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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DIAMANTES SÃO ETERNOS / Ian Flaming
OS DIAMANTES SÃO ETERNOS / Ian Flaming

 

                                                                                                                                               

 

 

 

 

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.

 

 

 

 

 


1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/OS_DIAMANTES_S_O_ETERNOS.jpg


1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/OS_DIAMANTES_S_O_ETERNOS.jpg


1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

CONTINUA

Os diamantes eram contrabandeados na África, lapidados na Europa e gastos na América. James Bond desvenda uma complicada trama internacional cujos agentes partiam do lema "Tudo passa, só os diamantes são eternos". A África misteriosa, as emoções de uma corrida em Saratoga e uma trepidante visita a Los Angeles fazem parte do sensacional roteiro que o leitor percorrerá ao lado de Bond, enquanto o agente secreto de Sua Majestade tenta desbaratar uma formidável gangue de criminosos apátridas que agiam em todo o mundo.


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1 - Abre-se o canal

COM AS DUAS patas de combate estendidas para a frente como os braços de um lutador, o grosso escorpião pandinus emergiu com um rangido seco de dentro do buraco, do diâmetro de um dedo, cavado debaixo da pedra.

No centro de uma nesga de terra dura e plana, fora do buraco, o escorpião se deteve, apoiado nas pontas de seus quatro pares de patas, os nervos e músculos tensos, prontos para uma retirada brusca, os sentidos atentos às mínimas vibrações que lhe ditariam o passo seguinte.

O luar, derramando-se por entre a espessa copa do espinheiro, extraía cintilações de safira das seis polegadas do corpo sólido, negro e lustroso, e faiscava pàlidamente no aguilhão úmido e branco que ressaltava do último segmento da cauda, encurvada agora em linha paralela ao dorso achatado do escorpião.

Vagarosamente o aguilhão deslizou para dentro da bainha e os nervos da bolsa de peçonha se relaxaram. O escorpião decidira. A gula suplantara o medo.

Doze polegadas além, no fundo de um declive abrupto de areia, o besouro miúdo procurava apenas arrastar-se até outros pastos mais ricos do que os que encontrara debaixo do espinheiro. A arremetida veloz do escorpião, declive abaixo, não lhe deu tempo sequer de abrir as asas. Agitou as pernas em sinal de protesto quando a pata impetuosa lhe circundou o corpo, e morreu no instante em que foi lancetado pelo aguilhão projetado por cima da cabeça do escorpião.

Depois de matar o besouro, o escorpião ficou imóvel quase cinco minutos. No decorrer desta pausa identificou a natureza de sua vítima e sondou mais uma vez o terreno e o ar em busca de vibrações hostis.

Tranquilizado, retirou da presa semi-destruída a pata de combate e, valendo-se das duas minúsculas pingas que usa para comer, pôs-se a esgravatar a carne do besouro. E durante uma hora, com extrema delicadeza, comeu sua vítima.

O frondoso espinheiro, sob o qual o escorpião matou o besouro, era um ponto de referência na vastidão da estepe ondulada, a umas quarenta milhas ao sul de Kissidugu, na região sudoeste da Guiné Francesa. Por todos os lados divisava-se um horizonte de colinas e selva. Mas aqui, numa superfície de vinte milhas quadradas, o terreno era plano e rochoso, quase desértico. No meio da catinga tropical somente esse espinheiro, talvez porque houvesse água no solo debaixo de suas raízes, elevava-se à altura de uma casa e podia ser visto a muitas milhas de distância.

O arbusto situava-se mais ou menos na junção de três Estados africanos.

Estava na Guiné Francesia, mas apenas cerca de dez milhas ao norte da extremidade mais setentrional da Libéria e cinco milhas a leste da fronteira de Serra Leoa. Do outro lado dessa fronteira localizam-se as grandes minas de diamantes em volta de Sefadu. Pertencem à Sierra International, que é parte do poderoso império mineiro da Afric International, a qual, por sua vez, é propriedade da Comunidade Britânica.

Uma hora antes, dentro da toca entre as raízes do gigantesco espinheiro, o escorpião fora alertado por dois tipos de vibrações. Primeiro houve o insignificante ruído dos movimentos do besouro. Estes pertenciam às vibrações logo reconhecidas e diagnosticadas pelo escorpião. Depois houve uma série de estrondos incompreensíveis em torno da árvore, rematados por um estremecimento final que escavou parte do buraco do escorpião. Seguiu-se então um tremor ritmado do solo, tão regular que em breve se converteu numa vibração habitual, despida de interesse. Após uma pausa, voltou o ruído débil do besouro. E foi a avidez que, ao fim de um dia de fuga para bem longe do mais implacável de seus inimigos — o sol — eclipsou da memória do escorpião os outros rumores e o impeliu a sair do esconderijo para as réstias do luar.

E agora, enquanto sugava com as pinças os nacos da carne do besouro, o sinal de sua morte soou distante, a leste, audível para um ouvido humano mas formado de vibrações que escapavam ao sistema sensorial do escorpião.

A alguns passos dali, uma mão pesada e rude, de unhas roídas, ergueu cautelosamente uma pedra pontuda.

Não houve ruído, mas o escorpião sentiu uma leve perturbação no ar.

Imediatamente as patas de combate se voltaram para cima, golpeando às cegas, o aguilhão retesou-se na cauda rígida, os olhos míopes tentaram encarar o inimigo.

A pedra foi arremessada.

— Filho duma égua.

O homem ficou observando enquanto o inseto esmagado se debatia em sua agonia mortal.

O homem bocejou. Em seguida ergueu-se sobre os joelhos na depressão arenosa junto ao tronco do arbusto onde estivera sentado quase duas horas e, protegendo a cabeça com os braços, arrastou-se para fora.

O barulho do motor, que o homem estivera esperando e que tinha assinado a sentença de morte do escorpião, era miais alto agora. Ao pôr-se em pé e fitar a trajetória da lua, o homem viu que uma forma negra e desajeitada, vindo do leste, avançava célere em sua direção. Por um instante o luar incidiu nas lâminas girantes do rotor.

O homem limpou as mãos no short caqui encardido e rodeou o arbusto a passos rápidos, indo até o ponto em que a roda traseira de uma velha motocicleta saía do esconderijo. Duas sacolas de ferramentas, de couro, pendiam dos lados do assento traseiro. De uma delas sacou um embrulho pequeno e pesado que guardou por dentro da camisa, Da outra retirou quatro lanternas elétricas baratas e dirigiu-se a uma clareira plana, mais ou menos do tamanho de uma quadra de tênis, a umas cinquenta jardas do espinheiro.

Acendeu as lanternas e enfiou três delas no chão, pela base, em três cantos da quadra. Depois, com uma na mão, tomou posição no quarto canto e esperou.

O helicóptero movia-se lentamente agora. Estava a menos de cem pés do chão, e as lâminas do rotor giravam a pouca velocidade. Assemelhava-se a um inseto descomunal e mal construído. Para o homem que o esperava, parecia, como de costume, barulhento demais.

O helicóptero parou, baixando de leve, exatamente sobre a cabeça do homem. Um braço saiu da cabina e uma lanterna piscou. Ponto-traço, A em código.

