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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DIAMANTES SÃO ETERNOS
OS DIAMANTES SÃO ETERNOS

 

                                                                                                                                             

 

 

 

 

 

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

CONTINUA

16 - Tiara Hotel

BOND ALMOÇOU NO refrigerado "Salão Refulgente", ao lado da grande piscina em forma de rim (SALVA-VIDAS: BOBBY BILBO — LIMPEZA DIÁRIA COM HYDRO JET, dizia uma tabuleta), e, tendo decidido que só um por cento dos hóspedes tinha condições de usar roupas de banho, percorreu vagarosamente, sob a canícula, as vinte jardas de grama ressequida que separavam seu edifício do estabelecimento central, tirou a roupa e jogou-se nu na cama.

Os apartamentos do Tiara estavam-distribuídos em seis edifícios, cada um batizado com o nome de uma jóia. Bond estava no andar térreo da "Turquesa", em que dominava o azul cascade-ovo. O mobiliário era azul-escuro e branco. O apartamento de Bond era extremamente confortável e provido de móveis modernos, caros e de linhas agradáveis, confeccionados com madeira prateada, provavelmente vidoeiro. Havia um rádio junto à cama e um televisor, com tela de dezessete polegadas, perto do janelão, que dava para um patiozinho fechado, onde era servido o café da manhã. Na quietude do apartamento, em que o único ruído provinha do ar condicionado de controle termostático, Bond adormeceu quase instantaneamente.

Dormiu cerca de quatro horas e, durante esse intervalo, o gravador de fio, escondido na base da mesinha de cabeceira, desperdiçou várias centenas de pés de fio com o silêncio.

Eram sete horas quando acordou. O gravador registrou ter Bond agarrado o telefone, procurando Miss Tiffany Case, dito depois de uma pausa — Pode fazer o obséquio de dizer a ela que Mr. James Bond telefonou? — e recolocado o fone no gancho. Depois, apanhou os passos de Bond pelo quarto, o jorro da água do chuveiro e, às 7h30, o estalo da chave na fechadura, quando o homem saiu e trancou a porta.

Meia hora depois, o gravador ouviu uma batida na porta e, após uma pausa, o ruído da porta que se abria. Um homem em traje de garçom, com uma cesta de frutas em que havia um cartão com os dizeres "Com os Cumprimentos da Gerência" entrou no quarto e aproximou-se a passos rápidos da mesinha de cabeceira. Desatarraxou dois parafusos, retirou o carretel de fio fino do prato do gravador, substituiu-o por um carretel novo, pôs a cesta de frutas na penteadeira, saiu e fechou a porta.

E durante várias horas o carretel rodou em silêncio, gravando nada.

Bond sentou-se ao balcão do bar do Tiara. Bebericando um vodca-martini, ia examinando, com olho profissional, o imenso salão de jogo.

A primeira coisa que notou foi que Las Vegas parecia ter inventado nova escola de arquitetura funcional, "A Escola da Ratoreira Dourada" (julgou que assim devia ser chamada), cujo objetivo principal era encaminhar o freguês-camundongo para o interior da armadilha central da sala de jogo, quer ele ambicionasse a fatia de queijo quer não.

Havia apenas duas entradas, uma para quem vinha da rua e outra para quem vinha dos edifícios de apartamentos e da piscina. Uma vez cruzada a soleira de uma dessas portas, quer a gente quisesse comprar jornal ou cigarros na banca de jornais, tomar um gole ou almoçar num dos dois restaurantes, cortar o cabelo ou receber massagem no "Clube da Saúde", ou simplesmente visitar os lavatórios, não havia meio de atingir o alvo sem passar entre os renques de caça-níqueis e mesas de jogo. E quando alguém se deixava levar na voragem das máquinas barulhentas, do meio das quais se elevava sempre o embriagante cascatear argentino das moedas caindo numa taça de metal ou o brado alvissareiro de "Sorte Grande!", proferido por uma das trocadoras. Quando isto acontecia esse alguém estava perdido.

Assediado pelo zunzum das vozes excitadas em volta das mesas de dados, pelo giro sedutor das duas roletas, pelo retinir dos dólares de prata nos receptáculos verdes das mesas do vinte-e-um, o camundongo precisaria ser de aço para não sentir sequer um leve estremecimento ao passar por essa deliciosa fatia de queijo.

Contudo, refletiu Bond, só podia ser uma ratoeira para camundongos particularmente insensíveis — camundongos que se deixassem tentar pelo queijo mais ordinário. Era uma ratoeira deselegante, óbvia e vulgar. O barulho das máquinas tinha uma repulsiva fealdade mecânica que doía no cérebro. Lembrava o chocalhar contínuo dos motores de um velho cargueiro de ferro a caminho do estaleiro, sem lubrificação, maltratado, condenado.

E as pessoas passavam horas e horas acionando violentamente as manivelas das máquinas como se odiassem o que estavam fazendo. Uma vez conhecido O' resultado na pequenina janela de vidro, não tinham paciência de esperar que as rodas parassem de girar. Enfiavam outra moeda na fenda e levantavam o braço direito que sabia exatamente onde ia bater. Bram-bra-brim. Bram-bra-brim.

Quando por acaso se ouvia o cascatear argentino, a taça transbordava e a pessoa tinha de se agachar para esgravatar debaixo das máquinas à procura de uma moeda fugidia. Como Leiter havia dito, eram principalmente as mulheres que se entregavam a esse jogo. Prósperas e velhuscas donas de casa, aos bandos nas alas dos caça-níqueis como galinhas numa chocadeira, condicionadas pela temperatura agradável do salão e pela música das rodas girantes, jogavam até perder a última moeda.

No instante em que Bond olhava, uma voz gritou "Sorte Grande!"

Algumas mulheres levantaram a cabeça e o quadro modificou-se. Elas trouxeram à memória de Bond os cães do Dr. Pavlov, de cujas mandíbulas a saliva escorria ao soar a enganosa sineta que não lhes levava comida alguma.

Bond estremeceu ao pensar nos olhos vazios daquelas mulheres, na pele delas, em suas bocas úmidas e entreabertas, em suas mãos doloridas.

Deu as costas à cena e bebeu mais um gole de martini, escutando a música tocada por um conjunto célebre no fundo da sala junto à galeria de lojas. Numa destas, um letreiro luminoso azul-pálido dizia: "The House of Diamonds". Bond fez um sinal ao homem do bar.

— Mr. Spang esteve aqui hoje de noite?

— Não vi — respondeu o homem. — Aparece quase sempre depois da primeira sessão da revista. Aí pelas onze. Conhece ele?

— Pessoalmente, não.

Bond pagou a conta e caminhou até as mesas de vinte-e-um. Parou na do centro, aquela onde deveria. jogar, precisamente às dez e cinco. Consultou o relógio. Oito e trinta.

A mesa era pequena, lisa, em forma de rim, coberta de baeta verde. Oito jogadores sentavam-se em tamboretes altos, de frente para o banqueiro, que ficava com a barriga encostada à borda da mesa e colocava duas cartas nos oito espaços numerados diante das apostas. Estas eram principalmente cinco ou dez dólares de prata, ou fichas no valor de vinte. O banqueiro era um tipo de mais ou menos quarenta anos, com um meio sorriso cortês estampado na cara. Trajava o uniforme profissional: camisa branca abotoada nos punhos, gravata preta estreita do jogador do Oeste, viseira verde sobre os olhos, calças pretas. Um minúsculo avental de baeta verde protegia a frente das calças contra a fricção com a mesa. A palavra "Jake" estava bordada numa extremidade.

O banqueiro distribuía as cartas e tomava conta das apostas com imperturbável serenidade. Ninguém falava a não ser para solicitar um trago ou cigarros a uma das garçonetes de pijamas de seda preta que circulavam no espaço central entre os recintos das mesas. Do espaço central, o movimento do jogo era observado por dois capatazes de olhos de lince e revólver à cinta.

O jogo era rápido, eficiente e monótono. Era tão monótono e mecânico como os caça-níqueis. Bond demorou-se um pouco e depois encaminhou-se para as portas com os letreiros "Salão de Fumar" e "Toucador", na parede do fundo do cassino. No trajeto cruzou com quatro "xerifes" trajando uniformes elegantes e cinzentos do Oeste. As pernas das calças estavam enfiadas em botas de cano curto. Esses homens, espalhados discretamente pela sala, não olhavam para nada em particular mas viam tudo. Carregavam em cada lado dos quadris uma arma dentro de um coldre desabotoado, e em seus cintos luzia o latão polido de cinquenta cartuchos.

Proteção à beca, pensou Bond enquanto passava pela porta de vaivém do "Salão de Fumar". Do lado de dentro, na parede azulejada, lia-se num aviso: "Aproxime-se. É menor do que você pensa". Humor do Oeste! Bond perguntou a si mesmo se se atreveria a incluí-lo no relatório que enviaria a M. Achou que não teria interesse. Saiu e andou por entre as mesas até a porta encimada por um letreiro luminoso que anunciava o "Salão Opala".

No restaurante baixo e circular, pintado de cor-de-rosa, branco e cinza, a metade das mesas estava ocupada. A recepcionista veio recebê-lo e conduziu-o a uma mesa de canto. Curvou-se para arrumar as flores no centro da mesa e mostrar ao cliente que o belo busto era pelo menos semiverdadeiro. Depois, ofertou-lhe um gracioso sorriso e foi embora.

Passados dez minutos, a garçonete chegou com uma bandeja e pôs no prato um pãozinho e um cubo de manteiga. Deixou também uma travessa com azeitonas e aipo forrado de queijo alaranjado. Em seguida, surgiu uma segunda garçonete mais velha e mais afobada, que entregou a Bond um cardápio e sumiu, dizendo:

— Atendo já.

Vinte minutos depois de se ter sentado, Bond conseguiu encomendar o jantar; uma dúzia de mexilhões, um filé e, prevendo a demora em ser atendido, um segundo martini-vodca seco.

— O rapaz do vinho virá num minuto — disse a garçonete cerimoniosamente e desapareceu rumo da cozinha. "Cortesia — dez; eficiência — zero", refletiu Bond, disposto a acatar o delicado ritual.

Durante o excelente jantar que afinal se concretizou, Bond matutou a respeito da noite que tinha pela frente e de como poderia forçar o passo.

Aborrecia-o terrivelmente o papel de escroque em estágio probatório, que devia receber a paga do primeiro serviço prestado nessa condição e podia então, caso caísse nas boas graças de Mr. Spang, incumbir-se de tarefas regulares ao lado dos demais adultos pueris que compunham a quadrilha.

Irritava-o o fato de não tomar a iniciativa, de ter sido enviado a Saratoga e de lá a esta odiosa arapuca, onde estava à disposição de uma corja de bandidos respeitáveis. Aqui estava ele, comendo e dormindo, enquanto o observavam e sopesavam — a ele, James Bond — discutindo se sua mão era bastante firme, se sua aparência era digna de confiança, se sua saúde era adequada aos melindrosos serviços que lhe pretendiam dar.

Bond esmoía o filé como se fossem os dedos de Mr. Seraffimo Spang e amaldiçoava a hora em que aceitara tão ridículo papel. Mas, depois, parou e pôs-se a comer mais tranquilo. Por que cargas d'água estava ele tão preocupado? Essa era uma missão sensacional que até o presente corria bem.

E agora aproximava-se da extremidade do canal, entrava na sala de visitas de Mr. Seraffimo Spang que, com o irmão em Londres, comandava a maior operação de contrabando do mundo. Que importância tinham as suscetibilidades de Bond? Representavam apenas um instante de tédio, um ressaibo de náusea provocada pela circunstância de ser um estranho que passara muito tempo perto demais dessas quadrilhas americanas, sórdidas e poderosas, demasiado junto da "vida cômoda", trescalante de pólvora, da aristocracia do banditismo.

A verdade, reconheceu Bond ao tomar o café, era que sentia saudades de sua real identidade. Encolheu os ombros. Ao diabo com os Spangs e a cidade encapuzada de Las Vegas! Consultou o relógio. Eram precisamente dez horas. Acendeu um cigarro, ergueu-se, atravessou o salão e entrou no cassino.

Havia duas maneiras de ir até o fim desse jogo: aceitar as regras impostas e esperar que alguma coisa acontecesse ou forçar o passo de modo que alguma coisa tivesse de acontecer.

 

 

 

17 - "Grato por tudo"

 

 


A CENA NO ENORME salão de jogo tinha-se transformado. Tudo parecia mais calmo. A orquestra fora embora, também os bandos de mulheres.

Restavam somente alguns jogadores em volta das mesas. Havia dois ou três faróis' na roleta, moças bonitas em elegantes vestidos de soirée, que tinham recebido cinquenta dólares para animar as mesas vazias. Um homem, completamente ébrio, agarrava-se à parede alta que circundava uma das mesas de dados e bradava exortações aos cubinhos de osso.

Houvera ainda outra modificação. O banqueiro no centro da mesa de vinte-e-um mais próxima do bar era Tiffany Case.

Então era esse o emprego que tinha no Tiara.

Não escapou a Bond o fato de que todos os banqueiros do vinte-e-um eram pequenas bonitas. Todas trajavam a mesma elegante fantasia do Oeste, nas cores cinza e preto — saiote cinzento curto, cinto preto largo com incrustações de metal, blusa cinzenta com lenço preto em volta do pescoço, sombreiro cinzento pendurado às costas por um cordão negro, meias-botas pretas sobre meias de nylon cor-de-carne.

Bond tornou a consultar o relógio e entrou no salão. Então Tiffany era quem ia fingir que bancava o jogo em que ele deveria ganhar cinco mil dólares! Naturalmente haviam escolhido o momento em que ela começava, a trabalhar e a primeira sessão da revista se realizava no "Salão Platina". Ele estaria a sós com ela. Nenhuma testemunha para presenciar qualquer pexotada que ela cometesse.

Precisamente às dez e cinco Bond foi até a mesa e sentou-se diante da moça.

— Boa noite.

— Ai.

Ela lhe deu um sorriso.

— Qual é o máximo?

— Mil.

Quando Bond largou as dez cédulas de cem dólares em cima da mesa, além da linha das apostas, o capataz deu alguns passos à frente e parou junto de Tiffany Case. Mal olhou para Bond.

— Talvez o moço queira um baralho novo, Miss Tiffany — disse ele, entregando à jovem um maço novo.

Tiffany tirou a capa do baralho recebido e entregou ao homem o usado.

O capataz recuou alguns passos e pareceu desinteressar-se do jogo.

A moça traçou o baralho com um movimento fluido das mãos. Cortou-o, colocou as duas metades na mesa e executou o que podia ser considerado um baralhamento impecável. Mas Bond notou que as duas metades não casavam integralmente e que quando ela ergueu da mesa o maço e executou o que pareceu um inofensivo reembaralhamento estava recolocando as duas metades na ordem primitiva. Repetiu ainda uma vez a manobra e pôs o baralho defronte de Bond num convite para que o cortasse. Bond cortou e viu com simpatia como ela levou a cabo, só com uma das mãos, o difícil anulamento, uma das proezas mais intrincadas dos batoteiros.

Bond compreendeu que o "novo" baralho estava marcado. O único resultado de toda essa aparência de jogo limpo era conseguir repor as cartas na ordem em que estavam quando deixaram o envoltório. Mas a escamoteação era brilhante e Bond encheu-se de admiração pela segurança das mãos da moça.

Encarou-a nos olhos cinzentos. Haveria neles algum laivo de cumplicidade, um vislumbre de regozijo pelo jogo singular em que estavam empenhados?

Ela lhe deu duas cartas e tirou duas para si mesma. De súbito Bond percebeu que devia tomar cuidado. Devia restringir-se às normas convencionais; do contrário transtornaria toda a sequência em que as cartas estavam arrumadas.

De um lado a outro da mesa estavam impressas as palavras: "O

Banqueiro Deve Pedir em Dezesseis e Ficar em Dezessete". Era de presumir que o baralho com que jogavam fosse à prova de pexotadas, mas por via das dúvidas (poderia aparecer outro jogador ou um peru), tinham de fazer crer que seus ganhos não passavam de golpes naturais da sorte, o que não aconteceria se em todas as mãos coubesse a ele vinte e um e à moça dezessete.

Bond lançou um olhar a suas cartas. Um valete e um dez. Fitou a moça e balançou a cabeça. Ela virou para cima as próprias cartas. Dezesseis. Pediu uma e estourou com um rei. Ao lado dela havia uma prateleira que continha apenas dólares de prata e fichas de vinte dólares, mas o capataz acudiu com uma placa de mil, que a moça atirou para Bond. Ele colocou-a sobre a linha e embolsou as notas. