talvez houvesse ao menos uma beleza equivocada e terrível; nos ritos dos cambistas, onde se presumia que a cobiça, a preguiça e a inveja movem as ações humanas, até mesmo o terrível tornava-se banal. Shevek olhava essa mesquinhez monstruosa com desprezo e sem interesse. Ele não admitia, e não podia admitir, que, na verdade, ela o amedrontava.
Saio Pae o levara às “compras” durante sua segunda semana em A-Io. Embora não tivesse intenção de cortar o cabelo – o cabelo, afinal, fazia parte dele –, queria algumas roupas e um par de sapatos no estilo urrasti. Desejava que sua aparência fosse alienígena somente naquilo que não pudesse evitar. A simplicidade de seu velho terno chamava muito a atenção, e as botas grosseiras do deserto eram realmente muito estranhas em meio aos luxuosos calçados dos iotas. Assim, a seu pedido, Pae o levara à Panomara Saemtenevia, a elegante rua de compras de Nio Esseia, para que um alfaiate e um sapateiro tirassem as suas medidas.
A experiência toda tinha sido tão perturbadora que ele a tirou da cabeça o mais rápido possível, mas sonhou com ela durante meses, teve pesadelos. A Panomara Saemtenevia tinha três quilômetros de extensão e era uma massa sólida de pessoas, tráfego e coisas; coisas para comprar, coisas à venda. Casacos, vestidos, túnicas, mantos, calções, camisas, blusas, chapéus, sapatos, meias, cachecóis, xales, coletes, capas, guarda-chuvas, roupas de dormir, de nadar, de praticar esportes, de festas à tarde, de festas à noite, de festas no campo, de viagem, de teatro, de cavalgada, de jardinagem, de recepção de convidados, de passeios de barco, de jantar, de caça – todas diferentes, todas em centenas de diferentes cortes, estilos, cores, texturas, materiais. Perfumes, relógios, luminárias, estátuas, cosméticos, velas, quadros, câmeras, jogos, vasos, sofás, chaleiras, quebra-cabeças, travesseiros, bonecas, escorredores de macarrão, pufes, joias, tapetes, palitos de dente, calendários, mordedores de bebês de platina com alças de cristal, uma máquina elétrica para apontar lápis, um relógio de pulso com números em diamante; bibelôs, suvenires, bugigangas, lembrancinhas, quinquilharias, bricabraques. Tudo inútil, para começo de conversa, ou enfeitado para disfarçar sua utilidade; quilômetros de luxos, quilômetros de excremento. No primeiro quarteirão, Shevek tinha parado para olhar um casaco todo felpudo e manchado, exibido no centro de uma resplandecente vitrine de roupas e joias.
– O casaco custa 8.400 unidades? – perguntou, incrédulo, pois recentemente tinha lido no jornal que o “salário mínimo” era cerca de 2.000 unidades por ano.
– Ah, sim, isso é pele legítima, muito rara, agora que os animais estão protegidos – disse Pae. – Bonito, não é? As mulheres adoram peles. – E eles continuaram. Depois de outro quarteirão, Shevek sentia-se completamente exausto. Não conseguia olhar mais nada. Queria esconder os olhos.
E o mais estranho daquela rua do pesadelo é que nenhuma daquelas milhões de coisas à venda era feita lá. Eram apenas vendidas lá. Onde estavam as oficinas, as fábricas, onde estavam os fazendeiros, os artesãos, os mineiros, os tecelões, os químicos, os entalhadores, os tintureiros, os desenhistas, os maquinistas, onde estavam as mãos, as pessoas que faziam tudo? Longe da vista, em algum outro lugar. Atrás de paredes. Todas as pessoas nas lojas eram compradoras ou vendedoras. Não tinham relação alguma com as coisas, exceto a de posse.
Descobriu que, depois que tirassem suas medidas, ele poderia encomendar qualquer coisa que precisasse pelo telefone, e decidiu jamais voltar à rua do pesadelo.
As roupas e os sapatos foram entregues em uma semana. Experimentou-os e olhou-se no espelho de corpo inteiro que havia no quarto. O paletó-túnica cinza bem ajustado, a camisa branca, os calções pretos, as meias e os sapatos caíam bem em sua figura comprida e magra e nos pés estreitos. Tocou com cuidado a superfície de um dos sapatos. Era feito da mesma coisa que revestia as cadeiras do outro aposento, do material que parecia pele; há pouco tempo perguntara a alguém o que era aquilo, e responderam que era pele – pele de animal, que chamavam de couro. Franziu a testa ao toque, ergueu-se e afastou-se do espelho, mas não antes de ser forçado a ver que, vestido assim, a semelhança com sua mãe Rulag era maior do que nunca.
Houve um longo intervalo entre os períodos letivos, no meio do outono. A maioria dos alunos foi para casa, de férias. Shevek partiu para alguns dias de passeio a pé nas montanhas, em Meiteis, na companhia de um grupo de alunos e pesquisadores do Laboratório de Pesquisa da Luz, depois voltou para solicitar algumas horas no grande computador, que era mantido muito ocupado durante o período de aulas. Mas, cansado do trabalho que não levava a lugar nenhum, não trabalhou muito. Dormiu mais do que o habitual, caminhou, leu e disse a si mesmo que o problema é que ele simplesmente se apressara demais; não se pode apreender todo um mundo novo em poucos meses. Os gramados e bosques da universidade estavam lindos e desalinhados, folhas douradas brilhando e voando ao vento chuvoso, sob um céu suave e cinza. Shevek pesquisou as obras dos grandes poetas iotas e as leu; agora os compreendia quando falavam de flores, de pássaros voando e as cores da floresta no outono. Essa compreensão lhe trouxe grande prazer. Ao anoitecer, era agradável retornar aos seus aposentos, cuja beleza calma e harmônica nunca deixou de satisfazê-lo. Estava acostumado ao conforto gracioso agora, tinha se tornado algo familiar – assim como a comida, em toda a sua variedade e quantidade, que a princípio o surpreendera. O homem que atendia a mesa conhecia seus gostos e o servia como se ele mesmo estivesse se servindo. Ainda não comia carne; tentara comer, por educação e para provar a si mesmo que não tinha preconceitos irracionais, mas seu estômago tinha motivos que a própria razão desconhece e se rebelou. Após algumas tentativas quase desastrosas, desistira e permanecera vegetariano, embora de bom apetite. Gostava muito do jantar. Engordara três ou quatro quilos desde que viera para Urras; estava com muito boa aparência agora, bronzeado de seu passeio nas montanhas, descansado pelas férias. Era uma figura impressionante quando se levantou da mesa no grande salão de jantar com teto de vigas escondidas na sombra lá no alto, paredes almofadadas com retratos pendurados e mesas com porcelana e prataria brilhando à luz de velas. Cumprimentou alguém da outra mesa e se retirou, com uma expressão de tranquilo distanciamento. Do outro lado do salão, Chifoilisk o viu e o seguiu, alcançando-o à porta.
– Tem alguns minutos, Shevek?
– Sim. Nos meus aposentos? – A essa altura, já se acostumara ao uso constante do pronome possessivo e o utilizava sem constrangimento.
Chifoilisk pareceu hesitar.
– Que tal na biblioteca? Fica no seu caminho, e eu quero pegar um livro lá.
Começaram a atravessar o quadrilátero em direção à Biblioteca da Ciência Nobre – o antigo termo para a física, que até em Anarres foi preservado em certos usos –, caminhando lado a lado no escuro chuvoso. Chifoilisk abriu um guarda-chuva, mas Shevek andava na chuva como os iotas andavam ao sol, com alegria.
– Você está ficando ensopado – Chifoilisk resmungou. – Você não tinha um problema nos pulmões? Melhor tomar cuidado.
– Estou me sentindo muito bem – respondeu Shevek, enquanto caminhava a passos largos na chuva fina e fresca. – Sabe aquele médico do governo em Anarres? Ele me prescreveu algumas inalações. Funcionou. Não estou tossindo mais. Pedi para o médico descrever o procedimento e os remédios, pelo rádio, ao Sindicato da Iniciativa, em Abbenay. Ele fez isso. Ficou feliz em fazê-lo. Foi tudo muito simples; deve aliviar muito o sofrimento da tosse provocada pela poeira. Por quê, por que não antes? Por que não trabalhamos juntos, Chifoilisk?
O thuviano soltou um leve resmungo sardônico. Entraram na sala de leitura da biblioteca. Corredores de livros antigos, sob delicados arcos duplos de mármore, repousavam em serenidade sombria; as luminárias das longas mesas de leitura eram globos simples de alabastro. Não havia mais ninguém ali, mas um atendente logo surgiu atrás deles para acender a lareira de mármore e verificar se não precisavam de mais nada antes que ele se retirasse de novo. Chifoilisk parou diante da lareira, observando a lenha começando a arder. Suas sobrancelhas estavam eriçadas acima dos olhos pequenos; seu rosto grosseiro, moreno e intelectual parecia mais velho que de hábito.
– Vou ser desagradável, Shevek – disse, em sua voz áspera. E acrescentou: – Até aí, nenhuma surpresa, suponho... – Humildade que Shevek não esperava dele.
– Qual o problema?
– Quero saber se você sabe o que está fazendo aqui.
Após uma pausa, Shevek disse:
– Acho que sei.
– Tem consciência, então, de que foi comprado?
– Comprado?
– Cooptado, se prefere. Ouça. Por mais que um homem seja inteligente, ele não pode ver o que não sabe ver. Como pode entender sua situação aqui, numa economia capitalista, num Estado plutocrático e oligárquico? Como pode entender, vindo da sua pequena comuna de idealistas famintos, lá no céu?
– Chifoilisk, não sobraram muitos idealistas em Anarres, posso lhe assegurar. Os Colonos foram idealistas, sim, ao trocar este planeta pelos nossos desertos. Mas isso foi há sete gerações! Nossa sociedade é prática. Talvez prática demais, preocupada demais só com a sobrevivência. O que há de idealismo na cooperação social e na ajuda mútua, se isso é apenas um meio de continuar vivo?
– Não posso discutir os valores odonianos com você. Não que eu não tenha tido vontade! Conheço bem o assunto, sabe. Estamos mais próximos desses valores, no meu país, do que estas pessoas aqui. Somos produtos do mesmo movimento revolucionário do oitavo século... somos socialistas, como você.
– Mas vocês são hierarquistas. O Estado de Thu é ainda mais centralizado do que o Estado de A-Io. Uma única estrutura de poder controla tudo: governo, administração, polícia, exército, educação, leis, comércio, manufaturas. E vocês têm a economia baseada em moeda.
– Uma economia baseada no princípio de que cada trabalhador é pago pelo que merece, pelo valor do seu trabalho... não por capitalistas a quem ele é obrigado a servir, mas pelo Estado, do qual ele é membro!
– É o trabalhador que estabelece o valor de seu próprio trabalho?
– Por que você não vai a Thu para ver como funciona o socialismo real?
– Eu sei como funciona o socialismo real – respondeu Shevek. – Eu poderia falar sobre isso para vocês, mas o seu governo me deixaria explicar, em Thu?
Chifoilisk atiçou com o pé uma lenha que ainda não começara a pegar fogo. Sua expressão, enquanto olhava a lareira, era amarga, as linhas entre o nariz e os cantos da boca, muito profundas. Não respondeu à pergunta de Shevek. Por fim, disse:
– Não vou tentar enganá-lo. Não adianta; de qualquer modo, não o farei. O que tenho a lhe perguntar é o seguinte: você estaria disposto a ir a Thu?
– Não neste momento, Chifoilisk.
– Mas o que você pode realizar... aqui?
– Meu trabalho. Além disso, aqui estou perto da sede do Conselho dos Governos Mundiais...
– O CGM? Eles são controlados por A-Io há trinta anos. Não conte com eles para salvá-lo.
Uma pausa.
– Então eu corro perigo?
– Nem isso você percebeu?
Mais uma pausa.
– Contra quem você está me alertando? – perguntou Shevek.
– Contra Pae, em primeiro lugar.
– Ah, sim, Pae. – Shevek apoiou as mãos na lareira adornada com ouro incrustado. – Pae é um físico muito bom. E muito solícito. Mas não confio nele.
– Por que não?
– Bem... ele é evasivo.
– Sim, uma avaliação psicológica perspicaz. Mas Pae não é perigoso para você por ser uma pessoa esquiva, Shevek. Ele é perigoso para você porque é um agente ambicioso e leal do governo iota. Ele faz relatórios sobre você, e sobre mim, regularmente ao Departamento de Segurança Nacional... a polícia secreta. Deus sabe que não o subestimo, Shevek, mas você não compreende que seu hábito de se aproximar de todo mundo como uma pessoa, um indivíduo, não vale aqui, não funciona. Você tem de entender as forças que estão por trás dos indivíduos.
Enquanto Chifoilisk falava, a postura descontraída de Shevek tornara-se tensa; agora estava ereto, como Chifoilisk, olhando a lareira.
– Como sabe essas coisas sobre Pae? – perguntou.
– Do mesmo jeito que sei que o seu quarto contém um microfone escondido, assim como o meu. Porque saber essas coisas faz parte do meu trabalho.
– Você também é agente do seu governo?
O rosto de Chifoilisk se fechou; então virou-se subitamente para Shevek, falando com suavidade e ódio.
– Sim – ele disse –, é claro que sou. Se não fosse, eu não estaria aqui. Todo mundo sabe disso. Meu governo manda para fora do país somente homens em quem confia. E eles podem confiar em mim! Porque não fui comprado, como todos esses malditos professores iotas ricos. Acredito no meu governo, no meu país. Tenho fé neles. – As palavras saíram à força, numa espécie de tormento. – Você tem de olhar à sua volta, Shevek! Você é uma criança entre ladrões. Eles são bons para você, lhe oferecem um belo quarto, palestras, alunos, dinheiro, passeios em castelos, passeios por fábricas modernas, visitas a belas aldeias. Tudo do melhor. Tudo ótimo, maravilhoso! Mas por quê? Por que o trazem aqui da Lua, o elogiam, publicam seus livros e o mantêm seguro e confortável nas salas de aula, laboratórios e bibliotecas? Você acha que fazem isso com desinteresse científico, por amor fraternal? Esta é uma economia de lucro, Shevek!
– Eu sei. Vim negociar com ela.
– Negociar... o quê? Para quê?
O rosto de Shevek assumira a mesma expressão fria e severa de quando visitou o forte em Drio.
– Você sabe o que eu quero, Chifoilisk. Quero que meu povo saia do exílio. Vim para cá porque acho que vocês não querem isso, em Thu. Vocês têm medo de nós, lá. Temem que possamos trazer de volta a revolução, a antiga, a real, a revolução por justiça que vocês começaram e depois abandonaram no meio do caminho. Aqui em A-Io eles me temem menos, pois se esqueceram da revolução. Não acreditam mais nela. Acham que se as pessoas conseguirem possuir coisas o suficiente ficarão satisfeitas em viver na prisão. Mas eu não acredito nisso, quero derrubar os muros. Quero solidariedade, solidariedade humana. Quero trocas livres entre Urras e Anarres. Trabalhei nisso o quanto pude em Anarres, agora trabalho nisso o quanto posso em Urras. Lá eu agi; aqui eu negocio.
– Com o quê?
– Ah, você sabe, Chifoilisk – Shevek disse numa voz baixa, desconfiado. – Você sabe o que eles querem de mim.
– Sim, eu sei, mas não sabia que você sabia – o thuviano disse, também falando baixo; sua voz áspera tornou-se um murmúrio mais áspero, ofegante e fricativo. – Então você tem mesmo... a Teoria Temporal Geral?
Shevek olhou para ele, talvez com um toque de ironia.
Chifoilisk insistiu:
– Ela já existe por escrito?
Shevek continuou a olhar para ele por um minuto e então respondeu diretamente:
– Não.
– Ótimo!
– Por quê?
– Porque, se existisse por escrito, eles já a teriam.
– O que quer dizer?
– Só isso. Escute, não foi Odo quem disse que onde há propriedade, há roubo?
– “Para fazer um ladrão, faça um proprietário; para criar o crime, crie leis.” O Organismo Social.
– Pois bem. Onde há papéis em salas trancadas, há pessoas com as chaves das salas!
Shevek estremeceu.
– Sim – ele disse, no mesmo instante –, isso é muito desagradável.
– Para você, não para mim. Não tenho os seus escrúpulos morais individualistas, você sabe. Eu sabia que você não tinha a teoria por escrito. Se eu achasse que tivesse, teria feito todo o esforço para obtê-la, fosse pela persuasão, pelo roubo ou pela força, caso conseguíssemos sequestrar você sem provocar uma guerra com A-Io. Qualquer coisa para que eu pudesse levá-la para longe destes porcos capitalistas iotas e entregá-la nas mãos do Comitê Central do meu país. Porque a maior causa a que posso servir é a força e a riqueza do meu país.
– Você está mentindo – Shevek disse, pacificamente. – Acho que você é um patriota, sim. Mas você põe o respeito à verdade acima do patriotismo, a verdade científica, e talvez também sua lealdade a indivíduos. Você não me trairia.
– Trairia, se pudesse – disse Chifoilisk, furiosamente. Ia continuar a falar, parou e por fim disse, com raivosa resignação: – Pense o que quiser. Não posso abrir seus olhos por você. Mas lembre-se: nós o queremos. Se você finalmente perceber o que está acontecendo aqui, então vá para Thu. Você escolheu as pessoas erradas para serem seus irmãos! E se... não cabe a mim dizer isso, mas não importa. Se você resolver não compartilhá-la conosco, pelo menos não dê sua Teoria aos iotas. Não dê nada aos usurários! Saia daqui. Volte para casa. Dê ao seu próprio povo o que você tem a oferecer!
– Eles não querem – Shevek disse, sem nenhuma expressão no rosto. – Acha que eu não tentei?
Quatro ou cinco dias depois, Shevek, ao perguntar por Chifoilisk, foi informado de que ele retornara a Thu.
– Para ficar? Ele não me disse que estava de partida.
– Um thuviano nunca sabe quando vai receber uma ordem de seu Comitê – disse Pae, pois é claro que Shevek fora informado por Pae. – Ele apenas sabe que, quando a ordem vem, é melhor ir embora. E sem parar no caminho para despedidas. Coitado do Chif! O que será que ele fez de errado?
Shevek visitava Atro uma ou duas vezes por semana na casa pequena e agradável na extremidade do campus, onde morava com dois criados tão velhos quanto ele. Aos quase 80 anos, era, como ele próprio se definia, um monumento à física de primeira classe. Embora não tivesse visto o trabalho de toda uma vida passar sem reconhecimento, como Gvarab, a mera idade o levara a adquirir um pouco do mesmo desinteresse dela. Seu interesse em Shevek, pelo menos, parecia ser inteiramente pessoal – uma camaradagem. Tinha sido o primeiro físico de Sequência a se converter à abordagem de Shevek para a compreensão do tempo. Tinha lutado, com as armas de Shevek, pelas teorias de Shevek, contra todo o establishment da respeitabilidade científica, e a batalha se arrastou por vários anos antes da publicação da versão integral, sem cortes, dos Princípios da Simultaneidade e da pronta e subsequente vitória dos simultaneístas. Essa batalha tinha sido o ponto alto da vida de Atro. Ele não teria lutado por nada menos do que a verdade, mas foi a luta que ele adorou, mais do que a verdade.
Atro conseguiu reconstituir sua árvore genealógica até onze séculos, passando por generais, príncipes, grandes proprietários de terras. A família ainda possuía uma propriedade de 7 mil acres e 14 aldeias na Província de Sie, a região mais rural de A-Io. Ele usava expressões provincianas em suas falas, arcaísmos aos quais se agarrava com orgulho. A riqueza em absoluto o impressionava, e ele se referia ao governo inteiro de seu país como “demagogos e políticos rasteiros”. Ninguém iria comprar o seu respeito. No entanto, ele o dava de graça a qualquer tolo que, segundo ele, tivesse “o nome certo”. Em certos aspectos, ele era totalmente incompreensível para Shevek – um enigma: o aristocrata. E, no entanto, seu desprezo genuíno tanto pelo dinheiro quanto pelo poder levou Shevek a se sentir mais próximo dele do que de qualquer outra pessoa que ele conhecera em Urras.
Certa vez, quando estavam sentados juntos na varanda envidraçada onde ele cultivava todo tipo de flores raras e fora da estação, ele por acaso usou a frase “nós, cetianos”. Shevek o pegou na hora:
– “Cetianos”... não é uma palavra alpiste? – “Alpiste” era uma gíria para a imprensa popular, jornais, programas de rádio e conteúdos de ficção feitos para o consumo do trabalhador urbano.
– Alpiste! – repetiu Atro. – Meu caro amigo, onde diabos você aprende esses vulgarismos? O que quero dizer com “cetianos” é exatamente o que os escritores de jornais diários e seus leitores papagaios entendem pelo termo: Urras e Anarres!
– Fiquei surpreso ao ouvi-lo usar uma palavra estrangeira... uma palavra não cetiana, na verdade.
– Definição por exclusão – defendeu-se o velho, de forma divertida. – Há cem anos, não precisávamos dessa palavra. “Humanidade” servia. Mas sessenta e tantos anos atrás isso mudou. Eu tinha 17 anos, era um belo dia ensolarado no início do verão, lembro vividamente. Eu estava exercitando o meu cavalo, e minha irmã gritou da janela: “Estão falando com alguém do Espaço Sideral no rádio!”. Minha pobre querida mãe achou que estávamos todos perdidos; demônios de outro mundo, você sabe. Mas eram só os hainianos, anunciando a paz e a fraternidade. Bem, hoje “humanidade” é um pouco inclusivo demais. O que define a fraternidade senão a não fraternidade? Definição por exclusão, meu caro! Você e eu somos parentes. Seu povo provavelmente pastoreava cabras nas montanhas, enquanto o meu oprimia servos em Sie, alguns séculos atrás; mas somos membros da mesma família. Para reconhecer isso, deve-se conhecer um alienígena, ou ouvir falar dele. Um ser de outro sistema solar. Um homem, por assim dizer, que não tem nada em comum conosco, exceto o esquema prático de duas pernas, dois braços e uma cabeça com algum tipo de cérebro dentro!
– Mas os hainianos não provaram que somos...?
– Todos de origem alienígena, descendentes de Colonos Hainianos interestelares, meio milhão de anos atrás, sim, eu sei. Provaram! Pelo amor do Número Primal, Shevek, você fala como um seminarista de primeiro ano! Como pode falar seriamente em prova histórica, num espaço de tempo tão longo? Esses hainianos brincam com milênios para lá e para cá como se fossem bolas, mas são só malabarismos. Provaram, pois sim! A religião dos meus antepassados me informa, com igual autoridade, que eu descendo de Pinra Od, que Deus expulsou do Jardim porque ele teve a audácia de contar os dedos das mãos e dos pés, chegar à soma de vinte, soltando assim o Tempo no universo. Prefiro essa história à dos alienígenas, se devo escolher!
Shevek riu; o humor de Atro lhe dava prazer. Mas o velho falava sério. Bateu de leve no braço de Shevek e, franzindo as sobrancelhas e mascando com os lábios, como fazia quando estava emocionado, disse:
– Espero que sinta o mesmo, meu caro. Espero sinceramente. Há muita coisa admirável na sua sociedade, tenho certeza, mas ela não lhe ensina a discriminar... o que, afinal, é a melhor coisa que a civilização ensina. Não quero aqueles malditos alienígenas cooptando você por meio das suas noções de fraternidade, mutualismo e tudo isso. Eles verterão sobre você rios inteiros de “humanidade comum”, “liga dos mundos” e por aí afora, e eu detestaria vê-lo engolir essa conversa. A lei da existência é a luta... a competição... eliminação dos fracos... uma guerra implacável pela sobrevivência. E quero ver os melhores sobreviverem. O tipo de humanidade que eu conheço. Os cetianos. Você e eu. Urras e Anarres. Estamos à frente deles agora, de todos aqueles hainianos e terranos e seja lá como eles se chamam, e temos de continuar à frente deles. Eles nos trouxeram o propulsor interestelar, mas agora nós estamos fazendo naves melhores do que as deles. Quando você publicar sua Teoria, eu sinceramente espero que você pense no seu dever para com o seu povo, sua própria espécie. No que significa lealdade e a quem ela é devida. – As lágrimas fáceis da idade avançada brotaram nos olhos semicegos de Atro. Shevek pôs as mãos no braço do velho, para tranquilizá-lo, mas não disse nada.
– Eles vão obtê-la, naturalmente. Com o tempo. E devem. A verdade científica se revelará, não se pode esconder o sol debaixo de uma pedra. Mas antes de obtê-la, quero que eles paguem por ela! Quero que ocupemos o lugar que nos é de direito. Quero respeito; e é isso que você pode conquistar para nós. Transiliência... se dominarmos a transiliência, o propulsor interestelar deles não vai valer mais nada. Não é dinheiro que eu quero, você sabe. Quero que reconheçam a superioridade da ciência cetiana. Se deve haver uma civilização interestelar, então, por Deus, não quero que meu povo seja membro de uma casta inferior! Devemos entrar como nobres, com uma grande dádiva em nossas mãos... É assim que deve ser. Ora, ora, às vezes eu me altero com esse assunto. A propósito, como vai indo o seu livro?
– Estou trabalhando na hipótese gravitacional de Skask. Tenho a impressão de que ele está errado em usar apenas as equações diferenciais parciais.
– Mas seu último artigo foi sobre gravidade. Quando você vai chegar à coisa real?
– Você deveria saber que os meios são o fim para nós, odonianos – Shevek disse, em tom de brincadeira. – Além disso, não posso apresentar uma teoria do tempo que omita a gravidade, não é?
– Quer dizer que você vai nos dar a sua Teoria aos pouquinhos? – perguntou Atro, com suspeita. – Isso não tinha me ocorrido. É melhor eu dar mais uma olhada naquele último artigo. Parte dele não fez sentido para mim. Meus olhos têm se cansado tanto nos últimos tempos. Acho que tem alguma coisa errada com aquela maldita coisa-projetora-lupa que eu tenho de usar para ler. Parece que não projeta mais as palavras com clareza.
Shevek olhou o homem com remorso e afeto, mas não lhe disse mais nada sobre o andamento de sua teoria.
Convites para recepções, inaugurações, estreias e por aí afora eram entregues a Shevek todos os dias. Comparecia a alguns desses eventos, pois viera a Urras numa missão e precisava tentar cumpri-la: precisava estimular a ideia de fraternidade, precisava representar, em sua própria pessoa, uma solidariedade de dois mundos. Ele falava, as pessoas o escutavam e diziam “é verdade”.
Perguntava-se por que o governo não o impedia de falar. Com seus próprios objetivos em mente, Chifoilisk deve ter exagerado a extensão do controle e da censura que podiam exercer. Ele falava em puro anarquismo, e não o impediam. Mas precisavam impedi-lo? Parecia que ele falava com as mesmas pessoas toda vez: bem-vestidas, bem alimentadas, de boas maneiras, sorridentes. Será que eram o único tipo de gente em Urras?
– É a dor que une os homens – dizia Shevek em pé diante delas, e elas concordavam com a cabeça e diziam: – É verdade.
Ele começou a odiá-las e, percebendo isso, abruptamente deixou de aceitar seus convites.
Mas fazer isso era aceitar o fracasso e aumentar seu isolamento. Não estava fazendo o que tinha vindo fazer ali. Não eram os outros que tinham rompido relações com ele, dizia a si mesmo; ele é que tinha – como sempre – rompido relações com os outros. Estava sozinho, uma solidão sufocante, em meio às pessoas que via todos os dias. O problema é que ele não estava em contato. Sentia que não havia feito contato com nada, com ninguém em Urras, durante todos aqueles meses.
Uma noite, sentado à mesa no Refeitório dos Decanos, ele disse:
– Sabe, não sei como vocês vivem aqui. Vejo as casas particulares por fora. Mas por dentro só conheço a sua vida não particular: sala de reuniões, refeitórios, laboratórios...
No dia seguinte, Oiie, com certa formalidade, perguntou se Shevek não gostaria de jantar e passar a noite em sua casa, no fim de semana seguinte.
Ficava em Amoeno, um vilarejo a alguns quilômetros de distância de Ieu Eun, e era, pelos padrões urrastis, uma casa modesta, mais antiga do que a maioria, talvez. Fora construída de pedra, cerca de trezentos anos antes, e os cômodos tinham paredes de madeira almofadadas. O característico arco duplo iota fora usado nas janelas e nas portas de entrada. Uma relativa ausência de mobília agradou os olhos de Shevek de imediato: os cômodos eram austeros, espaçosos, com amplos pisos fortemente polidos. Sempre se sentira perturbado em meio às decorações e confortos extravagantes dos edifícios públicos nos quais se realizavam as recepções, inaugurações e por aí afora. Os urrastis tinham bom gosto, o qual, entretanto, muitas vezes parecia estar em conflito com um impulso ao exibicionismo – ao gasto ostensivo. A origem natural e estética do desejo de possuir coisas era dissimulada e pervertida por compulsões competitivas e econômicas que, por sua vez, prejudicavam a qualidade das coisas: tudo o que alcançavam era uma espécie de prodigalidade mecânica. Ali naquela casa, ao contrário, havia graça, alcançada pela sobriedade.
Um criado os ajudou a tirar os casacos, à entrada. A esposa de Oiie subiu da cozinha no subsolo, onde estivera instruindo a cozinheira, e veio cumprimentar Shevek.
Enquanto conversavam antes do jantar, Shevek viu-se falando quase exclusivamente com ela, com simpatia, com desejo de que ela gostasse dele, e isso o surpreendeu. Mas era tão bom conversar com uma mulher de novo! Não era à toa que tinha a sensação de levar uma existência isolada, artificial, entre homens, sempre homens, faltando a tensão e a atração da diferença sexual. E Sewa Oiie era atraente. Olhando as delicadas linhas de sua nuca e de suas têmporas, ele perdeu as objeções que fazia à moda urrasti de raspar a cabeça das mulheres. Ela era reticente, bem tímida; tentou fazê-la sentir-se à vontade com ele e ficou satisfeito quando pareceu estar conseguindo.
Entraram para jantar e duas crianças se uniram a eles à mesa. Sewa Oiie desculpou-se:
– Simplesmente não se encontra mais uma babá decente nesta parte do país – ela disse. Shevek assentiu, sem saber o que era uma babá. Observava os garotinhos com o mesmo alívio, o mesmo deleite. Mal tinha visto uma criança desde que partira de Anarres.
Os garotos eram crianças muito asseadas e tranquilas, que só falavam quando lhe dirigiam a palavra, vestidos em casacos e calções de veludo azul. Olhavam Shevek com assombro, como uma criatura do espaço sideral. O de 9 anos era severo com o de 7 anos, murmurava para ele não ficar olhando e o beliscava com força quando ele desobedecia. O pequeno beliscava de volta e tentava chutá-lo por baixo da mesa. O Princípio da Superioridade parecia não estar bem introduzido em sua mente ainda.
Oiie era um homem mudado em casa. O olhar reservado sumiu de seu rosto, e ele não falava arrastado. Sua família o tratava com respeito, mas o respeito era mútuo. Shevek ouvira muitas opiniões de Oiie sobre as mulheres e surpreendeu-se ao ver que ele tratava sua esposa com cortesia, até delicadeza. “Isso é cavalheirismo“, pensou Shevek, por ter aprendido a palavra recentemente, mas logo concluiu que se tratava de algo melhor. Oiie gostava de sua esposa e confiava nela. Ele se comportava com ela e com as crianças como um anarresti poderia se comportar. Na verdade, em casa, ele de repente parecia um homem simples e fraternal, um homem livre.
Shevek considerou essa liberdade muito limitada, uma família muito reduzida, mas sentiu-se tão à vontade, tão mais livre ele próprio, que não se sentiu disposto a criticar.
Numa pausa após a conversa, o garoto mais novo disse com sua vozinha límpida:
– O sr. Shevek não tem muito boas maneiras.
– Por que não? – Shevek perguntou antes que a esposa de Oiie repreendesse a criança. – O que foi que eu fiz?
– O senhor não disse obrigado.
– Quando?
– Quando eu passei o prato de picles.
– Ini! Fique quieto!
Sadik! Não egoíze! O tom era exatamente o mesmo.
– Pensei que você estivesse compartilhando comigo. Era um presente? No meu país, só dizemos obrigado quando ganhamos presentes. As outras coisas nós compartilhamos, sem falar nelas, entende? Gostaria que eu lhe devolvesse os picles?
– Não, eu não gosto de picles – a criança disse, olhando o rosto de Shevek com seus olhos muito escuros e límpidos.
– Isso torna o compartilhamento bem mais fácil – disse Shevek. O garoto mais velho se contorcia pelo desejo reprimido de beliscar Ini, mas Ini riu, mostrando os dentinhos brancos. Após uns instantes, numa outra pausa, ele disse em voz baixa, inclinando-se para Shevek:
– O senhor gostaria de ver minha lontra?
– Sim.
– Ela está no quintal. Minha mãe pôs para fora porque achou que ela ia incomodar o senhor. Alguns adultos não gostam de animais.
– Eu gosto de vê-los. Não temos animais no meu país.
– Não? – perguntou o garoto mais velho, encarando-o. – Pai, o sr. Shevek está dizendo que eles não têm nenhum animal!
Ini também o encarou.
– Mas o que vocês têm?
– Outras pessoas. Peixes. Minhocas. E pés de holum.
– O que é holum?
A conversa prosseguiu por meia hora. Foi a primeira vez que pediram a Shevek, em Urras, para descrever Anarres. As crianças faziam as perguntas, mas os pais ouviam com interesse. Shevek deixou o modo ético de lado com algum escrúpulo; não estava ali para doutrinar os filhos de seu anfitrião. Apenas contou como era a poeira, como era Abbenay, que roupas usavam, o que as pessoas faziam quando queriam roupas novas, o que as crianças faziam na escola. Este último item virou propaganda, apesar de suas intenções. Ini e Aevi ficaram extasiados com a descrição do currículo, que incluía cultivo, carpintaria, tratamento de esgoto, impressão, encanamento, recuperação de estradas, dramaturgia e todas as outras ocupações da comunidade adulta, e com a informação de que ninguém jamais era punido por nada.
– Porém, às vezes – disse – eles mandam você ficar sozinho por um tempo.
– Mas o que – perguntou Oiie abruptamente, como se a pergunta, engasgada há longos minutos, explodisse dele sob pressão –, o que mantém as pessoas em ordem? Por que não roubam e não se matam uns aos outros?
– Ninguém possui nada para ser roubado. Se você quiser algo, é só pegar nos depósitos. Quanto à violência, bem, não sei, Oiie; você me mataria, via de regra? E se tivesse vontade, alguma lei o impediria? A coerção é o meio menos eficaz de se obter ordem.
– Tudo bem, mas como vocês conseguem que as pessoas façam o trabalho sujo?
– Que trabalho sujo? – perguntou a esposa de Oiie, sem entender.
– Coleta de lixo, abertura de covas – respondeu Oiie; Shevek acrescentou:
– Mineração – e quase disse “processamento de merda”, mas lembrou-se do tabu iota com relação a palavras escatológicas. Percebera, logo no início de sua estada em Urras, que os urrastis viviam em meio a montanhas de excremento, mas nunca mencionavam a palavra merda.
– Bem, todos nós fazemos esses serviços. Mas ninguém os faz por muito tempo, a menos que se goste do trabalho. Uma vez por décade, o comitê de gerenciamento da comunidade, ou o comitê do quarteirão, ou qualquer um que precise pode pedir que você entre para o trabalho, eles fazem listas de rodízio. E os postos de trabalho desagradáveis ou perigosos, como nas minas de mercúrio e usinas, normalmente são executados somente por meio ano.
– Mas então toda equipe deve consistir de pessoas que estão apenas aprendendo o serviço.
– Sim, não é eficiente, mas o que mais se pode fazer? Não se pode obrigar um homem a ficar num trabalho que vai mutilá-lo ou matá-lo em poucos anos. Por que ele faria isso?
– Ele pode recusar a ordem?
– Não é uma ordem, Oiie. Ele vai à Divlab, o escritório da Divisão Laboral, e diz “eu quero fazer tal e tal trabalho, o que vocês têm?”. E eles dizem onde existem postos.
– Mas então por que as pessoas escolhem fazer o serviço sujo? Por que aceitam fazer o trabalho dos rodízios da décade?
– Porque fazem juntas... E há outros motivos. Você sabe que a vida em Anarres não é tão rica quanto a daqui. Nas pequenas comunidades não há muita diversão, e há muito trabalho a fazer. Então, se você trabalha a maior parte do tempo num tear, a cada dez dias é agradável sair e instalar um cano, ou arar um campo, com um grupo diferente de pessoas... E também há o desafio. Aqui vocês acham que o incentivo para trabalhar é financeiro, necessidade de dinheiro ou desejo por lucro, mas onde não existe dinheiro as motivações reais ficam mais claras, talvez. As pessoas gostam de fazer as coisas. Gostam de fazer bem. As pessoas escolhem os serviços perigosos e difíceis porque se orgulham de fazê-los, elas podem... egoizar, como dizemos... se gabar?... aos mais fracos. Ei, vejam, meninos, como sou forte! Sabe como é? A pessoa gosta de fazer aquilo em que tem talento... Mas, na verdade, é uma questão de meios e fins. Afinal, o trabalho é feito só pelo trabalho em si. É o prazer duradouro da vida. A consciência particular sabe disso. E também a consciência social, a opinião do vizinho. Não há nenhuma outra recompensa, em Anarres, nenhuma outra lei. Só o próprio prazer e o respeito dos companheiros. Quando é assim, dá para entender que a opinião dos vizinhos torna-se uma força muito poderosa.
– Ninguém nunca a desafia?
– Talvez não com bastante frequência – disse Shevek.
– Então todo mundo trabalha muito? – perguntou a esposa de Oiie. – O que acontece com um homem que simplesmente se recusa a cooperar?
– Bem, ele vai embora. Os outros se cansam dele, sabe. Zombam, tratam mal, batem nele; numa comunidade pequena, podem concordar em tirar o nome dele das listas de refeições, para que ele cozinhe e coma sozinho; isso é humilhante. Então ele fica em outro lugar por algum tempo e depois pode se mudar outra vez. Alguns fazem isso a vida inteira. São chamados de nuchnibi. Eu sou meio nuchnib. Estou aqui, fugindo do meu próprio posto. Mudei-me para mais longe que a maioria – falou Shevek, com tranquilidade; se havia amargura em sua voz, não era discernível às crianças, nem explicável aos adultos. Mas um pequeno silêncio se seguiu às suas palavras.
– Não sei quem faz o serviço sujo aqui – ele disse. – Nunca o vejo sendo feito. É estranho. Quem faz? Por que fazem? Eles ganham mais?
– Para o trabalho perigoso, às vezes. Para tarefas meramente servis, não. Ganham menos.
– Por que fazem, então?
– Porque ganhar pouco é melhor do que não ganhar nada – disse Oiie, e a amargura em sua voz era muito clara. Sua esposa começou a falar de modo nervoso para mudar de assunto, mas ele continuou. – Meu avô era zelador. Esfregou o chão e trocou os lençóis sujos num hotel por cinquenta anos. Dez horas por dia, seis dias por semana. Ele fazia isso para a família poder comer. – Oiie parou abruptamente e olhou de relance para Shevek com seu velho olhar reservado e desconfiado, e depois, quase com desafio, para a sua esposa. Ela não olhou nos olhos dele. Sorriu e falou numa voz infantil e nervosa:
– O pai de Demaere foi um homem muito bem-sucedido. Era dono de quatro empresas quando morreu. – Seu sorriso era de o uma pessoa que sofria, e suas mãos delgadas e morenas pressionavam-se firmemente uma sobre a outra.
– Suponho que não haja homens bem-sucedidos em Anarres – disse Oiie, com pesado sarcasmo. Então a cozinheira entrou para trocar os pratos, e ele parou de falar na mesma hora. O garoto Ini, como se soubesse que a conversa séria não seria retomada enquanto a criada estivesse ali, disse:
– Mãe, o sr. Shevek pode ver minha lontra quando acabar o jantar?
Quando retornaram à sala de estar, Ini recebeu permissão de trazer o animal de estimação para dentro: uma lontra terrestre pequena, animal comum em Urras. Tinham sido domesticadas, explicou Oiie, desde os tempos pré-históricos, primeiro usadas como apanhadores de peixes, depois como animais de estimação. A criatura tinha pernas curtas, um lombo arqueado e flexível, pelo marrom-escuro brilhante. Era o primeiro animal solto que Shevek via de perto, e o bicho teve menos medo dele do que ele do bicho. Os dentes brancos e afiados eram impressionantes. Estendeu a mão com cautela para acariciá-lo, e Ini insistiu que o fizesse. A lontra sentou-se sobre os quadris e olhou para ele. Os olhos do animal eram escuros, raiados de dourado, inteligentes, curiosos, inocentes.
– Ammar – Shevek sussurrou, capturado por aquele olhar que atravessava o golfo da existência – irmão.
A lontra grunhiu, ficou de quatro e examinou os sapatos de Shevek com interesse.
– Ele gosta do senhor – Ini disse.
– E eu gosto dele – Shevek respondeu, com certa tristeza. Sempre que via um animal, o voo dos pássaros, o esplendor das árvores de outono, vinha-lhe aquela tristeza que dava um gosto amargo ao deleite. Ele não pensava conscientemente em Takver nesses momentos, não pensava em sua ausência. De certa forma, era como se ela estivesse lá, embora ele não estivesse pensando nela. Era como se a beleza e a estranheza dos animais e das plantas de Urras tivessem sido carregadas com uma mensagem de Takver, que jamais os veria, cujos ancestrais de sete gerações jamais tocaram o pelo morno de um animal, nem viram o bater de asas nas sombras das árvores.
Ele passou a noite num quarto no sótão, sob os beirais. O quarto era frio, algo bem-vindo depois do eterno e excessivo aquecimento dos cômodos da universidade, e muito simples: a cama, estantes de livros, uma cômoda e uma mesa de madeira pintada. Era como estar em casa, pensou, ignorando a altura da cabeceira da cama e a maciez do colchão, os delicados cobertores de lã e os lençóis de seda, os bibelôs de marfim sobre a cômoda, a encadernação de couro dos livros e o fato de que o quarto, e tudo o que havia nele, e a casa em que estava, e o terreno que a casa ocupava eram propriedade privada, a propriedade de Demaere Oiie, embora ele não a tivesse construído e não esfregasse o seu chão. Shevek pôs de lado essas discriminações tão cansativas. Era um ótimo quarto e não muito diferente de um quarto de solteiro num domicílio.
Dormindo naquele quarto, sonhou com Takver. Sonhou que ela estava com ele na cama, seus braços entrelaçados nele, o corpo junto ao seu... mas qual quarto, em que quarto estavam? Onde estavam? Estavam juntos na Lua, fazia frio, e eles caminhavam juntos. Era um lugar plano, a Lua, todo coberto de neve branca-azulada, embora a neve fosse fina e fácil de afastar com um pontapé, revelando o luminoso solo branco. Era morto, um lugar morto. “Não é bem assim”, ele disse a Takver, sabendo que ela estava com medo. Caminhavam na direção de algo, uma linha longínqua de algo que parecia frágil e brilhante, como plástico, uma barreira remota, quase invisível, do outro lado da planície de neve. Em seu coração, Shevek tinha medo de se aproximar, mas disse a Takver: “Logo chegaremos”. Ela não respondeu.
6
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Quando Shevek recebeu alta após uma décade no hospital, seu vizinho do Quarto 45 veio visitá-lo. Era um matemático, muito alto e magro. Tinha um olho estrábico não corrigido e, assim, nunca se tinha certeza se ele estava olhando para a pessoa e/ou a pessoa estava olhando para ele. Shevek e ele tinham uma convivência amigável, lado a lado no domicílio do Instituto, há um ano, sem nunca terem trocado uma frase inteira.
Então Desar entrou e encarou Shevek, ou o que estava ao lado dele.
– Alguma coisa? – perguntou.
– Eu estou bem, obrigado.
– Que tal jantar do refeitório?
– Com o seu? – perguntou Shevek, influenciado pelo estilo telegráfico de Desar.
– Tudo bem.
Desar trouxe dois jantares numa bandeja do refeitório do Instituto, e eles comeram juntos no quarto de Shevek. Ele fez a mesma coisa de manhã e à noite por três dias, até Shevek sentir-se em condições de sair de novo. Era difícil entender por que Desar fazia isso. Ele não era simpático, e as expectativas de fraternidade pareciam não significar muito para ele. Um dos motivos que o levavam a se afastar das pessoas era esconder sua desonestidade; ou era espantosamente preguiçoso ou francamente proprietário, pois o Quarto 45 estava cheio de coisas que ele não tinha direito, nem motivo, de guardar: pratos do refeitório, livros das bibliotecas, um conjunto de ferramentas talhadeiras do depósito de suprimentos de artes e ofícios, um microscópio de algum laboratório, oito cobertores diferentes, um armário cheio de roupas, algumas das quais claramente não serviam nem nunca tinham servido em Desar, outras que ele devia ter usado quando tinha 8 ou 10 anos. Era como se ele fosse a depósitos e armazéns e pegasse tudo o que pudesse carregar, precisasse desses objetos ou não.
– Por que você guarda essa tralha toda? – Shevek perguntou quando esteve no quarto do vizinho pela primeira vez.
Desar olhou para algum ponto entre ele e Shevek:
– Fui acumulando – ele respondeu de modo vago.
O campo da matemática escolhido por Desar era tão esotérico que ninguém no Instituto ou na Federação de Matemática conseguia de fato verificar o seu desempenho. Era precisamente por isso que ele o escolhera. Presumiu que a motivação de Shevek fosse a mesma.
– Que diabos – ele disse –, trabalho? Bom posto aqui. Sequência, Simultaneidade, merda. – Às vezes Shevek gostava de Desar, e às vezes o detestava, pelas mesmas qualidades. Apegou-se a ele, entretanto, deliberadamente, como parte de sua resolução para mudar de vida.
Sua doença o fizera perceber que, se tentasse continuar sozinho, iria desmoronar de uma vez. Via isso em termos morais e julgou a si próprio de maneira implacável. Vinha se guardando para si mesmo, contra o imperativo ético da fraternidade. Aos 21 anos, Shevek não era exatamente um pedante, devido à sua moralidade apaixonada e drástica; ainda assim, essa moralidade se ajustava a um modelo rígido, o Odonismo simplista ensinado às crianças por adultos medíocres, um sermão incorporado.
Estivera agindo errado. Tinha de agir certo. E agiu.
Proibiu-se de estudar física em cinco noites a cada dez. Voluntariou-se para o trabalho de comitê na gerência de domicílios do Instituto. Frequentava as reuniões da Federação de Física e do Sindicato dos Membros do Instituto. Matriculou-se num grupo que praticava exercícios de biofeedback e treinamento de ondas cerebrais. No refeitório, forçava-se a sentar às mesas grandes, em vez da pequena, com um livro à sua frente.
Era surpreendente: as pessoas pareciam estar à sua espera. Elas o incluíram, o acolheram, o convidaram como companheiro e colega. Levaram-no a todo lugar com eles e, em três décades, aprendeu mais sobre Abbenay do que tinha aprendido em um ano. Acompanhava animados grupos de jovens a campos de atletismo, centros de artes e ofícios, piscinas, festivais, museus, teatros, concertos.
Os concertos! Foram uma revelação, um choque de alegria, em parte porque ele pensava na música como algo para se fazer, não para se ouvir. Quando criança, sempre cantava ou tocava um instrumento ou outro, em corais e grupos locais; tinha gostado muito da experiência, mas não demonstrara muito talento. E isto era tudo o que conhecia de música.
Os centros de aprendizagem ensinavam todas as habilidades à prática da arte: treinamento em canto, métrica, dança, uso do pincel, do cinzel, da faca, do torno mecânico e assim por diante. Era tudo pragmático: as crianças aprendiam a ver, falar, ouvir, a se mexer, a manusear. Não havia distinção entre as artes e os ofícios; não se considerava a arte como tendo um lugar na vida, mas como sendo uma técnica básica da vida, como a fala. Desse modo, a arquitetura tinha desenvolvido, desde cedo e livremente, um estilo consistente, puro e simples, sutil em proporção. A pintura e a escultura serviam, em grande parte, como elementos da arquitetura e do planejamento urbano. Quanto às artes das palavras, a poesia e a narrativa tendiam a ser efêmeras, a ser ligadas à música e à dança; apenas o teatro se sustentava totalmente sozinho, e apenas o teatro era chamado de “a Arte” – algo completo em si mesmo. Havia muitas trupes regionais e itinerantes de atores e dançarinos, companhias de repertório, muitas vezes com o próprio dramaturgo. Encenavam tragédias, comédias semi-improvisadas, mímicas. As trupes eram bem-vindas como chuva nas cidades solitárias do deserto, eram a glória do ano aonde quer que fossem. O drama, fruto e encarnação do isolamento e do espírito comunitário anarresti, alcançara força e brilho extraordinários.
Shevek, entretanto, não era muito sensível à arte dramática. Gostava do esplendor verbal, mas a ideia toda de atuação não combinava com ele. Foi somente no segundo ano em Abbenay que ele finalmente descobriu a sua Arte: a arte feita do tempo. Alguém o levou a um concerto no Sindicato de Música. Ele voltou no dia seguinte. Foi a todos os concertos, com os novos conhecidos, se fosse possível, e sozinho, se necessário. A música era uma necessidade mais urgente, uma satisfação mais profunda do que o companheirismo.
Seus esforços para romper sua reclusão essencial foram, na verdade, um fracasso, e ele sabia disso. Não fez nenhum amigo íntimo. Copulou com algumas moças, mas a cópula não era o júbilo que deveria ser. Era mero alívio de uma necessidade, como evacuar, e ele sentia vergonha depois, pois envolvia outra pessoa como objeto. Era preferível a masturbação, uma conduta adequada a um homem como ele. Solidão era a sua sina; estava preso em sua hereditariedade. Ela havia dito: “O trabalho vem primeiro”. Rulag dissera isso calmamente, afirmando um fato, impotente para mudá-lo, para escapar de sua célula fria. E era assim também com ele. Seu coração ansiava por elas, pelas almas jovens e amáveis que o chamavam de irmão, mas ele não conseguia alcançá-las, nem elas a ele. Ele nascera para ser só, um maldito intelectual frio, um egoísta.
O trabalho vinha em primeiro lugar, mas não ia a lugar algum. Como o sexo, deveria ter sido um prazer, mas não era. Ele ficava remoendo os mesmos problemas, não se aproximando sequer um passo da solução do Paradoxo Temporal de To, muito menos da Teoria da Simultaneidade, que, no ano anterior, pensara estar quase ao seu alcance. Essa segurança agora lhe parecia inacreditável. Ele realmente se achara capaz, aos 20 anos, de desenvolver uma teoria que iria mudar as fundações da Física Cosmológica? Evidentemente, estivera fora de si muito antes da febre. Matriculou-se em dois grupos de trabalho em Matemática Filosófica, convencendo-se de que precisava deles e recusando-se a admitir que poderia conduzi-los tão bem quanto os instrutores. Evitava Sabul o máximo possível.
Na primeira explosão de novas resoluções, decidiu conhecer Gvarab melhor. Ela correspondeu da melhor maneira que pôde, mas o inverno tinha sido severo com ela; estava doente, surda e velha. Começou a ministrar um curso de primavera, mas desistiu. Estava errática, ora mal reconhecendo Shevek, ora arrastando-o até seu domicílio para uma noite inteira de conversa. Ele, de certa forma, já ultrapassara as ideias de Gvarab e achava penosas aquelas longas conversas. Ou deixava Gvarab aborrecê-lo por horas, repetindo o que ele já sabia ou havia em parte refutado, ou teria de magoá-la e confundi-la tentando corrigir-lhe o raciocínio. Isso estava além da paciência ou tato de qualquer pessoa da idade dele, e ele acabou por evitar Gvarab sempre que podia, e sempre com a consciência pesada.
Não havia mais ninguém com quem conversar sobre trabalho. Ninguém no Instituto sabia o suficiente sobre Física Temporal pura para acompanhá-lo. Ele teria gostado de ensinar a matéria, mas ainda não lhe haviam oferecido um posto de professor ou uma sala de aula no Instituto; o Sindicato dos Membros do corpo docente e discente recusou seu pedido. Não queriam entrar em atrito com Sabul.
No decorrer do ano, dedicou boa parte do tempo escrevendo cartas para Atro e outros físicos e matemáticos de Urras. Poucas dessas cartas foram enviadas. Algumas escrevia e depois simplesmente rasgava. Descobriu que o matemático Loai Na, a quem escrevera uma dissertação de seis páginas sobre a Reversibilidade do Tempo, já estava morto havia vinte anos; negligenciara a leitura do prefácio biográfico de Geometrias do Tempo, assinado por An. Outras cartas, que tentou enviar pelas naves cargueiras de Urras, foram interceptadas pelos administradores do Porto de Abbenay. O Porto estava sob o controle direto do CPD, já que sua operação envolvia a coordenação de muitos sindicatos, e alguns dos coordenadores tinham de saber iótico. Esses administradores do Porto, com seu conhecimento especial e posição importante, tendiam a adquirir a mentalidade burocrática: diziam “não” automaticamente. Desconfiavam das cartas a matemáticos, pois pareciam códigos, e não havia ninguém para lhes garantir que não eram códigos. Cartas a físicos passavam se Sabul, seu consultor, as aprovasse. Ele não aprovava as que tratavam de assuntos fora de sua própria área de Física Sequencial. “Está fora da minha competência”, resmungava, pondo a carta de lado. Ainda assim, Shevek a enviava aos administradores do Porto, e a carta era devolvida com o carimbo “Não aprovada para exportação”.
Levou a questão à Federação de Física, que Sabul raramente se dava ao trabalho de frequentar. Ninguém ali dava importância ao tema da livre comunicação com o inimigo ideológico. Alguns repreendiam Shevek por trabalhar num campo tão hermético que não havia, como ele próprio admitia, mais ninguém em seu próprio planeta com competência para entendê-lo.
– Mas é porque é um campo novo – dizia, o que não adiantava nada.
– Se é novo, compartilhe conosco, não com os proprietários!
– Já faz um ano que eu tento oferecer um curso todo trimestre. Vocês sempre dizem que não há demanda suficiente para o curso. Vocês estão com medo por ser algo novo?
Isso não o fez ganhar nenhum amigo. Ele os deixou furiosos.
Continuou a escrever cartas para Urras, mesmo quando não enviava nenhuma. O fato de escrever para alguém que talvez o entendesse – que talvez o tivesse entendido – tornava-lhe possível escrever, pensar. Senão, não seria possível.
As décades se passaram, e os trimestres. Duas ou três vezes por ano a recompensa chegava: uma carta de Atro ou de outro físico de A-Io ou Thu, uma longa carta, escrita no mesmo nível, argumentada no mesmo nível, da saudação à assinatura, toda com intensa e complexa Física Temporal Metamatemático-Ético-Cosmológica, escrita numa língua que ele não falava, por homens que ele não conhecia e que tentavam intensamente combater e destruir suas teorias, inimigos de sua terra natal, rivais, estranhos, irmãos.
Por vários dias após receber uma carta, ele ficava irascível e alegre, trabalhava dia e noite, jorrando ideias como uma fonte. Então, lentamente, debatia-se em esguichos curtos e desesperados e voltava à terra, ao solo árido, e secava.
Estava terminando o terceiro ano no Instituto quando Gvarab morreu. Ele pediu para falar no velório, que foi realizado, como era o costume, no local onde o falecido trabalhara: neste caso, uma das salas de aula no prédio do laboratório de física. Ele foi o único orador. Nenhum aluno compareceu; Gvarab não dava aulas havia dois anos. Alguns membros idosos do Instituto vieram, e o filho de meia-idade de Gvarab, um químico agrícola do Nordeste, estava lá. Shevek ficou em pé onde a idosa costumava ficar quando dava aulas. Disse àquelas pessoas, numa voz rouca pelo seu agora costumeiro resfriado de inverno, que Gvarab lançara as bases da ciência do tempo e era a maior cosmóloga que já trabalhara no Instituto.
– Nós da física temos nossa Odo agora – ele disse. – Nós a temos, mas não soubemos honrá-la. – Depois, uma idosa lhe agradeceu, com lágrimas nos olhos.
– Nós sempre fazíamos o serviço da dezena juntas, ela e eu, como zeladoras do nosso quarteirão, e passamos momentos tão bons, conversando – ela disse, estremecendo no vento gelado quando saíram do prédio. O químico agrícola murmurou cortesias e apressou-se para pegar uma carona de volta ao Nordeste. Num súbito acesso de sofrimento, impaciência e sensação de inutilidade, Shevek saiu caminhando a passos largos pela cidade.
Três anos ali, e ele tinha realizado o quê? Um livro, de que Sabul se apropriara; cinco ou seis estudos não publicados; e um discurso de velório por uma vida desperdiçada.
Nada do que fazia era compreendido. Para ser mais honesto, nada do que fazia tinha significado. Ele não estava exercendo nenhuma função necessária, pessoal ou social. Na verdade – e esse não era um fenômeno incomum em sua área –, estava esgotado aos 20 anos. Não realizaria mais nada. Tinha deparado com o muro para sempre.
Parou diante do auditório do Sindicato de Música para ler os programas da décade. Não havia nenhum concerto aquela noite. Afastou-se do cartaz e deu de cara com Bedap.
Bedap, sempre defensivo e bastante míope, não deu sinal de reconhecê-lo. Shevek pegou-lhe no braço.
– Shevek! Caramba, é você! – Abraçaram-se, beijaram-se, apartaram-se, voltaram a se abraçar. Shevek foi inundado de amor. Por quê? Ele nem gostava muito de Bedap naquele último ano no Instituto Regional. Nunca se corresponderam nos últimos três anos. A amizade deles era de infância, do passado. No entanto, o amor estava ali: flamejava como brasa atiçada.
Caminharam, conversaram, nenhum dos dois percebendo aonde iam. Abanavam os braços e se interrompiam. As ruas largas de Abbenay estavam calmas na noite de inverno. A cada cruzamento, a luz turva do poste de iluminação formava uma poça prateada, através da qual a neve seca se agitava como um cardume de peixinhos perseguindo a própria sombra. Lábios dormentes e dentes tiritando começaram a interferir na conversa. Pegaram o ônibus das dez, o último, para o Instituto; o domicílio de Bedap ficava no extremo leste da cidade, uma caminhada longa no frio.
Bedap olhou o Quarto 46 com admiração irônica.
– Shev, você vive como um urrasti explorador podre.
– Sem essa, não é tão mau assim. Mostre qualquer coisa excrementícia aqui! – De fato, o quarto continha praticamente as mesmas coisas de quando Shevek entrou ali pela primeira vez. Bedap apontou:
– Esse cobertor.
– Já estava aqui quando cheguei. Alguém fez à mão e deixou aí quando se mudou. Um cobertor é excessivo numa noite fria como esta?
– Mas a cor é definitivamente excrementícia – disse Bedap. – Como analista de funções, devo observar que não há necessidade da cor laranja. Essa cor não exerce nenhuma função vital no organismo social, no nível celular ou orgânico, e muito menos no nível ético mais central e holorgânico; e nesse caso a tolerância é uma opção pior do que a excreção. Mande tingi-lo de verde-sujo, irmão! E o que é tudo isso aqui?
– Anotações.
– Em código? – perguntou Bedap, folheando um caderno com a frieza que Shevek lembrava ser-lhe característica. Ele tinha ainda menos senso de privacidade – de propriedade privada – do que a maioria dos anarrestis. Bedap jamais tivera um lápis favorito que levasse para todo lugar, ou uma velha camisa à qual se afeiçoara, detestando ter de jogá-la no cesto de reciclagem, e se ganhasse um presente tentava mantê-lo em consideração ao doador, mas sempre o perdia. Tinha consciência dessa peculiaridade, e, segundo dizia, isso demonstrava que ele era menos primitivo do que a maioria das pessoas, um exemplo precoce do Homem Prometido, o verdadeiro e nato odoniano. Mas ele tinha, sim, um senso de privacidade. Começava na cabeça, dele ou de outrem, e dali em diante era completo. Jamais se metia na vida alheia. Disse agora: – Lembra aquelas cartas bobas que escrevíamos em código quando você estava no projeto de reflorestamento?
– Isso não é código, é iótico.
– Você aprendeu iótico? Por que escreve nessa língua?
– Porque ninguém neste planeta entende o que eu falo. Nem quer entender. A única pessoa que entendia morreu há três dias.
– O Sabul morreu?
– Não, Gvarab. Sabul não morreu. Sem chance!
– Qual o problema?
– O problema com Sabul? Em parte inveja e em parte incompetência.
– Pensei que o livro dele sobre causalidade fosse de primeira linha. Você mesmo disse.
– Eu pensava que sim, até ler as fontes. São todas ideias urrastis. E nem são novas. Ele não tem uma ideia própria há vinte anos. E há vinte anos não toma banho.
– E como vão as suas ideias? – perguntou Bedap, pondo a mão nos cadernos e olhando para Shevek com a testa franzida. Bedap tinha olhos pequenos e meio vesgos, um rosto forte, um corpo atarracado. Roía as unhas, e anos desse hábito reduziram-nas a meras tiras nas pontas de seus dedos grossos e sensíveis.
– Nada bem – disse Shevek, sentando-se na cama. – Estou no campo errado.
– Você? – Bedap deu um sorriso irônico.
– Acho que no fim do trimestre vou pedir uma remoção.
– Para onde?
– Pouco importa. Ensino, engenharia. Tenho que sair da física.
Bedap sentou-se na cadeira da escrivaninha, mordeu uma unha e disse:
– Isso é muito estranho.
– Reconheci minhas limitações.
– Não sabia que você tinha limitações. Em física, quero dizer. Você tinha todo tipo de defeitos e limitações. Mas não em física. Não sou nenhum temporalista, eu sei, mas não preciso saber nadar para conhecer um peixe, não preciso brilhar para reconhecer uma estrela...
Shevek olhou para seu amigo e deixou escapar o que nunca tinha conseguido dizer claramente a si mesmo:
– Pensei em suicídio. Pensei muito. Este ano. Parece a melhor solução.
– Dificilmente essa é a melhor solução para alcançar o outro lado do sofrimento.
– Você ainda se lembra disso? – Shevek deu um sorriso rígido.
– Vividamente. Foi uma conversa muito importante para mim. E para Takver e Tirin também, creio eu.
– Foi? – Shevek levantou-se. Só havia espaço para quatro passos no quarto, mas ele não conseguia ficar parado. – Foi importante para mim, na época – ele disse, em pé junto à janela. – Mas aqui eu mudei. Há algo errado aqui. Não sei o que é.
– Eu sei – disse Bedap. – O muro. Você se deparou com o muro.
Shevek virou-se com um olhar assustado.
– O muro?
– No seu caso, o muro parece ser Sabul, e os que o apoiam no Sindicato de Ciências, e o CPD. Quanto ao mim, estou em Abbenay há quatro décades. Quarenta dias. Tempo suficiente para ver que aqui, em quarenta anos, não vou realizar nada, absolutamente nada, do que quero fazer, o aperfeiçoamento do ensino de ciência nos centros de aprendizagem. A não ser que as coisas mudem. Ou a não ser que eu me junte aos inimigos.
– Inimigos?
– Os homenzinhos. Amigos de Sabul! As pessoas que estão no poder.
– Do que está falando, Dap? Não temos estrutura de poder.
– Não? Então por que Sabul é tão forte?
– Não uma estrutura de poder, um governo. Aqui não é Urras, afinal!
– Não. Não temos governo, nem leis, muito bem. Mas, pelo que eu saiba, ideias nunca foram controladas por leis e governos, mesmo em Urras. Se tivessem sido, como a Odo poderia ter desenvolvido as dela? Como o Odonismo teria se tornado um movimento mundial? Os hierarquistas tentaram esmagá-lo à força, mas fracassaram. Não se pode destruir ideias reprimindo-as. Só se pode destruí-las ignorando-as. Recusando-se a pensar, recusando-se a mudar. E é exatamente isso o que nossa sociedade está fazendo! Sabul usa você onde ele pode, e onde não pode ele o impede de publicar, de ensinar, e até de trabalhar. Certo? Em outras palavras, ele tem poder sobre você. E de onde ele tira esse poder? Não de uma autoridade investida, pois ela não existe. Ele tira o poder da covardia inata da mente humana média. Opinião pública! Essa é a estrutura de poder da qual ele faz parte e sabe usar. O não admitido e inadmissível governo que controla a sociedade odoniana pela repressão da mente individual.
Shevek apoiou as mãos no peitoril da janela, olhando através dos reflexos embaçados na vidraça para a escuridão lá fora. Por fim, disse:
– Que conversa maluca, Dap.
– Não, irmão, estou lúcido. O que enlouquece as pessoas é tentar viver fora da realidade. A realidade é terrível. Pode matá-lo. Com o tempo, é certeza de que irá matá-lo. A realidade é dor... Você disse isso! Mas são as mentiras, as fugas da realidade que o enlouquecem. São as mentiras que o fazem querer se matar.
Shevek virou-se para encará-lo.
– Mas você não pode estar falando sério sobre a existência de um governo aqui!
– Das Definições, de Tomar: “Governo: o uso legal do poder para manter e estender o poder”. Substitua “legal” por “habitual” e teremos Sabul, o Sindicato de Instrução e o CPD.
– O CPD!
– O CPD, a esta altura, é basicamente uma burocracia hierárquica.
Após um momento, Shevek riu, não com muita naturalidade, e disse:
– Ora, vamos, Dap, isso é divertido, mas um pouco doentio, não acha?
– Shevek, já lhe ocorreu que aquilo que o modo analógico chama de “doença”, desafeição social, descontentamento, alienação, pode ser analogicamente chamado de... dor, e foi o que você quis dizer quando falou sobre a dor e o sofrimento? E que, como a dor, ela tem uma função no organismo?
– Não! – respondeu Shevek, impetuosamente. – Eu estava falando em termos pessoais e espirituais.
– Mas você falou em sofrimento físico, de um homem morrendo com queimaduras. E eu falo de sofrimento espiritual! De pessoas vendo seu talento, seu trabalho, suas vidas serem desperdiçadas. De mentes inteligentes se submetendo a mentes burras. De força e coragem estranguladas pela inveja, pela cobiça por poder, pelo medo da mudança. Mudança é liberdade, mudança é vida... Existe alguma coisa mais básica ao pensamento odoniano do que isso? Mas não existe mais mudança! Nossa sociedade está doente. Você sabe disso. Você está sofrendo dessa doença. Dessa doença suicida!
– Chega, Dap. Pare com isso.
Bedap não disse mais nada. Começou a roer a unha do polegar metodicamente, pensativo.
Shevek tornou a sentar-se na cama e pôs a cabeça nas mãos. Houve um longo silêncio. A neve cessara. Um vento seco e escuro batia na vidraça. O quarto estava frio; nenhum dos dois jovens tirara o casaco.
– Escute, irmão – disse Shevek, enfim. – Não é a nossa sociedade que frustra a criatividade individual. É a pobreza de Anarres. Este planeta não é adequado à civilização. Se decepcionarmos uns aos outros, se não renunciarmos a nossos desejos pessoais pelo bem comum, nada, nada neste planeta árido pode nos salvar. A solidariedade humana é nosso único recurso.
– Sim, solidariedade! Até em Urras, onde a comida dá em árvores, até lá Odo disse que a solidariedade é a nossa esperança. Mas nós traímos essa esperança. Deixamos a cooperação virar obediência. Em Urras eles têm o governo da minoria. Aqui temos o governo da maioria. Mas é governo! A consciência social não é mais uma coisa viva, mas uma máquina, uma máquina de poder, controlada por burocratas!
– Você ou eu poderíamos nos voluntariar e sermos sorteados para um posto no CPD em algumas décades. Isso nos tornaria burocratas, patrões?
– Não são os indivíduos em postos no CPD, Shev. A maioria é como nós. Como nós até demais. Bem-intencionados, ingênuos. E não é só o CPD. É qualquer lugar em Anarres. Centros de aprendizagem, institutos, minas, usinas, indústria da pesca, de enlatados, estações de pesquisa e desenvolvimento agrícola, fábricas, comunidades de um só produto... qualquer lugar em que a função exija perícia e uma instituição estável. Mas essa estabilidade dá margem ao impulso autoritário. Nos primórdios da Colonização, tínhamos consciência disso, do cuidado que devíamos ter com isso. Naquela época, as pessoas faziam uma distinção meticulosa entre administrar coisas e governar pessoas. Fizeram isso tão bem a ponto de esquecermos que a vontade de dominar é tão crucial nos seres humanos quanto o impulso à ajuda mútua e que também deve ser treinada em cada indivíduo, em cada geração. Ninguém nasce odoniano, assim como ninguém nasce civilizado! Mas esquecemos isso. Não educamos para a liberdade. A educação, a atividade mais importante do organismo social, tornou-se rígida, moralista, autoritária. As crianças aprendem a papaguear as palavras de Odo como se fossem leis... a suprema blasfêmia!
Shevek hesitou. Tinha experimentado muito esse tipo de ensino quando criança, e até ali no Instituto, para ser capaz de negar a acusação de Bedap.
Bedap aproveitou sua vantagem de maneira implacável.
– É sempre mais fácil não pensar por si mesmo. É só encontrar uma bela e confortável hierarquia e se acomodar. Não faça mudanças, não corra o risco de ser desaprovado, não aborreça seus síndicos. É sempre mais fácil deixar-se governar.
– Mas não é governo, Dap! Os peritos e os mais experientes sempre vão dirigir qualquer equipe ou sindicato; eles conhecem melhor o trabalho. O trabalho tem de ser feito, afinal de contas! Quanto ao CPD, sim, ele poderia se tornar uma hierarquia, uma estrutura de poder, se não fosse organizado de modo a evitar exatamente isso. Veja como é constituído! Voluntários, escolhidos por sorteio; um ano de treinamento; depois, quatro anos como Alistado; depois, fora. Ninguém consegue conquistar poder, no sentido hierárquico, num sistema como esse, com apenas quatro anos dentro dele.
– Alguns ficam mais de quatro anos.
– Conselheiros? Eles não mantêm o voto.
– Votos não são importantes. Há pessoas nos bastidores...
– Ora! Isso é pura paranoia! Bastidores... como? Que bastidores? Qualquer um pode acompanhar qualquer reunião do CPD e, se for um síndico interessado, pode debater e votar! Você está tentando insinuar que temos políticos aqui? – Shevek estava furioso com Bedap; suas orelhas salientes ficaram vermelhas, sua voz se elevou. Era tarde, nenhuma luz acesa no quadrilátero. Desar, no Quarto 45, bateu na parede, pedindo silêncio.
– Estou dizendo o que você já sabe – respondeu Bedap, baixando a voz. – Que são pessoas como Sabul que de fato mandam no CPD, e mandam ano após ano.
– Se você sabe disso – Shevek acusou, num sussurro áspero –, então por que não tornou isso tudo público? Por que não convocou uma sessão crítica no seu sindicato, se existem fatos? Se suas ideias não resistem ao julgamento público, não quero ouvi-las em sussurros à meia-noite.
Os olhos de Bedap tinham ficado muito pequenos, como contas de aço.
– Irmão – ele disse –, você se acha moralmente superior. Sempre se achou. Olhe para fora de sua maldita consciência limpa pelo menos uma vez! Venho até você e sussurro porque sei que posso confiar em você, caramba! Com quem mais posso conversar? Você quer acabar como Tirin?
– Como Tirin? – Shevek assustou-se a ponto de erguer a voz. Bedap o silenciou com um gesto em direção à parede. – O que houve com Tirin? Onde ele está?
– No Manicômio da Ilha Segvina.
– No Manicômio?
Bedap sentou-se de lado na cadeira, levantou os joelhos até o queixo e os envolveu em seus braços. Falou calmamente agora, com relutância.
– Tirin escreveu uma peça e a encenou, no ano em que você foi embora. Era engraçada... louca... você conhece o jeito dele – Bedap passou a mão pelo cabelo áspero e ruivo, soltando o rabo de cavalo. – A peça poderia parecer antiodoniana a pessoas estúpidas. Há muita gente estúpida. Houve uma confusão. Ele foi repreendido. Repreensão pública. Nunca tinha visto uma. Todos vão à reunião do seu sindicato e o advertem. Era assim que reprimiam um chefe de equipe ou um administrador mandão. Agora usam a reprimenda pública para ordenar a um indivíduo que pare de pensar por si mesmo. Foi difícil. Tirin não aguentou. Acho que afetou um pouco mesmo a mente dele. Achou que todo mundo estava contra ele. Passou a falar demais... uma conversa amarga. Não irracional, mas sempre crítica, sempre amarga. E ele falava daquele jeito com todo mundo. Bem, ele terminou o Instituto, qualificou-se como instrutor de matemática e solicitou um posto. Conseguiu um. Na equipe de manutenção de estradas no Poente Sul. Ele protestou, alegando que havia algum engano, mas os computadores da Divlab repetiram a indicação. Então ele foi.
– Tirin nunca trabalhou ao ar livre no tempo todo em que o conheci – interrompeu Shevek. – Desde que tinha 10 anos. Ele sempre arranjava serviço em escritórios. A Divlab estava sendo justa.
Bedap não prestou atenção.
– Não sei o que realmente se passou lá no Poente Sul. Ele me escreveu várias vezes, e a cada vez tinha sido removido para um posto novo. Sempre trabalho braçal, em pequenas comunidades afastadas. Escreveu dizendo que ia abandonar o posto e voltar para o Poente Norte para me ver. Mas não veio. Parou de escrever. Finalmente, consegui localizá-lo através dos Arquivos Laborais de Abbenay. Enviaram-me a cópia do cartão dele, e a última entrada era apenas “Terapia. Ilha de Segvina”. Terapia! Tirin matou alguém? Violentou alguém? Por que motivo mandam gente para o Manicômio, além desses?
– Ninguém manda ninguém para um manicômio. Você é que solicita um posto lá.
– Não me venha com essa merda – Bedap disse, com fúria repentina. – Ele nunca pediu para ser mandado para lá! Eles o enlouqueceram e depois o mandaram para lá. É do Tirin que estou falando, Tirin, você se lembra dele?
– Eu o conheci antes de você. O que você acha que é o Manicômio... uma prisão? É um refúgio. Se lá existem assassinos e desertores inveterados do trabalho é porque eles pediram para ir para lá, onde não ficam sob pressão e estão a salvo de retaliações. Mas quem são essas pessoas de quem você não para de falar... “eles”? “Eles” o enlouqueceram e tal? Está insinuando que todo o sistema social é mau, que na verdade “eles”, os perseguidores de Tirin, seus inimigos, “eles” somos nós... o organismo social?
– Se você consegue descartar Tirin da sua consciência como um desertor do trabalho, acho que não tenho mais nada a lhe dizer – respondeu Bedap, encolhido na cadeira. Havia um pesar tão simples e sincero em sua voz que a ira virtuosa de Shevek cessou de repente.
Nenhum dos dois falou por um momento.
– É melhor eu ir para casa – disse Bedap, desdobrando as pernas rígidas e pondo-se de pé.
– É uma hora a pé daqui. Não seja estúpido.
– Bem, eu achei... já que...
– Não seja estúpido.
– Tudo bem. Onde é o banheiro?
– À esquerda, terceira porta.
Quando voltou, Bedap propôs dormir no chão, mas como não havia tapete e apenas um cobertor quente, essa ideia foi, como Shevek observou monotonamente, estúpida. Ambos estavam chateados e irritados; doloridos, como se tivessem trocado socos, mas sem pôr toda a raiva para fora. Shevek desenrolou a roupa de cama, e eles se deitaram. Quando a luz foi apagada, uma escuridão prateada entrou no quarto, a semiescuridão de uma noite na cidade quando há neve no chão e a luz reflete debilmente para cima a partir do solo. Estava frio. Cada um deles recebeu com agrado o calor do corpo do outro.
– Retiro o que eu disse sobre o cobertor.
– Escute, Dap, eu não quis...
– Ah, vamos conversar de manhã.
– Certo.
Chegaram mais perto um do outro. Shevek virou-se de bruços e dormiu em dois minutos. Bedap lutou para manter a consciência, entregou-se ao calor mais profundo, à vulnerabilidade, à confiança do sono, e dormiu. No meio da noite um deles gritou, sonhando. O outro estendeu o braço, sonolento, e murmurou algo tranquilizador, e o peso cego e quente daquele toque suplantou todo o medo.
Tornaram a se encontrar na noite seguinte e discutiram se deviam ou não ser pares por um tempo, como tinham sido na adolescência. O assunto precisava ser discutido, pois Shevek era definitivamente heterossexual e Bedap era definitivamente homossexual; o prazer seria sobretudo para Bedap. Shevek estava disposto, contudo, a reconfirmar a velha amizade; e quando percebeu que o elemento sexual significava bastante a Bedap, uma verdadeira consumação, tomou a iniciativa e, com muito carinho e obstinação, assegurou-se de que Bedap passaria a noite com ele outra vez. Foram a um quarto individual num domicílio no centro da cidade e moraram ali por uma décade; depois se separaram de novo, Bedap para seu dormitório e Shevek para o Quarto 46. Não havia um forte desejo sexual em nenhum dos dois para que a ligação durasse. Eles simplesmente reafirmaram a confiança.
No entanto, Shevek às vezes se perguntava, enquanto ia se encontrar com Bedap quase todos os dias, do que é que gostava em seu amigo e por que confiava nele. Considerava as atuais opiniões de Badap detestáveis, e sua insistência em conversar sobre elas, cansativa. Tinham discussões calorosas em quase todos os encontros. Magoavam-se bastante. Ao deixar Bedap, Shevek com frequência acusava a si mesmo de estar apenas se apoiando numa lealdade ultrapassada e, exasperado, jurava que não tornaria a vê-lo.
Mas o fato é que ele gostava mais de Bedap agora, como adulto, do que jamais gostara na adolescência. Inepto, insistente, dogmático, destrutivo: Bedap podia ser tudo isso, mas atingira a liberdade de pensamento que Shevek almejava, embora odiasse a expressão dessa liberdade. Ele mudara a vida de Shevek, e Shevek sabia disso, sabia que enfim seguiria em frente e que foi Bedap quem lhe possibilitara seguir em frente. Brigava com Bedap a cada passo do caminho, mas não deixava de ir vê-lo, para discutir, para magoar e ser magoado, para encontrar – sob raiva, negação e rejeição – o que procurava. Não sabia o que procurava, mas sabia onde procurar.
Foi, conscientemente, um período tão infeliz para ele como fora o ano anterior. Ainda não avançava em seu trabalho; na verdade, abandonara de uma vez a Física Temporal e retrocedera ao humilde trabalho de laboratório, realizando diversas experiências no laboratório de radiação, estudando velocidades subatômicas junto com um técnico hábil e silencioso. Era um campo muito explorado, e seu ingresso atrasado na área foi considerado por seus colegas como um reconhecimento de que ele finalmente tinha parado de tentar ser original. O Sindicato dos Membros do Instituto deu-lhe um curso para lecionar, Física Matemática para alunos iniciantes. Ele não teve nenhuma sensação de triunfo por finalmente terem lhe dado um curso, pois não passava disto: tinham lhe dado o curso, tinham lhe permitido. Não encontrava muito conforto em coisa alguma. O fato de os muros de sua consciência inflexível e puritana estarem se ampliando imensamente trazia-lhe tudo menos conforto. Sentia-se frio e perdido. Mas não tinha nenhum lugar para se refugiar, nenhum abrigo, então saía cada vez mais para o frio, ficando cada vez mais perdido.
Bedap fizera muitos amigos, um grupo errático e descontente, e alguns deles gostaram do homem tímido. Não se sentia mais próximo deles do que das pessoas mais convencionais do Instituto, embora a sua independência de pensamento fosse mais interessante. Preservavam a autonomia de consciência mesmo à custa de se tornarem excêntricos. Alguns eram nuchnibi intelectuais que há anos não trabalhavam num posto regular. Shevek os desaprovava com severidade quando não estava com eles.
Um desses amigos era um compositor chamado Salas. Salas e Shevek queriam aprender um com o outro. Salas sabia pouco de matemática, mas, quando Shevek conseguia explicar física nos modos analógico ou experimental, ele era um ouvinte ávido e inteligente. Do mesmo modo, Shevek ouvia qualquer coisa que Salas lhe dissesse sobre teoria musical e qualquer coisa que Salas tocasse no gravador ou em seu instrumento, o portátil. Mas achava algumas das coisas que Salas lhe dizia extremamente perturbadoras. Salas aceitara um posto na equipe de escavação de um canal nas Planícies de Temae, a leste de Abbenay. Ele vinha à cidade nos seus três dias de folga a cada décade e ficava com uma ou outra moça. Shevek presumiu que ele aceitara o posto porque queria um pouco de trabalho ao ar livre para variar; mas então descobriu que Salas nunca tivera um posto em música, ou em qualquer coisa a não ser trabalho não qualificado.
– Em que lista você está na Divlab? – Shevek perguntou, perplexo.
– Grupo de Serviços Gerais.
– Mas você é qualificado! Estudou seis ou oito anos no conservatório do Sindicato de Música, não foi? Por que não lhe dão um posto como professor de música?
– Eles me deram. Recusei. Só vou estar pronto para ensinar daqui a dez anos. Lembre que sou compositor, não intérprete.
– Mas deve haver postos para compositores.
– Onde?
– No Sindicato de Música, suponho.
– Mas os síndicos da Música não gostam das minhas composições. Quase ninguém gosta, ainda. Não posso formar um sindicato sozinho, posso?
Salas era um homenzinho ossudo, já calvo na fronte e no crânio; mantinha curto o cabelo que lhe restava, numa franja bege e sedosa em volta da nuca e no queixo. Tinha um sorriso doce que lhe enrugava o rosto expressivo.
– Eu não componho do modo como aprendi a compor no conservatório. Componho música disfuncional. – Deu um sorriso mais doce do que nunca. – Eles querem corais. Eu detesto corais. Querem peças de grande harmonia, como as que Sessur compôs. Eu odeio a música de Sessur. Estou escrevendo uma peça de câmara. Pensei em chamá-la de O Princípio da Simultaneidade. Cinco instrumentos, cada um tocando um tema cíclico independente; nenhuma causalidade melódica; todo o andamento na relação entre as partes. Daria uma harmonia adorável. Mas eles não a ouvem. Eles se recusam a ouvi-la. Não conseguem!
Shevek refletiu por um instante.
– Se você a chamasse de As Alegrias da Solidariedade, eles a ouviriam? – perguntou.
– Caramba! – exclamou Bedap, que estava ouvindo a conversa. – É a primeira coisa cínica que você disse na vida, Shev. Bem-vindo à equipe de trabalho!
Salas riu.
– Eles a ouviriam, mas a recusariam para gravação ou apresentação regional. Não é o Estilo Orgânico.
– Não é à toa que eu nunca ouvi nenhuma música profissional quando morei no Poente Norte. Mas como podem justificar esse tipo de censura? Você escreve música! Música é uma arte cooperativa, orgânica por definição, social. Talvez seja a forma mais nobre de comportamento social de que somos capazes. Seguramente é um dos trabalhos mais nobres que um indivíduo pode empreender. E por sua natureza, pela natureza de qualquer arte, é um compartilhamento. O artista compartilha, é a essência de seu ato. Não importa o que digam os seus síndicos, como a Divlab pode justificar não lhe darem um posto em seu próprio campo?
– Eles não querem compartilhar minha música – Salas disse, alegremente. – Ela os assusta.
Bedap falou com mais seriedade:
– Podem justificar porque a música não é útil. Escavar um canal é importante, você sabe; música é mera decoração. O círculo deu a volta ao tipo mais vil de utilitarismo explorador. A complexidade, a vitalidade, a liberdade de invenção e iniciativa, que eram o centro do ideal odoniano, jogamos fora. Retornamos à barbárie. Se é novo, fuja; se não pode comer, jogue fora!
Shevek pensou no próprio trabalho e não teve nada a dizer. No entanto, não podia se unir à crítica de Bedap. Bedap o forçara a perceber que ele era, na verdade, um revolucionário; mas sentia profundamente que o era somente por causa de sua criação e educação como um odoniano anarresti. Não podia se rebelar contra sua sociedade, pois sua sociedade, propriamente concebida, era uma revolução, uma revolução permanente, um processo contínuo. Para reafirmar sua validade e força, pensava ele, era preciso apenas agir, sem medo de punição e sem a esperança de recompensa; agir com o centro da alma.
Bedap e alguns de seus amigos iam tirar uma décade de folga juntos, numa excursão a pé pelas Ne Theras. Ele persuadira Shevek a ir também. Shevek gostava da perspectiva de dez dias nas montanhas, mas não da perspectiva de dez dias de opiniões de Bedap. A conversa de Bedap parecia demais uma Sessão de Crítica, a atividade comunitária de que ele sempre menos gostara, em que todos ficavam de pé e reclamavam dos defeitos no funcionamento da comunidade e, geralmente, dos defeitos no caráter de seus vizinhos. Quanto mais perto chegavam as férias, menos queria ir. Mas enfiou um caderno no bolso, para que pudesse se afastar dos outros e fingir que estava trabalhando, e foi.
Encontraram-se de manhã cedo atrás do depósito de mercadorias para transporte rodoviário Ponta Oriental, três mulheres e três homens. Shevek não conhecia nenhuma das mulheres, e Bedap o apresentou a apenas duas delas. Quando partiram na estrada rumo às montanhas, ele marchou ao lado da terceira mulher.
– Shevek – apresentou-se.
– Eu sei – ela disse.
Ele deu-se conta de que devia tê-la encontrado antes em algum lugar e deveria saber o nome dela. Suas orelhas ficaram vermelhas.
– Você está brincando? – Bedap perguntou, movendo-se para a esquerda. – Takver estava no Instituto do Poente Norte conosco. Ela mora em Abbenay há dois anos. Vocês não tinham se visto aqui até agora?
– Eu o vi umas duas vezes – disse a moça, e riu dele. Sua risada era de alguém que gostava de comer bem, um riso aberto e infantil. Era alta e um tanto magra, com braços arredondados e quadris largos. Não era muito bonita; tinha o rosto moreno, inteligente e animado. Em seus olhos havia uma escuridão, não a opacidade de olhos escuros e vivos, mas certa profundidade, quase como o negrume profundo de cinzas finas, muito suaves. Encontrando o olhar de Takver, Shevek sabia que havia cometido uma falta imperdoável ao esquecê-la e, no mesmo instante dessa percepção, compreendeu também que tinha sido perdoado. Que estava com sorte. Que a sorte havia mudado.
Começaram a subir as montanhas.
Na noite fria do quarto dia da excursão, ele e Takver sentaram-se na escarpa árida acima de um desfiladeiro. Quarenta metros abaixo deles, uma torrente ruidosa precipitava-se pelo barranco em meio às rochas molhadas pelos borrifos d’água. Havia pouca água corrente em Anarres; o lençol aquífero era baixo na maioria dos lugares, os rios eram curtos. Somente nas montanhas havia correntezas. O barulho da água gritando, chapinhando e cantando era novo para eles.
Os dois tinham passado o dia subindo e descendo desfiladeiros como aquele no platô e estavam com as pernas exaustas. O restante do grupo permaneceu no Abrigo do Caminho, um alojamento de pedra feito por e para excursionistas, e muito bem cuidado; a federação das Ne Theras era o mais ativo dos grupos de voluntários que administravam e protegiam as limitadas “paisagens deslumbrantes” de Anarres. Um guarda-florestal que vivia lá no verão estava ajudando Bedap e os outros a preparar o jantar com os ingredientes da despensa bem abastecida. Takver e Shevek tinham saído, nessa ordem, separadamente, sem dizer aonde iam e, na verdade, sem saber aonde iam.
Ele a encontrou na escarpa, sentada por entre os arbustos delicados de espinhos-da-lua que cresciam como laços de renda nas vertentes das montanhas, com seus ramos rígidos e frágeis prateados à luz do crepúsculo. Numa abertura entre os picos a leste, uma luminosidade descolorida do céu anunciava o luar. A correnteza fazia barulho no silêncio das colinas altas e áridas. Não havia nenhum vento, nenhuma nuvem. O ar acima das montanhas era como a ametista: duro, claro, profundo.
Estavam ali sentados há algum tempo sem falar.
– Nunca me senti tão atraído por uma mulher na minha vida como me senti por você. Desde que começamos a excursão. – O tom de voz de Shevek era frio, quase ressentido.
– Não tinha a intenção de estragar as suas férias – ela disse, com uma risada aberta e infantil, alta demais para o crepúsculo.
– Não estragou!
– Que bom. Pensei que você estava querendo dizer que isso o perturbou.
– Perturbou! Foi como um terremoto.
– Obrigada.
– Não é você – ele disse num tom áspero. – Sou eu.
– Isso é o que você pensa – ela retrucou.
Houve uma pausa um tanto longa.
– Se quer copular, por que não me pediu? – ela perguntou.
– Porque não tenho certeza se é isso o que realmente quero.
– Nem eu. – O sorriso dela sumiu. – Escute – ela disse, com a voz suave, sem muito timbre; tinha a mesma característica felpuda dos olhos. – Preciso lhe dizer. – Mas o que ela precisava lhe dizer permaneceu não dito por um longo instante. Por fim ele a olhou com apreensão tão aflita que ela se apressou a falar, e disse de uma vez:
– Bem, o que eu quero dizer é que não quero copular com você agora. Nem com ninguém.
– Você jurou não fazer mais sexo?
– Não! – ela respondeu com indignação, mas sem se explicar.
– Era melhor eu ter jurado – ele disse, jogando uma pedrinha na correnteza. – Ou então sou mesmo impotente. Já faz meio ano, e fiz apenas com o Dap. Quase um ano, na verdade. Cada vez menos satisfatório, até que eu desisti de tentar. Não valia a pena. Não valia o trabalho. Mesmo assim, eu... Eu me lembro... Sei o que deveria ser.
– Bem, é isso – disse Takver. – Eu me divertia muito copulando, até os meus 18 ou 19 anos. Era excitante, interessante, prazeroso. Mas aí... Não sei. Como você disse, ficou insatisfatório. Eu não queria prazer. Quer dizer, não só prazer.
– Quer ter filhos?
– Sim, quando chegar a hora.
Ele arremessou outro pedregulho na correnteza, que estava desaparecendo nas sombras do barranco, deixando apenas o barulho para trás, uma harmonia incessante composta de desarmonias.
– Eu quero realizar um trabalho – ele disse.
– Ser celibatário ajuda?
– Existe uma relação. Mas não sei qual é, não é causal. Mais ou menos na mesma época em que o sexo começou a ficar desagradável para mim, o trabalho também ficou. Cada vez mais. Três anos sem chegar a nada. Esterilidade. Esterilidade de todos os lados. Até onde a vista alcança, o deserto infértil se estende sob a luz impiedosa do sol inclemente, um descampado sem vida, sem caminho, sem energia, sem sexo, coberto de ossos dos caminhantes sem sorte...
Takver não riu; deu uma risadinha chorosa, como se doesse. Ele tentou claramente interpretar a expressão no rosto da moça. Atrás da cabeça escura de Takver o céu estava sólido e claro.
– O que há de errado com o prazer, Takver? Por que você não o quer?
– Não há nada de errado. E eu o quero. Só que não preciso dele. E se eu aceitar o que não necessito, nunca vou conseguir o que realmente necessito.
– E o que é que você necessita?
Ela baixou os olhos para o chão, arranhando a superfície de um afloramento rochoso com a unha. Não disse nada. Curvou-se para pegar um ramo de espinho-da-lua, mas não arrancou, apenas o tocou, sentiu o caule felpudo e a folha frágil. Shevek viu na tensão em seus movimentos que ela tentava com todas as forças conter ou reprimir uma torrente de emoções, para que conseguisse falar. Quando falou, sua voz era baixa e um pouco rouca.
– Preciso de uma ligação – ela disse. – Uma ligação real. Corpo e mente, por todos os anos da vida. Nada mais. Nada menos.
Lançou um olhar de desafio para ele, poderia ter sido de raiva.
Uma alegria surgiu misteriosamente dentro dele, como o som e o cheiro da água corrente subindo através da escuridão. Teve uma sensação de infinitude, de limpidez, total limpidez, como se tivesse sido libertado. Atrás da cabeça de Takver o céu brilhava com a lua nascente; os picos distantes flutuavam claros e prateados.
– Sim, é isso – ele disse, sem constrangimento, sem nenhum senso de estar conversando com outra pessoa; falou, pensativo, o que lhe veio à cabeça. – Eu nunca compreendi.
Ainda havia certo ressentimento na voz de Takver.
– Você nunca precisou compreender.
– Por que não?
– Porque nunca viu a possibilidade de ter uma ligação, suponho.
– Como assim, a possibilidade?
– A pessoa!
Ele refletiu sobre isso. Estavam sentados a cerca de um metro um do outro, abraçando os próprios joelhos, pois começava a esfriar. O ar entrava pela garganta como água gelada. Viam a respiração um do outro, um vapor fraco ao luar cada vez mais firme.
– A noite em que eu vi essa possibilidade – disse Takver – foi a noite antes de você deixar o Instituto do Poente Norte. Houve uma festa, você lembra. Nós ficamos sentados, conversando a noite toda. Mas isso foi há quatro anos. E você nem sabia o meu nome. – Não havia mais rancor em sua voz; ela parecia querer desculpá-lo.
– Você viu em mim, naquela época, o que eu vi em você nestes quatro últimos dias?
– Não sei. Não sei dizer. Não foi só sexual. Já tinha reparado em você assim. Mas aquilo foi diferente; eu vi você. Mas não sei o que você vê em mim agora. E eu na verdade não sei o que vi em você na época. Não sabia absolutamente nada sobre você. Só que, quando você falou, parece que eu vi claramente o seu interior, o seu centro. Mas você poderia ser bem diferente do que eu achei que era. Não seria culpa sua, afinal – ela acrescentou. – Eu apenas percebi que o que eu vi em você era o que eu precisava. Não apenas o que eu queria!
– E você está em Abbenay há dois anos e não...
– Não o quê? Era só do meu lado, na minha cabeça, você nem sequer sabia o meu nome. Afinal, uma pessoa só não pode formar uma ligação!
– E você teve medo de vir até mim e eu talvez não querer essa ligação.
– Não foi medo. Eu sabia que você era o tipo de pessoa que... que se recusa a ser forçado... Bem, sim, eu estava com medo. Estava com medo de você. Não de cometer um engano. Eu sabia que não estava enganada. Mas você é... você mesmo. Você não é como a maioria das pessoas, você sabe. Eu tinha medo de você porque sabia que éramos iguais! – Seu tom de voz quando terminou era veemente, mas logo falou com muita delicadeza, com bondade. – Sabe, Shevek, isso realmente não tem importância.
Era a primeira que ele a ouvia dizer seu nome. Virou-se para ela e disse balbuciando, quase se engasgando:
– Não tem importância? Primeiro você me mostra... me mostra o que importa, o que realmente importa, o que eu necessitei toda a minha vida... e depois diz que não tem importância!
Estavam cara a cara agora, mas não se tocaram.
– É disso que você precisa, então?
– Sim. A ligação. A chance.
– Agora... e por toda a vida?
– Agora e por toda a vida.
“Vida”, disse a torrente de água, caindo pelas rochas no frio escuro.
Quando Shevek e Takver desceram as montanhas, mudaram-se para um quarto de casal. Não havia nenhum quarto vago nos quarteirões próximos ao Instituto, mas Takver conhecia um não muito longe, num velho domicílio no extremo norte da cidade. A fim de conseguirem o quarto, foram falar com a administradora habitacional do quarteirão – Abbenay dividia-se em cerca de duzentas regiões administrativas locais, chamadas quarteirões –, uma esmeriladora de lentes que trabalhava em casa e mantinha os três filhos em casa com ela. Guardava, portanto, os arquivos numa prateleira alta do armário para que as crianças não os alcançassem. Verificou na papelada que o quarto estava registrado como vago; Shevek e Takver registraram-no como ocupado assinando seus nomes.
A mudança também não foi complicada; Shevek trouxe uma caixa de papéis, as botas de inverno e o cobertor laranja. Takver teve de fazer três viagens. Uma delas foi ao depósito de roupas do bairro para obter uma muda de roupa nova para os dois, um gesto que ela sentiu, de modo obscuro, mas intenso, ser essencial ao início da parceria. Depois foi ao seu antigo dormitório, uma vez para pegar roupas e papéis, e outra vez, com Shevek, para trazer alguns objetos curiosos: formas concêntricas complexas feitas de arame, que se moviam e mudavam devagar para o centro quando penduradas no teto. Ela tinha feito aquilo com restos de arame e ferramentas do depósito de suprimentos de artesanato e os chamava de Ocupações do Espaço Inabitado. Uma das cadeiras do quarto estava decrépita, então a levaram a uma oficina de consertos, onde a trocaram por uma em perfeito estado. Assim, a mobília ficou completa. O novo quarto tinha o teto alto, o que o tornava arejado e dava espaço de sobra para as Ocupações. O domicílio fora construído numa das colinas baixas de Abbenay, e o quarto tinha uma janela de canto que pegava o sol da tarde e oferecia uma vista da cidade: as ruas e praças, os telhados, os parques verdes, as planícies além.
A intimidade após longa solidão, a brusquidão do contentamento puseram à prova a estabilidade tanto de Shevek quanto de Takver. Nas primeiras décades, ele teve oscilações frenéticas entre euforia e ansiedade; ela teve acessos de mau humor. Ambos eram hipersensíveis e inexperientes. A tensão não durou, pois se tornaram peritos um no outro. O apetite sexual persistia como deleite apaixonado, o desejo por comunhão se renovava dia a dia, pois dia a dia era satisfeito.
Agora estava claro para Shevek, e ela acharia tolice pensar de outra forma, que os anos imprestáveis que ele passara naquela cidade tinham sido parte de sua grande felicidade atual, pois o conduziram a ela, o prepararam para ela. Tudo o que lhe acontecera fazia parte do que lhe acontecia agora. Takver não entendia esses obscuros encadeamentos de causa/efeito/causa, mas ela não era física temporal. Ingenuamente, via o tempo como um caminho traçado. Caminhava-se nele e chegava-se a algum lugar. Se houvesse sorte, chegava-se a algum lugar que valia a pena.
Mas quando Shevek pegou essa metáfora e a reformulou em seus próprios termos, explicando que se o passado e o futuro não fizessem parte do presente como memória e intenção, não haveria, em termos humanos, caminho algum e nenhum lugar aonde ir, ela concordou com a cabeça antes que ele concluísse.
– Exatamente – ela disse. – Era o que eu estava fazendo nos últimos quatro anos. Nem tudo é sorte. Só em parte.
Ela tinha 23 anos, meio ano mais nova que Shevek. Crescera numa comunidade agrícola, Vale Redondo, no Nordeste. Era um lugar isolado e, antes de vir para o Instituto do Poente Norte, Takver tinha trabalhado muito mais que a maioria dos jovens anarrestis. Mal havia a quantidade de gente necessária no Vale Redondo para realizar os serviços essenciais, mas a comunidade não era grande o suficiente, ou produtiva o suficiente na economia geral, para obter prioridade dos computadores da Divlab. Tinha de se cuidar sozinha. Aos 8 anos, Takver trabalhara três horas por dias nas usinas, tirando palha e pedra dos grãos de holum, depois de passar três horas de escola. Pouco de seu treinamento prático quando criança destinara-se ao aprimoramento pessoal: fizera parte da luta da comunidade para sobreviver. Nas estações de plantio e colheita, todos acima de 10 e abaixo de 60 anos trabalhavam nos campos o dia todo. Aos 15 anos, ela fora encarregada de coordenar as escalas de trabalho nos quatrocentos lotes agrícolas cultivados pela comunidade do Vale Redondo e auxiliara a nutricionista no planejamento do refeitório da cidade. Não havia nada incomum em tudo isso, e Takver não pensava muito no assunto, mas é claro que a experiência formou certos elementos de seu caráter e de suas opiniões. Shevek alegrava-se de ter feito sua parte no kleggich, pois Takver desprezava as pessoas que fugiam do trabalho braçal.
– Veja o Tinan – ela dizia –, choramingando e lamuriando só porque pegou um posto de quatro décades no grupo de colheita de raiz de holum. Ele é tão delicado que parece ovo de peixe! Nunca mexeu com terra? – Takver não era particularmente caridosa, e era temperamental.
Estudara biologia no Instituto Regional do Poente Norte, com distinção suficiente para decidir aprofundar os estudos no Instituto Central. Após um ano foi convidada a entrar em um novo sindicato que estava instalando um laboratório para estudar técnicas de aumento e melhoria das reservas de peixes comestíveis nos três oceanos de Anarres. Quando perguntavam o que fazia, ela respondia: “Sou geneticista de peixe”. Gostava do trabalho; ele reunia duas coisas de que ela gostava: pesquisa precisa, factual, e um objetivo específico de aumento ou aperfeiçoamento. Sem um trabalho assim, ela não estaria satisfeita. Mas só o trabalho não lhe bastava. A maior parte do que se passava na mente e no espírito de Takver pouco tinha a ver com genética de peixe.
Seu interesse em paisagens e criaturas vivas era passional. Esse interesse, debilmente chamado de “amor à natureza”, parecia a Shevek algo muito mais amplo do que amor. Existem almas, pensava ele, cujo cordão umbilical nunca foi cortado. Nunca foram desmamadas do universo. Não encaram a morte como inimiga; não veem a hora de apodrecer e virar húmus. Era estranho ver Takver pegar uma folha na mão, ou mesmo uma pedra. Ela se tornava uma extensão delas, e elas de Takver.
Mostrou a Shevek os tanques de água do mar no laboratório de pesquisa, mais de cinquenta espécies de peixe, grandes e pequenos, simples ou vistosos, elegantes e grotescos. Ele ficou fascinado e um pouco amedrontado.
Os três oceanos de Anarres eram repletos de vida animal, ao contrário da superfície terrestre, em que não havia nenhuma. Por vários milhões de anos, os mares estiveram separados, por isso as formas de vida seguiram cursos isolados de evolução. A variedade era desconcertante. Nunca ocorrera a Shevek que a vida poderia proliferar de maneira tão desenfreada e tão exuberante, que a exuberância talvez fosse uma característica essencial da vida.
Na terra, as plantas se desenvolveram bem, a seu modo esparso e espinhoso, mas quase todos os animais que tentaram respirar o ar desistiram do intento quando o clima do planeta entrou numa era milenar de poeira e estiagem. As bactérias sobreviveram, muitas delas litófagas, assim como algumas centenas de espécies de vermes e crustáceos.
O homem se inseriu com cuidado e risco nessa ecologia limitada. Se pescasse, mas não com muita avidez, e se cultivasse, utilizando detritos orgânicos como adubo principal, ele poderia se inserir. Mas não poderia inserir mais ninguém. Não havia pasto para herbívoros. Não havia herbívoros para carnívoros. Não havia insetos para fecundar plantas com flores; as árvores frutíferas importadas eram todas fertilizadas à mão. Não introduziram nenhum animal de Urras, para não ameaçar o delicado equilíbrio da vida. Só vieram os Colonos, e tão bem lavados interna e externamente que trouxeram um mínimo de sua fauna e flora pessoais. Nem uma pulga chegou a Anarres.
– Gosto de biologia marinha – Takver disse a Shevek, em frente aos tanques de peixes – porque é tão complexa, uma verdadeira teia. Esse peixe come aquele peixe que come aquele peixinho que come ciliados que comem bactérias, e o ciclo recomeça. Na terra só existem três filos, todos invertebrados... se você não contar o homem. É uma situação esquisita, biologicamente falando. Nós, anarrestis, somos isolados de forma artificial. No Velho Mundo há dezoito filos de animais terrestres; existem classes, como a dos insetos, com tantas espécies que nunca foi possível contá-las, e algumas dessas espécies têm populações de bilhões. Imagine: para todo lugar que você olhasse, animais, outras criaturas, partilhando a terra e o ar com você. Você se sentiria muito mais uma parte. – Seu olhar acompanhou a trajetória curva de um peixinho azul pelo tanque turvo. Shevek, atento, seguiu a trajetória do peixinho e a trajetória do raciocínio dela. Ele perambulou em meio aos tanques por um longo tempo e voltou com ela muitas vezes ao laboratório e aos aquários, submetendo sua arrogância de físico àquelas estranhas pequenas formas de vida, à existência de seres para quem o presente é eterno, seres que não explicam a si mesmos e jamais precisam justificar seu modo de ser ao homem.
A maioria dos anarrestis trabalhava de cinco a sete horas por dia, com dois a quatro dias de folga a cada décade. Detalhes sobre regularidade, pontualidade, quais os dias de folga e assim por diante eram resolvidos entre os indivíduos e sua equipe ou grupo de trabalho, sindicato ou federação, qualquer nível em que a cooperação e a eficiência atingisse melhor resultado. Takver dirigia seus próprios projetos de pesquisa, mas o trabalho e os peixes tinham as próprias exigências imperativas; ela passava de duas a dez horas por dia no laboratório, sem folga. Shevek tinha dois postos de professor agora, um curso de matemática avançada num centro de aprendizagem e outro no Instituto. Ambos os cursos eram de manhã, e ele voltava ao quarto ao meio-dia. Geralmente Takver ainda não havia chegado. O prédio era bem silencioso. A luz do sol ainda não tinha dado a volta até a janela dupla que dava para o sul e oeste da cidade, e para as planícies; o quarto ficava frio e sombreado. Os delicados móbiles concêntricos pendendo em alturas diferentes sobre a cabeça moviam-se com precisão introvertida, silêncio, mistério dos órgãos do corpo ou dos processos mentais em raciocínio. Shevek sentava-se à mesa sob as janelas e começava a trabalhar, lendo, fazendo anotações ou calculando. Aos poucos a luz do sol entrava, passava pelos papéis, por suas mãos sobre os papéis e enchia o quarto de esplendor. E ele trabalhava. Os falsos começos e futilidades dos anos anteriores revelaram-se como base, alicerces, assentados no escuro, mas bem assentados. Sobre esses alicerces, metódica e cuidadosamente – mas com uma habilidade e uma certeza que não pareciam vir de si próprio, mas de um conhecimento que operava através dele, usando-o como veículo –, ele construiu a bela e firme estrutura dos Princípios da Simultaneidade.
Para Takver, como para qualquer homem ou mulher que se compromete a acompanhar um espírito criador, nem sempre era fácil. Embora a existência de Takver fosse necessária a Shevek, sua presença física poderia perturbá-lo. Ela não gostava de chegar em casa muito cedo, pois ele quase sempre parava de trabalhar quando ela chegava, e ela sentia que isso era errado. Mais tarde, quando eles fossem de meia-idade e enfadonhos, ele iria poder ignorá-la, mas aos 24 anos, não podia. Portanto, ela organizou suas tarefas no laboratório de modo a chegar em casa no meio da tarde. Esse esquema também não era perfeito, pois Shevek precisava de cuidados. Nos dias em que ele não dava aulas, quando ela chegava ele poderia estar sentado à mesa há seis ou oito horas seguidas. Quando ele se levantava, cambaleava de fadiga, suas mãos tremiam e ele mal concatenava as ideias. O uso que o espírito criador faz de seus eleitos é rude, ele os esgota, os descarta e arranja um modelo novo. Mas para Takver não havia substitutos, e quando via o modo fatigante como Shevek era usado, ela protestava. Ela gritava como o marido de Odo, Asieo, já gritara certa vez: “Pelo amor de Deus, garota, você não pode servir à Verdade um pouco por vez?”. Só que ela era a garota e não tinha familiaridade com Deus.
Eles conversavam, saíam para uma caminhada ou para os banhos, depois jantavam no refeitório do Instituto. Após o jantar havia reuniões, ou um concerto, ou eles viam seus amigos, Bedap, Salas e seu círculo, Desar e outros do Instituto, os colegas e amigos de Takver. Mas as reuniões e os amigos eram periféricos a eles. A participação social ou sociável não lhes era necessária; sua parceria bastava, e eles não conseguiam esconder esse fato. Isso parecia não ofender os outros. Muito pelo contrário, Bedap, Salas, Desar e os demais vinham até eles como pessoas sedentas vão a uma fonte. Os outros lhes eram periféricos: mas eles eram centrais para os outros. Os dois não faziam nada de mais; não eram mais benevolentes que outras pessoas, nem interlocutores mais brilhantes; no entanto, seus amigos os adoravam, dependiam deles e não paravam de lhes trazer presentes – as pequenas ofertas que circulavam entre essas pessoas que não possuíam nada e tudo: um cachecol tricotado à mão, um pedaço de granito cravejado de granadas escarlates, um vaso moldado à mão na oficina da Federação de Cerâmica, um poema sobre o amor, um conjunto de botões de madeira entalhada, uma concha espiral do Mar Sorruba. Davam o presente a Takver, dizendo: “Tome, talvez Shev queira usar isto como peso de papel”; ou a Shevek, dizendo: “Tome, talvez Tak goste dessa cor”. Ao darem, buscavam partilhar o que Shevek e Takver partilhavam, e celebrar, e enaltecê-los.
Foi um longo verão, quente e luminoso, o verão do ano 160 da Colonização de Anarres. As chuvas copiosas da primavera tinham deixado verdes as Planícies de Abbenay e assentado a poeira, de modo que o ar estava excepcionalmente claro; o sol era quente durante o dia, e à noite as estrelas brilhavam densas. Quando a Lua estava no céu, podia-se discernir claramente os contornos das costas de seus continentes, sob as deslumbrantes espirais brancas de suas nuvens.
– Por que a Lua é tão linda? – perguntou Takver, deitada ao lado de Shevek debaixo do cobertor laranja, as luzes apagadas. Acima deles pendiam as Ocupações do Espaço Inabitado, obscuras; do lado de fora da janela pendia a lua cheia, brilhante. – Mesmo sabendo que ela é um planeta como o nosso, só que com um clima melhor e gente pior... mesmo sabendo que são todos proprietários, que fazem guerras, fazem leis e comem enquanto outros passam fome, e de qualquer modo estão todos envelhecendo, tendo azar, reumatismo no joelho e calos nos pés como as pessoas daqui... mesmo sabendo de tudo isso, por que a Lua ainda parece tão feliz... como se a vida lá fosse tão feliz? Não consigo olhar para a luminosidade e imaginar um homenzinho horrendo como Sabul, com as mangas lambuzadas e uma mente atrofiada, vivendo lá; simplesmente não consigo.
Seus braços e torsos desnudos eram luar. A luz delicada e desmaiada no rosto de Takver formava uma auréola indefinida sobre seus traços; o cabelo e as sombras estavam negros. Shevek tocou no braço prateado de Takver com sua mão prateada, maravilhando-se com o calor do toque naquela luz fria.
– Quando se vê uma coisa por inteiro, a distância – ele disse –, ela sempre parece bonita. Planetas, vidas... Mas, de perto, um mundo é feito todo de terra e pedras. E, dia após dia, a vida é um trabalho árduo, você se cansa, perde a perspectiva. Você precisa da distância, do intervalo. O jeito de ver como a terra é bela é vê-la como a lua. O jeito de ver como a vida é bela é vê-la da perspectiva da morte.
– Isso vale para Urras. Deixe-o lá, sendo a lua... não quero aquele lugar! Mas não vou subir num túmulo, olhar para a vida e dizer “Ó, que linda!”. Quero ver a vida por inteiro bem no meio dela, aqui, agora. Não dou a mínima para a eternidade.
– Não tem nada a ver com a eternidade – disse Shevek com um meio sorriso, um homem magro e descabelado, feito de prata e sombra. – Tudo o que você precisa fazer para ver a vida como um todo é vê-la como mortal. Eu vou morrer, você vai morrer; como podemos nos amar de outro modo? O sol vai se extinguir, e o que o mantém brilhando?
– Ah, sua conversa, sua maldita filosofia!
– Conversa? Não é conversa, não é raciocínio. É o toque da mão. Eu toco a totalidade, eu a seguro. O que é o luar e o que é Takver? Como vou temer a morte? Quando a seguro, quando seguro a luz em minhas...
– Não seja proprietário – murmurou Takver.
– Querida, não chore.
– Não estou chorando, é você que está. Essas lágrimas são suas.
– Estou com frio, o luar é frio.
– Deite-se.
Um grande arrepio percorreu o corpo de Shevek quando ela o tomou em seus braços.
– Estou com medo, Takver – ele sussurrou.
– Irmão, meu querido, calma, não diga mais nada.
Dormiram abraçados naquela noite, muitas noites.
7
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Shevek achou uma carta no bolso do casaco novo forrado de lã que encomendara para o inverno na rua do pesadelo. Não fazia ideia de como a carta tinha ido parar ali. Seguramente não estava na correspondência que lhe entregavam três vezes por dia e que consistia inteiramente de manuscritos e cópias de físicos de toda parte de Urras, convites para recepções e mensagens ingênuas de alunos da escola primária. Aquele era um pedaço de papel frágil enfiado ali, sem envelope; não trazia nenhum selo ou carimbo de nenhuma das três empresas de correios concorrentes.
Ele a abriu, vagamente apreensivo, e leu: “Se você é anarquista, por que trabalha com o sistema de poder, traindo seu Mundo e a Esperança Odoniana? Ou você está aqui para nos trazer essa Esperança? Sofrendo injustiça e repressão, procuramos na Lua Irmã a luz da liberdade no escuro da noite. Junte-se a nós, seus irmãos!” Não havia nenhuma assinatura, nenhum endereço.
A carta abalou Shevek, moral e intelectualmente, fazendo-o estremecer, não de surpresa, mas com uma espécie de pânico. Sabia que eles estavam ali, mas onde? Não tinha conhecido nenhum, não tinha visto nenhum, não tinha conhecido nenhum homem pobre ainda. Tinha deixado erguerem um muro à sua volta e nunca percebera. Aceitara o abrigo, como um proprietário. Tinha sido cooptado – exatamente como Chifoilisk dissera.
Mas não sabia como derrubar o muro. E, se o derrubasse, aonde poderia ir? O pânico se apoderou dele. A quem poderia recorrer? Estava cercado por todos os lados pelos sorrisos dos ricos.
– Gostaria de conversar com você, Efor.
– Sim, senhor. Com licença, senhor. Pôr bandeja aqui.
O criado manipulou a bandeja pesada com habilidade, retirou com destreza as tampas dos pratos, serviu o chocolate amargo de modo a formar uma espuma na borda da xícara, sem derramar ou espirrar. Era evidente que ele gostava do ritual do café da manhã e de seu papel nele, bem como era evidente que não queria interrupções incomuns durante o ritual. Em geral falava um iótico bem claro, mas agora, assim que Shevek disse que queria conversar, Efor passara para o staccato do dialeto urbano. Shevek conseguia entendê-lo um pouco; uma vez aprendida, a mudança dos valores sonoros tornava-se coerente, mas as apócopes deixavam Shevek desorientado. Metade das palavras era omitida. Era como um código, pensou ele: como se os “nioti”, como chamavam a si mesmos, não quisessem ser entendidos pelos de fora.
O criado aguardou em pé as ordens de Shevek. Sabia – aprendera as idiossincrasias de Shevek na primeira semana – que Shevek não queria que ele segurasse a cadeira ou lhe servisse enquanto comia. A postura atenta e ereta do criado bastava para murchar qualquer esperança de informalidade.
– Sente-se, Efor.
– Se assim deseja, senhor – respondeu o homem. Moveu uma cadeira um centímetro, mas não se sentou nela.
– É sobre isso que quero conversar. Você sabe que não gosto de lhe dar ordens.
– Tento fazer as coisas como senhor gosta sem precisar de ordens.
– Você... Não é isso que quero dizer. Sabe, no meu país ninguém dá ordens.
– Já ouvi falar, senhor.
– Bem, quero conhecê-lo como meu igual, meu irmão. Você é o único que conheço aqui que não é rico... que não é um dos donos. Quero muito conversar com você, quero saber da sua vida...
Parou em desespero, vendo o desprezo no rosto enrugado de Efor. Tinha cometido todos os erros possíveis. Efor o tomou por um tolo paternalista e intrometido.
Soltou as mãos sobre a mesa num gesto de desalento e disse:
– Ah, que diabos, desculpe, Efor! Não consigo dizer o que quero. Por favor, ignore.
– Como queira, senhor. – Efor retirou-se.
E parou por aí. As “classes não proprietárias” permaneciam-lhe tão distantes como na época em que lera sobre elas nos livros de história do Instituto Regional do Poente Norte.
Nesse ínterim, prometera passar uma semana com os Oiies, entre os períodos letivos do inverno e da primavera.
Oiie o convidara para jantar várias vezes desde sua primeira visita, sempre com certa formalidade, como se cumprisse um dever de hospitalidade, ou talvez uma ordem do governo. Em sua própria casa, porém, embora nunca inteiramente à vontade com Shevek, ele era genuinamente simpático. Na segunda visita, seus dois filhos decidiram que Shevek era um velho amigo, e a confiança deles na reciprocidade de Shevek surpreendeu o pai dos garotos, deixou-o perturbado; não conseguia aprová-la com facilidade; mas não podia dizer que não era justificada. Shevek comportava-se com eles como um velho amigo, como um irmão mais velho. Eles o admiravam, e o mais novo, Ini, passou a adorá-lo com fervor. Shevek era gentil, sério, honesto e contava boas histórias sobre a Lua; mas não era só isso. Ele representava algo a Ini que o garoto não podia descrever. Mesmo anos mais tarde em sua vida, que foi profunda e obscuramente influenciada por aquele fascínio infantil, Ini não encontrava palavras para aquilo, apenas palavras que continham um eco desse sentimento: a palavra viajante, a palavra exílio.
A única neve pesada do inverno caiu naquela semana. Shevek jamais vira uma queda de neve acima de uns três centímetros. Ficou extasiado com a extravagância, com a mera quantidade da tempestade. Deleitou-se com aquele excesso. Era branca demais, fria demais, silenciosa e imparcial demais para ser chamada de excrementícia pelo mais sincero odoniano; vê-la como outra coisa senão uma magnificência inocente seria mesquinhez de alma. Assim que o céu clareou, ele saiu com os garotos, que apreciavam a neve tanto quanto ele. Correram pelo grande quintal da casa de Oiie, jogaram bolas de neve, construíram túneis, castelos e fortalezas de neve.
Sewa Oiie ficou à janela com sua cunhada Vea, observando as crianças, o homem e a pequena lontra brincarem. A lontra tinha feito um escorregador para ela numa parede do castelo e, animada, descia de barriga por ele sem parar. As bochechas dos garotos estavam pegando fogo. O homem, com seu cabelo longo, revolto, castanho-acinzentado amarrado com um pedaço de cordão e suas orelhas vermelhas de frio, executava escavações de túneis com energia.
– Aqui não! – Cavem ali! – Cadê a pá? – Gelo no meu bolso! – as vozes agudas dos garotos ressoavam continuamente.
– Eis nosso alienígena – Sewa disse sorrindo.
– O maior físico vivo – disse a cunhada. – Que engraçado!
Quando ele entrou ofegante, batendo os pés para tirar a neve e exalando o vigor e o bem-estar frios e frescos que só as pessoas recém-chegadas da neve possuem, foi apresentado à cunhada. Estendeu a mão grande, dura e gelada e olhou Vea com olhos simpáticos.
– Você é irmã de Demaere? – perguntou. – Você se parece com ele. – E esta observação, que, vinda de qualquer outra pessoa teria soado insípida a Vea, agradou-a imensamente. “Ele é um homem” – ela não parava de pensar naquela tarde – “um homem real. O que ele tem de especial?”
Vea Doem Oiie era seu nome, no modo iota; seu marido Doem era o chefe de um grande monopólio industrial e viajava bastante, passando metade de cada ano no exterior como representante do governo. Explicaram isso a Shevek enquanto ele a observava. Nela, a magreza, a cor pálida e os olhos negros ovais de Demaere tinham se transformado em beleza. Os seios, os ombros e os braços eram redondos, macios e muito brancos. Shevek sentou-se ao lado dela durante o jantar. Não parava de olhar aqueles seios desnudos, levantados pelo corpete rijo. A ideia de sair assim seminua num clima gélido era extravagante, tão extravagante quanto a neve, e os pequenos seios também tinham uma brancura inocente, como a neve. A curva do pescoço subia suavemente até a curva da cabeça altiva, raspada e delicada.
Ela realmente é muito atraente, Shevek informou a si mesmo. Ela é macia como as camas daquele lugar. Afetada, no entanto. Por que ela mede as palavras desse jeito?
Ele agarrou-se àquela voz um tanto fina e àqueles modos afetados como a uma jangada em águas profundas e nunca percebeu, nunca percebeu que estava se afogando. Ela iria voltar para Nio Esseia no trem após o jantar, tinha vindo apenas passar o dia, e ele jamais a veria de novo.
Oiie estava resfriado, Sewa estava ocupada com as crianças.
– Shevek, você poderia acompanhar Vea até a estação?
– Santo Deus, Demaere! Não obrigue o pobre homem a me proteger! Você não acha que há lobos no caminho, não é? Ou que algum bando selvagem de mingrads ataque a cidade e me rapte para o harém deles? Serei encontrada na porta do chefe da estação amanhã de manhã, com uma lágrima congelada no meu olho e as mãozinhas duras apertando um ramalhete de flores murchas? Oh, eu até que gosto da ideia! – A risada de Vea cobriu aquelas frases matraqueadas e tilintantes como uma onda, uma onda sombria, agradável e potente que lavou tudo, deixando a areia vazia. Ela não riu consigo mesma, mas de si mesma, a risada sombria do corpo, que apaga as palavras.
Shevek vestiu o casaco no corredor e a esperou na porta.
Caminharam em silêncio por meio quarteirão. A neve se esmigalhava e rangia sob seus pés.
– Você é educado demais para um...
– Para quê?
– Para um anarquista – ela disse, em sua voz fina e afetadamente arrastada (era a mesma entonação usada por Pae e por Oiie, quando ele estava na universidade). – Estou decepcionada. Achei que você fosse ser perigoso e esquisito.
– E sou.
Vea o olhou de soslaio. Um xale escarlate cobria-lhe a cabeça; os olhos estavam muito negros e vivos em contraste com aquela cor vívida e a brancura da neve à sua volta.
– Mas aí está você, me acompanhando mansamente até a estação, dr. Shevek.
– Shevek – ele disse brandamente. – Sem “doutor”.
– Esse é seu nome completo... nome e sobrenome?
Ele concordou com a cabeça, sorrindo. Sentia-se bem e vigoroso, satisfeito com o ar límpido, com o calor do casaco bem-feito que usava, com a beleza da mulher a seu lado. Nada o preocupava e nenhum pensamento lhe pesava naquele dia.
– É verdade que o nome de vocês é escolhido pelo computador?
– Sim.
– Que medonho, ter o nome escolhido por um computador!
– Por que medonho?
– É tão mecânico, tão impessoal.
– Mas o que é mais pessoal do que um nome que nenhuma outra pessoa viva tem?
– Ninguém mais? Você é o único Shevek?
– Enquanto eu estiver vivo. Houve outros, antes de mim.
– Quer dizer, parentes?
– Não levamos parentes muito em conta; somos todos parentes, entende? Não sei quem eram os meus, a não ser uma mulher, nos primeiros anos da Colonização. Ela projetou um tipo de suporte que usam em máquinas pesadas; esse suporte ainda é chamado de “shevek”. – Ele sorriu de novo, um sorriso mais aberto. – Eis aí uma boa imortalidade!
Vea balançou a cabeça.
– Santo Deus! Como vocês distinguem homens de mulheres?
– Bem, descobrimos alguns métodos...
Após um instante, Vea soltou sua risada agradável e intensa. Enxugou os olhos molhados pelo ar frio.
– É, talvez vocês sejam esquisitos mesmo!... Então, todos eles receberam nomes inventados e aprenderam uma língua inventada... tudo novo?
– Os Colonos de Anarres? Sim. Eram pessoas românticas, suponho.
– E vocês não são?
– Não. Somos muito pragmáticos.
– É possível ser as duas coisas – ela disse.
Ele não esperava que ela tivesse qualquer sutileza mental.
– Sim, isso é verdade – ele disse.
– O que é mais romântico do que você vir aqui para Urras, sozinho, sem um tostão no bolso, para defender o seu povo?
– E para ser mimado com luxos enquanto estou aqui.
– Luxos? Em quartos na universidade? Santo Deus! Meu pobre querido! Não o levaram a nenhum lugar decente?
– Muitos lugares, mas todos iguais. Gostaria de conhecer melhor Nio Esseia. Só conheci o exterior da cidade, o embrulho do pacote. – Usou a frase porque ficara fascinado desde o início pelo hábito urrasti de embrulhar tudo em papel limpo e caprichado, ou plástico, ou papelão. Roupas lavadas, livros, verduras e legumes, roupas, remédios, tudo vinha dentro de camadas e camadas de embrulhos. Até pacotes de papel vinham embrulhados em várias camadas de papel. Nada podia tocar em mais nada. Começara a sentir que ele também tinha sido empacotado.
– Eu sei. Eles o fizeram ir ao Museu Histórico, visitar o Monumento Dobunnae e ouvir um discurso no Senado! – Ele riu, pois aquele tinha sido exatamente o itinerário de um dia no verão. – Eu sei, eles são tão previsíveis com estrangeiros. Vou providenciar para que você conheça a verdadeira Nio!
– Eu iria gostar disso.
– Conheço todo tipo de gente maravilhosa. Eu coleciono gente. Aqui você está preso em meio a todos esses professores e políticos enfadonhos... – Ela continuou a matraquear. Ele apreciava a conversa inconsequente de Vea do mesmo modo que apreciava o brilho do sol e a neve.
Chegaram à pequena estação de Amoeno. Ela já tinha o bilhete de volta; o trem chegaria a qualquer momento.
– Não precisa esperar, você vai congelar.
Ele não respondeu, mas apenas ficou ali em pé, corpulento no casaco de lã, olhando-a com amabilidade.
Ela baixou os olhos para a punho do próprio casaco e removeu um pontinho de neve do bordado.
– Você tem esposa, Shevek?
– Não.
– Nenhuma família?
– Ah... sim. Uma parceira; nossos filhos. Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Uma “esposa”, entende, eu penso como algo que só existe em Urras.
– O que é uma parceira? – ela ergueu os olhos de relance, maliciosamente, para o rosto dele.
– Acho que é o que vocês chamariam de esposa ou marido.
– Por que ela não veio com você?
– Ela não quis; e nosso filho mais novo só tem 1 ano... não, 2 agora. E também... – Ele hesitou.
– Por que ela não quis vir?
– Bem, lá ela tem um trabalho a fazer, aqui não. Se eu soubesse que haveria tanta coisa aqui de que ela iria gostar, eu a teria chamado para vir. Mas não chamei. Havia a questão da segurança, entende?
– Segurança aqui em Urras?
Ele hesitou outra vez. Por fim, disse:
– E também quando eu voltar para casa.
– O que vai acontecer com você? – perguntou Vea, com os olhos arregalados. O trem freava na colina próxima à cidade.
– Oh, provavelmente nada. Mas alguns me consideram um traidor. Porque tento fazer amizade com Urras, entende? Talvez eles criem problema quando eu voltar. Não quero isso para ela e as crianças. Tivemos um pouco disso antes de eu sair de lá. Chega.
– Quer dizer que você estará correndo perigo real? – Ele inclinou-se para ouvi-la, pois o trem entrava na estação, freando com o barulho de rodas e vagões.
– Não sei – ele disse sorrindo. – Sabia que nossos trens são bem parecidos com esse? Um bom desenho não precisa mudar. – Foi com ela até o vagão da primeira classe. Como ela não abriu a porta, ele abriu. Enfiou a cabeça no vagão depois que ela entrou e deu uma olhada no compartimento. – Mas por dentro não são parecidos! Tudo isso aqui é privado... só para você?
– Oh, sim. Detesto a segunda classe. Homens mascando goma de maera e cuspindo. Eles mascam maera em Anarres? Não, claro que não. Oh, há tanta coisa que eu adoraria saber sobre você e sua terra!
– Eu adoro falar da minha terra, mas ninguém pergunta.
– Então, vamos nos encontrar de novo e conversar a respeito! Quando você voltar para Nio, ligue para mim. Promete?
– Prometo – ele respondeu, afável.
– Ótimo! Sei que você não quebra promessas. Ainda não sei nada a seu respeito, exceto isso. Posso ver isso. Até logo, Shevek. – Ela colocou a mão enluvada sobre a dele por um momento, enquanto ele segurava a porta. O trem deu seu apito de duas notas; ele fechou a porta e viu o trem partir, o rosto de Vea uma imagem trêmula, branca e escarlate na janela.
Caminhou de volta à casa dos Oiies num estado de espírito muito animado e brincou de batalha de bolas de neve com Ini até escurecer.
REVOLUÇÃO EM BENBILI! DITADOR FOGE!
LÍDERES REBELDES TOMAM CAPITAL!
SESSÃO EMERGÊNCIA NO CGM
POSSIBILIDADE A-IO POSSA INTERVIR
O jornal alpiste alardeou a notícia em letras garrafais. Ortografia e gramática ficaram de lado; o texto parecia Efor falando: “Ontem noite rebeldes tomam todo oeste Meskti e batendo duro no exército...” Era o modo verbal dos niotas, passado e futuro comprimiam-se num tempo presente instável e altamente carregado.
Shevek leu os jornais e consultou uma descrição de Benbili na Enciclopédia do CGM. A nação era uma forma de democracia parlamentarista, na verdade uma ditadura militar governada por generais. Era um país grande no hemisfério ocidental, com montanhas e savanas áridas, subpovoado, pobre. “Eu devia ter ido para Benbili”, pensou Shevek, pois essa ideia o atraía; imaginou planícies pálidas, o vento soprando. A notícia o deixara estranhamente perturbado. Escutava os boletins no rádio, que ele raramente ligava após descobrir que sua função básica era anunciar coisas à venda. As notícias, assim como as do telefax oficial nos lugares públicos, eram curtas e secas; um estranho contraste com os jornais populares, que gritavam Revolução! em todas as páginas.
O general Havevert, o presidente, fugiu ileso em seu famoso avião blindado, mas alguns generais menos importantes foram capturados e emasculados, um castigo que, tradicionalmente, os benbili preferiam à execução. O exército bateu em retirada, incendiando no caminho campos e cidades de seu próprio povo. Os partidários da guerrilha rechaçavam o exército. Os revolucionários em Meskti, a capital, abriram as prisões, anistiando todos os presos. Ao ler isto, o coração de Shevek disparou. Havia esperança, ainda havia esperança... Acompanhou as notícias da revolução distante com intensidade crescente. No quarto dia, ao assistir a uma transmissão no telefax de um debate no Conselho dos Governos Mundiais, viu o embaixador iota no CGM anunciar que A-Io, em apoio ao governo democrático de Benbili, estava enviando reforços ao general presidente Havevert.
Os revolucionários de Benbili, em sua maioria, nem sequer estavam armados. As tropas iotas chegariam com fuzis, carros blindados, aviões, bombas. Shevek leu no jornal a descrição dos equipamentos e ficou enojado.
Sentiu nojo e fúria, e não havia ninguém com quem conversar. Pae estava fora de cogitação. Atro era um militarista fervoroso. Oiie era um homem ético, mas suas inseguranças pessoais e suas ansiedades como proprietário faziam-no agarrar-se a ideias rígidas de lei e ordem. Só conseguia lidar com sua simpatia por Shevek porque se recusava a admitir que Shevek era anarquista. A sociedade odoniana chamava a si mesma de anarquista, dizia ele, mas era, de fato, composta de meros populistas primitivos cuja ordem social funcionava sem um governo aparente porque a população era muito reduzida e porque não havia países vizinhos. Se a sua propriedade fosse ameaçada por um rival agressivo, teriam de acordar para a realidade ou seriam aniquilados. Os rebeldes benbilis estavam acordando para a realidade agora: estavam descobrindo que não adianta ter liberdade se não se tem armas para defendê-la. Ele explicou isso a Shevek na única discussão que tiveram sobre o assunto. Pouco importava quem governava ou pensava que governava os benbilis: a política da realidade afetava a disputa pelo poder entre A-Io e Thu.
– Política da realidade – Shevek repetiu. Olhou para Oiie e disse: – É uma frase curiosa dita por um físico.
– Em absoluto. Tanto o político quanto o físico lidam com as coisas como elas são, com forças reais, as leis básicas do mundo.
– Você está comparando suas “leis” mesquinhas e desprezíveis que protegem a riqueza e suas “forças” de armas e bombas com a lei da entropia e a força da gravidade? Eu esperava mais de sua inteligência, Demaere!
Oiie recuou diante daquela trovoada de desprezo. Não disse mais nada, e Shevek não disse mais nada, mas Oiie nunca se esqueceu do comentário. Ficou gravado em sua mente desde então como o momento mais vergonhoso de sua vida. Pois se Shevek, o utopista iludido e simplório, o calara com tanta facilidade, isso era vergonhoso; mas se Shevek, o físico e o homem que ele apreciava e admirava tanto a ponto de ansiar por seu respeito, como se, de algum modo, fosse um grau mais refinado de respeito do que qualquer outro então disponível – se esse Shevek o desprezava, então a vergonha era intolerável e ele deveria ocultá-la, trancá-la pelo resto da vida no cômodo mais escuro de sua alma.
O assunto da revolução benbili aguçara alguns problemas para Shevek também: em particular, o problema de seu próprio silêncio.
Era difícil para ele desconfiar das pessoas com quem convivia. Tinha sido criado numa cultura que confiava deliberada e constantemente na solidariedade humana e ajuda mútua. Por mais alienado que fosse, em certos aspectos, daquela cultura, e por mais alienígena que fosse nesta, ainda assim o hábito de uma vida inteira permanecia: contava com a ajuda das pessoas. Confiava nelas.
Mas os avisos de Chifoisilik, que ele tentara ignorar, não paravam de voltar à sua lembrança. Suas próprias percepções e instintos os reforçavam. Gostasse ou não, precisava aprender a desconfiar. Precisava se calar; precisava manter sua propriedade; precisava manter seu poder de barganha.
Falou pouco naqueles dias e escreveu bem menos. Sua mesa era um amontoado de papéis insignificantes; trazia as poucas anotações de trabalho junto ao corpo, num dos inúmeros bolsos urrastis. Nunca saía da frente de seu computador de mesa sem apagar os dados.
Sabia que estava próximo de concluir a Teoria Temporal que os iotas tanto queriam para seus voos espaciais e seu prestígio. Sabia também que ainda não a concluíra e talvez jamais o fizesse. Jamais admitira nenhum dos dois fatos claramente a ninguém.
Antes de sair de Anarres, pensava que a coisa estava ao alcance da mão. Tinha as equações. Sabul sabia que ele as tinha e lhe oferecera reconciliação e reconhecimento, em troca da oportunidade de publicá-las e conquistar a glória. Ele recusara a oferta de Sabul, mas não fora um gesto de grandeza moral. O gesto moral, afinal, teria sido entregá-las à sua própria imprensa no Sindicato da Iniciativa, e ele tampouco fizera isso. Não tinha certeza se estava pronto para publicar as equações. Havia algo que não estava bem certo, algo que precisava de refinamento. Como estivera trabalhando dez anos na teoria, não custava nada demorar mais um pouco, para lhe dar mais um polimento e deixá-la perfeitamente lisa.
A coisinha que não estava bem certa parecia cada vez mais errada. Uma pequena falha no raciocínio. Uma grande falha. Uma rachadura por todo o alicerce... Na noite anterior à sua partida de Anarres, queimara todos os papéis que tinha sobre a Teoria Geral. Chegara a Urras sem nada. Por meio ano estivera, nos termos deles, blefando com os urrastis.
Ou estaria blefando consigo mesmo?
Era bem possível que uma teoria geral da temporalidade fosse um objetivo ilusório. Era também possível que, embora a Sequência e a Simultaneidade pudessem um dia ser unificadas numa teoria geral, ele não fosse o homem indicado para realizar a tarefa. Há dez anos vinha tentando, sem êxito. Matemáticos e físicos, atletas do intelecto, fazem seu trabalho ainda jovens. Era mais que possível – era provável – que ele estivesse esgotado, acabado.
Estava perfeitamente ciente de que tivera o mesmo desânimo e a mesma sensação de fracasso nos períodos que antecederam os momentos de maior criatividade. Descobriu-se tentando animar-se com esse fato e ficou furioso com a própria ingenuidade. Interpretar ordem temporal como ordem casual era uma coisa muito estúpida da parte de um cronosofista. Será que já estava senil? Era melhor simplesmente trabalhar na tarefa pequena, mas prática, de refinar o conceito de intervalo. Poderia ser útil a outra pessoa.
Mas mesmo nisso, mesmo conversando com outros físicos a respeito, sentia que estava escondendo algo. E eles sabiam que ele estava escondendo.
Estava cansado de esconder, cansado de não conversar, não conversar sobre a revolução, não conversar sobre física, não conversar sobre nada.
Atravessou o campus a caminho de uma palestra. Os pássaros cantavam nas árvores de folhagem nova. Não os ouvira cantar durante todo o inverno, mas agora ali estavam eles, vertendo as doces melodias. Piu-Piu, cantavam, piu-piu, esta é a minha propriedade, piu-piu, este é o meu território, piu-piu, ele me pertence, piu-piu.
Shevek ficou imóvel por um minuto debaixo das árvores, ouvindo.
Então saiu da alameda, atravessou o campus numa direção diferente, rumo à estação, e pegou um trem matutino para Nio Esseia. Deveria haver uma porta aberta em algum lugar naquele maldito planeta!
Pensou, enquanto se sentava no trem, em tentar sair de A-Io: em ir para Benbili, talvez. Mas não levou a ideia a sério. Teria de ir de navio ou avião, seria localizado e impedido. O único lugar onde poderia ficar longe da vista de seus anfitriões benevolentes e protetores era em sua própria grande cidade, debaixo de seus narizes.
Não era uma fuga. Mesmo se saísse do país, ainda estaria preso, preso em Urras. Não se podia chamar a isso de fuga, seja qual nome lhe deem os hierarquistas, com suas místicas fronteiras nacionais. Mas de repente sentiu-se animado, como não se sentia há dias, quando imaginou que seus anfitriões benevolentes e protetores poderiam pensar, por um momento, que ele tinha fugido.
Foi o primeiro dia realmente quente da primavera. Os campos estavam verdes e reluziam com água. Nos pastos, cada rês vinha acompanhada de seu filhote. Os carneirinhos eram particularmente graciosos, saltitando como bolas brancas elásticas, os rabinhos girando e girando. Num cercado, sozinho, o macho reprodutor do rebanho, carneiro, touro ou garanhão, de pescoço grosso, parecia potente como uma nuvem de trovoada, carregada de gerações. Gaivotas deslizavam sobre lagos transbordantes, branco sobre azul, e nuvens brancas iluminavam o pálido céu azul. Os galhos das árvores frutíferas inclinavam-se, cheios de vermelho, e alguns botões desabrochavam, rosados e brancos. Observando da janela do trem, Shevek percebeu que seu estado de espírito rebelde e inquieto estava pronto a desafiar até a beleza do dia. Era uma beleza injusta. O que os urrastis tinham feito para merecê-la? Por que lhes era dada com tanta opulência, tanta benevolência, e com tão pouca, muito pouca, para o seu próprio povo?
Estou pensando como um urrasti, disse a si mesmo. Como um maldito proprietário. Como se merecimento significasse alguma coisa. Como se alguém pudesse conquistar a beleza, ou a vida! Tentou não pensar em absolutamente nada, em deixar-se levar adiante, observando a luz do sol no céu tranquilo e as ovelhinhas saltitando nos campos da primavera.
Nio Esseia, uma cidade de 5 milhões de almas, erguia suas torres delicadas e reluzentes no outro lado dos pântanos do estuário, como se fossem feitas de névoa e luz solar. Quando o trem entrou oscilando suavemente num longo viaduto, a cidade ficou mais alta, mais brilhante, mais sólida, até de repente envolver o trem na escuridão tonitruante de uma aproximação subterrânea, vinte trilhos juntos, e depois soltá-lo, e aos seus passageiros, nos espaços enormes e brilhantes da Estação Central, sob a cúpula central de marfim e azul-celeste, considerada a maior cúpula já erguida em qualquer planeta pela mão do homem.
Shevek vagou pela estação, atravessando quilômetros de mármore polido sob aquela imensa abóboda etérea, e por fim chegou a uma longa série de portas através das quais multidões iam e vinham constantemente, todas apressadas, todas separadas. Todas lhe pareceram ansiosas. Tinha visto com frequência essa ansiedade nos rostos dos urrastis, e isso o intrigava. Seria porque, por mais dinheiro que tivessem, sempre se preocupavam em ganhar mais, a fim de não morrerem pobres? Seria culpa porque, por menos dinheiro que tivessem, sempre havia alguém mais pobre? Qualquer que fosse a causa, aquela ansiedade conferia aos rostos certa uniformidade, e ele se sentia muito só entre elas. Ao escapar de seus guias e guardas, ele não tinha considerado como seria estar sozinho numa sociedade onde os homens não confiavam uns nos outros, onde o pressuposto moral básico não era ajuda mútua, mas agressão mútua. Ficou um pouco assustado.
Pensara vagamente em perambular pela cidade e começar a conversar com as pessoas, com os membros da classe dos não proprietários, se tal coisa ainda existisse, ou com as classes trabalhadoras, como eram chamadas. Mas todas aquelas pessoas passavam apressadas, fazendo negócios, não querendo nenhuma conversa ociosa, nenhuma perda de seu precioso tempo. A pressa delas o contagiou. Tinha de ir a algum lugar, pensou, quando saiu para a luz do sol e para a imponência abarrotada na Rua Moie. Onde? A Biblioteca Nacional? O Zoológico? Mas ele não queria fazer turismo.
Indeciso, parou em frente a uma loja perto da estação que vendia jornais e bugigangas. A manchete do jornal dizia: THU ENVIA TROPAS PARA AJUDAR REBELDES BENBILIS, mas Shevek não reagiu a isso. Olhou as fotografias coloridas no mostruário, em vez do jornal. Ocorreu-lhe que ele não tinha nenhuma recordação de Urras. Quando se viaja, deve-se comprar um suvenir. Gostou das fotografias, cenas de A-Io: as montanhas que escalara, os arranha-céus de Nio, a capela da universidade (quase a vista de sua janela), uma garota do campo num bonito vestido provinciano, as torres de Rodarred e a que primeiro lhe chamou a atenção, um carneirinho numa relva florida, saltitando e, aparentemente, rindo. O pequeno Pilun ia gostar daquele carneirinho. Selecionou um cartão de cada e os levou ao balcão.
– E cinco dá cinquenta, e mais o carneiro, sessenta; e um mapa, aqui está, senhor, um e quarenta. Finalmente temos um belo dia de primavera, não é, senhor? Tem trocado, senhor? – Shevek apresentara uma nota do banco de vinte unidades. Apalpou os bolsos à procura do troco que recebera quando comprou o bilhete do trem e, após um pequeno estudo das denominações das cédulas e moedas, juntou um e quarenta. – Está certo, senhor. Obrigado e tenha um bom dia!
Será que o dinheiro também comprava a gentileza, além dos postais e do mapa? O atendente da loja teria sido tão educado se Shevek tivesse entrado como um anarresti entra num depósito de mercadorias, pegado o que quisesse, cumprimentado o registrador com um aceno de cabeça e saído?
Não adianta, não adianta pensar assim. Quando na Terra da Propriedade, pense como um proprietário. Vista-se como um, alimente-se como um, aja como um, seja um proprietário.
Não havia nenhum parque no centro de Nio, a terra era muito valiosa para ser desperdiçada com amenidades. Continuou a adentrar cada vez mais fundo naquelas mesmas ruas grandiosas e cintilantes aonde tinha sido levado tantas vezes. Chegou à Rua Saemtenevia a atravessou-a apressado, pois não queria a repetição do pesadelo diurno. Estava agora no distrito comercial. Bancos, edifícios comerciais, edifícios governamentais. Nio Esseia seria toda assim? Imensas caixas brilhantes de pedra e vidro, enormes embrulhos decorados, vazios, vazios.
Passando por uma vitrine no térreo onde se lia Galeria de Arte, ele entrou, imaginando fugir da claustrofobia moral das ruas e encontrar de novo a beleza de Urras num museu. Mas todos os quadros do museu tinham etiquetas com preços em suas molduras. Observou um nu pintado com talento. Na etiqueta lia-se 4.000 UMI.
– Esse é um Fei Feite – disse um homem moreno que apareceu silenciosamente ao seu lado. – Tínhamos cinco na semana passada. Não vai demorar muito para se valorizar no mercado da arte. Um Feite é um investimento seguro, senhor.
– Quatro mil unidades é quanto custa manter duas famílias vivas por um ano nesta cidade – disse Shevek.
O homem o olhou de cima a baixo e disse, com a voz arrastada: – Sim, bem, o senhor entende, acontece que isso é uma obra de arte.
– Arte? O homem faz arte porque ele tem de fazer. Por que esse quadro foi feito?
– O senhor é artista, suponho – disse o homem, agora com indisfarçada insolência.
– Não, sou alguém que sabe quando está vendo merda!
O marchand recuou. Quando estava fora do alcance de Shevek, começou a falar algo sobre a polícia. Shevek fez uma careta e saiu da loja a passos largos. No meio do quarteirão, parou. Não podia continuar por aquele caminho.
Mas aonde poderia ir?
Até alguém... até alguém, outra pessoa. Um ser humano. Alguém que lhe desse ajuda, não vendesse. Quem? Onde?
Pensou nos filhos de Oiie, os garotinhos que gostavam dele e, por algum tempo, não conseguiu pensar em mais ninguém. Então, surgiu uma imagem em sua mente, distante, pequena e clara: a irmã de Oiie. Qual era o nome dela? Prometa que vai me ligar, ela tinha dito, e desde então lhe escrevera duas vezes convidando-o para jantares, numa caligrafia arrojada e infantil, em papel grosso e perfumado. Ele os ignorara, dentre todos os convites de estranhos. Agora se lembrou deles.
Ao mesmo tempo, lembrou-se da outra mensagem, daquela que tinha aparecido inexplicavelmente no bolso de seu casaco: Junte-se a nós, seus irmãos. Mas não conseguia achar nenhum irmão em Urras.
Foi à loja mais próxima. Era uma doceria cheia de arabescos dourados e gesso cor-de-rosa, com fileiras de mostruários de vidro repletos de doces e confeitos, rosa, marrom, creme, dourado. Perguntou à mulher atrás dos mostruários se ela poderia ajudá-lo a encontrar um número de telefone. Estava agora mais calmo, depois do acesso de mau humor na galeria de arte, e tão humildemente ignorante e estrangeiro que conquistou a simpatia da mulher. Ela não apenas o ajudou a procurar o nome na pesada lista telefônica, como fez a ligação para ele no telefone da loja.
– Alô?
– Shevek – ele disse. Depois parou. Para ele, o telefone era um veículo de necessidades urgentes, notificações de mortes, nascimentos e terremotos. Não fazia ideia do que dizer.
– Quem? Shevek? É mesmo? Que delicadeza a sua de me ligar! Não me importo em absoluto de acordar, se for você.
– Você estava dormindo?
– Sono profundo, e ainda estou na minha cama adorável e quente. E você, onde é que está?
– Na Rua Sekae, eu acho.
– Fazendo o quê? Vamos sair. Que horas são? Santo Deus, quase meio-dia. Já sei, encontro você no meio do caminho. Perto do lago dos barcos nos jardins do Antigo Palácio. Você consegue encontrá-lo? Escute, você tem que ficar, vou dar uma festa absolutamente paradisíaca hoje à noite. – Ela continuou matraqueando por um momento, e ele concordou com tudo o que ela disse. Quando passou pelo balcão para sair, a atendente da loja sorriu para ele.
– Melhor levar uma caixa de doces para ela, não acha, senhor?
Ele parou.
– Será que devo?
– Mal nunca faz, senhor.
Havia algo de impudente e amável em sua voz. O ar da loja era doce e quente, como se todos os perfumes da primavera estivessem concentrados ali. Shevek aguardou de pé em meio aos mostruários de lindos pequenos luxos, alto, pesado, sonhador, como os pesados animais em seus cercados, os carneiros e touros entorpecidos pelo calor ardente da primavera.
– Vou preparar a coisa certa para o senhor – disse a mulher, enchendo uma caixinha de metal, finamente ornada, com folhinhas de chocolate e rosinhas de algodão-doce. Ela embrulhou a lata em papel de seda, pôs o embrulho numa caixa de papelão prateada, embrulhou a caixa num papel grosso rosado e amarrou-a com uma fita de veludo verde. Em todos os seus hábeis movimentos, podia-se sentir uma cumplicidade bem-humorada e solidária, e quando entregou o pacote pronto a Shevek, e ele o pegou murmurando um agradecimento e virando-se para sair, ela o lembrou, sem nenhum rigor na voz:
– São dez e sessenta, senhor. – Ela poderia até tê-lo deixado ir, com pena dele, como as mulheres sentem pena dos fortes; mas ele voltou, obediente, e entregou o dinheiro.
Chegou de metrô aos jardins do Antigo Palácio e foi até o lago dos barcos, onde crianças bem-vestidas velejavam navios de brinquedo, maravilhosos pequenos engenhos com cordames de seda e ornamentos de latão. Viu Vea do outro lado do círculo de água largo e brilhante e deu a volta no lago até ela, apreciando a luz do sol, o vento da primavera e as árvores escuras do parque mostrando suas primeiras e pálidas folhas verdes.
Almoçaram num restaurante do parque, num terraço coberto por uma cúpula de vidro muito alta. Ali, à luz do sol sob a cúpula, as árvores já estavam cheias de folhas, chorões pendentes sobre um lago onde aves brancas e gordas deslizavam, observando com gula indolente as pessoas que comiam, aguardando migalhas. Vea não se incubiu de fazer o pedido, deixando claro que Shevek estava encarregado dela, mas garçons habilidosos o aconselharam com tanta polidez que ele pensou ter conduzido tudo sozinho; e, felizmente, tinha dinheiro de sobra no bolso. A comida era extraordinária. Nunca tinha experimentado tantas sutilezas de sabor. Acostumado a duas refeições por dia, em geral pulava o almoço que os urrastis comiam, mas nesse dia comeu tudo, enquanto Vea delicadamente debicava e mordiscava. Por fim, ele teve de parar, e ela riu do olhar triste dele.
– Comi demais.
– Uma pequena caminhada deve ajudar.
Foi uma caminhada bem curta: um passeio vagaroso de dez minutos pela grama, e então Vea deixou-se cair graciosamente num talude à sombra de altos arbustos, todos radiantes de flores douradas. Ele sentou-se ao seu lado. Uma frase que Takver usava veio-lhe à mente quando olhou os pés delgados de Vea, enfeitados com sapatinhos brancos de saltos muito altos. “Uma exploradora do corpo”, Takver chamava as mulheres que usavam a sexualidade como arma na luta de poder com os homens. A julgar por sua aparência, Vea era a maior de todas as exploradoras de corpo. Sapatos, roupas, cosméticos, joias, gestos, tudo nela reafirmava a provocação. Possuía um corpo tão elaborado e ostensivamente feminino que mal parecia um ser humano. Encarnava toda a sexualidade que os iotas reprimiam e transferiam para seus sonhos, seus romances e poemas, seus intermináveis quadros de nus femininos, sua música, sua arquitetura cheia de curvas e cúpulas, seus doces, seus banheiros, seus colchões. Ela era a mulher contida na mesa.
A cabeça, totalmente raspada, tinha sido pulverizada com um talco composto de partículas de pó de mica, de modo que uma leve cintilação obscurecia a nudez dos contornos. Usava um xale ou estola transparente, sob a qual as formas e a textura de seus braços nus se mostravam suavizadas e protegidas. Os seios estavam cobertos: as mulheres iotas não saíam com os seios à mostra, reservando a nudez para seus donos. Os pulsos estavam carregados de pulseiras de ouro, e na cavidade da garganta uma única joia brilhava azul contra a pele macia.
– Como isso fica aí? – ele perguntou.
– O quê? – Como ela própria não conseguia ver a joia, podia fingir que não a percebia, obrigando-o a apontar, talvez erguer a mão por sobre os seios para tocar a joia. Shevek sorriu e tocou-a.
– Está colada?
– Ah, isso. Eu tenho um pequeno ímã implantado aí, e a joia tem um pedacinho de metal atrás, ou é o contrário? De todo modo, ficamos sempre juntas.
– Você tem um ímã sob a pele? – Shevek perguntou, com aversão genuína.
Vea sorriu e tirou a safira para que ele visse que não havia nada além de uma minúscula cicatriz prateada na cavidade.
– Você me desaprova totalmente mesmo... É animador. Sinto que, não importa o que eu diga ou faça, não posso me rebaixar mais em sua opinião, pois já estou no fundo do poço!
– Não é assim – ele protestou. Sabia que ela estava fazendo um jogo, mas ele conhecia poucas regras desse jogo.
– Não, não; reconheço o horror moral quando o vejo. Assim. – Ela fez uma carranca sinistra; os dois riram. – Sou assim tão diferente das mulheres anarrestis?
– Ah, sim, muito.
– São todas terrivelmente fortes, com músculos? Elas usam botas e têm pés grandes e chatos, usam roupas sérias e se depilam uma vez por mês?
– Elas nunca se depilam.
– Nunca? Em nenhuma parte? Ah, meu Deus! Vamos falar de outra coisa.
– De você. – Ele se recostou no talude gramado, perto o bastante de Vea para ser envolvido pelos perfumes naturais e artificiais de seu corpo. – Queria saber se a mulher urrasti se contenta em ser sempre inferior.
– Inferior a quem?
– Aos homens.
– Ah... isso! O que o faz pensar que sou inferior?
– Parece que tudo o que a sua sociedade faz é feito para os homens. Indústria, artes, administração, governo, decisões. E por toda a vida vocês carregam o nome do pai e do marido. Os homens vão para a escola e vocês não; todos os professores, juízes, policiais, governantes são homens, não são? Por que vocês não fazem o que querem?
– Mas nós fazemos. As mulheres fazem exatamente o que querem. E não precisam sujar as mãos, nem usar farda, nem ficar gritando para lá e para cá nas diretorias para fazerem o que querem.
– Mas o que é que vocês fazem?
– Ora, nós conduzimos os homens, é claro! E, sabe, é perfeitamente seguro dizer isso a eles, porque eles nunca acreditam. Eles dizem “Ha, ha, mulherzinhas engraçadas!”, passam a mão na sua cabeça e saem pomposos, com suas medalhas tilintando, perfeitamente satisfeitos.
– E você também está satisfeita?
– Decerto que sim.
– Não acredito.
– Porque isso não se encaixa nos seus princípios. Os homens sempre têm teorias, e as coisas sempre têm de se encaixar nelas.
– Não, não por causa de teorias, porque posso ver que você não está satisfeita. Que você é inquieta, insatisfeita, perigosa.
– Perigosa! – Vea deu uma risada radiante. – Que elogio absolutamente maravilhoso! Por que sou perigosa, Shevek?
– Ora, porque você sabe que, aos olhos dos homens, você é uma coisa, uma coisa possuída, comprada, vendida. Então você só pensa em enganar os donos, em se vingar...
Ela pôs a mãozinha deliberadamente na boca de Shevek.
– Quieto – ela disse. – Sei que você não tem a intenção de ser vulgar. Eu o perdoo. Mas já chega.
Ele fez uma carranca colérica diante da hipocrisia, e diante da percepção de que poderia tê-la magoado de fato. Ainda sentia o breve toque da mão dela em seus lábios.
– Desculpe! – ele disse.
– Não, não. Como pode entender, vindo da Lua? E você é só um homem, de qualquer maneira... Mas vou lhe dizer uma coisa. Se você pegasse uma de suas “irmãs” lá da Lua e lhe desse uma oportunidade de tirar as botas, tomar um banho de óleo e fazer uma depilação, pôr umas sandálias bem bonitas, uma joia na barriga e perfume, ela iria adorar! E você também! Ah, como você iria gostar! Mas vocês se recusam a fazer isso, coitadinhos, com suas teorias. Todos irmãos e irmãs e nenhuma diversão!
– Você tem razão – disse Shevek. – Nenhuma diversão. Nunca. O dia inteiro em Anarres nós cavamos chumbo nas entranhas das minas, e quando chega a noite, após a refeição de três grãos de holum cozidos numa colher de água salobra, recitamos em antifonia os Ensinamentos de Odo, até a hora de dormir. O que fazemos todos separadamente e usando botas.
Sua fluência em iota não era suficiente para lhe permitir o voo verbal que teria sido esse gracejo em sua própria língua, uma de suas súbitas fantasias que somente Takver e Sadik tinham ouvido o suficiente para se acostumarem; mas, apesar de imperfeito, o gracejo surtiu efeito em Vea. Soltou sua risada sombria, pesada e espontânea.
– Santo Deus, você é engraçado também! Existe algo que você não seja?
– Não sou vendedor – ele respondeu.
Ela o estudou, sorrindo. Havia algo profissional, de teatral em sua pose. As pessoas em geral não se olham atentamente quando estão tão próximas, a menos que sejam mães com filhos pequenos, ou médicos com pacientes, ou amantes.
Ele se levantou.
– Quero andar mais – disse.
Ela estendeu a mão para ele pegar e ajudá-la a se levantar. O gesto foi indolente e sedutor, mas ela disse com ternura incerta na voz:
– Você é mesmo como um irmão... Pegue a minha mão. Eu vou soltar depois!
Passearam pelos caminhos do grande jardim. Entraram no palácio, preservado como museu dos tempos antigos da realeza, pois Vea disse que adorava ver as joias expostas ali. Retratos de nobres e príncipes arrogantes os fitavam das paredes cobertas de brocados e das lareiras entalhadas. Os cômodos estavam repletos de prata, ouro, cristal, madeiras raras, tapeçarias e joias. Havia guardas a postos atrás de cordões de veludo. Os uniformes pretos e vermelhos dos guardas harmonizavam bem com aquela pompa, as tapeçarias bordadas a ouro, as colchas de plumas, mas seus rostos não combinavam com o ambiente; eram rostos entediados, cansados, cansados de ficarem em pé o dia inteiro no meio de estranhos, realizando uma tarefa inútil. Shevek e Vea foram até um mostruário de vidro onde jazia o manto da Rainha Teaea, feito com as peles bronzeadas de rebeldes esfolados vivos, que aquela mulher terrível e provocadora usara quando se dirigiu ao povo assolado pela peste e rezou a Deus para que acabasse com o flagelo, mil e quatrocentos anos antes.
– Para mim, isso tem a mesma aparência terrível do couro de cabra – disse Vea, examinando o farrapo desbotado pelo tempo no mostruário de vidro. Ergueu os olhos de soslaio para Shevek. – Tudo bem com você?
– Acho que eu gostaria de sair deste lugar.
Já do lado de fora, no jardim, o rosto de Shevek tornou-se menos lívido, mas ele olhou para as paredes do palácio com ódio. – Por que o seu povo se apega à sua vergonha? – ele perguntou.
– Mas isso tudo é história. Coisas assim não poderiam acontecer hoje em dia!
Ela o levou a uma matinê no teatro, uma comédia sobre jovens casados e suas sogras, cheia de piadas sobre cópula que nunca mencionavam a cópula. Shevek tentava rir quando Vea ria. Depois do teatro foram a um restaurante no centro da cidade, um lugar de incrível opulência. O jantar custou cem unidades. Shevek comeu muito pouco, pois já comera ao meio-dia, mas rendeu-se ao pedido de Vea e bebeu duas ou três taças de vinho, que era mais agradável do que esperara e pareceu não exercer nenhum efeito deletério em seu raciocínio. Ele não tinha dinheiro suficiente para pagar o jantar, mas Vea não se ofereceu para dividir a conta, apenas sugerindo que ele passasse um cheque, o que ele fez. Em seguida tomaram um táxi e foram para o apartamento de Vea; ela também deixou que ele pagasse o motorista. Será, ele se perguntou, que Vea era na verdade uma prostituta, aquela entidade misteriosa? Mas prostitutas, conforme Odo as descreveu, eram mulheres pobres, e Vea certamente não era pobre: “sua” festa, ela lhe disse, estava sendo preparada por “sua” cozinheira, “sua” criada e “seu” fornecedor. Além do mais, os homens da universidade falavam com desprezo de prostitutas como sendo criaturas sujas, enquanto Vea, apesar de suas incessantes provocações, demonstrava tal suscetibilidade em uma conversa franca sobre qualquer coisa sexual que Shevek media as palavras com ela como teria feito, em Anarres, com uma criança tímida de 10 anos. No final das contas, ele não sabia exatamente o que ela era.
Os aposentos de Vea eram grandes e luxuosos, com vistas cintilantes das luzes de Nio e inteiramente decorados em branco, até mesmo o tapete. Mas Shevek estava se tornando insensível ao luxo e, além disso, estava morrendo de sono. Os convidados só chegariam em uma hora. Enquanto Vea trocava de roupa, ele adormeceu numa enorme poltrona branca na sala. A criada fazendo um barulho qualquer sobre a mesa o despertou a tempo de ver Vea voltar, vestindo agora um formal traje noturno iota para mulheres, uma saia longa plissada a partir dos quadris, deixando todo o torso nu. No umbigo brilhava uma pequena joia, exatamente como as fotos que tinha visto com Tirin e Bedap, há um quarto de século, no Instituto Regional do Poente Norte, exatamente assim... Semiacordado e totalmente excitado, ele a fitou.
Ela retribuiu o olhar, sorrindo um pouco.
Ela se sentou num banquinho baixo e estofado perto dele, para que pudesse olhá-lo na altura do rosto. Arrumou a saia branca sobre os tornozelos e disse:
– Agora me conte o que realmente acontece entre homens e mulheres em Anarres.
Era inacreditável. A criada e o fornecedor estavam na sala; ela sabia que ele tinha uma parceira, e ele sabia que ela também; e nenhuma palavra sobre cópula tinha sido dita entre eles. No entanto, a roupa que ela estava usando, seus movimentos, seu tom de voz – o que era tudo aquilo senão o mais aberto convite?
– Entre um homem e uma mulher existe o que eles quiserem que exista entre eles – ele disse, um tanto ríspido. – Cada um deles, e ambos.
– Então é verdade, vocês realmente não têm moralidade? – ela perguntou, como se chocada, mas encantada.
– Não sei o que quer dizer. Magoar uma pessoa lá é o mesmo que magoar uma pessoa aqui.
– Quer dizer que vocês têm as mesmas velhas regras? Sabe, acredito que moralidade seja apenas mais uma superstição, como a religião. Tinha de ser descartada.
– Mas a minha sociedade – ele disse, em total perplexidade – é uma tentativa de atingir a moralidade. Descartar o que for moralista, sim, as regras, as leis, os castigos, para que os homens possam enxergar o bem e o mal e escolher um deles.
– Então vocês descartaram todas as imposições, todos os “faça isso”, “não faça aquilo”. Mas, sabe, acho que vocês, odonianos, não entenderam nada. Vocês descartaram os padres, os juízes, as leis do divórcio e tudo o mais, mas mantiveram o problema real por trás deles. Vocês só inseriram o problema em suas consciências. Mas ele ainda está lá. Vocês continuam os escravos de sempre! Não são livres de verdade.
– Como você sabe?
– Li um artigo sobre odonismo numa revista – ela disse. – E nós dois passamos o dia juntos. Não sei você, mas eu sei algumas coisas sobre você. Sei que você carrega uma... uma Rainha Teaea aí dentro, bem dentro dessa sua cabeça cabeluda. E ela manda em você tanto quanto a velha tirana mandava em seus servos. Ela diz “faça isso!” e você faz, “não faça isso”, e você não faz.
– E aqui é o lugar dela – ele disse, sorrindo. – Dentro da minha cabeça.
– Não. Melhor tê-la num palácio. Aí você poderia se rebelar contra ela. Você teria se rebelado! Seu tataravô se rebelou. Pelo menos ele foi para a Lua para tentar escapar. Mas levou a Rainha Teaea com ele, e você ainda está com ela!
– Pode ser. Mas ela aprendeu, em Anarres, que se ela me mandar machucar outra pessoa, eu machuco a mim mesmo.
– A mesma velha hipocrisia. A vida é uma luta, e o mais forte vence. Tudo o que a civilização faz é esconder o sangue e encobrir o ódio com palavras bonitas!
– A sua civilização, talvez. A nossa não esconde nada. Tudo é manifesto. Lá, a Rainha Teaea veste a própria pele. Seguimos uma lei, apenas uma: a lei da evolução humana.
– A lei da evolução é que o mais forte sobrevive!
– Sim, e os mais fortes, na existência de qualquer espécie social, são aqueles mais sociais. Em termos humanos, mais éticos. Entende, não temos presas ou inimigos em Anarres. Só temos uns aos outros. Não se conquista nenhuma força machucando alguém. Só fraqueza.
– Não me importo em machucar ou não machucar. Não me importo com outras pessoas, e ninguém mais se importa. Só fingem. Não quero fingir. Quero ser livre!
– Mas Vea – ele começou, com ternura, pois o apelo à liberdade o comoveu muito, mas a campainha tocou. Vea levantou-se, ajeitou a saia e avançou sorrindo para receber os convidados.
Durante a hora seguinte, trinta ou quarenta pessoas chegaram. A princípio Shevek sentiu-se irritado, insatisfeito e entediado. Era só mais uma festa em que todos ficavam de pé com um copo na mão, sorrindo e conversando alto. Mas logo se tornou mais divertida. As conversas e discussões continuaram, as pessoas sentaram-se para conversar, começou a parecer uma festa em seu planeta. Delicados salgadinhos e pedacinhos de carne e peixe foram servidos, as taças eram constantemente preenchidas pelo atencioso garçom. Shevek aceitou uma bebida. Vinha observando há meses a avidez dos urrastis por álcool, e nenhum deles parecera ter caído doente por causa disso. A coisa tinha gosto de remédio, mas alguém explicou que era sobretudo água carbonada, o que lhe agradou. Estava com sede, então bebeu tudo de uma vez.
Dois homens estavam determinados a conversar sobre física com ele. Um deles tinha boas maneiras, e Shevek conseguiu despistá-lo por um tempo, pois achava difícil discutir física com não físicos. O outro era arrogante, e não foi possível escapar dele. Mas a irritação, Shevek descobriu, tornava a conversa bem mais fácil. O homem sabia de tudo, aparentemente porque tinha muito dinheiro.
– A meu ver – ele declarou a Shevek –, sua Teoria da Simultaneidade simplesmente nega o fato mais óbvio sobre o tempo, o fato de que o tempo passa.
– Bem, na física tem-se cuidado com o que se chama de “fatos”. É diferente dos negócios – disse Shevek de modo brando e agradável, mas havia algo naquela brandura que fez Vea, que estava conversando com outro grupo próximo, virar-se e prestar atenção. – Nos termos estritos da Teoria da Simultaneidade, a sucessão não é considerada um fenômeno fisicamente objetivo, mas subjetivo.
– Agora pare de tentar assustar Dearri e diga o que isso significa em linguagem infantil – disse Vea. Sua perspicácia fez Shevek dar um meio sorriso.
– Bem, pensamos que o tempo “passa”, que flui por nós, mas e se formos nós que nos movemos para a frente, do passado para o futuro, sempre descobrindo o novo? Seria um pouco como ler um livro, entende? O livro está todo ali, todo de uma vez, entre as capas. Mas se você quer ler a história e entendê-la, deve começar na primeira página e avançar, sempre na ordem. Então o universo seria um grande livro, e nós, leitores muito pequenos.
– Mas o fato – disse Dearri – é que nós vivenciamos o universo como uma sucessão, um fluxo. Nesse caso, de que adianta essa teoria de que num plano mais alto o universo pode ser todo eternamente coexistente? Pode ser divertido para vocês, teóricos, mas não tem nenhuma aplicação prática, nenhuma relevância para a vida real. A menos que isso signifique que podemos construir uma máquina do tempo! – ele acrescentou, numa espécie de jovialidade severa e falsa.
– Mas nós não vivenciamos o universo apenas como uma sucessão – disse Shevek. – O senhor nunca sonha, sr. Dearri? – Sentiu orgulho de si mesmo por ter, pela primeira vez, se lembrado de chamar alguém se “senhor”.
– O que isso tem a ver com o assunto?
– Parece que é apenas na consciência que vivenciamos o tempo. Um bebê não tem noção de tempo; ele não consegue se distanciar do passado e compreender como ele se relaciona com o presente, ou planejar como o presente pode se relacionar com o futuro; ele não compreende a morte. A mente inconsciente do adulto ainda é assim. Num sonho não existe tempo, a sucessão é toda alterada, e causa e efeito se misturam. No mito e na lenda não existe tempo. A que passado se refere um conto quando diz “Era uma vez”? Assim, quando o místico reconecta razão e inconsciência, vê tudo se tornar um único ser e compreende o eterno retorno.
– Sim, os místicos – disse com avidez o homem mais tímido. – Tebores, no Oitavo Milênio. Ele escreveu: A mente inconsciente coexiste com o universo.
– Mas não somos bebês – interrompeu Dearri –, somos homens racionais. Sua Simultaneidade é algum tipo de regressão mística?
Houve uma pausa, quando Shevek se serviu de um salgadinho que ele não queria e o comeu. Já tinha perdido a calma uma vez nesse dia e feito papel de tolo. Uma vez bastava.
– Talvez você possa compreendê-la – disse – como um esforço para atingir um equilíbrio. A Sequência fornece uma bela explicação para nossa sensação de tempo linear, entende, e a evidência da evolução. Ela inclui a criação e a mortalidade. Mas para por aí. Lida com tudo o que muda, mas não consegue explicar por que as coisas também perduram. Fala somente da flecha do tempo... nunca do círculo do tempo.
– O círculo? – perguntou o inquiridor mais educado, com tão evidente anseio de aprender que Shevek esqueceu Dearri por completo e mergulhou no assunto com entusiasmo, gesticulando as mãos e os braços, como se tentasse mostrar ao ouvinte, materialmente, as flechas, os ciclos, as oscilações de que falava.
– O tempo avança em círculos, bem como em linha reta. Como o movimento de um planeta, entende? Um ciclo, uma órbita em torno do sol, dura um ano, não é? E duas órbitas, dois anos, e assim por diante. Pode-se contar as órbitas indefinidamente... um observador pode. De fato, é com esse sistema que contamos o tempo. Isso equivale ao indicador de tempo, ao relógio. Mas dentro do sistema, do ciclo, onde está o tempo? Onde está o começo ou o fim? Repetição infinita é um processo atemporal. Deve ser comparado, deve estar relacionado a algum outro processo cíclico ou não cíclico, para ser visto como temporal. Veja bem, isso é muito esquisito e interessante. Os átomos, você sabe, têm um movimento cíclico. Os compostos estáveis são feitos de elementos que têm um movimento regular e periódico em relação uns aos outros. Na verdade, são os minúsculos ciclos de tempo reversível do átomo que dão à matéria permanência suficiente para tornar possível a evolução. As pequenas atemporalidades somadas compõem o tempo. E depois, em grande escala, o cosmo. Bem, você sabe que achamos que o universo inteiro é um processo cíclico, uma oscilação entre expansão e contração, sem um antes ou um depois. Somente dentro de cada um dos grandes ciclos, onde vivemos, somente aí existe tempo linear, evolução, mudança. Portanto, o tempo tem dois aspectos. Existe a flecha, a correnteza do rio, sem a qual não há nenhuma mudança, nenhum progresso, nem direção, nem criação. E existe o círculo ou ciclo, sem o qual há o caos, há a sucessão de instantes sem sentido, um mundo sem relógios, sem estações, sem promessas.
– Não se pode fazer duas afirmações contraditórias sobre a mesma coisa – disse Dearri, com a calma do conhecimento superior. – Em outras palavras, um desses “aspectos” é real, ou outro é simples ilusão.
– Muitos físicos já disseram isso – Shevek reconheceu.
– Mas o que o senhor diz? – perguntou o que queria saber.
– Bem, acho que é uma saída fácil de uma dificuldade... Pode-se descartar o ser ou o vir a ser como uma ilusão? Vir a ser sem ser não faz sentido. Ser sem vir a ser é um grande tédio... Se a mente é capaz da percepção do tempo dessas duas formas, então uma verdadeira cronosofia deve fornecer um campo em que a relação dos dois aspectos ou processos do tempo poderia ser compreendida.
– Mas para que serve esse tipo de “compreensão” – perguntou Dearri –, se não resulta em aplicações práticas, tecnológicas? É só um jogo de palavras, não é?
– Você faz perguntas como um verdadeiro explorador – disse Shevek, e nenhuma alma ali sabia que ele insultara Dearri com a palavra mais desprezível em seu vocabulário; na verdade, Dearri até assentiu com a cabeça, aceitando o elogio com satisfação. Vea, entretanto, sentiu uma tensão e fez um aparte abrupto:
– Sabe, não entendo uma palavra do que você diz, mas me parece que se eu realmente entendi o que você disse sobre o livro... que tudo existe agora... então não seríamos capazes de prever o futuro? Se ele já está lá?
– Não, não – disse o homem mais tímido, sem nenhuma timidez. – Não está lá como um sofá ou uma casa. Tempo não é espaço. Não se pode andar nele! – Vea assentiu com um intenso movimento da cabeça, como se estivesse aliviada por ter sido colocada em seu devido lugar. Parecendo ganhar confiança por ter afastado a mulher dos domínios do pensamento superior, o homem tímido virou para Dearri e disse:
– Parece-me que a aplicação da Física Temporal está na ética. O senhor concordaria com isso, dr. Shevek?
– Ética? Bem, não sei. Meu trabalho predominante é a matemática, você sabe. Não se pode fazer equações do comportamento ético.
– Por que não? – disse Dearri.
Shevek o ignorou.
– Mas é verdade, a cronosofia realmente envolve a ética. Porque nossa sensação de tempo envolve numa capacidade de separar causa e efeito, meios e fins. De novo, o bebê ou animal não veem a diferença entre o que fazem agora e o que vai acontecer por causa disso. Não podem fazer uma roldana, ou uma promessa. Nós podemos. Vendo a diferença entre o agora e o não agora, conseguimos fazer a conexão. E é aí que entra a moralidade. Responsabilidade. Dizer que um bom fim será alcançado por um mau meio é como dizer que se eu puxar a corda dessa roldana, ela vai erguer um peso naquela outra. Quebrar uma promessa é negar a realidade do passado; portanto, é negar a esperança de um futuro real. Se o tempo e a razão são funções um do outro, se somos criaturas do tempo, é melhor sabermos disso e tirarmos o melhor proveito disso. Agir com responsabilidade.
– Mas olhe aqui – disse Dearri, com inefável satisfação por sua perspicácia –, você acabou de dizer que no seu sistema de Simultaneidade, não há passado e futuro, só uma espécie de eterno presente. Então como se pode ser responsável pelo livro que já está escrito? Tudo o que se pode fazer é ler o livro. Não sobra nenhuma escolha, nenhuma liberdade de ação.
– Esse é o dilema do determinismo. Você tem toda razão, está implícito no pensamento Simultaneísta. Mas o pensamento da Sequência também tem seu dilema. É mais ou menos assim, fazendo uma pequena comparação ridícula: você está jogando uma pedra numa árvore; se você é Simultaneísta, a pedra já bateu na árvore, mas se você é Sequencista, a pedra nunca vai poder bater na árvore. Então, qual dos dois você escolhe? Talvez você prefira jogar pedras sem pensar no assunto, sem escolher. Eu prefiro dificultar as coisas e escolher os dois.
– Como... como o senhor os concilia? – perguntou o tímido, com sinceridade.
Shevek quase riu de desespero.
– Não sei. Trabalho nisso há muito tempo! No fim, a pedra bate na árvore. Nem a sequência pura nem a unidade pura explicam isso. Não queremos pureza, mas complexidade, a relação entre causa e efeito, meio e fim. Nosso modelo do cosmo deve ser tão inesgotável quanto o cosmo. Uma complexidade que inclua não apenas duração, mas criação, não apenas ser, mas vir a ser, não apenas geometria, mas ética. Não estamos atrás da resposta, mas apenas de como fazer a pergunta...
– Tudo muito bem, mas a indústria precisa de respostas – disse Dearri.
Shevek virou-se devagar, olhou para ele e não disse nada.
Houve um silêncio pesado, no qual Vea se lançou, graciosa e inconsequente, retornando ao tema da previsão do futuro. Outros foram atraídos pelo assunto e todos começaram a narrar suas experiências com cartomantes e videntes.
Shevek decidiu não falar mais nada, qualquer que fosse a pergunta. Estava com mais sede do que nunca; deixou o garçom encher de novo sua taça e bebeu a coisa agradável e espumante. Olhou em volta da sala, tentando dissipar a raiva e a tensão observando as outras pessoas. Mas elas também se comportavam com muita emoção para os padrões iotas – gritando, rindo alto, interrompendo-se uns aos outros. Num canto, um casal entregava-se a preliminares sexuais. Shevek desviou o olhar, enojado. Eles egoizavam até o sexo? Acariciar-se e copular na frente de pessoas desacompanhadas era tão vulgar quanto comer na frente de pessoas famintas. Voltou a atenção para o grupo à sua volta. Haviam terminado o assunto das previsões do futuro e agora falavam de política. Estavam todos discutindo sobre a guerra, sobre o que Thu iria fazer, o que A-Io iria fazer, o que o CGM iria fazer.
– Por que vocês só falam em abstrações? – ele perguntou de repente, perguntando-se, enquanto falava, por que estava falando, se tinha decidido não falar. – Não são nomes de países, são pessoas se matando. Por que os soldados vão? Por que um homem vai matar estranhos?
– Mas é para isso que servem os soldados – disse uma mulher pequena e clara, com uma opala no umbigo. Vários homens começaram a explicar a Shevek o princípio de soberania nacional. Vea interrompeu. – Deixem que ele fale. Como você resolveria o problema, Shevek?
– A solução está bem à vista.
– Onde?
– Anarres!
– Mas o que o seu povo faz na Lua não resolve nossos problemas aqui.
– O problema do homem é sempre o mesmo. Sobrevivência. Da espécie, do grupo, do indivíduo.
– Autodefesa nacional... – alguém gritou.
Eles argumentaram, ele argumentou. Ele sabia o que gostaria de dizer e sabia que deveria convencer a todos, pois era claro e verdadeiro, mas, de algum modo, não conseguia dizê-lo adequadamente. Todos gritavam. A mulherzinha clara bateu no braço largo da poltrona em que estava sentada e ele se sentou ali. A cabeça raspada e acetinada da mulher surgiu olhando para ele sob seu braço.
– Olá, Homem da Lua! – Vea unira-se a outro grupo por um tempo, mas tornou a se aproximar dele. O rosto dela estava enrubescido e seus olhos, grandes e líquidos. Ele pensou ter visto Pae do outro lado da sala, mas havia tantos rostos que eles se misturavam e se tornavam indistintos. Coisas aconteciam aos trancos e barrancos, com lacunas no meio, como se o tivessem deixado testemunhar, dos bastidores, o funcionamento do Cosmo Cíclico da hipótese da velha Gvarab.
– O princípio da autoridade legal deve ser mantido, ou vamos degenerar em mera anarquia! – rugiu um homem gordo e carrancudo.
– Sim, sim, degenerem! Nós temos desfrutado essa degeneração há cento e cinquenta anos. – retrucou Shevek.
Os dedos dos pés da mulherzinha clara, em sandálias prateadas, surgiram por sob a saia toda bordada com centenas e centenas de pequenas pérolas.
– Mas fale de Anarres... como é, de verdade? Lá é tão maravilhoso assim? – Vea disse.
Ele estava sentado no braço da poltrona, e Vea estava encostada na almofada perto dos joelhos dele, ereta e dócil, os seios macios fitando-o com seus olhos cegos, o rosto sorrindo, complacente, enrubescido.
Algo sombrio revolveu-se na mente de Shevek, escurecendo tudo. Sua boca estava seca. Esvaziou a taça cheia que o garçom acabara de lhe servir.
– Não sei – ele disse; sentiu a língua semiparalisada. – Não. Não é maravilhoso. É um mundo feio. Não como este. Anarres só tem poeira e colinas áridas. Tudo escasso, tudo árido. As pessoas não são bonitas. Têm mãos e pés grandes, como eu e o garçom ali. Mas as barrigas não são grandes. Eles se sujam muito e tomam banho juntos, ninguém aqui faz isso. As cidades são muito pequenas e sem graça, são lúgubres. Nenhum palácio. A vida é sem graça, e o trabalho é duro. Não se pode ter sempre tudo o que se quer, ou mesmo o que se necessita, porque não há o suficiente. Vocês, urrastis, têm o suficiente. Ar suficiente, chuva suficiente, grama, oceanos, comida, música, prédios, fábricas, máquinas, livros, história. Vocês são ricos, vocês possuem. Nós somos pobres, somos carentes. Vocês têm, nós não temos. Tudo é lindo aqui. Só os rostos que não. Em Anarres nada é lindo, nada, exceto os rostos. Os outros rostos, dos homens e das mulheres. Aqui se veem joias, lá se veem olhos. E nos olhos se vê o esplendor, o esplendor do espírito humano. Porque nossos homens e mulheres são livres... por não possuírem nada, são livres. E vocês, os possuidores, são possuídos. Vocês estão todos presos. Cada um sozinho, solitário, com o monte de coisas que possui. Vocês vivem na prisão, morrem na prisão. É tudo que consigo ver nos seus olhos... o muro, o muro!
Estavam todos olhando para ele.
Ouviu o som alto da própria voz ainda ressoando no silêncio, sentiu as orelhas ardendo. A escuridão e o vazio revolveram-se outra vez em sua mente.
– Estou tonto – ele disse, e se levantou.
Vea segurou-lhe pelo braço.
– Venha comigo por aqui – ela disse, rindo um pouco e ofegante. Ele a seguiu enquanto ela abria caminho por entre as pessoas. Ele agora sentia o rosto muito pálido, e a tontura não passava; esperava que ela o estivesse levando ao lavatório, ou a uma janela onde pudesse respirar ar fresco. Mas o cômodo em que entraram era grande e parcialmente iluminado por um reflexo. Uma enorme cama branca estava encostada na parede; um espelho cobria a metade da outra parede. Havia uma fragrância densa e doce de cortinas, de roupas de cama, do perfume que Vea usava.
– Você é demais – Vea disse, postando-se na frente de Shevek e erguendo os olhos para o rosto dele, na escuridão parcial, com aquele sorriso ofegante. – Realmente demais... você é impossível... magnífico! – Colocou as mãos nos ombros dele. – Oh, a cara que eles fizeram! Preciso lhe dar um beijo por isso! – E ela se ergueu na ponta dos pés, mostrando-lhe a boca, o pescoço branco e os seios nus.
Ele a agarrou e deu-lhe um beijo na boca, forçando a cabeça dela para trás, e depois beijou o pescoço e os seios. Ela cedeu a princípio, como se não tivesse ossos, depois se contorceu um pouco, rindo e o empurrando de leve, e começou a falar.
– Oh, não, não, comporte-se – ela disse. – Agora vamos, temos que voltar para a festa. Não, Shevek, agora não, sossegue, assim não vai dar! – Ele não deu a menor atenção. Puxou-a com ele para a cama, e ela foi, mas continuou falando. Com uma das mãos, ele tateou as roupas complicadas que estava usando e conseguiu abrir a calça. Depois tateou a roupa de Vea, a saia de cintura baixa, mas apertada, que ele não conseguiu soltar.
– Agora pare – ela disse. – Não, escute, Shevek, não vai dar, não agora. Não tomei anticoncepcional, se eu engravidar vai ser a maior confusão, meu marido volta em duas semanas! Não, me solte! – Mas ele não conseguia soltá-la, seu rosto estava colado à carne macia, suada e perfumada. – Escute, não amasse a minha roupa, as pessoas vão notar, pelo amor de Deus. Espere... espere, podemos combinar, arranjar um lugar para um encontro, tenho que zelar pela minha reputação, não posso confiar na empregada, espere, agora não... Agora não! Agora não! – Por fim, assustada com a urgência cega de Shevek e sua energia, ela o empurrou com todas as suas forças, as mãos no peito dele. Ele deu um passo para trás, confuso com o tom de medo na voz dela e com sua relutância; mas ele não conseguia parar, a resistência dela o excitou ainda mais. Ele a apertou contra si, e seu sêmen jorrou na seda branca do traje de Vea.
– Me solte! Me solte! – ela repetia no mesmo sussurro alto. Ele a soltou. Ficou parado, entorpecido. Tateou sua calça, tentando fechá-la.
– Eu... desculpe... pensei que você quisesse...
– Pelo amor de Deus! – disse Vea, olhando a saia na penumbra, puxando o plissado. – Agora vou ter que mudar de roupa.
Shevek ficou parado, boquiaberto, respirando com dificuldade, os braços caídos; então de repente virou-se e saiu do quarto escuro. De volta à sala iluminada da festa, passou cambaleando pelas pessoas, tropeçou numa perna, viu que o caminho estava impedido por corpos, roupas, joias, seios, olhos, chamas de velas, mobília. Correu para uma mesa. Nela havia uma travessa de prata em que pequenos salgadinhos recheados de carne, creme e ervas formavam círculos concêntricos, como uma imensa flor pálida. Shevek ofegou para respirar, curvou-se e vomitou em cima da travessa inteira.
– Eu o levo para casa – disse Pae.
– Faça isso, pelo amor de Deus – disse Vea. – Você estava procurando por ele, Saio?
– Ah, um pouco. Felizmente Demaere te ligou.
– Com certeza ele vai precisar de você.
– Ele não vai dar trabalho. Desmaiou no corredor. Posso usar seu telefone antes de sair?
– Mande lembrança ao chefe – Vea disse, maliciosamente.
Oiie tinha vindo ao apartamento da irmã com Pae e saiu com ele. Sentaram-se no banco do meio na grande limusine do governo que Pae sempre deixava de sobreaviso, a mesma que trouxera Shevek do porto espacial no verão anterior. Shevek agora estava deitado no banco traseiro, na mesma posição em que o tinham jogado.
– Ele ficou com a sua irmã o dia inteiro, Demaere?
– Parece que desde o meio-dia.
– Graças a Deus!
– Por que você tem tanto medo de que ele entre nos bairros pobres? Qualquer odoniano já está convencido de que somos um monte de escravos assalariados e oprimidos; qual a diferença se ele vir um pouco de confirmação disso?
– Pouco me importa o que ele veja. Não queremos que ele seja visto. Você tem lido os jornais alpistes? Ou os cartazes que circularam semana passada pela Cidade Velha, sobre o “Precursor”? O mito... aquele que virá antes do milênio... “um estranho, um pária, um exilado, trazendo nas mãos vazias o tempo vindouro”. Eles citaram isso. Essa turba está num daqueles malditos surtos apocalípticos. Procurando um líder simbólico. Um catalisador. Falando em greve geral. Não vão aprender nunca. Mesmo assim, precisam de uma lição. Maldita ralé rebelde, mandem todos eles combaterem em Thu, só assim vão nos servir para alguma coisa.
Nenhum dos dois homens falou mais nada durante o percurso.
O vigia noturno da Casa dos Veteranos da Faculdade os ajudou a subirem com Shevek para o seu quarto. Carregaram-no até a cama. Ele começou a roncar na mesma hora.
Oiie ficou para tirar os sapatos de Shevek e cobri-lo com um cobertor. O bafo do homem embriagado era repugnante; Oiie afastou-se da cama, tomado pelo medo e pelo amor que sentia por Shevek, um sentimento sufocando o outro. Franziu o cenho e murmurou:
– Idiota obsceno. – Apagou a luz com um estalo e voltou ao outro cômodo. Pae estava em pé ao lado da escrivaninha, mexendo nos papéis de Shevek.
– Deixe isso – disse Oiie, e sua expressão de nojo se intensificava. – Vamos. São duas horas da manhã. Estou cansado.
– O que esse canalha tem feito, Demaere? Nada aqui ainda, absolutamente nada. Será que ele é uma completa fraude? Será que fomos enganados por um maldito camponês ingênuo de Utopia? Onde está a teoria dele? Onde está nossa nave espacial instantânea? Onde está nossa vantagem sobre os hainianos? Há nove, dez meses estamos alimentando o canalha, para nada! – No entanto, enfiou no bolso um dos papéis antes de acompanhar Oiie até a porta.
CONTINUA
Havia um muro. Não parecia importante. Era feito de pedra bruta e argamassa grosseira. Um adulto conseguia olhar por cima dele, e até uma criança conseguia subir nele. No ponto em que atravessava a estrada, em vez de ter um portão, ele degenerava em mera geometria, uma linha, uma ideia de limite. Mas a ideia era real. Era importante. Por sete gerações não houve nada mais importante no mundo do que aquele muro.
Como todos os muros, era ambíguo, com dois lados. O que ficava dentro ou fora do muro dependia do lado em que se estava.
Visto de um lado, o muro encerrava um campo árido de sessenta acres, chamado Porto de Anarres. No campo havia dois grandes guindastes, uma plataforma de lançamento, uma garagem de caminhões e um alojamento. O alojamento era sólido, encardido e lúgubre; não tinha nenhum jardim, nenhuma criança; era evidente que ninguém vivia ali, nem sequer devia passar muito tempo ali. Era, na verdade, uma quarentena. O muro não cercava apenas o campo de pouso, mas também as naves que desciam do espaço, e os homens que vinham nas naves, e os mundos de onde vinham, e o resto do universo. O muro cercava o universo, deixando Anarres de fora, livre.
Visto do outro lado, o muro encerrava Anarres: o planeta inteiro estava dentro do muro, um grande campo de prisioneiros, apartado de outros mundos e outros homens, em quarentena.
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Algumas pessoas vinham pela estrada em direção ao campo de pouso, outras paravam no ponto em que a estrada cruzava o muro.
As pessoas vinham com frequência da cidade vizinha de Abbenay, na esperança de ver uma espaçonave, ou simplesmente ver o muro. Afinal, era o único muro divisório do mundo. Em nenhum outro lugar podiam ver uma placa com os dizeres PASSAGEM PROIBIDA. Adolescentes, em particular, eram atraídos pelo muro. Talvez conseguissem observar uma equipe descarregando engradados de caminhões-lagarta nos depósitos. Talvez até houvesse um cargueiro na plataforma de lançamento. Os cargueiros desciam oito vezes por ano, sem aviso, exceto aos síndicos em serviço no porto. Assim, quando os espectadores tiveram a sorte de ver um, animaram-se, a princípio. Mas lá ficaram eles, parados, e lá ficou o cargueiro, parado, uma torre preta agachada em meio a uma confusão de guindastes móveis, do outro lado do campo. E então uma mulher saiu de um dos depósitos e disse:
– Estamos encerrando por hoje, irmãos.
Ela usava a braçadeira da Defesa, uma visão quase tão rara quanto a de uma espaçonave. Aquilo causou certa emoção. Mas, embora seu tom de voz fosse brando, foi categórico. Ela era a chefe da equipe e, se provocada, seria defendida pelos síndicos. De qualquer forma, não havia nada para se ver. Os alienígenas, os fora-do-mundo, ficaram escondidos na nave. Sem espetáculo.
Foi um espetáculo sem graça para a equipe de Defesa também. Às vezes a chefe desejava que alguém tentasse atravessar o muro, um tripulante alienígena pulando da nave, ou um garoto de Abbenay tentando uma entrada furtiva para ver o cargueiro mais de perto. Mas nunca aconteceu. Nada jamais aconteceu. Quando algo enfim aconteceu, ela não estava preparada.
O comandante do cargueiro Atento disse a ela:
– Aquela turba está atrás da minha nave?
A chefe olhou e viu que, de fato, havia uma verdadeira multidão em volta do portão, cem pessoas ou mais. Estavam por ali, paradas, do mesmo modo que as pessoas tinham ficado paradas nas estações, aguardando os trens de produtos agrícolas, durante a Fome. Aquilo assustou a chefe.
– Não. Eles, hã, protesto – ela disse, no iótico limitado e lento que sabia falar. – Protesto, hã, você sabe. Passageiro?
– Você quer dizer que eles estão atrás desse canalha que temos que levar? Eles vão tentar deter o homem ou a minha nave?
A palavra “canalha”, intraduzível no idioma da chefe, não significava nada para ela além de um termo estrangeiro, mas nunca gostou do som da palavra, nem do tom de voz do comandante, nem do comandante.
– Vocês conseguem se proteger sozinhos? – ela perguntou, lacônica.
– Claro que sim. É só você terminar de descarregar o resto da carga, rápido. E traga esse passageiro canalha a bordo. Não é uma turba de odos que vai causar problema para nós. – Ele bateu de leve na coisa que trazia no cinto, um objeto metálico parecido com um pênis deformado, e olhou com ar condescendente para a mulher desarmada.
Ela lançou para o objeto fálico, que sabia ser uma arma, um frio olhar.
– A nave estará carregada às 14h00 – ela disse. – Mantenha a tripulação de bordo segura. A decolagem será às 14h40. Se precisar de ajuda, deixe uma mensagem gravada no Controle Terrestre. – Ela saiu a passos largos antes de o comandante retrucar. A raiva deixou-a mais rígida com a equipe e com a multidão.
– Liberem a estrada aí! – ordenou. – Os caminhões vão passar, alguém pode se machucar. Afastem-se!
Os homens e as mulheres da multidão discutiram com ela e entre si. Continuaram a atravessar a estrada, e alguns entraram no muro. Mas deixaram o caminho mais ou menos livre. Se a chefe não tinha nenhuma experiência em controlar uma turba, eles não tinham nenhuma experiência em ser uma turba. Como membros de uma comunidade, não elementos de uma coletividade, não eram movidos pelo sentimento de massa; cada pessoa ali era regida por suas próprias emoções. E não esperavam que ordens fossem arbitrárias, então não tinham prática em desobedecê-las. A inexperiência deles salvou a vida do passageiro.
Alguns tinham vindo para matar o traidor. Outros tinham vindo impedir a sua partida, ou gritar-lhe insultos, ou apenas olhar para ele; e todos esses outros obstruíram a passagem abrupta dos assassinos. Nenhum deles portava armas de fogo, mas dois tinham facas. Para eles, ataque significava ataque físico; queriam pôr as próprias mãos no traidor. Esperavam que ele viesse protegido, num veículo. Enquanto tentavam revistar um caminhão de mercadorias e discutiam com o indignado motorista, o homem que todos queriam veio andando pela estrada, sozinho. Quando o reconheceram, ele já estava no meio do campo, seguido por cinco síndicos da Defesa. Os que desejavam matá-lo recorreram à perseguição, tarde demais, e começaram a atirar pedras, não tão tarde. Atingiram de raspão o ombro do passageiro no momento em que ele entrava na nave, mas uma pedra de dois quilos acertou a lateral da cabeça de um dos membros da Defesa, matando-o na hora.
As escotilhas da nave se fecharam. A equipe da Defesa retornou, carregando o colega morto; não fizeram nenhum esforço para deter os líderes da multidão que corriam em direção à nave, embora a chefe, lívida de assombro e fúria, os tenha mandado para o inferno quando eles passaram correndo, dando uma guinada para evitá-la. Quando chegaram à nave, a vanguarda da multidão espalhou-se, indecisa. O silêncio da nave, os movimentos bruscos dos enormes e esqueléticos guindastes, a estranha aparência queimada do solo, a ausência de qualquer coisa em escala humana deixaram-nos desorientados. Uma rajada de vapor, ou gás, ou algo conectado à nave assustou alguns deles; apreensivos, ergueram os olhos para os foguetes, grandes túneis pretos acima. Uma sirene soou em alarme do outro lado do campo. Uma a uma, as pessoas começaram a retornar ao portão. Ninguém as deteve. Em dez minutos o campo estava vazio, e a multidão, espalhada pela estrada que ia a Abbenay. No fim, parecia que nada havia acontecido.
Dentro da nave Atento, muita coisa acontecia. Como o Controle Terrestre havia antecipado o lançamento, toda a rotina teve de ser cumprida às pressas. O comandante ordenara que o passageiro fosse amarrado e trancado na sala de descanso da tripulação, junto com o médico, para que não atrapalhassem. Lá havia uma tela, e eles poderiam ver a decolagem, se quisessem.
O passageiro observava. Viu o campo, o muro em volta do campo e, do lado de fora do muro, as distantes encostas das Montanhas Ne Theras, salpicadas de arbustos de holum e espinhos-da-lua esparsos e prateados.
Tudo isso de repente deslizou na tela, turvando-a. O passageiro sentiu a cabeça pressionada contra o encosto almofadado. Era como uma consulta no dentista: a cabeça pressionada para trás, o maxilar aberto à força. Não conseguia respirar, sentiu náusea, sentiu o intestino solto de medo. Seu corpo inteiro gritava às poderosas forças que o dominaram: Agora não, ainda não, esperem!
Seus olhos o salvaram. O que insistiam em ver e relatar tirou-o do autismo de terror. Pois na tela agora havia uma estranha vista, uma grande e pálida planície rochosa. Era o deserto visto das montanhas acima do Vale Grande. Como ele voltara ao Vale Grande? Tentou se convencer de que estava numa aeronave. Não, numa espaçonave. A borda da planície cintilava como o brilho da luz na água, luz sobre um mar distante. Mas não havia água naqueles desertos. Então, o que ele estava vendo? A planície rochosa não era mais plana, mas convexa, como uma imensa tigela cheia de luz solar. Enquanto observava, maravilhado, ela ficou cada vez mais convexa, espalhando sua luz. De repente, foi atravessada por uma linha, abstrata, geométrica, o raio perfeito de um círculo. Além daquele arco, era a escuridão. Essa escuridão inverteu toda a imagem, tornando-a negativa. A parte real, rochosa da imagem não era mais côncava e cheia de luz, mas convexa, refletindo, rejeitando a luz. Não era uma planície ou uma tigela, mas uma esfera, uma bola de pedra branca caindo e sumindo na escuridão. Era o seu mundo.
– Não entendo – ele disse em voz alta.
Alguém respondeu. Por um instante, não conseguiu compreender que a pessoa em pé ao lado de sua cadeira estava falando com ele, pois não sabia mais o que era uma resposta. Só tinha certeza de uma única coisa: seu total isolamento. Lá embaixo, seu mundo desaparecera, e ele ficou sozinho.
Sempre temera que isso acontecesse, mais do que jamais temera a própria morte. Morrer é perder o eu e unir-se ao resto. Ele mantivera o eu, mas perdera o resto.
Finalmente, pôde olhar para o homem em pé ao seu lado. Era um estranho, claro. Dali em diante, haveria apenas estranhos. O estranho falava uma língua estrangeira, o iótico. As palavras faziam sentido. Todas as coisas pequenas faziam sentido; só que a coisa toda, não. O homem dizia algo sobre as amarras que o seguravam à cadeira. Desajeitado, tentou apalpá-las. A cadeira inclinou-se para trás e ele, com vertigem e sem equilíbrio, quase caiu. O homem não parava de perguntar se alguém estava ferido. Do que estava falando?
– Tem certeza de que ele não está ferido?
Em iótico, a forma educada de se dirigir diretamente a alguém era na terceira pessoa. O homem queria dizer ele, ele mesmo, não outra pessoa. Não sabia por que deveria estar ferido; o homem não parava de dizer algo sobre pedras sendo atiradas. Mas a pedra nunca irá atingi-lo, pensou. Olhou de novo para a tela, procurando a pedra, a pedra branca caindo na escuridão, mas a tela estava vazia.
– Estou bem – disse por fim, ao acaso.
Isso não apaziguou o homem.
– Por favor, venha comigo. Sou médico.
– Estou bem.
– Por favor, venha comigo, dr. Shevek!
– O senhor é doutor – disse Shevek, após uma pausa. – Eu não. Eu me chamo Shevek.
O médico, um homem baixo, calvo, de pele clara, fez uma careta impaciente.
– O senhor deveria estar em sua cabine... perigo de infecção... não era para o senhor ter contato com ninguém além de mim. Passei por duas semanas de desinfecção para nada. Maldito seja esse comandante! Por favor, venha comigo, senhor. Vão me responsabilizar...
Shevek percebeu que o homenzinho estava perturbado. Não sentiu nenhuma compunção, nenhuma empatia; mas até mesmo na situação em que se encontrava, de absoluta solidão, uma lei se mantinha, a única lei que jamais reconhecera.
– Tudo bem – ele disse, e levantou-se.
Ainda se sentia zonzo, e o ombro direito lhe doía. Sabia que a nave devia estar se movendo, mas não havia sensação de movimento; havia apenas silêncio, um terrível e completo silêncio lá fora, além daquelas paredes. O médico o conduziu por silenciosos corredores metálicos até uma sala.
Era uma sala muito pequena, com paredes vazias e emendadas. Isso desagradou Shevek, por lembrá-lo de um lugar que queria esquecer. Parou à porta. Mas o médico insistiu e implorou, e ele entrou.
Sentou-se numa cama semelhante a uma prateleira, ainda se sentindo tonto e letárgico, e, incurioso, observou o médico. Sentiu que deveria estar curioso, pois aquele homem era o primeiro urrasti que ele já tinha visto. Mas estava cansado demais. Poderia ter deitado e dormido ali mesmo, na hora.
Passara a noite anterior acordado, concluindo suas anotações. Três dias antes, despedira-se de Takver e das crianças, que foram para Paz-e-Fartura, e desde então estivera ocupado, correndo para a torre de rádio para trocar as últimas mensagens com as pessoas de Urras, discutindo planos e possibilidades com Bedap e os outros. Em todos aqueles dias corridos desde que Takver partira, sentira que não estava fazendo todas aquelas coisas, mas as coisas estavam fazendo por ele. Estivera nas mãos de outrem. Sua vontade própria não atuara. Não houvera necessidade de atuar. Foi sua própria vontade que dera início àquilo tudo, que criara aquele momento e aquelas paredes à sua volta agora. Há quanto tempo? Anos. Cinco anos atrás, no silêncio da noite, nas Montanhas de Chakar, quando dissera a Takver: “Vou a Abbenay derrubar muros”. Antes disso, até; muito antes, na Poeira, nos anos de fome e desespero, quando prometera a si mesmo só agir de acordo com seu próprio livre-arbítrio. E seguir essa promessa o trouxera até ali: até aquele momento sem tempo, aquele lugar sem chão, aquela saleta, aquela prisão.
O médico examinara seu ombro ferido (o ferimento surpreendeu Shevek; estivera tenso e apressado demais para perceber o que estava ocorrendo no campo de pouso e não sentiu a pedrada). Agora o doutor se voltava para ele segurando uma seringa.
– Não quero isso – disse Shevek. Falava num iótico lento e, como percebeu pelas conversas no rádio, mal pronunciado, mas a gramática era correta o suficiente; tinha mais dificuldade em entender do que em falar.
– Isto é vacina contra sarampo – disse o médico, com surdez profissional.
– Não – disse Shevek.
O médico conteve-se por um instante e perguntou:
– O senhor sabe o que é sarampo?
– Não.
– Uma doença. Contagiosa. Quase sempre grave em adultos. Vocês não têm essa doença em Anarres; medidas profiláticas a evitaram quando colonizaram o planeta. Mas ela é comum em Urras. Poderia matá-lo. Assim como uma dezena de outras infecções virais comuns. O senhor não tem resistência. O senhor é destro?
Shevek fez um sinal negativo com a cabeça, automaticamente. Com a destreza de um prestidigitador, o médico enfiou a agulha em seu braço direito. Shevek submeteu-se a esta e a outras injeções em silêncio. Não tinha direito a suspeitas ou protestos. Entregara-se àquelas pessoas; abdicara de seu direito nato à decisão. Esse direito desaparecera, junto com seu mundo, o mundo da Promessa, a pedra árida.
O médico falou de novo, mas ele não escutou.
Por horas ou dias, existiu num vácuo estéril e triste, num vazio sem passado nem futuro. As paredes à sua volta o oprimiam. Além das paredes, era o silêncio. Seus braços e suas nádegas doíam por causa das injeções; teve uma febre que não o levou ao completo delírio, mas o deixou num limbo entre a consciência e a inconsciência, uma terra de ninguém. O tempo não passava. Não havia tempo: apenas ele. Ele era o rio, a flecha, a pedra. Mas ele não se mexia. A pedra lançada pairava no meio do caminho. Não havia dia nem noite. Às vezes o médico apagava ou acendia a luz. Havia um relógio na parede, ao lado da cama; o ponteiro passava de um a outro dos vinte números do mostrador, sem significado.
Despertou após um longo e profundo sono e, como estava de frente para o relógio, estudou-o, sonolento. O ponteiro apontava para um pouco depois do número quinze, o que, se o mostrador fosse lido a partir da meia-noite como no relógio de vinte e quatro horas anarresti, devia significar que estavam no meio da tarde. Mas como poderiam estar no meio da tarde no espaço entre dois planetas? Bem, a nave deveria ter seu próprio horário, afinal de contas. Equacionar tudo isso o deixou imensamente animado. Sentou-se e não sentiu vertigem. Levantou-se da cama e testou seu equilíbrio: satisfatório, embora sentisse que o contato da sola dos pés com o chão não fosse muito firme. O campo gravitacional da nave devia ser bem fraco. Não gostou muito da sensação; precisava de firmeza, de solidez, de fatos concretos. Em busca dessas coisas, iniciou uma minuciosa investigação da saleta.
As paredes vazias eram cheias de surpresas, prontas a se revelarem após um breve toque no painel: lavatório, vaso sanitário, espelho, mesa, cadeira, armário, prateleiras. Conectados ao lavatório, havia vários dispositivos elétricos de um mistério total, e a válvula hidráulica não interrompia o fluxo quando se soltava a torneira, mas continuava a jorrar água até ser fechada – um sinal, pensou Shevek, de grande fé na natureza humana ou de grande quantidade de água quente. Acreditando na segunda hipótese, lavou-se todo e, não encontrando uma toalha, secou-se com um dos misteriosos dispositivos, de onde saía um agradável jato de ar quente que lhe fazia cócegas. Como não encontrou suas próprias roupas, tornou a vestir as que estava usando quando acordou: calças largas amarradas por um cordão e uma túnica sem forma, ambas amarelas com pontinhos azuis. Olhou-se no espelho. Achou o resultado desastroso. Era assim que se vestiam em Urras? Procurou em vão por um pente, contentou-se em fazer uma trança, prendendo os cabelos para trás, e, arrumado assim, decidiu sair do quarto.
Não conseguiu. A porta estava trancada.
A incredulidade inicial de Shevek tornou-se raiva, um tipo de raiva, um desejo cego de violência que ele jamais sentira antes na vida. Forçou a maçaneta imóvel, empurrou o metal liso da porta, depois se virou e golpeou o botão de chamada, que o médico lhe orientara a usar, se necessário. Nada aconteceu. Havia vários outros botõezinhos numerados de cores diferentes no painel de intercomunicação; bateu com a mão em todos eles. O alto-falante da parede começou a balbuciar:
– Quem diabos... sim, indo imediatamente... claro... de vinte e dois...
Shevek abafou a voz de todos eles: – Abram a porta!
A porta abriu deslizando, e o médico olhou para dentro. Ao ver seu rosto calvo, ansioso e amarelado, a ira de Shevek acalmou-se e retirou-se para uma escuridão interior.
– A porta estava trancada – disse.
– Desculpe, dr. Shevek... precaução... contágio... manter os outros do lado de fora...
– Trancar para fora, trancar para dentro, é a mesma ação – disse Shevek, encarando o médico com um olhar leve e distante.
– Segurança...
– Segurança? Precisam me manter numa caixa?
– Sala de descanso dos oficiais – o médico apressou-se em propor, para apaziguá-lo. – O senhor está com fome? Talvez queira se vestir antes de irmos para lá.
Shevek olhou para a roupa do doutor: calças azuis justas, enfiadas em botas que pareciam tão finas e macias quanto o próprio tecido; uma túnica roxa aberta na frente e fechada embaixo com alamares prateados; e, sob a túnica, mostrando apenas o colarinho e os punhos, uma camisa de malha de um branco ofuscante.
– Não estou vestido? – Shevek enfim perguntou.
– Ah, pode ir de pijama, é claro. Não há formalidades num cargueiro!
– Pijama?
– É o que o senhor está usando. Roupa de dormir.
– Roupa usada para dormir?
– Sim.
Shevek piscou. Não fez nenhum comentário. Perguntou:
– Onde está a roupa que eu estava usando?
– Sua roupa? Mandei lavar... esterilizar. Espero que o senhor não se importe... – Examinou um painel na parede que Shevek não havia descoberto e trouxe um pacote embrulhado em papel verde-claro. Desembrulhou o terno velho de Shevek, que parecia muito limpo e um tanto menor, amassou o papel verde, ativou outro painel, jogou o papel no cesto que se abriu e sorriu vacilante.
– Pronto, dr. Shevek.
– O que acontece com o papel?
– O papel?
– O papel verde.
– Ah, coloquei no lixo.
– Lixo?
– Descarte. Vai ser queimado.
– Vocês queimam papel?
– Talvez seja apenas jogado lá fora no espaço, não sei. Não sou médico espacial, dr. Shevek. Concederam-me a honra de atender o senhor pela minha experiência com visitantes de outros mundos, os embaixadores de Terran e de Hain. Conduzo os procedimentos de descontaminação e adaptação de todos os alienígenas que chegam a A-Io. Não que o senhor seja um alienígena no mesmo sentido, é claro. – Olhou timidamente para Shevek, que não conseguia acompanhar tudo o que ele dizia, mas podia discernir a natureza ansiosa, modesta e bem-intencionada de suas palavras.
– Não – assegurou-lhe Shevek –, talvez tenhamos a mesma avó, duzentos anos atrás, em Urras. – Estava pondo sua roupa velha e, enquanto vestia a camisa pela cabeça, viu o médico jogar a “roupa de dormir” amarela e azul no cesto de “lixo”. Shevek fez uma pausa, com o colarinho ainda sobre o nariz. Sua cabeça saiu por inteiro da camisa, ele ajoelhou-se e abriu o cesto. Estava vazio.
– As roupas são queimadas?
– Ah, esse pijama é barato, é de serviço... para usar e jogar fora. Custa menos do que mandar lavar.
– Custa menos – Shevek repetiu pensativo. Disse as palavras do mesmo modo que um paleontólogo examina um fóssil, o fóssil que determina a data de um estrato inteiro.
– Receio que sua bagagem tenha se perdido naquela correria do embarque. Espero que não contenha nada de importante.
– Eu não trouxe nada – disse Shevek. Embora seu terno tivesse sido alvejado até ficar quase branco e tivesse encolhido um pouco, ainda lhe servia, e o toque áspero e familiar do tecido de fibra de holum era agradável. Sentiu-se ele mesmo de novo. Sentou-se na cama de frente para o médico e disse:
– Veja bem, eu sei que vocês não encaram as coisas como nós. No seu mundo, em Urras, deve-se comprar coisas. Eu venho ao seu mundo sem dinheiro, não posso comprar, portanto devo trazer. Mas quanto posso trazer? Roupa, sim, talvez dois ternos. Mas comida? Como posso trazer comida suficiente? Não posso trazer, não posso comprar. Se for para me manterem vivo, vocês vão ter de me dar comida. Sou anarresti, farei os urrastis se comportarem como anarrestis: dar, não vender. Se quiserem. É claro que não é necessário me manterem vivo! Sou o Mendigo, veja bem.
– Oh, não, em absoluto, senhor, não, não. O senhor é um convidado de honra. Por favor, não nos julgue pela tripulação desta nave, eles são homens muito ignorantes e limitados... o senhor não faz ideia de como será bem-vindo em Urras. Afinal, o senhor é um cientista mundialmente famoso... galacticamente famoso! E nosso primeiro visitante de Anarres! Eu lhe asseguro que as coisas serão muito diferentes quando chegarmos ao Campo Peier.
– Não duvido que serão diferentes – disse Shevek.
Cada trecho da viagem à lua em geral levava quatro dias e meio, mas desta vez foram acrescentados cinco dias de adaptação para o passageiro, na viagem de volta. Shevek e o dr. Kimoe passaram esses dias em vacinações e conversas. O comandante da Atento passou-os mantendo a órbita em torno de Urras e praguejando. Quando tinha de falar com Shevek, fazia-o com desrespeito perturbador. O médico, disposto a explicar tudo, tinha sua justificativa pronta:
– Ele está acostumado a encarar todos os estrangeiros como inferiores, não como seres totalmente humanos.
– A criação de pseudoespécies, como dizia Odo. Sim. Achei que talvez em Urras as pessoas não pensassem mais assim, já que lá vocês têm tantas línguas e nações, e até visitantes de outros sistemas solares.
– Muito poucos, pois as viagens interestelares são muito caras e lentas. Talvez não vá ser sempre assim – acrescentou o dr. Kimoe, com evidente intenção de lisonjear Shevek ou estender o assunto, o que Shevek ignorou.
– O Segundo Oficial – disse – parece ter medo de mim.
– Ah, o problema dele é fanatismo religioso. Ele é Epifanista ortodoxo. Recita as Primas todas as noites. Tem uma mente muito rígida.
– Então... Como ele me vê?
– Como um ateu perigoso.
– Ateu! Por quê?
– Ora, porque o senhor é um odoniano de Anarres... Não existe religião em Anarres.
– Não existe religião? Nós somos feitos de pedra em Anarres?
– Eu quero dizer religião estabelecida... igrejas, credos... – Kimoe alterava-se com facilidade. Sua autoconfiança enérgica, própria dos médicos, era continuamente abalada por Shevek. Todas as suas explicações acabavam em embaraços, após duas ou três perguntas de Shevek. Cada um deles considerava como naturais certas relações que o outro sequer conseguia compreender. Por exemplo, essa curiosa questão de superioridade, de altura relativa, era importante aos urrastis; muitas vezes usavam a expressão “mais alto” como sinônimo de “melhor” em seus escritos, onde um anarresti usaria “mais central”. Mas o que ser mais alto tinha a ver com ser estrangeiro? Era apenas um dentre centenas de enigmas.
– Entendo – ele disse, agora que mais um enigma se elucidava. – Vocês não admitem nenhuma religião fora das igrejas, assim como não admitem nenhuma moralidade fora das leis. Sabe, eu nunca tinha entendido isso, em todas as minhas leituras dos livros urrastis.
– Bem, hoje em dia qualquer pessoa esclarecida admitiria...
– O vocabulário dificulta – disse Shevek, elaborando sua descoberta. – Em právico, a palavra religião é infrequente. Não, como vocês dizem... é rara. Não muito usada. Claro, é uma das Categorias: o Quarto Modo. Poucas pessoas aprendem a praticar todos os Modos. Mas os Modos são construídos a partir das capacidades naturais da mente. Não é possível que vocês acreditem que não temos capacidade religiosa. Que podemos estudar Física estando excluídos da relação mais profunda que o homem possui com o cosmos.
– Oh, não, em absoluto...
– Isso seria nos considerar, de fato, uma pseudoespécie!
– Homens instruídos com certeza entenderiam isso, mas esses oficiais são ignorantes.
– Mas então vocês só permitem que os fanáticos saiam em viagens pelo cosmos?
Todas as conversas entre eles eram assim: exaustivas para o médico e insatisfatórias para Shevek, embora muito interessantes para ambos. Eram o único meio de Shevek explorar o novo mundo que o aguardava. A nave em si e a mente de Kimoe eram seu microcosmo. Não havia livros a bordo da Atento, os oficiais evitavam Shevek, e os tripulantes eram mantidos rigorosamente a distância. Quanto à mente do doutor, embora inteligente e com certeza bem-intencionada, era uma mixórdia de artefatos intelectuais ainda mais confusos que todos os dispositivos, aparelhos e comodidades espalhados pela nave. Estas últimas Shevek achava divertidas; era tudo tão cheio de luxo, estilo e inventividade; mas não achava a mobília do intelecto de Kimoe tão confortável. As ideias de Kimoe pareciam nunca ser capazes de seguir uma linha reta; tinham de contornar isso e evitar aquilo, e então acabavam batendo contra um muro. Havia muros cercando todos os seus pensamentos, e ele parecia totalmente inconsciente disso, embora sempre se escondesse atrás deles. Somente uma vez Shevek viu uma brecha, em todos os dias de conversa entre os mundos.
Ele perguntara por que não havia mulheres na nave, e Kimoe respondera que operar um cargueiro espacial não era trabalho para mulheres. Cursos de história e o conhecimento dos escritos de Odo deram a Shevek um contexto para compreender essa resposta tautológica, e ele não disse mais nada. Mas o médico devolveu uma pergunta, uma pergunta sobre Anarres:
– É verdade, dr. Shevek, que as mulheres em sua sociedade são tratadas exatamente como homens?
– Isso seria desperdício de um bom material – disse Shevek, com uma risada, e depois uma segunda risada, à medida que se dava conta do ridículo da ideia.
O médico hesitou, contornando um dos obstáculos de sua mente, pareceu aturdido e disse:
– Ah, não, não estava falando de sexo... é óbvio que vocês... elas... Eu me referia à questão do status social das mulheres.
– Status é o mesmo que classe?
Kimoe tentou explicar o significado de status, fracassou e voltou ao primeiro tópico.
– Não há mesmo nenhuma distinção entre o trabalho do homem e o trabalho da mulher?
– Bem, não, isso parece uma base muito mecânica para a divisão do trabalho, não é? Uma pessoa escolhe o trabalho de acordo com seu interesse, seu talento, sua força... O que o sexo tem a ver com isso?
– Os homens são fisicamente mais fortes – afirmou o médico, com determinação profissional.
– Sim, com frequência, e maiores, mas o que isso importa, quando temos máquinas? E, mesmo quando não temos máquinas, quando temos de cavar com a pá, ou carregar peso nas costas, os homens podem trabalhar mais rápido... os que são grandes... mas as mulheres aguentam trabalhar mais tempo... Muitas vezes eu gostaria de ser tão resistente quanto uma mulher.
Kimoe o fitou chocado, a ponto de perder a polidez.
– Mas a perda de... de toda a feminilidade... da delicadeza... e a perda da dignidade masculina... Certamente o senhor não pode fingir, no seu trabalho, que as mulheres sejam iguais ao senhor? Em física, matemática, no intelecto? O senhor não pode fingir estar sempre se rebaixando ao nível delas!
Shevek sentou-se na confortável cadeira estofada e olhou em volta da sala de descanso dos oficiais. Na tela, a curva brilhante de Urras pairava imóvel contra a escuridão do espaço, como uma opala azul-esverdeada. Aquela visão adorável e a sala haviam se tornado familiares a Shevek nos últimos dias, mas agora as cores vivas, as cadeiras curvilíneas, a iluminação indireta, as mesas de jogos, tudo pareceu tão alienígena como da primeira vez que ele tinha visto.
– Acho que não sou de fingir muito, Kimoe – disse.
– É claro que conheci mulheres muito inteligentes, mulheres que pensavam como homens – o médico se apressou a dizer, ciente de que estivera quase gritando, de que, pensou Shevek, estivera esmurrando a porta trancada, gritando...
Shevek mudou de assunto, mas continuou a pensar a respeito. Aquela questão de inferioridade e superioridade devia ser fundamental da vida social urrasti. Se para sentir-se digno Kimoe precisava considerar metade da raça humana inferior a ele, como as mulheres faziam para se sentir dignas? Será que consideravam os homens inferiores? E como tudo isso afetava a vida sexual deles? Sabia, pelos escritos de Odo, que duzentos anos antes as principais instituições sexuais eram o “casamento”, uma parceria autorizada e imposta por meio de sanções legais e econômicas, e a “prostituição”, que parecia apenas ser um termo mais amplo, cópula em modo econômico. Odo condenava ambas, embora tivesse sido “casada”. De todo modo, as instituições talvez tivessem mudado bastante em duzentos anos. Já que ele iria viver em Urras com os urrastis, seria melhor descobrir.
Era estranho que até mesmo o sexo, fonte de tanta paz, deleite e alegria por anos a fio pudesse, da noite para o dia, tornar-se um território desconhecido, onde ele deveria pisar com cuidado, consciente de sua própria ignorância. No entanto, era assim. Ele foi alertado não só pelo estranho acesso de raiva e desprezo de Kimoe, mas por uma vaga impressão anterior que esse episódio pôs em foco. Nos primeiros dias a bordo da nave, naquelas longas horas de febre e desespero, distraíra-se, às vezes satisfeito e às vezes irritado, com uma sensação inteiramente simples: a maciez da cama. Embora fosse apenas um beliche, o colchão cedia sob seu peso, maleável como uma carícia. O colchão entregava-se a ele, entregava-se com tanta insistência que ele sempre sentia, e ainda sente, sua presença ao adormecer. Tanto o prazer quanto a irritação eram decididamente de natureza erótica. Havia também o aparelho-toalha-bocal-de-ar-quente: o mesmo tipo de efeito. Cócegas agradáveis. E o desenho dos móveis dispostos na sala, as suaves curvas de plástico onde a dureza da madeira e aço foi introduzida à força, a suavidade e a delicadeza das superfícies e texturas: não seria isso também um indicativo de um erotismo vago e difuso? Ele se conhecia o suficiente para ter certeza de que estar alguns dias sem Takver, mesmo sob forte pressão, não o deixaria tão excitado a ponto de sentir uma mulher em qualquer tampo de mesa. A menos que a mulher realmente estivesse ali.
Seriam os marceneiros urrastis todos castos?
Desistiu da resposta; em breve descobriria, em Urras.
Pouco antes de se atarem para a descida, o médico veio até a sua cabine para verificar o progresso das várias imunizações, a última das quais, uma inoculação contra a peste, deixara Shevek enjoado e grogue. Kimoe deu-lhe mais um comprimido.
– Isso vai animá-lo para a aterrissagem – ele disse.
Estoicamente, Shevek engoliu a coisa. Agitado, o médico mexeu em seu estojo e, de repente, começou a falar rápido:
– Dr. Shevek, não espero ter permissão de atendê-lo de novo, embora seja possível, mas, se não, queria lhe dizer que foi, que eu, que foi um grande privilégio para mim. Não porque... mas porque passei a respeitar... a apreciar... simplesmente como ser humano, sua bondade, sua verdadeira bondade...
Não lhe ocorrendo resposta melhor, por conta de sua dor de cabeça, Shevek estendeu a mão e apertou a de Kimoe, dizendo:
– Então vamos nos encontrar de novo, irmão! – Kimoe apertou-lhe a mão, nervoso, no estilo urrasti, e saiu às pressas. Após sua saída, Shevek percebeu que lhe falara em právico, chamando-o de ammar, irmão, numa língua que Kimoe não compreendia.
O alto-falante da parede balia ordens. Atado ao beliche, Shevek escutava, sentindo-se confuso e alheio. As sensações da entrada na atmosfera intensificaram a confusão; não tinha consciência de quase nada, exceto uma profunda esperança de não precisar vomitar. Só soube que tinham aterrissado quando Kimoe voltou correndo e o conduziu às pressas até a sala dos oficiais. A tela onde Urras pairara por tanto tempo, luminoso e envolto em nuvens espiraladas, estava em branco. A sala estava cheia de gente. De onde tinham vindo? Ficou surpreso e satisfeito com sua capacidade de ficar de pé, andar e cumprimentar com apertos de mão. Concentrou-se apenas nisso e deixou escapar o sentido daquilo tudo. Vozes, sorrisos, mãos, palavras, nomes. Seu nome o tempo todo: dr. Shevek, dr. Shevek... Agora ele e todos os estranhos à sua volta desciam uma rampa coberta, todas as vozes muito altas, palavras ecoando além das paredes. O alarido das vozes diminuiu. Um ar estranho tocou seu rosto.
Olhava para cima e, ao sair da rampa em direção ao nível do solo, tropeçou e quase caiu. Pensou em morte, naquele hiato entre o início e a conclusão de um passo e, ao final do passo, pisou num novo mundo.
Uma noite clara e cinzenta o rodeava. Luzes azuis, embaçadas pela neblina, ardiam do outro lado de um campo enevoado. O ar em seu rosto e suas mãos, nas narinas, garganta e pulmões era frio, úmido, perfumado, suave. Não era estranho. Era o ar de um planeta de onde sua raça viera. Era o ar de casa.
Alguém pegara em seu braço quando tropeçou. Refletores e flashes o iluminaram. Fotógrafos filmavam a cena para o noticiário. O Primeiro Homem Vindo da Lua: uma figura alta e frágil na multidão de dignitários, professores e agentes de segurança, os belos cabelos revoltos numa cabeça muito ereta (para que os fotógrafos pudessem capturar cada detalhe), como se ele tentasse olhar acima dos refletores, para o céu, o céu claro e nevoento que escondia as estrelas, a Lua e todos os outros mundos. Jornalistas tentavam atravessar os cordões de policiais.
– Poderia nos dar uma declaração, dr. Shevek, neste momento histórico?
Foram forçados a recuar no mesmo instante. Os homens à volta de Shevek o impeliam para a frente. Foi levado à limusine que o aguardava, fotografado até o último minuto, por conta de sua altura, seu cabelo longo e o estranho olhar de aflição e reconhecimento em seu rosto.
As torres da cidade elevavam-se em meio à névoa, grandes escadas de luz embaçada. Trens passavam no alto, riscos brilhantes guinchando. Imponentes paredes de pedra e vidro faceavam as ruas, acima da correria de carros e ônibus elétricos. Pedra, aço, vidro, luz elétrica. Nenhum rosto.
– Esta é Nio Esseia, dr. Shevek. Mas foi decidido que seria melhor mantê-lo afastado das multidões da cidade, por enquanto. Vamos direto para a universidade.
Havia cinco homens com ele no interior escuro e suavemente estofado do carro. Eles apontavam marcos, mas na névoa ele não sabia dizer qual prédio grande, vago e fugaz era a Alta Corte e qual era o Museu Nacional, qual o Diretório e qual o Senado. Cruzaram um rio ou estuário; os milhões de luzes de Nio Esseia, difusas pela névoa, tremeluziram na água escura atrás deles. A rodovia escureceu, a neblina adensou, o motorista diminuiu a velocidade do veículo. Os faróis iluminavam a bruma como se ela fosse um muro que não parava de recuar diante deles. Shevek inclinou-se um pouco para a frente, contemplando o lado de fora. Seus olhos não se fixavam em nada, nem sua mente, mas ele parecia reservado e circunspecto, e os outros homens falavam baixinho, em respeito ao seu silêncio.
O que seria a escuridão mais densa que fluía interminavelmente ao longo da estrada? Árvores? Poderia o carro estar passando por entre árvores desde que saíram da cidade? A palavra iótica lhe veio à lembrança: “floresta”. Eles não chegariam de repente ao deserto. As árvores prosseguiam sem parar, na colina seguinte, e na seguinte, e na seguinte, eretas no frio perfumado da névoa, intermináveis, uma floresta pelo mundo inteiro, uma esforçada e imóvel interação de vidas, um movimento escuro de folhas na noite. Então, enquanto Shevek se maravilhava, enquanto o carro saía da névoa do vale do rio e entrava no ar claro, lá estava, olhando para ele, sob a folhagem que margeava a estrada, por um instante, um rosto.
Não era um rosto humano. Era comprido como um braço e de uma palidez assustadora. A respiração esguichava vapor do que deviam ser narinas, e havia um olho, terrível, inconfundível. Um olho grande e escuro, fúnebre – talvez cínico? –, que sumiu na luz dos faróis.
– O que era aquilo?
– Um jumento, não?
– Um animal?
– Sim, um animal. Meu Deus, é mesmo! Vocês não têm animais de grande porte em Anarres, têm?
– Um jumento é uma espécie de cavalo – disse um dos outros homens; e outro, com voz firme e experiente:
– Aquilo era um cavalo. Jumentos não ficam daquele tamanho.
Queriam conversar com Shevek, mas ele não ouvia, de novo. Pensava em Takver. Imaginou o que aquele olhar profundo, seco e sombrio na escuridão teria significado para Takver. Ela sempre soubera que todas as vidas têm algo em comum, alegrando-se em reconhecer seu parentesco com os peixes nos tanques de seus laboratórios, buscando a experiência de existências fora dos limites humanos. Takver saberia corresponder àquele olhar na escuridão, sob as árvores.
– Lá adiante é Ieu Eun. Há uma multidão aguardando o senhor, dr. Shevek; o presidente e vários diretores, e o reitor, naturalmente. Todo tipo de figurão. Mas, se estiver cansado, acabamos com as amenidades o mais rápido possível.
As amenidades duraram várias horas. Nunca mais conseguiu se lembrar delas com clareza. Foi impelido para fora da pequena e escura caixa do carro em direção a uma imensa caixa brilhante cheia de gente – centenas de pessoas, sob um teto dourado de onde pendiam lustres de cristal. Foi apresentado a todas elas. Eram todas mais baixas que ele, e sem pelos. As poucas mulheres ali eram calvas; percebeu que elas deviam depilar todos os pelos, até o pelo corporal mais fino, macio e curto de sua raça, e o cabelo também. Mas isso era compensado pelas roupas maravilhosas, deslumbrantes no corte e nas cores, as mulheres em vestidos longos que se arrastavam no chão, os seios desnudos, cinturas, pescoços e cabeças enfeitados com joias, rendas e tules; os homens em calças e paletós ou túnicas em vermelho, azul, roxo, dourado, verde, com mangas bufantes e cascatas de rendas, ou longas becas em carmim, verde-escuro ou preto, que se abriam na altura dos joelhos, revelando as meias brancas com jarreteiras prateadas. Mais uma palavra iótica flutuou na cabeça de Shevek, para a qual jamais tivera uma referência, embora gostasse do som: “esplendor”. Aquelas pessoas tinham esplendor. Proferiram discursos. O presidente do Senado da Nação de A-Io, um homem de olhos estranhos e frios, propôs um brinde:
– À nova era de fraternidade entre os Planetas Gêmeos e ao arauto dessa nova era, nosso ilustre e muito bem-vindo convidado, dr. Shevek de Anarres!
O reitor da universidade conversou com ele encantado, o primeiro diretor conversou com ele sério, foi apresentado a embaixadores, astronautas, físicos, políticos, dezenas de pessoas, todas com longos títulos honoríficos antes e depois dos nomes, e conversaram com ele, e ele lhes respondeu, mas depois não se lembrou de nada do que disseram, e muito menos do que ele próprio dissera. Muito tarde da noite, viu-se com um pequeno grupo de homens caminhando na chuva morna por um grande parque ou uma praça. Havia uma sensação flexível de grama viva sob os pés; reconheceu-a por já ter caminhado no Parque Triângulo, em Abbenay. Aquela lembrança vívida e o toque vasto e frio do vento noturno o despertaram. Sua alma saiu do esconderijo.
Seus acompanhantes levaram-no a um prédio, e a um quarto, que, explicaram, era “dele”.
Era amplo, com cerca de dez metros de comprimento e, evidentemente, um quarto comunitário, pois não havia divisões nem estrados de dormir; os três homens que ainda o acompanhavam talvez fossem dividir o cômodo com ele. Era um quarto comunitário muito bonito, com uma parede inteira de janelas, cada uma delas separada por uma coluna delgada que subia como uma árvore, formando um arco duplo no topo. O chão era atapetado em carmim, e no outro extremo do cômodo ardia uma lareira aberta. Shevek atravessou o quarto e postou-se em frente ao fogo. Nunca tinha visto madeira queimada como aquecimento, mas ficou maravilhado. Estendeu as mãos para o calor agradável e sentou-se num banco de mármore polido ao lado da lareira.
O mais jovem dos homens que tinham vindo com ele sentou-se do outro lado da lareira. Os outros dois ainda conversavam. Conversavam sobre física, mas Shevek não tentou acompanhar o que diziam. O jovem falou calmamente:
– Imagino como deve estar se sentindo, dr. Shevek.
Shevek esticou as pernas e inclinou-se para a frente, a fim de sentir o calor do fogo em seu rosto.
– Sinto-me pesado.
– Pesado?
– Talvez a gravidade. Ou estou cansado.
Olhou para o outro homem, mas através da incandescência da lareira o rosto não era nítido, apenas a cintilação de uma corrente dourada e o vermelho-rubi do manto.
– Não sei o seu nome.
– Saio Pae.
– Ah, Pae, sim, conheço seus artigos sobre Paradoxo. – Ele falava de modo arrastado, sonhador.
– Deve haver um bar por aqui. Os dormitórios dos veteranos da faculdade sempre têm um armário de bebidas. Gostaria de beber alguma coisa?
– Sim, água.
O jovem reapareceu com um copo d’água, enquanto os outros dois uniam-se a eles perto da lareira. Shevek bebeu toda a água, sedento, e ficou sentado, admirando o copo em sua mão, uma peça frágil, finamente desenhada, refletindo o brilho do fogo em sua borda dourada. Estava atento aos três homens, às suas atitudes, enquanto sentavam ou se punham de pé ao seu lado, protetores, respeitosos, proprietários.
Ergueu os olhos para eles, rosto por rosto. Todos o olharam, em expectativa.
– Bem, aqui estou – ele disse. Sorriu. – Aqui está o seu anarquista. O que farão com ele?
2
°°°°°
Numa janela quadrada numa parede branca está o céu claro, sem nuvens. No centro do céu, o sol.
Há onze bebês na sala, a maioria confinada em berços almofadados, em pares ou trios, preparando-se, com agitação e burburinho, para a soneca.
Os dois mais velhos ainda estão à solta, um deles gorducho e ativo, tirando os pinos de uma placa perfurada, o outro magrinho, sentado no quadrado de luz solar amarela vinda da janela, olhando para os raios solares com uma expressão abobalhada e ingênua.
Na antessala, a supervisora, uma mulher caolha e de cabelo grisalho, conversa com um homem de 30 anos, alto, com ar triste.
– A mãe dele foi transferida para Abbenay – diz o homem. – Ela quer que ele fique aqui.
– Então devemos levá-lo à creche de período integral, Palat?
– Sim, vou voltar para um dormitório.
– Não se preocupe, ele conhece todo mundo aqui! Mas é claro que em breve a Divlab vai mandar você para junto da Rulag, não? Já que vocês dois são parceiros e engenheiros.
– Sim, mas ela... Foi o Instituto Central de Engenharia que a requisitou, entende? Eu não sou tão bom assim. Rulag tem um ótimo trabalho a fazer.
A supervisora assentiu com a cabeça e suspirou. – Mesmo assim...! – Ela disse, com energia, e não falou mais nada.
O olhar do pai dirigia-se ao bebê magrinho, que não notara a sua presença na antessala, por estar ocupado com a luz. O bebê gorducho, naquele instante, dirigia-se rápido para o magrinho, mas com um esquisito movimento de cócoras, devido à fralda molhada e caída. Aproximou-se dele por tédio ou sociabilidade, mas, ao chegar ao quadrado de luz, descobriu que ali estava quente. Sentou-se pesadamente ao lado do magrinho, empurrando-o para a sombra.
O semblante vago e embevecido do magrinho na mesma hora transformou-se em carranca de raiva. Empurrou o gordinho, gritando: – Vai ‘bora!
A supervisora foi até lá na hora. – Shev, não é para empurrar as pessoas.
O bebê magrinho levantou-se. Seu rosto brilhava de luz solar e raiva. Sua fralda estava prestes a cair. – Meu! – ele disse, numa voz alta e retumbante. – Meu sol!
– Não é seu – disse a mulher caolha, com a indulgência da certeza absoluta. – Nada é seu. É para usar. É para compartilhar. Se você não quer compartilhar, não pode usar. – E ela pegou o bebê magrinho com mãos delicadas e inexoráveis e o sentou fora do quadrado de luz solar.
O bebê gorducho continuava sentado, olhando com indiferença. O magrinho sacudiu-se todo, gritando: – Meu sol! – e caiu num choro raivoso.
O pai o pegou no colo e o abraçou. – Ora, Shev – disse. – Que é isso? Você sabe que não pode ter as coisas. Qual o problema? – Sua voz era suave e tremia como se ele também estivesse próximo das lágrimas. A criança magra, comprida e leve em seus braços prosseguia no choro colérico.
– Tem alguns que não conseguem tocar a vida com calma – disse a mulher caolha, em solidariedade.
– Vou levá-lo para uma visita domiciliar agora. A mãe vai partir hoje à noite.
– Tudo bem. Espero que você consiga logo um posto junto com ela – disse a supervisora, içando a criança gorducha ao seu quadril como um saco de cereal, com melancolia no rosto e dando uma piscadela no olho sadio. – Tchau, Shev, querido. Amanhã, escute, amanhã vamos brincar de caminhão e motorista.
O bebê ainda não a perdoara. Ele soluçava, apertando o pescoço do pai, na escuridão do sol perdido.
A orquestra precisava de todos os bancos para o ensaio daquela manhã, e o grupo de dança movimentava-se ruidosamente pelo salão do centro de aprendizagem, então as crianças que estudavam Falar-e-Ouvir sentaram-se em círculo no piso de cimento-espuma da oficina. O primeiro voluntário, um garoto magricela de 8 anos, com mãos e pés compridos, levantou-se. Ficou em pé bem ereto, como fazem as crianças saudáveis; a princípio, seu rosto ligeiramente coberto de penugem estava pálido, mas corou enquanto aguardava o silêncio das outras crianças.
– Pode falar, Shevek – disse o diretor do grupo.
– Bem, eu tive uma ideia.
– Mais alto – disse o diretor, um rapaz corpulento de 20 e poucos anos.
O garoto sorriu, envergonhado. – Bem, sabe, eu estava pensando. Digamos que você jogue uma pedra em alguma coisa. Numa árvore. Você joga, ela voa e bate na árvore. Certo? Mas ela não pode. Porque... Posso usar a lousa? Veja, aqui é você jogando a pedra, e aqui é a árvore – ele rabiscou na lousa –, isso é uma árvore, e aqui está a pedra, veja, no meio do caminho. – As crianças soltaram risadinhas ao verem o desenho de um pé de holum, e ele sorriu. – Para ir de você até a árvore, a pedra precisa estar no meio do caminho entre você e a árvore, não é? E depois ela precisa estar no meio do caminho entre o meio do caminho e a árvore. E depois ela precisa estar no meio do caminho entre esse ponto e a árvore. Por mais longe que ela vá, tem sempre um lugar, só que esse lugar na verdade é um momento, que está a meio caminho entre o último ponto e a árvore...
– Vocês acham isso interessante? – interrompeu o diretor, dirigindo-se às outras crianças.
– Por que a pedra não pode chegar até a árvore? – perguntou uma garota de 10 anos.
– Porque ela sempre tem que chegar até a metade do caminho que falta para onde ela tem que chegar – respondeu Shevek –, e sempre tem a metade do caminho faltando... Entende?
– Podemos dizer apenas que você não mirou bem a árvore? – observou o diretor, com um sorriso tenso.
– Não importa se você mirou bem ou não. A pedra não pode chegar até a árvore.
– De onde você tirou essa ideia?
– De lugar nenhum. Eu entendi isso. Acho que entendi como a pedra faz realmente...
– Chega.
Algumas das outras crianças estavam conversando, mas pararam como se emudecidas de susto. O garotinho com a lousa na mão continuou em pé, em silêncio. Pareceu amedrontado e fez uma carranca.
– Falar é compartilhar... uma arte cooperativa. Você não está compartilhando, está apenas egoizando.
Os acordes agudos e vigorosos da orquestra soaram no corredor.
– Você não entendeu isso sozinho, não foi espontâneo. Eu li algo muito parecido com isso num livro.
Shevek encarou o diretor.
– Que livro? Tem esse livro aqui?
O diretor levantou-se. Tinha cerca do dobro da altura e o triplo do peso de seu oponente, e era evidente em seu rosto que ele detestava aquela criança; mas não havia nenhuma ameaça de violência física em sua postura, apenas uma afirmação de autoridade, um pouco enfraquecida por sua reação irritada à estranha pergunta do garoto.
– Não! E pare de egoizar! – Em seguida, retomou o tom de voz melodioso e pedante: – Esse tipo de coisa é frontalmente contra o que buscamos num grupo Falar-e-Ouvir. A fala é uma função de mão dupla. Shevek não está preparado para entender isso ainda, como a maioria de vocês está, e assim sua presença perturba o grupo. Você próprio sente isso, não é, Shevek? Sugiro que você procure outro grupo que esteja no seu nível.
Ninguém mais disse nada. O silêncio e o volume alto da música aguda prosseguiram, enquanto o garoto devolvia a lousa e saía do círculo. Foi até o corredor e ali ficou parado. O grupo que deixou para trás começou, sob a orientação do diretor, uma narração coletiva, em que se revezavam. Shevek ouviu o som daquelas vozes domesticadas e do seu próprio coração, que ainda batia rápido. Havia um zumbido em seus ouvidos que não vinha da orquestra; era o que se ouve quando se reprime o choro. Já observara aquele zumbido várias vezes. Não gostava de ouvi-lo e não queria pensar na pedra e na árvore, então direcionou a mente para o Quadrado. Era feito de números, e números eram sempre tranquilos e sólidos; quando ele falhava, voltava-se para os números, pois neles não havia falhas. A visão do Quadrado em sua mente era nova, um desenho no espaço como os desenhos que a música faz no tempo: um quadrado dos nove primeiros números inteiros, com o número cinco no centro. Entretanto, quando se somavam as fileiras, o resultado era o mesmo, equilibrando toda a inequação; era agradável de olhar. Se ao menos pudesse formar um grupo que gostasse de falar sobre coisas assim! Mas havia apenas alguns garotos e garotas mais velhos que gostavam, e estavam ocupados. E o livro que o diretor mencionou? Seria um livro de números? Será que ele demonstrava como a pedra chegava até a árvore? Tinha sido burro em contar a brincadeira da pedra e da árvore, ninguém sequer entendeu que era uma brincadeira, o diretor estava certo. Sua cabeça doía. Olhou para dentro de si mesmo, para dentro, para as figuras calmas.
Se um livro fosse escrito só com números, seria verdadeiro. Seria justo. Nada expresso em palavras jamais resultava em algo equilibrado. Coisas em palavras tornavam-se distorcidas e embaralhadas, em vez de diretas e ajustadas. Mas, por baixo das palavras, no centro, como o centro do Quadrado, tudo se equilibrava. Tudo poderia mudar e, no entanto, nada se perderia. Quem compreendesse os números compreenderia isso, a harmonia, o padrão. Compreenderia as fundações do mundo. E elas eram sólidas.
Shevek aprendera a esperar. Era bom nisso, um perito. Começou a desenvolver essa capacidade quando esperou sua mãe Rulag voltar, embora fizesse tanto tempo que nem se lembrava; e ele aperfeiçoara essa habilidade esperando sua vez, esperando para partilhar, esperando uma partilha. Aos 8 anos, ele perguntara como, por que e e se, mas raras vezes perguntava quando.
Esperou seu pai vir buscá-lo para uma visita domiciliar. Foi uma longa espera: seis décades[1]. Palat aceitara um posto temporário na manutenção da Usina de Tratamento de Água do Monte Tambor e, depois disso, passaria uma décade na praia, em Malennin, onde iria nadar, descansar e copular com uma mulher chamada Pipar. Explicara tudo isso ao filho. Shevek confiava no pai, e ele merecia a confiança. Ao final dos sessenta dias, chegou ao dormitório infantil em Campina Vasta, um homem alto e magro, com um olhar mais triste do que nunca. Copular não era bem o que queria. O que ele queria era Rulag. Quando viu o garoto, sorriu e sua testa franziu-se de dor.
Sentiam prazer na companhia um do outro.
– Palat, você já viu algum livro só com números?
– Como assim, de matemática?
– Acho que sim.
– Como este?
Palat tirou um livro do bolso de sua túnica. Era pequeno, para ser levado no bolso e, como a maioria dos livros, encadernado em verde com o Círculo da Vida estampado na capa. A impressão ocupava todos os espaços, com letras pequenas e margens estreitas, pois papel era uma substância que exigia muitas árvores holum e muito trabalho humano para ser fabricada, conforme sempre observava o fornecedor no centro de aprendizagem quando alguém estragava uma folha e pedia uma nova. Palat ofereceu o livro aberto para Shevek. A página dupla era uma série de colunas de números. Lá estavam eles, como ele havia imaginado. Em suas mãos recebeu o pacto da justiça eterna. Tabelas Logarítmicas, Bases 10 e 12, dizia o título da capa, acima do Círculo da Vida.
O garotinho estudou a primeira página por um instante. – Para que servem? – perguntou, pois, evidentemente, aqueles algarismos não estavam ali apenas por sua beleza. O engenheiro, sentado ao lado dele num sofá duro do salão comum frio e mal iluminado do domicílio, incumbiu-se de lhe explicar os logaritmos. Dois velhos no outro lado do salão tagarelavam durante o jogo “Supere Todos”. Um casal adolescente entrou, perguntou se o quarto individual estava livre aquela noite e dirigiu-se para lá. A chuva caiu forte no telhado metálico do domicílio de um andar, e cessou. Nunca chovia por muito tempo. Palat pegou sua régua de cálculo e mostrou a Shevek como funcionava. Em troca, Shevek mostrou-lhe o Quadrado e o princípio de seu esquema. Era bem tarde quando perceberam que era tarde. Correram pela escuridão cheia de lama e do maravilhoso aroma de chuva até o dormitório infantil, onde levaram uma ligeira bronca do vigilante. Trocaram um beijo rápido, ambos tremendo de rir, e Shevek correu até a janela do grande dormitório, da qual pôde ver o pai voltando pela única rua de Campina Vasta, no escuro úmido e elétrico.
O garoto foi para a cama com as pernas enlameadas, e sonhou. Sonhou que estava numa estrada que passava numa região deserta. Lá na frente, viu uma linha cortando a estrada. Ao se aproximar atravessando a planície, viu que era um muro. Ia de um lado a outro do horizonte da terra árida. Era espesso, escuro e muito alto. A estrada subia nele e se interrompia.
Ele tinha de prosseguir, mas não podia. O muro o impedia. Um medo com dor e raiva apoderou-se dele. Tinha de prosseguir, ou jamais conseguiria voltar para casa. Mas o muro estava ali, impassível. Não havia como.
Bateu com as mãos na superfície lisa e gritou com ele. Sua voz saía sem palavras, corvejando. Assustado com o som da própria voz, encolheu-se, e então ouviu uma outra voz, que dizia: – Olhe! – Era a voz de seu pai. Teve a impressão de que sua mãe Rulag estava ali também, embora não a tenha visto (não se lembrava do rosto dela). Pareceu-lhe que ela e Palat estavam de quatro à sombra do muro e que eram mais volumosos que seres humanos, com formato diferente. Estavam apontando, mostrando-lhe algo lá no chão, na poeira estéril onde nada crescia. Era uma pedra. Escura como o muro, mas em cima dela, ou dentro dela, havia um número; era cinco, pensou de início, depois achou que era um, e então compreendeu o que era – o número primitivo, ao mesmo tempo unidade e pluralidade. – Essa é a pedra fundamental – disse uma voz querida e familiar, e Shevek foi trespassado por uma alegria. Não havia mais muro nas sombras, e ele sabia que havia voltado, que estava em casa.
Mais tarde, não conseguiu recordar os detalhes desse sonho, mas o ímpeto de alegria que o trespassou ele não esqueceu. Jamais sentira algo assim; tão firme era a certeza de sua permanência, como o vislumbre de uma luz que brilha constantemente, que ele nunca pensou naquela alegria como algo irreal, embora ele a tenha experimentado em sonho. Só que, por mais que tenha sido real lá, não conseguiu repeti-la, nem por força do desejo, nem por ato de vontade. Apenas se lembrou dela ao acordar. Quando tornou a sonhar com o muro, como às vezes lhe aconteceu, os sonhos eram sombrios e sem solução.
Eles tinham extraído a ideia de “prisões” de episódios de A Vida de Odo, que todos os que tinham optado por estudar história estavam lendo. O livro tinha muitos pontos obscuros, e não havia ninguém em Campina Vasta que soubesse história para elucidá-los; porém, quando chegaram aos anos de Odo no forte de Drio, o conceito de “prisão” tornara-se óbvio. E quando um professor itinerante de história veio à cidade, esclareceu o assunto, com a relutância de um adulto decente obrigado a explicar obscenidades a crianças. Sim, ele disse, prisão era um lugar onde o Estado punha as pessoas que não obedeciam às suas leis. Mas por que elas simplesmente não iam embora do lugar? Não podiam ir embora, as portas eram trancadas. Trancadas? Como as portas de um caminhão em movimento, para você não cair, burro! Mas o que eles faziam dentro de uma única sala o tempo todo? Nada. Não havia nada para fazer. Vocês viram fotos de Odo na cela da prisão em Drio, não viram? A imagem da paciência desafiadora, a cabeça grisalha inclinada, as mãos cerradas, imóvel nas sombras abusivas. Às vezes os prisioneiros eram condenados a trabalhar. Condenados? Bem, isso significa que um juiz, uma pessoa a quem a lei concedia o poder, ordenava que fizessem algum tipo de trabalho braçal. Ordenava? E se eles não quisessem fazer? Bem, eles eram obrigados; se não trabalhassem, apanhavam. Um calafrio de tensão percorreu as crianças que ouviam, todas entre 11 e 12 anos de idade, que nunca tinham apanhado, nem visto alguém apanhar, exceto num acesso de raiva imediato e pessoal.
Tirin fez a pergunta que estava em todas as mentes:
– Quer dizer que um monte de gente batia numa única pessoa?
– Sim.
– Por que as outras não impediam?
– Os guardas tinham armas. Os prisioneiros, não – respondeu o professor. Falava com a contrariedade de alguém forçado a dizer coisas detestáveis, e constrangido por isso.
A simples atração pela perversidade reuniu Tirin, Shevek e três outros garotos. Garotas foram excluídas do grupo, e eles não saberiam dizer por quê. Tirin encontrara a prisão ideal, sob a ala oeste do centro de aprendizagem. Era um lugar onde cabia apenas uma pessoa sentada ou deitada, formado por três paredes das fundações e o teto, que era a parte de baixo do andar acima; como as fundações faziam parte de um contorno de concreto, o piso era uma continuidade das paredes, e uma placa pesada de cimento-espuma na lateral isolaria o lugar por completo. Mas tinham de trancar a porta. Experimentando, descobriram que duas estacas presas entre uma das paredes e a placa lateral fechava o local de modo espantosamente definitivo. Ninguém lá dentro conseguiria abrir a porta.
– E a luz?
– Sem luz – disse Tirin. Falava com autoridade sobre essas coisas, pois sua imaginação o levava direto a elas. Usava todos os fatos que conhecia, mas não foi um fato que lhe concedeu essa certeza. – Eles deixavam os prisioneiros sentados no escuro, no forte de Drio. Durante anos.
– Ar, pelo menos – disse Shevek. – Essa porta se encaixa como uma tampa a vácuo. Temos que fazer um furo nela.
– Vai levar horas para a gente perfurar o cimento-espuma. De todo jeito, quem é que vai ficar tanto tempo nessa caixa a ponto de ficar sem ar?
Coro de voluntários e pretendentes.
Tirin olhou para eles, sarcástico. – Vocês são todos loucos. Quem vai mesmo querer ser trancado num lugar desses? Pra quê? – Fazer a prisão tinha sido ideia dele, e isso a ele bastava; não se deu conta de que, para algumas pessoas, só imaginação não basta: elas precisam entrar na cela, precisam tentar abrir a porta impossível de abrir.
– Quero ver como é – disse Kadagv, um garoto de 12 anos com peito largo, sério, insolente.
– Use a cabeça! – zombou Tirin, mas os outros apoiaram Kadagv. Shevek pegou uma broca na oficina, e eles fizeram um buraco de dois centímetros na “porta”, na altura do nariz. Levou quase uma hora, como Tirin previra.
– Quanto tempo quer ficar lá dentro, Kad? Uma hora?
– Veja – respondeu Kadagv –, se eu sou o prisioneiro, não posso decidir. Não sou livre. Vocês é que têm que decidir quando vão me deixar sair.
– Isso mesmo – disse Shevek, desanimado com essa lógica.
– Você não pode ficar muito tempo, Kad. Também quero a minha vez! – disse o mais jovem do grupo, Gibesh. O prisioneiro não se dignou a responder. Entrou na cela. Ergueram a porta e a colocaram no lugar com um estrondo, e prenderam as estacas, todos os quatro carcereiros martelando com entusiasmo. Amontoaram-se no buraco respiradouro para ver o prisioneiro, mas, como não havia luz dentro da prisão, exceto a que vinha do buraco, não viram nada.
– Não suguem todo o ar desse pobre idiota!
– Sopra um pouco de ar lá dentro pra ele.
– Solta um peido lá dentro pra ele!
– Quanto tempo ele vai ficar?
– Uma hora.
– Três minutos.
– Cinco anos!
– Faltam quatro horas para apagarem a luz. Acho que está bom.
– Mas eu quero a minha vez!
– Tudo bem, a gente deixa você aí dentro a noite inteira.
– Bem, eu quis dizer amanhã.
Quatro horas depois, arrancaram as estacas e soltaram Kadagv. Ele saiu tão dono da situação como quando entrara, disse que estava com fome e que aquilo não era nada; tinha apenas dormido a maior parte do tempo.
– Você faria de novo? – desafiou Tirin.
– Claro.
– Não, o segundo sou eu...
– Cale a boca, Gib. Então, Kad? Você entraria aí de novo, sem saber quando vamos deixá-lo sair?
– Claro.
– Sem comida?
– Eles alimentavam os prisioneiros – disse Shevek. – Isso é o mais esquisito de tudo.
Kadagv deu de ombros. Sua atitude de resistência superior era intolerável.
– Olhem aqui – Shevek disse aos dois garotos mais jovens –, peçam sobras de comida na cozinha. E tragam uma garrafa ou um pote cheio de água também. – Virou-se para Kadagv. – Vamos lhe dar um monte de coisas. Pode ficar o tempo que você quiser.
– O tempo que vocês quiserem – Kadagv corrigiu.
– Certo. Entre aí! – A autoconfiança de Kadagv despertou a veia satírica e teatral de Tirin. – Você é um prisioneiro. Não responde. Entendeu? Vire-se. Ponha as mãos na cabeça.
– Pra quê?
– Quer desistir?
Kadagv olhou-o com ar emburrado.
– Você não pode perguntar pra quê. Porque, se perguntar, podemos bater em você, e você vai ter que aceitar, ninguém vai te ajudar. Porque podemos chutar o seu saco e você não pode revidar. Porque você não é livre. E então, vai querer continuar até o fim?
– Claro. Podem me bater.
Tirin, Shevek e o prisioneiro ficaram se encarando, um grupo estranho e tenso em volta da lanterna, no escuro, em meio às paredes maciças da fundação do prédio.
Tirin sorriu com arrogância e cinismo. – Não me diga o que fazer, seu explorador. Cale a boca e entre na cela! – E, quando Kadagv virou-se para obedecer, Tirin o empurrou pelas costas com o braço estendido, fazendo-o cair desajeitado. Ele soltou um grunhido agudo de surpresa ou dor e sentou-se, protegendo um dedo que arranhara ou torcera na parede do fundo da cela. Shevek e Tirin não falaram nada. Ficaram imóveis, sem expressão no rosto, em seus papéis de guardas. Agora não representavam um papel, o papel é que os representava. Os garotos mais jovens voltaram com pão de holum, um melão e uma garrafa de água. Chegaram conversando, mas o estranho silêncio na cela os emudeceu na hora. A comida e a água foram empurradas para dentro, a porta foi erguida e escorada. Kadagv ficou sozinho no escuro. Os outros se reuniram em volta da lanterna. Gibesh sussurrou:
– Onde ele vai mijar?
– Na cama dele – Tirin respondeu, com objetividade sardônica.
– E se ele tiver que cagar? – Gibesh perguntou, e subitamente caiu numa estrepitosa gargalhada.
– Que tanta graça você vê em cagar?
– Eu imaginei... e se ele não conseguir enxergar... no escuro... – Gibesh não conseguiu explicar totalmente sua fantasia cômica. Todos começaram a rir sem explicação, divertindo-se até perder o fôlego. Sabiam que o garoto trancado na cela estava ouvindo as risadas.
Já tinham apagado a luz do dormitório infantil, e muitos adultos já dormiam, embora aqui e ali houvesse luzes acesas nos domicílios. A rua estava deserta. Os garotos a percorriam dobrando-se de rir, berrando entre si, enlouquecidos com o prazer de compartilhar um segredo, de incomodar os outros, de estarem unidos nas maldades. Acordaram a metade das crianças do dormitório com brincadeiras de pega-pega nos corredores e por entre as camas. Nenhum adulto interferiu; o tumulto logo cessou.
Tirin e Shevek ficaram cochichando por um bom tempo, sentados na cama de Tirin. Concluíram que Kadagv tinha pedido aquilo e ficaria preso duas noites inteiras.
O grupo deles se reuniu à tarde na oficina de reciclagem de madeira, e o chefe perguntou por Kadagv. Shevek trocou um olhar de relance com Tirin. Sentiu-se esperto, teve uma sensação de poder em não responder. Porém, quando Tirin respondeu calmamente que Kadagv devia estar em outro grupo naquele dia, Shevek ficou chocado com a mentira. A sensação secreta de poder de repente o deixou desconfortável: suas pernas coçaram, suas orelhas arderam. Quando o chefe lhe dirigiu a palavra, ele pulou de susto, de medo ou algum sentimento parecido, um sentimento que nunca experimentara, algo como vergonha, mas pior: íntimo e vil. Não parava de pensar em Kadagv, enquanto tapava e lixava os buracos das tábuas de três camadas de holum e lixava as tábuas até voltarem a ficar lisas como a seda. Toda vez que inspecionava sua mente, lá estava Kadagv. Era repulsivo.
Gibesh, que estivera de guarda, foi até Tirin e Shevek após o jantar, inquieto. – Acho que ouvi Kad falando alguma coisa lá dentro. Com a voz meio esquisita.
Houve uma pausa. – Vamos soltá-lo – disse Shevek.
Tirin virou-se para ele. – Ora, Shev, não me venha com pieguice. Não seja altruísta! Deixe-o terminar e se respeitar até o fim.
– Que altruísmo, que nada! Quero respeito a mim mesmo – retrucou Shevek, e partiu para o centro de aprendizagem. Tirin o conhecia; não perdeu mais nenhum minuto discutindo com ele e o acompanhou. Os outros dois, de 11 anos, seguiram atrás deles. Engatinharam debaixo do prédio até a cela. Shevek arrancou uma estaca, Tirin, a outra. A porta da prisão caiu para fora com um baque.
Kadagv estava deitado de lado no chão, todo encolhido. Sentou-se, depois levantou-se bem devagar e saiu. Curvou-se mais do que o necessário sob o teto baixo e piscou bastante à luz da lanterna, mas parecia o mesmo de sempre. O fedor que saiu com ele era inacreditável. Por algum motivo, tivera diarreia. A cela estava uma bagunça, e havia manchas de matéria fecal amarela em sua camisa. Quando as viu à luz da lanterna, tentou escondê-las com a mão. Ninguém falou muito.
Quando já tinham engatinhado para fora das fundações do prédio e se dirigiam ao dormitório, Kadagv perguntou:
– Quanto tempo fiquei lá?
– Umas trinta horas, contando as quatro primeiras.
– Bastante tempo – disse Kadagv, sem convicção.
Depois de levá-lo para tomar banho, Shevek correu para o banheiro. Ali, inclinou-se sobre a privada e vomitou. Os espasmos só o deixaram após quinze minutos. Estava trêmulo e exausto quando cessaram. Foi até o salão comum do dormitório, leu um pouco sobre física e foi para a cama cedo. Nenhum dos cinco garotos jamais voltou à prisão debaixo do centro de aprendizagem. Nenhum deles jamais mencionou o episódio, exceto Gibesh, que se gabou para alguns dos garotos e garotas mais velhos; mas eles não entenderam, e ele mudou de assunto.
A lua pairava alta acima do Instituto Regional de Ciências Nobres e Materiais do Poente Norte. Quatro garotos de 15 ou 16 anos estavam sentados no topo de um morro, por entre tufos rústicos de holum rasteira, olhando abaixo para o Instituto Regional e acima para lua.
– Estranho – disse Tirin –, eu nunca tinha pensado antes...
Comentários dos outros três sobre a obviedade dessa observação.
– Nunca tinha pensado – prosseguiu Tirin, inabalado – que existem pessoas sentadas num morro, lá em cima, em Urras, olhando para Anarres, para nós, e dizendo: “Olhe, lá está a lua”. Nosso planeta é a lua deles; nossa lua é o planeta deles.
– Onde, então, está a Verdade? – declamou Bedap, e bocejou.
– No topo do morro onde se estiver sentado – respondeu Tirin.
Todos continuaram fitando aquela pedra turquesa brilhante e vaga lá em cima, que não estava totalmente redonda, um dia após ter estado cheia. A calota polar norte faiscava.
– O norte está claro – disse Shevek. – Ensolarado. Aquilo é A-Io, aquela saliência marrom ali.
– Estão todas nuas, deitadas ao sol – disse Kvetur –, com joias no umbigo e sem cabelo.
Houve um silêncio.
Tinham ido ao topo do morro para companhia masculina. A presença de fêmeas lhes era opressiva. A impressão deles era que, ultimamente, o mundo estava cheio de garotas. Para todo lugar que olhavam, dormindo ou acordados, viam garotas. Todos tinham tentado copular com garotas; alguns deles, em desespero, também tinham tentado não copular com garotas. Não fazia diferença. As garotas estavam lá.
Três dias antes, durante uma aula de História do Movimento Odoniano, todos eles haviam assistido à mesma apresentação visual e, desde então, a imagem de joias iridescentes no orifício liso das barrigas bronzeadas e lambuzadas de óleo das mulheres tornara-se recorrente a cada um deles, em privado.
Tinham visto também cadáveres de crianças, cabeludas como eles, empilhados numa praia, como ferro-velho compactado e enferrujado, e um velho derramando gasolina sobre as crianças e ateando fogo. “Uma grande fome na província de Bachfoil, da Nação de Thu” – disse o comentarista. “Os corpos das crianças mortas de fome e doença são queimados nas praias. Nas praias de Tuis, a setecentos quilômetros de distância, na Nação de A-Io (e aí apareceram os umbigos enfeitados de joias), mulheres mantidas para uso sexual dos membros machos da classe de proprietários (usaram as palavras ióticas, pois não havia equivalente para nenhuma das duas em právico) ficam deitadas na areia o dia todo, até que o jantar lhes seja servido pela classe dos não proprietários”. Um close-up da hora do jantar: bocas macias mastigando e sorrindo, mãos macias pegando iguarias em calda de vasilhas de prata. Então, um corte rápido de volta ao rosto opaco e embotado de uma criança morta, boca aberta, vazia, preta, seca. “Lado a lado”, dissera a voz calma.
No entanto, a imagem que aumentara como uma bolha oleosa e iridescente nas mentes dos garotos era a mesma.
– De quando são aqueles filmes? – perguntou Tirin. – São de antes da Colonização ou são recentes? Eles nunca dizem.
– Que importância tem isso? – respondeu Kvetur. – Eles viviam assim em Urras antes da Revolução Odoniana. Todos os odonianos partiram e vieram para cá, para Anarres. Então, é provável que nada tenha mudado... Eles ainda fazem essas coisas lá – apontou para a grande lua azul-esverdeada.
– E como vamos saber?
– O que você quer dizer com isso, Tir? – perguntou Shevek.
– Se aquelas imagens tiverem 150 anos, as coisas podem estar totalmente diferentes agora em Urras. Não estou dizendo que estejam, mas, se estiverem, como vamos saber? Nós não vamos para lá, não falamos com eles, não há comunicação. Na verdade, não fazemos nenhuma ideia de como é a vida em Urras agora.
– O pessoal do CPD sabe. Eles falam com os tripulantes urrastis dos cargueiros que chegam ao Porto de Anarres. Eles se mantêm informados. E têm que se manter, para que possamos continuar o comércio com Urras, e para saber se eles são uma ameaça para nós. – Bedap falou com ponderação, mas a resposta de Tirin foi perspicaz:
– Então talvez o CPD esteja informado, mas nós não.
– Informados! – exclamou Kvetur. – Ouço falar em Urras desde a creche! Não aguento mais ver imagens de cidades imundas urrastis ou de corpos urrastis lambuzados de óleo!
– É isso mesmo! – disse Tirin, com o deleite de quem acompanha um raciocínio. – Todo o material disponível sobre Urras é a mesma coisa. Repugnante, imoral, excrementício. Mas veja: se tudo era tão ruim quando os Colonos partiram, como os urrastis sobreviveram 150 anos? Se eram tão doentes, por que não morreram? Por que a sociedade proprietária deles não entrou em colapso? Do que temos tanto medo?
– Contágio – disse Bedap.
– Somos tão fracos assim que não podemos nos expor um pouco? De qualquer forma, não é possível que todos sejam doentes. Não importa como seja a sociedade deles, alguns devem ser decentes. As pessoas variam aqui, não é? Somos todos odonianos perfeitos? Vejam aquele Pesus metido a besta!
– Mas, num organismo doente, mesmo uma célula sadia está condenada – disse Bedap.
– Ah, você consegue provar qualquer coisa usando analogia, e você sabe disso. De qualquer maneira, como sabemos de verdade que a sociedade deles é doente?
Bedap roeu a unha do polegar. – Está dizendo que o CPD e o sindicato do material escolar estão mentindo para nós?
– Não. Eu disse que só sabemos o que nos dizem. E sabem o que nos dizem? – O rosto moreno com nariz arrebitado de Tirin, iluminado pelo luar azulado, virou-se para os outros garotos. – Kvet já disse, um minuto atrás. Ele entendeu a mensagem. Vocês ouviram: detestem Urras, odeiem Urras, tenham medo de Urras.
– Por que não? – Kvetur inquiriu. – Vejam como eles nos trataram, a nós odonianos!
– Mas eles nos deram a lua deles, não deram?
– Sim, para nos impedir de destroçar seus estados exploradores e de estabelecer uma sociedade justa por lá. E, assim que se livraram de nós, aposto que começaram a construir governos e exércitos mais rápido do que nunca, pois não sobrou ninguém para detê-los. Se abríssemos nossos portos para eles, acham que eles viriam como amigos e irmãos? Um bilhão deles contra 20 milhões de nós? Eles iriam nos liquidar, ou nos fazer de... como é que chamam, como é mesmo a palavra? Escravos, para trabalharmos nas minas por eles!
– Tudo bem. Concordo que talvez seja sensato temer Urras. Mas por que odiar? O ódio não é funcional; por que nos ensinam a odiar? Será que é porque se soubéssemos como Urras é de verdade, nós iríamos gostar de lá? De algumas coisas de lá, alguns de nós? Será que o CPD não quer apenas evitar que eles venham para cá, mas também que alguns de nós queiram ir para lá?
– Ir para Urras? – disse Shevek, surpreso.
Discutiam porque gostavam de discussões, gostavam do movimento rápido da mente livre pelos caminhos das possibilidades, gostavam de questionar o que não se questionava. Eram inteligentes, suas mentes já estavam disciplinadas para a objetividade da ciência, e tinham 16 anos de idade. Porém, naquele ponto o prazer da discussão cessou para Shevek, assim como cessara antes para Kvetur. Ele ficou perturbado.
– Quem jamais iria querer ir para Urras? – interpelou. – Para quê?
– Para descobrir como é outro mundo. Para ver o que é um “cavalo”!
– Isso é infantilidade – disse Kvetur. – Existe vida em outros sistemas estelares – e fez um gesto com a mão, percorrendo o céu banhado pelo luar –, segundo dizem. E daí? Tivemos a sorte de nascer aqui!
– Se somos melhores do que qualquer outra sociedade humana – disse Tirin –, então deveríamos ajudá-las. Mas somos proibidos.
– Proibidos? Palavra não orgânica. Quem proíbe? Você está exteriorizando a própria função integrativa – disse Shevek, inclinando-se para a frente e falando com veemência. – Ordem não são “ordens”. Não saímos de Anarres porque somos Anarres. Sendo Tirin, você não pode sair da pele de Tirin. Talvez você queira tentar ser outra pessoa, para ver como é, mas não pode. Mas alguém impede você à força? Somos mantidos aqui à força? Que força? Que leis? As do governo, da polícia? Nada disso. Simplesmente a lei do nosso próprio ser, nossa natureza como odonianos. Está em sua natureza ser Tirin, e em minha natureza ser Shevek, e em nossa natureza comum sermos odonianos, responsáveis uns pelos outros. E essa responsabilidade é a nossa liberdade. Evitá-la seria perder nossa liberdade. Você gostaria mesmo de viver numa sociedade onde não se tem nenhuma responsabilidade, nenhuma liberdade, nenhuma escolha, apenas a falsa opção de obediência à lei, ou desobediência seguida de punição? Gostaria mesmo de ir viver numa prisão?
– Ora, claro que não! Não posso falar? O problema com você, Shev, é que você não fala nada até acumular um caminhão de argumentos pesados como tijolos, que então você descarrega de uma vez, sem nunca olhar o corpo ensanguentado e mutilado debaixo do monte...
Shevek reclinou-se, com ar satisfeito.
Mas Bedap, um rapaz corpulento, de rosto quadrado, continuou a mastigar a unha do polegar e disse:
– Mesmo assim, a ideia de Tir procede. Seria bom saber que sabemos toda a verdade sobre Urras.
– Quem você acha que está mentindo para nós? – Shevek interpelou.
Calmo, Bedap o encarou. – Quem, irmão? Quem, senão nós mesmos?
O planeta irmão brilhava sobre eles, sereno e luminoso, um belo exemplo da improbabilidade do real.
O reflorestamento do Litoral Tameniano Norte foi uma das grandes realizações da décima quinta décade da Colonização de Anarres, empregando quase 18 mil pessoas por um período de mais de dois anos.
Embora as extensas praias do Sudeste fossem férteis, sustentando muitas comunidades pesqueiras e agrícolas, a área cultivável era uma pequena faixa ao longo do mar. Do interior a oeste até as vastas planícies do Sudoeste, a terra era inabitada, exceto por algumas cidades mineradoras remotas. Era a região chamada Poeira.
Na era geológica anterior, a Poeira tinha sido uma imensa floresta de holuns, gênero de planta ubíquo e dominante de Anarres. O clima atual era mais quente e mais seco. Milênios de seca mataram as árvores e secaram o solo até torná-lo uma poeira fina e cinza que agora levantava ao menor vento, formando morros de linhas tão puras e estéreis quanto as de qualquer duna de areia. Os anarrestis tinham a esperança de restaurar a fertilidade daquela terra inquieta com o replantio da floresta. Isso estava de acordo, pensou Shevek, com o princípio da Reversibilidade Causal, ignorado pela Sequência, escola de física atualmente em voga em Anarres, mas ainda elemento íntimo e tácito do pensamento odoniano. Ele gostaria de escrever um artigo mostrando a relação entre as ideias de Odo e as ideias da Física Temporal e, particularmente, a influência da Reversibilidade Causal no modo como ela lidou com o problema dos meios e dos fins. Mas aos 18 anos Shevek não tinha conhecimento suficiente para escrever esse artigo, e jamais teria, se não voltasse a estudar física logo, longe daquela maldita poeira.
À noite, nos acampamentos do Projeto, todo mundo tossia. Durante o dia, tossiam menos; estavam ocupados demais para tossir. A poeira era a inimiga deles, a coisa fina e seca que obstruía a garganta e os pulmões; era sua inimiga e seu ofício, sua esperança. Outrora aquela poeira jazia rica e escura à sombra das árvores. Após o longo trabalho deles, talvez voltasse a ser assim.
Ela faz brotar a folha verde na pedra,
E a água limpa e corrente do coração da rocha...
Gimar estava sempre murmurando essa canção, mas agora, na noite quente, ao atravessarem a planície de volta ao acampamento, ela cantava a letra em voz alta.
– Quem faz essas coisas? Quem é “ela”? – perguntou Shevek.
Gimar sorriu. Seu rosto largo e sedoso estava manchado e endurecido de poeira, seu cabelo estava cheio de poeira, ela exalava um cheiro forte e agradável de suor.
– Eu cresci no Nascente Sul – ela disse. – Onde estão os mineiros. É uma canção de mineiros.
– Que mineiros?
– Você não sabe? As pessoas que já estavam aqui quando os Colonos chegaram. Alguns ficaram e se uniram à solidariedade. Mineiros de ouro, mineiros de estanho. Eles ainda têm dias de festa e suas próprias canções. O babai[2] era mineiro, ele cantava para mim quando eu era criança.
– Tudo bem, mas quem é “ela”?
– Não sei, é apenas a letra da canção. Não é o que estamos fazendo aqui? Fazendo brotar folhas verdes nas pedras?
– Parece religioso.
– Você e suas palavras livrescas e infundadas. É só uma canção. Ah, como eu queria estar no outro acampamento para poder nadar. Estou fedendo!
– Eu estou fedendo.
– Estamos todos fedendo.
– Em solidariedade...
Mas aquele acampamento ficava a quinze quilômetros das praias do Mar Tameniano, por ali só havia um mar imenso de poeira.
Havia um homem no acampamento cujo nome, quando pronunciado, parecia com o de Shevek: Shevet. Quando chamavam um, o outro respondia. Shevek sentia certa afinidade com o homem, uma relação mais especial do que a fraternidade, por causa dessa semelhança casual. Algumas vezes, viu Shevet olhando para ele. Ainda não tinham se falado.
As primeiras décades de Shevek no projeto de reflorestamento foram passadas com ressentimento silencioso e exaustão. Pessoas que haviam optado por trabalhar em campos essencialmente funcionais como a física não deveriam ser designadas para esses projetos e recrutamentos especiais. Não era imoral realizar um trabalho sem prazer? O trabalho precisava ser feito, mas muitas pessoas não ligavam para que posto seriam enviadas e mudavam de emprego o tempo todo; essas pessoas deviam ter se apresentado como voluntários. Qualquer idiota podia fazer aquele trabalho. Na verdade, muitos o fariam melhor do que ele. Ele se orgulhava de sua força física e sempre se voluntariava para os “trabalhos pesados”, em rodízios de dez dias; mas ali era dia após dia, oito horas por dia, na poeira e no calor. O dia inteiro ansiava pela noite, quando poderia ficar sozinho e pensar, mas, no instante em que entrava na barraca depois do jantar, sua cabeça caía pesada e ele dormia feito uma pedra até o amanhecer, e nenhum pensamento jamais atravessava a sua mente.
Considerava os colegas de trabalho maçantes e grosseiros, e até mesmo os mais jovens do que ele tratavam-no como uma criança. Ressentido e zombador, seu único prazer era escrever aos amigos Tirin e Rovab num código que tinham elaborado no Instituto, um conjunto de equivalentes verbais dos símbolos da Física Temporal. Escritas, as palavras pareciam fazer sentido como mensagem, mas, na verdade, não queriam dizer nada, a não ser pela equação ou fórmula filosófica que dissimulavam. As fórmulas de Shevek e Rovab eram genuínas. As cartas de Tirin eram muito engraçadas e convenceriam a qualquer um de que se referiam a acontecimentos e emoções reais, mas a física que continham era questionável. Shevek passou a enviar-lhes esses enigmas com frequência, desde que descobriu que podia criá-los em sua mente enquanto cavava buracos na rocha com uma pá cega na tempestade de poeira. Tirin respondeu várias vezes, Rovab apenas uma. Era uma garota fria, ele sabia que ela era fria. Mas ninguém no Instituto sabia de sua desgraça, pois eles estavam desenvolvendo pesquisas independentes e não foram designados a um posto num maldito projeto de plantio de árvores. Estavam trabalhando, fazendo o que queriam fazer. Ele não estava trabalhando. Estava sendo trabalhado, usado.
No entanto, era estranho como dava orgulho trabalhar assim – todos juntos –, que satisfação isso trazia! E alguns dos colegas de trabalho eram pessoas realmente extraordinárias. Gimar, por exemplo. A princípio sua beleza muscular o intimidara, mas agora estava forte o suficiente para desejá-la.
– Venha comigo esta noite, Gimar.
– Ah, não – ela respondeu, e olhou-o com tanta surpresa que ele disse, com dignidade em sua dor:
– Pensei que fôssemos amigos.
– E somos.
– Então...
– Eu tenho um parceiro. Lá onde eu moro.
– Você poderia ter me contado – disse Shevek, corando.
– Bem, não me ocorreu que eu devia ter contado. Desculpe, Shev.
Ela o olhou de modo tão pesaroso que ele teve esperança. – Será que...
– Não. Não se pode ter uma parceria assim, um pouco para ele e um pouco para outros.
– Na verdade, acho que parceria por toda a vida vai contra a ética odoniana – disse Shevek, num tom rude e pedante.
– Merda – disse Gimar, em sua voz suave. – Ter é errado, compartilhar é certo. O que mais se pode compartilhar do que o seu ser inteiro, sua vida inteira, todas as noites e todos os dias?
Ele estava sentado com as mãos entre os joelhos, a cabeça baixa, um rapaz comprido, magro, abatido, inacabado. – Não estou preparado para isso – ele disse após alguns momentos.
– Você?
– Nunca conheci alguém de verdade. Veja como eu não consegui entender você. Estou excluído. Não consigo entrar. Nunca vou conseguir. Seria tolo da minha parte pensar em parceria. Esse tipo de coisa é para... seres humanos...
Com timidez, não um acanhamento sexual, mas a reserva do respeito, Gimar pôs a mão no ombro de Shevek. Ela não o consolou. Não disse que ele era como todo mundo. Disse:
– Nunca vou conhecer outra pessoa como você, Shev. Nunca vou esquecê-lo.
De qualquer maneira, uma rejeição é uma rejeição. Apesar de toda a delicadeza de Gimar, ele se afastou dela com a alma derrotada, contrariado.
Fazia muito calor. Só refrescava uma hora antes do amanhecer.
O homem chamado Shevet aproximou-se de Shevek uma noite após o jantar. Era um rapaz forte e bonito, de 30 anos.
– Estou cansado de ser confundido com você. Arranje um nome diferente.
A agressividade ameaçadora teria espantado Shevek algum tempo antes. Agora ele simplesmente respondeu na mesma moeda:
– Mude seu próprio nome, se não gosta dele – disse.
– Você é um desses exploradores que vão estudar para não sujar as mãos – disse o homem. – Sempre quis bater num de vocês.
– Não me chame de explorador! – disse Shevek, mas aquela batalha não era verbal. Shevet golpeou-lhe duas vezes. Recebeu vários socos de volta, pois Shevek tinha braços mais longos e muito mais vigor do que seu oponente esperava: contudo foi derrotado. Várias pessoas paravam para assistir, viam que era uma luta equilibrada, porém nada interessante, e iam embora. Nem se ofendiam nem se atraíam pela simples violência. Shevek não pediu ajuda, por isso aquilo não era da conta de ninguém, apenas dele. Quando voltou a si, estava deitado de costas no chão escuro entre duas barracas.
Ficou com um zumbido no ouvido direito por uns dois dias e um lábio fendido que demorou a sarar por causa da poeira, que irritava todos os ferimentos. Ele e Shevet nunca mais se falaram. Via o homem a distância, em outras refeições em volta de fogueiras, sem animosidade. Shevet lhe dera o que tinha de dar, e ele aceitara o presente, embora, por um longo tempo, jamais tenha ponderado ou refletido sobre a natureza da oferta. Quando finalmente o fez, não havia diferença entre aquele e outro presente, uma outra etapa de seu amadurecimento. Uma garota que acabara de se unir a seu grupo de trabalho aproximara-se dele do mesmo modo que Shevet, na escuridão, quando ele se afastava da fogueira, e seu lábio não estava curado ainda... Nunca conseguiu lembrar o que ela disse; ela o provocara; de novo, ele simplesmente reagira. Foram para a planície no meio da noite, e lá ela lhe deu a liberdade da carne. Foi este o presente dela, e ele aceitou. Como todas as crianças de Anarres, ele tivera experiências sexuais voluntárias tanto com garotas quanto com garotos, mas tanto ele quanto os outros eram crianças; jamais tinha ido além do que presumia ser todo o prazer do sexo. Beshun, perita em deleite, levou-o ao âmago da sexualidade, um lugar onde não há rancor nem inépcia, onde dois corpos esforçando-se para se unirem aniquilam o momento em seu esforço e transcendem a si mesmos, transcendem o tempo.
Foi tudo mais fácil ali, tão fácil e agradável, naquela poeira quente, à luz das estrelas. E os dias eram longos, quentes e luminosos, e a poeira tinha o cheiro do corpo de Beshun. Ele trabalhava agora numa equipe de plantio. Os caminhões tinham vindo do Nordeste cheios de pequenas árvores, milhares de mudas cultivadas nas Montanhas Verdes, onde chovia até 100 mm por ano, o cinturão pluvial. Plantaram as pequenas árvores na poeira.
Quando terminaram, as cinquenta equipes que tinham trabalhado durante o segundo ano do projeto partiram nos caminhões-plataforma, e olharam para trás enquanto partiam. Viram o que tinham feito. Havia uma névoa verde, muito tênue, nas curvas e nos terraços pálidos do deserto. Sobre a terra morta jazia, muito leve, um véu de vida. Eles comemoraram, cantaram e gritaram de um caminhão a outro. Os olhos de Shevek se encheram de lágrimas. Pensou: “Ela faz brotar a folha verde na pedra...”. Gimar tinha sido designada de volta ao Poente Sul há muito tempo.
– Por que está fazendo caretas? – Beshun lhe perguntou, espremida ao seu lado enquanto o caminhão sacolejava, e passando a mão de cima a baixo no braço dele, firme e branco de poeira.
– Mulheres – disse Vokep, na garagem de caminhões em Tin Ore, no Sudoeste. – As mulheres pensam que nos possuem. Nenhuma mulher pode ser odoniana de verdade.
– E a própria Odo...?
– Teoria. E ela não teve mais vida sexual após Asieo ser morto, certo? De qualquer modo, sempre há exceções. Mas, para a maioria das mulheres, a única relação que elas têm com o homem é de posse. Ou possuindo ou sendo possuída.
– Você acha então que elas são diferentes dos homens nesse ponto?
– Tenho certeza. O que os homens querem é liberdade. O que as mulheres querem é propriedade. Elas só o libertam se conseguirem trocá-lo por outra coisa. Todas as mulheres são proprietárias.
– Essa é uma afirmação e tanto a respeito de metade da raça humana – disse Shevek, perguntando-se se o homem tinha razão. Beshun tinha chorado até ficar doente quando ele foi designado de volta ao Noroeste. Ficou furiosa, chorosa e tentou fazê-lo dizer que não poderia viver sem ela, insistiu que não poderia viver sem ele e que eles deveriam ser parceiros. Parceiros, como se ela conseguisse ficar com qualquer homem por mais de meio ano!
A língua que Shevek falava, a única que conhecia, não possuía termos que expressassem a propriedade para o ato sexual. Em právico, não fazia sentido algum um homem dizer que “possuía” uma mulher. A palavra que mais se aproximava de “transar” – e tinha um uso secundário como insulto – era específica: significava estuprar. O verbo usual, utilizado apenas com o sujeito no plural, só pode ser traduzido por uma palavra neutra como copular. Significava algo que duas pessoas faziam, não algo feito ou possuído por uma pessoa só. Essa estrutura vocabular, como qualquer outra, não podia conter a totalidade das experiências, e Shevek estava ciente da área excluída, embora não tivesse certeza absoluta do que se tratava. Certamente sentira que possuía Beshun, em algumas daquelas noites estreladas na Poeira. E ela pensara que o possuía. Mas ambos estavam enganados; e Beshun, apesar de todo o sentimentalismo, sabia disso; despedira-se dele com um beijo, finalmente sorrindo, e o deixara partir. Ela não o possuíra. Seu próprio corpo, na primeira explosão de paixão sexual adulta, é que o possuíra de fato – e a ela. Mas tudo isso tinha terminado. Tinha acontecido. Não aconteceria de novo (pensou ele aos 18 anos de idade, sentado com um conhecido de viagem na garagem de caminhões de Tin Ore, à meia-noite, bebendo um copo de suco de fruta doce e viscoso, esperando para pegar uma carona num comboio que ia para o norte), não poderia acontecer nunca mais. Ele passaria por muita coisa ainda, mas não seria pego desprevenido uma segunda vez, derrubado, derrotado. Ser derrotado e rendido teve seus encantos. Mas a própria Beshun talvez nunca quisesse nenhuma alegria além disso. E por que deveria? Foi ela, em sua liberdade, que o libertara.
– Sabe, não concordo – disse a Vokep, um químico agrícola de rosto comprido que viajava para Abbenay. – Acho que a maioria dos homens precisa aprender a ser anarquista. As mulheres não precisam aprender.
Vokep balançou a cabeça severamente. – São as crianças – disse. – Ter bebês. Isso as torna proprietárias. Não largam os homens. – Suspirou. – Toque e vá embora, irmão. Essa é a regra. Nunca se deixe possuir.
Shevek sorriu e bebeu o suco de fruta.
– Não deixarei – ele disse.
Foi uma alegria para ele retornar ao Instituto Regional, ver os morros baixos salpicados de holum rasteira com folhas cor de bronze, os jardins da cozinha, domicílios, dormitórios, oficinas, salas de aula, laboratórios, lugares onde vivia desde os 13 anos de idade. Sempre seria alguém para quem o retorno era tão importante quanto a viagem. Ir não era suficiente para ele, apenas metade suficiente; tinha de retornar. Talvez essa tendência já prenunciasse a natureza da imensa exploração que iria empreender aos extremos do compreensível. Provavelmente não teria embarcado naquela empreitada de anos de duração se não tivesse a profunda segurança de que o retorno era possível, mesmo que ele próprio talvez não retornasse; de que, de fato, a verdadeira natureza da viagem, como a circunavegação do globo, implicava retorno. Não se pode descer o mesmo rio duas vezes, nem voltar para casa. Isso ele sabia; na verdade, era a base de sua visão de mundo. No entanto, a partir dessa aceitação da transitoriedade, desenvolveu sua vasta teoria, segundo a qual aquilo que é mais mutável demonstra ser a eternidade em seu grau mais elevado, e a relação de alguém com o rio, e a relação do rio com alguém e com ele mesmo torna-se logo mais complexa e mais segura do que a mera falta de identidade. Pode-se voltar para casa, afirma a Teoria Temporal Geral, desde que se compreenda que casa é um lugar onde nunca se esteve.
Portanto, estava alegre por voltar para o que mais próximo ele tinha ou queria ter de um lar. Mas achou seus amigos ali muito imaturos. Ele tinha amadurecido bastante no último ano. Algumas garotas tinham amadurecido tanto quanto ele, ou até mais; tinham se tornado mulheres. Entretanto, evitou qualquer contato, exceto casuais, com as garotas, pois ainda não queria mais uma farra de sexo; tinha outras coisas a fazer. Percebeu que as garotas mais inteligentes, como Rovab, eram cautelosas como ele; nos laboratórios e nas equipes de trabalho, ou nas áreas comuns dos dormitórios, comportavam-se como boas companheiras e nada mais. As garotas queriam concluir o treinamento e iniciar sua pesquisa ou encontrar um posto que lhes agradasse antes de terem um filho. Mas não se satisfaziam mais com a experimentação sexual da adolescência. Queriam uma relação madura, não uma estéril; mas não naquele momento, não ainda.
Essas garotas eram boa companhia, simpáticas e independentes. Os garotos da idade de Shevek pareciam presos ao final de uma infantilidade que estava se tornando superficial e enfadonha. Eles eram intelectualizados demais. Pareciam não querer se comprometer nem com o trabalho, nem com o sexo. Quem ouvisse Tirin falar pensaria que ele havia inventado a cópula, mas seus casos eram com meninas de 15 ou 16 anos; esquivava-se das garotas de sua idade. Bedap, que nunca tinha sido vigoroso no sexo, aceitou a deferência de um rapaz mais jovem que nutria por ele uma paixão homossexual idealista e deixou que isso lhe bastasse. Parecia não levar nada a sério; tornara-se irônico e reticente. Shevek sentiu-se excluído de sua amizade. Nenhuma amizade perdurou; até Tirin estava muito egocêntrico e, nos últimos tempos, emocionalmente instável para reatar os antigos laços – se Shevek o quisesse. Na verdade, não queria. Acolheu o isolamento de todo o coração. Nunca lhe ocorreu que o distanciamento que encontrou em Bedap e Tirin pudesse ser uma reação; que seu caráter gentil, mas já impiedosamente hermético, pudesse criar sua própria ambiência, que somente uma grande força, uma grande devoção poderia suportar. Tudo o que percebeu, na verdade, foi que, finalmente, tinha tempo de sobra para o trabalho.
Lá no Sudeste, depois de ter se acostumado ao trabalho braçal regular e ter parado de desperdiçar o cérebro com mensagens codificadas e o sêmen em poluções noturnas, começou a ter algumas ideias. Agora estava livre para desenvolver essas ideias, para ver se tinham fundamento.
A física mais graduada do Instituto chamava-se Mitis. Não estava, no momento, coordenando a grade curricular de física, pois havia um rodízio anual de todos os postos administrativos entre os vinte postos permanentes, mas ela trabalhava ali há trinta anos e era a mais inteligente dentre todos. Havia sempre uma espécie de espaço livre psicológico em volta de Mitis, como a inexistência de multidões em volta do pico de uma montanha. A ausência de intensificações ou imposições de autoridade deixava a autoridade real evidente. Existem pessoas com autoridade inerente; alguns imperadores têm, na verdade, roupa nova.
– Mandei aquele estudo que você escreveu sobre Frequência Relativa para Sabul, em Abbenay – ela disse a Shevek, com seu jeito abrupto e sociável. – Quer ver a resposta?
Empurrou até o outro lado da mesa um pedaço de papel amarrotado, obviamente uma ponta rasgada de uma folha maior. Nele havia uma equação rabiscada em letras miúdas:
ts (R) = 0
2
Shevek pôs seu peso nas mãos sobre a mesa e baixou os olhos para o pedacinho de papel, contemplando-o com serenidade. Seus olhos eram claros, e a claridade da janela os preencheu, tornando-os límpidos como a água. Ele tinha 19 anos, Mitis, 55. Ela o observou com compaixão e admiração.
– É isso que está faltando – ele disse. Sua mão tinha encontrado um lápis sobre a mesa. Começou a rabiscar no fragmento de papel. Enquanto escrevia, seu rosto pálido, prateado por uma leve penugem, ruborizou, e as orelhas avermelharam-se.
Mitis moveu-se discretamente atrás da mesa, sentando-se. Tinha problema de circulação nas pernas e precisava sentar-se. Seu movimento, entretanto, perturbou Shevek. Ele lançou-lhe um olhar fixo e frio.
– Posso terminar isso em um dia ou dois – ele disse.
– Sabul quer ver os resultados quando você terminar.
Houve uma pausa. A cor de Shevek voltou ao normal, e ele teve consciência de novo da presença de Mitis, a quem amava. – Por que a senhora mandou o estudo para Sabul? – ele perguntou. – Com aquele furo enorme! – Sorriu; o prazer de remendar o furo em seu pensamento o deixou radiante.
– Achei que ele talvez conseguisse ver onde você errou. Eu não consegui. Também queria que ele visse a sua pesquisa... Ele vai querer que você vá para lá, para Abbenay, você sabe.
O jovem não respondeu.
– Você quer ir?
– Ainda não.
– Foi o que pensei. Mas você deve ir. Pelos livros, e pelas mentes que vai encontrar lá. Você não vai desperdiçar sua mente no deserto! – Mitis falou com súbito entusiasmo. – É seu dever buscar o melhor, Shevek. Jamais se deixe enganar pelo falso igualitarismo. Você vai trabalhar com Sabul. Ele é competente, vai fazê-lo trabalhar muito. Mas você deve ser livre para encontrar a linha que vai querer seguir. Fique aqui mais um bimestre e depois vá. E tome cuidado em Abbenay. Permaneça livre. O poder está sempre vinculado a um centro. Você vai para o centro. Não conheço bem Sabul; não sei de nada contra ele; mas tenha isso em mente: você será o homem dele.
A forma singular dos pronomes possessivos em právico era utilizada principalmente para dar ênfase; o idioma a evitava. Criancinhas podiam dizer “minha mãe”, mas logo aprendiam a dizer “a mãe”. Em vez de dizer “minha mão está doendo”, dizia-se “a mão me dói”, e assim por diante; para expressar “isto é meu e aquilo é seu” em právico, dizia-se “eu uso isto e você usa aquilo”. A afirmação de Mitis “você será o homem dele” soou estranha. Shevek olhou-a sem entender.
– Você tem trabalho a fazer – disse Mitis. Ela tinha olhos negros, e eles brilharam como se estivessem com raiva. – Faça-o! – E então saiu, pois um grupo a aguardava no laboratório. Confuso, Shevek baixou os olhos para o pedaço de papel rabiscado. Pensou que Mitis lhe tivesse dito para se apressar e corrigir as equações. Só muito mais tarde compreendeu o que ela estava lhe dizendo.
Na noite anterior à sua partida para Abbenay, seus colegas estudantes lhe ofereceram uma festa de despedida. Festas eram frequentes, ao menor pretexto, mas Shevek surpreendeu-se com a energia gasta naquela em particular e imaginou por que ela tinha sido tão boa. Como não era influenciado por ninguém, nunca soube que ele os influenciava; não tinha ideia do quanto gostavam dele.
Muitos dos seus colegas devem ter economizado várias cotas diárias para fazer a festa. Havia uma quantidade incrível de comida. A encomenda de iguarias foi tão grande que o padeiro do refeitório soltou a imaginação e produziu delícias até então desconhecidas: folhados condimentados, canapés apimentados para acompanhar o peixe defumado, bolos doces fritos e suculentamente gordurosos. Havia coquetéis de frutas, frutas em conserva da região do Mar Keran, pequenos camarões salgados, pilhas de batatas fritas crocantes. A comida farta e saborosa era inebriante. Todos ficaram meio embriagados, e alguns passaram mal.
Houve esquetes e espetáculos, ensaiados e improvisados. Tirin vestiu-se com uma coleção de farrapos da lixeira e perambulou pela festa como o Pobre Urrasti, o Mendigo – uma das palavras ióticas que todo mundo aprendera nas aulas de história.
– Me dá dinheiro – ele suplicava, balançando a mão debaixo dos narizes dos outros. – Dinheiro! Dinheiro! Por que não me dão dinheiro? Vocês não têm? Mentirosos! Proprietários imundos! Exploradores! Olhem toda essa comida, como conseguiram, se não têm dinheiro? – Então se colocou à venda – Me cumprem, me cumprem, só por um pouquinho de dinheiro – adulou.
– Não é cumprem, é comprem – corrigiu Rovab.
– Me cumprem, me comprem, quem se importa? Vejam que lindo corpo eu tenho, não querem? – cantarolou, requebrando os quadris magros e piscando os olhos. Por fim, foi executado publicamente com uma faca de peixe e reapareceu vestido com um roupa normal. Havia harpistas e cantores talentosos entre eles, e houve muita música e dança, porém mais conversa. Todos conversavam como se fossem ficar mudos no dia seguinte.
Quando a noite avançou, jovens amantes começaram a sair para copular, procurando os quartos individuais; outros ficaram com sono e se retiraram para os dormitórios. No fim, sobrou um pequeno grupo em meio aos copos vazios, às espinhas de peixe e às migalhas de petiscos, que eles teriam de limpar antes de amanhecer. Mas ainda faltavam horas para o amanhecer. Conversavam. Mordiscavam isso e aquilo enquanto conversavam. Bedap, Tirin e Shevek estavam ali, mais dois rapazes e três garotas. Conversavam sobre a representação espacial do tempo como ritmos e sobre a relação entre as antigas teorias das Harmonias Numéricas e a Física Temporal Moderna. Conversavam sobre a melhor braçada para o nado de longa distância. Conversavam sobre suas infâncias, se tinham sido felizes. Conversavam sobre o que era a felicidade.
– O sofrimento é um engano – disse Shevek, inclinando-se para a frente, os olhos muito abertos e claros. Ele ainda era magricela, com mãos grandes, orelhas salientes e juntas ossudas, mas, na perfeita saúde e vigor do início da virilidade, era lindo. O cabelo castanho, como o dos outros, era fino e liso, muito comprido e preso com uma fita para não cair na testa. Só um deles usava o cabelo de um modo diferente, uma moça de bochechas elevadas e nariz chato. Ela cortara o cabelo escuro e brilhante no formato de uma touca arredondada. Observava Shevek com um olhar sério e firme. Os lábios estavam lambuzados de comer bolo frito, e tinha uma migalha grudada no queixo.
– O sofrimento existe – disse Shevek, abrindo as mãos. – É real. Posso considerá-lo um engano, mas não posso fingir que não existe ou que um dia deixará de existir. O sofrimento é a condição em que vivemos. E quando ele chega, nós o reconhecemos. Reconhecemos como a verdade. Claro que é certo curar doenças, evitar a fome e a injustiça, como faz o organismo social. Mas nenhuma sociedade pode mudar a natureza da existência. Não podemos evitar o sofrimento. Uma ou outra dor, sim, mas não a Dor. Uma sociedade só pode aliviar o sofrimento social, o sofrimento desnecessário. O resto permanece. A raiz, a realidade. Todos nós aqui conheceremos o sofrimento; se vivermos cinquenta anos, conheceremos a dor por cinquenta anos. E, no fim, morreremos. Esta é a condição em que nascemos. Tenho medo da vida! Às vezes eu... fico aterrorizado. Qualquer felicidade parece trivial. E, no entanto, me pergunto se tudo não passa de um engano... essa busca da felicidade, esse medo da dor... Se, em vez de temer a dor e fugir dela, se pudesse... atravessá-la, ir além dela. Há algo além da dor. É o ser que sofre, e há um lugar onde o ser... acaba. Não sei como expressar. Mas acredito que a realidade... a verdade que eu reconheço no sofrimento, mas não reconheço no conforto e na felicidade... que a realidade da dor não é dor. Se for possível atravessá-la. Se for possível suportá-la até o fim.
– A realidade de nossa vida está no amor, na solidariedade – disse uma garota alta, de olhos benevolentes. – O amor é a verdadeira condição da vida humana.
Bedap balançou a cabeça.
– Não, Shev está certo – ele disse. – O amor é apenas um dos caminhos, e pode dar errado, pode falhar. A dor nunca falha. Mas, por essa razão, não temos muita escolha sobre suportá-la! Suportaremos, queiramos ou não.
A garota de cabelo curto balançou a cabeça com veemência.
– Mas não suportaremos! Um em cada cem, um em cada mil atravessa todo o caminho, atravessa até o fim. O restante de nós continua fingindo que é feliz, ou senão fica entorpecido. Sofremos, mas não o suficiente. Assim, sofremos por nada.
– O que devemos fazer – perguntou Tirin –, dar marteladas nas nossas cabeças por uma hora todos os dias, para termos certeza de que sofremos o suficiente?
– Vocês estão fazendo um culto à dor – disse outro. – A meta de um odoniano é positiva, não negativa. Sofrer é disfuncional, exceto como um aviso do corpo contra o perigo. Psicológica e socialmente, é apenas destrutivo.
– O que motivou Odo senão uma sensibilidade excepcional ao sofrimento, dela e alheio? – retorquiu Bedap.
– Mas todo o princípio de ajuda mútua foi desenvolvido para evitar o sofrimento!
Shevek estava sentado na mesa, as longas pernas pendentes, o rosto intenso e calmo. – Vocês já viram alguém morrer? – perguntou aos outros. A maioria já tinha, num domicílio ou no trabalho voluntário num hospital. Todos, exceto um, já tinham ajudado uma ou duas vezes a enterrar os mortos.
– Houve o caso de um homem quando eu estava no acampamento no Sudeste. Foi a primeira vez que vi uma coisa assim. O motor do carro aéreo estava com algum defeito, ele despencou na decolagem e pegou fogo. O homem foi retirado com o corpo todo queimado. Viveu cerca de duas horas. Não poderia ter sido salvo; não havia motivo para ele viver tanto tempo, nenhuma justificativa para aquelas duas horas. Estávamos esperando que trouxessem anestésicos do litoral. Eu fiquei com ele, junto com duas garotas. Tínhamos abastecido a aeronave. Não havia um médico. Não era possível fazer nada por ele, a não ser ficar ali, ao seu lado. Ele estava em choque, mas consciente. Sentia uma dor terrível, principalmente nas mãos. Acho que ele não sabia que o resto do corpo estava todo carbonizado. Não se podia tocar nele para confortá-lo, a pele e a carne se desprenderiam ao toque, e ele gritaria. Não se podia fazer nada por ele. Não havia ajuda a oferecer. Talvez soubesse que estávamos ali, não sei. Nossa companhia não fez nenhum bem a ele. Não se podia fazer nada por ele. Então eu compreendi... sabem... eu compreendi que não se pode fazer nada por ninguém. Não podemos salvar uns aos outros. Nem a nós mesmos.
– Então o que sobra? Isolamento e desespero! Você está negando a fraternidade, Shevek! – exclamou a garota alta.
– Não... não estou. Estou tentando dizer o que a fraternidade significa realmente. Começa... começa com a dor compartilhada.
– Então onde ela termina?
– Não sei. Não sei ainda.
3
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Quando Shevek acordou, após dormir o tempo todo durante sua primeira manhã em Urras, seu nariz estava entupido, a garganta doía e ele tossia muito. Pensou estar resfriado – nem mesmo a higiene odoniana tinha superado o resfriado comum –, mas o médico que aguardava para examiná-lo, um homem idoso e distinto, achou mais provável que fosse uma febre do feno generalizada, uma reação alérgica à poeira e ao pólen alienígenas de Urras. Prescreveu comprimidos e uma injeção, que Shevek aceitou com paciência, e uma bandeja de almoço, que Shevek aceitou com fome. O médico pediu-lhe que permanecesse em seu apartamento e foi embora. Assim que terminou de comer, começou sua exploração de Urras, cômodo por cômodo.
A cama, uma cama imensa de quatro pés, com um colchão muito mais macio do que o do beliche na nave Atento, e roupas de cama complexas, algumas sedosas, outras quentes e grossas, e um monte de travesseiros que pareciam nuvens cúmulos, tinha um cômodo só para ela. O piso era coberto com um tapete macio; havia uma cômoda de madeira lindamente entalhada e polida, e um armário com espaço para as roupas de um dormitório de dez homens. Havia também o grande salão comum com lareira, que ele tinha visto na noite anterior; e um terceiro cômodo, que continha uma banheira, um lavatório e uma privada elaborada. Era evidente que este cômodo servia para seu uso pessoal exclusivo, pois a porta dava para o quarto e ele continha apenas um de cada tipo de instalação, embora cada uma delas fosse de um luxo sensual que ultrapassava em muito o mero erotismo e fazia parte, na visão de Shevek, de um tipo de suprema apoteose excrementícia. Ele passou quase uma hora nesse terceiro cômodo, explorando uma instalação por vez, ficando muito limpo nesse processo. A distribuição da água era maravilhosa. As torneiras permaneciam abertas até serem fechadas; a banheira devia comportar sessenta litros, e a privada utilizava pelo menos cinco litros na descarga. Na verdade, isso não surpreendia. A superfície de Urras continha cinco sextos de água. Até os desertos eram desertos de gelo, nos polos. Não havia necessidade de economia; não havia seca... Mas o que acontecia com as fezes? Ficou remoendo o assunto, ajoelhado ao lado da privada, após examinar o seu mecanismo. Deviam filtrar as fezes da água em uma usina de adubos. Havia comunidades litorâneas em Anarres que utilizavam esse sistema de aproveitamento de resíduos. Ele pretendia perguntar sobre isso, mas nunca teve oportunidade. Havia muitas perguntas que nunca chegou a fazer em Urras.
Apesar da cabeça constipada, sentia-se bem, e inquieto. Os cômodos eram tão quentes que ele protelou o ato de vestir-se, andando nu de lá para cá, com altivez. Foi até as janelas do salão e ficou olhando para fora. O salão era alto. Assustou-se, a princípio, e recuou, não acostumado a edifícios de mais de um andar; era como estar olhando para baixo num dirigível; sentia-se separado do solo, dominante, indiferente. As janelas davam para um bosque que ia até um edifício branco com uma graciosa torre quadrada. Além desse edifício, o campo descia num extenso vale. O vale era todo cultivado, pois as inúmeras manchas de verde que o coloriam eram retangulares. Até onde o verde desaparecia no azul distante, ainda se viam as linhas escuras de alamedas, cercas-vivas ou árvores, uma rede tão delicada como a do sistema nervoso de um corpo vivo. Por fim, colinas elevavam-se bordejando o vale, ondulação azul atrás de ondulação azul, suaves e escuras sob o cinza pálido e uniforme do céu.
Era a vista mais linda que Shevek já vira. A leveza e vitalidade das cores, a mistura do desenho retilíneo humano e dos potentes e fecundos contornos naturais, a variedade e harmonia dos elementos davam a impressão de uma plenitude complexa que ele jamais vira, exceto, talvez, prenunciada numa pequena escala em alguns rostos humanos serenos e pensativos.
Comparado àquilo, qualquer paisagem oferecida por Anarres, mesmo a Planície de Abbenay e as gargantas das Montanhas Ne Theras, era pobre: estéril, árida e incompleta. Os desertos do Sudoeste tinham uma beleza vasta, mas eram hostis, e imemoriais. Até mesmo onde os homens cultivavam a terra de Anarres com mais rigor, a paisagem era como um esboço grosseiro em giz amarelo, comparada àquela plena magnificência de vida, rica de passado e de estações por vir, inesgotável.
Era assim que o mundo devia ser, pensou Shevek.
E em algum lugar, lá fora naquele esplendor azul e verde, algo cantava: uma voz fraca, no alto, começando e parando, incrivelmente meiga e agradável. O que seria? Uma vozinha meiga, silvestre, uma música no ar.
Ficou escutando, e sua respiração prendeu-se na garganta.
Alguém bateu na porta.
– Entre! – disse Shevek.
Um homem entrou, carregando pacotes. Parou no meio da porta. Shevek atravessou a sala, dizendo o próprio nome, no estilo anarresti, e, no estilo urrasti, estendendo a mão.
O homem, de uns 50 anos, de rosto enrugado e cansado, não estendeu a mão, e disse algo do qual Shevek não entendeu uma palavra. Talvez os pacotes o impedissem, mas ele não fez esforço algum para colocá-los em outro lugar e deixar as mãos livres. Seu rosto estava extremamente sério. Era possível que estivesse constrangido.
Shevek, que pensava ter dominado pelo menos os costumes de saudação urrastis, ficou embaraçado.
– Entre – repetiu, e acrescentou, já que os urrastis usavam títulos honoríficos o tempo todo –, senhor!
O homem disparou mais um discurso ininteligível, enquanto movia-se de lado em direção ao quarto. Shevek pegou várias palavras ióticas desta vez, mas não compreendeu o resto. Deu passagem ao camarada, já que ele parecia querer entrar ali. Seria, talvez, um companheiro de quarto? Mas havia apenas uma cama. Shevek desistiu dele e voltou à janela, e o homem entrou a passos rápidos e ficou andando e fazendo ruídos lá dentro por alguns minutos. Exatamente no momento em que Shevek concluíra que o homem trabalhava à noite e usava o aposento durante o dia, um arranjo que se fazia em domicílios temporariamente lotados, ele saiu de novo. Disse algo como “Pronto, senhor” – talvez? – e inclinou a cabeça de um jeito curioso, como se achasse que Shevek, a cinco metros de distância, estivesse prestes a lhe desferir um tapa na cara. O homem foi embora. Shevek ficou parado ao lado das janelas, lentamente se dando conta de que, pela primeira vez na vida, alguém se curvara diante dele.
Entrou no quarto e descobriu que a cama tinha sido arrumada.
Pensativo, ele se vestiu devagar. Estava calçando os sapatos quando ouviu uma nova batida na porta.
Um grupo entrou, de maneira diferente; de maneira normal, pareceu a Shevek, como se tivessem o direito de estar ali, ou em qualquer lugar que quisessem. O homem com os pacotes hesitara, entrara quase de maneira furtiva. No entanto, seu rosto, suas mãos e sua roupa se aproximaram mais da noção que Shevek tinha da aparência de um ser humano normal do que a dos novos visitantes. O homem furtivo se comportara de modo estranho, mas parecia um anarresti. Aqueles quatro se comportavam como anarrestis, mas pareciam, com seus rostos barbeados e belos trajes, criaturas de uma espécie alienígena.
Shevek conseguiu identificar um deles, Pae, e os outros como homens que lhe tinham feito companhia na noite anterior. Ele explicou que não se lembrava do nome deles, e eles se apresentaram de novo: dr. Chifoilisk, dr. Oiie e dr. Atro.
– Ah, caramba! – disse Shevek. – Atro! Prazer em conhecê-lo! – Colocou as mãos nos ombros do idoso e beijou-lhe a bochecha, sem pensar se aquele cumprimento fraterno, comum em Anarres, pudesse ser inaceitável ali.
Atro, entretanto, retribuiu-lhe com um abraço caloroso e ergueu para ele os olhos cinzentos e embaciados. Shevek percebeu que o homem estava quase cego.
– Meu caro Shevek – ele disse. – Bem-vindo a A-Io... Bem-vindo a Urras... Bem-vindo ao lar!
– Há tantos anos nos escrevemos e destruímos as teorias um do outro!
– Você sempre destruiu melhor. Espere, tenho uma coisa para você aqui. – O idoso apalpou os bolsos. Sob o jaleco de veludo da universidade ele usava um paletó; sob este, um colete, sob este, uma camisa e, sob esta, provavelmente mais uma camada. Todos esses trajes, e as calças, continham bolsos. Shevek observava fascinado, enquanto Atro verificava seis ou sete bolsos, todos contendo pertences, antes de encontrar um pequeno cubo de metal amarelo encaixado num pedaço de madeira polida. – Aí está – ele disse, olhando o objeto com dificuldade. – Sua recompensa. O prêmio Seo Oen, você sabe. O dinheiro está na sua conta. Aqui. Com nove anos de atraso, mas antes tarde do que nunca. – Suas mãos tremiam enquanto entregava a coisa para Shevek.
Era pesado; o cubo amarelo era de ouro maciço. Shevek ficou parado, imóvel, segurando-o.
– Não sei você, meu jovem – disse Atro –, mas eu vou me sentar. – Todos se sentaram nas poltronas macias, que Shevek já examinara, intrigado com o material que as revestia, uma coisa marrom não tecida que parecia pele humana. – Quantos anos você tinha nove anos atrás, Shevek?
Atro era o mais eminente físico vivo de Urras. Havia nele não apenas a dignidade de muitas décadas vividas, mas também a segurança brusca de alguém acostumado ao respeito. Nada disso era novo para Shevek. Atro tinha o único tipo exato de autoridade que Shevek reconhecia. Também sentiu prazer ao ser enfim tratado simplesmente pelo nome.
– Eu tinha 29 anos quando terminei o Princípios, Atro.
– Vinte e nove? Meu Deus! Isso o torna o mais jovem a receber o prêmio Seo Oen em mais ou menos um século. Eu só consegui receber o meu depois dos 60... Então, quantos anos você tinha quando me escreveu pela primeira vez?
– Uns 20.
Atro bufou.
– Na época achei que você fosse um homem de 40 anos!
– E Sabul? – Oiie perguntou. Oiie era ainda mais baixo em relação à maioria dos urrastis, que a Shevek pareciam todos baixos; tinha um rosto achatado e afável, e os olhos ovais muito pretos. – Houve um período de seis ou oito anos em que o senhor nunca escreveu, e Sabul manteve contato conosco; mas ele nunca usou o mesmo link de rádio que o senhor. Já nos perguntamos que tipo de relação vocês teriam.
– Sabul é o membro mais graduado do Instituto de Física de Abbenay – disse Shevek. – Eu trabalhava com ele.
– Um rival mais velho; ciumento; mexia nos seus livros; já está claro o suficiente. Nem precisamos de uma explicação, Oiie – disse o quarto homem, Chifoilisk, num tom áspero. Era um homem de meia-idade, moreno e atarracado, com as mãos finas de um trabalhador de gabinete. Era o único entre eles cujo rosto não era totalmente barbeado: tinha deixado alguns pelos eriçados no queixo para combinar com o cabelo curto e cinza. – Não precisa fingir que todos os irmãos odonianos são cheios de amor fraterno – ele disse. – Natureza humana é natureza humana.
Uma saraivada de espirros de Shevek evitou que sua falta de reação parecesse significativa.
– Não tenho lenço – desculpou-se, enxugando os olhos.
– Pegue o meu – disse Atro, tirando um lenço branquíssimo de um dos inúmeros bolsos. Enquanto Shevek pegava o lenço, uma lembrança inoportuna apertou seu coração. Pensou em sua filha Sadik, uma garotinha de olhos escuros, dizendo: “Pode compartilhar o lenço que eu uso”. Essa lembrança, que lhe era tão cara, foi insuportavelmente dolorosa naquele momento. Tentando fugir dela, sorriu ao acaso e disse:
– Sou alérgico ao planeta de vocês. É o que diz o médico.
– Meu Deus, você não vai ficar espirrando assim o tempo todo, vai? – perguntou o velho Atro, examinando seu rosto.
– O seu homem não veio ainda? – perguntou Pae.
– Meu homem?
– O criado. Era para ele ter lhe trazido algumas coisas. Inclusive lenços. Apenas o suficiente para supri-lo enquanto você não puder fazer as próprias compras. Nada selecionado... Receio que haja poucas opções de roupas prontas para um homem da sua altura!
Após Shevek ter compreendido tudo (Pae tinha uma fala arrastada que combinava com seus traços bonitos e delicados), disse:
– É muita gentileza de vocês. Eu me sinto... – Olhou para Atro. – Eu sou, vocês sabem, o Mendigo – disse ao velho, como tinha dito ao dr. Kimoe na nave Atento. – Não pude trazer dinheiro. Não o utilizamos. Não pude trazer presentes, não usamos nada que falte a vocês. Então, venho como um verdadeiro odoniano, “de mãos vazias”.
Atro e Pae lhe asseguraram que ele era um hóspede, não precisava pagar nada, o privilégio era deles.
– Além do mais – disse Chifoilisk, num tom irônico –, é o governo iota que está bancando tudo.
Pae lançou-lhe um olhar severo, mas Chifoilisk não o retribuiu. Em vez disso, olhou Shevek direto nos olhos. Havia em seu rosto moreno uma expressão que ele não fez esforço para esconder, mas que Shevek não conseguiu interpretar: advertência ou cumplicidade?
– Falou o thuviano incorrigível – disse Atro, bufando. – Mas quer dizer, Shevek, que você não trouxe absolutamente nada, nenhum estudo, nenhum trabalho novo? Eu estava ansioso por um livro. Mais uma revolução na física. Para ver esses jovens arrogantes ficarem abismados, como eu fiquei com os Princípios. No que você tem trabalhado?
– Bem, tenho lido Pae... O estudo do dr. Pae sobre o universo homogêneo, sobre o Paradoxo e a Relatividade.
– Tudo muito bem. Saio é a nossa grande estrela atual, sem dúvida. E quem menos duvida é você próprio, hein, Saio? Mas o que isso tem a ver com nosso assunto? Onde está a sua Teoria Temporal Geral?
– Na minha cabeça – disse Shevek, com um sorriso largo e simpático.
Houve uma breve pausa.
Oiie perguntou-lhe se ele tinha visto o trabalho sobre a Teoria da Relatividade de um físico alienígena, Ainsetain, do planeta Terran. Shevek disse que não. Eles estavam intensamente interessados nesse trabalho, exceto Atro, que já ultrapassara a intensidade. Pae correu até seu quarto e pegou uma cópia da tradução para Shevek.
– O trabalho tem centenas de anos, mas há algumas ideias novas nele para nós – ele disse.
– Talvez – disse Atro –, mas nenhum desses fora-do-mundo consegue acompanhar a nossa física. Os hainianos a chamam de materialismo, e os terranos a chamam de misticismo, e ambos acabam desistindo. Não deixe essa euforia passageira por tudo o que é estrangeiro desviá-lo do rumo, Shevek. Eles não têm nada a nos oferecer. Plante suas próprias sementes, como dizia meu pai. – Deu sua bufada senil e levantou-se, alavancando-se para fora da poltrona. – Venha comigo, vamos lá fora dar uma volta no bosque. Não é à toa que você está constipado, engaiolado desse jeito aqui.
– O médico disse para eu ficar aqui dentro do quarto por três dias. Posso ser... infectado? Infeccioso?
– Nunca dê atenção ao que os médicos dizem, meu caro amigo.
– Mas talvez, neste caso, ele deva, dr. Atro – sugeriu Pae, em seu tom calmo e conciliador.
– Afinal, o médico é do governo, não é? – observou Chifoilisk, com evidente malícia.
– O melhor homem que puderam encontrar, tenho certeza – Atro disse, sem achar graça, e foi embora sem insistir mais com Shevek. Chifoilisk o acompanhou. Os dois homens mais jovens permaneceram ali, conversando sobre física, por um longo tempo.
Com imenso prazer, e com aquela mesma sensação de reconhecimento, de encontrar algo do jeito que deveria ser, Shevek descobriu pela primeira vez na vida a conversa entre iguais.
Mitis, embora fosse uma professora esplêndida, jamais conseguira acompanhá-lo nas novas áreas de teoria que ele, incentivado por ela, tinha começado a explorar. Gvarab foi a única pessoa que encontrara com conhecimento e capacidade comparáveis aos dele, mas ele e Gvarab se conheceram tarde demais, quando ela já estava no fim da vida. Desde aqueles tempos, Shevek trabalhara com muitas pessoas de talento, mas, por nunca ter sido membro efetivo do Instituto de Abbenay, não conseguiu levá-las longe o bastante; permaneceram atoladas nos velhos problemas, na clássica Física Sequência. Ele não tivera iguais. Ali, no reino da iniquidade, enfim os encontrara.
Foi uma revelação, uma liberação. Físicos, matemáticos, astrônomos, lógicos, biólogos, estavam todos ali na universidade e vinham até ele, ou ele ia até eles, e conversavam, e novos mundos nasciam de suas conversas. É da natureza da ideia ser comunicada: escrita, falada, realizada. A ideia é como a grama. Anseia pela luz, gosta de multidões, prolifera por cruzamento, cresce melhor para ser pisada.
Mesmo naquela primeira tarde na universidade, com Oiie e Pae, sabia que encontrara algo que desejara desde que, ainda garotos e num nível infantil, ele, Tirin e Bedap passavam metade da noite conversando, provocando e desafiando uns aos outros em voos mentais cada vez mais audaciosos. Recordava-se vividamente de uma dessas noites. Ele viu Tirin dizendo: “Se soubéssemos como Urras é de verdade, talvez alguns de nós quiséssemos ir até lá”. E ele ficara tão chocado com a ideia que pulara em cima de Tirin, e Tir logo recuara, pobre alma condenada, e estivera certo o tempo todo.
A conversa cessara. Pae e Oiie estavam calados.
– Desculpem – ele disse. – A cabeça está pesada.
– Como está a gravidade? – Pae perguntou, com o sorriso charmoso de um homem que, como uma criança esperta, conta com o próprio charme.
– Não percebo – respondeu Shevek. – Só nos... o que é isso?
– Joelhos... articulações dos joelhos.
– Sim, joelhos. A função está prejudicada. Mas vou me acostumar. – Olhou para Pae e depois para Oiie. – Tenho uma pergunta. Mas não quero ser ofensivo.
– Nunca tenha receio disso, senhor! – disse Pae.
– Não tenho certeza se o senhor saberia como nos ofender – disse Oiie. Ele não era um camarada simpático, como Pae. Mesmo conversando sobre física, tinha um estilo evasivo e reservado. No entanto, Shevek sentiu que, sob esse estilo, havia algo para confiar; enquanto que, sob o charme de Pae, o que havia? Bem, não importava. Ele tinha de confiar em todos, e confiaria.
– Onde estão as mulheres?
Pae riu. Oiie sorriu e perguntou:
– Em que sentido?
– Todos os sentidos. Conheci mulheres na festa ontem à noite... cinco, dez... e centenas de homens. Nenhuma delas era cientista, eu acho. Quem eram elas?
– Esposas. Na verdade, uma delas era a minha esposa – disse Oiie, com seu sorriso reservado.
– Onde estão as outras mulheres?
– Ah, não há dificuldade nenhuma quanto a isso, senhor – disse Pae, prontamente. – Só nos diga quais são as suas preferências, e nada seria mais fácil de providenciar.
– Ouvem-se muitas especulações pitorescas sobre os costumes anarrestis, mas acho que conseguimos encontrar qualquer coisa que o senhor tenha em mente – disse Oiie.
Shevek não fazia ideia do que eles estavam falando. Coçou a cabeça:
– Então todos os cientistas daqui são homens?
– Cientistas? – perguntou Oiie, incrédulo.
– Cientistas. – Pae tossiu. – Ah, sim, certo, são todos homens. Existem algumas professoras nas escolas femininas, claro. Mas nunca ultrapassam o nível do Certificado.
– Por que não?
– Não conseguem entender matemática; não têm cabeça para pensamento abstrato; não pertencem ao meio científico. Sabe como é, o que as mulheres chamam de pensamento é feito com o útero! É claro que sempre existem algumas exceções, mulheres inteligentes e detestáveis, com atrofia vaginal.
– Vocês odonianos deixam as mulheres estudarem ciência? – indagou Oiie.
– Bem, elas estão nas ciências, sim.
– Não muitas, espero.
– Bem, cerca da metade.
– Eu sempre digo – disse Pae – que as moças técnicas devidamente orientadas poderiam aliviar boa parte da carga dos homens nos laboratórios. Na verdade, elas são até mais hábeis e rápidas do que os homens em tarefas repetitivas, e mais dóceis... se entediam com menos facilidade. Poderíamos liberar os homens para o trabalho criativo muito mais cedo, se utilizássemos mulheres.
– No meu laboratório, não – disse Oiie. – Deixem que fiquem no lugar delas.
– O senhor encontrou mulheres capazes de trabalho intelectual criativo, dr. Shevek?
– Bem, na verdade foram elas que me encontraram. Mitis, no Poente Norte, era minha professora. Gvarab também; acho que já ouviram falar nela.
– Gvarab era mulher? – perguntou Pae, com surpresa genuína, e riu.
Oiie pareceu não convencido e ofendido.
– Não dá para saber pelos nomes de vocês, é claro – disse friamente. – Vocês fazem questão, suponho, de não fazer distinção entre os sexos.
– Odo era mulher – disse Shevek calmamente.
– Pois é – disse Oiie. Ele não deu de ombros, mas por um triz não deu de ombros. Pae pareceu respeitoso e assentiu com um movimento da cabeça, do mesmo modo que fazia quando o velho Atro balbuciava.
Shevek percebeu que tocara numa animosidade impessoal muito profunda dentro daqueles homens. Aparentemente havia neles, como nas mesas da espaçonave, uma mulher, uma mulher reprimida, silenciada, bestializada, uma fúria enjaulada. Ele não tinha o direito de provocá-los. Eles só conheciam as relações de posse. Estavam possuídos.
– Uma mulher linda e virtuosa – disse Pae – é uma inspiração para nós... a coisa mais preciosa do mundo.
Shevek sentiu-se extremamente desconfortável. Levantou-se e foi até as janelas.
– Seu mundo é muito bonito – ele disse. – Gostaria de poder conhecer mais. Enquanto eu tiver que ficar aqui dentro, vocês podem me trazer livros?
– Claro, senhor! Que tipo de livro?
– História, fotos, contos, qualquer coisa. Talvez livros infantis. Vocês entendem, eu sei muito pouco. Estudamos sobre Urras, mas principalmente sobre a época de Odo. Antes disso são 8 500 anos de história! E depois, desde a Colonização de Anarres, já se passaram cento e cinquenta anos; desde que a última nave trouxe os últimos Colonos... ignorância. Nós os ignoramos; vocês nos ignoram. Vocês são nossa história. Nós somos talvez seu futuro. Quero aprender, não ignorar. Foi por isso que vim. Devemos nos conhecer. Não somos homens primitivos. Nossa moralidade não é mais tribal, não pode ser. Essa ignorância é errada, da qual surgirão erros. Por isso vim aprender.
Ele falou com muita honestidade. Pae assentiu com entusiasmo.
– Exatamente, senhor! Todos nós estamos de pleno acordo com seus objetivos!
Oiie olhou para ele com aqueles olhos pretos, opacos, ovais, e disse:
– Então o senhor vem, basicamente, como um emissário de sua sociedade?
Shevek voltou a sentar-se no banco de mármore ao lado da lareira, que ele já considerava o seu banco, seu território. Ele queria um território. Sentiu a necessidade de cautela. Mas sentia com mais força a necessidade que o fizera atravessar o abismo seco do seu planeta até ali, a necessidade de comunicação, o desejo de derrubar muros.
– Venho – ele disse, com cautela – como representante do Sindicato da Iniciativa, o grupo que tem conversado com Urras pelo rádio nos últimos dois anos. Mas não sou embaixador de nenhuma autoridade, nenhuma instituição. Espero que não tenham me convidado como tal.
– Não – disse Oiie. – Nós convidamos o senhor... Shevek, o físico. Com a aprovação do nosso governo e do Conselho dos Governos Mundiais, é claro. Mas o senhor está aqui como convidado particular da Universidade de Ieu Eun.
– Ótimo.
– Mas não temos certeza se o senhor veio ou não com a aprovação do... – ele hesitou.
Shevek deu um meio sorriso.
– Do meu governo?
– Sabemos que, nominalmente, não existe governo em Anarres. Entretanto, é óbvio que existe uma administração. E supomos que o grupo que o enviou, seu Sindicato, seja uma espécie de facção; talvez uma facção revolucionária.
– Todo mundo em Anarres é revolucionário, Oiie... A rede de administração e gerenciamento chama-se CPD, Coordenação de Produção e Distribuição. Eles são um sistema de coordenação de todos os sindicatos, federações e indivíduos que realizam trabalho produtivo. Eles não governam as pessoas; administram produção. Não têm nenhuma autoridade sobre mim, para me apoiar ou me impedir. Só podem nos dizer a opinião pública sobre nós... onde nos situamos na consciência social. É isso o que vocês querem saber? Bem, meus amigos e eu somos muito desaprovados. A maioria das pessoas de Anarres não quer aprender sobre Urras. Eles temem o seu mundo e não querem nenhum contato com os proprietários. Desculpe se estou sendo mal-educado! Acontece o mesmo aqui, com algumas pessoas, não é? O desprezo, o medo, o tribalismo. Bem, então eu vim para começar a mudar isso.
– Inteiramente por sua própria iniciativa – disse Oiie.
– É a única iniciativa que reconheço – disse Shevek, sorrindo com absoluta honestidade.
Passou os dois dias seguintes conversando com os cientistas que vieram vê-lo, lendo os livros que Pae lhe trouxera e às vezes apenas em pé, parado ao lado das janelas de arco duplo, para contemplar a chegada do verão no grande vale e para ouvir as breves e delicadas conversas soltas no ar lá fora. Pássaros: sabia o nome dos cantores agora e conhecia sua aparência pelas fotografias nos livros, mas sempre que ouvia o canto ou percebia o bater de asas de uma árvore a outra, ficava maravilhado como uma criança.
Tinha esperado sentir-se tão estranho, ali em Urras, tão perdido, alienígena e confuso – e não sentia nada disso. É claro que havia infinitas coisas que não compreendia. Só agora começava a vislumbrar quantas eram essas coisas: aquela sociedade incrivelmente complexa com todas as suas nações, classes, castas, cultos, costumes e sua história magnífica, estarrecedora, interminável. E cada indivíduo que conhecia era um enigma, cheio de surpresas. Mas não eram os egoístas grosseiros e frios que esperava encontrar; eram tão complexos e diversificados quanto a sua cultura, quanto a sua paisagem; e eram inteligentes; e eram gentis. Tratavam-no como um irmão, faziam tudo o que podiam para que ele não se sentisse perdido, não se sentisse um alienígena, para que se sentisse em casa. E, de fato, ele se sentia em casa. Não podia evitá-lo. O planeta inteiro, a suavidade do ar, a luz do sol nas colinas, até mesmo o puxão da gravidade mais pesado em seu corpo lhe asseguravam que ali era, na verdade, a sua casa, o planeta de sua raça; e toda a beleza daquele mundo era sua por herança.
O silêncio, o absoluto silêncio de Anarres: pensava nele à noite. Nenhum pássaro cantava lá. Não havia outras vozes senão vozes humanas. Silêncio, e as terras áridas.
No terceiro dia o velho Atro lhe trouxe uma pilha de jornais. Pae, companhia frequente de Shevek, não disse nada a Atro, mas, quando o velho saiu, disse a Shevek:
– Esses jornais são um lixo, senhor. Divertidos, mas não acredite em nada do que ler neles.
Shevek pegou o primeiro jornal da pilha. Era mal impresso, num papel áspero – o primeiro artefato malfeito que manuseava em Urras. Na verdade, parecia os boletins e relatórios regionais do CPD que serviam de jornais em Anarres, mas o estilo era bem diferente daquelas publicações borradas, práticas e factuais. Era cheio de pontos de exclamação e fotos. Havia uma foto de Shevek em frente à espaçonave, com Pae segurando seu braço e parecendo zangado. PRIMEIRO HOMEM DA LUA!, diziam as letras enormes acima da foto. Fascinado, Shevek continuou a ler.
Seu primeiro passo em Urras! Primeiro visitante da Colônia de Anarres em cento e setenta anos, o dr. Shevek foi fotografado ontem durante a sua chegada a bordo do cargueiro lunar regular que opera no Porto Espacial Peier. O ilustre cientista, ganhador do Prêmio Seo Oen por seus serviços a todas as nações através da ciência, aceitou uma cátedra na Universidade de Ieu Eun, uma honra jamais concedida antes a um fora-do-mundo. Indagado sobre como se sentiu ao ver Urras pela primeira vez, o ilustre cientista respondeu: “É uma grande honra ser convidado a visitar seu lindo planeta. Espero que uma nova era de amizade de todos os cetianos esteja começando agora, em que os planetas gêmeos seguirão juntos em fraternidade”.
– Mas eu nunca disse nada! – Shevek protestou para Pae.
– Claro que não. Não deixamos essa gente chegar perto do senhor. Mas isso não restringe a imaginação de um jornalista alpiste! Eles escrevem que alguém disse o que eles querem que se diga, não importa se aquilo foi dito ou não.
Shevek ficou pensativo.
– Bem – ele disse, enfim –, se eu tivesse dito alguma coisa, teria sido aquilo mesmo. Mas o que significa cetianos?
– Os terranos nos chamam de cetianos. Creio que seja por causa do nome que eles dão ao nosso sol. A imprensa popular tem usado o termo ultimamente, essa palavra está meio que na moda.
– Então, todos os cetianos significa Urras e Anarres juntos?
– Suponho que sim – disse Pae, com nítido desinteresse.
Shevek continuou a ler os jornais. Leu que ele era um homem gigantesco, que não estava barbeado e possuía uma “juba”, seja lá o que isso fosse, de cabelo grisalho, que tinha 37 anos, 43 e 56; que escrevera um excelente trabalho chamado (a grafia dependia do jornal) Principais da Simultaneidade ou Princípios da Simutanidade, que era um embaixador benevolente do governo odoniano, que era vegetariano e que, como todo anarresti, não bebia. Neste ponto caiu na gargalhada e riu até lhe doerem as costelas.
– Caramba! Eles realmente têm imaginação! Acham que vivemos de vapor d’água, como o musgo de rocha?
– Eles querem dizer que o senhor não bebe bebida alcoólica – disse Pae, também rindo. – Se há uma coisa que todo mundo sabe sobre os odonianos, suponho, é que vocês não bebem álcool. Aliás, isso é verdade?
– Algumas pessoas destilam álcool de raiz de holum fermentada para beber. Dizem que libera o inconsciente, como no treinamento das ondas cerebrais. A maioria prefere o treinamento. É muito fácil e não causa a doença. Isso é comum aqui?
– Beber, sim. Não sei essa doença. Como se chama?
– Alcoolismo, eu acho.
– Ah, sei... Mas o que os trabalhadores fazem em Anarres para terem um pouco de diversão, para escaparem juntos das aflições do mundo por uma noite?
Shevek ficou confuso.
– Bem, nós... Não sei. Talvez nossas aflições sejam inescapáveis?
– Excêntrico – disse Oiie, dando um sorriso afável.
Shevek prosseguiu a leitura. Um dos jornais estava numa língua que ele não conhecia, e outro num alfabeto totalmente diferente. Um era de Thu, explicou Pae, e o outro de Benbili, uma nação do hemisfério ocidental. O jornal de Thu era bem impresso e sóbrio no formato; Pae explicou que era uma publicação governamental.
– Aqui em A-Io, sabe, as pessoas cultas obtêm as notícias no telefax, no rádio, na televisão e nos semanários. Esses jornais são lidos quase exclusivamente pelas classes inferiores... e são escritos por semiletrados, como o senhor pode ver. Temos total liberdade de imprensa em A-Io, o que significa, inevitavelmente, que temos muito lixo. O jornal thuviano é muito mais bem escrito, mas relata apenas os fatos que o Comitê Central Thuviano quer ver relatados. A censura é absoluta em Thu. O Estado é tudo, e tudo é pelo Estado. Dificilmente o lugar para um odoniano, hein, senhor.
– E este jornal?
– Não faço a menor ideia. Benbili é um país do tipo retrógrado. Sempre tendo revoluções.
– Um grupo de pessoas de Benbili nos enviou uma mensagem pelo comprimento de onda do Sindicato, pouco antes de eu partir de Abbenay. Chamavam a si mesmos de odonianos. Existem esses grupos aqui em A-Io?
– Não, nunca ouvi falar, dr. Shevek.
O muro. Shevek, àquela altura, reconhecia o muro quando deparava com ele. O muro era o charme, a cortesia e a indiferença daquele jovem.
– Acho que você tem medo de mim, Pae – ele disse, de modo abrupto, mas cordial.
– Medo do senhor?
– Porque sou, pela minha própria existência, uma contestação da necessidade do Estado. Mas o que há para temer? Não vou lhe fazer mal, Saio Pae, você sabe. Sou totalmente inofensivo... Escute, não sou doutor. Não usamos títulos. Eu me chamo Shevek.
– Eu sei, desculpe, senhor. Em nossos termos parece desrespeitoso, entende? Não parece certo. – Ele se desculpou de maneira cativante, esperando perdão.
– Você não consegue me reconhecer como um igual? – Shevek perguntou, observando-o sem perdão nem raiva.
Pae, pela primeira vez, ficou constrangido.
– Mas o senhor é, realmente, o senhor sabe, um homem importante...
– Não há motivos para você mudar seus hábitos por minha causa – disse Shevek. – Não importa. Achei que você ficaria contente em se livrar do desnecessário, apenas isso.
Três dias de confinamento deixaram Shevek carregado de energia excedente, e quando foi liberado exauriu seus acompanhantes com a ânsia em ver tudo de uma vez. Levaram-no à universidade, uma cidade em si, 16 mil estudantes e o corpo docente. Com seus dormitórios, refeitórios, teatros, salas de reunião e por aí afora, não era muito diferente da comunidade odoniana, exceto por ser muito antiga, ser exclusivamente masculina, ser incrivelmente luxuosa e por não ter uma organização federativa, mas hierárquica, de cima para baixo. Mesmo assim, pensou Shevek, tinha a atmosfera de uma comunidade. Ele tinha de lembrar a si mesmo das diferenças.
Levaram-no a um passeio no campo em carros alugados, máquinas esplêndidas de uma elegância bizarra. Não havia muitos deles nas estradas: o aluguel era caro, e poucas pessoas possuíam carros particulares, pois os impostos eram pesados. Todos esses luxos, que, se permitidos livremente ao público tenderiam a drenar recursos naturais insubstituíveis ou sujar o ambiente com refugos, eram rigorosamente controlados por regulação ou taxação. Seus guias alongaram-se no assunto, com certo orgulho. A-Io guiara o mundo por séculos, disseram, em matéria de controle ecológico e economia de recursos naturais. Os excessos do Nono Milênio há muito eram uma página virada da história, e seu único efeito duradouro era a escassez de certos metais, que, felizmente, podiam ser importados da Lua.
Viajando de carro ou de trem, ele viu aldeias, fazendas, cidades; fortalezas dos dias feudais; ruínas das torres da antiga capital de um império de 4 400 anos. Viu as terras cultivadas, os lagos e as colinas da Província de Avan, o coração de A-Io, e no horizonte setentrional os picos da Cordilheira Meitei, brancos, gigantescos. A beleza da terra e o bem-estar do povo permaneciam uma eterna maravilha para ele. Os guias estavam certos: os urrastis sabiam usar o planeta. Quando criança, ensinaram-no que Urras era uma massa podre de desigualdade, iniquidade e desperdício. Mas todas as pessoas que conhecia, todas as pessoas que via, mesmo na menor aldeia do interior, estavam bem-vestidas, bem alimentadas e, contrariando suas expectativas, eram trabalhadoras. Não ficavam à toa, aguardando ordens para fazer as coisas. Assim como os anarrestis, estavam simplesmente ocupadas fazendo as coisas. Isso o espantou. Tinha presumido que, se se retirasse o incentivo natural do ser humano de trabalhar – sua iniciativa, sua energia criativa espontânea – e se substituísse por motivação e coerção externas, ele se tornaria um trabalhador preguiçoso e negligente. Mas nenhum trabalhador negligente manteria aquelas agradáveis terras cultivadas, ou fabricaria os soberbos carros e os confortáveis trens. A atração e a compulsão pelo lucro era, evidentemente, um substituto muito mais efetivo à iniciativa natural do que o tinham levado a crer.
Teria gostado de conversar com algumas daquelas pessoas de aparência robusta e respeitável que viu nas pequenas cidades, para lhes perguntar, por exemplo, se elas se consideravam pobres; pois, se aqueles fossem os pobres, ele teria de revisar seu conceito da palavra. Mas nunca parecia haver tempo, com tudo o que os guias queriam que ele visse.
As outras grandes cidades de A-Io eram muito distantes para se visitar em apenas um dia de passeio, mas levaram-no com frequência a Nio Esseia, a cinquenta quilômetros da universidade. Uma série de recepções foi realizada ali em sua homenagem. Ele não as apreciava muito, pois de modo algum correspondiam à concepção que ele fazia de uma festa. Todos eram muito educados e conversavam bastante, mas sobre nada interessante; e sorriam tanto que pareciam ansiosos. Mas suas roupas eram lindas; de fato, pareciam colocar a frivolidade que faltava às suas maneiras em suas roupas, sua comida, em todas as coisas diferentes que bebiam, e nos opulentos móveis e ornamentos pelos salões dos palácios onde se realizavam as recepções.
Mostraram-lhe os marcos de Nio Esseia: uma cidade de 5 milhões de habitantes – um quarto da população inteira de Anarres. Levaram-no à Praça do Capitólio e mostraram-lhe as altas portas de bronze do Diretório, sede do governo de A-Io; permitiram-lhe acompanhar um debate no Senado e uma reunião de um Comitê dos Diretores. Levaram-no ao zoológico, ao Museu Nacional, ao Museu da Ciência e da Indústria. Levaram-no a uma escola, onde crianças graciosas de uniformes azuis e brancos cantaram o hino nacional de A-Io para ele. Levaram-no para visitar uma fábrica de componentes eletrônicos, uma usina siderúrgica totalmente automatizada e uma usina de fusão nuclear, para que ele visse a eficiência com que a economia proprietária operava o suprimento de energia e manufatura. Levaram-no a um novo conjunto habitacional feito pelo governo, para que ele visse como o Estado cuidava do povo. Levaram-no a um passeio de barco pelo Estuário de Sua, lotado de navios oriundos de todas as partes do planeta. Levaram-no às Supremas Cortes de Justiça, e ele passou um dia inteiro ouvindo casos civis e criminais sendo julgados, uma experiência que o deixou desnorteado e estarrecido; mas insistiram que ele deveria ver o que havia para ser visto e ser levado aonde quer que desejasse ir. Quando ele perguntou, com certo retraimento, se poderia ver o lugar onde Odo estava enterrada, eles o conduziram direto para o antigo cemitério no bairro Trans-Sua. Até autorizaram que os jornalistas dos jornais infames o fotografassem lá, parado à sombra dos grandes e antigos salgueiros, olhando o túmulo simples e bem cuidado:
Laia Asieo Odo
698-769
Ser todo é ser parte;
a verdadeira viagem é o retorno.
Levaram-no a Rodarred, sede do Conselho dos Governos Mundiais, para discursar ao plenário daquela instituição. Esperava conhecer ou pelo menos ver alienígenas ali, os embaixadores de Terran ou de Hain, mas o planejamento rígido da agenda de eventos não lhe permitiu. Preparara meticulosamente seu discurso, um apelo à livre comunicação e reconhecimento mútuo entre o Novo e o Velho Mundo. O discurso foi recebido com uma ovação de dez minutos. Os semanários respeitáveis comentaram-no com aprovação, chamando-o de “um desinteressado gesto moral de fraternidade por um grande cientista”, mas não citaram nenhuma passagem dele, nem os jornais populares. Na verdade, apesar da ovação, Shevek teve a sensação esquisita de que ninguém o escutara.
Concederam-lhe muitos privilégios e acessos livres: aos Laboratórios de Pesquisa da Luz, aos Arquivos Nacionais, aos Laboratórios de Tecnologia Nuclear, à Biblioteca Nacional em Nio, ao Acelerador em Meafed, à Fundação de Pesquisa Espacial em Drio. Embora tudo o que visse em Urras o fizesse querer ver mais, ainda assim, várias semanas de turismo bastavam: era tudo tão fascinante, surpreendente e maravilhoso que, no fim, tornou-se opressivo. Queria estabilizar-se na universidade, trabalhar e refletir sobre tudo por um tempo. Mas, como último dia de passeio, pediu para visitar a Fundação de Pesquisa Espacial. Pae ficou muito satisfeito quando ele fez esse pedido.
Muito do que vira recentemente causou-lhe assombro por ser muito antigo, ter séculos de idade, até milênios. A Fundação, ao contrário, era nova: construída nos últimos dez anos, no estilo opulento e elegante da época. A arquitetura era dramática. Grandes massas de cor foram utilizadas. Alturas e distâncias eram exageradas. Os laboratórios eram espaçosos e arejados, as fábricas anexas e as oficinas mecânicas ficavam protegidas atrás de esplêndidos pórticos de arcos e colunas em estilo neo-saetano. Os hangares eram imensas cúpulas multicoloridas, translúcidas e fantásticas. Os homens que trabalhavam ali, em contraste, eram muito calmos e sérios. Afastaram Shevek de seus acompanhantes e mostraram-lhe toda a Fundação, inclusive cada estágio do sistema de propulsão estelar experimental em que estavam trabalhando, desde os computadores e as pranchetas de desenho até uma nave semiacabada, enorme e surreal à luz laranja, violeta e amarela dentro do vasto hangar geodésico.
– Vocês têm tanta coisa – Shevek disse ao engenheiro que se encarregara dele, um homem chamado Oegeo. – Têm tanto em que trabalhar e trabalham tão bem. Isso é magnífico... a coordenação, a cooperação, a grandiosidade da empreitada.
– Vocês não poderiam tocar nenhum projeto nessa escala de onde o senhor vem, não é? – disse o engenheiro, com um meio sorriso.
– Naves espaciais? Nossa frota espacial são as naves que levaram os Colonos de Urras... construídas aqui em Urras... há quase dois séculos. A construção de um simples navio para transporte de grãos, de uma barcaça, exige um ano de planejamento e um grande esforço de nossa economia.
Oegeo assentiu com um movimento da cabeça.
– Bem, é verdade que temos os produtos. Mas, sabe, o senhor é quem pode nos dizer quando descartar esse trabalho todo... jogá-lo fora.
– Jogá-lo fora? Como assim?
– Viagem mais rápida que a luz – disse Oegeo. – Salto temporal. A velha física diz que não é possível. Os terranos dizem que não é possível. Mas os hainianos, que afinal de contas inventaram a propulsão que utilizamos hoje, dizem que é possível, só que não sabem como fazer, pois estão aprendendo Física Temporal conosco. É evidente que, se a solução está no bolso de alguém nos mundos conhecidos, dr. Shevek, é no seu.
Shevek olhou para ele com distanciamento, os olhos claros, firmes e luminosos.
– Sou um teórico, Oegeo, não projetista.
– Se o senhor nos fornecer a teoria, a unificação da Sequência e da Simultaneidade num campo geral de Teoria Temporal, nós projetaremos as naves. E chegaremos a Terran, ou Hain, ou a outra galáxia no mesmo instante em que partirmos de Urras! Aquele tubo – e direcionou os olhos para o assombroso esqueleto da nave semiconstruída sob os feixes de luz violeta e laranja do hangar – será tão ultrapassado quanto um carro de boi.
– Vocês sonham como constroem: de modo soberbo – disse Shevek, ainda retraído e austero. Havia muito mais coisas que Oegeo e os outros queriam lhe mostrar e discutir com ele, mas ele não demorou a dizer, com a simplicidade que excluía qualquer intenção de ironia: – Acho que é melhor vocês me levarem de volta aos meus protetores.
Assim fizeram; despediram-se com mútua cordialidade. Shevek entrou no carro, mas logo saiu de novo.
– Eu estava esquecendo – disse. – Temos tempo de ver mais uma coisa em Drio?
– Não há mais nada em Drio – disse Pae, educado como sempre e tentando ocultar o aborrecimento por conta da escapada de cinco horas de Shevek entre os engenheiros.
– Gostaria de ver o forte.
– Que forte, senhor?
– Um antigo castelo da época dos reis. Foi usado depois como prisão.
– Qualquer coisa assim teria sido demolida. A Fundação reconstruiu a cidade inteira.
Quando estavam dentro do carro e o motorista estava fechando a porta, Chifoilisk (outra provável causa do mau humor de Pae) perguntou:
– Por que queria ver mais um castelo, Shevek? Pensei que já tivesse visto velhas ruínas o suficiente por um bom tempo.
– O forte em Drio foi onde Odo passou nove anos – respondeu Shevek. Seu rosto estava severo, como estivera desde que conversou com Oegeo. – Após a Insurreição de 747. Foi lá que ela escreveu as Cartas do Cárcere e a Analogia.
– Receio que tenha sido demolido – Pae disse, solidário. – Drio era uma espécie de cidade moribunda, e a Fundação simplesmente limpou tudo e começou do nada.
Shevek assentiu com um movimento da cabeça. Mas enquanto o carro percorria uma estrada à beira de um rio em direção à saída para Ieu Eun, passou por um penhasco na curva do rio Seisse, e sobre o penhasco havia uma construção, pesada, em ruínas, implacável, com torres quebradas de pedra preta. Nada poderia ser menos semelhante às belas e alegres construções da Fundação de Pesquisa Espacial, as cúpulas espetaculares, as fábricas iluminadas, os gramados e caminhos bem cuidados. Nada poderia ter feito tudo isso parecer tanto pedaços de papel colorido.
– Acredito que aquilo seja o forte – comentou Chifoilisk, com a habitual satisfação em fazer comentários sem tato quando são menos desejados.
– Totalmente em ruínas – disse Pae. – Deve estar vazio.
– Quer parar e dar uma olhada, Shevek? – perguntou Chifoilisk, pronto para bater no vidro do motorista.
– Não – respondeu Shevek.
Tinha visto o que queria ver. Ainda havia um forte em Drio. Não precisava entrar nele e procurar pelos corredores em ruínas a cela onde Odo passara nove anos. Sabia como era uma cela de prisão.
Ergueu os olhos, o rosto ainda severo e impassível, para as paredes escuras e pesadas que agora avultavam quase acima do carro. Estou aqui há muito tempo, dizia o forte, e ainda estou aqui.
Quando voltou aos seus aposentos, após o jantar no Refeitório dos Decanos, sentou-se sozinho ao lado da lareira apagada. Era verão em A-Io, o dia mais longo do ano se aproximava, e, embora passasse das oito horas, ainda não escurecera. O céu além dos arcos das janelas ainda mostrava um tom de cor de luz do dia, um azul puro e delicado. O ar estava ameno, com cheiro de grama cortada e terra molhada. Havia uma luz na capela, do outro lado do bosque, e um leve som de música naquele ar de brisa leve. Não de pássaros cantando, mas música humana. Shevek escutou. Alguém estava praticando as Harmonias Numéricas no harmônio da capela. As harmonias eram tão familiares a Shevek quanto a qualquer urrasti. Odo não tentara renovar as relações básicas da música quando renovou as relações dos homens. Ela sempre respeitara o necessário. Os Colonos de Anarres deixaram as leis do homem para trás, mas levaram consigo as leis da harmonia.
O salão calmo estava sombrio e silencioso, escurecendo. Shevek olhou à sua volta, os arcos duplos perfeitos das janelas, os cantos levemente cintilantes do assoalho, a curva firme e obscura da chaminé de pedra, as paredes almofadadas, admiráveis em sua proporção. Era uma sala linda e humana. Era uma sala muito antiga. Disseram-lhe que aquela Casa dos Decanos fora construída no ano 540, há quatrocentos anos, duzentos e trinta anos antes da Colonização de Anarres. Gerações de estudiosos moraram, trabalharam, conversaram, pensaram, dormiram e morreram naquele cômodo antes mesmo do nascimento de Odo. As Harmonias Numéricas há séculos flutuavam pelo gramado, através das folhas escuras do bosque. Estou aqui há muito tempo, a sala dizia a Shevek, e ainda estou aqui. O que você está fazendo aqui?
Ele não tinha resposta. Não tinha nenhum direito a toda a graça e abundância daquele mundo, conquistadas e mantidas pelo trabalho, pela devoção e pela fidelidade de seu povo. O Paraíso é para os que constroem o Paraíso. Ele não fazia parte daquilo. Era um desviado, de uma raça que renegara o seu passado, a sua história. Os Colonos de Anarres deram as costas ao Velho Mundo e seu passado, optando apenas pelo futuro. Mas, tão certo quanto o futuro se torna passado, o passado se torna futuro. Renegar é não realizar. Os odonianos que deixaram Urras erraram; erraram, em sua coragem desesperada, ao renegar sua história, ao renunciar à possibilidade de retorno. O explorador que não retorna ou não manda de volta suas naves para contar o que viu não é explorador, é só um aventureiro; e seus filhos nascem no exílio.
Ele passara a amar Urras, mas de que adiantava esse amor ardente? Ele não fazia parte daquele mundo, nem do mundo em que nascera.
A solidão, a certeza do isolamento que sentira na primeira hora a bordo da nave Atento ressurgiu nele e afirmou-se como sua verdadeira condição, ignorada, reprimida, mas absoluta.
Estava sozinho ali porque viera de uma sociedade autoexilada. Sempre estivera sozinho em seu próprio mundo porque se exilara de sua sociedade. Os Colonos tinham dado um passo para fora. Ele dera dois. Estava sozinho porque assumira o risco metafísico.
E tinha sido tolo o bastante para achar que seria capaz de unir dois mundos aos quais não pertencia.
O azul do céu noturno do lado de fora das janelas atraiu seus olhos. Além da vaga escuridão da folhagem e da torre da capela, acima da linha escura das colinas, que à noite sempre pareciam menores e mais remotas, uma luz crescia, uma luminosidade ampla e suave. A lua está subindo, pensou ele, com uma grata sensação de familiaridade. Não há ruptura na totalidade do tempo. Tinha visto a lua subir quando era bebê, da janela do domicílio na Campina Vasta, com Palat; sobre as colinas de sua infância; sobre a planície seca da Poeira; sobre os telhados de Abbenay, com Takver a contemplá-la ao seu lado.
Mas não tinha sido essa lua.
As sombras o envolveram, e ele permaneceu sentado, imóvel, enquanto Anarres surgia acima das colinas alienígenas, uma lua cheia, salpicada de cor parda e branca-azulada, bruxuleante. A luz de seu planeta encheu suas mãos vazias.
4
°°°°°
O sol poente brilhando no rosto de Shevek o acordou, enquanto o dirigível, transpondo os últimos picos das Montanhas Ne Theras, virava para o sul. Ele dormira a maior parte do dia, o terceiro de sua longa jornada. A noite de sua festa de despedida estava a meio mundo para trás. Bocejou, esfregou os olhos e sacudiu a cabeça, tentando livrar os ouvidos do ronco intenso do motor do dirigível; já completamente acordado, percebeu que a jornada estava quase no fim, que se aproximavam de Abbenay. Pressionou o rosto na janela empoeirada e, de fato, lá embaixo, entre os dois cumes baixos e desbotados, havia um grande campo murado, o Porto. Ficou olhando ansioso, tentando ver se havia alguma nave na plataforma. Apesar de desprezível, Urras era outro planeta; ele queria ver a nave de outro planeta, uma viajante do terrível abismo seco, uma coisa feita por mãos alienígenas. Mas não havia nenhuma nave no Porto.
Os cargueiros de Urras só vinham oito vezes por ano e permaneciam ali apenas o tempo suficiente para carregar e descarregar. Não eram visitantes bem-vindos. Na verdade, eram, para alguns anarrestis, uma humilhação perpetuamente renovada.
Traziam óleos fósseis e derivados de petróleo, certas peças delicadas de máquinas e componentes eletrônicos que a manufatura anarresti não estava aparelhada para fornecer, e com frequência uma nova variedade de árvore frutífera ou semente para testes. Levavam para Urras um grande carregamento de mercúrio, cobre, alumínio, urânio, estanho e ouro. Para eles, era um bom negócio. A distribuição das cargas oito vezes por ano era a função mais prestigiada do Conselho dos Governos Mundiais urrasti e o principal evento do mercado de ações mundial de Urras. Na realidade, o Mundo Livre de Anarres era uma colônia mineradora de Urras.
Esse fato provocava rancor. A cada geração, todos os anos, nos debates do CDP em Abbenay, havia protestos veementes: “Por que continuamos a fazer transações de negócios exploradores com esses proprietários que promovem guerras?” E cabeças mais calmas sempre davam a mesma resposta: “Custaria mais caro aos urrastis extrair eles próprios o minério; por isso não nos invadem. Mas, se rompêssemos o acordo comercial, usariam a força”. Era difícil, entretanto, para um povo que nunca pagava nada em dinheiro, entender a psicologia do custo, o argumento do mercado. Sete gerações de paz não haviam trazido confiança.
Portanto, o posto de trabalho chamado Defesa nunca precisava chamar voluntários. O trabalho era tão monótono que não se chamava trabalho em právico, que usava a mesma palavra para trabalho e diversão, mas kleggich, labuta. Trabalhadores da Defesa tripulavam as doze velhas naves interplanetárias, efetuando reparos e mantendo-as em órbita como uma rede de proteção; esquadrinhavam lugares remotos com radar e radiotelescópios; realizavam tarefas enfadonhas no Porto. E, mesmo assim, sempre havia uma fila de espera de voluntários. Por mais pragmática que fosse a moralidade absorvida por um jovem anarresti, a vida transbordava nele, exigindo altruísmo, sacrifício pessoal e espaço para o gesto absoluto. Solidão, vigilância, perigo, naves espaciais: tudo isso oferecia a sedução do romantismo. Era puro romantismo o que mantinha Shevek achatando o nariz contra a janela até o Porto vazio ficar para trás do dirigível, e isso o decepcionou, pois não vira um cargueiro encardido de minério na plataforma de lançamento.
Bocejou de novo, se espreguiçou e olhou para fora, para a frente, para ver o que devia ser visto. O dirigível estava transpondo o último pico baixo das Ne Theras. Diante dele, para o sul a partir dos braços das montanhas, brilhando ao sol da tarde, estendia-se em declive uma grande baía verde.
Ele olhou-a maravilhado, do mesmo modo que seus antepassados a tinham olhado, seis mil anos antes.
No Terceiro Milênio em Urras, os sacerdotes astrônomos de Serdonou e Dhun observaram as estações mudarem o brilho castanho do Outro Mundo e deram nomes místicos às planícies, às cordilheiras e aos mares que refletiam o sol. Uma determinada região que verdejava antes de todas as outras no ano novo lunar recebeu o nome de Ans Hos, o Jardim da Mente: o Éden de Anarres.
Nos milênios seguintes, telescópios comprovaram que os antigos astrônomos estavam certos; e a primeira nave tripulada à Lua pousou ali naquele lugar verde entre as montanhas e o mar.
Mas o Éden de Anarres revelou-se árido, frio e ventoso, e o restante do planeta era pior. A vida ali não evoluíra além de peixes e plantas sem flores. O ar era rarefeito, como o ar de Urras em grandes altitudes. O sol queimava, o vento congelava, a poeira sufocava. Durante duzentos anos após o primeiro pouso, Anarres foi explorado, mapeado, examinado, mas não colonizado. Por que partir para um deserto uivante quando havia espaço de sobra nos vales graciosos de Urras?
Mas suas minas foram exploradas. As eras de autodevastação no Nono e início do Décimo Milênio esvaziaram os veios de Urras; e, à medida que se aperfeiçoaram os foguetes, tornou-se mais barato explorar a Lua do que extrair os metais necessários em áreas profundas ou na água do mar. No ano urrasti de IX-738, fundou-se uma colônia ao pé das Montanhas Ne Theras, onde se extraía mercúrio no velho Ans Hos. Chamavam o lugar de Cidade de Anarres. Não era uma cidade, não havia mulheres. Os homens se alistavam para o trabalho de dois ou três anos como mineiros ou técnicos e depois voltavam para o mundo real.
A Lua e seus mineiros estavam sob a jurisdição do Conselho dos Governos Mundiais, mas, do outro lado da Lua, no hemisfério oriental, a nação Thu ocultava um pequeno segredo: uma base de foguetes e uma colônia de mineiros de ouro, com suas esposas e filhos. Eles realmente viviam na Lua, mas ninguém sabia, exceto o governo de Thu. Foi o colapso desse governo no ano de 771 que levou à proposta, no Conselho dos Governos Mundiais, de doar a Lua à Sociedade Internacional de Odonianos – comprando-os com um mundo antes que eles fatalmente minassem a autoridade da lei e a soberania nacional de Urras. A Cidade de Anarres foi evacuada e, em meio ao tumulto em Thu, os dois últimos foguetes foram enviados às pressas para retirar os mineiros de ouro. Nem todos quiseram voltar. Alguns gostavam do deserto uivante.
Por mais de vinte anos, as doze naves concedidas aos Colonos Odonianos pelo Conselho dos Governos Mundiais iam e vinham entre os dois mundos, até que os milhões de almas que escolheram a nova vida tivessem atravessado o abismo seco. Então o porto foi fechado para imigração, ficando aberto apenas para cargueiros espaciais do Acordo Comercial. Àquela altura, a Cidade de Anarres possuía 100 mil habitantes e recebera um novo nome, Abbenay, que significava, na nova língua da nova sociedade, Mente.
A descentralização fora um elemento essencial nos planos de Odo para a sociedade que ela não viveu para ver fundada. Ela não tinha nenhuma intenção de tentar desurbanizar a civilização. Apesar de sugerir que o limite natural ao tamanho de uma comunidade fosse a dependência de sua própria região imediata para o abastecimento de alimentação básica e energia, ela pretendia que todas as comunidades se conectassem através de redes de comunicação e transporte, para que produtos e ideias chegassem aonde fossem necessários, e a administração das coisas pudesse funcionar com rapidez e facilidade. Nenhuma comunidade deveria ser excluída do câmbio e do intercâmbio. Mas as redes não deveriam ser operadas de cima para baixo. Não haveria um controle central, uma capital, um estabelecimento para perpetuar a engrenagem da burocracia e o impulso de dominação de indivíduos ávidos por se tornarem comandantes, patrões, chefes de Estado.
Seus planos, entretanto, eram baseados no solo generoso de Urras. No árido planeta Anarres, as comunidades tiveram de se espalhar amplamente em busca de recursos, e poucas puderam se tornar autossustentáveis, por mais que reduzissem suas noções do que era necessário para seu sustento. De fato, reduziram drasticamente, mas havia um limite mínimo que se recusaram a ultrapassar; não regressariam ao tribalismo pré-urbano, pré-tecnológico. Sabiam que seu anarquismo era produto de uma civilização altamente evoluída, de uma cultura complexa e diversificada, de uma economia estável e de uma tecnologia altamente industrializada, que poderia manter a alta produção e a rápida distribuição de mercadorias. Por maiores que fossem as distâncias que as separavam, as Colônias permaneceram fiéis ao ideal de organicismo complexo. Primeiro construíram as estradas, depois as casas. Os recursos e produtos especiais de cada região eram permutados continuamente com os de outras, num intricado processo de equilíbrio: o equilíbrio da diversidade característico da vida, da ecologia natural e social.
Mas, como diziam no modo analógico, não se pode ter um sistema nervoso sem pelo menos um gânglio e, de preferência, um cérebro. Era preciso haver um centro. Os computadores que coordenavam a administração das coisas, a divisão de trabalho, a distribuição de mercadorias e as federações centrais da maioria dos sindicatos trabalhistas ficavam em Abbenay, desde o início. E, desde o início, os Colonos estavam cientes de que essa inevitável centralização trazia uma ameaça permanente, a ser combatida pela vigilância permanente.
Ó, criança Anarquia, promessa infinita
infinita cautela
escuto, escuto na noite
junto ao berço, profundo como a noite
se está tudo bem com a criança
Pio Atean, que adotou o nome právico de Tober, escreveu esses versos no ano 14 da Colonização. Os primeiros esforços dos odonianos em expressar sua nova língua e seu novo mundo por meio da poesia foram formais, canhestros, comoventes.
Abbenay, a mente e o centro de Anarres, estava ali, agora, diante do dirigível, na grande planície verde.
Aquele verde brilhante e intenso dos campos era inconfundível: a cor não era nativa de Anarres. Somente ali e nos litorais quentes do Mar Keran floresciam as sementes do Velho Mundo. Nos outros lugares, as plantações básicas eram de holum rasteira e mene-capim pálido.
Quando Shevek tinha 9 anos, seu trabalho escolar vespertino fora, por vários meses, cuidar de plantas ornamentais da comunidade da Campina Vasta – espécies exóticas e delicadas que precisavam de alimento e banhos de sol, como os bebês. Ele auxiliara um velhinho na tarefa tranquila e minuciosa, gostara dele, gostara das plantas, da terra e do trabalho. Quando viu a cor da Planície de Abbenay, lembrou-se do velhinho, do cheiro do adubo de óleo de peixe e da cor dos primeiros brotos nos pequenos galhos despidos, aquele verde claro e vigoroso.
Viu ao longe, entre os campos vívidos, uma longa mancha branca, como sal espalhado, que se dividiu em cubos quando o dirigível se aproximou.
Um grupo de clarões ofuscantes no extremo leste da cidade o fez piscar e ver pontos pretos por um instante: os grandes espelhos parabólicos que forneciam energia solar para as refinarias de Abbenay.
O dirigível pousou num depósito de cargas no extremo sul da cidade, e Shevek saiu pelas ruas da maior cidade do mundo.
Eram ruas largas e limpas. Não havia sombras, pois Abbenay ficava a menos de trinta graus ao norte do equador, e todos os edifícios eram baixos, exceto as torres esparsas e potentes das turbinas eólicas. O sol brilhava num céu firme, escuro, azul-violeta. O ar era claro e limpo, sem fumaça ou umidade. Havia uma vivacidade nas coisas, uma firmeza de formas e ângulos, uma limpidez. Tudo se distinguia em separado, por si mesmo.
Os elementos que constituíam Abbenay eram os mesmos de qualquer outra comunidade odoniana, repetidos muitas vezes: oficinas, fábricas, domicílios, dormitórios, centros de aprendizagem, auditórios, distribuidores, depósitos, refeitórios. Os edifícios maiores eram quase sempre agrupados em volta de praças abertas, conferindo à cidade uma textura celular básica: era uma subcomunidade ou um bairro após o outro. Indústria pesada e fábricas de processamento de alimentos tendiam a se agrupar nos subúrbios da cidade, e o padrão celular se repetia, visto que indústrias similares quase sempre ficavam lado a lado em determinada rua ou praça. O primeiro desses lugares por onde Shevek caminhou tinha uma série de praças, o bairro têxtil, repleto de fábricas processadoras de fibra de holum, tecelagens, fábrica de tinturas, distribuidores de tecidos e roupas; no centro de cada praça havia uma pequena floresta de mastros amarrados de cima a baixo com bandeiras e flâmulas de todas as cores da arte dos tintureiros, orgulhosamente proclamando a indústria local. Os prédios da cidade eram muito parecidos, simples, integralmente feitos de pedra ou de cimento-espuma moldado. Alguns pareceram muito grandes aos olhos de Shevek, mas quase todos tinham apenas um andar, devido à frequência dos terremotos. Pelo mesmo motivo as janelas eram pequenas, feitas de um silício plástico rígido que não estilhaçava. Eram pequenas, mas eram muitas, pois não se fornecia luz artificial desde uma hora antes do amanhecer até uma hora após o pôr do sol. Tampouco se provinha aquecimento quando a temperatura externa ultrapassava doze graus Celsius. Não que faltasse energia em Abbenay, com suas turbinas eólicas e geradores diferenciais de temperatura terrestre utilizados no aquecimento, mas o princípio da economia orgânica era tão essencial ao funcionamento da sociedade que afetava profundamente a ética e a estética. “Excesso é excremento”, escreveu Odo na Analogia. “Excremento retido no corpo é veneno.”
Abbenay era livre de veneno: uma cidade simples, luminosa, de cores claras e firmes, de ar puro. Era tranquila. Podia ser vista por inteiro, tão evidente quanto sal espalhado.
Nada se escondia.
As praças, as ruas austeras, os edifícios baixos, as áreas de trabalho sem muros estavam carregados de vitalidade e atividade. Enquanto caminhava, Shevek tinha a constante percepção das outras pessoas andando, trabalhando, falando, rostos passando, vozes chamando, tagarelando, cantando, pessoas vivas, pessoas fazendo coisas, pessoas em ação. Oficinas e fábricas eram voltadas para as praças ou para pátios abertos, e as portas ficaram abertas. Ele passou por uma vidraria, e o operário pegou com uma concha uma grande bolha de vidro derretido com a facilidade de um cozinheiro que serve uma sopa. Ao lado da vidraria havia um pátio movimentado onde moldavam cimento-espuma para construção. A chefe da equipe, uma mulher corpulenta com o avental branco de pó, supervisionava o despejamento do cimento no molde com uma sonora e admirável torrente de palavras. Em seguida, havia uma pequena fábrica de arame, uma lavanderia do bairro, um luthier que fazia e consertava instrumentos musicais, o distribuidor de pequenos produtos do bairro, um teatro, uma cerâmica. As atividades exercidas em cada lugar eram fascinantes, a maioria feita em espaço aberto, à vista de todos. Havia crianças em volta, algumas envolvidas no trabalho com os adultos, algumas no chão fazendo brinquedos de barro, outras brincando na rua, uma empoleirada no telhado do centro de aprendizagem com o nariz afundado num livro. O fabricante de arame tinha decorado a fachada da oficina com desenhos de trepadeiras feitos em arame pintado, alegres e enfeitados. O jato de vapor e de vozes saindo pelas portas escancaradas da lavanderia era impressionante. Nenhuma porta estava trancada, poucas fechadas. Não havia disfarces, nem propaganda. Estava tudo ali, todo o trabalho, toda a vida da cidade, aberta aos olhos e às mãos. E de vez em quando, pela Rua do Depósito, vinha uma coisa em desabalada carreira, tocando um sino, um veículo abarrotado de gente, com gente pendurada por todo o lado de fora, velhinhas xingando com entusiasmo quando ele não diminuía a velocidade para que elas pudessem descer em seus pontos, um garotinho num triciclo caseiro perseguia o veículo loucamente, faíscas elétricas chuviscavam azuis dos fios acima, nos cruzamentos: como se aquela vitalidade tranquila e intensa das ruas de vez em quando atingisse o ponto de descarga e soltasse um estampido, um estalo azul e o cheiro de ozônio. Eram os ônibus de Abbenay e, quando passavam, dava vontade de aplaudir e aclamar.
A Rua do Depósito terminava num lugar amplo e arejado, onde cinco outras ruas desembocavam, formando um parque triangular de grama e árvores. A maioria dos parques em Anarres eram playgrounds de terra e areia, com um punhado de árvores e arbustos de holuns. Aquele era diferente. Shevek atravessou o asfalto sem tráfego e entrou no parque, atraído por ele, pois já o tinha visto várias vezes em fotografias, e porque queria ver de perto árvores alienígenas, árvores urrastis, para experimentar o verde daquelas folhas numerosas. O sol estava se pondo, o céu estava aberto e claro, escurecendo a cor púrpura do zênite, e o escuro do espaço se revelava através da fina atmosfera. Ele entrou, sob as árvores, com cautela e cuidado. Tantas folhas não seriam um desperdício? A árvore holum lidava muito bem com seus espinhos e folhas, e não havia excesso deles. Aquela folhagem extravagante não seria mero excesso, excremento? Tais árvores não conseguiriam florescer sem um solo rico, água constante e muito tratamento. Ele desaprovava aquela abundância, aquele desperdício. Caminhou por baixo, por entre as folhas. Sentiu a maciez da grama alienígena sob os pés. Era como andar sobre carne viva. Voltou para o caminho, assustado. Os membros escuros das árvores se estendiam sobre sua cabeça, apertando as mãos largas e verdes acima dele. Ele foi tomado por um assombro. Sabia que estava sendo abençoado, embora não tivesse pedido a bênção.
Um pouco adiante, no caminho que escurecia, uma pessoa lia sentada num banco de pedra.
Shevek prosseguiu lentamente. Aproximou-se do banco e ficou em pé olhando a figura sentada com a cabeça inclinada sobre o livro, no verde-dourado do lusco-fusco sob as árvores. Era uma mulher de 50 ou 60 anos, vestida de modo estranho, o cabelo preso para trás. A mão esquerda no queixo quase escondia a boca austera, a mão direita segurava os papéis sobre os joelhos. Eram pesados, aqueles papéis; a mão fria sobre eles era pesada. A luz morria rápido, mas ela não ergueu os olhos nenhuma vez. Continuava a ler as provas de O Organismo Social.
Shevek olhou para Odo por um instante e sentou-se ao lado dela no banco.
Ele desconhecia totalmente o conceito de status, e havia lugar de sobra no banco. Foi movido por simples impulso de companheirismo.
Olhou para o perfil forte e triste, para as mãos, as mãos de uma mulher idosa. Ergueu os olhos para os galhos ensombreados. Pela primeira vez na vida compreendeu que Odo, cujo rosto ele conhecia desde a infância, cujas ideias eram centrais e constantes em sua mente e na de todos que ele conhecia, que Odo jamais tinha posto os pés em Anarres: que ela tinha vivido e morrido, e estava enterrada, à sombra de árvores de folhas verdes, em cidades inimagináveis, entre pessoas falando línguas desconhecidas, num outro mundo. Odo era uma alienígena: uma exilada.
O jovem sentou-se ao lado da estátua no crepúsculo, ele quase tão quieto quanto ela.
Por fim, percebendo que escurecia, ele se levantou e voltou para as ruas, pedindo informações de como chegar ao Instituto Central de Ciências.
Não era longe; chegou lá não muito depois de as luzes se acenderem. Uma secretária ou vigilante estava na entrada, lendo. Teve de bater na porta aberta para chamar a atenção dela.
– Shevek – ele disse. Era costume iniciar a conversa com um estranho oferecendo o nome, como uma espécie de alça para o outro segurar. Não havia muitas outras alças a oferecer. Não havia nenhuma hierarquia, nenhum termo hierárquico, nenhuma forma respeitosa convencional de discurso.
– Kokvan – a mulher respondeu. – Não era para você ter chegado ontem?
– Mudaram a agenda do dirigível-cargueiro. Há alguma cama vaga nos dormitórios?
– O número 46 está vago. Depois do pátio, o prédio à esquerda. Há um bilhete de Sabul aqui. Diz para você ligar para ele de manhã no gabinete de física.
– Obrigado! – disse Shevek, e cruzou a passos largos o amplo pátio pavimentado, balançando na mão a bagagem: um casaco de inverno e um par de botas sobressalente. As luzes estavam acesas nos cômodos em toda a volta do quadrilátero. Havia um murmúrio, uma presença de pessoas na tranquilidade. Algo movia o ar claro e penetrante da noite na cidade, uma sensação de drama, de promessa.
O horário do jantar ainda não terminara, e ele fez um pequeno desvio para o refeitório do Instituto para ver se havia comida sobrando para um recém-chegado. Descobriu que seu nome já estava na lista regular e achou a comida excelente. Havia até sobremesa, fruta cozida em conserva. Shevek adorava doces e, como foi um dos últimos a jantar e havia frutas de sobra, repetiu a sobremesa. Comia sozinho a uma pequena mesa. Às mesas maiores perto dele, grupos de jovens conversavam diante de pratos vazios; entreouviu conversas sobre a reação do argônio em baixas temperaturas, a reação de um professor de química num colóquio, as supostas curvaturas do tempo. Alguns o olharam de relance, não foram falar com ele, como pessoas de uma pequena comunidade o fariam; o olhar deles não era hostil, talvez um pouco desafiador.
Encontrou o Quarto 46 num longo corredor de portas fechadas no domicílio. Evidentemente, eram todos quartos individuais, e ele se perguntou por que a secretária o enviara para lá. Desde os 2 anos de idade, sempre tinha morado em dormitórios, quartos com quatro a dez camas. Bateu na porta do 46. Silêncio. Abriu a porta. O cômodo era um pequeno quarto individual, vazio, vagamente iluminado pela luz do corredor. Acendeu a lâmpada. Duas cadeiras, uma mesa, uma régua de cálculo bastante usada, alguns livros e, cuidadosamente dobrado sobre a cama, um cobertor cor de laranja tecido à mão. Alguém morava ali, a secretária tinha cometido um erro. Fechou a porta. Abriu-a novamente e apagou a lâmpada. Na mesa sob a lâmpada havia um bilhete rabiscado num pedaço de papel rasgado: “Shevek, Dep. Física. Manhã 2-4-1-154. Sabul”.
Pôs o casaco numa das cadeiras, as botas no chão. Ficou parado um instante e leu os títulos dos livros, referências habituais de física e matemática, encadernados em verde, o Círculo da Vida estampado nas capas. Puxou a cortina do armário com cuidado. Atravessou o quarto até a porta: quatro passos. Ficou ali parado, hesitante, por mais um minuto, e então, pela primeira vez na vida, fechou a porta de seu próprio quarto.
Sabul era um homem de 40 anos, pequeno, atarracado e desleixado. Seu pelo facial era mais escuro e mais áspero que o normal e engrossava numa barba regular concentrada no queixo. Usava uma pesada túnica de inverno que, pela aparência, parecia estar sendo usada desde o inverno passado; os punhos estavam pretos de sujeira. Ele tinha modos bruscos e de má vontade.
– Você vai ter que aprender iótico – resmungou para Shevek.
– Aprender iótico?
– Eu disse aprender iótico.
– Para quê?
– Para poder ler os físicos urrastis! Atro, To, Baisk, esses homens. Ninguém os traduziu para právico, e é provável que ninguém traduza. Seis pessoas, talvez, em Anarres são capazes de entendê-los. Em qualquer língua.
– Como posso aprender iótico?
– Com uma gramática e um dicionário!
Shevek manteve-se firme.
– Onde posso encontrá-los?
– Aqui – resmungou Sabul. Revirou as prateleiras desarrumadas entre os livrinhos de capa verde. Seus movimentos eram bruscos e impacientes. Localizou dois volumes grossos e sem capa numa prateleira mais baixa e os jogou na mesa. – Me avise quando tiver competência para ler Atro em iótico. Não há nada que eu possa fazer com você até lá.
– Que tipo de matemática os urrastis usam?
– Nada que você não consiga entender.
– Alguém aqui está trabalhando em cronotopologia?
– Sim, Turet. Pode consultá-lo. Não precisa frequentar as aulas dele.
– Estava planejando assistir às aulas de Gvarab.
– Para quê?
– Pelo trabalho dela sobre frequência e ciclo...
Sabul sentou-se e tornou a se levantar. Estava insuportavelmente inquieto, inquieto, mas rígido, como lima desgastando madeira.
– Não perca tempo. Você está muito à frente daquela velha em Teoria Sequencial, e as outras ideias que ela apregoa são lixo.
– Estou interessado nos princípios da Simultaneidade.
– Simultaneidade! Que tipo de porcaria exploradora a Mitis andou metendo na sua cabeça? – O físico olhou-o com fúria, as veias das têmporas saltando sob o cabelo curto e grosso.
– Eu mesmo organizei um grupo para o curso.
– Cresça. Cresça. Já é hora de crescer. Você está aqui agora. Trabalhamos com física aqui, não religião. Esqueça o misticismo e cresça. Em quanto tempo pode aprender iótico?
– Levei vários anos para aprender právico – respondeu Shevek. A ironia sutil passou completamente despercebida a Sabul.
– Eu aprendi em dez décades. O suficiente para ler a Introdução de To. Ora, que diabos, você precisa de um texto para estudar. Pode ser esse mesmo. Aqui. Espere. – Remexeu uma gaveta abarrotada até encontrar um livro, um livro de aparência esquisita, encadernado em azul, sem o Círculo da Vida na capa. O título estava estampado em letras douradas e parecia dizer Poilea Afio-ite, que não fazia nenhum sentido, e o formato de algumas letras era desconhecido. Shevek olhou o livro, apanhou-o da mão de Sabul, mas não o abriu. Estava segurando algo que desejara ver, o artefato alienígena, a mensagem de outro mundo.
Lembrou-se do livro que Palat lhe mostrara, o livro dos números.
– Volte quando conseguir ler isso – resmungou Sabul.
Shevek virou-se para ir embora. Sabul elevou o tom do resmungo:
– Guarde esses livros com você! Eles não são para consumo geral.
O jovem parou, virou-se e disse após um instante, em sua voz calma, modesta:
– Não compreendo.
– Não deixe mais ninguém ler!
Shevek não respondeu.
Sabul tornou a se levantar e se aproximou dele.
– Escute, agora você é membro do Instituto Central de Ciências, um síndico do Departamento de Física, trabalhando comigo, Sabul. Está entendendo? Privilégio é responsabilidade. Correto?
– Vou adquirir conhecimento que não devo compartilhar – Shevek disse após uma breve pausa, dizendo a frase como se fosse uma proposição em lógica.
– Se encontrasse um pacote de cápsulas explosivas na rua, iria “compartilhá-las” com todas as crianças que passassem? Esses livros são explosivos. Agora está me entendendo?
– Sim.
– Muito bem – Sabul afastou-se, resmungando com o que parecia ser uma raiva endêmica, não específica. Shevek saiu, carregando a dinamite com cuidado, com ávida curiosidade e repulsa.
Começou a aprender iótico. Trabalhava sozinho no Quarto 46, por causa do aviso de Sabul, e porque lhe era natural trabalhar sozinho.
Desde muito jovem sabia que, em certos aspectos, ele era diferente de todos que conhecia. Para uma criança, a consciência dessa diferença é muito dolorosa porque, não tendo realizado nada ainda e sendo incapaz de realizar alguma coisa, não sabe justificá-la. A presença confiável e afetuosa de adultos que também são, de sua própria maneira, diferentes, é o único conforto que uma criança assim pode ter; e Shevek não a tivera. Seu pai de fato tinha sido totalmente confiável e afetuoso. O que Shevek fosse ou fizesse, Palat aprovava e era leal. Mas Palat não tivera essa maldição da diferença. Ele era como os outros, como todos os outros que aceitavam a comunidade de bom grado. Amava Shevek, mas não podia lhe mostrar o significado da liberdade, aquele reconhecimento da solidão de cada pessoa que, em si, já transcende a solidão.
Shevek estava, portanto, acostumado ao isolamento interior, atenuado por todos os contatos e diálogos cotidianos e fortuitos da vida comunitária e pela companhia de alguns amigos. Ali em Abbenay ele não tinha nenhum amigo e, como não tinha sido jogado num dormitório, não fez nenhuma amizade. Aos 20 anos, tinha consciência demais de sua mente e caráter para ser sociável; era introvertido e reservado; e seus colegas estudantes, percebendo que esse afastamento era real, não tentavam se aproximar dele com frequência.
A privacidade do quarto tornou-se preciosa para ele. Saboreava sua total independência. Só saía do quarto para o café da manhã e o jantar no refeitório, e para uma rápida caminhada diária pelas ruas da cidade, para satisfazer os músculos que sempre estiveram acostumados ao exercício; depois, voltava ao Quarto 46 e à gramática de iótico. A cada uma ou duas décades, era chamado para o revezamento da “dezena” de trabalho comunitário, mas as pessoas com quem trabalhava eram desconhecidas, não colegas próximos como era comum acontecer em comunidades pequenas; assim, nesses dez dias de trabalho braçal não havia interrupção de seu isolamento psicológico, nem do seu progresso em iótico.
A gramática em si, por ser complexa, ilógica e padronizada, dava-lhe prazer. O aprendizado foi rápido depois que ele construiu o vocabulário básico, pois conhecia o que estava lendo; conhecia a área e os termos e, mesmo quando emperrava, a intuição ou uma equação matemática lhe mostravam aonde ir. Nem sempre eram lugares em que estivera. A Introdução à Física Temporal de To não era nenhum manual para iniciantes. Quando enfim conseguiu chegar à metade do livro, Shevek não estava mais lendo iótico, estava lendo física; e entendeu por que Sabul o fez ler os físicos urrastis antes de qualquer outra coisa. Eles estavam muito à frente de tudo o que se fizera em Anarres por vinte ou trinta anos. As ideias mais brilhantes nos próprios trabalhos de Sabul sobre Sequência eram, na verdade, traduções inconfessas do iótico.
Mergulhou nos outros livros que Sabul lhe concedia, os principais trabalhos dos físicos urrastis contemporâneos. Sua vida tornava-se cada vez mais reclusa. Não era ativo no sindicato estudantil e não frequentava as reuniões de nenhum outro sindicato ou federação, exceto a letárgica Federação de Física. As reuniões desses grupos, veículos tanto da ação social quanto da sociabilidade, eram a estrutura da vida em pequenas comunidades, mas ali na cidade pareciam muito menos importantes. Uma pessoa só não era indispensável a eles; havia sempre outros prontos a administrar as coisas, e de modo satisfatório. Com exceção dos serviços da dezena e das habituais tarefas de zeladoria nos laboratórios e em seu domicílio, Shevek passava o tempo todo sozinho. Muitas vezes deixava de fazer exercícios e, de vez em quando, refeições. Entretanto, nunca perdia o único curso que fazia, as palestras de Gvarab sobre Frequência e Ciclo.
Gvarab já era velha e com frequência divagava e balbuciava. O comparecimento às suas aulas era reduzido e irregular. Ela logo percebeu que o rapaz magro de orelhas grandes era seu único ouvinte assíduo. Começou a dar aula para ele. Os olhos claros, firmes e inteligentes encontravam os dela, estabilizando-a, despertando-a, e ela reluzia, recobrava a visão perdida. Voava alto, e os outros alunos a olhavam confusos ou perplexos, até assustados, se tivessem imaginação suficiente para ficarem assustados. Gvarab via um universo muito mais amplo do que a maioria das pessoas era capaz de ver, e isso as fazia pestanejar. O rapaz de olhos claros a olhava com firmeza. No rosto dele, via a sua alegria. O que ela oferecia, o que oferecera a vida inteira, o que ninguém jamais compartilhara com ela, ele aceitava, ele compartilhava. Ele era seu irmão, separado pelo abismo de cinquenta anos, e sua redenção.
Quando se encontravam nos gabinetes de física ou no refeitório, às vezes começavam imediatamente a falar de física, mas noutras vezes a energia de Gvarab era insuficiente para isso, e então pouco se falavam, pois a mulher idosa era tão tímida quanto o jovem.
– Você come pouco – ela dizia.
Ele sorria, e suas orelhas coravam. Nenhum dos dois sabia o que falar.
Após meio ano no Instituto, Shevek entregou a Sabul um estudo de três páginas intitulado “Uma Crítica à Hipótese de Sequência Infinita de Atro”. Sabuk devolveu-lhe o estudo após uma décade, resmungando:
– Traduza para iótico.
– Em princípio, escrevi quase tudo em iótico – respondeu Shevek –, já que usei a terminologia de Atro. Vou copiar o original. Traduzir para quê?
– Para quê? Para que aquele maldito explorador do Atro possa ler! Vai chegar uma nave no quinto dia da próxima décade.
– Uma nave?
– Um cargueiro de Urras!
Assim, Shevek descobriu que os dois mundos separados não trocavam apenas petróleo e mercúrio, e nem apenas livros, como os que estivera lendo, mas também cartas. Cartas! Cartas para proprietários, para súditos de governos fundados na iniquidade do poder, para indivíduos inevitavelmente explorados por alguém ou exploradores de outrem, pois tinham consentido em ser elementos do Estado-Máquina. Essas pessoas realmente trocavam ideias com gente livre de maneira pacífica e voluntária? Poderiam mesmo admitir a igualdade e participar de uma solidariedade intelectual, ou estavam apenas tentando possuir, dominar, afirmar seu poder? A ideia de trocar cartas com proprietários o alarmava, mas seria interessante descobrir...
Tantas descobertas como essa lhe tinham sido impostas durante seu primeiro meio ano em Abbenay que ele teve de reconhecer que tinha sido – e é possível que ainda fosse – muito ingênuo: uma admissão nada fácil para um jovem inteligente.
A primeira, e ainda a menos aceitável, dessas descobertas foi a de que ele tinha de aprender iótico, mas guardar o conhecimento para si: uma situação tão nova e moralmente tão confusa que ainda não conseguira assimilar. É claro que ele não prejudicava ninguém ao não compartilhar seu conhecimento com outras pessoas. Por outro lado, que mal poderia haver se soubessem que ele sabia iótico e que poderiam aprender também? Com certeza a liberdade baseia-se mais na transparência do que no sigilo, e a liberdade sempre vale o risco. Mas ele não conseguia entender qual era o risco. Ocorreu-lhe uma vez que Sabul queria manter a nova física urrasti particular – possuí-la, como uma propriedade, uma fonte de poder sobre seus colegas de Anarres. Mas essa ideia era tão contrária aos hábitos mentais de Shevek que ele teve dificuldade de esclarecê-la em sua mente, e quando conseguiu, repudiou-a de imediato, com desprezo, como uma ideia repulsiva.
Depois foi a vez do quarto individual, mais um tormento moral. Quando criança, se uma delas dormisse sozinha num quarto assim significava que tinha aborrecido tanto os outros do dormitório que não a toleravam mais; ela tinha egoizado. Solidão era sinônimo de desgraça. Em termos adultos, a principal referência para quartos individuais era sexual. Todo domicílio tinha alguns quartos individuais, e um casal que quisesse copular usava um deles por uma noite, uma décade ou por quanto tempo desejasse. Um casal em parceria ocupava um quarto de casal; numa cidade pequena onde não houvesse quartos de casal disponíveis, muitas vezes construíam um na extremidade de um domicílio; desse modo, edifícios compridos, baixos e irregulares poderiam ser construídos quarto a quarto e eram chamados de “vagão dos parceiros”. Além da união sexual, não havia motivo para não se dormir num dormitório. Podia-se escolher um pequeno ou um grande e, quando não se gostava dos colegas, mudava-se para outro dormitório. Todos tinham oficina, laboratório, estúdio, celeiro ou escritório de que precisavam para desenvolver seu trabalho; os banheiros podiam ser privados ou públicos; a privacidade sexual era livremente acessível e socialmente esperada; além disso, a privacidade não era funcional. Era excesso, desperdício. A economia de Anarres não suportaria a construção, a manutenção, o aquecimento e a iluminação de casas e apartamentos individuais. Uma pessoa cuja natureza fosse genuinamente não sociável tinha de se afastar da sociedade e cuidar-se sozinha. Tinha total liberdade para isso. Podia construir uma casa onde quisesse (mas se estragasse uma bela paisagem ou um pedaço de terra fértil, poderia sofrer forte pressão dos vizinhos para se mudar). Havia um bom número de solitários e eremitas nos limites das comunidades anarrestis mais antigas, fingindo não serem membros de uma espécie social. Mas para aqueles que aceitavam o privilégio e a obrigação da solidariedade humana, privacidade era um valor apenas onde servisse a uma função.
A primeira reação de Shevek ao ser colocado num quarto particular, portanto, foi um misto de desaprovação e vergonha. Por que o enfiaram ali? Logo descobriu por quê. Era o tipo de lugar ideal para o seu tipo de trabalho. Se ideias surgissem à meia-noite, podia ligar a luz e anotá-las; se surgissem na alvorada, não eram expulsas de sua cabeça pela conversa e agitação de quatro ou cinco colegas de quarto se levantando; se não surgisse absolutamente nenhuma ideia, podia ficar dias inteiros sentado à mesa, olhando pela janela, sem ninguém ali para perguntar por que ele estava ficando negligente. A privacidade, na verdade, era tão desejável para a física quanto para o sexo. Mas, ainda assim, era necessária?
Sempre havia sobremesa no refeitório do Instituto, no jantar. Shevek gostava muito e, quando sobrava, ele repetia. E sua consciência, sua consciência orgânico-social, tinha indigestão. Pois todo mundo, em todos os refeitórios, de Abbenay a Confins, não recebia a mesma coisa, as partilhas não eram iguais? Sempre lhe disseram isso, e ele sempre acreditou. Claro que havia variações locais: especialidades regionais, desabastecimento, excedentes, produtos substitutos em situações como os Acampamentos de Projetos, maus cozinheiros, bons cozinheiros – de fato, variações intermináveis dentro de uma estrutura imutável. Mas nenhum cozinheiro era tão talentoso a ponto de preparar sobremesas sem os ingredientes necessários. A maioria dos refeitórios servia sobremesa uma ou duas vezes por décade. Ali serviam todos os dias. Por quê? Seriam os membros do Instituto Central de Ciências melhores do que as outras pessoas?
Shevek não fazia essas perguntas a mais ninguém.
A consciência social, a opinião alheia era a força moral mais poderosa a motivar o comportamento da maioria dos anarrestis, mas era um pouco menos poderosa nele do que na maioria. Seus problemas costumavam tanto ser de um tipo que os outros não entendiam que ele se habituou a desvendá-los sozinho, em silêncio. Assim, fazia o mesmo em relação a esses problemas específicos, que eram muito mais difíceis para ele, em certos aspectos, do que os de Física Temporal. Não pediu a opinião de ninguém. Parou de comer a sobremesa no refeitório.
Entretanto, não se mudou para um dormitório. Pôs na balança o desconforto moral e as vantagens práticas, e estas tinham mais peso. Trabalhava melhor no quarto individual. O trabalho valia a pena, e ele o fazia bem. Era um trabalho crucialmente funcional para a sua sociedade. A responsabilidade justificava o privilégio.
Então, trabalhou.
Perdeu peso; caminhava leve pela terra. Falta de trabalho braçal, falta de variedade de ocupações, falta de relações sociais e sexuais, nada disso lhe parecia falta, mas liberdade. Era um homem livre; podia fazer o que quisesse, quando quisesse e por quanto tempo quisesse. E fazia. Trabalhava. Trabalhava/se divertia.
Rascunhava anotações para uma série de hipóteses que levavam a uma teoria coerente da Simultaneidade. Mas isso começou a parecer um objetivo menor; havia um muito maior a alcançar, uma teoria unificada do Tempo, se ele conseguisse atingi-lo. Sentia-se num quarto trancado no meio de um campo aberto: estava tudo à sua volta, se conseguisse encontrar a saída, o caminho livre. A intuição tornou-se uma obsessão. Durante aquele outono e inverno, foi perdendo cada vez mais o hábito de dormir. Duas horas de sono à noite e duas durante o dia lhe bastavam, e esses cochilos não eram o tipo de sono profundo que sempre tivera, mas quase um despertar em outro nível, tão cheio de sonhos. Eram sonhos vívidos e faziam parte de seu trabalho. Viu o tempo recuar para si mesmo, um rio fluindo para cima, de volta à nascente. Segurou a contemporaneidade de dois momentos em suas mãos esquerda e direita; ao separá-las, sorriu ao perceber que os momentos se separavam como bolhas de sabão que se dividem. Levantou-se e rabiscou, sem de fato acordar, a fórmula matemática que lhe vinha escapando há dias. Viu o espaço encolher diante dele como as paredes de uma esfera caindo sobre um vácuo central, se fechando, se fechando, e ele acordou com um grito de socorro preso na garganta, lutando em silêncio para fugir da consciência de seu próprio vazio exterior.
Numa tarde fria de inverno, quando ia da biblioteca ao seu quarto, passou pelo gabinete de física para ver se havia alguma carta na caixa de correspondência. Não tinha motivo para esperar uma, já que nunca escrevera aos seus amigos do Instituto Regional do Poente Norte; mas não se sentia bem há dois dias; tinha refutado algumas de suas próprias hipóteses mais belas, regredindo, após meio ano de trabalho árduo, ao mesmo ponto onde começara, o modelo fásico era simplesmente vago demais para ser útil, a garganta lhe doía, ele desejava que houvesse uma carta de alguém conhecido, ou talvez alguém do gabinete de física a quem dizer olá, pelo menos. Mas não havia ninguém, exceto Sabul.
– Olhe isso aqui, Shevek.
Olhou para o livro que o homem mais velho segurava: um livro fino, encadernado em verde, o Círculo da Vida na capa. Pegou-o e leu o título: “Uma Crítica à Hipótese de Sequência Infinita de Atro”. Era seu estudo, a admissão e defesa de Atro, e sua réplica. Tudo tinha sido traduzido ou retraduzido para právico e impresso pelas gráficas do CPD em Abbenay. Havia dois nomes de autores: Sabul, Shevek.
Sabul esticou o pescoço sobre o exemplar que Shevek segurava, com um olhar de satisfação perversa. Seu resmungo tornou-se um cacarejo gutural.
– Acabamos com Atro! Acabamos com ele, aquele maldito explorador! Agora vamos ver se eles vão falar em “imprecisão pueril”! – Sabul havia nutrido um ressentimento de dez anos contra a Revista de Física da Universidade de Ieu Eun, que se referira ao seu trabalho teórico como “mutilado pelo provincianismo e pela imprecisão pueril com que o dogma odoniano infesta todas as áreas do pensamento”. – Eles vão ver quem é provinciano agora! – ele disse, com um meio sorriso. Conhecendo-o há quase um ano, Shevek não se lembrava de tê-lo visto sorrir.
Shevek sentou-se do outro lado da sala, para isso tendo de afastar uma pilha de papéis de um banco; é claro que o gabinete de física era comunitário, mas Sabul mantinha a sala abarrotada de material que estava usando, e por isso parecia nunca haver espaço para mais ninguém. Shevek baixou os olhos para o livro que ainda segurava, depois olhou pela janela. Sentia-se e parecia muito doente. Também parecia tenso; mas com Sabul ele nunca fora tímido ou desajeitado, como costumava ser com pessoas que teria gostado de conhecer.
– Não sabia que você estava traduzindo isso – disse.
– Traduzi e editei. Poli alguns pontos mais ásperos, preenchi transições que você tinha omitido, e por aí. Duas décades de trabalho. Você deveria se orgulhar, suas ideias formam, em grande parte, os princípios fundamentais de um livro acabado.
O livro consistia inteiramente das ideias de Shevek e Atro.
– Sim – disse Shevek. Baixou os olhos para as próprias mãos. Em seguida, acrescentou: – Gostaria de publicar o artigo que escrevi este trimestre sobre Reversibilidade. Deve ser enviado a Atro. Iria interessá-lo. Ele ainda está obcecado com a causalidade.
– Publicar? Onde?
– Em iótico, quero dizer... em Urras. Envie-o para Atro, como este último, e ele vai publicá-lo numa das revistas de lá.
– Você não pode lhes enviar um trabalho que não foi publicado aqui.
– Mas é o que fizemos com este. Tudo, exceto minha réplica, saiu na Revista de Ieu Eun antes de sair aqui.
– Não pude evitar isso, mas por que você acha que corri para imprimir este livro? Você não pensa que todo mundo no CPD aprova nossa troca de ideias com Urras, pensa? A Defesa insiste para que cada palavra que sai daqui naqueles cargueiros passe antes por um perito aprovado pelo CPD. Além do mais, você acha que todos os físicos provincianos que não têm acesso a esse canal com Urras não se ressentem conosco? Acha que não ficam com inveja? Há pessoas só esperando, esperando que a gente dê um passo em falso. E se um dia nos pegarem, perderemos o malote nos cargueiros urrastis. Está entendendo a situação agora?
– Como o Instituto conseguiu aquele malote, afinal?
– Com a eleição de Pegvur para o CPD, dez anos atrás – Pegvur tinha sido um físico de razoável importância. – Tenho pisado em ovos para mantê-lo desde então. Entende?
Shevek assentiu com um movimento da cabeça.
– De todo modo, Atro não vai querer ler aquela coisa que você escreveu. Dei uma lida naquele artigo e lhe devolvi décades atrás. Quando você vai parar de perder tempo com essas teorias reacionárias às quais Gvarab se agarra? Você não vê que ela perdeu a vida inteira nelas? Se você insistir nisso, vai se expor ao ridículo. O que, é claro, é seu direito inalienável. Mas não vai expor a mim ao ridículo.
– E se eu submeter o artigo para publicação aqui, em právico, então?
– Perda de tempo.
Shevek engoliu isso com uma leve inclinação da cabeça. Levantou-se, magricela e anguloso, e ficou em pé por um instante, absorto em seus pensamentos. A luz do inverno pousou destoante em seu cabelo, que ele trazia preso para trás numa trança, e em seu rosto sereno. Foi até a mesa e pegou um exemplar da pilha de livros novos.
– Gostaria de enviar um para Mitis – disse.
– Pegue quantos quiser. Escute. Se você acha que sabe mais o que está fazendo do que eu, submeta aquele artigo à Editora. Você não precisa de permissão! Isto aqui não é nenhuma hierarquia, você sabe! Não posso impedi-lo. Tudo o que posso fazer é aconselhá-lo.
– Você é o consultor do Sindicato da Editora para os manuscritos de física – disse Shevek. – Pensei que pouparia o tempo de todo mundo pedindo a você agora.
Sua delicadeza era intransigente; por não competir pela dominância, ele era indômito.
– Poupar tempo, o que quer dizer com isso? – Sabul resmungou, mas Sabul era também odoniano: contorceu-se como se atormentado fisicamente pela própria hipocrisia, afastou-se de Shevek, aproximou-se de novo e disse, com malevolência, a voz grossa de raiva: – Vá em frente! Submeta a maldita coisa! Vou me declarar incompetente para apreciá-la. Vou falar para eles consultarem Gvarab. Ela é a perita em Simultaneidade, não eu. Aquela mística gagá. O universo como uma gigantesca corda de harpa, oscilando dentro e fora da existência! Aliás, que nota ela toca? Passagens das Harmonias Numéricas, suponho? O fato é que não tenho competência, isto é, não tenho vontade de dar meu parecer ao CPD ou à Editora sobre esse excremento intelectual!
– O trabalho que fiz para você – disse Shevek – faz parte do trabalho que fiz seguindo as ideias de Gvarab sobre Simultaneidade. Se quiser um, vai ter de apoiar o outro. A semente cresce melhor na merda, como se diz no Poente Norte.
Ficou parado por um instante e, sem obter uma resposta verbal de Sabul, despediu-se e saiu.
Sabia que vencera uma batalha, e fácil, sem violência aparente. Mas houve violência.
Como Mitis previra, ele era “o homem de Sabul”. Há anos Sabul deixara de ser um físico atuante; sua grande reputação foi construída sobre expropriações de ideias alheias. O papel de Shevek era pensar para Sabul receber os créditos.
Uma situação eticamente intolerável, é óbvio, que Shevek iria denunciar e abandonar. Só que ele não o fez. Precisava de Sabul. Queria publicar o que escreveu e enviar aos homens que poderiam entendê-lo, os físicos urrastis; precisava das ideias deles, de suas críticas, de suas colaborações.
Assim tinham negociado, ele e Sabul, negociado como exploradores. Não fora uma batalha, mas uma venda. Eu lhe dou isto e você me dá aquilo. Recuse-me e eu o recusarei. Vendido? Vendido! A carreira de Shevek, como a existência de sua sociedade, dependia da continuidade de um fundamental e não admitido contrato de exploração. Não uma relação de ajuda mútua e solidariedade, mas uma relação exploratória; não orgânica, mas mecânica. Poderia a função verdadeira surgir de uma base disfuncional?
Porém, tudo o que quero é terminar um trabalho, Shevek alegava em sua mente, enquanto atravessava a alameda em direção ao quadrilátero de domicílios na tarde cinza e ventosa. É meu dever, é minha alegria, é o objetivo de toda a minha vida. O homem com quem tenho de trabalhar é competitivo e dominador, um explorador, mas não posso mudar isso; se eu quiser trabalhar, vou ter de trabalhar com ele.
Pensou no aviso de Mitis. Pensou no Instituto do Poente Norte e na festa da noite anterior à sua partida. Tudo parecia tão distante agora, e de uma tranquilidade e segurança tão infantis que ele quase chorou de saudade. Quando passou sob o pórtico do Prédio das Ciências da Vida, uma moça que caminhava por ali olhou de viés para ele, e ele achou que ela se parecia com aquela moça – qual era o nome dela? –, aquela de cabelo curto, que tinha comido todos aqueles bolos fritos na noite da festa. Parou e se virou, mas a moça dobrou a esquina e sumiu. De qualquer forma, esta tinha cabelo comprido. Sumiu, sumiu, tudo estava sumindo. Saiu da proteção do pórtico e foi para o vento. Havia uma chuva fina no vento, esparsa. A chuva era esparsa nas poucas vezes em que caía. Era um mundo árido. Árido, pálido, hostil. “Hostil”, Shevek disse em voz alta, em iótico. Nunca tinha ouvido o som daquela língua; soava muito estranha. A chuva picava seu rosto como cascalho atirado. Era uma chuva hostil. À dor de garganta uniu-se uma terrível dor de cabeça, da qual acabara de se dar conta. Chegou ao Quarto 46 e deitou-se na cama, que pareceu estar muito mais baixa do que de costume. Ele tremia, não conseguia parar de tremer. Enrolou-se no cobertor cor de laranja e se agasalhou, tentando dormir, mas não conseguia parar de tremer, pois estava sob constante bombardeio atômico vindo de todos os lados, aumentando conforme a temperatura aumentava.
Nunca tinha ficado doente e nunca conhecera nenhum desconforto físico pior do que o cansaço. Como não fazia ideia de como era febre alta, pensou durante os intervalos lúcidos daquela longa noite que estava ficando louco. O medo da insanidade levou-o a procurar ajuda quando amanheceu o dia. Estava por demais assustado consigo mesmo para pedir ajuda aos vizinhos do corredor: tinha ouvido seus próprios delírios noturnos. Arrastou-se à clínica local, a oito quarteirões de distância, as ruas frias brilhantes com o nascer do sol que rodopiava solenemente à sua volta. Na clínica, diagnosticaram sua insanidade como uma pneumonia branda e disseram-lhe para ocupar um leito na Ala Dois. Ele protestou. A enfermeira o acusou de estar egoizando e explicou que, se ele fosse para casa, um médico iria ter o trabalho de atendê-lo lá e providenciar tratamento particular para ele. Ele foi para o leito da Ala Dois. Todas as outras pessoas da ala eram velhas. Veio uma enfermeira e lhe ofereceu um copo d’água e um comprimido.
– O que é isso? – Shevek perguntou, com suspeita. Seus dentes batiam de novo.
– Antipirético.
– O que é isso?
– Para baixar a febre.
– Não preciso disso.
A enfermeira encolheu os ombros.
– Tudo bem – ela falou, e prosseguiu.
A maioria dos jovens anarrestis sentia vergonha de ficar doente: resultado da profilaxia muito bem-sucedida de sua sociedade e também, talvez, de uma confusão surgida do uso analógico das palavras “saudável” e “doente”. Consideravam a doença um crime, mesmo quando involuntária. Ceder ao impulso criminoso, entregar-se a ele tomando analgésicos era imoral. Evitavam comprimidos e injeções. Quando atingiam a meia-idade e a velhice, a maioria mudava de opinião. A dor superava a vergonha. A enfermeira deu os remédios dos velhos na Ala Dois, e eles brincaram com ela. Shevek observava com incompreensão inerte.
Mais tarde chegou um médico com uma seringa.
– Não quero – disse Shevek.
– Pare de egoizar – disse o médico. – Vire-se. – Shevek obedeceu.
Mais tarde veio uma mulher segurando um copo d’água para ele, mas ele tremia tanto que derramou a água, molhando o cobertor.
– Me deixe em paz – ele disse.
– Quem é você? – ela respondeu, mas ele não entendeu. Ele a mandou embora, sentia-se muito bem. Então explicou a ela por que a hipótese cíclica, embora improdutiva em si, era essencial à sua abordagem de uma possível teoria da Simultaneidade, uma pedra fundamental. Falou parte disso na própria língua, parte em iótico, e escreveu as fórmulas e equações numa lousa com um pedaço de giz, para que ela e o restante do grupo entendessem, e temia que eles se equivocassem sobre a pedra fundamental. Ela tocou no rosto dele e prendeu-lhe o cabelo. As mãos dela eram frias. Ele nunca sentira algo mais prazeroso em toda a sua vida do que o toque daquelas mãos. Tentou segurá-las. Mas a mulher não estava mais ali, tinha sumido.
Muito tempo depois, ele acordou. Conseguia respirar. Estava perfeitamente bem. Estava tudo bem. Não se sentiu inclinado a mover-se. Mover-se perturbaria o momento perfeito, estável, o equilíbrio do mundo. A luz de inverno no teto era de uma beleza indizível. Ficou deitado, apreciando-a. Os velhos da ala riam juntos gargalhadas velhas e roucas, um belo som. A mulher chegou e sentou-se ao lado de sua maca. Olhou para ela e sorriu.
– Como se sente?
– Renascido. Quem é você?
Ela também sorriu.
– A mãe.
– Renascimento. Mas eu deveria ganhar um corpo novo, não o mesmo corpo antigo.
– Do que você está falando?
– De Urras. O renascimento faz parte da religião deles.
– Você ainda está confuso. – Ela tocou a testa dele. – Sem febre. – A voz dela dizendo aquelas duas palavras atingiu algo muito profundo no ser de Shevek, um lugar escuro, um lugar murado, que reverberou de volta no escuro. Olhou para a mulher e disse, com terror:
– Você é Rulag.
– Eu lhe disse isso. Várias vezes!
Ela manteve uma expressão despreocupada, até mesmo bem-humorada. Shevek não tinha condições de manter nada. Não tinha força para se mover, mas encolheu-se, afastando-se dela com visível medo, como se ela não fosse sua mãe, mas a morte. Se ela percebeu esse fraco movimento, não o demonstrou.
Era uma mulher bonita, morena, de traços finos e bem proporcionados, sem rugas, embora devesse ter mais de 40 anos. Tudo nela era harmonioso e controlado. Tinha a voz baixa, de um timbre agradável.
– Não sabia que você estava em Abbenay – ela disse –, ou onde você estava... ou mesmo se estava vivo. Eu estava no depósito da Editora dando uma olhada nas novas publicações, escolhendo coisas para a biblioteca de engenharia e vi um livro escrito por Sabul e Shevek. Sabul eu conhecia, claro. Mas quem era Shevek? Por que esse nome soa tão familiar? Só me dei conta um ou dois minutos depois. Estranho, não é? Mas não fazia sentido. O Shevek que eu conhecia teria apenas 20 anos e era pouco provável que estivesse assinando a coautoria de tratados sobre metacosmologia com Sabul. Mas qualquer outro Shevek teria menos de 20 anos!... Então vim conferir. Um rapaz no domicílio me informou que você estava aqui... É chocante a falta de pessoal nesta clínica. Não entendo por que os síndicos não solicitam mais postos à Federação Médica, ou então por que não reduzem o número de internações; alguns desses médicos e enfermeiras trabalham oito horas por dia! Claro que existem pessoas nas artes médicas que de fato querem isso: o impulso do autossacrifício. Infelizmente, isso não leva à máxima eficiência... Foi estranho encontrar você. Jamais o teria reconhecido... Você e Palat mantêm contato? Como ele está?
– Ele morreu.
– Ah. – Não havia sinal de choque ou sofrimento na voz de Rulag, apenas uma espécie de aceitação melancólica, uma nota triste. Shevek ficou emocionado, capaz de vê-la, por um instante, como uma pessoa.
– Há quanto tempo ele morreu?
– Oito anos.
– Não devia ter mais de 35 anos.
– Houve um terremoto em Campina Vasta. Vivíamos lá há uns cinco anos, ele era engenheiro civil na comunidade. O tremor danificou o centro de aprendizagem. Ele e outras pessoas estavam tentando retirar algumas das crianças que ficaram presas lá dentro. Houve um segundo tremor, e o prédio todo ruiu. Morreram 32 pessoas.
– Você estava lá?
– Eu tinha ido iniciar meu treinamento no Instituto Regional uns dez dias antes do terremoto.
– Pobre Palat. – Ela refletiu, o rosto sereno e imóvel. – De certo modo, foi típico dele... morrer com os outros, uma estatística, 1 de 32...
– As estatísticas teriam sido maiores se ele não tivesse entrado no prédio – disse Shevek.
Ela então olhou para ele. Seu olhar não demonstrava que emoções sentia ou não sentia. O que disse pode ter sido espontâneo ou deliberado, não havia como saber.
– Você gostava de Palat.
Ele não respondeu.
– Você não se parece com ele. Na verdade, você se parece comigo, exceto na cor. Achei que você fosse ficar parecido com Palat. Foi o que pressupus. Estranho como a imaginação faz essas suposições. Ele ficou com você, então?
Shevek confirmou com a cabeça.
– Ele teve sorte. – Ela não suspirou, mas havia um suspiro reprimido em sua voz.
– Eu também.
Houve uma pausa. Ela deu um leve sorriso.
– Sim, eu poderia ter mantido contato com você. Você se ressente comigo por eu não ter feito isso?
– Ressentido com você? Eu nunca a conheci.
– Conheceu. Palat e eu o mantivemos no domicílio, mesmo depois que você desmamou. Nós dois quisemos. Os primeiros anos de contato são essenciais para o indivíduo; os psicólogos comprovaram isso de maneira conclusiva. A socialização plena só pode se desenvolver a partir desse início afetuoso... Eu tinha vontade de continuar a parceria. Tentei encontrar um posto para Palat aqui em Abbenay. Nunca tinha vaga na linha de trabalho dele, e ele se recusava a vir sem um posto. Era teimoso... No começo me escrevia para me contar como você estava, depois parou de escrever.
– Não tem importância – respondeu o jovem. Seu rosto, abatido pela doença, estava coberto de gotas de suor muito finas, o que dava às suas bochechas e à sua testa uma aparência lustrosa, como que untadas.
Houve novo silêncio, e Rulag disse em sua voz agradável e controlada:
– Ah, sim, teve importância, e ainda tem. Mas era Palat que devia ficar com você e acompanhá-lo nos seus anos de integração. Ele lhe dava apoio, era paterno, e eu não. Para mim, o trabalho vem em primeiro lugar. Mesmo assim, estou contente por você estar aqui agora, Shevek. Talvez eu lhe possa ser de alguma utilidade neste momento. Sei que Abbenay é um lugar ameaçador, no começo. A gente se sente perdido, isolado, carente da solidariedade simples das cidades pequenas. Conheço pessoas interessantes que talvez você queira conhecer. E pessoas que podem lhe ser úteis. Conheço Sabul; faço alguma ideia do que você deve ter passado com ele, com o Instituto inteiro. Eles fazem jogo de dominação lá. É preciso ter experiência para saber ganhar deles. De todo modo, estou contente por você estar aqui. Isso me dá um prazer que eu nunca procurei... uma espécie de júbilo... Li o seu livro. É seu, não é? Por que outro motivo Sabul publicaria em coautoria com um estudante de 20 anos? O assunto está além da minha compreensão, sou apenas uma engenheira. Confesso que estou orgulhosa de você. É estranho, não é? Insensato. Proprietário, até. Como se você fosse algo que me pertencesse! Mas, quando se envelhece, a gente necessita de algumas certezas que nem sempre são totalmente sensatas. Para poder seguir adiante.
Ele viu a solidão dela. Viu sua dor, e ressentiu-se. A dor o ameaçava. Ameaçava a lealdade de seu pai, aquele amor puro e constante ao qual sua vida se arraigara. Que direito ela tinha, ela que deixara Palat carente, de vir com suas próprias carências procurar o filho de Palat? Ele não tinha nada, nada para oferecer a ela, nem a mais ninguém.
– Teria sido melhor – ele disse – se você tivesse continuado a pensar em mim como uma estatística também.
– Ah – ela disse, a resposta suave, habitual e desolada. Desviou o olhar dele.
Os velhos nos fundos da enfermaria a admiravam, cutucando-se.
– Suponho – ela disse – que eu estava tentando recuperar você. Mas pensei que você também pudesse me recuperar. Se você quisesse.
Ele não disse nada.
– A não ser biologicamente, não somos mãe e filho, é claro. – Ela recobrou o leve sorriso. – Você não se lembra de mim, e o bebê de que me lembro não é esse homem de 20 anos. Tudo aquilo é passado, é irrelevante. Mas somos irmãos, aqui e agora. Que é o que importa, não é?
– Não sei.
Ela ficou sentada por um minuto, sem falar, então se levantou.
– Você precisa descansar. Estava bem doente da primeira vez que vim. Eles dizem que agora você vai ficar bom. Não creio que eu vá voltar.
Ele não falou.
– Adeus, Shevek – ela disse, e virou-se enquanto falava. Ele teve um vislumbre, ou um pesadelo da imaginação, do rosto dela mudando drasticamente enquanto falava, decompondo-se, despedaçando-se. Deve ter sido imaginação. Ela saiu da enfermaria com o andar gracioso e cadenciado de uma bela mulher, e ele a viu parar e falar, sorrindo, com a enfermeira no corredor.
Sucumbiu ao medo que viera com ela, à sensação de promessas quebradas, à incoerência do tempo. Desmoronou. Começou a chorar, tentando esconder o rosto no abrigo dos braços, pois não encontrou forças para se virar. Um dos velhos doentes aproximou-se, sentou-se na maca e deu-lhe uns tapinhas no ombro.
– Está tudo bem, irmão. Vai ficar tudo bem, irmãozinho – ele murmurou. Shevek o ouviu e sentiu seu toque, mas não sentiu nenhum reconforto. Mesmo vindo de um irmão, não existe conforto naquele momento doloroso, no escuro, ao pé do muro.
5
°°°°°
Shevek terminou sua carreira de turista com alívio. O novo período letivo estava começando em Ieu Eun; agora ele poderia se instalar para viver, e trabalhar, no Paraíso, em vez de simplesmente olhá-lo de fora.
Assumiu dois seminários e um curso livre. Não o tinham requisitado como professor, mas ele pediu para dar aulas, e os administradores lhe providenciaram os seminários. As aulas livres não foram ideia dele, nem dos administradores. Uma delegação de alunos veio até ele e lhe pediu para dar o curso. Concordou na hora. Era assim que os cursos eram organizados nos centros de aprendizagem anarrestis: pela demanda dos estudantes, ou pela iniciativa do professor, ou do professor e dos alunos juntos. Quando soube que os administradores ficaram preocupados, ele riu.
– Eles esperam que os estudantes não sejam anarquistas? – perguntou. – O que mais os jovens podem ser? Quando se está embaixo, deve-se organizar as coisas de baixo para cima!
Ele não tinha a menor intenção de deixar os administradores lhe tirarem o curso – já tinha enfrentado esse tipo de batalha – e, como comunicou sua firmeza aos alunos, os alunos também foram firmes. Para evitar publicidade desagradável, os reitores da universidade cederam, e Shevek iniciou o curso com uma plateia de 2 mil pessoas no primeiro dia. Esse número logo baixou. Ele só falava de física, jamais se desviando para assuntos pessoais ou de política, e era física num nível bem avançado. Mas várias centenas de estudantes continuaram a comparecer. Alguns vinham por mera curiosidade, para verem o homem da Lua; outros eram atraídos pela personalidade de Shevek, pelos vislumbres do homem e do libertário que podiam captar em suas palavras, mesmo quando não conseguiam acompanhar sua matemática. E um número surpreendente deles era capaz de acompanhar tanto a filosofia quanto a matemática.
Aqueles estudantes tinham um preparo soberbo. Suas mentes eram refinadas, perspicazes, lúcidas. Quando não estavam trabalhando, descansavam. Não eram embotadas ou distraídas por uma dúzia de outras obrigações. Nunca dormiam de cansaço nas aulas por terem trabalhado no rodízio no dia anterior. Sua sociedade os mantinha completamente livres de carências, distrações e preocupações.
O que estavam livres para fazer, entretanto, era outra questão. Parecia a Shevek que a liberdade de obrigações era exatamente proporcional à sua falta de liberdade de iniciativa.
Shevek ficou estarrecido com o sistema de avaliação, quando lhe explicaram; não conseguia imaginar impedimento maior ao desejo natural de aprender do que aquele modelo de se empanturrar de informações e vomitá-las por exigência. No início, recusou-se a aplicar quaisquer exames ou notas, mas isso desagradou tanto aos administradores que, por não desejar ser descortês com seus anfitriões, cedeu. Pediu aos alunos que escrevessem um artigo sobre qualquer problema de física que lhes interessasse e disse que daria a nota máxima a todos, para que os burocratas tivessem algo a escrever em suas listas e formulários. Para sua surpresa, muitos alunos foram reclamar com ele. Queriam que ele definisse os problemas, que fizesse as perguntas certas; não queriam pensar em perguntas, mas escrever as respostas que tinham aprendido. E alguns fizeram veemente objeção ao fato de ele dar a todos a mesma nota. Como os alunos diligentes poderiam se distinguir dos negligentes? Qual a vantagem de ter tanto trabalho? Se não haveria distinções competitivas, era melhor não fazer nada.
– Bem, é claro – disse Shevek, perturbado. – Se não querem fazer o trabalho, não devem fazê-lo.
Eles foram embora insatisfeitos, mas respeitosos. Eram rapazes agradáveis, de modos francos e civilizados. As leituras de Shevek sobre a história urrasti levaram-no a concluir que eles eram, na verdade, embora a palavra raramente fosse usada, aristocratas. Nos tempos feudais, a aristocracia enviara seus filhos à universidade, conferindo superioridade à instituição. Agora ocorria o contrário: a universidade conferia superioridade ao homem. Eles contaram a Shevek, com orgulho, que a competição por bolsas de estudo em Ieu Eun tornava-se mais acirrada a cada ano, provando a democracia essencial do instituto.
– Vocês colocam mais uma tranca na porta e chamam isso de democracia – ele disse.
Shevek gostava dos seus alunos educados e inteligentes, mas não sentia grande afeto por nenhum deles. Planejavam carreiras de acadêmicos ou cientistas industriais e, para eles, o que aprendiam com Shevek era um meio para um fim: sucesso em suas carreiras. Ou tinham isso, ou negavam a importância de qualquer outra coisa que ele lhes oferecesse.
Shevek viu-se, portanto, sem nenhuma outra obrigação além da preparação de seus três cursos; o restante do tempo era todo seu. Não estivera numa situação assim desde os 20 e poucos anos, em seus primeiros tempos no Instituto de Abbenay. Desde então, sua vida social e pessoal ficara cada vez mais complicada e exigente. Ele se tornara não apenas físico, mas também parceiro, pai, odoniano e, por fim, um reformador social. Como tal, não estivera a salvo, e não esperara estar a salvo, de quaisquer preocupações e responsabilidades que surgissem. Não estivera livre para nada: só estivera livre para fazer alguma coisa. Ali, ocorria o inverso. Como todos os alunos e professores, ele não tinha nada a fazer, exceto seu trabalho intelectual, literalmente nada. Arrumavam a cama para eles, varriam o chão para eles, administravam a rotina da faculdade para eles, liberavam o caminho para eles. E nada de esposas, nem famílias. Absolutamente nenhuma mulher. Os alunos da universidade não tinham permissão de se casar. Professores casados geralmente moravam, durante cinco dos sete dias da semana, em aposentos de solteiro no campus, indo para casa somente nos fins de semana. Nada os distraía. Total tempo livre para trabalhar; todos os materiais à mão; estímulo intelectual, discussões, conversas sempre que quisessem; nenhuma pressão. De fato, o Paraíso! Mas ele parecia incapaz de se dedicar ao trabalho.
Faltava algo – nele, pensou, não no lugar. Ele não estava à altura. Não era forte o suficiente para aceitar o que lhe era oferecido com tanta generosidade. Sentia-se seco, árido, como uma planta do deserto, naquele lindo oásis. A vida em Anarres o fechara, trancara sua alma; as águas da vida jorravam à sua volta e, no entanto, ele não conseguia beber.
Forçou-se a trabalhar, mas mesmo aí não encontrava segurança. Parecia ter perdido a intuição que, no conceito que fazia de si mesmo, considerava sua principal vantagem sobre a maior parte dos outros físicos, a habilidade de sentir onde estava o problema realmente importante, o indício que o guiava ao centro. Ali, parecia não ter o senso de direção. Durante o verão e o outono, trabalhava nos Laboratórios de Pesquisa da Luz, lia bastante e escreveu três artigos: um meio ano produtivo, pelos padrões normais. Mas sabia que, na verdade, não tinha feito nada de real.
De fato, quanto mais tempo vivia em Urras, menos real aquele lugar lhe parecia. Era como se tudo lhe escapasse – todo aquele mundo magnífico, inesgotável e cheio de vida que ele vira através das janelas do quarto, em seu primeiro dia no planeta. Tudo escorregava de suas mãos desajeitadas e alienígenas, tudo se esquivava dele e, quando tornava a olhar, estava segurando algo completamente diferente, algo que ele não queria de jeito nenhum, uma espécie de papel usado, de embalagem, de lixo.
Ganhou dinheiro com os artigos que escreveu. Já tinha em sua conta, no Banco Nacional, 10 mil Unidades Monetárias Internacionais, do prêmio Seo Oen, e 5 mil de doação do Governo Iota. Esta soma agora aumentava com seu salário como professor e o dinheiro pago a ele pela Editora Universitária pelas três monografias. No início, achou tudo isso engraçado; depois, ficou preocupado. Não deveria descartar como ridículo algo que, afinal de contas, era de tremenda importância para os urrastis. Tentou ler um texto elementar sobre economia, mas a leitura o entediou além do suportável; era como ouvir a narração interminável de um sonho longo e idiota. Não conseguia se forçar a entender como os bancos funcionavam e por aí afora, pois todas as operações do capitalismo eram-lhe tão sem sentido quanto os ritos de uma religião primitiva, tão bárbara, tão elaborada e tão desnecessária. No sacrifício humano a uma divindade talvez houvesse ao menos uma beleza equivocada e terrível; nos ritos dos cambistas, onde se presumia que a cobiça, a preguiça e a inveja movem as ações humanas, até mesmo o terrível tornava-se banal. Shevek olhava essa mesquinhez monstruosa com desprezo e sem interesse. Ele não admitia, e não podia admitir, que, na verdade, ela o amedrontava.
Saio Pae o levara às “compras” durante sua segunda semana em A-Io. Embora não tivesse intenção de cortar o cabelo – o cabelo, afinal, fazia parte dele –, queria algumas roupas e um par de sapatos no estilo urrasti. Desejava que sua aparência fosse alienígena somente naquilo que não pudesse evitar. A simplicidade de seu velho terno chamava muito a atenção, e as botas grosseiras do deserto eram realmente muito estranhas em meio aos luxuosos calçados dos iotas. Assim, a seu pedido, Pae o levara à Panomara Saemtenevia, a elegante rua de compras de Nio Esseia, para que um alfaiate e um sapateiro tirassem as suas medidas.
A experiência toda tinha sido tão perturbadora que ele a tirou da cabeça o mais rápido possível, mas sonhou com ela durante meses, teve pesadelos. A Panomara Saemtenevia tinha três quilômetros de extensão e era uma massa sólida de pessoas, tráfego e coisas; coisas para comprar, coisas à venda. Casacos, vestidos, túnicas, mantos, calções, camisas, blusas, chapéus, sapatos, meias, cachecóis, xales, coletes, capas, guarda-chuvas, roupas de dormir, de nadar, de praticar esportes, de festas à tarde, de festas à noite, de festas no campo, de viagem, de teatro, de cavalgada, de jardinagem, de recepção de convidados, de passeios de barco, de jantar, de caça – todas diferentes, todas em centenas de diferentes cortes, estilos, cores, texturas, materiais. Perfumes, relógios, luminárias, estátuas, cosméticos, velas, quadros, câmeras, jogos, vasos, sofás, chaleiras, quebra-cabeças, travesseiros, bonecas, escorredores de macarrão, pufes, joias, tapetes, palitos de dente, calendários, mordedores de bebês de platina com alças de cristal, uma máquina elétrica para apontar lápis, um relógio de pulso com números em diamante; bibelôs, suvenires, bugigangas, lembrancinhas, quinquilharias, bricabraques. Tudo inútil, para começo de conversa, ou enfeitado para disfarçar sua utilidade; quilômetros de luxos, quilômetros de excremento. No primeiro quarteirão, Shevek tinha parado para olhar um casaco todo felpudo e manchado, exibido no centro de uma resplandecente vitrine de roupas e joias.
– O casaco custa 8.400 unidades? – perguntou, incrédulo, pois recentemente tinha lido no jornal que o “salário mínimo” era cerca de 2.000 unidades por ano.
– Ah, sim, isso é pele legítima, muito rara, agora que os animais estão protegidos – disse Pae. – Bonito, não é? As mulheres adoram peles. – E eles continuaram. Depois de outro quarteirão, Shevek sentia-se completamente exausto. Não conseguia olhar mais nada. Queria esconder os olhos.
E o mais estranho daquela rua do pesadelo é que nenhuma daquelas milhões de coisas à venda era feita lá. Eram apenas vendidas lá. Onde estavam as oficinas, as fábricas, onde estavam os fazendeiros, os artesãos, os mineiros, os tecelões, os químicos, os entalhadores, os tintureiros, os desenhistas, os maquinistas, onde estavam as mãos, as pessoas que faziam tudo? Longe da vista, em algum outro lugar. Atrás de paredes. Todas as pessoas nas lojas eram compradoras ou vendedoras. Não tinham relação alguma com as coisas, exceto a de posse.
Descobriu que, depois que tirassem suas medidas, ele poderia encomendar qualquer coisa que precisasse pelo telefone, e decidiu jamais voltar à rua do pesadelo.
As roupas e os sapatos foram entregues em uma semana. Experimentou-os e olhou-se no espelho de corpo inteiro que havia no quarto. O paletó-túnica cinza bem ajustado, a camisa branca, os calções pretos, as meias e os sapatos caíam bem em sua figura comprida e magra e nos pés estreitos. Tocou com cuidado a superfície de um dos sapatos. Era feito da mesma coisa que revestia as cadeiras do outro aposento, do material que parecia pele; há pouco tempo perguntara a alguém o que era aquilo, e responderam que era pele – pele de animal, que chamavam de couro. Franziu a testa ao toque, ergueu-se e afastou-se do espelho, mas não antes de ser forçado a ver que, vestido assim, a semelhança com sua mãe Rulag era maior do que nunca.
Houve um longo intervalo entre os períodos letivos, no meio do outono. A maioria dos alunos foi para casa, de férias. Shevek partiu para alguns dias de passeio a pé nas montanhas, em Meiteis, na companhia de um grupo de alunos e pesquisadores do Laboratório de Pesquisa da Luz, depois voltou para solicitar algumas horas no grande computador, que era mantido muito ocupado durante o período de aulas. Mas, cansado do trabalho que não levava a lugar nenhum, não trabalhou muito. Dormiu mais do que o habitual, caminhou, leu e disse a si mesmo que o problema é que ele simplesmente se apressara demais; não se pode apreender todo um mundo novo em poucos meses. Os gramados e bosques da universidade estavam lindos e desalinhados, folhas douradas brilhando e voando ao vento chuvoso, sob um céu suave e cinza. Shevek pesquisou as obras dos grandes poetas iotas e as leu; agora os compreendia quando falavam de flores, de pássaros voando e as cores da floresta no outono. Essa compreensão lhe trouxe grande prazer. Ao anoitecer, era agradável retornar aos seus aposentos, cuja beleza calma e harmônica nunca deixou de satisfazê-lo. Estava acostumado ao conforto gracioso agora, tinha se tornado algo familiar – assim como a comida, em toda a sua variedade e quantidade, que a princípio o surpreendera. O homem que atendia a mesa conhecia seus gostos e o servia como se ele mesmo estivesse se servindo. Ainda não comia carne; tentara comer, por educação e para provar a si mesmo que não tinha preconceitos irracionais, mas seu estômago tinha motivos que a própria razão desconhece e se rebelou. Após algumas tentativas quase desastrosas, desistira e permanecera vegetariano, embora de bom apetite. Gostava muito do jantar. Engordara três ou quatro quilos desde que viera para Urras; estava com muito boa aparência agora, bronzeado de seu passeio nas montanhas, descansado pelas férias. Era uma figura impressionante quando se levantou da mesa no grande salão de jantar com teto de vigas escondidas na sombra lá no alto, paredes almofadadas com retratos pendurados e mesas com porcelana e prataria brilhando à luz de velas. Cumprimentou alguém da outra mesa e se retirou, com uma expressão de tranquilo distanciamento. Do outro lado do salão, Chifoilisk o viu e o seguiu, alcançando-o à porta.
– Tem alguns minutos, Shevek?
– Sim. Nos meus aposentos? – A essa altura, já se acostumara ao uso constante do pronome possessivo e o utilizava sem constrangimento.
Chifoilisk pareceu hesitar.
– Que tal na biblioteca? Fica no seu caminho, e eu quero pegar um livro lá.
Começaram a atravessar o quadrilátero em direção à Biblioteca da Ciência Nobre – o antigo termo para a física, que até em Anarres foi preservado em certos usos –, caminhando lado a lado no escuro chuvoso. Chifoilisk abriu um guarda-chuva, mas Shevek andava na chuva como os iotas andavam ao sol, com alegria.
– Você está ficando ensopado – Chifoilisk resmungou. – Você não tinha um problema nos pulmões? Melhor tomar cuidado.
– Estou me sentindo muito bem – respondeu Shevek, enquanto caminhava a passos largos na chuva fina e fresca. – Sabe aquele médico do governo em Anarres? Ele me prescreveu algumas inalações. Funcionou. Não estou tossindo mais. Pedi para o médico descrever o procedimento e os remédios, pelo rádio, ao Sindicato da Iniciativa, em Abbenay. Ele fez isso. Ficou feliz em fazê-lo. Foi tudo muito simples; deve aliviar muito o sofrimento da tosse provocada pela poeira. Por quê, por que não antes? Por que não trabalhamos juntos, Chifoilisk?
O thuviano soltou um leve resmungo sardônico. Entraram na sala de leitura da biblioteca. Corredores de livros antigos, sob delicados arcos duplos de mármore, repousavam em serenidade sombria; as luminárias das longas mesas de leitura eram globos simples de alabastro. Não havia mais ninguém ali, mas um atendente logo surgiu atrás deles para acender a lareira de mármore e verificar se não precisavam de mais nada antes que ele se retirasse de novo. Chifoilisk parou diante da lareira, observando a lenha começando a arder. Suas sobrancelhas estavam eriçadas acima dos olhos pequenos; seu rosto grosseiro, moreno e intelectual parecia mais velho que de hábito.
– Vou ser desagradável, Shevek – disse, em sua voz áspera. E acrescentou: – Até aí, nenhuma surpresa, suponho... – Humildade que Shevek não esperava dele.
– Qual o problema?
– Quero saber se você sabe o que está fazendo aqui.
Após uma pausa, Shevek disse:
– Acho que sei.
– Tem consciência, então, de que foi comprado?
– Comprado?
– Cooptado, se prefere. Ouça. Por mais que um homem seja inteligente, ele não pode ver o que não sabe ver. Como pode entender sua situação aqui, numa economia capitalista, num Estado plutocrático e oligárquico? Como pode entender, vindo da sua pequena comuna de idealistas famintos, lá no céu?
– Chifoilisk, não sobraram muitos idealistas em Anarres, posso lhe assegurar. Os Colonos foram idealistas, sim, ao trocar este planeta pelos nossos desertos. Mas isso foi há sete gerações! Nossa sociedade é prática. Talvez prática demais, preocupada demais só com a sobrevivência. O que há de idealismo na cooperação social e na ajuda mútua, se isso é apenas um meio de continuar vivo?
– Não posso discutir os valores odonianos com você. Não que eu não tenha tido vontade! Conheço bem o assunto, sabe. Estamos mais próximos desses valores, no meu país, do que estas pessoas aqui. Somos produtos do mesmo movimento revolucionário do oitavo século... somos socialistas, como você.
– Mas vocês são hierarquistas. O Estado de Thu é ainda mais centralizado do que o Estado de A-Io. Uma única estrutura de poder controla tudo: governo, administração, polícia, exército, educação, leis, comércio, manufaturas. E vocês têm a economia baseada em moeda.
– Uma economia baseada no princípio de que cada trabalhador é pago pelo que merece, pelo valor do seu trabalho... não por capitalistas a quem ele é obrigado a servir, mas pelo Estado, do qual ele é membro!
– É o trabalhador que estabelece o valor de seu próprio trabalho?
– Por que você não vai a Thu para ver como funciona o socialismo real?
– Eu sei como funciona o socialismo real – respondeu Shevek. – Eu poderia falar sobre isso para vocês, mas o seu governo me deixaria explicar, em Thu?
Chifoilisk atiçou com o pé uma lenha que ainda não começara a pegar fogo. Sua expressão, enquanto olhava a lareira, era amarga, as linhas entre o nariz e os cantos da boca, muito profundas. Não respondeu à pergunta de Shevek. Por fim, disse:
– Não vou tentar enganá-lo. Não adianta; de qualquer modo, não o farei. O que tenho a lhe perguntar é o seguinte: você estaria disposto a ir a Thu?
– Não neste momento, Chifoilisk.
– Mas o que você pode realizar... aqui?
– Meu trabalho. Além disso, aqui estou perto da sede do Conselho dos Governos Mundiais...
– O CGM? Eles são controlados por A-Io há trinta anos. Não conte com eles para salvá-lo.
Uma pausa.
– Então eu corro perigo?
– Nem isso você percebeu?
Mais uma pausa.
– Contra quem você está me alertando? – perguntou Shevek.
– Contra Pae, em primeiro lugar.
– Ah, sim, Pae. – Shevek apoiou as mãos na lareira adornada com ouro incrustado. – Pae é um físico muito bom. E muito solícito. Mas não confio nele.
– Por que não?
– Bem... ele é evasivo.
– Sim, uma avaliação psicológica perspicaz. Mas Pae não é perigoso para você por ser uma pessoa esquiva, Shevek. Ele é perigoso para você porque é um agente ambicioso e leal do governo iota. Ele faz relatórios sobre você, e sobre mim, regularmente ao Departamento de Segurança Nacional... a polícia secreta. Deus sabe que não o subestimo, Shevek, mas você não compreende que seu hábito de se aproximar de todo mundo como uma pessoa, um indivíduo, não vale aqui, não funciona. Você tem de entender as forças que estão por trás dos indivíduos.
Enquanto Chifoilisk falava, a postura descontraída de Shevek tornara-se tensa; agora estava ereto, como Chifoilisk, olhando a lareira.
– Como sabe essas coisas sobre Pae? – perguntou.
– Do mesmo jeito que sei que o seu quarto contém um microfone escondido, assim como o meu. Porque saber essas coisas faz parte do meu trabalho.
– Você também é agente do seu governo?
O rosto de Chifoilisk se fechou; então virou-se subitamente para Shevek, falando com suavidade e ódio.
– Sim – ele disse –, é claro que sou. Se não fosse, eu não estaria aqui. Todo mundo sabe disso. Meu governo manda para fora do país somente homens em quem confia. E eles podem confiar em mim! Porque não fui comprado, como todos esses malditos professores iotas ricos. Acredito no meu governo, no meu país. Tenho fé neles. – As palavras saíram à força, numa espécie de tormento. – Você tem de olhar à sua volta, Shevek! Você é uma criança entre ladrões. Eles são bons para você, lhe oferecem um belo quarto, palestras, alunos, dinheiro, passeios em castelos, passeios por fábricas modernas, visitas a belas aldeias. Tudo do melhor. Tudo ótimo, maravilhoso! Mas por quê? Por que o trazem aqui da Lua, o elogiam, publicam seus livros e o mantêm seguro e confortável nas salas de aula, laboratórios e bibliotecas? Você acha que fazem isso com desinteresse científico, por amor fraternal? Esta é uma economia de lucro, Shevek!
– Eu sei. Vim negociar com ela.
– Negociar... o quê? Para quê?
O rosto de Shevek assumira a mesma expressão fria e severa de quando visitou o forte em Drio.
– Você sabe o que eu quero, Chifoilisk. Quero que meu povo saia do exílio. Vim para cá porque acho que vocês não querem isso, em Thu. Vocês têm medo de nós, lá. Temem que possamos trazer de volta a revolução, a antiga, a real, a revolução por justiça que vocês começaram e depois abandonaram no meio do caminho. Aqui em A-Io eles me temem menos, pois se esqueceram da revolução. Não acreditam mais nela. Acham que se as pessoas conseguirem possuir coisas o suficiente ficarão satisfeitas em viver na prisão. Mas eu não acredito nisso, quero derrubar os muros. Quero solidariedade, solidariedade humana. Quero trocas livres entre Urras e Anarres. Trabalhei nisso o quanto pude em Anarres, agora trabalho nisso o quanto posso em Urras. Lá eu agi; aqui eu negocio.
– Com o quê?
– Ah, você sabe, Chifoilisk – Shevek disse numa voz baixa, desconfiado. – Você sabe o que eles querem de mim.
– Sim, eu sei, mas não sabia que você sabia – o thuviano disse, também falando baixo; sua voz áspera tornou-se um murmúrio mais áspero, ofegante e fricativo. – Então você tem mesmo... a Teoria Temporal Geral?
Shevek olhou para ele, talvez com um toque de ironia.
Chifoilisk insistiu:
– Ela já existe por escrito?
Shevek continuou a olhar para ele por um minuto e então respondeu diretamente:
– Não.
– Ótimo!
– Por quê?
– Porque, se existisse por escrito, eles já a teriam.
– O que quer dizer?
– Só isso. Escute, não foi Odo quem disse que onde há propriedade, há roubo?
– “Para fazer um ladrão, faça um proprietário; para criar o crime, crie leis.” O Organismo Social.
– Pois bem. Onde há papéis em salas trancadas, há pessoas com as chaves das salas!
Shevek estremeceu.
– Sim – ele disse, no mesmo instante –, isso é muito desagradável.
– Para você, não para mim. Não tenho os seus escrúpulos morais individualistas, você sabe. Eu sabia que você não tinha a teoria por escrito. Se eu achasse que tivesse, teria feito todo o esforço para obtê-la, fosse pela persuasão, pelo roubo ou pela força, caso conseguíssemos sequestrar você sem provocar uma guerra com A-Io. Qualquer coisa para que eu pudesse levá-la para longe destes porcos capitalistas iotas e entregá-la nas mãos do Comitê Central do meu país. Porque a maior causa a que posso servir é a força e a riqueza do meu país.
– Você está mentindo – Shevek disse, pacificamente. – Acho que você é um patriota, sim. Mas você põe o respeito à verdade acima do patriotismo, a verdade científica, e talvez também sua lealdade a indivíduos. Você não me trairia.
– Trairia, se pudesse – disse Chifoilisk, furiosamente. Ia continuar a falar, parou e por fim disse, com raivosa resignação: – Pense o que quiser. Não posso abrir seus olhos por você. Mas lembre-se: nós o queremos. Se você finalmente perceber o que está acontecendo aqui, então vá para Thu. Você escolheu as pessoas erradas para serem seus irmãos! E se... não cabe a mim dizer isso, mas não importa. Se você resolver não compartilhá-la conosco, pelo menos não dê sua Teoria aos iotas. Não dê nada aos usurários! Saia daqui. Volte para casa. Dê ao seu próprio povo o que você tem a oferecer!
– Eles não querem – Shevek disse, sem nenhuma expressão no rosto. – Acha que eu não tentei?
Quatro ou cinco dias depois, Shevek, ao perguntar por Chifoilisk, foi informado de que ele retornara a Thu.
– Para ficar? Ele não me disse que estava de partida.
– Um thuviano nunca sabe quando vai receber uma ordem de seu Comitê – disse Pae, pois é claro que Shevek fora informado por Pae. – Ele apenas sabe que, quando a ordem vem, é melhor ir embora. E sem parar no caminho para despedidas. Coitado do Chif! O que será que ele fez de errado?
Shevek visitava Atro uma ou duas vezes por semana na casa pequena e agradável na extremidade do campus, onde morava com dois criados tão velhos quanto ele. Aos quase 80 anos, era, como ele próprio se definia, um monumento à física de primeira classe. Embora não tivesse visto o trabalho de toda uma vida passar sem reconhecimento, como Gvarab, a mera idade o levara a adquirir um pouco do mesmo desinteresse dela. Seu interesse em Shevek, pelo menos, parecia ser inteiramente pessoal – uma camaradagem. Tinha sido o primeiro físico de Sequência a se converter à abordagem de Shevek para a compreensão do tempo. Tinha lutado, com as armas de Shevek, pelas teorias de Shevek, contra todo o establishment da respeitabilidade científica, e a batalha se arrastou por vários anos antes da publicação da versão integral, sem cortes, dos Princípios da Simultaneidade e da pronta e subsequente vitória dos simultaneístas. Essa batalha tinha sido o ponto alto da vida de Atro. Ele não teria lutado por nada menos do que a verdade, mas foi a luta que ele adorou, mais do que a verdade.
Atro conseguiu reconstituir sua árvore genealógica até onze séculos, passando por generais, príncipes, grandes proprietários de terras. A família ainda possuía uma propriedade de 7 mil acres e 14 aldeias na Província de Sie, a região mais rural de A-Io. Ele usava expressões provincianas em suas falas, arcaísmos aos quais se agarrava com orgulho. A riqueza em absoluto o impressionava, e ele se referia ao governo inteiro de seu país como “demagogos e políticos rasteiros”. Ninguém iria comprar o seu respeito. No entanto, ele o dava de graça a qualquer tolo que, segundo ele, tivesse “o nome certo”. Em certos aspectos, ele era totalmente incompreensível para Shevek – um enigma: o aristocrata. E, no entanto, seu desprezo genuíno tanto pelo dinheiro quanto pelo poder levou Shevek a se sentir mais próximo dele do que de qualquer outra pessoa que ele conhecera em Urras.
Certa vez, quando estavam sentados juntos na varanda envidraçada onde ele cultivava todo tipo de flores raras e fora da estação, ele por acaso usou a frase “nós, cetianos”. Shevek o pegou na hora:
– “Cetianos”... não é uma palavra alpiste? – “Alpiste” era uma gíria para a imprensa popular, jornais, programas de rádio e conteúdos de ficção feitos para o consumo do trabalhador urbano.
– Alpiste! – repetiu Atro. – Meu caro amigo, onde diabos você aprende esses vulgarismos? O que quero dizer com “cetianos” é exatamente o que os escritores de jornais diários e seus leitores papagaios entendem pelo termo: Urras e Anarres!
– Fiquei surpreso ao ouvi-lo usar uma palavra estrangeira... uma palavra não cetiana, na verdade.
– Definição por exclusão – defendeu-se o velho, de forma divertida. – Há cem anos, não precisávamos dessa palavra. “Humanidade” servia. Mas sessenta e tantos anos atrás isso mudou. Eu tinha 17 anos, era um belo dia ensolarado no início do verão, lembro vividamente. Eu estava exercitando o meu cavalo, e minha irmã gritou da janela: “Estão falando com alguém do Espaço Sideral no rádio!”. Minha pobre querida mãe achou que estávamos todos perdidos; demônios de outro mundo, você sabe. Mas eram só os hainianos, anunciando a paz e a fraternidade. Bem, hoje “humanidade” é um pouco inclusivo demais. O que define a fraternidade senão a não fraternidade? Definição por exclusão, meu caro! Você e eu somos parentes. Seu povo provavelmente pastoreava cabras nas montanhas, enquanto o meu oprimia servos em Sie, alguns séculos atrás; mas somos membros da mesma família. Para reconhecer isso, deve-se conhecer um alienígena, ou ouvir falar dele. Um ser de outro sistema solar. Um homem, por assim dizer, que não tem nada em comum conosco, exceto o esquema prático de duas pernas, dois braços e uma cabeça com algum tipo de cérebro dentro!
– Mas os hainianos não provaram que somos...?
– Todos de origem alienígena, descendentes de Colonos Hainianos interestelares, meio milhão de anos atrás, sim, eu sei. Provaram! Pelo amor do Número Primal, Shevek, você fala como um seminarista de primeiro ano! Como pode falar seriamente em prova histórica, num espaço de tempo tão longo? Esses hainianos brincam com milênios para lá e para cá como se fossem bolas, mas são só malabarismos. Provaram, pois sim! A religião dos meus antepassados me informa, com igual autoridade, que eu descendo de Pinra Od, que Deus expulsou do Jardim porque ele teve a audácia de contar os dedos das mãos e dos pés, chegar à soma de vinte, soltando assim o Tempo no universo. Prefiro essa história à dos alienígenas, se devo escolher!
Shevek riu; o humor de Atro lhe dava prazer. Mas o velho falava sério. Bateu de leve no braço de Shevek e, franzindo as sobrancelhas e mascando com os lábios, como fazia quando estava emocionado, disse:
– Espero que sinta o mesmo, meu caro. Espero sinceramente. Há muita coisa admirável na sua sociedade, tenho certeza, mas ela não lhe ensina a discriminar... o que, afinal, é a melhor coisa que a civilização ensina. Não quero aqueles malditos alienígenas cooptando você por meio das suas noções de fraternidade, mutualismo e tudo isso. Eles verterão sobre você rios inteiros de “humanidade comum”, “liga dos mundos” e por aí afora, e eu detestaria vê-lo engolir essa conversa. A lei da existência é a luta... a competição... eliminação dos fracos... uma guerra implacável pela sobrevivência. E quero ver os melhores sobreviverem. O tipo de humanidade que eu conheço. Os cetianos. Você e eu. Urras e Anarres. Estamos à frente deles agora, de todos aqueles hainianos e terranos e seja lá como eles se chamam, e temos de continuar à frente deles. Eles nos trouxeram o propulsor interestelar, mas agora nós estamos fazendo naves melhores do que as deles. Quando você publicar sua Teoria, eu sinceramente espero que você pense no seu dever para com o seu povo, sua própria espécie. No que significa lealdade e a quem ela é devida. – As lágrimas fáceis da idade avançada brotaram nos olhos semicegos de Atro. Shevek pôs as mãos no braço do velho, para tranquilizá-lo, mas não disse nada.
– Eles vão obtê-la, naturalmente. Com o tempo. E devem. A verdade científica se revelará, não se pode esconder o sol debaixo de uma pedra. Mas antes de obtê-la, quero que eles paguem por ela! Quero que ocupemos o lugar que nos é de direito. Quero respeito; e é isso que você pode conquistar para nós. Transiliência... se dominarmos a transiliência, o propulsor interestelar deles não vai valer mais nada. Não é dinheiro que eu quero, você sabe. Quero que reconheçam a superioridade da ciência cetiana. Se deve haver uma civilização interestelar, então, por Deus, não quero que meu povo seja membro de uma casta inferior! Devemos entrar como nobres, com uma grande dádiva em nossas mãos... É assim que deve ser. Ora, ora, às vezes eu me altero com esse assunto. A propósito, como vai indo o seu livro?
– Estou trabalhando na hipótese gravitacional de Skask. Tenho a impressão de que ele está errado em usar apenas as equações diferenciais parciais.
– Mas seu último artigo foi sobre gravidade. Quando você vai chegar à coisa real?
– Você deveria saber que os meios são o fim para nós, odonianos – Shevek disse, em tom de brincadeira. – Além disso, não posso apresentar uma teoria do tempo que omita a gravidade, não é?
– Quer dizer que você vai nos dar a sua Teoria aos pouquinhos? – perguntou Atro, com suspeita. – Isso não tinha me ocorrido. É melhor eu dar mais uma olhada naquele último artigo. Parte dele não fez sentido para mim. Meus olhos têm se cansado tanto nos últimos tempos. Acho que tem alguma coisa errada com aquela maldita coisa-projetora-lupa que eu tenho de usar para ler. Parece que não projeta mais as palavras com clareza.
Shevek olhou o homem com remorso e afeto, mas não lhe disse mais nada sobre o andamento de sua teoria.
Convites para recepções, inaugurações, estreias e por aí afora eram entregues a Shevek todos os dias. Comparecia a alguns desses eventos, pois viera a Urras numa missão e precisava tentar cumpri-la: precisava estimular a ideia de fraternidade, precisava representar, em sua própria pessoa, uma solidariedade de dois mundos. Ele falava, as pessoas o escutavam e diziam “é verdade”.
Perguntava-se por que o governo não o impedia de falar. Com seus próprios objetivos em mente, Chifoilisk deve ter exagerado a extensão do controle e da censura que podiam exercer. Ele falava em puro anarquismo, e não o impediam. Mas precisavam impedi-lo? Parecia que ele falava com as mesmas pessoas toda vez: bem-vestidas, bem alimentadas, de boas maneiras, sorridentes. Será que eram o único tipo de gente em Urras?
– É a dor que une os homens – dizia Shevek em pé diante delas, e elas concordavam com a cabeça e diziam: – É verdade.
Ele começou a odiá-las e, percebendo isso, abruptamente deixou de aceitar seus convites.
Mas fazer isso era aceitar o fracasso e aumentar seu isolamento. Não estava fazendo o que tinha vindo fazer ali. Não eram os outros que tinham rompido relações com ele, dizia a si mesmo; ele é que tinha – como sempre – rompido relações com os outros. Estava sozinho, uma solidão sufocante, em meio às pessoas que via todos os dias. O problema é que ele não estava em contato. Sentia que não havia feito contato com nada, com ninguém em Urras, durante todos aqueles meses.
Uma noite, sentado à mesa no Refeitório dos Decanos, ele disse:
– Sabe, não sei como vocês vivem aqui. Vejo as casas particulares por fora. Mas por dentro só conheço a sua vida não particular: sala de reuniões, refeitórios, laboratórios...
No dia seguinte, Oiie, com certa formalidade, perguntou se Shevek não gostaria de jantar e passar a noite em sua casa, no fim de semana seguinte.
Ficava em Amoeno, um vilarejo a alguns quilômetros de distância de Ieu Eun, e era, pelos padrões urrastis, uma casa modesta, mais antiga do que a maioria, talvez. Fora construída de pedra, cerca de trezentos anos antes, e os cômodos tinham paredes de madeira almofadadas. O característico arco duplo iota fora usado nas janelas e nas portas de entrada. Uma relativa ausência de mobília agradou os olhos de Shevek de imediato: os cômodos eram austeros, espaçosos, com amplos pisos fortemente polidos. Sempre se sentira perturbado em meio às decorações e confortos extravagantes dos edifícios públicos nos quais se realizavam as recepções, inaugurações e por aí afora. Os urrastis tinham bom gosto, o qual, entretanto, muitas vezes parecia estar em conflito com um impulso ao exibicionismo – ao gasto ostensivo. A origem natural e estética do desejo de possuir coisas era dissimulada e pervertida por compulsões competitivas e econômicas que, por sua vez, prejudicavam a qualidade das coisas: tudo o que alcançavam era uma espécie de prodigalidade mecânica. Ali naquela casa, ao contrário, havia graça, alcançada pela sobriedade.
Um criado os ajudou a tirar os casacos, à entrada. A esposa de Oiie subiu da cozinha no subsolo, onde estivera instruindo a cozinheira, e veio cumprimentar Shevek.
Enquanto conversavam antes do jantar, Shevek viu-se falando quase exclusivamente com ela, com simpatia, com desejo de que ela gostasse dele, e isso o surpreendeu. Mas era tão bom conversar com uma mulher de novo! Não era à toa que tinha a sensação de levar uma existência isolada, artificial, entre homens, sempre homens, faltando a tensão e a atração da diferença sexual. E Sewa Oiie era atraente. Olhando as delicadas linhas de sua nuca e de suas têmporas, ele perdeu as objeções que fazia à moda urrasti de raspar a cabeça das mulheres. Ela era reticente, bem tímida; tentou fazê-la sentir-se à vontade com ele e ficou satisfeito quando pareceu estar conseguindo.
Entraram para jantar e duas crianças se uniram a eles à mesa. Sewa Oiie desculpou-se:
– Simplesmente não se encontra mais uma babá decente nesta parte do país – ela disse. Shevek assentiu, sem saber o que era uma babá. Observava os garotinhos com o mesmo alívio, o mesmo deleite. Mal tinha visto uma criança desde que partira de Anarres.
Os garotos eram crianças muito asseadas e tranquilas, que só falavam quando lhe dirigiam a palavra, vestidos em casacos e calções de veludo azul. Olhavam Shevek com assombro, como uma criatura do espaço sideral. O de 9 anos era severo com o de 7 anos, murmurava para ele não ficar olhando e o beliscava com força quando ele desobedecia. O pequeno beliscava de volta e tentava chutá-lo por baixo da mesa. O Princípio da Superioridade parecia não estar bem introduzido em sua mente ainda.
Oiie era um homem mudado em casa. O olhar reservado sumiu de seu rosto, e ele não falava arrastado. Sua família o tratava com respeito, mas o respeito era mútuo. Shevek ouvira muitas opiniões de Oiie sobre as mulheres e surpreendeu-se ao ver que ele tratava sua esposa com cortesia, até delicadeza. “Isso é cavalheirismo“, pensou Shevek, por ter aprendido a palavra recentemente, mas logo concluiu que se tratava de algo melhor. Oiie gostava de sua esposa e confiava nela. Ele se comportava com ela e com as crianças como um anarresti poderia se comportar. Na verdade, em casa, ele de repente parecia um homem simples e fraternal, um homem livre.
Shevek considerou essa liberdade muito limitada, uma família muito reduzida, mas sentiu-se tão à vontade, tão mais livre ele próprio, que não se sentiu disposto a criticar.
Numa pausa após a conversa, o garoto mais novo disse com sua vozinha límpida:
– O sr. Shevek não tem muito boas maneiras.
– Por que não? – Shevek perguntou antes que a esposa de Oiie repreendesse a criança. – O que foi que eu fiz?
– O senhor não disse obrigado.
– Quando?
– Quando eu passei o prato de picles.
– Ini! Fique quieto!
Sadik! Não egoíze! O tom era exatamente o mesmo.
– Pensei que você estivesse compartilhando comigo. Era um presente? No meu país, só dizemos obrigado quando ganhamos presentes. As outras coisas nós compartilhamos, sem falar nelas, entende? Gostaria que eu lhe devolvesse os picles?
– Não, eu não gosto de picles – a criança disse, olhando o rosto de Shevek com seus olhos muito escuros e límpidos.
– Isso torna o compartilhamento bem mais fácil – disse Shevek. O garoto mais velho se contorcia pelo desejo reprimido de beliscar Ini, mas Ini riu, mostrando os dentinhos brancos. Após uns instantes, numa outra pausa, ele disse em voz baixa, inclinando-se para Shevek:
– O senhor gostaria de ver minha lontra?
– Sim.
– Ela está no quintal. Minha mãe pôs para fora porque achou que ela ia incomodar o senhor. Alguns adultos não gostam de animais.
– Eu gosto de vê-los. Não temos animais no meu país.
– Não? – perguntou o garoto mais velho, encarando-o. – Pai, o sr. Shevek está dizendo que eles não têm nenhum animal!
Ini também o encarou.
– Mas o que vocês têm?
– Outras pessoas. Peixes. Minhocas. E pés de holum.
– O que é holum?
A conversa prosseguiu por meia hora. Foi a primeira vez que pediram a Shevek, em Urras, para descrever Anarres. As crianças faziam as perguntas, mas os pais ouviam com interesse. Shevek deixou o modo ético de lado com algum escrúpulo; não estava ali para doutrinar os filhos de seu anfitrião. Apenas contou como era a poeira, como era Abbenay, que roupas usavam, o que as pessoas faziam quando queriam roupas novas, o que as crianças faziam na escola. Este último item virou propaganda, apesar de suas intenções. Ini e Aevi ficaram extasiados com a descrição do currículo, que incluía cultivo, carpintaria, tratamento de esgoto, impressão, encanamento, recuperação de estradas, dramaturgia e todas as outras ocupações da comunidade adulta, e com a informação de que ninguém jamais era punido por nada.
– Porém, às vezes – disse – eles mandam você ficar sozinho por um tempo.
– Mas o que – perguntou Oiie abruptamente, como se a pergunta, engasgada há longos minutos, explodisse dele sob pressão –, o que mantém as pessoas em ordem? Por que não roubam e não se matam uns aos outros?
– Ninguém possui nada para ser roubado. Se você quiser algo, é só pegar nos depósitos. Quanto à violência, bem, não sei, Oiie; você me mataria, via de regra? E se tivesse vontade, alguma lei o impediria? A coerção é o meio menos eficaz de se obter ordem.
– Tudo bem, mas como vocês conseguem que as pessoas façam o trabalho sujo?
– Que trabalho sujo? – perguntou a esposa de Oiie, sem entender.
– Coleta de lixo, abertura de covas – respondeu Oiie; Shevek acrescentou:
– Mineração – e quase disse “processamento de merda”, mas lembrou-se do tabu iota com relação a palavras escatológicas. Percebera, logo no início de sua estada em Urras, que os urrastis viviam em meio a montanhas de excremento, mas nunca mencionavam a palavra merda.
– Bem, todos nós fazemos esses serviços. Mas ninguém os faz por muito tempo, a menos que se goste do trabalho. Uma vez por décade, o comitê de gerenciamento da comunidade, ou o comitê do quarteirão, ou qualquer um que precise pode pedir que você entre para o trabalho, eles fazem listas de rodízio. E os postos de trabalho desagradáveis ou perigosos, como nas minas de mercúrio e usinas, normalmente são executados somente por meio ano.
– Mas então toda equipe deve consistir de pessoas que estão apenas aprendendo o serviço.
– Sim, não é eficiente, mas o que mais se pode fazer? Não se pode obrigar um homem a ficar num trabalho que vai mutilá-lo ou matá-lo em poucos anos. Por que ele faria isso?
– Ele pode recusar a ordem?
– Não é uma ordem, Oiie. Ele vai à Divlab, o escritório da Divisão Laboral, e diz “eu quero fazer tal e tal trabalho, o que vocês têm?”. E eles dizem onde existem postos.
– Mas então por que as pessoas escolhem fazer o serviço sujo? Por que aceitam fazer o trabalho dos rodízios da décade?
– Porque fazem juntas... E há outros motivos. Você sabe que a vida em Anarres não é tão rica quanto a daqui. Nas pequenas comunidades não há muita diversão, e há muito trabalho a fazer. Então, se você trabalha a maior parte do tempo num tear, a cada dez dias é agradável sair e instalar um cano, ou arar um campo, com um grupo diferente de pessoas... E também há o desafio. Aqui vocês acham que o incentivo para trabalhar é financeiro, necessidade de dinheiro ou desejo por lucro, mas onde não existe dinheiro as motivações reais ficam mais claras, talvez. As pessoas gostam de fazer as coisas. Gostam de fazer bem. As pessoas escolhem os serviços perigosos e difíceis porque se orgulham de fazê-los, elas podem... egoizar, como dizemos... se gabar?... aos mais fracos. Ei, vejam, meninos, como sou forte! Sabe como é? A pessoa gosta de fazer aquilo em que tem talento... Mas, na verdade, é uma questão de meios e fins. Afinal, o trabalho é feito só pelo trabalho em si. É o prazer duradouro da vida. A consciência particular sabe disso. E também a consciência social, a opinião do vizinho. Não há nenhuma outra recompensa, em Anarres, nenhuma outra lei. Só o próprio prazer e o respeito dos companheiros. Quando é assim, dá para entender que a opinião dos vizinhos torna-se uma força muito poderosa.
– Ninguém nunca a desafia?
– Talvez não com bastante frequência – disse Shevek.
– Então todo mundo trabalha muito? – perguntou a esposa de Oiie. – O que acontece com um homem que simplesmente se recusa a cooperar?
– Bem, ele vai embora. Os outros se cansam dele, sabe. Zombam, tratam mal, batem nele; numa comunidade pequena, podem concordar em tirar o nome dele das listas de refeições, para que ele cozinhe e coma sozinho; isso é humilhante. Então ele fica em outro lugar por algum tempo e depois pode se mudar outra vez. Alguns fazem isso a vida inteira. São chamados de nuchnibi. Eu sou meio nuchnib. Estou aqui, fugindo do meu próprio posto. Mudei-me para mais longe que a maioria – falou Shevek, com tranquilidade; se havia amargura em sua voz, não era discernível às crianças, nem explicável aos adultos. Mas um pequeno silêncio se seguiu às suas palavras.
– Não sei quem faz o serviço sujo aqui – ele disse. – Nunca o vejo sendo feito. É estranho. Quem faz? Por que fazem? Eles ganham mais?
– Para o trabalho perigoso, às vezes. Para tarefas meramente servis, não. Ganham menos.
– Por que fazem, então?
– Porque ganhar pouco é melhor do que não ganhar nada – disse Oiie, e a amargura em sua voz era muito clara. Sua esposa começou a falar de modo nervoso para mudar de assunto, mas ele continuou. – Meu avô era zelador. Esfregou o chão e trocou os lençóis sujos num hotel por cinquenta anos. Dez horas por dia, seis dias por semana. Ele fazia isso para a família poder comer. – Oiie parou abruptamente e olhou de relance para Shevek com seu velho olhar reservado e desconfiado, e depois, quase com desafio, para a sua esposa. Ela não olhou nos olhos dele. Sorriu e falou numa voz infantil e nervosa:
– O pai de Demaere foi um homem muito bem-sucedido. Era dono de quatro empresas quando morreu. – Seu sorriso era de o uma pessoa que sofria, e suas mãos delgadas e morenas pressionavam-se firmemente uma sobre a outra.
– Suponho que não haja homens bem-sucedidos em Anarres – disse Oiie, com pesado sarcasmo. Então a cozinheira entrou para trocar os pratos, e ele parou de falar na mesma hora. O garoto Ini, como se soubesse que a conversa séria não seria retomada enquanto a criada estivesse ali, disse:
– Mãe, o sr. Shevek pode ver minha lontra quando acabar o jantar?
Quando retornaram à sala de estar, Ini recebeu permissão de trazer o animal de estimação para dentro: uma lontra terrestre pequena, animal comum em Urras. Tinham sido domesticadas, explicou Oiie, desde os tempos pré-históricos, primeiro usadas como apanhadores de peixes, depois como animais de estimação. A criatura tinha pernas curtas, um lombo arqueado e flexível, pelo marrom-escuro brilhante. Era o primeiro animal solto que Shevek via de perto, e o bicho teve menos medo dele do que ele do bicho. Os dentes brancos e afiados eram impressionantes. Estendeu a mão com cautela para acariciá-lo, e Ini insistiu que o fizesse. A lontra sentou-se sobre os quadris e olhou para ele. Os olhos do animal eram escuros, raiados de dourado, inteligentes, curiosos, inocentes.
– Ammar – Shevek sussurrou, capturado por aquele olhar que atravessava o golfo da existência – irmão.
A lontra grunhiu, ficou de quatro e examinou os sapatos de Shevek com interesse.
– Ele gosta do senhor – Ini disse.
– E eu gosto dele – Shevek respondeu, com certa tristeza. Sempre que via um animal, o voo dos pássaros, o esplendor das árvores de outono, vinha-lhe aquela tristeza que dava um gosto amargo ao deleite. Ele não pensava conscientemente em Takver nesses momentos, não pensava em sua ausência. De certa forma, era como se ela estivesse lá, embora ele não estivesse pensando nela. Era como se a beleza e a estranheza dos animais e das plantas de Urras tivessem sido carregadas com uma mensagem de Takver, que jamais os veria, cujos ancestrais de sete gerações jamais tocaram o pelo morno de um animal, nem viram o bater de asas nas sombras das árvores.
Ele passou a noite num quarto no sótão, sob os beirais. O quarto era frio, algo bem-vindo depois do eterno e excessivo aquecimento dos cômodos da universidade, e muito simples: a cama, estantes de livros, uma cômoda e uma mesa de madeira pintada. Era como estar em casa, pensou, ignorando a altura da cabeceira da cama e a maciez do colchão, os delicados cobertores de lã e os lençóis de seda, os bibelôs de marfim sobre a cômoda, a encadernação de couro dos livros e o fato de que o quarto, e tudo o que havia nele, e a casa em que estava, e o terreno que a casa ocupava eram propriedade privada, a propriedade de Demaere Oiie, embora ele não a tivesse construído e não esfregasse o seu chão. Shevek pôs de lado essas discriminações tão cansativas. Era um ótimo quarto e não muito diferente de um quarto de solteiro num domicílio.
Dormindo naquele quarto, sonhou com Takver. Sonhou que ela estava com ele na cama, seus braços entrelaçados nele, o corpo junto ao seu... mas qual quarto, em que quarto estavam? Onde estavam? Estavam juntos na Lua, fazia frio, e eles caminhavam juntos. Era um lugar plano, a Lua, todo coberto de neve branca-azulada, embora a neve fosse fina e fácil de afastar com um pontapé, revelando o luminoso solo branco. Era morto, um lugar morto. “Não é bem assim”, ele disse a Takver, sabendo que ela estava com medo. Caminhavam na direção de algo, uma linha longínqua de algo que parecia frágil e brilhante, como plástico, uma barreira remota, quase invisível, do outro lado da planície de neve. Em seu coração, Shevek tinha medo de se aproximar, mas disse a Takver: “Logo chegaremos”. Ela não respondeu.
6
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Quando Shevek recebeu alta após uma décade no hospital, seu vizinho do Quarto 45 veio visitá-lo. Era um matemático, muito alto e magro. Tinha um olho estrábico não corrigido e, assim, nunca se tinha certeza se ele estava olhando para a pessoa e/ou a pessoa estava olhando para ele. Shevek e ele tinham uma convivência amigável, lado a lado no domicílio do Instituto, há um ano, sem nunca terem trocado uma frase inteira.
Então Desar entrou e encarou Shevek, ou o que estava ao lado dele.
– Alguma coisa? – perguntou.
– Eu estou bem, obrigado.
– Que tal jantar do refeitório?
– Com o seu? – perguntou Shevek, influenciado pelo estilo telegráfico de Desar.
– Tudo bem.
Desar trouxe dois jantares numa bandeja do refeitório do Instituto, e eles comeram juntos no quarto de Shevek. Ele fez a mesma coisa de manhã e à noite por três dias, até Shevek sentir-se em condições de sair de novo. Era difícil entender por que Desar fazia isso. Ele não era simpático, e as expectativas de fraternidade pareciam não significar muito para ele. Um dos motivos que o levavam a se afastar das pessoas era esconder sua desonestidade; ou era espantosamente preguiçoso ou francamente proprietário, pois o Quarto 45 estava cheio de coisas que ele não tinha direito, nem motivo, de guardar: pratos do refeitório, livros das bibliotecas, um conjunto de ferramentas talhadeiras do depósito de suprimentos de artes e ofícios, um microscópio de algum laboratório, oito cobertores diferentes, um armário cheio de roupas, algumas das quais claramente não serviam nem nunca tinham servido em Desar, outras que ele devia ter usado quando tinha 8 ou 10 anos. Era como se ele fosse a depósitos e armazéns e pegasse tudo o que pudesse carregar, precisasse desses objetos ou não.
– Por que você guarda essa tralha toda? – Shevek perguntou quando esteve no quarto do vizinho pela primeira vez.
Desar olhou para algum ponto entre ele e Shevek:
– Fui acumulando – ele respondeu de modo vago.
O campo da matemática escolhido por Desar era tão esotérico que ninguém no Instituto ou na Federação de Matemática conseguia de fato verificar o seu desempenho. Era precisamente por isso que ele o escolhera. Presumiu que a motivação de Shevek fosse a mesma.
– Que diabos – ele disse –, trabalho? Bom posto aqui. Sequência, Simultaneidade, merda. – Às vezes Shevek gostava de Desar, e às vezes o detestava, pelas mesmas qualidades. Apegou-se a ele, entretanto, deliberadamente, como parte de sua resolução para mudar de vida.
Sua doença o fizera perceber que, se tentasse continuar sozinho, iria desmoronar de uma vez. Via isso em termos morais e julgou a si próprio de maneira implacável. Vinha se guardando para si mesmo, contra o imperativo ético da fraternidade. Aos 21 anos, Shevek não era exatamente um pedante, devido à sua moralidade apaixonada e drástica; ainda assim, essa moralidade se ajustava a um modelo rígido, o Odonismo simplista ensinado às crianças por adultos medíocres, um sermão incorporado.
Estivera agindo errado. Tinha de agir certo. E agiu.
Proibiu-se de estudar física em cinco noites a cada dez. Voluntariou-se para o trabalho de comitê na gerência de domicílios do Instituto. Frequentava as reuniões da Federação de Física e do Sindicato dos Membros do Instituto. Matriculou-se num grupo que praticava exercícios de biofeedback e treinamento de ondas cerebrais. No refeitório, forçava-se a sentar às mesas grandes, em vez da pequena, com um livro à sua frente.
Era surpreendente: as pessoas pareciam estar à sua espera. Elas o incluíram, o acolheram, o convidaram como companheiro e colega. Levaram-no a todo lugar com eles e, em três décades, aprendeu mais sobre Abbenay do que tinha aprendido em um ano. Acompanhava animados grupos de jovens a campos de atletismo, centros de artes e ofícios, piscinas, festivais, museus, teatros, concertos.
Os concertos! Foram uma revelação, um choque de alegria, em parte porque ele pensava na música como algo para se fazer, não para se ouvir. Quando criança, sempre cantava ou tocava um instrumento ou outro, em corais e grupos locais; tinha gostado muito da experiência, mas não demonstrara muito talento. E isto era tudo o que conhecia de música.
Os centros de aprendizagem ensinavam todas as habilidades à prática da arte: treinamento em canto, métrica, dança, uso do pincel, do cinzel, da faca, do torno mecânico e assim por diante. Era tudo pragmático: as crianças aprendiam a ver, falar, ouvir, a se mexer, a manusear. Não havia distinção entre as artes e os ofícios; não se considerava a arte como tendo um lugar na vida, mas como sendo uma técnica básica da vida, como a fala. Desse modo, a arquitetura tinha desenvolvido, desde cedo e livremente, um estilo consistente, puro e simples, sutil em proporção. A pintura e a escultura serviam, em grande parte, como elementos da arquitetura e do planejamento urbano. Quanto às artes das palavras, a poesia e a narrativa tendiam a ser efêmeras, a ser ligadas à música e à dança; apenas o teatro se sustentava totalmente sozinho, e apenas o teatro era chamado de “a Arte” – algo completo em si mesmo. Havia muitas trupes regionais e itinerantes de atores e dançarinos, companhias de repertório, muitas vezes com o próprio dramaturgo. Encenavam tragédias, comédias semi-improvisadas, mímicas. As trupes eram bem-vindas como chuva nas cidades solitárias do deserto, eram a glória do ano aonde quer que fossem. O drama, fruto e encarnação do isolamento e do espírito comunitário anarresti, alcançara força e brilho extraordinários.
Shevek, entretanto, não era muito sensível à arte dramática. Gostava do esplendor verbal, mas a ideia toda de atuação não combinava com ele. Foi somente no segundo ano em Abbenay que ele finalmente descobriu a sua Arte: a arte feita do tempo. Alguém o levou a um concerto no Sindicato de Música. Ele voltou no dia seguinte. Foi a todos os concertos, com os novos conhecidos, se fosse possível, e sozinho, se necessário. A música era uma necessidade mais urgente, uma satisfação mais profunda do que o companheirismo.
Seus esforços para romper sua reclusão essencial foram, na verdade, um fracasso, e ele sabia disso. Não fez nenhum amigo íntimo. Copulou com algumas moças, mas a cópula não era o júbilo que deveria ser. Era mero alívio de uma necessidade, como evacuar, e ele sentia vergonha depois, pois envolvia outra pessoa como objeto. Era preferível a masturbação, uma conduta adequada a um homem como ele. Solidão era a sua sina; estava preso em sua hereditariedade. Ela havia dito: “O trabalho vem primeiro”. Rulag dissera isso calmamente, afirmando um fato, impotente para mudá-lo, para escapar de sua célula fria. E era assim também com ele. Seu coração ansiava por elas, pelas almas jovens e amáveis que o chamavam de irmão, mas ele não conseguia alcançá-las, nem elas a ele. Ele nascera para ser só, um maldito intelectual frio, um egoísta.
O trabalho vinha em primeiro lugar, mas não ia a lugar algum. Como o sexo, deveria ter sido um prazer, mas não era. Ele ficava remoendo os mesmos problemas, não se aproximando sequer um passo da solução do Paradoxo Temporal de To, muito menos da Teoria da Simultaneidade, que, no ano anterior, pensara estar quase ao seu alcance. Essa segurança agora lhe parecia inacreditável. Ele realmente se achara capaz, aos 20 anos, de desenvolver uma teoria que iria mudar as fundações da Física Cosmológica? Evidentemente, estivera fora de si muito antes da febre. Matriculou-se em dois grupos de trabalho em Matemática Filosófica, convencendo-se de que precisava deles e recusando-se a admitir que poderia conduzi-los tão bem quanto os instrutores. Evitava Sabul o máximo possível.
Na primeira explosão de novas resoluções, decidiu conhecer Gvarab melhor. Ela correspondeu da melhor maneira que pôde, mas o inverno tinha sido severo com ela; estava doente, surda e velha. Começou a ministrar um curso de primavera, mas desistiu. Estava errática, ora mal reconhecendo Shevek, ora arrastando-o até seu domicílio para uma noite inteira de conversa. Ele, de certa forma, já ultrapassara as ideias de Gvarab e achava penosas aquelas longas conversas. Ou deixava Gvarab aborrecê-lo por horas, repetindo o que ele já sabia ou havia em parte refutado, ou teria de magoá-la e confundi-la tentando corrigir-lhe o raciocínio. Isso estava além da paciência ou tato de qualquer pessoa da idade dele, e ele acabou por evitar Gvarab sempre que podia, e sempre com a consciência pesada.
Não havia mais ninguém com quem conversar sobre trabalho. Ninguém no Instituto sabia o suficiente sobre Física Temporal pura para acompanhá-lo. Ele teria gostado de ensinar a matéria, mas ainda não lhe haviam oferecido um posto de professor ou uma sala de aula no Instituto; o Sindicato dos Membros do corpo docente e discente recusou seu pedido. Não queriam entrar em atrito com Sabul.
No decorrer do ano, dedicou boa parte do tempo escrevendo cartas para Atro e outros físicos e matemáticos de Urras. Poucas dessas cartas foram enviadas. Algumas escrevia e depois simplesmente rasgava. Descobriu que o matemático Loai Na, a quem escrevera uma dissertação de seis páginas sobre a Reversibilidade do Tempo, já estava morto havia vinte anos; negligenciara a leitura do prefácio biográfico de Geometrias do Tempo, assinado por An. Outras cartas, que tentou enviar pelas naves cargueiras de Urras, foram interceptadas pelos administradores do Porto de Abbenay. O Porto estava sob o controle direto do CPD, já que sua operação envolvia a coordenação de muitos sindicatos, e alguns dos coordenadores tinham de saber iótico. Esses administradores do Porto, com seu conhecimento especial e posição importante, tendiam a adquirir a mentalidade burocrática: diziam “não” automaticamente. Desconfiavam das cartas a matemáticos, pois pareciam códigos, e não havia ninguém para lhes garantir que não eram códigos. Cartas a físicos passavam se Sabul, seu consultor, as aprovasse. Ele não aprovava as que tratavam de assuntos fora de sua própria área de Física Sequencial. “Está fora da minha competência”, resmungava, pondo a carta de lado. Ainda assim, Shevek a enviava aos administradores do Porto, e a carta era devolvida com o carimbo “Não aprovada para exportação”.
Levou a questão à Federação de Física, que Sabul raramente se dava ao trabalho de frequentar. Ninguém ali dava importância ao tema da livre comunicação com o inimigo ideológico. Alguns repreendiam Shevek por trabalhar num campo tão hermético que não havia, como ele próprio admitia, mais ninguém em seu próprio planeta com competência para entendê-lo.
– Mas é porque é um campo novo – dizia, o que não adiantava nada.
– Se é novo, compartilhe conosco, não com os proprietários!
– Já faz um ano que eu tento oferecer um curso todo trimestre. Vocês sempre dizem que não há demanda suficiente para o curso. Vocês estão com medo por ser algo novo?
Isso não o fez ganhar nenhum amigo. Ele os deixou furiosos.
Continuou a escrever cartas para Urras, mesmo quando não enviava nenhuma. O fato de escrever para alguém que talvez o entendesse – que talvez o tivesse entendido – tornava-lhe possível escrever, pensar. Senão, não seria possível.
As décades se passaram, e os trimestres. Duas ou três vezes por ano a recompensa chegava: uma carta de Atro ou de outro físico de A-Io ou Thu, uma longa carta, escrita no mesmo nível, argumentada no mesmo nível, da saudação à assinatura, toda com intensa e complexa Física Temporal Metamatemático-Ético-Cosmológica, escrita numa língua que ele não falava, por homens que ele não conhecia e que tentavam intensamente combater e destruir suas teorias, inimigos de sua terra natal, rivais, estranhos, irmãos.
Por vários dias após receber uma carta, ele ficava irascível e alegre, trabalhava dia e noite, jorrando ideias como uma fonte. Então, lentamente, debatia-se em esguichos curtos e desesperados e voltava à terra, ao solo árido, e secava.
Estava terminando o terceiro ano no Instituto quando Gvarab morreu. Ele pediu para falar no velório, que foi realizado, como era o costume, no local onde o falecido trabalhara: neste caso, uma das salas de aula no prédio do laboratório de física. Ele foi o único orador. Nenhum aluno compareceu; Gvarab não dava aulas havia dois anos. Alguns membros idosos do Instituto vieram, e o filho de meia-idade de Gvarab, um químico agrícola do Nordeste, estava lá. Shevek ficou em pé onde a idosa costumava ficar quando dava aulas. Disse àquelas pessoas, numa voz rouca pelo seu agora costumeiro resfriado de inverno, que Gvarab lançara as bases da ciência do tempo e era a maior cosmóloga que já trabalhara no Instituto.
– Nós da física temos nossa Odo agora – ele disse. – Nós a temos, mas não soubemos honrá-la. – Depois, uma idosa lhe agradeceu, com lágrimas nos olhos.
– Nós sempre fazíamos o serviço da dezena juntas, ela e eu, como zeladoras do nosso quarteirão, e passamos momentos tão bons, conversando – ela disse, estremecendo no vento gelado quando saíram do prédio. O químico agrícola murmurou cortesias e apressou-se para pegar uma carona de volta ao Nordeste. Num súbito acesso de sofrimento, impaciência e sensação de inutilidade, Shevek saiu caminhando a passos largos pela cidade.
Três anos ali, e ele tinha realizado o quê? Um livro, de que Sabul se apropriara; cinco ou seis estudos não publicados; e um discurso de velório por uma vida desperdiçada.
Nada do que fazia era compreendido. Para ser mais honesto, nada do que fazia tinha significado. Ele não estava exercendo nenhuma função necessária, pessoal ou social. Na verdade – e esse não era um fenômeno incomum em sua área –, estava esgotado aos 20 anos. Não realizaria mais nada. Tinha deparado com o muro para sempre.
Parou diante do auditório do Sindicato de Música para ler os programas da décade. Não havia nenhum concerto aquela noite. Afastou-se do cartaz e deu de cara com Bedap.
Bedap, sempre defensivo e bastante míope, não deu sinal de reconhecê-lo. Shevek pegou-lhe no braço.
– Shevek! Caramba, é você! – Abraçaram-se, beijaram-se, apartaram-se, voltaram a se abraçar. Shevek foi inundado de amor. Por quê? Ele nem gostava muito de Bedap naquele último ano no Instituto Regional. Nunca se corresponderam nos últimos três anos. A amizade deles era de infância, do passado. No entanto, o amor estava ali: flamejava como brasa atiçada.
Caminharam, conversaram, nenhum dos dois percebendo aonde iam. Abanavam os braços e se interrompiam. As ruas largas de Abbenay estavam calmas na noite de inverno. A cada cruzamento, a luz turva do poste de iluminação formava uma poça prateada, através da qual a neve seca se agitava como um cardume de peixinhos perseguindo a própria sombra. Lábios dormentes e dentes tiritando começaram a interferir na conversa. Pegaram o ônibus das dez, o último, para o Instituto; o domicílio de Bedap ficava no extremo leste da cidade, uma caminhada longa no frio.
Bedap olhou o Quarto 46 com admiração irônica.
– Shev, você vive como um urrasti explorador podre.
– Sem essa, não é tão mau assim. Mostre qualquer coisa excrementícia aqui! – De fato, o quarto continha praticamente as mesmas coisas de quando Shevek entrou ali pela primeira vez. Bedap apontou:
– Esse cobertor.
– Já estava aqui quando cheguei. Alguém fez à mão e deixou aí quando se mudou. Um cobertor é excessivo numa noite fria como esta?
– Mas a cor é definitivamente excrementícia – disse Bedap. – Como analista de funções, devo observar que não há necessidade da cor laranja. Essa cor não exerce nenhuma função vital no organismo social, no nível celular ou orgânico, e muito menos no nível ético mais central e holorgânico; e nesse caso a tolerância é uma opção pior do que a excreção. Mande tingi-lo de verde-sujo, irmão! E o que é tudo isso aqui?
– Anotações.
– Em código? – perguntou Bedap, folheando um caderno com a frieza que Shevek lembrava ser-lhe característica. Ele tinha ainda menos senso de privacidade – de propriedade privada – do que a maioria dos anarrestis. Bedap jamais tivera um lápis favorito que levasse para todo lugar, ou uma velha camisa à qual se afeiçoara, detestando ter de jogá-la no cesto de reciclagem, e se ganhasse um presente tentava mantê-lo em consideração ao doador, mas sempre o perdia. Tinha consciência dessa peculiaridade, e, segundo dizia, isso demonstrava que ele era menos primitivo do que a maioria das pessoas, um exemplo precoce do Homem Prometido, o verdadeiro e nato odoniano. Mas ele tinha, sim, um senso de privacidade. Começava na cabeça, dele ou de outrem, e dali em diante era completo. Jamais se metia na vida alheia. Disse agora: – Lembra aquelas cartas bobas que escrevíamos em código quando você estava no projeto de reflorestamento?
– Isso não é código, é iótico.
– Você aprendeu iótico? Por que escreve nessa língua?
– Porque ninguém neste planeta entende o que eu falo. Nem quer entender. A única pessoa que entendia morreu há três dias.
– O Sabul morreu?
– Não, Gvarab. Sabul não morreu. Sem chance!
– Qual o problema?
– O problema com Sabul? Em parte inveja e em parte incompetência.
– Pensei que o livro dele sobre causalidade fosse de primeira linha. Você mesmo disse.
– Eu pensava que sim, até ler as fontes. São todas ideias urrastis. E nem são novas. Ele não tem uma ideia própria há vinte anos. E há vinte anos não toma banho.
– E como vão as suas ideias? – perguntou Bedap, pondo a mão nos cadernos e olhando para Shevek com a testa franzida. Bedap tinha olhos pequenos e meio vesgos, um rosto forte, um corpo atarracado. Roía as unhas, e anos desse hábito reduziram-nas a meras tiras nas pontas de seus dedos grossos e sensíveis.
– Nada bem – disse Shevek, sentando-se na cama. – Estou no campo errado.
– Você? – Bedap deu um sorriso irônico.
– Acho que no fim do trimestre vou pedir uma remoção.
– Para onde?
– Pouco importa. Ensino, engenharia. Tenho que sair da física.
Bedap sentou-se na cadeira da escrivaninha, mordeu uma unha e disse:
– Isso é muito estranho.
– Reconheci minhas limitações.
– Não sabia que você tinha limitações. Em física, quero dizer. Você tinha todo tipo de defeitos e limitações. Mas não em física. Não sou nenhum temporalista, eu sei, mas não preciso saber nadar para conhecer um peixe, não preciso brilhar para reconhecer uma estrela...
Shevek olhou para seu amigo e deixou escapar o que nunca tinha conseguido dizer claramente a si mesmo:
– Pensei em suicídio. Pensei muito. Este ano. Parece a melhor solução.
– Dificilmente essa é a melhor solução para alcançar o outro lado do sofrimento.
– Você ainda se lembra disso? – Shevek deu um sorriso rígido.
– Vividamente. Foi uma conversa muito importante para mim. E para Takver e Tirin também, creio eu.
– Foi? – Shevek levantou-se. Só havia espaço para quatro passos no quarto, mas ele não conseguia ficar parado. – Foi importante para mim, na época – ele disse, em pé junto à janela. – Mas aqui eu mudei. Há algo errado aqui. Não sei o que é.
– Eu sei – disse Bedap. – O muro. Você se deparou com o muro.
Shevek virou-se com um olhar assustado.
– O muro?
– No seu caso, o muro parece ser Sabul, e os que o apoiam no Sindicato de Ciências, e o CPD. Quanto ao mim, estou em Abbenay há quatro décades. Quarenta dias. Tempo suficiente para ver que aqui, em quarenta anos, não vou realizar nada, absolutamente nada, do que quero fazer, o aperfeiçoamento do ensino de ciência nos centros de aprendizagem. A não ser que as coisas mudem. Ou a não ser que eu me junte aos inimigos.
– Inimigos?
– Os homenzinhos. Amigos de Sabul! As pessoas que estão no poder.
– Do que está falando, Dap? Não temos estrutura de poder.
– Não? Então por que Sabul é tão forte?
– Não uma estrutura de poder, um governo. Aqui não é Urras, afinal!
– Não. Não temos governo, nem leis, muito bem. Mas, pelo que eu saiba, ideias nunca foram controladas por leis e governos, mesmo em Urras. Se tivessem sido, como a Odo poderia ter desenvolvido as dela? Como o Odonismo teria se tornado um movimento mundial? Os hierarquistas tentaram esmagá-lo à força, mas fracassaram. Não se pode destruir ideias reprimindo-as. Só se pode destruí-las ignorando-as. Recusando-se a pensar, recusando-se a mudar. E é exatamente isso o que nossa sociedade está fazendo! Sabul usa você onde ele pode, e onde não pode ele o impede de publicar, de ensinar, e até de trabalhar. Certo? Em outras palavras, ele tem poder sobre você. E de onde ele tira esse poder? Não de uma autoridade investida, pois ela não existe. Ele tira o poder da covardia inata da mente humana média. Opinião pública! Essa é a estrutura de poder da qual ele faz parte e sabe usar. O não admitido e inadmissível governo que controla a sociedade odoniana pela repressão da mente individual.
Shevek apoiou as mãos no peitoril da janela, olhando através dos reflexos embaçados na vidraça para a escuridão lá fora. Por fim, disse:
– Que conversa maluca, Dap.
– Não, irmão, estou lúcido. O que enlouquece as pessoas é tentar viver fora da realidade. A realidade é terrível. Pode matá-lo. Com o tempo, é certeza de que irá matá-lo. A realidade é dor... Você disse isso! Mas são as mentiras, as fugas da realidade que o enlouquecem. São as mentiras que o fazem querer se matar.
Shevek virou-se para encará-lo.
– Mas você não pode estar falando sério sobre a existência de um governo aqui!
– Das Definições, de Tomar: “Governo: o uso legal do poder para manter e estender o poder”. Substitua “legal” por “habitual” e teremos Sabul, o Sindicato de Instrução e o CPD.
– O CPD!
– O CPD, a esta altura, é basicamente uma burocracia hierárquica.
Após um momento, Shevek riu, não com muita naturalidade, e disse:
– Ora, vamos, Dap, isso é divertido, mas um pouco doentio, não acha?
– Shevek, já lhe ocorreu que aquilo que o modo analógico chama de “doença”, desafeição social, descontentamento, alienação, pode ser analogicamente chamado de... dor, e foi o que você quis dizer quando falou sobre a dor e o sofrimento? E que, como a dor, ela tem uma função no organismo?
– Não! – respondeu Shevek, impetuosamente. – Eu estava falando em termos pessoais e espirituais.
– Mas você falou em sofrimento físico, de um homem morrendo com queimaduras. E eu falo de sofrimento espiritual! De pessoas vendo seu talento, seu trabalho, suas vidas serem desperdiçadas. De mentes inteligentes se submetendo a mentes burras. De força e coragem estranguladas pela inveja, pela cobiça por poder, pelo medo da mudança. Mudança é liberdade, mudança é vida... Existe alguma coisa mais básica ao pensamento odoniano do que isso? Mas não existe mais mudança! Nossa sociedade está doente. Você sabe disso. Você está sofrendo dessa doença. Dessa doença suicida!
– Chega, Dap. Pare com isso.
Bedap não disse mais nada. Começou a roer a unha do polegar metodicamente, pensativo.
Shevek tornou a sentar-se na cama e pôs a cabeça nas mãos. Houve um longo silêncio. A neve cessara. Um vento seco e escuro batia na vidraça. O quarto estava frio; nenhum dos dois jovens tirara o casaco.
– Escute, irmão – disse Shevek, enfim. – Não é a nossa sociedade que frustra a criatividade individual. É a pobreza de Anarres. Este planeta não é adequado à civilização. Se decepcionarmos uns aos outros, se não renunciarmos a nossos desejos pessoais pelo bem comum, nada, nada neste planeta árido pode nos salvar. A solidariedade humana é nosso único recurso.
– Sim, solidariedade! Até em Urras, onde a comida dá em árvores, até lá Odo disse que a solidariedade é a nossa esperança. Mas nós traímos essa esperança. Deixamos a cooperação virar obediência. Em Urras eles têm o governo da minoria. Aqui temos o governo da maioria. Mas é governo! A consciência social não é mais uma coisa viva, mas uma máquina, uma máquina de poder, controlada por burocratas!
– Você ou eu poderíamos nos voluntariar e sermos sorteados para um posto no CPD em algumas décades. Isso nos tornaria burocratas, patrões?
– Não são os indivíduos em postos no CPD, Shev. A maioria é como nós. Como nós até demais. Bem-intencionados, ingênuos. E não é só o CPD. É qualquer lugar em Anarres. Centros de aprendizagem, institutos, minas, usinas, indústria da pesca, de enlatados, estações de pesquisa e desenvolvimento agrícola, fábricas, comunidades de um só produto... qualquer lugar em que a função exija perícia e uma instituição estável. Mas essa estabilidade dá margem ao impulso autoritário. Nos primórdios da Colonização, tínhamos consciência disso, do cuidado que devíamos ter com isso. Naquela época, as pessoas faziam uma distinção meticulosa entre administrar coisas e governar pessoas. Fizeram isso tão bem a ponto de esquecermos que a vontade de dominar é tão crucial nos seres humanos quanto o impulso à ajuda mútua e que também deve ser treinada em cada indivíduo, em cada geração. Ninguém nasce odoniano, assim como ninguém nasce civilizado! Mas esquecemos isso. Não educamos para a liberdade. A educação, a atividade mais importante do organismo social, tornou-se rígida, moralista, autoritária. As crianças aprendem a papaguear as palavras de Odo como se fossem leis... a suprema blasfêmia!
Shevek hesitou. Tinha experimentado muito esse tipo de ensino quando criança, e até ali no Instituto, para ser capaz de negar a acusação de Bedap.
Bedap aproveitou sua vantagem de maneira implacável.
– É sempre mais fácil não pensar por si mesmo. É só encontrar uma bela e confortável hierarquia e se acomodar. Não faça mudanças, não corra o risco de ser desaprovado, não aborreça seus síndicos. É sempre mais fácil deixar-se governar.
– Mas não é governo, Dap! Os peritos e os mais experientes sempre vão dirigir qualquer equipe ou sindicato; eles conhecem melhor o trabalho. O trabalho tem de ser feito, afinal de contas! Quanto ao CPD, sim, ele poderia se tornar uma hierarquia, uma estrutura de poder, se não fosse organizado de modo a evitar exatamente isso. Veja como é constituído! Voluntários, escolhidos por sorteio; um ano de treinamento; depois, quatro anos como Alistado; depois, fora. Ninguém consegue conquistar poder, no sentido hierárquico, num sistema como esse, com apenas quatro anos dentro dele.
– Alguns ficam mais de quatro anos.
– Conselheiros? Eles não mantêm o voto.
– Votos não são importantes. Há pessoas nos bastidores...
– Ora! Isso é pura paranoia! Bastidores... como? Que bastidores? Qualquer um pode acompanhar qualquer reunião do CPD e, se for um síndico interessado, pode debater e votar! Você está tentando insinuar que temos políticos aqui? – Shevek estava furioso com Bedap; suas orelhas salientes ficaram vermelhas, sua voz se elevou. Era tarde, nenhuma luz acesa no quadrilátero. Desar, no Quarto 45, bateu na parede, pedindo silêncio.
– Estou dizendo o que você já sabe – respondeu Bedap, baixando a voz. – Que são pessoas como Sabul que de fato mandam no CPD, e mandam ano após ano.
– Se você sabe disso – Shevek acusou, num sussurro áspero –, então por que não tornou isso tudo público? Por que não convocou uma sessão crítica no seu sindicato, se existem fatos? Se suas ideias não resistem ao julgamento público, não quero ouvi-las em sussurros à meia-noite.
Os olhos de Bedap tinham ficado muito pequenos, como contas de aço.
– Irmão – ele disse –, você se acha moralmente superior. Sempre se achou. Olhe para fora de sua maldita consciência limpa pelo menos uma vez! Venho até você e sussurro porque sei que posso confiar em você, caramba! Com quem mais posso conversar? Você quer acabar como Tirin?
– Como Tirin? – Shevek assustou-se a ponto de erguer a voz. Bedap o silenciou com um gesto em direção à parede. – O que houve com Tirin? Onde ele está?
– No Manicômio da Ilha Segvina.
– No Manicômio?
Bedap sentou-se de lado na cadeira, levantou os joelhos até o queixo e os envolveu em seus braços. Falou calmamente agora, com relutância.
– Tirin escreveu uma peça e a encenou, no ano em que você foi embora. Era engraçada... louca... você conhece o jeito dele – Bedap passou a mão pelo cabelo áspero e ruivo, soltando o rabo de cavalo. – A peça poderia parecer antiodoniana a pessoas estúpidas. Há muita gente estúpida. Houve uma confusão. Ele foi repreendido. Repreensão pública. Nunca tinha visto uma. Todos vão à reunião do seu sindicato e o advertem. Era assim que reprimiam um chefe de equipe ou um administrador mandão. Agora usam a reprimenda pública para ordenar a um indivíduo que pare de pensar por si mesmo. Foi difícil. Tirin não aguentou. Acho que afetou um pouco mesmo a mente dele. Achou que todo mundo estava contra ele. Passou a falar demais... uma conversa amarga. Não irracional, mas sempre crítica, sempre amarga. E ele falava daquele jeito com todo mundo. Bem, ele terminou o Instituto, qualificou-se como instrutor de matemática e solicitou um posto. Conseguiu um. Na equipe de manutenção de estradas no Poente Sul. Ele protestou, alegando que havia algum engano, mas os computadores da Divlab repetiram a indicação. Então ele foi.
– Tirin nunca trabalhou ao ar livre no tempo todo em que o conheci – interrompeu Shevek. – Desde que tinha 10 anos. Ele sempre arranjava serviço em escritórios. A Divlab estava sendo justa.
Bedap não prestou atenção.
– Não sei o que realmente se passou lá no Poente Sul. Ele me escreveu várias vezes, e a cada vez tinha sido removido para um posto novo. Sempre trabalho braçal, em pequenas comunidades afastadas. Escreveu dizendo que ia abandonar o posto e voltar para o Poente Norte para me ver. Mas não veio. Parou de escrever. Finalmente, consegui localizá-lo através dos Arquivos Laborais de Abbenay. Enviaram-me a cópia do cartão dele, e a última entrada era apenas “Terapia. Ilha de Segvina”. Terapia! Tirin matou alguém? Violentou alguém? Por que motivo mandam gente para o Manicômio, além desses?
– Ninguém manda ninguém para um manicômio. Você é que solicita um posto lá.
– Não me venha com essa merda – Bedap disse, com fúria repentina. – Ele nunca pediu para ser mandado para lá! Eles o enlouqueceram e depois o mandaram para lá. É do Tirin que estou falando, Tirin, você se lembra dele?
– Eu o conheci antes de você. O que você acha que é o Manicômio... uma prisão? É um refúgio. Se lá existem assassinos e desertores inveterados do trabalho é porque eles pediram para ir para lá, onde não ficam sob pressão e estão a salvo de retaliações. Mas quem são essas pessoas de quem você não para de falar... “eles”? “Eles” o enlouqueceram e tal? Está insinuando que todo o sistema social é mau, que na verdade “eles”, os perseguidores de Tirin, seus inimigos, “eles” somos nós... o organismo social?
– Se você consegue descartar Tirin da sua consciência como um desertor do trabalho, acho que não tenho mais nada a lhe dizer – respondeu Bedap, encolhido na cadeira. Havia um pesar tão simples e sincero em sua voz que a ira virtuosa de Shevek cessou de repente.
Nenhum dos dois falou por um momento.
– É melhor eu ir para casa – disse Bedap, desdobrando as pernas rígidas e pondo-se de pé.
– É uma hora a pé daqui. Não seja estúpido.
– Bem, eu achei... já que...
– Não seja estúpido.
– Tudo bem. Onde é o banheiro?
– À esquerda, terceira porta.
Quando voltou, Bedap propôs dormir no chão, mas como não havia tapete e apenas um cobertor quente, essa ideia foi, como Shevek observou monotonamente, estúpida. Ambos estavam chateados e irritados; doloridos, como se tivessem trocado socos, mas sem pôr toda a raiva para fora. Shevek desenrolou a roupa de cama, e eles se deitaram. Quando a luz foi apagada, uma escuridão prateada entrou no quarto, a semiescuridão de uma noite na cidade quando há neve no chão e a luz reflete debilmente para cima a partir do solo. Estava frio. Cada um deles recebeu com agrado o calor do corpo do outro.
– Retiro o que eu disse sobre o cobertor.
– Escute, Dap, eu não quis...
– Ah, vamos conversar de manhã.
– Certo.
Chegaram mais perto um do outro. Shevek virou-se de bruços e dormiu em dois minutos. Bedap lutou para manter a consciência, entregou-se ao calor mais profundo, à vulnerabilidade, à confiança do sono, e dormiu. No meio da noite um deles gritou, sonhando. O outro estendeu o braço, sonolento, e murmurou algo tranquilizador, e o peso cego e quente daquele toque suplantou todo o medo.
Tornaram a se encontrar na noite seguinte e discutiram se deviam ou não ser pares por um tempo, como tinham sido na adolescência. O assunto precisava ser discutido, pois Shevek era definitivamente heterossexual e Bedap era definitivamente homossexual; o prazer seria sobretudo para Bedap. Shevek estava disposto, contudo, a reconfirmar a velha amizade; e quando percebeu que o elemento sexual significava bastante a Bedap, uma verdadeira consumação, tomou a iniciativa e, com muito carinho e obstinação, assegurou-se de que Bedap passaria a noite com ele outra vez. Foram a um quarto individual num domicílio no centro da cidade e moraram ali por uma décade; depois se separaram de novo, Bedap para seu dormitório e Shevek para o Quarto 46. Não havia um forte desejo sexual em nenhum dos dois para que a ligação durasse. Eles simplesmente reafirmaram a confiança.
No entanto, Shevek às vezes se perguntava, enquanto ia se encontrar com Bedap quase todos os dias, do que é que gostava em seu amigo e por que confiava nele. Considerava as atuais opiniões de Badap detestáveis, e sua insistência em conversar sobre elas, cansativa. Tinham discussões calorosas em quase todos os encontros. Magoavam-se bastante. Ao deixar Bedap, Shevek com frequência acusava a si mesmo de estar apenas se apoiando numa lealdade ultrapassada e, exasperado, jurava que não tornaria a vê-lo.
Mas o fato é que ele gostava mais de Bedap agora, como adulto, do que jamais gostara na adolescência. Inepto, insistente, dogmático, destrutivo: Bedap podia ser tudo isso, mas atingira a liberdade de pensamento que Shevek almejava, embora odiasse a expressão dessa liberdade. Ele mudara a vida de Shevek, e Shevek sabia disso, sabia que enfim seguiria em frente e que foi Bedap quem lhe possibilitara seguir em frente. Brigava com Bedap a cada passo do caminho, mas não deixava de ir vê-lo, para discutir, para magoar e ser magoado, para encontrar – sob raiva, negação e rejeição – o que procurava. Não sabia o que procurava, mas sabia onde procurar.
Foi, conscientemente, um período tão infeliz para ele como fora o ano anterior. Ainda não avançava em seu trabalho; na verdade, abandonara de uma vez a Física Temporal e retrocedera ao humilde trabalho de laboratório, realizando diversas experiências no laboratório de radiação, estudando velocidades subatômicas junto com um técnico hábil e silencioso. Era um campo muito explorado, e seu ingresso atrasado na área foi considerado por seus colegas como um reconhecimento de que ele finalmente tinha parado de tentar ser original. O Sindicato dos Membros do Instituto deu-lhe um curso para lecionar, Física Matemática para alunos iniciantes. Ele não teve nenhuma sensação de triunfo por finalmente terem lhe dado um curso, pois não passava disto: tinham lhe dado o curso, tinham lhe permitido. Não encontrava muito conforto em coisa alguma. O fato de os muros de sua consciência inflexível e puritana estarem se ampliando imensamente trazia-lhe tudo menos conforto. Sentia-se frio e perdido. Mas não tinha nenhum lugar para se refugiar, nenhum abrigo, então saía cada vez mais para o frio, ficando cada vez mais perdido.
Bedap fizera muitos amigos, um grupo errático e descontente, e alguns deles gostaram do homem tímido. Não se sentia mais próximo deles do que das pessoas mais convencionais do Instituto, embora a sua independência de pensamento fosse mais interessante. Preservavam a autonomia de consciência mesmo à custa de se tornarem excêntricos. Alguns eram nuchnibi intelectuais que há anos não trabalhavam num posto regular. Shevek os desaprovava com severidade quando não estava com eles.
Um desses amigos era um compositor chamado Salas. Salas e Shevek queriam aprender um com o outro. Salas sabia pouco de matemática, mas, quando Shevek conseguia explicar física nos modos analógico ou experimental, ele era um ouvinte ávido e inteligente. Do mesmo modo, Shevek ouvia qualquer coisa que Salas lhe dissesse sobre teoria musical e qualquer coisa que Salas tocasse no gravador ou em seu instrumento, o portátil. Mas achava algumas das coisas que Salas lhe dizia extremamente perturbadoras. Salas aceitara um posto na equipe de escavação de um canal nas Planícies de Temae, a leste de Abbenay. Ele vinha à cidade nos seus três dias de folga a cada décade e ficava com uma ou outra moça. Shevek presumiu que ele aceitara o posto porque queria um pouco de trabalho ao ar livre para variar; mas então descobriu que Salas nunca tivera um posto em música, ou em qualquer coisa a não ser trabalho não qualificado.
– Em que lista você está na Divlab? – Shevek perguntou, perplexo.
– Grupo de Serviços Gerais.
– Mas você é qualificado! Estudou seis ou oito anos no conservatório do Sindicato de Música, não foi? Por que não lhe dão um posto como professor de música?
– Eles me deram. Recusei. Só vou estar pronto para ensinar daqui a dez anos. Lembre que sou compositor, não intérprete.
– Mas deve haver postos para compositores.
– Onde?
– No Sindicato de Música, suponho.
– Mas os síndicos da Música não gostam das minhas composições. Quase ninguém gosta, ainda. Não posso formar um sindicato sozinho, posso?
Salas era um homenzinho ossudo, já calvo na fronte e no crânio; mantinha curto o cabelo que lhe restava, numa franja bege e sedosa em volta da nuca e no queixo. Tinha um sorriso doce que lhe enrugava o rosto expressivo.
– Eu não componho do modo como aprendi a compor no conservatório. Componho música disfuncional. – Deu um sorriso mais doce do que nunca. – Eles querem corais. Eu detesto corais. Querem peças de grande harmonia, como as que Sessur compôs. Eu odeio a música de Sessur. Estou escrevendo uma peça de câmara. Pensei em chamá-la de O Princípio da Simultaneidade. Cinco instrumentos, cada um tocando um tema cíclico independente; nenhuma causalidade melódica; todo o andamento na relação entre as partes. Daria uma harmonia adorável. Mas eles não a ouvem. Eles se recusam a ouvi-la. Não conseguem!
Shevek refletiu por um instante.
– Se você a chamasse de As Alegrias da Solidariedade, eles a ouviriam? – perguntou.
– Caramba! – exclamou Bedap, que estava ouvindo a conversa. – É a primeira coisa cínica que você disse na vida, Shev. Bem-vindo à equipe de trabalho!
Salas riu.
– Eles a ouviriam, mas a recusariam para gravação ou apresentação regional. Não é o Estilo Orgânico.
– Não é à toa que eu nunca ouvi nenhuma música profissional quando morei no Poente Norte. Mas como podem justificar esse tipo de censura? Você escreve música! Música é uma arte cooperativa, orgânica por definição, social. Talvez seja a forma mais nobre de comportamento social de que somos capazes. Seguramente é um dos trabalhos mais nobres que um indivíduo pode empreender. E por sua natureza, pela natureza de qualquer arte, é um compartilhamento. O artista compartilha, é a essência de seu ato. Não importa o que digam os seus síndicos, como a Divlab pode justificar não lhe darem um posto em seu próprio campo?
– Eles não querem compartilhar minha música – Salas disse, alegremente. – Ela os assusta.
Bedap falou com mais seriedade:
– Podem justificar porque a música não é útil. Escavar um canal é importante, você sabe; música é mera decoração. O círculo deu a volta ao tipo mais vil de utilitarismo explorador. A complexidade, a vitalidade, a liberdade de invenção e iniciativa, que eram o centro do ideal odoniano, jogamos fora. Retornamos à barbárie. Se é novo, fuja; se não pode comer, jogue fora!
Shevek pensou no próprio trabalho e não teve nada a dizer. No entanto, não podia se unir à crítica de Bedap. Bedap o forçara a perceber que ele era, na verdade, um revolucionário; mas sentia profundamente que o era somente por causa de sua criação e educação como um odoniano anarresti. Não podia se rebelar contra sua sociedade, pois sua sociedade, propriamente concebida, era uma revolução, uma revolução permanente, um processo contínuo. Para reafirmar sua validade e força, pensava ele, era preciso apenas agir, sem medo de punição e sem a esperança de recompensa; agir com o centro da alma.
Bedap e alguns de seus amigos iam tirar uma décade de folga juntos, numa excursão a pé pelas Ne Theras. Ele persuadira Shevek a ir também. Shevek gostava da perspectiva de dez dias nas montanhas, mas não da perspectiva de dez dias de opiniões de Bedap. A conversa de Bedap parecia demais uma Sessão de Crítica, a atividade comunitária de que ele sempre menos gostara, em que todos ficavam de pé e reclamavam dos defeitos no funcionamento da comunidade e, geralmente, dos defeitos no caráter de seus vizinhos. Quanto mais perto chegavam as férias, menos queria ir. Mas enfiou um caderno no bolso, para que pudesse se afastar dos outros e fingir que estava trabalhando, e foi.
Encontraram-se de manhã cedo atrás do depósito de mercadorias para transporte rodoviário Ponta Oriental, três mulheres e três homens. Shevek não conhecia nenhuma das mulheres, e Bedap o apresentou a apenas duas delas. Quando partiram na estrada rumo às montanhas, ele marchou ao lado da terceira mulher.
– Shevek – apresentou-se.
– Eu sei – ela disse.
Ele deu-se conta de que devia tê-la encontrado antes em algum lugar e deveria saber o nome dela. Suas orelhas ficaram vermelhas.
– Você está brincando? – Bedap perguntou, movendo-se para a esquerda. – Takver estava no Instituto do Poente Norte conosco. Ela mora em Abbenay há dois anos. Vocês não tinham se visto aqui até agora?
– Eu o vi umas duas vezes – disse a moça, e riu dele. Sua risada era de alguém que gostava de comer bem, um riso aberto e infantil. Era alta e um tanto magra, com braços arredondados e quadris largos. Não era muito bonita; tinha o rosto moreno, inteligente e animado. Em seus olhos havia uma escuridão, não a opacidade de olhos escuros e vivos, mas certa profundidade, quase como o negrume profundo de cinzas finas, muito suaves. Encontrando o olhar de Takver, Shevek sabia que havia cometido uma falta imperdoável ao esquecê-la e, no mesmo instante dessa percepção, compreendeu também que tinha sido perdoado. Que estava com sorte. Que a sorte havia mudado.
Começaram a subir as montanhas.
Na noite fria do quarto dia da excursão, ele e Takver sentaram-se na escarpa árida acima de um desfiladeiro. Quarenta metros abaixo deles, uma torrente ruidosa precipitava-se pelo barranco em meio às rochas molhadas pelos borrifos d’água. Havia pouca água corrente em Anarres; o lençol aquífero era baixo na maioria dos lugares, os rios eram curtos. Somente nas montanhas havia correntezas. O barulho da água gritando, chapinhando e cantando era novo para eles.
Os dois tinham passado o dia subindo e descendo desfiladeiros como aquele no platô e estavam com as pernas exaustas. O restante do grupo permaneceu no Abrigo do Caminho, um alojamento de pedra feito por e para excursionistas, e muito bem cuidado; a federação das Ne Theras era o mais ativo dos grupos de voluntários que administravam e protegiam as limitadas “paisagens deslumbrantes” de Anarres. Um guarda-florestal que vivia lá no verão estava ajudando Bedap e os outros a preparar o jantar com os ingredientes da despensa bem abastecida. Takver e Shevek tinham saído, nessa ordem, separadamente, sem dizer aonde iam e, na verdade, sem saber aonde iam.
Ele a encontrou na escarpa, sentada por entre os arbustos delicados de espinhos-da-lua que cresciam como laços de renda nas vertentes das montanhas, com seus ramos rígidos e frágeis prateados à luz do crepúsculo. Numa abertura entre os picos a leste, uma luminosidade descolorida do céu anunciava o luar. A correnteza fazia barulho no silêncio das colinas altas e áridas. Não havia nenhum vento, nenhuma nuvem. O ar acima das montanhas era como a ametista: duro, claro, profundo.
Estavam ali sentados há algum tempo sem falar.
– Nunca me senti tão atraído por uma mulher na minha vida como me senti por você. Desde que começamos a excursão. – O tom de voz de Shevek era frio, quase ressentido.
– Não tinha a intenção de estragar as suas férias – ela disse, com uma risada aberta e infantil, alta demais para o crepúsculo.
– Não estragou!
– Que bom. Pensei que você estava querendo dizer que isso o perturbou.
– Perturbou! Foi como um terremoto.
– Obrigada.
– Não é você – ele disse num tom áspero. – Sou eu.
– Isso é o que você pensa – ela retrucou.
Houve uma pausa um tanto longa.
– Se quer copular, por que não me pediu? – ela perguntou.
– Porque não tenho certeza se é isso o que realmente quero.
– Nem eu. – O sorriso dela sumiu. – Escute – ela disse, com a voz suave, sem muito timbre; tinha a mesma característica felpuda dos olhos. – Preciso lhe dizer. – Mas o que ela precisava lhe dizer permaneceu não dito por um longo instante. Por fim ele a olhou com apreensão tão aflita que ela se apressou a falar, e disse de uma vez:
– Bem, o que eu quero dizer é que não quero copular com você agora. Nem com ninguém.
– Você jurou não fazer mais sexo?
– Não! – ela respondeu com indignação, mas sem se explicar.
– Era melhor eu ter jurado – ele disse, jogando uma pedrinha na correnteza. – Ou então sou mesmo impotente. Já faz meio ano, e fiz apenas com o Dap. Quase um ano, na verdade. Cada vez menos satisfatório, até que eu desisti de tentar. Não valia a pena. Não valia o trabalho. Mesmo assim, eu... Eu me lembro... Sei o que deveria ser.
– Bem, é isso – disse Takver. – Eu me divertia muito copulando, até os meus 18 ou 19 anos. Era excitante, interessante, prazeroso. Mas aí... Não sei. Como você disse, ficou insatisfatório. Eu não queria prazer. Quer dizer, não só prazer.
– Quer ter filhos?
– Sim, quando chegar a hora.
Ele arremessou outro pedregulho na correnteza, que estava desaparecendo nas sombras do barranco, deixando apenas o barulho para trás, uma harmonia incessante composta de desarmonias.
– Eu quero realizar um trabalho – ele disse.
– Ser celibatário ajuda?
– Existe uma relação. Mas não sei qual é, não é causal. Mais ou menos na mesma época em que o sexo começou a ficar desagradável para mim, o trabalho também ficou. Cada vez mais. Três anos sem chegar a nada. Esterilidade. Esterilidade de todos os lados. Até onde a vista alcança, o deserto infértil se estende sob a luz impiedosa do sol inclemente, um descampado sem vida, sem caminho, sem energia, sem sexo, coberto de ossos dos caminhantes sem sorte...
Takver não riu; deu uma risadinha chorosa, como se doesse. Ele tentou claramente interpretar a expressão no rosto da moça. Atrás da cabeça escura de Takver o céu estava sólido e claro.
– O que há de errado com o prazer, Takver? Por que você não o quer?
– Não há nada de errado. E eu o quero. Só que não preciso dele. E se eu aceitar o que não necessito, nunca vou conseguir o que realmente necessito.
– E o que é que você necessita?
Ela baixou os olhos para o chão, arranhando a superfície de um afloramento rochoso com a unha. Não disse nada. Curvou-se para pegar um ramo de espinho-da-lua, mas não arrancou, apenas o tocou, sentiu o caule felpudo e a folha frágil. Shevek viu na tensão em seus movimentos que ela tentava com todas as forças conter ou reprimir uma torrente de emoções, para que conseguisse falar. Quando falou, sua voz era baixa e um pouco rouca.
– Preciso de uma ligação – ela disse. – Uma ligação real. Corpo e mente, por todos os anos da vida. Nada mais. Nada menos.
Lançou um olhar de desafio para ele, poderia ter sido de raiva.
Uma alegria surgiu misteriosamente dentro dele, como o som e o cheiro da água corrente subindo através da escuridão. Teve uma sensação de infinitude, de limpidez, total limpidez, como se tivesse sido libertado. Atrás da cabeça de Takver o céu brilhava com a lua nascente; os picos distantes flutuavam claros e prateados.
– Sim, é isso – ele disse, sem constrangimento, sem nenhum senso de estar conversando com outra pessoa; falou, pensativo, o que lhe veio à cabeça. – Eu nunca compreendi.
Ainda havia certo ressentimento na voz de Takver.
– Você nunca precisou compreender.
– Por que não?
– Porque nunca viu a possibilidade de ter uma ligação, suponho.
– Como assim, a possibilidade?
– A pessoa!
Ele refletiu sobre isso. Estavam sentados a cerca de um metro um do outro, abraçando os próprios joelhos, pois começava a esfriar. O ar entrava pela garganta como água gelada. Viam a respiração um do outro, um vapor fraco ao luar cada vez mais firme.
– A noite em que eu vi essa possibilidade – disse Takver – foi a noite antes de você deixar o Instituto do Poente Norte. Houve uma festa, você lembra. Nós ficamos sentados, conversando a noite toda. Mas isso foi há quatro anos. E você nem sabia o meu nome. – Não havia mais rancor em sua voz; ela parecia querer desculpá-lo.
– Você viu em mim, naquela época, o que eu vi em você nestes quatro últimos dias?
– Não sei. Não sei dizer. Não foi só sexual. Já tinha reparado em você assim. Mas aquilo foi diferente; eu vi você. Mas não sei o que você vê em mim agora. E eu na verdade não sei o que vi em você na época. Não sabia absolutamente nada sobre você. Só que, quando você falou, parece que eu vi claramente o seu interior, o seu centro. Mas você poderia ser bem diferente do que eu achei que era. Não seria culpa sua, afinal – ela acrescentou. – Eu apenas percebi que o que eu vi em você era o que eu precisava. Não apenas o que eu queria!
– E você está em Abbenay há dois anos e não...
– Não o quê? Era só do meu lado, na minha cabeça, você nem sequer sabia o meu nome. Afinal, uma pessoa só não pode formar uma ligação!
– E você teve medo de vir até mim e eu talvez não querer essa ligação.
– Não foi medo. Eu sabia que você era o tipo de pessoa que... que se recusa a ser forçado... Bem, sim, eu estava com medo. Estava com medo de você. Não de cometer um engano. Eu sabia que não estava enganada. Mas você é... você mesmo. Você não é como a maioria das pessoas, você sabe. Eu tinha medo de você porque sabia que éramos iguais! – Seu tom de voz quando terminou era veemente, mas logo falou com muita delicadeza, com bondade. – Sabe, Shevek, isso realmente não tem importância.
Era a primeira que ele a ouvia dizer seu nome. Virou-se para ela e disse balbuciando, quase se engasgando:
– Não tem importância? Primeiro você me mostra... me mostra o que importa, o que realmente importa, o que eu necessitei toda a minha vida... e depois diz que não tem importância!
Estavam cara a cara agora, mas não se tocaram.
– É disso que você precisa, então?
– Sim. A ligação. A chance.
– Agora... e por toda a vida?
– Agora e por toda a vida.
“Vida”, disse a torrente de água, caindo pelas rochas no frio escuro.
Quando Shevek e Takver desceram as montanhas, mudaram-se para um quarto de casal. Não havia nenhum quarto vago nos quarteirões próximos ao Instituto, mas Takver conhecia um não muito longe, num velho domicílio no extremo norte da cidade. A fim de conseguirem o quarto, foram falar com a administradora habitacional do quarteirão – Abbenay dividia-se em cerca de duzentas regiões administrativas locais, chamadas quarteirões –, uma esmeriladora de lentes que trabalhava em casa e mantinha os três filhos em casa com ela. Guardava, portanto, os arquivos numa prateleira alta do armário para que as crianças não os alcançassem. Verificou na papelada que o quarto estava registrado como vago; Shevek e Takver registraram-no como ocupado assinando seus nomes.
A mudança também não foi complicada; Shevek trouxe uma caixa de papéis, as botas de inverno e o cobertor laranja. Takver teve de fazer três viagens. Uma delas foi ao depósito de roupas do bairro para obter uma muda de roupa nova para os dois, um gesto que ela sentiu, de modo obscuro, mas intenso, ser essencial ao início da parceria. Depois foi ao seu antigo dormitório, uma vez para pegar roupas e papéis, e outra vez, com Shevek, para trazer alguns objetos curiosos: formas concêntricas complexas feitas de arame, que se moviam e mudavam devagar para o centro quando penduradas no teto. Ela tinha feito aquilo com restos de arame e ferramentas do depósito de suprimentos de artesanato e os chamava de Ocupações do Espaço Inabitado. Uma das cadeiras do quarto estava decrépita, então a levaram a uma oficina de consertos, onde a trocaram por uma em perfeito estado. Assim, a mobília ficou completa. O novo quarto tinha o teto alto, o que o tornava arejado e dava espaço de sobra para as Ocupações. O domicílio fora construído numa das colinas baixas de Abbenay, e o quarto tinha uma janela de canto que pegava o sol da tarde e oferecia uma vista da cidade: as ruas e praças, os telhados, os parques verdes, as planícies além.
A intimidade após longa solidão, a brusquidão do contentamento puseram à prova a estabilidade tanto de Shevek quanto de Takver. Nas primeiras décades, ele teve oscilações frenéticas entre euforia e ansiedade; ela teve acessos de mau humor. Ambos eram hipersensíveis e inexperientes. A tensão não durou, pois se tornaram peritos um no outro. O apetite sexual persistia como deleite apaixonado, o desejo por comunhão se renovava dia a dia, pois dia a dia era satisfeito.
Agora estava claro para Shevek, e ela acharia tolice pensar de outra forma, que os anos imprestáveis que ele passara naquela cidade tinham sido parte de sua grande felicidade atual, pois o conduziram a ela, o prepararam para ela. Tudo o que lhe acontecera fazia parte do que lhe acontecia agora. Takver não entendia esses obscuros encadeamentos de causa/efeito/causa, mas ela não era física temporal. Ingenuamente, via o tempo como um caminho traçado. Caminhava-se nele e chegava-se a algum lugar. Se houvesse sorte, chegava-se a algum lugar que valia a pena.
Mas quando Shevek pegou essa metáfora e a reformulou em seus próprios termos, explicando que se o passado e o futuro não fizessem parte do presente como memória e intenção, não haveria, em termos humanos, caminho algum e nenhum lugar aonde ir, ela concordou com a cabeça antes que ele concluísse.
– Exatamente – ela disse. – Era o que eu estava fazendo nos últimos quatro anos. Nem tudo é sorte. Só em parte.
Ela tinha 23 anos, meio ano mais nova que Shevek. Crescera numa comunidade agrícola, Vale Redondo, no Nordeste. Era um lugar isolado e, antes de vir para o Instituto do Poente Norte, Takver tinha trabalhado muito mais que a maioria dos jovens anarrestis. Mal havia a quantidade de gente necessária no Vale Redondo para realizar os serviços essenciais, mas a comunidade não era grande o suficiente, ou produtiva o suficiente na economia geral, para obter prioridade dos computadores da Divlab. Tinha de se cuidar sozinha. Aos 8 anos, Takver trabalhara três horas por dias nas usinas, tirando palha e pedra dos grãos de holum, depois de passar três horas de escola. Pouco de seu treinamento prático quando criança destinara-se ao aprimoramento pessoal: fizera parte da luta da comunidade para sobreviver. Nas estações de plantio e colheita, todos acima de 10 e abaixo de 60 anos trabalhavam nos campos o dia todo. Aos 15 anos, ela fora encarregada de coordenar as escalas de trabalho nos quatrocentos lotes agrícolas cultivados pela comunidade do Vale Redondo e auxiliara a nutricionista no planejamento do refeitório da cidade. Não havia nada incomum em tudo isso, e Takver não pensava muito no assunto, mas é claro que a experiência formou certos elementos de seu caráter e de suas opiniões. Shevek alegrava-se de ter feito sua parte no kleggich, pois Takver desprezava as pessoas que fugiam do trabalho braçal.
– Veja o Tinan – ela dizia –, choramingando e lamuriando só porque pegou um posto de quatro décades no grupo de colheita de raiz de holum. Ele é tão delicado que parece ovo de peixe! Nunca mexeu com terra? – Takver não era particularmente caridosa, e era temperamental.
Estudara biologia no Instituto Regional do Poente Norte, com distinção suficiente para decidir aprofundar os estudos no Instituto Central. Após um ano foi convidada a entrar em um novo sindicato que estava instalando um laboratório para estudar técnicas de aumento e melhoria das reservas de peixes comestíveis nos três oceanos de Anarres. Quando perguntavam o que fazia, ela respondia: “Sou geneticista de peixe”. Gostava do trabalho; ele reunia duas coisas de que ela gostava: pesquisa precisa, factual, e um objetivo específico de aumento ou aperfeiçoamento. Sem um trabalho assim, ela não estaria satisfeita. Mas só o trabalho não lhe bastava. A maior parte do que se passava na mente e no espírito de Takver pouco tinha a ver com genética de peixe.
Seu interesse em paisagens e criaturas vivas era passional. Esse interesse, debilmente chamado de “amor à natureza”, parecia a Shevek algo muito mais amplo do que amor. Existem almas, pensava ele, cujo cordão umbilical nunca foi cortado. Nunca foram desmamadas do universo. Não encaram a morte como inimiga; não veem a hora de apodrecer e virar húmus. Era estranho ver Takver pegar uma folha na mão, ou mesmo uma pedra. Ela se tornava uma extensão delas, e elas de Takver.
Mostrou a Shevek os tanques de água do mar no laboratório de pesquisa, mais de cinquenta espécies de peixe, grandes e pequenos, simples ou vistosos, elegantes e grotescos. Ele ficou fascinado e um pouco amedrontado.
Os três oceanos de Anarres eram repletos de vida animal, ao contrário da superfície terrestre, em que não havia nenhuma. Por vários milhões de anos, os mares estiveram separados, por isso as formas de vida seguiram cursos isolados de evolução. A variedade era desconcertante. Nunca ocorrera a Shevek que a vida poderia proliferar de maneira tão desenfreada e tão exuberante, que a exuberância talvez fosse uma característica essencial da vida.
Na terra, as plantas se desenvolveram bem, a seu modo esparso e espinhoso, mas quase todos os animais que tentaram respirar o ar desistiram do intento quando o clima do planeta entrou numa era milenar de poeira e estiagem. As bactérias sobreviveram, muitas delas litófagas, assim como algumas centenas de espécies de vermes e crustáceos.
O homem se inseriu com cuidado e risco nessa ecologia limitada. Se pescasse, mas não com muita avidez, e se cultivasse, utilizando detritos orgânicos como adubo principal, ele poderia se inserir. Mas não poderia inserir mais ninguém. Não havia pasto para herbívoros. Não havia herbívoros para carnívoros. Não havia insetos para fecundar plantas com flores; as árvores frutíferas importadas eram todas fertilizadas à mão. Não introduziram nenhum animal de Urras, para não ameaçar o delicado equilíbrio da vida. Só vieram os Colonos, e tão bem lavados interna e externamente que trouxeram um mínimo de sua fauna e flora pessoais. Nem uma pulga chegou a Anarres.
– Gosto de biologia marinha – Takver disse a Shevek, em frente aos tanques de peixes – porque é tão complexa, uma verdadeira teia. Esse peixe come aquele peixe que come aquele peixinho que come ciliados que comem bactérias, e o ciclo recomeça. Na terra só existem três filos, todos invertebrados... se você não contar o homem. É uma situação esquisita, biologicamente falando. Nós, anarrestis, somos isolados de forma artificial. No Velho Mundo há dezoito filos de animais terrestres; existem classes, como a dos insetos, com tantas espécies que nunca foi possível contá-las, e algumas dessas espécies têm populações de bilhões. Imagine: para todo lugar que você olhasse, animais, outras criaturas, partilhando a terra e o ar com você. Você se sentiria muito mais uma parte. – Seu olhar acompanhou a trajetória curva de um peixinho azul pelo tanque turvo. Shevek, atento, seguiu a trajetória do peixinho e a trajetória do raciocínio dela. Ele perambulou em meio aos tanques por um longo tempo e voltou com ela muitas vezes ao laboratório e aos aquários, submetendo sua arrogância de físico àquelas estranhas pequenas formas de vida, à existência de seres para quem o presente é eterno, seres que não explicam a si mesmos e jamais precisam justificar seu modo de ser ao homem.
A maioria dos anarrestis trabalhava de cinco a sete horas por dia, com dois a quatro dias de folga a cada décade. Detalhes sobre regularidade, pontualidade, quais os dias de folga e assim por diante eram resolvidos entre os indivíduos e sua equipe ou grupo de trabalho, sindicato ou federação, qualquer nível em que a cooperação e a eficiência atingisse melhor resultado. Takver dirigia seus próprios projetos de pesquisa, mas o trabalho e os peixes tinham as próprias exigências imperativas; ela passava de duas a dez horas por dia no laboratório, sem folga. Shevek tinha dois postos de professor agora, um curso de matemática avançada num centro de aprendizagem e outro no Instituto. Ambos os cursos eram de manhã, e ele voltava ao quarto ao meio-dia. Geralmente Takver ainda não havia chegado. O prédio era bem silencioso. A luz do sol ainda não tinha dado a volta até a janela dupla que dava para o sul e oeste da cidade, e para as planícies; o quarto ficava frio e sombreado. Os delicados móbiles concêntricos pendendo em alturas diferentes sobre a cabeça moviam-se com precisão introvertida, silêncio, mistério dos órgãos do corpo ou dos processos mentais em raciocínio. Shevek sentava-se à mesa sob as janelas e começava a trabalhar, lendo, fazendo anotações ou calculando. Aos poucos a luz do sol entrava, passava pelos papéis, por suas mãos sobre os papéis e enchia o quarto de esplendor. E ele trabalhava. Os falsos começos e futilidades dos anos anteriores revelaram-se como base, alicerces, assentados no escuro, mas bem assentados. Sobre esses alicerces, metódica e cuidadosamente – mas com uma habilidade e uma certeza que não pareciam vir de si próprio, mas de um conhecimento que operava através dele, usando-o como veículo –, ele construiu a bela e firme estrutura dos Princípios da Simultaneidade.
Para Takver, como para qualquer homem ou mulher que se compromete a acompanhar um espírito criador, nem sempre era fácil. Embora a existência de Takver fosse necessária a Shevek, sua presença física poderia perturbá-lo. Ela não gostava de chegar em casa muito cedo, pois ele quase sempre parava de trabalhar quando ela chegava, e ela sentia que isso era errado. Mais tarde, quando eles fossem de meia-idade e enfadonhos, ele iria poder ignorá-la, mas aos 24 anos, não podia. Portanto, ela organizou suas tarefas no laboratório de modo a chegar em casa no meio da tarde. Esse esquema também não era perfeito, pois Shevek precisava de cuidados. Nos dias em que ele não dava aulas, quando ela chegava ele poderia estar sentado à mesa há seis ou oito horas seguidas. Quando ele se levantava, cambaleava de fadiga, suas mãos tremiam e ele mal concatenava as ideias. O uso que o espírito criador faz de seus eleitos é rude, ele os esgota, os descarta e arranja um modelo novo. Mas para Takver não havia substitutos, e quando via o modo fatigante como Shevek era usado, ela protestava. Ela gritava como o marido de Odo, Asieo, já gritara certa vez: “Pelo amor de Deus, garota, você não pode servir à Verdade um pouco por vez?”. Só que ela era a garota e não tinha familiaridade com Deus.
Eles conversavam, saíam para uma caminhada ou para os banhos, depois jantavam no refeitório do Instituto. Após o jantar havia reuniões, ou um concerto, ou eles viam seus amigos, Bedap, Salas e seu círculo, Desar e outros do Instituto, os colegas e amigos de Takver. Mas as reuniões e os amigos eram periféricos a eles. A participação social ou sociável não lhes era necessária; sua parceria bastava, e eles não conseguiam esconder esse fato. Isso parecia não ofender os outros. Muito pelo contrário, Bedap, Salas, Desar e os demais vinham até eles como pessoas sedentas vão a uma fonte. Os outros lhes eram periféricos: mas eles eram centrais para os outros. Os dois não faziam nada de mais; não eram mais benevolentes que outras pessoas, nem interlocutores mais brilhantes; no entanto, seus amigos os adoravam, dependiam deles e não paravam de lhes trazer presentes – as pequenas ofertas que circulavam entre essas pessoas que não possuíam nada e tudo: um cachecol tricotado à mão, um pedaço de granito cravejado de granadas escarlates, um vaso moldado à mão na oficina da Federação de Cerâmica, um poema sobre o amor, um conjunto de botões de madeira entalhada, uma concha espiral do Mar Sorruba. Davam o presente a Takver, dizendo: “Tome, talvez Shev queira usar isto como peso de papel”; ou a Shevek, dizendo: “Tome, talvez Tak goste dessa cor”. Ao darem, buscavam partilhar o que Shevek e Takver partilhavam, e celebrar, e enaltecê-los.
Foi um longo verão, quente e luminoso, o verão do ano 160 da Colonização de Anarres. As chuvas copiosas da primavera tinham deixado verdes as Planícies de Abbenay e assentado a poeira, de modo que o ar estava excepcionalmente claro; o sol era quente durante o dia, e à noite as estrelas brilhavam densas. Quando a Lua estava no céu, podia-se discernir claramente os contornos das costas de seus continentes, sob as deslumbrantes espirais brancas de suas nuvens.
– Por que a Lua é tão linda? – perguntou Takver, deitada ao lado de Shevek debaixo do cobertor laranja, as luzes apagadas. Acima deles pendiam as Ocupações do Espaço Inabitado, obscuras; do lado de fora da janela pendia a lua cheia, brilhante. – Mesmo sabendo que ela é um planeta como o nosso, só que com um clima melhor e gente pior... mesmo sabendo que são todos proprietários, que fazem guerras, fazem leis e comem enquanto outros passam fome, e de qualquer modo estão todos envelhecendo, tendo azar, reumatismo no joelho e calos nos pés como as pessoas daqui... mesmo sabendo de tudo isso, por que a Lua ainda parece tão feliz... como se a vida lá fosse tão feliz? Não consigo olhar para a luminosidade e imaginar um homenzinho horrendo como Sabul, com as mangas lambuzadas e uma mente atrofiada, vivendo lá; simplesmente não consigo.
Seus braços e torsos desnudos eram luar. A luz delicada e desmaiada no rosto de Takver formava uma auréola indefinida sobre seus traços; o cabelo e as sombras estavam negros. Shevek tocou no braço prateado de Takver com sua mão prateada, maravilhando-se com o calor do toque naquela luz fria.
– Quando se vê uma coisa por inteiro, a distância – ele disse –, ela sempre parece bonita. Planetas, vidas... Mas, de perto, um mundo é feito todo de terra e pedras. E, dia após dia, a vida é um trabalho árduo, você se cansa, perde a perspectiva. Você precisa da distância, do intervalo. O jeito de ver como a terra é bela é vê-la como a lua. O jeito de ver como a vida é bela é vê-la da perspectiva da morte.
– Isso vale para Urras. Deixe-o lá, sendo a lua... não quero aquele lugar! Mas não vou subir num túmulo, olhar para a vida e dizer “Ó, que linda!”. Quero ver a vida por inteiro bem no meio dela, aqui, agora. Não dou a mínima para a eternidade.
– Não tem nada a ver com a eternidade – disse Shevek com um meio sorriso, um homem magro e descabelado, feito de prata e sombra. – Tudo o que você precisa fazer para ver a vida como um todo é vê-la como mortal. Eu vou morrer, você vai morrer; como podemos nos amar de outro modo? O sol vai se extinguir, e o que o mantém brilhando?
– Ah, sua conversa, sua maldita filosofia!
– Conversa? Não é conversa, não é raciocínio. É o toque da mão. Eu toco a totalidade, eu a seguro. O que é o luar e o que é Takver? Como vou temer a morte? Quando a seguro, quando seguro a luz em minhas...
– Não seja proprietário – murmurou Takver.
– Querida, não chore.
– Não estou chorando, é você que está. Essas lágrimas são suas.
– Estou com frio, o luar é frio.
– Deite-se.
Um grande arrepio percorreu o corpo de Shevek quando ela o tomou em seus braços.
– Estou com medo, Takver – ele sussurrou.
– Irmão, meu querido, calma, não diga mais nada.
Dormiram abraçados naquela noite, muitas noites.
7
°°°°°
Shevek achou uma carta no bolso do casaco novo forrado de lã que encomendara para o inverno na rua do pesadelo. Não fazia ideia de como a carta tinha ido parar ali. Seguramente não estava na correspondência que lhe entregavam três vezes por dia e que consistia inteiramente de manuscritos e cópias de físicos de toda parte de Urras, convites para recepções e mensagens ingênuas de alunos da escola primária. Aquele era um pedaço de papel frágil enfiado ali, sem envelope; não trazia nenhum selo ou carimbo de nenhuma das três empresas de correios concorrentes.
Ele a abriu, vagamente apreensivo, e leu: “Se você é anarquista, por que trabalha com o sistema de poder, traindo seu Mundo e a Esperança Odoniana? Ou você está aqui para nos trazer essa Esperança? Sofrendo injustiça e repressão, procuramos na Lua Irmã a luz da liberdade no escuro da noite. Junte-se a nós, seus irmãos!” Não havia nenhuma assinatura, nenhum endereço.
A carta abalou Shevek, moral e intelectualmente, fazendo-o estremecer, não de surpresa, mas com uma espécie de pânico. Sabia que eles estavam ali, mas onde? Não tinha conhecido nenhum, não tinha visto nenhum, não tinha conhecido nenhum homem pobre ainda. Tinha deixado erguerem um muro à sua volta e nunca percebera. Aceitara o abrigo, como um proprietário. Tinha sido cooptado – exatamente como Chifoilisk dissera.
Mas não sabia como derrubar o muro. E, se o derrubasse, aonde poderia ir? O pânico se apoderou dele. A quem poderia recorrer? Estava cercado por todos os lados pelos sorrisos dos ricos.
– Gostaria de conversar com você, Efor.
– Sim, senhor. Com licença, senhor. Pôr bandeja aqui.
O criado manipulou a bandeja pesada com habilidade, retirou com destreza as tampas dos pratos, serviu o chocolate amargo de modo a formar uma espuma na borda da xícara, sem derramar ou espirrar. Era evidente que ele gostava do ritual do café da manhã e de seu papel nele, bem como era evidente que não queria interrupções incomuns durante o ritual. Em geral falava um iótico bem claro, mas agora, assim que Shevek disse que queria conversar, Efor passara para o staccato do dialeto urbano. Shevek conseguia entendê-lo um pouco; uma vez aprendida, a mudança dos valores sonoros tornava-se coerente, mas as apócopes deixavam Shevek desorientado. Metade das palavras era omitida. Era como um código, pensou ele: como se os “nioti”, como chamavam a si mesmos, não quisessem ser entendidos pelos de fora.
O criado aguardou em pé as ordens de Shevek. Sabia – aprendera as idiossincrasias de Shevek na primeira semana – que Shevek não queria que ele segurasse a cadeira ou lhe servisse enquanto comia. A postura atenta e ereta do criado bastava para murchar qualquer esperança de informalidade.
– Sente-se, Efor.
– Se assim deseja, senhor – respondeu o homem. Moveu uma cadeira um centímetro, mas não se sentou nela.
– É sobre isso que quero conversar. Você sabe que não gosto de lhe dar ordens.
– Tento fazer as coisas como senhor gosta sem precisar de ordens.
– Você... Não é isso que quero dizer. Sabe, no meu país ninguém dá ordens.
– Já ouvi falar, senhor.
– Bem, quero conhecê-lo como meu igual, meu irmão. Você é o único que conheço aqui que não é rico... que não é um dos donos. Quero muito conversar com você, quero saber da sua vida...
Parou em desespero, vendo o desprezo no rosto enrugado de Efor. Tinha cometido todos os erros possíveis. Efor o tomou por um tolo paternalista e intrometido.
Soltou as mãos sobre a mesa num gesto de desalento e disse:
– Ah, que diabos, desculpe, Efor! Não consigo dizer o que quero. Por favor, ignore.
– Como queira, senhor. – Efor retirou-se.
E parou por aí. As “classes não proprietárias” permaneciam-lhe tão distantes como na época em que lera sobre elas nos livros de história do Instituto Regional do Poente Norte.
Nesse ínterim, prometera passar uma semana com os Oiies, entre os períodos letivos do inverno e da primavera.
Oiie o convidara para jantar várias vezes desde sua primeira visita, sempre com certa formalidade, como se cumprisse um dever de hospitalidade, ou talvez uma ordem do governo. Em sua própria casa, porém, embora nunca inteiramente à vontade com Shevek, ele era genuinamente simpático. Na segunda visita, seus dois filhos decidiram que Shevek era um velho amigo, e a confiança deles na reciprocidade de Shevek surpreendeu o pai dos garotos, deixou-o perturbado; não conseguia aprová-la com facilidade; mas não podia dizer que não era justificada. Shevek comportava-se com eles como um velho amigo, como um irmão mais velho. Eles o admiravam, e o mais novo, Ini, passou a adorá-lo com fervor. Shevek era gentil, sério, honesto e contava boas histórias sobre a Lua; mas não era só isso. Ele representava algo a Ini que o garoto não podia descrever. Mesmo anos mais tarde em sua vida, que foi profunda e obscuramente influenciada por aquele fascínio infantil, Ini não encontrava palavras para aquilo, apenas palavras que continham um eco desse sentimento: a palavra viajante, a palavra exílio.
A única neve pesada do inverno caiu naquela semana. Shevek jamais vira uma queda de neve acima de uns três centímetros. Ficou extasiado com a extravagância, com a mera quantidade da tempestade. Deleitou-se com aquele excesso. Era branca demais, fria demais, silenciosa e imparcial demais para ser chamada de excrementícia pelo mais sincero odoniano; vê-la como outra coisa senão uma magnificência inocente seria mesquinhez de alma. Assim que o céu clareou, ele saiu com os garotos, que apreciavam a neve tanto quanto ele. Correram pelo grande quintal da casa de Oiie, jogaram bolas de neve, construíram túneis, castelos e fortalezas de neve.
Sewa Oiie ficou à janela com sua cunhada Vea, observando as crianças, o homem e a pequena lontra brincarem. A lontra tinha feito um escorregador para ela numa parede do castelo e, animada, descia de barriga por ele sem parar. As bochechas dos garotos estavam pegando fogo. O homem, com seu cabelo longo, revolto, castanho-acinzentado amarrado com um pedaço de cordão e suas orelhas vermelhas de frio, executava escavações de túneis com energia.
– Aqui não! – Cavem ali! – Cadê a pá? – Gelo no meu bolso! – as vozes agudas dos garotos ressoavam continuamente.
– Eis nosso alienígena – Sewa disse sorrindo.
– O maior físico vivo – disse a cunhada. – Que engraçado!
Quando ele entrou ofegante, batendo os pés para tirar a neve e exalando o vigor e o bem-estar frios e frescos que só as pessoas recém-chegadas da neve possuem, foi apresentado à cunhada. Estendeu a mão grande, dura e gelada e olhou Vea com olhos simpáticos.
– Você é irmã de Demaere? – perguntou. – Você se parece com ele. – E esta observação, que, vinda de qualquer outra pessoa teria soado insípida a Vea, agradou-a imensamente. “Ele é um homem” – ela não parava de pensar naquela tarde – “um homem real. O que ele tem de especial?”
Vea Doem Oiie era seu nome, no modo iota; seu marido Doem era o chefe de um grande monopólio industrial e viajava bastante, passando metade de cada ano no exterior como representante do governo. Explicaram isso a Shevek enquanto ele a observava. Nela, a magreza, a cor pálida e os olhos negros ovais de Demaere tinham se transformado em beleza. Os seios, os ombros e os braços eram redondos, macios e muito brancos. Shevek sentou-se ao lado dela durante o jantar. Não parava de olhar aqueles seios desnudos, levantados pelo corpete rijo. A ideia de sair assim seminua num clima gélido era extravagante, tão extravagante quanto a neve, e os pequenos seios também tinham uma brancura inocente, como a neve. A curva do pescoço subia suavemente até a curva da cabeça altiva, raspada e delicada.
Ela realmente é muito atraente, Shevek informou a si mesmo. Ela é macia como as camas daquele lugar. Afetada, no entanto. Por que ela mede as palavras desse jeito?
Ele agarrou-se àquela voz um tanto fina e àqueles modos afetados como a uma jangada em águas profundas e nunca percebeu, nunca percebeu que estava se afogando. Ela iria voltar para Nio Esseia no trem após o jantar, tinha vindo apenas passar o dia, e ele jamais a veria de novo.
Oiie estava resfriado, Sewa estava ocupada com as crianças.
– Shevek, você poderia acompanhar Vea até a estação?
– Santo Deus, Demaere! Não obrigue o pobre homem a me proteger! Você não acha que há lobos no caminho, não é? Ou que algum bando selvagem de mingrads ataque a cidade e me rapte para o harém deles? Serei encontrada na porta do chefe da estação amanhã de manhã, com uma lágrima congelada no meu olho e as mãozinhas duras apertando um ramalhete de flores murchas? Oh, eu até que gosto da ideia! – A risada de Vea cobriu aquelas frases matraqueadas e tilintantes como uma onda, uma onda sombria, agradável e potente que lavou tudo, deixando a areia vazia. Ela não riu consigo mesma, mas de si mesma, a risada sombria do corpo, que apaga as palavras.
Shevek vestiu o casaco no corredor e a esperou na porta.
Caminharam em silêncio por meio quarteirão. A neve se esmigalhava e rangia sob seus pés.
– Você é educado demais para um...
– Para quê?
– Para um anarquista – ela disse, em sua voz fina e afetadamente arrastada (era a mesma entonação usada por Pae e por Oiie, quando ele estava na universidade). – Estou decepcionada. Achei que você fosse ser perigoso e esquisito.
– E sou.
Vea o olhou de soslaio. Um xale escarlate cobria-lhe a cabeça; os olhos estavam muito negros e vivos em contraste com aquela cor vívida e a brancura da neve à sua volta.
– Mas aí está você, me acompanhando mansamente até a estação, dr. Shevek.
– Shevek – ele disse brandamente. – Sem “doutor”.
– Esse é seu nome completo... nome e sobrenome?
Ele concordou com a cabeça, sorrindo. Sentia-se bem e vigoroso, satisfeito com o ar límpido, com o calor do casaco bem-feito que usava, com a beleza da mulher a seu lado. Nada o preocupava e nenhum pensamento lhe pesava naquele dia.
– É verdade que o nome de vocês é escolhido pelo computador?
– Sim.
– Que medonho, ter o nome escolhido por um computador!
– Por que medonho?
– É tão mecânico, tão impessoal.
– Mas o que é mais pessoal do que um nome que nenhuma outra pessoa viva tem?
– Ninguém mais? Você é o único Shevek?
– Enquanto eu estiver vivo. Houve outros, antes de mim.
– Quer dizer, parentes?
– Não levamos parentes muito em conta; somos todos parentes, entende? Não sei quem eram os meus, a não ser uma mulher, nos primeiros anos da Colonização. Ela projetou um tipo de suporte que usam em máquinas pesadas; esse suporte ainda é chamado de “shevek”. – Ele sorriu de novo, um sorriso mais aberto. – Eis aí uma boa imortalidade!
Vea balançou a cabeça.
– Santo Deus! Como vocês distinguem homens de mulheres?
– Bem, descobrimos alguns métodos...
Após um instante, Vea soltou sua risada agradável e intensa. Enxugou os olhos molhados pelo ar frio.
– É, talvez vocês sejam esquisitos mesmo!... Então, todos eles receberam nomes inventados e aprenderam uma língua inventada... tudo novo?
– Os Colonos de Anarres? Sim. Eram pessoas românticas, suponho.
– E vocês não são?
– Não. Somos muito pragmáticos.
– É possível ser as duas coisas – ela disse.
Ele não esperava que ela tivesse qualquer sutileza mental.
– Sim, isso é verdade – ele disse.
– O que é mais romântico do que você vir aqui para Urras, sozinho, sem um tostão no bolso, para defender o seu povo?
– E para ser mimado com luxos enquanto estou aqui.
– Luxos? Em quartos na universidade? Santo Deus! Meu pobre querido! Não o levaram a nenhum lugar decente?
– Muitos lugares, mas todos iguais. Gostaria de conhecer melhor Nio Esseia. Só conheci o exterior da cidade, o embrulho do pacote. – Usou a frase porque ficara fascinado desde o início pelo hábito urrasti de embrulhar tudo em papel limpo e caprichado, ou plástico, ou papelão. Roupas lavadas, livros, verduras e legumes, roupas, remédios, tudo vinha dentro de camadas e camadas de embrulhos. Até pacotes de papel vinham embrulhados em várias camadas de papel. Nada podia tocar em mais nada. Começara a sentir que ele também tinha sido empacotado.
– Eu sei. Eles o fizeram ir ao Museu Histórico, visitar o Monumento Dobunnae e ouvir um discurso no Senado! – Ele riu, pois aquele tinha sido exatamente o itinerário de um dia no verão. – Eu sei, eles são tão previsíveis com estrangeiros. Vou providenciar para que você conheça a verdadeira Nio!
– Eu iria gostar disso.
– Conheço todo tipo de gente maravilhosa. Eu coleciono gente. Aqui você está preso em meio a todos esses professores e políticos enfadonhos... – Ela continuou a matraquear. Ele apreciava a conversa inconsequente de Vea do mesmo modo que apreciava o brilho do sol e a neve.
Chegaram à pequena estação de Amoeno. Ela já tinha o bilhete de volta; o trem chegaria a qualquer momento.
– Não precisa esperar, você vai congelar.
Ele não respondeu, mas apenas ficou ali em pé, corpulento no casaco de lã, olhando-a com amabilidade.
Ela baixou os olhos para a punho do próprio casaco e removeu um pontinho de neve do bordado.
– Você tem esposa, Shevek?
– Não.
– Nenhuma família?
– Ah... sim. Uma parceira; nossos filhos. Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Uma “esposa”, entende, eu penso como algo que só existe em Urras.
– O que é uma parceira? – ela ergueu os olhos de relance, maliciosamente, para o rosto dele.
– Acho que é o que vocês chamariam de esposa ou marido.
– Por que ela não veio com você?
– Ela não quis; e nosso filho mais novo só tem 1 ano... não, 2 agora. E também... – Ele hesitou.
– Por que ela não quis vir?
– Bem, lá ela tem um trabalho a fazer, aqui não. Se eu soubesse que haveria tanta coisa aqui de que ela iria gostar, eu a teria chamado para vir. Mas não chamei. Havia a questão da segurança, entende?
– Segurança aqui em Urras?
Ele hesitou outra vez. Por fim, disse:
– E também quando eu voltar para casa.
– O que vai acontecer com você? – perguntou Vea, com os olhos arregalados. O trem freava na colina próxima à cidade.
– Oh, provavelmente nada. Mas alguns me consideram um traidor. Porque tento fazer amizade com Urras, entende? Talvez eles criem problema quando eu voltar. Não quero isso para ela e as crianças. Tivemos um pouco disso antes de eu sair de lá. Chega.
– Quer dizer que você estará correndo perigo real? – Ele inclinou-se para ouvi-la, pois o trem entrava na estação, freando com o barulho de rodas e vagões.
– Não sei – ele disse sorrindo. – Sabia que nossos trens são bem parecidos com esse? Um bom desenho não precisa mudar. – Foi com ela até o vagão da primeira classe. Como ela não abriu a porta, ele abriu. Enfiou a cabeça no vagão depois que ela entrou e deu uma olhada no compartimento. – Mas por dentro não são parecidos! Tudo isso aqui é privado... só para você?
– Oh, sim. Detesto a segunda classe. Homens mascando goma de maera e cuspindo. Eles mascam maera em Anarres? Não, claro que não. Oh, há tanta coisa que eu adoraria saber sobre você e sua terra!
– Eu adoro falar da minha terra, mas ninguém pergunta.
– Então, vamos nos encontrar de novo e conversar a respeito! Quando você voltar para Nio, ligue para mim. Promete?
– Prometo – ele respondeu, afável.
– Ótimo! Sei que você não quebra promessas. Ainda não sei nada a seu respeito, exceto isso. Posso ver isso. Até logo, Shevek. – Ela colocou a mão enluvada sobre a dele por um momento, enquanto ele segurava a porta. O trem deu seu apito de duas notas; ele fechou a porta e viu o trem partir, o rosto de Vea uma imagem trêmula, branca e escarlate na janela.
Caminhou de volta à casa dos Oiies num estado de espírito muito animado e brincou de batalha de bolas de neve com Ini até escurecer.
REVOLUÇÃO EM BENBILI! DITADOR FOGE!
LÍDERES REBELDES TOMAM CAPITAL!
SESSÃO EMERGÊNCIA NO CGM
POSSIBILIDADE A-IO POSSA INTERVIR
O jornal alpiste alardeou a notícia em letras garrafais. Ortografia e gramática ficaram de lado; o texto parecia Efor falando: “Ontem noite rebeldes tomam todo oeste Meskti e batendo duro no exército...” Era o modo verbal dos niotas, passado e futuro comprimiam-se num tempo presente instável e altamente carregado.
Shevek leu os jornais e consultou uma descrição de Benbili na Enciclopédia do CGM. A nação era uma forma de democracia parlamentarista, na verdade uma ditadura militar governada por generais. Era um país grande no hemisfério ocidental, com montanhas e savanas áridas, subpovoado, pobre. “Eu devia ter ido para Benbili”, pensou Shevek, pois essa ideia o atraía; imaginou planícies pálidas, o vento soprando. A notícia o deixara estranhamente perturbado. Escutava os boletins no rádio, que ele raramente ligava após descobrir que sua função básica era anunciar coisas à venda. As notícias, assim como as do telefax oficial nos lugares públicos, eram curtas e secas; um estranho contraste com os jornais populares, que gritavam Revolução! em todas as páginas.
O general Havevert, o presidente, fugiu ileso em seu famoso avião blindado, mas alguns generais menos importantes foram capturados e emasculados, um castigo que, tradicionalmente, os benbili preferiam à execução. O exército bateu em retirada, incendiando no caminho campos e cidades de seu próprio povo. Os partidários da guerrilha rechaçavam o exército. Os revolucionários em Meskti, a capital, abriram as prisões, anistiando todos os presos. Ao ler isto, o coração de Shevek disparou. Havia esperança, ainda havia esperança... Acompanhou as notícias da revolução distante com intensidade crescente. No quarto dia, ao assistir a uma transmissão no telefax de um debate no Conselho dos Governos Mundiais, viu o embaixador iota no CGM anunciar que A-Io, em apoio ao governo democrático de Benbili, estava enviando reforços ao general presidente Havevert.
Os revolucionários de Benbili, em sua maioria, nem sequer estavam armados. As tropas iotas chegariam com fuzis, carros blindados, aviões, bombas. Shevek leu no jornal a descrição dos equipamentos e ficou enojado.
Sentiu nojo e fúria, e não havia ninguém com quem conversar. Pae estava fora de cogitação. Atro era um militarista fervoroso. Oiie era um homem ético, mas suas inseguranças pessoais e suas ansiedades como proprietário faziam-no agarrar-se a ideias rígidas de lei e ordem. Só conseguia lidar com sua simpatia por Shevek porque se recusava a admitir que Shevek era anarquista. A sociedade odoniana chamava a si mesma de anarquista, dizia ele, mas era, de fato, composta de meros populistas primitivos cuja ordem social funcionava sem um governo aparente porque a população era muito reduzida e porque não havia países vizinhos. Se a sua propriedade fosse ameaçada por um rival agressivo, teriam de acordar para a realidade ou seriam aniquilados. Os rebeldes benbilis estavam acordando para a realidade agora: estavam descobrindo que não adianta ter liberdade se não se tem armas para defendê-la. Ele explicou isso a Shevek na única discussão que tiveram sobre o assunto. Pouco importava quem governava ou pensava que governava os benbilis: a política da realidade afetava a disputa pelo poder entre A-Io e Thu.
– Política da realidade – Shevek repetiu. Olhou para Oiie e disse: – É uma frase curiosa dita por um físico.
– Em absoluto. Tanto o político quanto o físico lidam com as coisas como elas são, com forças reais, as leis básicas do mundo.
– Você está comparando suas “leis” mesquinhas e desprezíveis que protegem a riqueza e suas “forças” de armas e bombas com a lei da entropia e a força da gravidade? Eu esperava mais de sua inteligência, Demaere!
Oiie recuou diante daquela trovoada de desprezo. Não disse mais nada, e Shevek não disse mais nada, mas Oiie nunca se esqueceu do comentário. Ficou gravado em sua mente desde então como o momento mais vergonhoso de sua vida. Pois se Shevek, o utopista iludido e simplório, o calara com tanta facilidade, isso era vergonhoso; mas se Shevek, o físico e o homem que ele apreciava e admirava tanto a ponto de ansiar por seu respeito, como se, de algum modo, fosse um grau mais refinado de respeito do que qualquer outro então disponível – se esse Shevek o desprezava, então a vergonha era intolerável e ele deveria ocultá-la, trancá-la pelo resto da vida no cômodo mais escuro de sua alma.
O assunto da revolução benbili aguçara alguns problemas para Shevek também: em particular, o problema de seu próprio silêncio.
Era difícil para ele desconfiar das pessoas com quem convivia. Tinha sido criado numa cultura que confiava deliberada e constantemente na solidariedade humana e ajuda mútua. Por mais alienado que fosse, em certos aspectos, daquela cultura, e por mais alienígena que fosse nesta, ainda assim o hábito de uma vida inteira permanecia: contava com a ajuda das pessoas. Confiava nelas.
Mas os avisos de Chifoisilik, que ele tentara ignorar, não paravam de voltar à sua lembrança. Suas próprias percepções e instintos os reforçavam. Gostasse ou não, precisava aprender a desconfiar. Precisava se calar; precisava manter sua propriedade; precisava manter seu poder de barganha.
Falou pouco naqueles dias e escreveu bem menos. Sua mesa era um amontoado de papéis insignificantes; trazia as poucas anotações de trabalho junto ao corpo, num dos inúmeros bolsos urrastis. Nunca saía da frente de seu computador de mesa sem apagar os dados.
Sabia que estava próximo de concluir a Teoria Temporal que os iotas tanto queriam para seus voos espaciais e seu prestígio. Sabia também que ainda não a concluíra e talvez jamais o fizesse. Jamais admitira nenhum dos dois fatos claramente a ninguém.
Antes de sair de Anarres, pensava que a coisa estava ao alcance da mão. Tinha as equações. Sabul sabia que ele as tinha e lhe oferecera reconciliação e reconhecimento, em troca da oportunidade de publicá-las e conquistar a glória. Ele recusara a oferta de Sabul, mas não fora um gesto de grandeza moral. O gesto moral, afinal, teria sido entregá-las à sua própria imprensa no Sindicato da Iniciativa, e ele tampouco fizera isso. Não tinha certeza se estava pronto para publicar as equações. Havia algo que não estava bem certo, algo que precisava de refinamento. Como estivera trabalhando dez anos na teoria, não custava nada demorar mais um pouco, para lhe dar mais um polimento e deixá-la perfeitamente lisa.
A coisinha que não estava bem certa parecia cada vez mais errada. Uma pequena falha no raciocínio. Uma grande falha. Uma rachadura por todo o alicerce... Na noite anterior à sua partida de Anarres, queimara todos os papéis que tinha sobre a Teoria Geral. Chegara a Urras sem nada. Por meio ano estivera, nos termos deles, blefando com os urrastis.
Ou estaria blefando consigo mesmo?
Era bem possível que uma teoria geral da temporalidade fosse um objetivo ilusório. Era também possível que, embora a Sequência e a Simultaneidade pudessem um dia ser unificadas numa teoria geral, ele não fosse o homem indicado para realizar a tarefa. Há dez anos vinha tentando, sem êxito. Matemáticos e físicos, atletas do intelecto, fazem seu trabalho ainda jovens. Era mais que possível – era provável – que ele estivesse esgotado, acabado.
Estava perfeitamente ciente de que tivera o mesmo desânimo e a mesma sensação de fracasso nos períodos que antecederam os momentos de maior criatividade. Descobriu-se tentando animar-se com esse fato e ficou furioso com a própria ingenuidade. Interpretar ordem temporal como ordem casual era uma coisa muito estúpida da parte de um cronosofista. Será que já estava senil? Era melhor simplesmente trabalhar na tarefa pequena, mas prática, de refinar o conceito de intervalo. Poderia ser útil a outra pessoa.
Mas mesmo nisso, mesmo conversando com outros físicos a respeito, sentia que estava escondendo algo. E eles sabiam que ele estava escondendo.
Estava cansado de esconder, cansado de não conversar, não conversar sobre a revolução, não conversar sobre física, não conversar sobre nada.
Atravessou o campus a caminho de uma palestra. Os pássaros cantavam nas árvores de folhagem nova. Não os ouvira cantar durante todo o inverno, mas agora ali estavam eles, vertendo as doces melodias. Piu-Piu, cantavam, piu-piu, esta é a minha propriedade, piu-piu, este é o meu território, piu-piu, ele me pertence, piu-piu.
Shevek ficou imóvel por um minuto debaixo das árvores, ouvindo.
Então saiu da alameda, atravessou o campus numa direção diferente, rumo à estação, e pegou um trem matutino para Nio Esseia. Deveria haver uma porta aberta em algum lugar naquele maldito planeta!
Pensou, enquanto se sentava no trem, em tentar sair de A-Io: em ir para Benbili, talvez. Mas não levou a ideia a sério. Teria de ir de navio ou avião, seria localizado e impedido. O único lugar onde poderia ficar longe da vista de seus anfitriões benevolentes e protetores era em sua própria grande cidade, debaixo de seus narizes.
Não era uma fuga. Mesmo se saísse do país, ainda estaria preso, preso em Urras. Não se podia chamar a isso de fuga, seja qual nome lhe deem os hierarquistas, com suas místicas fronteiras nacionais. Mas de repente sentiu-se animado, como não se sentia há dias, quando imaginou que seus anfitriões benevolentes e protetores poderiam pensar, por um momento, que ele tinha fugido.
Foi o primeiro dia realmente quente da primavera. Os campos estavam verdes e reluziam com água. Nos pastos, cada rês vinha acompanhada de seu filhote. Os carneirinhos eram particularmente graciosos, saltitando como bolas brancas elásticas, os rabinhos girando e girando. Num cercado, sozinho, o macho reprodutor do rebanho, carneiro, touro ou garanhão, de pescoço grosso, parecia potente como uma nuvem de trovoada, carregada de gerações. Gaivotas deslizavam sobre lagos transbordantes, branco sobre azul, e nuvens brancas iluminavam o pálido céu azul. Os galhos das árvores frutíferas inclinavam-se, cheios de vermelho, e alguns botões desabrochavam, rosados e brancos. Observando da janela do trem, Shevek percebeu que seu estado de espírito rebelde e inquieto estava pronto a desafiar até a beleza do dia. Era uma beleza injusta. O que os urrastis tinham feito para merecê-la? Por que lhes era dada com tanta opulência, tanta benevolência, e com tão pouca, muito pouca, para o seu próprio povo?
Estou pensando como um urrasti, disse a si mesmo. Como um maldito proprietário. Como se merecimento significasse alguma coisa. Como se alguém pudesse conquistar a beleza, ou a vida! Tentou não pensar em absolutamente nada, em deixar-se levar adiante, observando a luz do sol no céu tranquilo e as ovelhinhas saltitando nos campos da primavera.
Nio Esseia, uma cidade de 5 milhões de almas, erguia suas torres delicadas e reluzentes no outro lado dos pântanos do estuário, como se fossem feitas de névoa e luz solar. Quando o trem entrou oscilando suavemente num longo viaduto, a cidade ficou mais alta, mais brilhante, mais sólida, até de repente envolver o trem na escuridão tonitruante de uma aproximação subterrânea, vinte trilhos juntos, e depois soltá-lo, e aos seus passageiros, nos espaços enormes e brilhantes da Estação Central, sob a cúpula central de marfim e azul-celeste, considerada a maior cúpula já erguida em qualquer planeta pela mão do homem.
Shevek vagou pela estação, atravessando quilômetros de mármore polido sob aquela imensa abóboda etérea, e por fim chegou a uma longa série de portas através das quais multidões iam e vinham constantemente, todas apressadas, todas separadas. Todas lhe pareceram ansiosas. Tinha visto com frequência essa ansiedade nos rostos dos urrastis, e isso o intrigava. Seria porque, por mais dinheiro que tivessem, sempre se preocupavam em ganhar mais, a fim de não morrerem pobres? Seria culpa porque, por menos dinheiro que tivessem, sempre havia alguém mais pobre? Qualquer que fosse a causa, aquela ansiedade conferia aos rostos certa uniformidade, e ele se sentia muito só entre elas. Ao escapar de seus guias e guardas, ele não tinha considerado como seria estar sozinho numa sociedade onde os homens não confiavam uns nos outros, onde o pressuposto moral básico não era ajuda mútua, mas agressão mútua. Ficou um pouco assustado.
Pensara vagamente em perambular pela cidade e começar a conversar com as pessoas, com os membros da classe dos não proprietários, se tal coisa ainda existisse, ou com as classes trabalhadoras, como eram chamadas. Mas todas aquelas pessoas passavam apressadas, fazendo negócios, não querendo nenhuma conversa ociosa, nenhuma perda de seu precioso tempo. A pressa delas o contagiou. Tinha de ir a algum lugar, pensou, quando saiu para a luz do sol e para a imponência abarrotada na Rua Moie. Onde? A Biblioteca Nacional? O Zoológico? Mas ele não queria fazer turismo.
Indeciso, parou em frente a uma loja perto da estação que vendia jornais e bugigangas. A manchete do jornal dizia: THU ENVIA TROPAS PARA AJUDAR REBELDES BENBILIS, mas Shevek não reagiu a isso. Olhou as fotografias coloridas no mostruário, em vez do jornal. Ocorreu-lhe que ele não tinha nenhuma recordação de Urras. Quando se viaja, deve-se comprar um suvenir. Gostou das fotografias, cenas de A-Io: as montanhas que escalara, os arranha-céus de Nio, a capela da universidade (quase a vista de sua janela), uma garota do campo num bonito vestido provinciano, as torres de Rodarred e a que primeiro lhe chamou a atenção, um carneirinho numa relva florida, saltitando e, aparentemente, rindo. O pequeno Pilun ia gostar daquele carneirinho. Selecionou um cartão de cada e os levou ao balcão.
– E cinco dá cinquenta, e mais o carneiro, sessenta; e um mapa, aqui está, senhor, um e quarenta. Finalmente temos um belo dia de primavera, não é, senhor? Tem trocado, senhor? – Shevek apresentara uma nota do banco de vinte unidades. Apalpou os bolsos à procura do troco que recebera quando comprou o bilhete do trem e, após um pequeno estudo das denominações das cédulas e moedas, juntou um e quarenta. – Está certo, senhor. Obrigado e tenha um bom dia!
Será que o dinheiro também comprava a gentileza, além dos postais e do mapa? O atendente da loja teria sido tão educado se Shevek tivesse entrado como um anarresti entra num depósito de mercadorias, pegado o que quisesse, cumprimentado o registrador com um aceno de cabeça e saído?
Não adianta, não adianta pensar assim. Quando na Terra da Propriedade, pense como um proprietário. Vista-se como um, alimente-se como um, aja como um, seja um proprietário.
Não havia nenhum parque no centro de Nio, a terra era muito valiosa para ser desperdiçada com amenidades. Continuou a adentrar cada vez mais fundo naquelas mesmas ruas grandiosas e cintilantes aonde tinha sido levado tantas vezes. Chegou à Rua Saemtenevia a atravessou-a apressado, pois não queria a repetição do pesadelo diurno. Estava agora no distrito comercial. Bancos, edifícios comerciais, edifícios governamentais. Nio Esseia seria toda assim? Imensas caixas brilhantes de pedra e vidro, enormes embrulhos decorados, vazios, vazios.
Passando por uma vitrine no térreo onde se lia Galeria de Arte, ele entrou, imaginando fugir da claustrofobia moral das ruas e encontrar de novo a beleza de Urras num museu. Mas todos os quadros do museu tinham etiquetas com preços em suas molduras. Observou um nu pintado com talento. Na etiqueta lia-se 4.000 UMI.
– Esse é um Fei Feite – disse um homem moreno que apareceu silenciosamente ao seu lado. – Tínhamos cinco na semana passada. Não vai demorar muito para se valorizar no mercado da arte. Um Feite é um investimento seguro, senhor.
– Quatro mil unidades é quanto custa manter duas famílias vivas por um ano nesta cidade – disse Shevek.
O homem o olhou de cima a baixo e disse, com a voz arrastada: – Sim, bem, o senhor entende, acontece que isso é uma obra de arte.
– Arte? O homem faz arte porque ele tem de fazer. Por que esse quadro foi feito?
– O senhor é artista, suponho – disse o homem, agora com indisfarçada insolência.
– Não, sou alguém que sabe quando está vendo merda!
O marchand recuou. Quando estava fora do alcance de Shevek, começou a falar algo sobre a polícia. Shevek fez uma careta e saiu da loja a passos largos. No meio do quarteirão, parou. Não podia continuar por aquele caminho.
Mas aonde poderia ir?
Até alguém... até alguém, outra pessoa. Um ser humano. Alguém que lhe desse ajuda, não vendesse. Quem? Onde?
Pensou nos filhos de Oiie, os garotinhos que gostavam dele e, por algum tempo, não conseguiu pensar em mais ninguém. Então, surgiu uma imagem em sua mente, distante, pequena e clara: a irmã de Oiie. Qual era o nome dela? Prometa que vai me ligar, ela tinha dito, e desde então lhe escrevera duas vezes convidando-o para jantares, numa caligrafia arrojada e infantil, em papel grosso e perfumado. Ele os ignorara, dentre todos os convites de estranhos. Agora se lembrou deles.
Ao mesmo tempo, lembrou-se da outra mensagem, daquela que tinha aparecido inexplicavelmente no bolso de seu casaco: Junte-se a nós, seus irmãos. Mas não conseguia achar nenhum irmão em Urras.
Foi à loja mais próxima. Era uma doceria cheia de arabescos dourados e gesso cor-de-rosa, com fileiras de mostruários de vidro repletos de doces e confeitos, rosa, marrom, creme, dourado. Perguntou à mulher atrás dos mostruários se ela poderia ajudá-lo a encontrar um número de telefone. Estava agora mais calmo, depois do acesso de mau humor na galeria de arte, e tão humildemente ignorante e estrangeiro que conquistou a simpatia da mulher. Ela não apenas o ajudou a procurar o nome na pesada lista telefônica, como fez a ligação para ele no telefone da loja.
– Alô?
– Shevek – ele disse. Depois parou. Para ele, o telefone era um veículo de necessidades urgentes, notificações de mortes, nascimentos e terremotos. Não fazia ideia do que dizer.
– Quem? Shevek? É mesmo? Que delicadeza a sua de me ligar! Não me importo em absoluto de acordar, se for você.
– Você estava dormindo?
– Sono profundo, e ainda estou na minha cama adorável e quente. E você, onde é que está?
– Na Rua Sekae, eu acho.
– Fazendo o quê? Vamos sair. Que horas são? Santo Deus, quase meio-dia. Já sei, encontro você no meio do caminho. Perto do lago dos barcos nos jardins do Antigo Palácio. Você consegue encontrá-lo? Escute, você tem que ficar, vou dar uma festa absolutamente paradisíaca hoje à noite. – Ela continuou matraqueando por um momento, e ele concordou com tudo o que ela disse. Quando passou pelo balcão para sair, a atendente da loja sorriu para ele.
– Melhor levar uma caixa de doces para ela, não acha, senhor?
Ele parou.
– Será que devo?
– Mal nunca faz, senhor.
Havia algo de impudente e amável em sua voz. O ar da loja era doce e quente, como se todos os perfumes da primavera estivessem concentrados ali. Shevek aguardou de pé em meio aos mostruários de lindos pequenos luxos, alto, pesado, sonhador, como os pesados animais em seus cercados, os carneiros e touros entorpecidos pelo calor ardente da primavera.
– Vou preparar a coisa certa para o senhor – disse a mulher, enchendo uma caixinha de metal, finamente ornada, com folhinhas de chocolate e rosinhas de algodão-doce. Ela embrulhou a lata em papel de seda, pôs o embrulho numa caixa de papelão prateada, embrulhou a caixa num papel grosso rosado e amarrou-a com uma fita de veludo verde. Em todos os seus hábeis movimentos, podia-se sentir uma cumplicidade bem-humorada e solidária, e quando entregou o pacote pronto a Shevek, e ele o pegou murmurando um agradecimento e virando-se para sair, ela o lembrou, sem nenhum rigor na voz:
– São dez e sessenta, senhor. – Ela poderia até tê-lo deixado ir, com pena dele, como as mulheres sentem pena dos fortes; mas ele voltou, obediente, e entregou o dinheiro.
Chegou de metrô aos jardins do Antigo Palácio e foi até o lago dos barcos, onde crianças bem-vestidas velejavam navios de brinquedo, maravilhosos pequenos engenhos com cordames de seda e ornamentos de latão. Viu Vea do outro lado do círculo de água largo e brilhante e deu a volta no lago até ela, apreciando a luz do sol, o vento da primavera e as árvores escuras do parque mostrando suas primeiras e pálidas folhas verdes.
Almoçaram num restaurante do parque, num terraço coberto por uma cúpula de vidro muito alta. Ali, à luz do sol sob a cúpula, as árvores já estavam cheias de folhas, chorões pendentes sobre um lago onde aves brancas e gordas deslizavam, observando com gula indolente as pessoas que comiam, aguardando migalhas. Vea não se incubiu de fazer o pedido, deixando claro que Shevek estava encarregado dela, mas garçons habilidosos o aconselharam com tanta polidez que ele pensou ter conduzido tudo sozinho; e, felizmente, tinha dinheiro de sobra no bolso. A comida era extraordinária. Nunca tinha experimentado tantas sutilezas de sabor. Acostumado a duas refeições por dia, em geral pulava o almoço que os urrastis comiam, mas nesse dia comeu tudo, enquanto Vea delicadamente debicava e mordiscava. Por fim, ele teve de parar, e ela riu do olhar triste dele.
– Comi demais.
– Uma pequena caminhada deve ajudar.
Foi uma caminhada bem curta: um passeio vagaroso de dez minutos pela grama, e então Vea deixou-se cair graciosamente num talude à sombra de altos arbustos, todos radiantes de flores douradas. Ele sentou-se ao seu lado. Uma frase que Takver usava veio-lhe à mente quando olhou os pés delgados de Vea, enfeitados com sapatinhos brancos de saltos muito altos. “Uma exploradora do corpo”, Takver chamava as mulheres que usavam a sexualidade como arma na luta de poder com os homens. A julgar por sua aparência, Vea era a maior de todas as exploradoras de corpo. Sapatos, roupas, cosméticos, joias, gestos, tudo nela reafirmava a provocação. Possuía um corpo tão elaborado e ostensivamente feminino que mal parecia um ser humano. Encarnava toda a sexualidade que os iotas reprimiam e transferiam para seus sonhos, seus romances e poemas, seus intermináveis quadros de nus femininos, sua música, sua arquitetura cheia de curvas e cúpulas, seus doces, seus banheiros, seus colchões. Ela era a mulher contida na mesa.
A cabeça, totalmente raspada, tinha sido pulverizada com um talco composto de partículas de pó de mica, de modo que uma leve cintilação obscurecia a nudez dos contornos. Usava um xale ou estola transparente, sob a qual as formas e a textura de seus braços nus se mostravam suavizadas e protegidas. Os seios estavam cobertos: as mulheres iotas não saíam com os seios à mostra, reservando a nudez para seus donos. Os pulsos estavam carregados de pulseiras de ouro, e na cavidade da garganta uma única joia brilhava azul contra a pele macia.
– Como isso fica aí? – ele perguntou.
– O quê? – Como ela própria não conseguia ver a joia, podia fingir que não a percebia, obrigando-o a apontar, talvez erguer a mão por sobre os seios para tocar a joia. Shevek sorriu e tocou-a.
– Está colada?
– Ah, isso. Eu tenho um pequeno ímã implantado aí, e a joia tem um pedacinho de metal atrás, ou é o contrário? De todo modo, ficamos sempre juntas.
– Você tem um ímã sob a pele? – Shevek perguntou, com aversão genuína.
Vea sorriu e tirou a safira para que ele visse que não havia nada além de uma minúscula cicatriz prateada na cavidade.
– Você me desaprova totalmente mesmo... É animador. Sinto que, não importa o que eu diga ou faça, não posso me rebaixar mais em sua opinião, pois já estou no fundo do poço!
– Não é assim – ele protestou. Sabia que ela estava fazendo um jogo, mas ele conhecia poucas regras desse jogo.
– Não, não; reconheço o horror moral quando o vejo. Assim. – Ela fez uma carranca sinistra; os dois riram. – Sou assim tão diferente das mulheres anarrestis?
– Ah, sim, muito.
– São todas terrivelmente fortes, com músculos? Elas usam botas e têm pés grandes e chatos, usam roupas sérias e se depilam uma vez por mês?
– Elas nunca se depilam.
– Nunca? Em nenhuma parte? Ah, meu Deus! Vamos falar de outra coisa.
– De você. – Ele se recostou no talude gramado, perto o bastante de Vea para ser envolvido pelos perfumes naturais e artificiais de seu corpo. – Queria saber se a mulher urrasti se contenta em ser sempre inferior.
– Inferior a quem?
– Aos homens.
– Ah... isso! O que o faz pensar que sou inferior?
– Parece que tudo o que a sua sociedade faz é feito para os homens. Indústria, artes, administração, governo, decisões. E por toda a vida vocês carregam o nome do pai e do marido. Os homens vão para a escola e vocês não; todos os professores, juízes, policiais, governantes são homens, não são? Por que vocês não fazem o que querem?
– Mas nós fazemos. As mulheres fazem exatamente o que querem. E não precisam sujar as mãos, nem usar farda, nem ficar gritando para lá e para cá nas diretorias para fazerem o que querem.
– Mas o que é que vocês fazem?
– Ora, nós conduzimos os homens, é claro! E, sabe, é perfeitamente seguro dizer isso a eles, porque eles nunca acreditam. Eles dizem “Ha, ha, mulherzinhas engraçadas!”, passam a mão na sua cabeça e saem pomposos, com suas medalhas tilintando, perfeitamente satisfeitos.
– E você também está satisfeita?
– Decerto que sim.
– Não acredito.
– Porque isso não se encaixa nos seus princípios. Os homens sempre têm teorias, e as coisas sempre têm de se encaixar nelas.
– Não, não por causa de teorias, porque posso ver que você não está satisfeita. Que você é inquieta, insatisfeita, perigosa.
– Perigosa! – Vea deu uma risada radiante. – Que elogio absolutamente maravilhoso! Por que sou perigosa, Shevek?
– Ora, porque você sabe que, aos olhos dos homens, você é uma coisa, uma coisa possuída, comprada, vendida. Então você só pensa em enganar os donos, em se vingar...
Ela pôs a mãozinha deliberadamente na boca de Shevek.
– Quieto – ela disse. – Sei que você não tem a intenção de ser vulgar. Eu o perdoo. Mas já chega.
Ele fez uma carranca colérica diante da hipocrisia, e diante da percepção de que poderia tê-la magoado de fato. Ainda sentia o breve toque da mão dela em seus lábios.
– Desculpe! – ele disse.
– Não, não. Como pode entender, vindo da Lua? E você é só um homem, de qualquer maneira... Mas vou lhe dizer uma coisa. Se você pegasse uma de suas “irmãs” lá da Lua e lhe desse uma oportunidade de tirar as botas, tomar um banho de óleo e fazer uma depilação, pôr umas sandálias bem bonitas, uma joia na barriga e perfume, ela iria adorar! E você também! Ah, como você iria gostar! Mas vocês se recusam a fazer isso, coitadinhos, com suas teorias. Todos irmãos e irmãs e nenhuma diversão!
– Você tem razão – disse Shevek. – Nenhuma diversão. Nunca. O dia inteiro em Anarres nós cavamos chumbo nas entranhas das minas, e quando chega a noite, após a refeição de três grãos de holum cozidos numa colher de água salobra, recitamos em antifonia os Ensinamentos de Odo, até a hora de dormir. O que fazemos todos separadamente e usando botas.
Sua fluência em iota não era suficiente para lhe permitir o voo verbal que teria sido esse gracejo em sua própria língua, uma de suas súbitas fantasias que somente Takver e Sadik tinham ouvido o suficiente para se acostumarem; mas, apesar de imperfeito, o gracejo surtiu efeito em Vea. Soltou sua risada sombria, pesada e espontânea.
– Santo Deus, você é engraçado também! Existe algo que você não seja?
– Não sou vendedor – ele respondeu.
Ela o estudou, sorrindo. Havia algo profissional, de teatral em sua pose. As pessoas em geral não se olham atentamente quando estão tão próximas, a menos que sejam mães com filhos pequenos, ou médicos com pacientes, ou amantes.
Ele se levantou.
– Quero andar mais – disse.
Ela estendeu a mão para ele pegar e ajudá-la a se levantar. O gesto foi indolente e sedutor, mas ela disse com ternura incerta na voz:
– Você é mesmo como um irmão... Pegue a minha mão. Eu vou soltar depois!
Passearam pelos caminhos do grande jardim. Entraram no palácio, preservado como museu dos tempos antigos da realeza, pois Vea disse que adorava ver as joias expostas ali. Retratos de nobres e príncipes arrogantes os fitavam das paredes cobertas de brocados e das lareiras entalhadas. Os cômodos estavam repletos de prata, ouro, cristal, madeiras raras, tapeçarias e joias. Havia guardas a postos atrás de cordões de veludo. Os uniformes pretos e vermelhos dos guardas harmonizavam bem com aquela pompa, as tapeçarias bordadas a ouro, as colchas de plumas, mas seus rostos não combinavam com o ambiente; eram rostos entediados, cansados, cansados de ficarem em pé o dia inteiro no meio de estranhos, realizando uma tarefa inútil. Shevek e Vea foram até um mostruário de vidro onde jazia o manto da Rainha Teaea, feito com as peles bronzeadas de rebeldes esfolados vivos, que aquela mulher terrível e provocadora usara quando se dirigiu ao povo assolado pela peste e rezou a Deus para que acabasse com o flagelo, mil e quatrocentos anos antes.
– Para mim, isso tem a mesma aparência terrível do couro de cabra – disse Vea, examinando o farrapo desbotado pelo tempo no mostruário de vidro. Ergueu os olhos de soslaio para Shevek. – Tudo bem com você?
– Acho que eu gostaria de sair deste lugar.
Já do lado de fora, no jardim, o rosto de Shevek tornou-se menos lívido, mas ele olhou para as paredes do palácio com ódio. – Por que o seu povo se apega à sua vergonha? – ele perguntou.
– Mas isso tudo é história. Coisas assim não poderiam acontecer hoje em dia!
Ela o levou a uma matinê no teatro, uma comédia sobre jovens casados e suas sogras, cheia de piadas sobre cópula que nunca mencionavam a cópula. Shevek tentava rir quando Vea ria. Depois do teatro foram a um restaurante no centro da cidade, um lugar de incrível opulência. O jantar custou cem unidades. Shevek comeu muito pouco, pois já comera ao meio-dia, mas rendeu-se ao pedido de Vea e bebeu duas ou três taças de vinho, que era mais agradável do que esperara e pareceu não exercer nenhum efeito deletério em seu raciocínio. Ele não tinha dinheiro suficiente para pagar o jantar, mas Vea não se ofereceu para dividir a conta, apenas sugerindo que ele passasse um cheque, o que ele fez. Em seguida tomaram um táxi e foram para o apartamento de Vea; ela também deixou que ele pagasse o motorista. Será, ele se perguntou, que Vea era na verdade uma prostituta, aquela entidade misteriosa? Mas prostitutas, conforme Odo as descreveu, eram mulheres pobres, e Vea certamente não era pobre: “sua” festa, ela lhe disse, estava sendo preparada por “sua” cozinheira, “sua” criada e “seu” fornecedor. Além do mais, os homens da universidade falavam com desprezo de prostitutas como sendo criaturas sujas, enquanto Vea, apesar de suas incessantes provocações, demonstrava tal suscetibilidade em uma conversa franca sobre qualquer coisa sexual que Shevek media as palavras com ela como teria feito, em Anarres, com uma criança tímida de 10 anos. No final das contas, ele não sabia exatamente o que ela era.
Os aposentos de Vea eram grandes e luxuosos, com vistas cintilantes das luzes de Nio e inteiramente decorados em branco, até mesmo o tapete. Mas Shevek estava se tornando insensível ao luxo e, além disso, estava morrendo de sono. Os convidados só chegariam em uma hora. Enquanto Vea trocava de roupa, ele adormeceu numa enorme poltrona branca na sala. A criada fazendo um barulho qualquer sobre a mesa o despertou a tempo de ver Vea voltar, vestindo agora um formal traje noturno iota para mulheres, uma saia longa plissada a partir dos quadris, deixando todo o torso nu. No umbigo brilhava uma pequena joia, exatamente como as fotos que tinha visto com Tirin e Bedap, há um quarto de século, no Instituto Regional do Poente Norte, exatamente assim... Semiacordado e totalmente excitado, ele a fitou.
Ela retribuiu o olhar, sorrindo um pouco.
Ela se sentou num banquinho baixo e estofado perto dele, para que pudesse olhá-lo na altura do rosto. Arrumou a saia branca sobre os tornozelos e disse:
– Agora me conte o que realmente acontece entre homens e mulheres em Anarres.
Era inacreditável. A criada e o fornecedor estavam na sala; ela sabia que ele tinha uma parceira, e ele sabia que ela também; e nenhuma palavra sobre cópula tinha sido dita entre eles. No entanto, a roupa que ela estava usando, seus movimentos, seu tom de voz – o que era tudo aquilo senão o mais aberto convite?
– Entre um homem e uma mulher existe o que eles quiserem que exista entre eles – ele disse, um tanto ríspido. – Cada um deles, e ambos.
– Então é verdade, vocês realmente não têm moralidade? – ela perguntou, como se chocada, mas encantada.
– Não sei o que quer dizer. Magoar uma pessoa lá é o mesmo que magoar uma pessoa aqui.
– Quer dizer que vocês têm as mesmas velhas regras? Sabe, acredito que moralidade seja apenas mais uma superstição, como a religião. Tinha de ser descartada.
– Mas a minha sociedade – ele disse, em total perplexidade – é uma tentativa de atingir a moralidade. Descartar o que for moralista, sim, as regras, as leis, os castigos, para que os homens possam enxergar o bem e o mal e escolher um deles.
– Então vocês descartaram todas as imposições, todos os “faça isso”, “não faça aquilo”. Mas, sabe, acho que vocês, odonianos, não entenderam nada. Vocês descartaram os padres, os juízes, as leis do divórcio e tudo o mais, mas mantiveram o problema real por trás deles. Vocês só inseriram o problema em suas consciências. Mas ele ainda está lá. Vocês continuam os escravos de sempre! Não são livres de verdade.
– Como você sabe?
– Li um artigo sobre odonismo numa revista – ela disse. – E nós dois passamos o dia juntos. Não sei você, mas eu sei algumas coisas sobre você. Sei que você carrega uma... uma Rainha Teaea aí dentro, bem dentro dessa sua cabeça cabeluda. E ela manda em você tanto quanto a velha tirana mandava em seus servos. Ela diz “faça isso!” e você faz, “não faça isso”, e você não faz.
– E aqui é o lugar dela – ele disse, sorrindo. – Dentro da minha cabeça.
– Não. Melhor tê-la num palácio. Aí você poderia se rebelar contra ela. Você teria se rebelado! Seu tataravô se rebelou. Pelo menos ele foi para a Lua para tentar escapar. Mas levou a Rainha Teaea com ele, e você ainda está com ela!
– Pode ser. Mas ela aprendeu, em Anarres, que se ela me mandar machucar outra pessoa, eu machuco a mim mesmo.
– A mesma velha hipocrisia. A vida é uma luta, e o mais forte vence. Tudo o que a civilização faz é esconder o sangue e encobrir o ódio com palavras bonitas!
– A sua civilização, talvez. A nossa não esconde nada. Tudo é manifesto. Lá, a Rainha Teaea veste a própria pele. Seguimos uma lei, apenas uma: a lei da evolução humana.
– A lei da evolução é que o mais forte sobrevive!
– Sim, e os mais fortes, na existência de qualquer espécie social, são aqueles mais sociais. Em termos humanos, mais éticos. Entende, não temos presas ou inimigos em Anarres. Só temos uns aos outros. Não se conquista nenhuma força machucando alguém. Só fraqueza.
– Não me importo em machucar ou não machucar. Não me importo com outras pessoas, e ninguém mais se importa. Só fingem. Não quero fingir. Quero ser livre!
– Mas Vea – ele começou, com ternura, pois o apelo à liberdade o comoveu muito, mas a campainha tocou. Vea levantou-se, ajeitou a saia e avançou sorrindo para receber os convidados.
Durante a hora seguinte, trinta ou quarenta pessoas chegaram. A princípio Shevek sentiu-se irritado, insatisfeito e entediado. Era só mais uma festa em que todos ficavam de pé com um copo na mão, sorrindo e conversando alto. Mas logo se tornou mais divertida. As conversas e discussões continuaram, as pessoas sentaram-se para conversar, começou a parecer uma festa em seu planeta. Delicados salgadinhos e pedacinhos de carne e peixe foram servidos, as taças eram constantemente preenchidas pelo atencioso garçom. Shevek aceitou uma bebida. Vinha observando há meses a avidez dos urrastis por álcool, e nenhum deles parecera ter caído doente por causa disso. A coisa tinha gosto de remédio, mas alguém explicou que era sobretudo água carbonada, o que lhe agradou. Estava com sede, então bebeu tudo de uma vez.
Dois homens estavam determinados a conversar sobre física com ele. Um deles tinha boas maneiras, e Shevek conseguiu despistá-lo por um tempo, pois achava difícil discutir física com não físicos. O outro era arrogante, e não foi possível escapar dele. Mas a irritação, Shevek descobriu, tornava a conversa bem mais fácil. O homem sabia de tudo, aparentemente porque tinha muito dinheiro.
– A meu ver – ele declarou a Shevek –, sua Teoria da Simultaneidade simplesmente nega o fato mais óbvio sobre o tempo, o fato de que o tempo passa.
– Bem, na física tem-se cuidado com o que se chama de “fatos”. É diferente dos negócios – disse Shevek de modo brando e agradável, mas havia algo naquela brandura que fez Vea, que estava conversando com outro grupo próximo, virar-se e prestar atenção. – Nos termos estritos da Teoria da Simultaneidade, a sucessão não é considerada um fenômeno fisicamente objetivo, mas subjetivo.
– Agora pare de tentar assustar Dearri e diga o que isso significa em linguagem infantil – disse Vea. Sua perspicácia fez Shevek dar um meio sorriso.
– Bem, pensamos que o tempo “passa”, que flui por nós, mas e se formos nós que nos movemos para a frente, do passado para o futuro, sempre descobrindo o novo? Seria um pouco como ler um livro, entende? O livro está todo ali, todo de uma vez, entre as capas. Mas se você quer ler a história e entendê-la, deve começar na primeira página e avançar, sempre na ordem. Então o universo seria um grande livro, e nós, leitores muito pequenos.
– Mas o fato – disse Dearri – é que nós vivenciamos o universo como uma sucessão, um fluxo. Nesse caso, de que adianta essa teoria de que num plano mais alto o universo pode ser todo eternamente coexistente? Pode ser divertido para vocês, teóricos, mas não tem nenhuma aplicação prática, nenhuma relevância para a vida real. A menos que isso signifique que podemos construir uma máquina do tempo! – ele acrescentou, numa espécie de jovialidade severa e falsa.
– Mas nós não vivenciamos o universo apenas como uma sucessão – disse Shevek. – O senhor nunca sonha, sr. Dearri? – Sentiu orgulho de si mesmo por ter, pela primeira vez, se lembrado de chamar alguém se “senhor”.
– O que isso tem a ver com o assunto?
– Parece que é apenas na consciência que vivenciamos o tempo. Um bebê não tem noção de tempo; ele não consegue se distanciar do passado e compreender como ele se relaciona com o presente, ou planejar como o presente pode se relacionar com o futuro; ele não compreende a morte. A mente inconsciente do adulto ainda é assim. Num sonho não existe tempo, a sucessão é toda alterada, e causa e efeito se misturam. No mito e na lenda não existe tempo. A que passado se refere um conto quando diz “Era uma vez”? Assim, quando o místico reconecta razão e inconsciência, vê tudo se tornar um único ser e compreende o eterno retorno.
– Sim, os místicos – disse com avidez o homem mais tímido. – Tebores, no Oitavo Milênio. Ele escreveu: A mente inconsciente coexiste com o universo.
– Mas não somos bebês – interrompeu Dearri –, somos homens racionais. Sua Simultaneidade é algum tipo de regressão mística?
Houve uma pausa, quando Shevek se serviu de um salgadinho que ele não queria e o comeu. Já tinha perdido a calma uma vez nesse dia e feito papel de tolo. Uma vez bastava.
– Talvez você possa compreendê-la – disse – como um esforço para atingir um equilíbrio. A Sequência fornece uma bela explicação para nossa sensação de tempo linear, entende, e a evidência da evolução. Ela inclui a criação e a mortalidade. Mas para por aí. Lida com tudo o que muda, mas não consegue explicar por que as coisas também perduram. Fala somente da flecha do tempo... nunca do círculo do tempo.
– O círculo? – perguntou o inquiridor mais educado, com tão evidente anseio de aprender que Shevek esqueceu Dearri por completo e mergulhou no assunto com entusiasmo, gesticulando as mãos e os braços, como se tentasse mostrar ao ouvinte, materialmente, as flechas, os ciclos, as oscilações de que falava.
– O tempo avança em círculos, bem como em linha reta. Como o movimento de um planeta, entende? Um ciclo, uma órbita em torno do sol, dura um ano, não é? E duas órbitas, dois anos, e assim por diante. Pode-se contar as órbitas indefinidamente... um observador pode. De fato, é com esse sistema que contamos o tempo. Isso equivale ao indicador de tempo, ao relógio. Mas dentro do sistema, do ciclo, onde está o tempo? Onde está o começo ou o fim? Repetição infinita é um processo atemporal. Deve ser comparado, deve estar relacionado a algum outro processo cíclico ou não cíclico, para ser visto como temporal. Veja bem, isso é muito esquisito e interessante. Os átomos, você sabe, têm um movimento cíclico. Os compostos estáveis são feitos de elementos que têm um movimento regular e periódico em relação uns aos outros. Na verdade, são os minúsculos ciclos de tempo reversível do átomo que dão à matéria permanência suficiente para tornar possível a evolução. As pequenas atemporalidades somadas compõem o tempo. E depois, em grande escala, o cosmo. Bem, você sabe que achamos que o universo inteiro é um processo cíclico, uma oscilação entre expansão e contração, sem um antes ou um depois. Somente dentro de cada um dos grandes ciclos, onde vivemos, somente aí existe tempo linear, evolução, mudança. Portanto, o tempo tem dois aspectos. Existe a flecha, a correnteza do rio, sem a qual não há nenhuma mudança, nenhum progresso, nem direção, nem criação. E existe o círculo ou ciclo, sem o qual há o caos, há a sucessão de instantes sem sentido, um mundo sem relógios, sem estações, sem promessas.
– Não se pode fazer duas afirmações contraditórias sobre a mesma coisa – disse Dearri, com a calma do conhecimento superior. – Em outras palavras, um desses “aspectos” é real, ou outro é simples ilusão.
– Muitos físicos já disseram isso – Shevek reconheceu.
– Mas o que o senhor diz? – perguntou o que queria saber.
– Bem, acho que é uma saída fácil de uma dificuldade... Pode-se descartar o ser ou o vir a ser como uma ilusão? Vir a ser sem ser não faz sentido. Ser sem vir a ser é um grande tédio... Se a mente é capaz da percepção do tempo dessas duas formas, então uma verdadeira cronosofia deve fornecer um campo em que a relação dos dois aspectos ou processos do tempo poderia ser compreendida.
– Mas para que serve esse tipo de “compreensão” – perguntou Dearri –, se não resulta em aplicações práticas, tecnológicas? É só um jogo de palavras, não é?
– Você faz perguntas como um verdadeiro explorador – disse Shevek, e nenhuma alma ali sabia que ele insultara Dearri com a palavra mais desprezível em seu vocabulário; na verdade, Dearri até assentiu com a cabeça, aceitando o elogio com satisfação. Vea, entretanto, sentiu uma tensão e fez um aparte abrupto:
– Sabe, não entendo uma palavra do que você diz, mas me parece que se eu realmente entendi o que você disse sobre o livro... que tudo existe agora... então não seríamos capazes de prever o futuro? Se ele já está lá?
– Não, não – disse o homem mais tímido, sem nenhuma timidez. – Não está lá como um sofá ou uma casa. Tempo não é espaço. Não se pode andar nele! – Vea assentiu com um intenso movimento da cabeça, como se estivesse aliviada por ter sido colocada em seu devido lugar. Parecendo ganhar confiança por ter afastado a mulher dos domínios do pensamento superior, o homem tímido virou para Dearri e disse:
– Parece-me que a aplicação da Física Temporal está na ética. O senhor concordaria com isso, dr. Shevek?
– Ética? Bem, não sei. Meu trabalho predominante é a matemática, você sabe. Não se pode fazer equações do comportamento ético.
– Por que não? – disse Dearri.
Shevek o ignorou.
– Mas é verdade, a cronosofia realmente envolve a ética. Porque nossa sensação de tempo envolve numa capacidade de separar causa e efeito, meios e fins. De novo, o bebê ou animal não veem a diferença entre o que fazem agora e o que vai acontecer por causa disso. Não podem fazer uma roldana, ou uma promessa. Nós podemos. Vendo a diferença entre o agora e o não agora, conseguimos fazer a conexão. E é aí que entra a moralidade. Responsabilidade. Dizer que um bom fim será alcançado por um mau meio é como dizer que se eu puxar a corda dessa roldana, ela vai erguer um peso naquela outra. Quebrar uma promessa é negar a realidade do passado; portanto, é negar a esperança de um futuro real. Se o tempo e a razão são funções um do outro, se somos criaturas do tempo, é melhor sabermos disso e tirarmos o melhor proveito disso. Agir com responsabilidade.
– Mas olhe aqui – disse Dearri, com inefável satisfação por sua perspicácia –, você acabou de dizer que no seu sistema de Simultaneidade, não há passado e futuro, só uma espécie de eterno presente. Então como se pode ser responsável pelo livro que já está escrito? Tudo o que se pode fazer é ler o livro. Não sobra nenhuma escolha, nenhuma liberdade de ação.
– Esse é o dilema do determinismo. Você tem toda razão, está implícito no pensamento Simultaneísta. Mas o pensamento da Sequência também tem seu dilema. É mais ou menos assim, fazendo uma pequena comparação ridícula: você está jogando uma pedra numa árvore; se você é Simultaneísta, a pedra já bateu na árvore, mas se você é Sequencista, a pedra nunca vai poder bater na árvore. Então, qual dos dois você escolhe? Talvez você prefira jogar pedras sem pensar no assunto, sem escolher. Eu prefiro dificultar as coisas e escolher os dois.
– Como... como o senhor os concilia? – perguntou o tímido, com sinceridade.
Shevek quase riu de desespero.
– Não sei. Trabalho nisso há muito tempo! No fim, a pedra bate na árvore. Nem a sequência pura nem a unidade pura explicam isso. Não queremos pureza, mas complexidade, a relação entre causa e efeito, meio e fim. Nosso modelo do cosmo deve ser tão inesgotável quanto o cosmo. Uma complexidade que inclua não apenas duração, mas criação, não apenas ser, mas vir a ser, não apenas geometria, mas ética. Não estamos atrás da resposta, mas apenas de como fazer a pergunta...
– Tudo muito bem, mas a indústria precisa de respostas – disse Dearri.
Shevek virou-se devagar, olhou para ele e não disse nada.
Houve um silêncio pesado, no qual Vea se lançou, graciosa e inconsequente, retornando ao tema da previsão do futuro. Outros foram atraídos pelo assunto e todos começaram a narrar suas experiências com cartomantes e videntes.
Shevek decidiu não falar mais nada, qualquer que fosse a pergunta. Estava com mais sede do que nunca; deixou o garçom encher de novo sua taça e bebeu a coisa agradável e espumante. Olhou em volta da sala, tentando dissipar a raiva e a tensão observando as outras pessoas. Mas elas também se comportavam com muita emoção para os padrões iotas – gritando, rindo alto, interrompendo-se uns aos outros. Num canto, um casal entregava-se a preliminares sexuais. Shevek desviou o olhar, enojado. Eles egoizavam até o sexo? Acariciar-se e copular na frente de pessoas desacompanhadas era tão vulgar quanto comer na frente de pessoas famintas. Voltou a atenção para o grupo à sua volta. Haviam terminado o assunto das previsões do futuro e agora falavam de política. Estavam todos discutindo sobre a guerra, sobre o que Thu iria fazer, o que A-Io iria fazer, o que o CGM iria fazer.
– Por que vocês só falam em abstrações? – ele perguntou de repente, perguntando-se, enquanto falava, por que estava falando, se tinha decidido não falar. – Não são nomes de países, são pessoas se matando. Por que os soldados vão? Por que um homem vai matar estranhos?
– Mas é para isso que servem os soldados – disse uma mulher pequena e clara, com uma opala no umbigo. Vários homens começaram a explicar a Shevek o princípio de soberania nacional. Vea interrompeu. – Deixem que ele fale. Como você resolveria o problema, Shevek?
– A solução está bem à vista.
– Onde?
– Anarres!
– Mas o que o seu povo faz na Lua não resolve nossos problemas aqui.
– O problema do homem é sempre o mesmo. Sobrevivência. Da espécie, do grupo, do indivíduo.
– Autodefesa nacional... – alguém gritou.
Eles argumentaram, ele argumentou. Ele sabia o que gostaria de dizer e sabia que deveria convencer a todos, pois era claro e verdadeiro, mas, de algum modo, não conseguia dizê-lo adequadamente. Todos gritavam. A mulherzinha clara bateu no braço largo da poltrona em que estava sentada e ele se sentou ali. A cabeça raspada e acetinada da mulher surgiu olhando para ele sob seu braço.
– Olá, Homem da Lua! – Vea unira-se a outro grupo por um tempo, mas tornou a se aproximar dele. O rosto dela estava enrubescido e seus olhos, grandes e líquidos. Ele pensou ter visto Pae do outro lado da sala, mas havia tantos rostos que eles se misturavam e se tornavam indistintos. Coisas aconteciam aos trancos e barrancos, com lacunas no meio, como se o tivessem deixado testemunhar, dos bastidores, o funcionamento do Cosmo Cíclico da hipótese da velha Gvarab.
– O princípio da autoridade legal deve ser mantido, ou vamos degenerar em mera anarquia! – rugiu um homem gordo e carrancudo.
– Sim, sim, degenerem! Nós temos desfrutado essa degeneração há cento e cinquenta anos. – retrucou Shevek.
Os dedos dos pés da mulherzinha clara, em sandálias prateadas, surgiram por sob a saia toda bordada com centenas e centenas de pequenas pérolas.
– Mas fale de Anarres... como é, de verdade? Lá é tão maravilhoso assim? – Vea disse.
Ele estava sentado no braço da poltrona, e Vea estava encostada na almofada perto dos joelhos dele, ereta e dócil, os seios macios fitando-o com seus olhos cegos, o rosto sorrindo, complacente, enrubescido.
Algo sombrio revolveu-se na mente de Shevek, escurecendo tudo. Sua boca estava seca. Esvaziou a taça cheia que o garçom acabara de lhe servir.
– Não sei – ele disse; sentiu a língua semiparalisada. – Não. Não é maravilhoso. É um mundo feio. Não como este. Anarres só tem poeira e colinas áridas. Tudo escasso, tudo árido. As pessoas não são bonitas. Têm mãos e pés grandes, como eu e o garçom ali. Mas as barrigas não são grandes. Eles se sujam muito e tomam banho juntos, ninguém aqui faz isso. As cidades são muito pequenas e sem graça, são lúgubres. Nenhum palácio. A vida é sem graça, e o trabalho é duro. Não se pode ter sempre tudo o que se quer, ou mesmo o que se necessita, porque não há o suficiente. Vocês, urrastis, têm o suficiente. Ar suficiente, chuva suficiente, grama, oceanos, comida, música, prédios, fábricas, máquinas, livros, história. Vocês são ricos, vocês possuem. Nós somos pobres, somos carentes. Vocês têm, nós não temos. Tudo é lindo aqui. Só os rostos que não. Em Anarres nada é lindo, nada, exceto os rostos. Os outros rostos, dos homens e das mulheres. Aqui se veem joias, lá se veem olhos. E nos olhos se vê o esplendor, o esplendor do espírito humano. Porque nossos homens e mulheres são livres... por não possuírem nada, são livres. E vocês, os possuidores, são possuídos. Vocês estão todos presos. Cada um sozinho, solitário, com o monte de coisas que possui. Vocês vivem na prisão, morrem na prisão. É tudo que consigo ver nos seus olhos... o muro, o muro!
Estavam todos olhando para ele.
Ouviu o som alto da própria voz ainda ressoando no silêncio, sentiu as orelhas ardendo. A escuridão e o vazio revolveram-se outra vez em sua mente.
– Estou tonto – ele disse, e se levantou.
Vea segurou-lhe pelo braço.
– Venha comigo por aqui – ela disse, rindo um pouco e ofegante. Ele a seguiu enquanto ela abria caminho por entre as pessoas. Ele agora sentia o rosto muito pálido, e a tontura não passava; esperava que ela o estivesse levando ao lavatório, ou a uma janela onde pudesse respirar ar fresco. Mas o cômodo em que entraram era grande e parcialmente iluminado por um reflexo. Uma enorme cama branca estava encostada na parede; um espelho cobria a metade da outra parede. Havia uma fragrância densa e doce de cortinas, de roupas de cama, do perfume que Vea usava.
– Você é demais – Vea disse, postando-se na frente de Shevek e erguendo os olhos para o rosto dele, na escuridão parcial, com aquele sorriso ofegante. – Realmente demais... você é impossível... magnífico! – Colocou as mãos nos ombros dele. – Oh, a cara que eles fizeram! Preciso lhe dar um beijo por isso! – E ela se ergueu na ponta dos pés, mostrando-lhe a boca, o pescoço branco e os seios nus.
Ele a agarrou e deu-lhe um beijo na boca, forçando a cabeça dela para trás, e depois beijou o pescoço e os seios. Ela cedeu a princípio, como se não tivesse ossos, depois se contorceu um pouco, rindo e o empurrando de leve, e começou a falar.
– Oh, não, não, comporte-se – ela disse. – Agora vamos, temos que voltar para a festa. Não, Shevek, agora não, sossegue, assim não vai dar! – Ele não deu a menor atenção. Puxou-a com ele para a cama, e ela foi, mas continuou falando. Com uma das mãos, ele tateou as roupas complicadas que estava usando e conseguiu abrir a calça. Depois tateou a roupa de Vea, a saia de cintura baixa, mas apertada, que ele não conseguiu soltar.
– Agora pare – ela disse. – Não, escute, Shevek, não vai dar, não agora. Não tomei anticoncepcional, se eu engravidar vai ser a maior confusão, meu marido volta em duas semanas! Não, me solte! – Mas ele não conseguia soltá-la, seu rosto estava colado à carne macia, suada e perfumada. – Escute, não amasse a minha roupa, as pessoas vão notar, pelo amor de Deus. Espere... espere, podemos combinar, arranjar um lugar para um encontro, tenho que zelar pela minha reputação, não posso confiar na empregada, espere, agora não... Agora não! Agora não! – Por fim, assustada com a urgência cega de Shevek e sua energia, ela o empurrou com todas as suas forças, as mãos no peito dele. Ele deu um passo para trás, confuso com o tom de medo na voz dela e com sua relutância; mas ele não conseguia parar, a resistência dela o excitou ainda mais. Ele a apertou contra si, e seu sêmen jorrou na seda branca do traje de Vea.
– Me solte! Me solte! – ela repetia no mesmo sussurro alto. Ele a soltou. Ficou parado, entorpecido. Tateou sua calça, tentando fechá-la.
– Eu... desculpe... pensei que você quisesse...
– Pelo amor de Deus! – disse Vea, olhando a saia na penumbra, puxando o plissado. – Agora vou ter que mudar de roupa.
Shevek ficou parado, boquiaberto, respirando com dificuldade, os braços caídos; então de repente virou-se e saiu do quarto escuro. De volta à sala iluminada da festa, passou cambaleando pelas pessoas, tropeçou numa perna, viu que o caminho estava impedido por corpos, roupas, joias, seios, olhos, chamas de velas, mobília. Correu para uma mesa. Nela havia uma travessa de prata em que pequenos salgadinhos recheados de carne, creme e ervas formavam círculos concêntricos, como uma imensa flor pálida. Shevek ofegou para respirar, curvou-se e vomitou em cima da travessa inteira.
– Eu o levo para casa – disse Pae.
– Faça isso, pelo amor de Deus – disse Vea. – Você estava procurando por ele, Saio?
– Ah, um pouco. Felizmente Demaere te ligou.
– Com certeza ele vai precisar de você.
– Ele não vai dar trabalho. Desmaiou no corredor. Posso usar seu telefone antes de sair?
– Mande lembrança ao chefe – Vea disse, maliciosamente.
Oiie tinha vindo ao apartamento da irmã com Pae e saiu com ele. Sentaram-se no banco do meio na grande limusine do governo que Pae sempre deixava de sobreaviso, a mesma que trouxera Shevek do porto espacial no verão anterior. Shevek agora estava deitado no banco traseiro, na mesma posição em que o tinham jogado.
– Ele ficou com a sua irmã o dia inteiro, Demaere?
– Parece que desde o meio-dia.
– Graças a Deus!
– Por que você tem tanto medo de que ele entre nos bairros pobres? Qualquer odoniano já está convencido de que somos um monte de escravos assalariados e oprimidos; qual a diferença se ele vir um pouco de confirmação disso?
– Pouco me importa o que ele veja. Não queremos que ele seja visto. Você tem lido os jornais alpistes? Ou os cartazes que circularam semana passada pela Cidade Velha, sobre o “Precursor”? O mito... aquele que virá antes do milênio... “um estranho, um pária, um exilado, trazendo nas mãos vazias o tempo vindouro”. Eles citaram isso. Essa turba está num daqueles malditos surtos apocalípticos. Procurando um líder simbólico. Um catalisador. Falando em greve geral. Não vão aprender nunca. Mesmo assim, precisam de uma lição. Maldita ralé rebelde, mandem todos eles combaterem em Thu, só assim vão nos servir para alguma coisa.
Nenhum dos dois homens falou mais nada durante o percurso.
O vigia noturno da Casa dos Veteranos da Faculdade os ajudou a subirem com Shevek para o seu quarto. Carregaram-no até a cama. Ele começou a roncar na mesma hora.
Oiie ficou para tirar os sapatos de Shevek e cobri-lo com um cobertor. O bafo do homem embriagado era repugnante; Oiie afastou-se da cama, tomado pelo medo e pelo amor que sentia por Shevek, um sentimento sufocando o outro. Franziu o cenho e murmurou:
– Idiota obsceno. – Apagou a luz com um estalo e voltou ao outro cômodo. Pae estava em pé ao lado da escrivaninha, mexendo nos papéis de Shevek.
– Deixe isso – disse Oiie, e sua expressão de nojo se intensificava. – Vamos. São duas horas da manhã. Estou cansado.
– O que esse canalha tem feito, Demaere? Nada aqui ainda, absolutamente nada. Será que ele é uma completa fraude? Será que fomos enganados por um maldito camponês ingênuo de Utopia? Onde está a teoria dele? Onde está nossa nave espacial instantânea? Onde está nossa vantagem sobre os hainianos? Há nove, dez meses estamos alimentando o canalha, para nada! – No entanto, enfiou no bolso um dos papéis antes de acompanhar Oiie até a porta.