O homem respondeu, piscando B e c. Enterrou a lanterna no chão e afastou-se, protegendo os olhos do redemoinho de poeira. No alto, a marcha das lâminas do rotor diminuiu imperceptivelmente, e o helicóptero pousou suavemente no espaço compreendido entre as quatro lanternas. O

estardalhaço do motor cessou, dando uma tossidela final, o rotor da cauda girou alguns segundos em ponto morto e as lâminas do rotor principal completaram umas poucas rotações canhestras e pararam.

No silêncio cheio de ressonâncias, um grilo pôs-se a zumbir no espinheiro, e ouviu-se nas proximidades o trinado aflito de uma ave noturna.

Depois que o pó assentou, o piloto abriu com estrondo a porta da cabina, empurrou para fora uma escadinha de alumínio e desceu todo empertigado.

Esperou ao lado do aparelho, enquanto o outro homem percorria os quatro cantos da quadra e recolhia as lanternas. O piloto chegara meia hora atrasado ao local do encontro. Irritava-o a perspectiva de escutar a inevitável queixa do outro. Desprezava todos os africaners. Esse em particular. Para um alemão e piloto da Luftwaffe, que combatera sob as ordens de Galland em defesa do Reich, esses africaners eram uma raça bastarda, hipócrita, obtusa e grosseira. É verdade que esse imbecil cumpria uma tarefa espinhosa, mas»

que não era nada em comparação com a de pilotar um helicóptero por cima de quinhentas milhas de floresta, em plena noite.

Quando o outro se aproximou, o piloto saudou-o com um aceno.

— Tudo bem?

— Assim espero. Mas você se atrasou de novo. Agora só vou atravessar a fronteira de madrugada.

— Defeito no magneto. Todos temos os nossos aborrecimentos. Graças a Deus só há treze luas cheias por ano. Bom, se você trouxe o negócio, me dê.

É só abastecer e eu vou embora.

Sem dizer uma palavra, o homem das minas de diamante levou a mão à camisa e entregou o embrulho pesado e bem feito.

O piloto recebeu o pacote, úmido do suor das costelas do contrabandista, meteu-o num bolso lateral do blusão elegante, pôs a mão para trás e enxugou os dedos no fundo do short.

— Ótimo — disse ele e voltou-se para o aparelho.

— Um momento — disse o contrabandista de diamante. Havia em sua voz uma nota sombria.

O piloto virou-se e encarou-o. Pensou: é a voz do criado que tomou coragem para reclamar da comida.

— Ja. O que é?

— As coisas estão esquentando lá nas minas. Não vão nada bem.

Chegou de Londres um sujeito do serviço secreto. Conhecido. Você deve ter lido a respeito dele. Um tal de Sillitoe. Dizem que foi contratado pela Diamond Corporation. Surgiram novos regulamentos e todas as punições foram duplicadas. Isso apavorou meu pessoal miúdo. Tive de ser implacável e... bem, um deles pagou caro. Serviu de exemplo. Mas tive de pagar mais.

Dez por cento extra. E ainda não estão satisfeitos. Um dia desses o pessoal da segurança vai botar a mão em cima de um de meus agentes. E você sabe como são esses negros imundos. Não resistem a um acocho bem dado.

— Fitou um instante os olhos do piloto e logo desviou a vista.

— Aliás, eu duvido que haja alguém que possa aguentar. Nem mesmo eu.

— E daí? — perguntou o piloto. E depois de uma pausa: — Quer que eu comunique essa ameaça à ABC?

— Mas não estou ameaçando ninguém — corrigiu o outro imediatamente. — Quero somente que eles saibam que o negócio está ficando preto. Devem saber disso. Devem ter ouvido falar desse Sillitoe. E

veja o que disse o presidente em nosso relatório anual. Disse que as nossas minas estão perdendo mais de dois milhões de libras por ano em contrabando e compra ilegal de diamantes, e que compete ao governo pôr um paradeiro nisso. O que é que isso significa? Significa que vão acabar comigo!

— E comigo — disse o piloto, conciliador. — O que é que você quer então? Mais dinheiro?

— Sim — respondeu o outro, obstinado. — Quero um quinhão maior.

Vinte por cento mais, ou então largo tudo. — Tentou ler alguma simpatia no rosto do piloto.

— Está bem — disse o piloto com indiferença. — Darei o recado a Dakar. Se eles estiverem interessados comunicarão a Londres. Não tenho nada com isso, mas se eu fosse você — o piloto falou pela primeira vez sem reserva — não pressionaria muito essa gente. Eles podem ser mais duros do que esse tal de Sillitoe ou ia Companhia ou qualquer governo. Precisamente nessa extremidade do nosso canal, três homens morreram nos últimos doze meses. Um por ser covarde. Dois por terem surrupiado uma parte da bolada.

Você sabe disso. Foi danado o acidente sofrido por seu antecessor, não foi?

Belo lugar para esconder gelignite. Debaixo da cama. E logo quem? Ele, que era tão cuidadoso em tudo.

Ficaram um momento em silêncio, olhando um para o outro, ao luar. O

contrabandista de diamantes deu de ombros.

— Está certo — falou. — Diga-lhes apenas que estou em apuros e preciso de mais dinheiro. Eles compreenderão minha situação e, se forem sensatos, acrescentarão outros dez por cento só pra mim. Se não... — não concluiu a frase e aproximou-se do helicóptero. — Vamos. Vou ajudá-lo a encher o tanque.

Dez minutos depois o piloto encarapitou-se na cabina e arrastou a escada. Antes de fechar a porta, levantou a mão.

— Até logo — disse. — Virei vê-lo daqui a um mês.

O homem que estava no chão sentiu-se" só de repente.

— Totsiens — respondeu, com um aceno que era quase o aceno de um amante. — Alies van die best. — Recuou e levou a mão aos olhos para se resguardar da poeira.

O piloto sentou-se e amarrou o cinto de segurança, examinando com os pés o pedal do leme de direção. Certificou-se de que os freios da roda estavam em ordem, empurrou para baixo a alavanca de comando, ligou o combustível e comprimiu o arranque. Satisfeito com o batimento do motor, soltou o freio do rotor e torceu o acelerador. Do lado de fora das janelas da cabina, as compridas lâminas do rotor giraram lentamente. O piloto lançou uma olhadela para o rodopiante rotor traseiro. Recostou-se no assento e esperou que o indicador de velocidade do rotor acusasse 200 rotações por minuto. Quando a agulha atingiu a casa dos 200, desprendeu os freios da roda e puxou para cima, devagar e com firmeza, a alavanca. No alto, as lâminas do rotor tomaram impulso e penetraram fundo no ar. Recebendo maior aceleração, o aparelho começou a subir lenta e ruidosamente até que, a cerca de cem pés, o piloto manobrou o leme para a esquerda e impeliu para frente o manche que estava entre seus joelhos.

O helicóptero deu uma guinada para o leste e, ganhando altura e velocidade, afastou-se roncando na trilha da lua.

No chão, o homem viu-o sumir-se, levando as 100 000 libras em diamantes que seus homem haviam subtraído das jazidas durante o mês anterior e guardado displicentemente na boca até o momento em que ele, de pé ao lado da cadeira de dentista, lhes perguntava com indiferença onde sentiam as dores.

E enquanto falava dos dentes, arrancava-lhes as pedras da boca, examinava-as à luz do refletor, em voz baixa oferecia 50, 75, 100, os homens assentiam com a cabeça, recebiam as notas, escondiam-nas e saíam do consultório com duas aspirinas enroladas num papel, como um álibi. Tinham de aceitar o preço que ele queria pagar. Os nativos não tinham possibilidade alguma de ficar com os diamantes Quando os trabalhadores saíam das minas, uma vez por ano, para visitar a tribo ou enterrar um parente, tinham de submeter-se a exames de raios-x e purgantes de óleo de rícino. Estavam desgraçados quando eram apanhados. Era tão fácil procurar o consultório do dentista, escolher o dia em que "Ele" estava de plantão. E o papel-moeda não aparecia no raios-x.

O homem empurrou a motocicleta pela trilha estreita, aberta no chão acidentado, e partiu em direção às colinas da fronteira de Serra Leoa. Elas estavam mais distantes agora. Ele tinha tempo apenas de chegar à cabana de Susie antes do amanhecer. Fez uma careta ao pensar que tinha de ir para a cama com ela ao fim de uma noite fatigante. Mas não tinha outro jeito. O

dinheiro não dava para comprar o álibi que ela lhe garantia. Era o corpo branco dele que ela desejava. Depois, outras dez milhas até o clube, onde tomava café e ouvia as pilhérias grosseiras de seus amigos.

—- Boa incrustação, doutor? — Ouvi dizer que ela tem os mais belos incisivos da Província. — Diga-me uma coisa, doutor, o que é que a lua cheia tem de especial para o senhor?

Mas cada pacote de 100 000 libras significava 1 000 libras para ele num depósito seguro em Londres. Maravilhosas cédulas de cinco libras. Valia a pena. Por Deus como valia! Mas não por muito tempo mais. Não. De forma alguma! Aos 20 000 iria parar de uma vez. E então...

Com a cabeça repleta de sonhos grandiosos, o homem seguiu aos solavancos, e tão depressa quanto lhe era possível, o caminho através da planura — deixando para trás o frondoso espinheiro, onde o canal da mais rica operação de contrabando do mundo iniciava a rota tortuosa que o levaria finalmente a desaguar em colos macios, a cinco mil milhas de distância.


2 - Pura gema

– Não, assim não. Torcendo, como um parafuso — disse M, impaciente.

James Bond, retendo na memória a recomendação de M a fim de passá-la ao Chefe do Pessoal, apanhou a lupa na escrivaninha onde ela tinha caído e conseguiu desta vez fixá-la no olho direito.

Embora fosse fim de julho e a sala estivesse inundada de sol, M ligara a lâmpada da escrivaninha e a inclinara de modo a iluminar Bond. Este pegou o brilhante e segurou-o contra a luz. Enquanto o rodava nos dedos, todas as cores do arco-íris feriram-lhe a retina, dardejadas pelo emaranhado das facetas. Afinal, o olho aturdiu-se, ofuscado.

Bond retirou a lupa e procurou pensar em algo adequado para dizer.

M olhou-o zombeteiro.

— Bela pedra?

— Fascinante — respondeu Bond. — Deve valer muito dinheiro.

— Algumas libras pela lapidação — disse M secamente. — É um pedaço de quartzo. Mas vejamos outras.

Consultou uma lista que tinha diante de si na escrivaninha, escolheu um envoltório de papel de seda, verificou o número, desembrulhou-o e empurrou-o para o lado de Bond.

Bond recolocou o quartzo no invólucro correspondente e apanhou a segunda amostra.

— Para o senhor é fácil — sorriu para M. — O senhor está a par dos macetes.

Atarraxou outra vez a lupa no olho e suspendeu a gema, se é que era gema realmente, contra a luz.

Desta vez, pensou, não podia haver dúvida. Essa pedra também tinha as trinta e duas facetais em cima e as vinte e quatro em baixo, como o quartzo, e pesava também uns vinte quilates, mas tinha um núcleo de chama azulada, e as infinitas cores que se refletiam e refratavam em suas profundezas penetravam no olho como agulhas. Com a mão esquerda, Bond agarrou o quartzo e colocou-o ao lado do diamante, diante da lupa. Era um corpo sem vida, quase opaco, junto da deslumbrante transparência do diamante. A irisação que percebera minutos antes era agora grosseira e turva.

Bond repôs o quartzo no lugar e tornou a contemplar o coração do diamante. Agora podia compreender a paixão que os diamantes inspiraram ao longo dos séculos, o amor quase sensual que despertavam naqueles que os usavam, lapidavam ou com eles negociavam. Era a ascendência de uma beleza tão pura que comportava uma espécie de verdade, uma autoridade divina, diante da qual todas as outras coisas materiais se transformavam, como o pedaço de quartzo, em barro. Bond entendeu o mito dos diamantes e sentiu que jamais esqueceria o que tinha entrevisto no coração dessa pedra.

Botou o diamante na tira de papel e deixou cair a lupa na palma da mão.

Fitou o olhar atento de M.

— Sim — disse Bond. — Entendo. M reclinou-se.

— Isso é o que Jacoby quis dizer quando almocei com eles, outro dia, na Diamond Corporation — afirmou. — Disse que se eu pretendia me meter com diamantes devia procurar entender o que havia no âmago do negócio.

Não só os milhões em dinheiro, ou o valor do diamante como barreira contra a inflação, ou as modas sentimentais que mandam usar diamantes nos anéis de noivado e coisas parecidas. Ele me disse que é preciso entender a paixão pelos diamantes. Assim ele só fez me mostrar o que eu estou lhe mostrando agora. E — M fez um ar de riso — se isso pode lhe proporcionar alguma satisfação, eu fui tão engabelado por esse pedaço de quartzo como você.

Bond ficou quieto e nada respondeu.

— Agora vamos dar uma olhada nos demais — continuou M, acenando para a pilha de embrulhos de papel que tinha diante de si. — Eu disse a ele que gostaria de tomar emprestado algumas amostras. Parece que o meu pedido não causou espanto e hoje de manhã, ainda em casa, recebi todo esse lote. — M consultou a lista, abriu um invólucro e aproximou-o de Bond. — O que você acabou de examinar era o mais valioso... um "Fine Blue-white".

— Apontou para o grande diamante à frente de Bond. — Esse aí é um "Top Crystal", dez quilates, talhe de baguette. Pedra finíssima, porém vale a metade de um "Blue-white". Repare que há nela um vestígio amarelado quase imperceptível. O "Cape", que vou lhe mostrar agora, diz Jacoby que tem um ligeiro toque acastanhado. Macacos me mordam se eu posso enxergá-lo. Duvido que alguém possa, exceto os peritos.

Obediente, Bond apanhou o "Top Crystal", e durante o quarto de hora seguinte M conduziu-o através de uma gama completa de diamantes até esbarrar numa série maravilhosa de pedras coloridas, vermelho rubi, azul, cor-de-rosa, amarelo, verde e violeta. Afinal, M apresentou um pacote de pedras menores, todas defeituosas, riscadas ou de cores esmaecidas.

— Diamantes industriais. Não são o que eles chamam de "pura gema".

Usados em máquinas, ferramentas etc. Mas não os despreze. A América comprou 5 milhões de libras dessas pedras no ano passado, e a América é apenas um dos mercados. Bronsteen me informou que foram pedras como essas que foram empregadas no corte do túnel de St. Gothard. No outro prato da balança, os dentistas fazem uso delas nas suas brocas. São a substância mais resistente do mundo. Não se gastam nunca.

M tirou o cachimbo e pôs-se a enchê-lo.

— Agora você sabe tanto a respeito de diamantes quanto eu.

Bond recostou-se na poltrona e correu os olhos pelas tiras de papel de seda e pelas pedras rutilantes espalhadas sobre o tampo de couro vermelho da escrivaninha de M. Tentou adivinhar o que tudo aquilo queria dizer.

Ouviu-se o som áspero de um fósforo raspando a lixa, e Bond viu M

socar o fumo aceso no fornilho do cachimbo, guardar a caixa de fósforos no bolso e inclinar a cadeira na posição preferida para refletir.

Bond baixou a vista para olhar o relógio. Eram 11,30. Pensou com prazer na pilha de papéis com o rótulo "Ultra-Secreto", que abandonara alegremente na bandeja dos despachos, ao soar, havia coisa de uma hora, a campainha do telefone vermelho. Estava convencido agora de que não teria de manuseá-los. — Suponho que é alguma missão — informara o Chefe do Pessoal em resposta à pergunta de Bond. — O homem diz que não receberá mais ninguém antes do almoço e já marcou uma entrevista pra você, às duas horas, na Scotland Yard. Corra. — Bond pegara o paletó e entrara na sala contígua, onde vira com simpatia sua secretária protocolando outra pilha volumosa com a nota "Urgentíssimo".

— M — disse Bond quando ela levantou o olhar. — Bill crê que é uma missão. Acho bom você não pensar que vai ter o prazer de atirar essa papelada na minha bandeja. Por mim, pode botar no correio para o Daily Express. — Arreganhou os dentes num sorriso. — Sefton Delmer não é seu namorado, Lil? Sujeito de sorte!

Ela o olhou como se o estivesse examinando.

— A gravata está torta — disse com frieza. — Afinal de contas, eu mal conheço o rapaz.

. Curvou-se sobre seus registros, e Bond saiu para o corredor, sentindo-se feliz por ter uma bonita secretária.

A cadeira de M estalou, e Bond olhou para o outro lado da mesa, onde estava o homem a quem dedicava afeição, lealdade e obediência.

Os olhos cinzentos fitaram-no pensativamente. M tirou o cachimbo da boca.

— Há quanto tempo você regressou das férias na França?

— Duas semanas.

— Divertiu-se?

— Um pouco. Já para o fim estava começando a me entediar.

M não fez comentários.

— Estive passando a vista pela sua ficha. Manejo de armas leves, perfeito. Combate desarmado, satisfatório. O último exame médico mostra que você está em ótima forma. — Fez uma pausa. — O caso — prosseguiu sem emoção — é que eu tenho uma incumbência difícil para você e queria ter a certeza de que você estava em condições de aceitá-la.

— É claro, senhor. — Bond estava ligeiramente exasperado.

— Não se engane a respeito dessa missão, 007 — disse M com severidade. — Quando lhe digo que poderá ser arriscada, não estou sendo melodramático. Há muita gente velhaca que você ainda não encontrou, e pode ser que alguns tipos dessa categoria estejam envolvidos nesse negócio.

Alguns dos mais eficientes. Por isso, não se meta a impertinente quando eu penso duas vezes antes de lhe confiar essa missão.

— Desculpe, senhor.

— Está bem, então. — M largou o cachimbo e curvou-se, com os braços cruzados, sobre a mesa. — Vou lhe contar a estória e depois você decide se topa ou não. — Faz uma semana — continuou — um dos chefões do Tesouro veio me ver. Estava acompanhado do Secretário Permanente do Ministério do Comércio. O assunto era diamante. Parece que a maior parte do que em todo o mundo é conhecido como "gema" é minerada em território britânico e que noventa por cento de todas as vendas de diamantes se efetuam em Londres. Pela Diamond Corporation. — M deu de ombros. — Não me pergunte por quê. Os britânicos se apoderaram do negócio no começo do século e até agora conseguiram agarrar-se a ele. Atualmente o comércio é vultoso. Cinquenta milhões de libras por ano. É a maior fonte de divisas de que dispomos. Por isso, quando alguma coisa anda errada nesse setor, o governo fica preocupado. E isso é o que aconteceu. — M lançou um olhar conciliador a Bond. — Pelo menos dois milhões de libras em diamantes são contrabandeados da África anualmente.

— É muito dinheiro — disse Bond. — E para onde vão as pedras?

— Dizem que para a América — respondeu M. — E eu também sou da mesma opinião. A América é sem dúvida o maior mercado de diamantes. E

as quadrilhas que lá existem são as únicas que poderiam comandar uma operação de tal vulto.

— Por que as companhias de mineração não reprimem o contrabando?

— Têm feito tudo quanto podem — disse M. — Você provavelmente leu nos jornais que De Beers contratou nosso amigo Sillitoe logo que este deixou o MI5. Sillitoe está lá agora, trabalhando em cooperação com a polícia sul-africana. Imagino que ele deve ter sugerido medidas drásticas e dado algumas ideias brilhantes para colocar as coisas nos eixos, mas -o Tesouro e o Ministério do Comércio não estão muito propensos a pô-las em prática. Julgam que a questão é complexa demais para ser resolvida por um grupo de companhias isoladas, por mais eficientes que sejam. Além disso, têm um motivo muito forte para desejarem agir oficialmente por conta própria.

— E qual é esse motivo?

— Agora mesmo existe em Londres uma quantidade enorme de pedras contrabandeadas — disse M, e seus olhos cintilaram do outro lado da escrivaninha. — Estão aguardando o momento de serem transportadas para a América. E a Agência Especial sabe quem vai ser o portador. Logo que Ronnie Vallance soube da estória, por intermédio de uma de suas alcoviteiras do Soho, gente do seu "Esquadrão Fantasma" como ele gosta de dizer, correu ao Tesouro. O Tesouro comunicou-se com o Ministério do Comércio, e os dois ministérios foram ao Primeiro Ministro, que os autorizou a usarem o Serviço.

— Por que não deixar que a Agência Especial do MI5 tome conta do caso? — perguntou Bond, achando que M parecia atravessar uma fase de intromissão nos negócios alheios.

— É evidente que podiam prender os portadores assim que eles recebessem a encomenda e tentassem sair do país — disse M com impaciência. — Mas isso não acabará com a traficância. Esse povo não é do tipo que dá com a língua nos dentes. E de resto os portadores são só a arraia-miúda. Provavelmente só fazem receber o embrulho de um homem num parque e entregar a outro homem, noutro parque, quando chegam ao outro lado. O único meio de ir ao fundo da coisa é seguir a pista até a América e ver aonde vai dar. Infelizmente o FBI pouco poderá fazer pra nos ajudar. Isso é uma parte insignificante de sua batalha com as grandes quadrilhas. E

também não causa prejuízo algum aos Estados Unidos. Antes pelo contrário.

Só quem perde é a Inglaterra. Além do mais, a América está fora da jurisdição da polícia e do MI5. SÓ O Serviço pode encarregar-se desse trabalho.

— É verdade — concordou Bond. — Mas temos algum outro ponto de referência?

— Já ouviu falar da House of Diamonds?

— Claro que ouvi — disse Bond. — Os famosos palheiros americanos.

Rua 46 em Nova York e Rue de Rivoli em Paris. Imagino que hoje eles são tão importantes como Cartier, Van Cleef e Boucheron. Subiram bem depressa desde a guerra.

— Exatamente — continuou M. — São eles mesmos. Têm uma lojinha em Londres também. Em Hatton Garden. Compravam muito nas exposições mensais da Diamond Corporation. Mas nos últimos três anos vêm comprando cada vez menos. Embora, como você diz, suas vendas de jóias venham aumentando de ano para ano. Devem receber seus diamantes de alguma parte. Foi o Tesouro que os mencionou outro dia, em nossa reunião.

Mas não há nada contra eles. Só que mantêm aqui um dos figurões da firma, o que é estranho, já que compram tão pouco. Um sujeito chamado Rufus B.

Saye. Pouco se sabe a respeito dele. Almoça diariamente no Clube Americano, em Piccadilly. Joga golfe em Sunningdale. Não bebe nem fuma.

Mora no Savoy. Cidadão modelar. — M deu de ombros. — Mas o comércio de diamantes é uma espécie de negócio de família, com seus requintes e formalidades, e a impressão que a gente tem é que a House of Diamonds parece um pouco deslocada. Só isso.

Bond achou que já era tempo de formular a pergunta decisiva.

— E onde é que eu entro? — indagou, fitando os olhos de M.

— Você tem um encontro com Vallance na Scotland Yard dentro de — M consultou o relógio — uma hora, precisamente. Ele porá você em ação.

Vão prender o portador hoje de noite e você o substituirá.

Os dedos de Bond crisparam-se ligeiramente em volta dos braços da poltrona.

— E depois?

— Depois — respondeu M com simplicidade — você vai contrabandear os diamantes para os Estados Unidos. Pelo menos esse é o plano. Que me diz disso?


3 - Gelo quente

JAMES BOND fechou, atrás de si, a porta do gabinete de M. Deu um sorriso aos cálidos olhos castanhos de Miss Moneypenny, atravessou a sala e entrou no escritório do Chefe do Pessoal.

O Chefe do Pessoal, um tipo magro e sossegado, mais ou menos da mesma idade de Bond, largou a pena e reclinou-se na cadeira. Viu Bond, num gesto automático, meter a mão no bolso traseiro da calça, puxar a cigarreira achatada de cor cinza-chumbo, caminhar até a janela aberta e contemplar Regents Park lá embaixo.

Nos movimentos de Bond havia um quê de refletida deliberação que respondia à pergunta do Chefe do Pessoal.

— Então você topou a parada. Bond voltou-se.

— Topei sim — disse ele e acendeu um cigarro. Seus olhos miravam o Chefe do Pessoal através da fumaça. — Mas me diga só uma coisa, Bill. Por que o velho está tão cauteloso a respeito desse negócio? Chegou até a ver os resultados de meu último exame médico. Por que está tão preocupado?

Afinal não se trata de nenhuma incumbência por trás da Cortina de Ferro. A América é um país civilizado. Mais ou menos. O que o atormenta? Era dever do Chefe do Pessoal saber o que se passava na cabeça de M. Seu cigarro se apagara, e ele acendeu outro, atirando depois o fósforo gasto por cima do ombro esquerdo. Virou-se para ver se tinha caído na cesta de papéis usados.

Tinha. Sorriu para Bond.

— Prática constante — disse ele. — Não há muitas coisas que preocupem M, James. E você sabe disso tão bem quanto qualquer outra pessoa do Serviço. A SMERSH, naturalmente, é uma delas. Os alemães violadores de códigos. A pandilha chinesa do tráfico de ópio... ou pelo menos sua influência no mundo inteiro. O prestígio da Máfia. E tem um bruto respeito por elas, as quadrilhas americanas. As grandes. Isso é tudo.

São as únicas pessoas que realmente apoquentam o velho. E parece quase certo que essa estória dos diamantes vai levar você à luta com as quadrilhas.

Elas são a última categoria de gente com que ele nos quer ver envolvidos. Já tem muito que fazer sem elas. Foi isso que o tornou cauteloso.

— Não vejo nada de extraordinário nesses bandidos americanos — protestou Bond. — Não são americanos. Quase todos são italianos vadios, que usam camisas com monogramas, passam o dia comendo espaguete e almôndegas e se perfumam dos pés à cabeça.

— É o que você pensa — objetou o Chefe do Pessoal. — Bom, na realidade, esses são os que a gente vê. Mas há outros, superiores, por trás deles, e outros ainda mais superiores por trás desses últimos. Veja o caso dos narcóticos. Dez milhões de viciados. E de onde recebem a liamba? O jogo de azar... refiro-me ao jogo legalizado. Duzentos e cinquenta milhões de dólares por ano é a receita de Las Vegas. E há também o jogo por baixo do pano, em Miami, Chicago e outras cidades. No comando estão as quadrilhas e seus testas-de-ferro. Há alguns anos deram as contas de Bugsy Siegel só porque ele queria uma cota maior da receita de Las Vegas. E ele era durão. Essas são as grandes operações. Você já pensou que o jogo é a maior indústria da América? Maior do que a do aço? Maior do que a de automóveis? E a rapaziada não poupa nada pra manter a coisa funcionando sem atropelo. Se não acredita, pegue um exemplar do Relatório Kefauver e leia. E agora esses diamantes. Seis milhões de dólares por ano é um bocado de dinheiro. Pode apostar o que quiser como o negócio é bem protegido. — O Chefe do Pessoal fez uma pausa. Olhou impaciente para o vulto alto, de paletó saco azul-escuro, e para os olhos obstinados no rosto magro e trigueiro. — Talvez você não tenha lido o relatório do FBI sobre o crime nos Estados Unidos.

Relatório deste ano. Bastante ilustrativo. Trinta e quatro crimes de morte por dia. Quase 150 000 americanos assassinados nos últimos vinte anos. — Bond pareceu incrédulo. — É fato, não é conversa não. Arranje esses relatórios e verifique você mesmo. É por isso que M quis se certificar de que você estava em forma antes de lhe confiar essa missão. Você vai topar de testa com essas quadrilhas. E vai estar sozinho. Satisfeito agora?

O rosto de Bond se descontraiu. — Ora vamos, Bill! — disse ele. — Se isso é o que me aguarda, eu lhe pago o almoço. É a minha vez e eu quero celebrar. Estou livre do papelório até o fim do verão. Levarei você ao Scotts e lá teremos um cozido de caranguejo e uma caneca de cerveja. Você me tirou um peso da consciência. Pensei que havia algum problema sério a respeito desse negócio.

— Está bem, vamos. Raios o partam! — O Chefe do Pessoal pôs de parte as apreensões que partilhava com seu chefe e saiu com Bond do gabinete, batendo a porta atrás de si com desnecessária violência.

Mais tarde, às duas horas em ponto, Bond trocava um aperto de mão com o tipo garboso e simpático do antiquado escritório que ouve mais segredos do que qualquer outro escritório da Scotland Yard.

Bond tinha feito amizade com o Comissário Assistente Vallance no caso Moonraker. Assim, nenhum dos dois perdeu tempo com preâmbulos.

Vallance empurrou para o outro lado da escrivaninha duas fotos de identificação tiradas pelo Departamento de Investigação Criminal. Elas mostravam um rapaz bem-apessoado, de cabelos negros e cara de fanfarrão, na qual os olhos sorriam sem malícia.

— É o tal — disse Vallance. — Você poderá passar por ele perante alguém que só o conheça de descrição. Peter Franks. Tipo simpático. Boa família. Estudou em bons colégios, etcétera e tal. Depois transviou-se e até hoje. Especialidade: gatunagem. Pode ter tomado parte no roubo do Duque de Windsor em Sunningdale, há alguns anos. Nós o apanhamos uma ou duas vezes, mas em coisas bobas. Agora ele deu com a língua nos dentes.

Costumam fazer isso quando se metem num ramo que não conhecem. Eu tenho duas ou três pequenas que são nossas informantes lá no Soho. E ele está caidinho por uma delas. O mais engraçado é que ela também parece estar caída por ele e pensa que pode regenerá-lo, conquistá-lo para o bom caminho, enfim, essa xaropada toda. Mas ela tem sua tarefa, e quando ele falou nesse negócio, sem dar muita importância, como se fosse uma simples pagodeira, ela veio aqui me contar. Bond fez um movimento com a cabeça.

— Esses vigaristas especializados nunca levam a sério as atividades dos outros. Aposto que ele não teria dito nada a ela se se tratasse de uma de suas trampolinagens nas casas de campo.

— De jeito nenhum — concordou Vallance. — De outra forma nós o teríamos trancafiado há muito tempo. Bom, o que é certo é que ele foi abordado por um amigo e concordou em passar uma muamba para os Estados Unidos por 5 000 dólares. A pagar na entrega. A pequena quis saber se era entorpecente. Aí ele riu e disse: "Que nada! Coisa mais fina, gelo quente". Os diamantes já estavam com ele? Não. ainda tinha que entrar em contacto com sua "guarda". Amanhã de noite no Trafalgar Palace. Às cinco, no quarto da dona. Ela se chama Case. Ela diria o que ele tinha de fazer e viajaria com ele. — Vallance ergueu-se e pôs-se a passear de um lado para outro defronte do quadro de cédulas falsas de cinco libras, pregado na parede oposta às janelas. — Esses contrabandistas geralmente andam aos pares quando a carga é preciosa. O portador nunca merece confiança integral, e os homens no outro extremo da linha gostam de ter uma testemunha para o caso de haver alguma encrenca na alfândega. E se o portador falar, os maiorais não serão apanhados desprevenidos.

Carga preciosa. Portadores. Alfândega. Guardas. Bond apagou o cigarro no cinzeiro da escrivaninha de Vallance. Quantas vezes, em seus primeiros tempos no Serviço, tinha ele passado por esse ramerrão — de Estraburgo para a Alemanha, de Niegoreloye para a Rússia, por cima do Simplon, através dos Pirineus? A tensão. A boca ressequida. As unhas enfiadas nas palmas das mãos. E agora, diplomado em todas essas matérias, lá iria ele passar outra vez pela mesma rotina.

— É, estou vendo — disse Bond, furtando-se às lembranças que o assediavam. — Mas qual é o quadro geral? Tem alguma ideia? Em que tipo de operação Franks ia ser encaixado?

— Bem, seguramente os diamantes vêm da África. — Os olhos de Vallance eram impenetráveis. — Talvez não das minas da União. É mais provável que venham do grande vazamento que o nosso Sillitoe anda investigando em Serra Leoa. Talvez passam pela Libéria, ou, melhor ainda, pela Guiné Francesa. Daí para a França, possivelmente. E desde que esse pacote veio dar em Londres, é de presumir que Londres faz parte também da rota.

Vallance interrompeu o passeio e fitou Bond.

— E agora que sabemos que esse pacote está a caminho da América, o que nos intriga é o que vai acontecer quando chegar lá. Os operadores não iriam tentar economizar dinheiro na lapidação... nisso vai metade do dinheiro de um diamante... Por isso parece que ias pedras são canalizadas para alguma firma do ramo, depois lapidadas e lançadas no mercado como as outras. — Vallance deteve-se um instante. — Não se importará se eu lhe der um conselho?

— Ah, não seja ridículo!

— Pois bem — continuou Vallance — em todos esses negócios a recompensa paga aos subalternos é de modo geral o elo mais frágil da cadeia. E como é que esse Peter Franks ia receber 5 000 dólares? De quem?

E se fosse bem sucedido, seria contratado outra vez? Se eu estivesse na sua pele, Bond, prestaria atenção a esses pontos. Procuraria descobrir quem faz o pagamento e tentaria aproximar-me dos chefões. Se eles forem com a sua cara, não será difícil. Bons portadores não aparecem todos os dias, e iate mesmo os maiorais vão se interessar pelo novo recruta.

— Perfeito — disse Bond meditativo — você tem razão. A dificuldade principal será passar pelo primeiro contacto na América. Vamos torcer para que eu não seja descoberto na alfândega de Idlewild. Vou ficar com cara de bobo se o inspetoscópio me pilhar. Mas espero que essa dona Case tenha algumas ideias brilhantes sobre a maneira de transportar a muamba. E agora, qual é o primeiro passo? Como é que você me vai fazer passar por Peter Franks?

Vallance reiniciou o passeio. — Acredito que isso não terá maiores complicações — disse ele. — Vamos engaiolar Franks hoje de noite, sob 'a acusação de que ele está conspirando para burlar a alfândega. — Fez um ar de riso. — É pena que a gente vá desfazer uma amizade tão bela com a minha pequena do Soho. Mas é o jeito. Depois, a ideia geral é de você ir ao encontro de Miss Case.

— Ela, o que é que sabe a respeito de Franks?

— Descrição e nome — respondeu Vallance. — É o que nós supomos, pelo menos. Acho que ela nem conhece o homem que abordou Frank.

Ninguém conhece ninguém nessa linha intermediária. Cada um faz seu serviço num compartimento estanque. Assim, abrindo-se um buraco, não se perde tudo.

— E você, o que é que sabe a respeito dela?

— As ninharias do passaporte. Cidadã americana. 27 anos. Nascida em São Francisco. Loura. Olhos azuis, 1,68 de altura. Profissão: solteira. Esteve aqui umas doze vezes nos últimos três anos. Pode ter estado muito mais sob outros nomes. Sempre se hospeda no Trafalgar Palace. O detetive do hotel informa que ela parece sair muito pouco. Raramente recebe visitas. Nunca fica além de duas semanas. Nunca cria problemas. É tudo. Não se esqueça de fabricar uma boa estória quando for falar com ela. Explique por que vai fazer o serviço e assim por diante.

— Eu cuido dessa parte.

— Mais alguma coisa em que possamos ajudar?

Bond pensou um pouco. Cabia-lhe tomar conta do resto. Uma vez em ação, trataria de improvisar, de acordo com as circunstâncias. Então lembrou da joalheria.

— E essa House of Diamonds que despertou as suspeitas do Tesouro?

Parece uma conjetura um pouco vaga. Alguma sugestão?

— Para ser franco, eu não tinha me preocupado com ela. — O tom de voz de Vallance era o de quem se desculpava. — Tomei informações sobre esse tal de Saye. Também aqui não achei nada além dos detalhes do passaporte. Americano. 45 anos. Negociante de diamantes. E por aí vai. Ele viaja muito para Paris. De fato, nos últimos três anos tem ido lá uma vez por mês. É possível que vá ver uma garota. Mas quer saber de uma coisa? Por que não vai dar uma olhada na loja e nele? Nunca se sabe o que se pode ganhar com isso.

— E como é que eu faço pra ir lá? — perguntou Bond em dúvida.

Ao invés de responder, Vallance apertou um botão do interfone, em cima de sua mesa.

— Pronto, senhor — atendeu uma voz metálica.

— Por favor, Sargento, mande subir Dankwaerts e Lobiniere. E depois me consiga uma ligação telefônica com a House of Diamonds, a joalheria de Hatton Garden. Diga que quer falar com Mr. Saye.

Vallance afastou-se e olhou pela janela para o rio. Tirou um isqueiro do bolso do colete e começou a golpeá-lo de leve, distraído. Houve uma pancada na porta, e o secretário de Vallance enfiou a cabeça.

— Sargento Dankwaerts, senhor.

— Mande-o entrar — disse Vallance. — Retenha Lobiniere até que eu o chame.

O secretário segurou a porta aberta, dando passagem a um indivíduo de feições comuns e vestido à paisana. Usava óculos, tinha o rosto pálido e o cabelo começava a rarear. A expressão era de bondade e solicitude. Poderia ser um funcionário graduado de qualquer estabelecimento comercial.

— Boa tarde, Sargento — disse Vallance. — Este é o Comandante Bond, do Ministério da Defesa. — O Sargento sorriu polidamente. — Eu queria que o senhor levasse o Comandante Bond à House of Diamonds em Hatton Garden. Ele será o "Sargento James" do seu corpo de auxiliares. O senhor acredita que os diamantes roubados em Ascot estão a caminho da Argentina através dos Estados Unidos, e dirá isso a Mr. Saye, o chefe da firma. O senhor calcula que talvez Mr. Saye tenha ouvido algum boato a respeito, por intermédio da matriz em Nova York. Sabe como é, discrição e amabilidade. Mas não deixe de fitá-lo dentro dos olhos. Pressione o mais que puder, sem dar motivo algum para queixa. Depois peça desculpas, retire-se e esqueça tudo o que foi dito. Certo? Alguma pergunta?

— Não, senhor — respondeu o Sargento Dankwaerts, impassível.

Vallance proferiu algumas palavras no interfone e, segundos depois, surgiu na sala um tipo pálido, insinuante, elegantemente trajado à paisana e portando uma pequena pasta para documentos. Aguardou de pé, junto à porta.

— Boa tarde, Sargento. Venha dar uma espiada neste amigo meu.

O Sargento deu alguns passos, parou perto de Bond e, com gestos corteses, virou-o para a luz. Dois olhos escuros e penetrantes esquadrinharam atentamente o rosto de Bond durante um bom minuto.

Depois, o homem afastou-se.

— Não posso garantir a cicatriz por mais de seis horas — disse ele. — Neste calor é impossível. Mas o resto não tem dificuldade. Quem é que ele vai ser, senhor?

— Vai ser o Sargento James, do corpo de auxiliares do Sargento Dankwaerts. — Vallance consultou o relógio. — Só por três horas, É

possível?

— Sem dúvida. Posso começar? — A um sinal afirmativo da cabeça de Vallance, o policial conduziu Bond a uma cadeira junto à janela, botou a pasta no soalho ao lado da cadeira, pôs um joelho no chão e abriu a pasta. E durante dez minutos, seus dedos ágeis ocuparam-se com a cara e o cabelo de Bond.

Conformado, Bond escutou a conversa de Vallance com a House of Diamonds.

— Só às 3h30? Nesse caso, poderia dizer a Mr. Saye que dois de meus homens irão vê-lo às 3h30 em ponto? Sim. É importante, parece-me. Mera formalidade, naturalmente. Investigação de praxe. Não creio que tome mais de dez minutos do tempo de Mr. Saye. Muito obrigado. Sim. Comissário Assistente Vallance. Perfeito. Scotland Yard. Sim. Muito grato. Até logo.

Vallance colocou o receptor no gancho e voltou-se para Bond.

— Diz a secretária que Mr. Saye só estará de volta às 3,30. Sugiro que vocês cheguem lá às 3,15. Não faz mal nenhum examinar antes o local.

Sempre é útil tirar um pouco o equilíbrio do homem que vocês vão visitar.

Como vai indo isso aí?

O Sargento Lobiniere segurou um espelho de bolso diante de Bond.

Um toque branco nas têmporas. A cicatriz eliminada. Vaga sugestão de concentração nos cantos dos olhos e da boca. Leves sombras debaixo das maçãs do rosto. Nada em que se pudesse colocar o dedo, mas tudo junto totalizava alguém que certamente não era James Bond.

 

 

 

4 - "Que se passa aqui?"

 

 


No CARRO DA patrulha, o Sargento Dankwaerts estava imerso em seus pensamentos. Em silêncio, percorreram toda a extensão do Strand, subiram Chancery Lane e foram sair em Holborn. Em Gamages entraram à esquerda para Hatton Garden, e o carro estacionou nas proximidades dos * portais alvos e limpos do London Diamond Club.

Bond seguiu o companheiro pela calçada até uma porta vistosa, no centro da qual havia uma lustrosa placa de bronze com a inscrição: "The House of Diamonds". Logo abaixo lia-se: "Rufus B. Saye. Vice-Presidente para a Europa". O Sargento Dankwaerts apertou a campainha. Uma bonita moça judia abriu a porta, levou-os por um corredor alcatifado e introduziu-os numa sala de espera apainelada.

— Estou esperando Mr. Saye a qualquer momento — explicou a moça com indiferença e retirou-se, fechando a porta.

A sala era luxuosa e, graças ao braseiro extemporâneo da lareira Adam, excessivamente calorenta. No centro do tapete cor-de-vinho e sem uma ruga havia uma mesa circular de pau-rosa Sheraton e seis poltronas, que Bond calculou terem custado pelo menos mil libras. Em cima da mesa espalhavam-se números recentes de revistas e vários exemplares do Diamond News de Kimberley. Os olhos de Dankwaerts brilharam ao verem essas publicações. Ele sentou-se e começou a folhear o número de junho.

Em cada uma das quatro paredes havia um quadro de flores numa moldura dourada. A tridimensionalidade desses quadros chamou a atenção de Bond, e ele deu alguns passos para examinar um deles. Não era pintura, mas um arranjo estilizado de flores naturais, dispostas por trás de vidros em nichos forrados de veludo acobreado. Todos eram iguais, e os quatro jarros Waterford em que se encontravam as flores formavam um conjunto perfeito.

A sala estaria mergulhada em completo silêncio não fosse o tiquetaque hipnótico de um grande relógio de parede em forma de sol irradiante e o brando murmúrio de vozes atrás de uma porta defronte da entrada. Ouviu-se um estalido, a porta abriu-se ligeiramente e uma voz com carregada entonação estrangeira tagarelou uma queixa: — Mas, Mister Grunspan, por que tanta inflexibilidade? Todos temos de ganhar a vida, não é assim? Estou lhe dizendo que esta maravilhosa pedra me custou dez mil libras. Dez mil! Não acredita em mim? Mas eu juro.

Palavra de honra!

Houve uma pausa de recusa e a voz lançou a derradeira proposta: — Melhor ainda! Aposto cinco libras com você! Soou uma gargalhada.

— Willy, você é o tal — falou uma voz americana. — Mas nada feito.

Gostaria de ajudá-lo, mas essa pedra não vale mais de nove mil, e por cima disso dou cem só pra você. Agora vá embora e pense na proposta que lhe fiz.

Você não achará oferta maior.

A porta abriu-se completamente e um homem de negócios americano, de pince-nez e boca severa, conduziu para fora um judeuzinho perplexo, que trazia uma enorme rosa vermelha enfiada no botão da lapela. Ambos ficaram espantados ao perceber que a sala de espera estava ocupada e, com um "Perdão" sussurrado a ninguém em particular, o americano quase empurrou o outro para o corredor. A porta fechou-se atrás deles.

Dankwaerts ergueu o olhar e piscou para Bond.

— Está aí em síntese todo o comércio de diamantes — disse ele. — Esse que saiu é Willy Behrens, dos mais conhecidos corretores da praça. Trabalha por conta própria. Suponho que o outro é o comprador de Saye.

Voltou à sua leitura, e Bond, reprimindo o impulso de acender um cigarro, continuou a examinar os "quadros" das flores.

De repente, o luxuoso, alcatifado e hipnótico silêncio da sala foi interrompido por um ruído semelhante ao do cuco de um relógio. No mesmo instante, uma acha de lenha caiu na lareira, o resplandecente relógio de parede bateu a meia hora, a porta abriu-se com violência e um homenzarrão moreno deu duas passadas rápidas dentro do quarto e estacou, olhando com firmeza de um para outro visitante.

— Meu nome é Saye — disse com aspereza. — Que se passa aqui? Que desejam vocês?

Tinha deixado a porta aberta. O Sargento Dankwaerts ergueu-se e, polido mas imperturbável, passou pelo homem e fechou-a. Depois, voltou ao centro da sala.

— Sou o Sargento Dankwaerts, da Agência Especial da Scotland Yard — disse ele numa voz calma e sossegada. <— E este — fez um gesto indicando Bond — é o Sargento James. Estou fazendo um inquérito de rotina acerca de uns diamantes roubados. Ocorreu ao Comissário Assistente — a voz era de veludo — que o senhor talvez pudesse nos ajudar.

— É? — falou Mr. Saye e olhou com desprezo para os dois policiais mal remunerados que tinham o desplante de lhe tomarem o tempo. — Prossiga.

Enquanto o Sargento Dankwaerts, num tom de voz que para um violador das leis teria soado ameaçadoramente uniforme e consultando a todo instante uma cadernetinha preta, recitava uma estória recheada das expressões "a 16 do corrente" e "chegou ao nosso conhecimento", Bond inspecionava abertamente Mr. Saye, que não pareceu mais perturbado com isso do que com os cicios do recitativo do Sargento Dankwaerts.

Mr. Saye era um tipo grandalhão e sólido, com a dureza de um pedaço de quartzo. Tinha a cara quadrada, cujas arestas eram acentuadas pelo cabelo de arame, curto e negro, cortado en brosse e sem costeletas. O rosto estava escanhoado e os beiços formavam uma linha reta, fina e comprida. O queixo retangular tinha uma fenda profunda e os músculos avultavam nas extremidades da mandíbula. Vestia um terno folgado, preto, de paletó saco, camisa branca e uma gravata preta quase da grossura de um enfiador de sapato, presa por um alfinete de ouro representando uma lança. Os braços compridos pendiam com naturalidade ao longo do corpo e terminavam em duas mãos enormes, agora ligeiramente fechadas, cujas costas cobriam-se de pêlos negros. Os pés avantajados, metidos num par de sapatos pretos e caros, deviam calçar 44.

Bond julgou-o um homem rude e eficiente, que tinha triunfado num bom número de escolas violentas e que parecia estar ainda cursando uma delas.

—...e essas são as pedras em que estamos particularmente interessados — concluiu o Sargento Dankwaerts, recorrendo à cadernetinha preta. — Um "Wesselton" de 20 quilates. Dois "Fine Blue-white" de cerca de 10 quilates cada um. Um "Yellow Premier" de 30 quilates. Um "Top Cape" de 15

quilates e dois "Cape Union" de 15 quilates. — Levantou a vista da caderneta e encarou os olhos negros e implacáveis de Mr. Saye. — Terá algum deles passado pelas suas mãos, Mr. Saye, ou por sua firma de Nova York? — perguntou no mesmo tom de voz.

— Não — respondeu secamente Mr. Saye. — Não passaram. — Deu meia volta, foi até a porta e abriu-a. — E agora, senhores, passem bem.

Sem lhes dar mais atenção, Mr. Saye saiu da sala e os dois ouviram-no galgar alguns degraus. Uma porta abriu-se, fechou-se e, por fim, silêncio.

Impávido, o Sargento Dankwaerts enfiou a caderneta no bolso do colete, pegou o chapéu, entrou no corredor e saiu para a rua. Bond seguiu-o.

Entraram no carro e Bond deu o endereço de seu apartamento, numa das transversais de King's Road. Quando o veículo se pôs em movimento, o Sargento Dankwaerts desafivelou a máscara oficial. Voltou-se para Bond e olhou-o divertido.

— Gostei da experiência — disse alegremente. — Não é todos os dias que a gente topa com um sujeito tão disposto. E o senhor, conseguiu o que queria?

Bond deu de ombros.

— Pra lhe dizer a verdade, Sargento, não sei exatamente o que é que eu queria. Mas estou satisfeito de ter visto Mr. Rufus B. Saye. O cara é pra valer mesmo, sabe? Só que não corresponde muito à ideia que eu faço de um homem que negocia com diamantes.

O Sargento Dankwaerts deu uma risadinha gutural.

— De diamante ele não entende nada — disse. — Aposto!

— Como é que o senhor sabe?

— Quando eu li a lista de pedras procuradas — o Sargento Dankwaerts sorriu deliciado — mencionei um "Yellow Premier" e dois "Cape Union".

— E daí?

— Acontece somente que não existem pedras com esses nomes.

 

 

                             CONTINUA