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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DIAMANTES SÃO ETERNOS
OS DIAMANTES SÃO ETERNOS

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

5 - "Feuilles mortes"

 

 


BOND SENTIU às suas costas o olhar do ascensorista, enquanto avançava pelo corredor comprido e silencioso em direção ao Apartamento 350. Não se surpreendeu. Sabia que se cometiam mais infrações neste do que em qualquer outro dos grandes hotéis de Londres. Vallance tinha-lhe mostrado certa vez o mapa mensal do crime na cidade. Apontara para a floresta de bandeirolas fincadas em torno do Trafalgar Palace e dissera: — Este local é a dor de cabeça dos homens que preparam esses mapas.

Todo mês fica tão perfurado que eles têm de colar nova folha de papel pra receber os alfinetes do mês seguinte.

Ao aproximar-se do fim do corredor, Bond começou a ouvir um piano que lançava ao ar as notas de uma melodia melancólica. À porta do 350, percebeu que a música vinha do quarto. Reconheceu a melodia. Era Feuilles Mortes. Bateu.

— Entre.

Haviam telefonado da portaria, e a voz o aguardava. Bond introduziu-se na sala de estar e fechou a porta.

— Feche com a chave — a voz vinha do quarto de dormir.

Bond obedeceu e depois, atravessando o centro da peça, foi postar-se defronte da porta aberta do quarto de dormir. Quando passou pela radiola portátil sobre a escrivaninha, o pianista começava a tocar La Ronde.

A mulher, seminua, estava escarranchada numa cadeira diante do toucador, e olhava por cima do espaldar para o espelho triplo. O queixo descansava sobre os braços cruzados no espaldar. A espinha arqueava-se, e havia arrogância no conjunto formado pela cabeça e pelos ombros. O cordão preto do porta-seios atravessado nas costas nuas, as calcinhas pretas rendadas e coladas nos quadris e o abandono das pernas fustigaram os sentidos de Bond.

Desviando o olhar da própria imagem, a moça inspecionou-o no espelho, rápida e friamente.

— Creio que você é o novo auxiliar — disse ela com indiferença, numa voz baixa e algo rouca. — Sente-se e aprecie a música. O melhor disco de música popular gravado até hoje.

Bond achou graça. Docilmente deu alguns passos até uma poltrona baixa e confortável, moveu-a um pouco do lugar de modo que pudesse ver a moça através da porta aberta e sentou-se.

— Posso fumar? — perguntou, sacando a cigarreira do i bolso e botando um cigarro na boca.

— Pode, já que é assim que pretende morrer.

Miss Case retomou a silenciosa contemplação do próprio rosto no espelho, enquanto o pianista tocava J'attendrai. Depois o disco chegou ao fim.

Com indiferença, ela sacudiu os quadris para fora da cadeira e ficou de pé. Inclinou ligeiramente a cabeça, e os cabelos louros, que caíam pesadamente sobre os ombros, curvaram-se com o movimento e apareceram iluminados.

— Pode virar o disco, se quiser — disse ela em tom displicente. — Estarei aí num minuto — e desapareceu num canto do quarto.

Bond foi até a radiola e apanhou o disco. Era George Feyer com acompanhamento de ritmo. Olhou para o número e gravou-o na memória.

Vox-500. Examinou o outro lado e, saltando La Vie en Rox para evitar as recordações, colocou a agulha no princípio de Avril au Portugal.

Antes de afastar-se da radiola, puxou com cuidado o mata-borrão que estava por baixo e levantou-o contra a lâmpada do quebra-luz ao lado da escrivaninha. Virou-o de lado e relanceou o olhar pela superfície. Não encontrou sinais. Sacudiu os ombros, tornou a enfiá-lo no lugar e voltou para a poltrona.

A música parecia combinar com a jovem. Era como se todas as melodias pertencessem a ela. Não admirava que esse fosse o seu disco preferido, pois tinha dela a sensualidade atrevida, a petulância das maneiras, o toque pungente que Bond vislumbrara nos olhos que o fitaram melancòlicamente do espelho.

Bond não se dera ao trabalho de imaginar a mulher que o vigiaria durante a viagem. Não poderia ser outra senão uma velhusca desenxabida, masculinizada, de olhos sem vida — uma mulher arrogante e cruel, "passada", cujo corpo já não tinha o menor interesse para a quadrilha que a empregava. E aí estava essa garota. Valente, sim, as atitudes o proclamavam.

Mas qualquer que fosse a estória de seu corpo, a pele irradiara vida sob a claridade.

Qual seria seu primeiro nome? Bond levantou-se outra vez e dirigiu-se ao toca-discos, de cuja alça pendia uma etiqueta da Pan American Airways, onde se lia: Miss T. Case. E esse T? Bond voltou para a poltrona. Teresa?

Tess? Thelma? Tilly? Não, esses nomes não quadravam. Mas não podia ser Trixie, nem Tony e muito menos Tommy.

Ainda se divertia com o problema, quando ela surgiu sem ruído na moldura da porta, encostou um cotovelo no portal, apoiou a cabeça na mão e olhou-o pensativa.

Bond ergueu-se sem pressa e retribuiu o olhar.

Ela estava pronta para sair. Mas o chapéu, minúsculo objeto preto, rodava nos dedos da outra mão. Vestia um elegante tailleur negro por cima de uma blusa verde-oliva abotoada no pescoço. Calçava meias de nylon, de um amarelo queimado, e sapatos pretos de crocodilo, de bico quadrado, que deviam ter custado muito dinheiro. Num dos punhos trazia um relógio fino, de ouro, preso a uma correia preta, e no outro uma grossa corrente de ouro.

Uma baguette chamejava no anular da mão direita e um brinco de pérola emoldurado em ouro aparecia na orelha direita que a abundante cabeleira loura deixava a descoberto.

Era bela em seu estouvamento, como se guardasse sua beleza para si e não ligasse à impressão que causava nos homens. Um caimento irônico das sobrancelhas delicadamente riscadas acima dos olhos grandes, rasos, acinzentados e algo desdenhosos, parecia dizer: — Venha. Experimente. Mas com cuidado.

Os próprios olhos tinham a qualidade rara da opalescência. Quando as jóias são opalescentes, a cor de sua refulgência se altera com o movimento da luiz. A cor dos olhos da moça parecia oscilar entre o cinzento claro e o cinza-azulado profundo.

A pele era levemente bronzeada, e o único vestígio de maquilagem residia no vermelho intenso dos lábios carnudos, macios, com o laivo de enfado necessário para produzir o efeito daquilo que se chama "boca pecadora". Mas, pensou Bond, decerto essa não teria pecado' muito, a julgar pelos olhos rasos e pela sugestão de autoridade e tensão que deles emanava.

Agora esses olhos cravaram-se, impessoais, nos de Bond.

— Então você é Peter Franks — disse a moça. Havia na voz abafada e agradável um tom de condescendência.

— Sou, sim — confirmou Bond. — Estou procurando descobrir o que é que o T significa.

Ela pensou um instante.

— Creio que pode descobrir na escrivaninha — disse ela. — Esse T é de Tiffany. — Foi até o toca-discos e desligou-o na metade de Je ríen connais pas Ia fin. Depois voltou-se: — Mas não é de domínio público — acrescentou com frieza.

Bond encolheu os ombros, dirigiu-se para a janela, encostou-se ao peitoril e cruzou os pés.

Sua despreocupação pareceu irritá-la. Ela sentou-se à escrivaninha.

— Bem, agora — disse ela com impaciência — falemos de negócios.

Em primeiro lugar, por que aceitou esse trabalho?

— Alguém morreu.

— Oh — ela o encarou com espanto. — Disseram-me que o seu ramo era furto. — E após uma pausa: — Em luta ou a sangue frio?

— Em luta.

— E você quer se safar.

— É. Isso e o dinheiro. Ela mudou de assunto.

— Tem perna de pau? Dentes postiços?

— Não. Tudo é real.

Ela franziu a testa.

— Peço sempre que me mandem um homem com uma perna de pau.

Mas está bem. Algum passatempo favorito? Mania por alguma coisa? Tem alguma ideia a respeito do transporte das pedras?

— Não — disse Bond. — Jogo baralho e golfe. Mas creio que as alças de malas e maletas são bons lugares para esse tipo de coisa.

— O pessoal da alfândega também pensa assim — disse ela secamente.

Ficou em silêncio por uns instantes, refletindo. Depois, puxou uma folha de papel e um lápis. — Qual é o tipo de bola de golfe que você usa? — perguntou com ar sério.

— É o que chamam Dunlop 65 — ele também tinham o ar sério. — É

uma ideia!

Ela não fez nenhum comentário, mas anotou o nome. Levantou a vista: — Tem passaporte?

— Bom, tenho um — admitiu Bond. — Mas está em meu verdadeiro nome.

— Oh. — Novamente ela se tornou desconfiada. — E qual seria esse nome?

— James Bond.

Ela riu com desdém.

— Também serve. — Deu de ombros. — Afinal, tanto faz. Pode obter um visto do Consulado americano em dois dias? E um atestado de vacina?

— Não vejo por que não possa — respondeu Bond (O Departamento Q

arranjaria tudo isso). — Não há nada contra mim na América. Nem na polícia daqui. Nada que me impeça de viajar. Isto é, no nome de Bond.

— Ótimo — disse ela. — Agora, preste atenção. A Imigração vai querer saber disso. Nos Estados Unidos você vai ser hóspede de um homem chamado Tree. Michael Tree. E vai ficar no Astor de Nova York. Tree é um amigo seu. Vocês se conheceram durante a guerra. — Ela se pôs mais à vontade. — Para seu governo, esse homem realmente existe e confirmará sua estória. Mas nem todos sabem que ele se chama Michael. "Shady" Tree é como é chamado pelos amigos... se é que tem algum — concluiu com azedume.

Bond sorriu.

— Ele não é tão engraçado como você pensa — disse, ríspida.

Em seguida abriu uma gaveta da escrivaninha e tirou um maço de cédulas de cinco libras, envoltas num elástico. Folheou-as apressadamente com o polegar, separou mais ou menos a metade e colocou de volta na gaveta. Enrolou as restantes, prendeu-as com o elástico e atirou o pacote para Bond, que se curvou para a frente e aparou-o quase no soalho.

— Aí estão umas quinhentas libras mais ou menos — disse ela. — Reserve acomodações no Ritz e dê o endereço do hotel à Imigração. Arranje uma boa maleta já usada e ponha nela tudo que normalmente se leva para uma temporada de golfe. Não esqueça os seus tacos. Desapareça da circulação. Compre passagem no Monarch da BOAC para Nova York.

Quinta-feira de noite. Amanhã logo cedo tire a passagem. Sem ela, a embaixada não lhe dará o visto. O carro irá apanhá-lo no Ritz às 6,30.

Quinta-feira de noite. O chofer lhe entregará as bolas de golfe. Vai colocá-

las na sua bagagem. E... — fitou-o nos olhos — não pense que vai poder desaparecer sozinho com os diamantes. O chofer ficará a seu lado até que a bagagem seja transportada para o avião. E eu estarei no aeroporto de Londres. Assim, é melhor não tentar nenhuma falseta. Entendido?

Bond encolheu os ombros.

— O que é que eu poderia fazer com esse tipo de mercadoria? — disse ele com indiferença. — É muito alto pra mim. E o que vai acontecer quando eu chegar a Nova York?

— Outro chofer estará aguardando do lado de fora da alfândega. Ele lhe dirá então o que tem de fazer. Veja bem — havia certa ânsia na voz da moça — se acontecer alguma coisa na alfândega, aqui ou lá, você banca o inocente. Não sabe de nada, entendeu? Não sabe como as bolas foram parar na sua bagagem. A todas as perguntas você vai respondendo: "Eu?". Não diz mais nada. Eu estarei observando. Talvez outros também estejam. Isso eu sei. Se for preso na América, recorra ao Cônsul britânico e insista nisso. Não receberá nenhuma ajuda de nossa parte. Mas é para isso que está sendo pago. Entendido?

— Perfeitamente — respondeu Bond. — Você seria a única pessoa com quem eu poderia me encrencar. — Olhou-a com interesse. — Eu não queria que isso acontecesse.

— Bobagem — disse ela com desdém. — Você não tem nada comigo. E

nem precisa se preocupar, meu amigo. Sei cuidar de mim mesma. — Ergueu-se, deu alguns passos e parou diante dele. — E nada de assumir esses ares de meu protetor — disse com rispidez. — Estamos tratando de negócios. Sei me defender sozinha, mais do que você pensa.

Bond aprumou-se e deixou o peitoril da janela. Deu um sorriso para os olhos cinzentos e brilhantes que estavam agora escuros de impaciência.

— "Sei fazer tudo melhor do que você". Calma. Você não terá queixa de mim. Mas sossegue e largue essa eficiência por um instante. Gostaria de vê-la outra vez. Será que a gente pode encontrar-se em Nova York, caso tudo corra bem?

Bond sentiu que estava sendo desleal ao pronunciar essas palavras.

Gostava da moça. Queria fazer amizade com ela. Mas isto significava usar a amizade para penetrar mais a fundo na organização para a qual ela trabalhava.

Ela o encarou, pensativa, por alguns instantes e, pouco a pouco, os olhos foram clareando. Os lábios apertados relaxaram-se e se entreabriram ligeiramente. Quando voltou a falar, pareceu hesitante.

— Eu, ah... quero dizer — deu as costas a ele bruscamente. — Diabo! — exclamou, mas a palavra soou artificial. — Não tenho nada pra fazer sexta-feira de noite. Acho que poderíamos jantar juntos. Clube 21, na Rua 52.

Todos os motoristas de táxi conhecem o lugar. Às oito horas. Isto é, se tudo correr bem. Convém a você? — Voltou-se para o homem, olhando-o na boca e não nos olhos.

— Ótimo — disse Bond e pensou que já era tempo de ir embora antes que cometesse alguma tolice. — Bem — falou com jeito de homem prático.

— Há mais alguma coisa?

— Não — ela respondeu. E então, de repente, como se lhe tivesse ocorrido uma lembrança, perguntou: — Que horas são?

Bond consultou o relógio.

— Dez para as seis.

— Tenho o que fazer agora — disse ela. Como se o despedisse, caminhou para a porta. Bond seguiu-a. Com a mão na chave, ela se voltou e encarou-o. — Você se sairá bem — falou. — Mas mantenha-se longe de mim no avião. Não se deixe tomar de pânico se houver alguma dificuldade.

Se se sair bem — voltou-lhe à voz a nota de condescendência — arranjarei mais serviço para você.

— Obrigado — disse Bond. — Isso me alegra. Gostaria de trabalhar com você.

Com leve meneio de ombros, ela abriu a porta e Bond passou para o corredor.

— Irei vê-la no 21 — disse ele.

Desejava falar mais, encontrar uma desculpa para ficar ao lado dela, ao lado dessa moça solitária, que ouvia música no toca-discos e se contemplava no espelho. Agora, porém, ela lhe parecia distante. Podia ser uma estranha.

— Está bem — disse ela com indiferença. Fitou-o uma vez mais; depois, devagar mas com firmeza, fechou-lhe a porta no nariz.

Enquanto Bond caminhava pelo corredor em direção ao elevador, a moça postou-se junto à porta, atenta às passadas, e lá ficou até que elas se dissiparam. Depois, com olhar meditativo, aproximou-se lentamente do toca-discos e ligou-o. Apanhou o disco de Feyer e procurou a faixa que desejava ouvir. Colocou o disco no prato e a agulha no sulco. A melodia era Je ríen connais pas Ia fin. E, enquanto escutava a música, ia pensando no homem que de um momento para outro, inesperadamente, entrara em sua vida. Deus do céu, disse para si mesma com _ súbito desespero furioso, outro vigarista!

Não poderia ela nunca ver-se livre deles? Mas quando a música parou, seu rosto estava feliz. Cantarolando a melodia com a boca fechada, empoou o nariz e preparou-se para sair.

Ao chegar à rua, parou e olhou para o relógio. Seis e dez. Dispunha de cinco minutos. Cruzou Trafalgar Square e encaminhou-se para a estação de Charing Cross, arranjando mentalmente as frases que deveria proferir.

Entrou na estação e foi direta à cabina telefônica que sempre usava.

Eram precisamente 6,15 quando discou o número em Welbeck. Após as duas costumeiras campainhadas, ouviu o estalido do gravador automático registrando a chamada. Durante vinte segundos escutou apenas o chiado forte de uma agulha girando sobre a cera. Depois, a voz neutra que era seu desconhecido patrão disse uma única palavra: "Fale". Voltou, então, o silêncio entrecortado pelo chiado do gravador.

Havia muito deixara ela de se perturbar com a ordem abrupta e incorpórea. Falou rapidamente e com clareza dentro do bocal negro: — De Case para ABC. Repetindo: Case para ABC. — Fez uma pausa. — Portador satisfatório. Diz que o nome verdadeiro é James Bond e usará esse nome no passaporte. Joga golfe e levará tacos. Sugere bolas de golfe. Usa Dunlop 65. Todas as outras providências foram ajustadas. Pedirei confirmação às 19h15 e 20h15. Nada mais.

Escutou por um momento o chiado do gravador. Colocou o fone no gancho e voltou para o hotel. Ligou para o serviço do hotel e pediu um martini seco duplo. Quando este chegou, ela sentou-se, acendeu um cigarro, pôs o toca-discos em funcionamento e esperou até as 7h15.

Depois, ou talvez só depois de ter discado outra vez às 8,15, ouviu a voz neutra e abafada no receptor: — ABC para Case. Repetindo: ABC para Case... — e seguiram-se as instruções.

E em algum lugar, num quarto alugado de Londres, o chiado do gravador parou quando ela botou o fone no gancho. Então, é possível que uma porta se tenha fechado, passos tenham descido cautelosamente uma escada e desaparecido na rua.

 

 

 

6 - Em trânsito

 

 


ERAM SEIS HORAS da noite de quinta-feira. Bond arrumava a maleta em seu quarto no Ritz. Era uma valise Revelation, de couro de porco, cara mas usada. O conteúdo era adequado ao disfarce do viajante. Traje a rigor; um terno leve, preto e branco, para o campo e o golfe; sapatos Sàxone de golfe; uma companheira de fatiota de estambre tropical azul-escuro; camisas de seda branca e de algodão Sea Island, azul-escuro, de colarinho e de mangas curtas; meias, gravatas, roupa de baixo de nylon e dois compridos paletós de pijama, de seda, que ele usava em lugar dos pijamas de duas peças.

Nenhuma dessas coisas levava, nem tinha levado alguma vez, quaisquer marcas ou iniciais.

Terminada essa tarefa, Bond passou a colocar numa pasta, também de couro de porco e já usada, o resto de suas coisas: material de barba e banho, o livro de Tommy Armour, Como Jogar Sempre Bem o Golfe, as passagens e o passaporte. A pasta lhe tinha sido arranjada pelo Departamento Q e continha um compartimento estreito sob o couro, no fundo, onde se escondiam um silenciador para sua arma e trinta cartuchos de munição calibre 25.

O telefone tocou. Bond supôs que fosse o carro, um pouco antes da hora aprazada. Mas era da portaria do hotel, e lhe informavam que estava lá em baixo um representante da "Exportadora Universal" com uma carta para lhe ser entregue pessoalmente.

— Mande subir — disse Bond, intrigado.

Alguns minutos depois abriu a porta para um homem à paisana, que reconheceu como um dos mensageiros da sede do Serviço.

— Boa noite — disse o homem, tirando do bolso do paletó um grande envelope comum e passando-o às mãos de Bond. — Devo aguardar e levar isto de volta depois que o senhor o tiver lido.

Bond abriu o envelope branco e rompeu o sinete do envelope azul que vinha dentro.

Encontrou uma folha de papel de ofício azul, datilografado, sem endereço nem assinatura. Bond identificou os caracteres graúdos empregados nas comunicações pessoais de M.

Indicou uma cadeira ao mensageiro e foi sentar-se à escrivaninha diante da janela.


Washington (dizia o memorando) informa que Rufus B. Saye não é outro senão Jack Spang, de quem se suspeita ser o gangster mencionado no relatório Kefauver, mas que não registra antecedentes criminais. É, entretanto, irmão gêmeo de Seraffimo Spang, com quem chefia a chamada "Turma de Spang", que opera em diversas partes do território norte-americano. Os irmãos Spang adquiriram o controle da House of Diamonds há cinco anos, "a título de investimento". Não há nada contra essa firma, que parece perfeitamente legal.

Os irmãos mantêm também uma "rede de palpites" que serve aos corretores de apostas não autorizados, de Nevada e Califórnia, e é, portanto, ilegal. O nome dessa organização é Infalível. Possuem ainda o Tiara Hotel de Las Vegas. Este é o quartel-general de Seraffimo Spang e também, para se beneficiarem das leis tributárias de Nevada, o escritório central da House of Diamonds.

Washington acrescenta que a Turma de Spang tem interesse em outras atividades criminosas, como narcóticos e prostituição organizada. Tais atividades são dirigidas de Nova York por Michael (Shady) Tree, que já foi preso cinco vezes por delitos vários. A quadrilha tem agentes em Miami, Detroit e Chicago.

Washington qualifica a Turma de Spang entre as mais poderosas quadrilhas dos Estados Unidos, acobertada por alguns setores das administrações estaduais e federal e pela polícia. Disputa o primeiro lugar com o grupo de Cleveland e dos "Vermelhos" de Detroit.

Nosso interesse nessas questões não foi dado a conhecer a Washington. Mas na hipótese de que as suas investigações o levem a estabelecer contactos perigosos com essa quadrilha, informe-nos imediatamente. Será então afastado do caso, o qual passará aos cuidados do FBI. Isto é uma ordem. A devolução deste documento num envelope timbrado será entendida como um sinal de que você recebeu esta ordem.

Não havia assinatura. Bond correu os olhos outra vez pelo papel, dobrou-o e colocou-o num envelope do Ritz. Ergueu-se e entregou o envelope ao mensageiro.

— Muito obrigado — disse Bond. — Sabe onde fica a escada?

— Sei sim, muito obrigado — disse o mensageiro. Caminhou para a porta e abriu-a. — Boa noite, senhor.

— Boa noite.

A porta fechou-se sem ruído. Bond atravessou o quarto e, na janela, pôs-se a contemplar Green Park.

Por um momento recordou com nitidez o vulto magro e envelhecido, recostado na cadeira em seu gabinete tranquilo.

Entregar o caso ao FBI? Bond sabia que M falava sério. Mas também sabia quanto seria penoso para M ter de pedir a Edgar Hoover que ficasse à frente de um caso do Serviço Secreto e tirar do fogo as castanhas da Grã-Bretanha.

— As palavras importantes do memorando eram "contactos perigosos".

E o que constituía "contacto perigoso" caberia a Bond decidir. Em comparação com os adversários que enfrentara antes, esses desordeiros não eram lá grande coisa. Ou eram? Bond lembrou-se então da cara quadrada, de quartzo, de Rufus B. Saye. Bom, de qualquer maneira não poderia haver mal nenhum em dar uma olhada no irmão de nome exótico. Seraffimo. Nome de garçom de buate ou de vendedor ambulante de sorvete. Mas esse pessoal era assim mesmo. Barato e teatral.

Bond deu de ombros. Consultou o relógio. 6,25. Passou a vista pelo quarto. Tudo estava pronto. Num impulso, pôs a mão direita por dentro do paletó e puxou a Beretta calibre 25 do boldrié de camurça, suspenso pouco abaixo da axila esquerda. Era a nova arma que M lhe havia dado "como um memento", depois da última missão, com uma nota escrita com a tinta verde de M: Você pode precisar disto.

Bond foi até a casa, removeu o pente e lançou na colcha de rendas o cartucho que estava na câmara. Experimentou várias vezes o mecanismo e sentiu a tensão na mola do gatilho quando pressionou e disparou a arma vazia. Puxou para trás a culatra, verificou que não havia poeira em volta do pino, que passara tanto tempo a limar, e correu a mão pelo cano azul, de cuja ponta tinha serrado pessoalmente a rombuda massa de mira. Depois recolocou o cartucho no pente e o pente no alojamento, examinou o mecanismo pela última vez, armou o registro de segurança e tornou a enfiar a arma dentro do paletó.

O telefone tocou.

— Seu automóvel acaba de chegar, senhor.

Bond repôs o receptor no gancho. Então chegara o momento. A partida.

Dirigiu-se pensativamente à janela e mais uma vez espraiou o olhar pelas árvores verdes. Sentiu ligeiro vácuo no estômago, uma angústia inesperada ao cortar as amarras com aquelas árvores verdes que representavam Londres no auge do verão, uma impressão de isolamento ao pensar no alto edifício de Regents Park, a fortaleza que iria ficar fora de alcance, a menos que gritasse por socorro, o que, sabia, não faria nunca.

Houve uma batida na porta. Era o rapaz que vinha buscar a bagagem.

Bond seguiu-o pelo corredor. Varrera tudo da mente, exceto a expectativa do que o aguardava à boca do tortuoso conduto, escancarado para o receber do lado de fora das portas de vaivém do Ritz Hotel.

O carro era um Armstrong Siddeley Sapphire negro, chapa vermelha.

— Vai gostar de vir na boleia — disse o chofer uniformizado.

Não era um convite. A bagagem e os tacos de golfe foram arranjados no assento traseiro. Bond sentou-se comodamente e, enquanto entravam em Piccadilly, observou a fisionomia do motorista. Tudo quanto podia ver era um perfil duro e anônimo debaixo de um boné pontiagudo. Os olhos escondiam-se por trás de uns óculos escuros. As mãos protegidas por luvas de couro dirigiam com perícia.

— Acalme-se e aprecie a paisagem. — O sotaque era de Brooklyn. — Não queira puxar conversa, que me deixa nervoso.

Bond fez um ar de riso e não respondeu. Portou-se como o outro mandou. Quarenta anos, pensou. 78 quilos. Um metro e setenta e sete. Bom chofer. Conhecedor do trânsito londrino. Nenhum cheiro de fumo. Sapatos caros. Bem vestido. Nem sombra de bebida. Barbeia-se cuidadosamente duas vezes por dia com barbeador elétrico.

Depois do desvio no fim de Great West Road, o chofer parou à beira da estrada. Abriu o porta-luvas e retirou com toda a atenção seis novas Dunlop 65, acondicionadas em papel preto e com os selos intactos. Deixando o motor em ponto morto, abandonou a boleia e abriu a porta traseira. Bond olhou por cima do ombro e viu o homem desafivelar a sacola da maleta de golfe e introduzir, uma a uma, as seis bolas entre as velhas e novas que a sacola já continha. Depois, sem dar uma palavra, montou na boleia e pôs o carro em movimento.

No aeroporto, Bond atravessou despreocupado a rotina de bagagem e passagem, comprou o Evening Standard, permitindo que seu braço, quando procurava as moedas no bolso, roçasse uma loura bonita, num costume cor de bronze, que folheava preguiçosamente uma revista mundana, e, acompanhado pelo chofer, seguiu atrás da bagagem para o balcão da alfândega.

— Só objetos de uso pessoal?

— Só.

— E quanto leva em moeda inglesa?

— Umas três libras e algum dinheiro miúdo.

— Muito obrigado, senhor.

O giz azul riscou uma garatuja nas três maletas, o carregador apanhou a bagagem e jogou no carrinho.

— Siga a lâmpada amarela para a Imigração, senhor — disse o carregador e saiu empurrando o carrinho para o compartimento de carga.

O chofer dirigiu uma saudação irônica a Bond, que divisou por um instante a mancha de dois olhos, por trás dos vidros escuros dos óculos, e os lábios apertados num meio sorriso.

— Boa noite, meu senhor. Boa viagem.

— Muito obrigado, meu valete — respondeu Bond alegremente e teve a satisfação de ver sumir-se o sorriso quando o chofer deu meia volta e saiu apressado.

Bond apanhou a pasta, mostrou o passaporte a um jovem simpático, com cara de menino, que lhe ticou o nome na lista de passageiros, e entrou na sala de embarque. Ouviu, bem às suas costas, a voz abafada de Tiffany Case dizer "muito obrigada" ao jovem de cara de menino. Um momento depois ela entrou na sala e escolheu uma cadeira entre Bond e a porta. Bond reprimiu um sorriso. Era onde ele teria sentado se estivesse nos calcanhares de alguém que fosse necessário vigiar.

Bond abriu o Evening Standard e pôs-se a observar os outros passageiros por cima do jornal.

O avião devia estar lotado. Bond chegara muito tarde para reservar um leito, e sentiu alívio ao ver que entre as quarenta pessoas da sala não havia uma só cara conhecida. Vários ingleses, duas das freiras que habitualmente cruzam o Atlântico no verão

— Lourdes, talvez — americanos, a maioria homens de negócios, dois meninos de colo para não deixar ninguém dormir, e um punhado de europeus indefiníveis. A carga de sempre, pensou Bond, conquanto admitisse que se dois dos passageiros, ele próprio e Tiffany Case, tinham seus segredos, não havia razão para que vários desses tipos insípidos não tivessem também missões estranhas a cumprir.

Bond sentiu que estava sendo observado, mas era somente o olhar vago de dois dos homens que ele havia catalogado entre os negociantes americanos. Os olhos de ambos desviaram-se dele, e um dos homens, jovem de rosto mas de cabeça encanecida, murmurou alguma coisa para o outro. Os dois puseram-se em pé, pegaram os Stetsons, que, apesar do verão estavam encaixados em capas impermeáveis, e passaram para o bar. Bond ouviu-os pedir doses duplas de conhaque e água. O segundo homem, que era pálido e gordo, tirou um vidrinho do bolso e engoliu uma pílula com o conhaque.

Dramamina, presumiu Bond. O homem devia passar mal no avião.

A despachantes de voo da BOAC aproximou-se de Bond. Segurou o telefone — para o controle de voo, imaginou Bond — e disse:

— Tenho quarenta passageiros na sala de embarque. Aguardou a aprovação, depois colocou o telefone no gancho e apanhou o microfone.

— Atenção, Sala de Embarque.

Auspicioso início de travessia do Atlântico, refletiu Bond. Em breve estavam todos atravessando a pista de macadame alcatroado e entrando no gigantesco Boeing. Pouco depois, com uma rajada de fumaça de petróleo e metanol, os motores começavam a trabalhar, um a um. O comissário anunciou pelo alto-falante que a próxima escala seria Shannon, onde jantariam, e que o tempo de voo seria de uma hora e cinquenta minutos. Afinal, o imenso avião estratosférico, de dois andares, rolou lentamente na pista leste-oeste. A aeronave tremeu nos freios quando o piloto acelerou os quatro motores, um por um, até atingir a velocidade de decolagem, e pela janela Bond acompanhou o teste das aletas. Depois, o aparelho virou-se devagarinho para o poente, houve um abalo quando os freios se soltaram, e o gramado nos dois lados da pista achatou-se, enquanto, ganhando velocidade, o Monarch vencia zunindo as duas milhas de concreto e se erguia no rumo do oeste, tendo como derradeiro alvo outro tapete de concreto na outra banda do mundo.

Bond acendeu um cigarro e se preparava para ler seu livro quando o espaldar da cadeira da esquerda, à sua frente, arriou de súbito a seu lado. Era um dos dois homens de negócios americanos, o gordo, que se derreava na poltrona, tendo ainda o cinto de segurança amarrado ao ventre. O rosto estava esverdeado e suarento. Segurava uma pasta atravessada no peito, e Bond leu o nome impresso no cartão de visita inserido na etiqueta de couro: Mr. W. Winter. Abaixo do nome, em maiúsculas vermelhas, lia-se: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.

Pobre diabo, pensou Bond. Está apavorado. Está certo de que o avião vai cair. Apenas espera que os homens que o tirarão dos escombros lhe deem uma transfusão de sangue igual ao seu. Para ele, este avião nada mais é do que um tubo gigantesco — repleto de peso morto anônimo, sustentado no ar por algumas tomadas cintilantes e guiado para seu destino por uns fiapos de eletricidade. Não confia no aparelho, nem nas estatísticas de segurança.

Sofre dos mesmos temores de quando era menino— medo do rumor, medo de cair. Não se atreve sequer a ir ao banheiro com receio de que o piso do avião se desmanche quando ficar em pé.

Uma silhueta rompeu os raios do sol que inundavam a cabina, e Bond desviou o olhar do homem. Era Tiffany Case. Ela passou por Bond, indo em direção à escada que conduzia ao bar no andar inferior, e desapareceu. Bond gostaria de segui-la. Mas deu de ombros e esperou pela passagem do aeromoço empurrando o carrinho com coquetéis, caviar e canapés de salmão defumado. Agarrou mais uma vez o livro e leu uma página sem entender nada. Afastou do espírito a imagem da moça e recomeçou a leitura.

Bond tinha lido um quarto do livro quando sentiu um mal-estar nos ouvidos. O avião iniciava a descida de cinquenta milhas em busca da costa ocidental da Irlanda. "Apertem os cintos. Não fumem". Surgiu, então, o holofote verde-e-branco de Shannon, o vermelho e o ouro da rota iluminada aproximaram-se céleres, e, segundos depois, brilhou o azul intenso das luzes da pista, entre as quais o aparelho correu para o local de desembarque. Bife e champanha ao jantar, mais a maravilhosa taça de café quente misturado com uísque irlandês e coroado por meia polegada de creme espesso. Um rápido olhar pelas bugigangas das vitrinas do aeroporto: rosários irlandeses de chifre, harpa irlandesa de carvalho das turfeiras, duendes irlandeses de latão, todos a um dólar e cinquenta, e o horripilante chalé musical irlandês, de quatro dólares, as peludas e insuportáveis roupas de tweed, as delicadas toalhinhas e guardanapos de linho irlandês. Por fim, irrompeu no alto-falante a burundanga irlandesa, em que só eram inteligíveis as palavras "BOAC" e "Nova York", e seguiu-se a tradução em inglês. Um último olhar lançado à Europa, e logo depois elevavam-se a 15 000 pés, tomando o rumo do próximo contacto com a superfície da Terra, emitindo sinais de rádio para os navios meteorológicos Jig e Charlie, que marcam passo ao sabor da rosados-ventos em alguma parte do Atlântico.

Bond dormiu bem e, ao acordar, estavam chegando à costa meridional da Nova Escócia. Foi ao banheiro, barbeou-se, gargarejou, expelindo da boca o gosto de uma noite de ar pressurizado, retornou ao seu lugar entre as filas de passageiros estremunhados e amarfanhados, e teve seu costumeiro instante de alegria quando o sol despontou na orla do mundo e a aurora tingiu de sangue a cabina.

Pouco a pouco, com o raiar do dia, o avião tornou à vida. Vinte mil pés abaixo as casas começaram a destacar-se como grãos de açúcar espalhados num tapete escuro. Nada se movia na superfície da Terra, exceto a larva fina da fumaça de um trem, a seta retilínea e alva da esteira de um pesqueiro cruzando um estreito, o lampejo de cromo de um minúsculo automóvel apanhado pelo sol; mas Bond quase podia ver os movimentos das corcovas sonolentas que começavam a despertar sob os lençóis, e, nos pontos em que um filete de fumaça rasgava o ar tranquilo da manhã, podia aspirar o cheiro do café coado nas cozinhas.

Serviram o café da manhã, essa incongruente mistura de alimentos que nos anúncios da BOAC é apresentada como típica de uma casa de campo inglesa, e o comissário distribuiu os questionários da alfândega norte-americana — Fórmula N.° 6063 do Departamento do Tesouro. Bond leu a letrinha miúda do impresso — omitir qualquer objeto ou deliberadamente prestar declarações falsas... multa ou prisão ou ambas — e escreveu Objetos de Uso Pessoal, assinando despreocupadamente a mentira.

E durante três horas o avião pairou imóvel no ar; apenas as réstias brilhantes do sol, oscilando vagarosamente para cima e para baixo nas paredes da cabina, davam a impressão de movimento. Afinal, Boston apareceu esparramada lá em baixo, depois foi a vez do arrojado desenho das auto-estradas de Nova Jérsey, e voltou o mal-estar aos ouvidos de Bond com a descida sobre o labiríntico manto dos subúrbios de Nova York. Vieram, então, em sucessão, o silvo e o cheiro enjoativo da bomba inseticida, o gemido estridente, hidráulico, dos freios de ar e do trem de pouso que baixava, o mergulho do nariz do avião, o violento encontrão dos pneus na pista, o feio bramido das hélices invertidas para reduzir a velocidade do avião, o sacolejante avanço por cima do gramado a caminho do pátio de manobras, o estardalhaço da porta que se abria. Tinham chegado.

 

 

7 - "Shady" Tree

 


O FUNCIONÁRIO DA alfândega, um tipo pançudo e descansado, com manchas escuras de suor nos sovacos da camisa cinzenta da farda, caminhou sem pressa da mesa do Supervisor para o local onde Bond se encontrava, tendo à frente os três volumes de sua bagagem, arrumados no compartimento da letra B. Na porta contígua, letra c, a moça tirou da bolsa um maço de Parliaments e colocou um cigarro na boca. Bond ouviu vários estalidos impacientes do isqueiro e um clique mais agudo quando ela repôs o isqueiro na bolsa e travou o fecho. Bond estava consciente de que ela o vigiava.

Desejou que o nome da moça principiasse com z; assim não a teria a seu lado. Zarathustra? Zacharias, Zophany...?

— Mr. Bond?

— Sim.

— É sua assinatura?

— É, sim.

— Objetos de uso pessoal, somente?

— Só.

— Está bem, Mr. Bond.

O homem destacou um selo do talão e colou-o na maleta. Fez a mesma coisa na pasta. Aproximou-se dos tacos de golfe e deteve-se, com o talão na mão. Levantou a vista. — Qual o escore, Mr. Bond?

Bond não entendeu direito.

— São tacos de golfe.

— Estou vendo — disse o homem, paciente. — Mas, qual o seu escore normal?

Bond teve vontade de esmurrar.

— Ah, oitenta e poucos, creio.

— Nunca na vida cheguei aos cem — disse o funcionário e pregou um bendito selo no flanco da maleta, a poucas polegadas do mais vultoso contrabando que já passou por Idlewild. — Boas férias, Mr. Bond.

— Muito obrigado — respondeu Bond.

Fez um aceno para o carregador e seguiu a bagagem até a última barreira, onde estava o Inspetor. A demora foi breve. O homem curvou-se e procurou os selos, carimbou-os e indicou a saída.

— Mr. Bond?

A voz vinha de um homem de rosto fino e comprido, cabelo cor de lama e olhar duro. Trajava calça esporte marrom escura e camisa cor-de-café.

— Estou com um carro à sua espera.

Quando ele se virou e, tomando a dianteira, saiu para a manhã quente e ensolarada, Bond notou-lhe a saliência quadrangular no bolso traseiro da calça. Pelo formato era uma automática de pequeno calibre. Típico, pensou Bond. Rotineiro. Esses bandidos americanos eram óbvios demais. Tinham lido muitas estórias em quadrinhos e visto muitos filmes de gangsters.

O carro era um Oldsmobile Sedan negro. Bond não esperou pela ordem.

Tomou assento na boleia e deixou que o outro se encarregasse de arrumar a bagagem e gratificar o carregador. Quando deixaram a melancólica pradaria de Idlewild e fundiram-se na corrente do tráfego de Van Wyck Parkway, Bond achou que devia dizer qualquer coisa.

— Como vai o tempo aqui?

O motorista não tirou os olhos da estrada.

— Aí pelos trinta e poucos, mais ou menos.

— Quente pra burro — disse Bond. — Em Londres pouco passa de vinte.

— Verdade?

— Qual é o programa agora? — perguntou Bond depois de uma pausa.

O homem olhou para o espelho retrovisor e manobrou para a pista do centro. Durante um quarto de milha ocupou-se em cortar um grupo de carros vagarosos nas pistas interiores. Quando chegaram a um trecho vazio da estrada, Bond repetiu a pergunta:

— Qual é o programa?

O chofer olhou-o de esguelha.

— Shady quer vê-lo.

— Quer? — disse Bond.

De súbito sentiu-se impaciente e perguntou a si mesmo quando iria entrar em choque com aquela gente. A perspectiva não era das melhores. Sua tarefa era continuar dentro do negócio e avançar o mais possível. A qualquer sinal de independência ou discordância, seria posto à margem. Tinha de se humilhar e prosseguir. Era preciso acostumar-se à ideia.

Tomaram o caminho de Manhattan e foram margeando o rio. Depois, cruzaram a cidade e saíram no meio da Rua 46 Oeste, o Hatton Garden de Nova York. O chofer estacionou em fila dupla diante de uma fachada que nada tinha de especial. O ponto de destino de Bond estava encaixado entre uma ourivesaria de aspecto desmazelado e uma elegante frontaria revestida de mármore negro. O letreiro em itálico prateado, acima do mármore negro da entrada, era tão discreto que Bond não o teria decifrado se não carregasse o nome num canto da memória. Dizia: "The House of Diamonds, Inc.".

Quando o carro parou, um homem desceu da calçada e se aproximou do chofer:

— Tudo em ordem?

— Tudo. O patrão tá aí dentro?

— Tá sim. Quer que vá guardar o carro?

— Ah, ótimo. — O chofer voltou-se para Bond. — Chegamos, companheiro. Vamos tirar os trecos.

Bond desceu e abriu a porta traseira. Apanhou a pasta e fez um gesto em direção aos tacos de golfe.

— Deixe os tacos comigo — disse-lhe o chofer às suas costas.

Bond obedeceu e arrastou a maleta. O chofer agarrou os tacos e bateu a porta do carro. O outro homem já estava ao volante, e quando Bond chegou à calçada e entrou no edifício, atrás do chofer, o carro já se tinha emaranhado no tráfego.

O homem que estava dentro de um cubículo, no saguão, levantou a vista da seção de esportes do The News, quando os dois entraram.

— Ai — fez ele, dirigindo-se ao chofer e examinando Bond.

— Ai — disse o chofer. — Podemos deixar as maletas com você?

— Bota aí — respondeu o homem. — Vão ficar bem guardadas — e atirou a cabeça para trás.

O chofer, com os tacos no ombro, esperou por Bond à porta de um elevador no fundo do saguão. Quando Bond passou para dentro do elevador, o chofer apertou o botão do quarto andar. Subiram em silêncio e foram sair em outro saguão, com duas cadeiras, uma mesa, uma grande escarradeira de latão e um cheiro quente e desagradável.

Atravessaram o tapete puído e chegaram a uma porta envidraçada, na qual o chofer deu uma batida e entrou sem esperar pela resposta. Bond seguiu-o e fechou a porta.

Sentado a uma escrivaninha, estava um homem de cabelo vermelho brilhante e cara redonda, grande e tranquila. Tinha diante de si um copo de leite. Levantou-se quando eles entraram, e Bond notou-lhe a corcunda. Bond não se lembrava de ter visto antes um corcunda ruivo. Imaginou que tal combinação serviria para amedrontar a arraia miúda que trabalhava para a quadrilha.

O corcunda deu lentamente a volta à mesa e aproximou-se de Bond.

Caminhou em redor dele, fazendo praça de examiná-lo minuciosamente, da cabeça aos pés, depois parou diante de Bond e fitou-o cara a cara.

Impassível, Bond encarou o par de olhos de porcelana, tão vazios e imóveis que poderiam ter sido comprados a um taxidermista. Teve a impressão de estar passando por uma espécie de exame e notou no outro as orelhas grandes de lóbulos um tanto crescidos, os beiços secos e vermelhos da enorme boca semi-aberta, a quase completa ausência de pescoço e os braços curtos e musculosos metidos na camisa cara de seda amarela, cortada especialmente para abrigar o barril do busto e a giba pontuda.

— Gosto de examinar cuidadosamente o pessoal que empregamos, Mr.

Bond.

A voz era estridente. Bond sorriu com polidez.

— Informam-me de Londres que você matou um homem. Acredito. Vejo que é bem capaz disso. Gostaria de fazer mais algum serviço para nós?

— Depende do serviço — disse Bond. — Ou melhor — esperava não estar sendo demasiadamente teatral — depende de quanto me pagarem.

O corcunda deu um guincho à guisa de risada e virou-se para o chofer.

— Rocky, tire as bolas do saco e abra-as. Olhe aqui. Deu uma sacudidela brusca no braço direito e estendeu a

mão espalmada para o chofer. Nela estava um canivete de lâmina dupla, de cabo chato envolto num esparadrapo. Bond reconheceu que era uma faca de atirar e teve de admitir que o passe de prestidigitação tinha sido executado com mestria.

— Agora mesmo, patrão — disse o chofer, e Bond reparou na alacridade com que ele pegou a faca e ajoelhou-se no soalho para desapertar a correia da sacola.

O corcunda afastou-se de Bond e voltou para sua cadeira. Sentou-se e agarrou o copo de leite. Fez uma cara de nojo o engoliu o conteúdo em dois grandes tragos. Olhou para Bond como se esperasse um comentário.

— Úlceras? — perguntou Bond com simpatia.

— Quem lhe pediu opinião? — disse o corcunda, enraivecido. Mas transferiu a cólera para o chofer. — O que é que está esperando, Rocky?

Bote essas bolas na mesa para que eu possa ver o que você está fazendo. O

número na bola é o centro do corte. Anda com isso.

— Já vou, patrão — respondeu o chofer, erguendo-se e colocando as seis bolas novas sobre a escrivaninha.

Cinco estavam ainda dentro dos invólucros negros. Pegou a sexta e girou-a nos dedos. Agarrou a faca, enfiou a ponta na capa da bola e fez um movimento de alavanca. Uma seção circular de meia polegada levantou-se na ponta da lâmina. O chofer empurrou a bola por cima da mesa para o corcunda, que entornou o conteúdo, três pedras brutas de dez a quinze quilates, no tampo de couro da escrivaninha.

Sorumbático, o corcunda cutucou as pedras com o dedo.

O chofer prosseguiu em sua tarefa até que Bond contou dezoito pedras em cima da mesa. Não se faziam notar no estado bruto em que se achavam, mas, se fossem de alta qualidade, deveriam valer 100 000 libras esterlinas, depois de lavradas, calculou Bond.

— Está bom, Rocky — disse o corcunda. — Dezoito. Não falta nenhuma. Agora tire daqui esses malditos tacos e mande levar para o Astor, junto com a bagagem desse sujeito. Ele está registrado lá. Mande botar tudo no quarto dele. Certo?

— Certo, patrão.

O chofer largou a faca e as bolas de golfe vazias, em cima da mesa, amarrou a sacola, pendurou-a nos ombros e foi embora.

Bond caminhou para uma cadeira junto da parede, arrastou-a de modo a ficar de frente para o corcunda e sentou-se. Tirou um cigarro e acendeu-o.

Encarou o corcunda e disse:

— Agora, já que o senhor está satisfeito, gostaria de embolsar os 5 000

dólares.

O corcunda, que vinha observando atentamente os movimentos de Bond, baixou a vista para os diamantes amontoados à sua frente e arrumou-os num círculo. Depois, encarou Bond.

— O senhor receberá todo o seu dinheiro, Mr. Bond — o tom de voz era categórico. — E poderá ganhar mais de cinco mil. Mas o método de efetuar o pagamento levará em conta a necessidade de proteger ambas as partes. O

senhor e nós. Não haverá pagamento direto. O motivo é fácil de entender, Mr. Bond. O senhor certamente terá feito pagamentos em sua carreira de gatuno. Sabe como é perigoso ver-se um homem com o bolso cheio de dinheiro de uma hora para outra. Dá com a língua nos dentes. Esbanja a torto e a direito. E quando os tiras o agarram e lhe perguntam de onde veio o dinheiro, não sabe o que dizer. Concorda?

— Inteiramente — disse Bond, surpreso com o raciocínio e a autoridade das afirmações do homem. — Isso é sensato.

— Assim — continuou o corcunda — eu e meus amigos só muito raramente fazemos pagamentos, e de pequenas quantias, por serviços prestados. Em vez disso, tomamos providências para que o interessado ganhe o dinheiro por sua própria iniciativa. O seu caso é um exemplo.

Quanto tem no bolso?

— Umas três libras e algumas moedas — disse Bond.

— Muito bem — disse o corcunda. — Hoje o senhor volta a encontrar seu amigo Mr. Tree. — Apontou um dedo para o próprio peito. — Que sou eu. Cidadão perfeitamente respeitável que o senhor conheceu na Inglaterra em 1945 quando ele tratava de arranjar colocação para os excedentes do Exército. Lembra-se?

— Sim.

— Eu lhe devia 500 dólares de uma partida de bridge que jogamos no Savoy. Lembra-se?

Bond fez que sim com a cabeça.

— Hoje, quando nos encontramos, eu o desafiei: o dobro ou nada. E o senhor ganhou. Certo? Então, tem o senhor agora 1 000 dólares, e eu, um contribuinte que não sonega imposto, confirmarei a sua estória. Aqui está o dinheiro.

O corcunda puxou uma carteira do bolso traseiro da calça e empurrou dez cédulas de cem dólares para o outro lado da mesa.

Bond apanhou-as e guardou-as despreocupadamente no bolso do paletó.

— Aí — prosseguiu o corcunda — o senhor diz que gostaria de ir às corridas de cavalos enquanto estivesse por aqui. E eu lhe digo: "Por que não vai dar uma espiada em Saratoga? O programa começa na segunda-feira". O senhor acha boa a ideia e parte para Saratoga, com seus mil pacotes no bolso. Certo?

— Perfeito — disse Bond.

— E lá o senhor aposta num cavalo. E ele paga pelo menos cinco por um. Então o senhor tem os seus 5.000 dólares, e se alguém perguntar de onde veio o dinheiro, o senhor poderá dizer que o ganhou e poderá prová-lo.

— E se o cavalo perder?

— Não perderá.

Bond não fez comentário. De um golpe, começava a penetrar em algum lugar — no mundo dos gangsters? As corridas. Fitou os pálidos olhos de porcelana. Era impossível dizer se eram receptivos. Eles o fitavam também, inexpressivos. Mas era a hora de dar um grande passo.

— Bom, está tudo ótimo — disse Bond, na esperança de que a lisonja fosse o caminho certo. — Os senhores, como estou vendo, pensam em tudo.

Eu gosto de trabalhar para gente previdente.

Não houve encorajamento da parte dos olhos de porcelana.

— Gostaria de passar uns tempos longe da Inglaterra. Será que não estão precisando de mais alguém?

Os olhos de porcelana desviaram-se dos de Bond e esquadrinharam-lhe, pensativa e gradualmente, o rosto e os ombros, como se o corcunda estivesse examinando um cavalo. Depois, o homem baixou os olhos para o círculo de diamantes e, com rigor e método, transformou-o num quadrado.

O silêncio enchia a sala. Bond olhava as unhas.

Por fim, o corcunda volveu o olhar outra vez para Bond.

— Talvez — disse, absorto. — Talvez haja mais alguma coisa para você.

Até agora você não cometeu nenhum deslize. Continue assim e não meta o bedelho onde não for chamado. Me telefone depois da corrida e eu lhe direi quais são as ordens. Mas, já lhe disse, não se afobe e faça o que lhe mandam.

Está bem assim?

Os músculos de Bond se relaxaram e ele deu de ombros.

— Por que iria sair da linha? Estou procurando emprego. E pode dizer à turma que eu não sou exigente desde que a paga compense.

Pela primeira vez os olhos de porcelana revelaram emoção. Pareciam feridos e coléricos, e Bond pensou que talvez tivesse exagerado na representação.

— O que é que você pensa que nós somos? — a voz do corcunda elevou-se a um guincho irritado. — Uma corja de vigaristas baratos? Bolas! Bem...

— encolheu os ombros, resignado. — É. Não se pode esperar que um godeme compreenda como as coisas correm aqui hoje em dia. — Os olhos tornaram-se opacos outra vez. — Agora escute o que eu vou lhe dizer. Este é o número do meu telefone. Tome nota. Wisconsin 7-3697. Anote isto também. Mas guarde só pra você; do contrário vai ficar sem a língua. — O riso curto e estridente de Shady Tree não era festivo. — Quarto páreo na terça-feira. Prêmio Perpetuidades. Uma milha e um quarto para animais de três anos. E faça sua aposta na horinha de fechar os guichês. Use esses mil que acaba de receber. Certo?

— Certo — respondeu Bond, o lápis pousado obedientemente sobre a caderneta.

— Está bem — disse o corcunda. — Shy Smile. Cavalo grande com estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. Jogue nele pra ganhar.

 


                                               CONTINUA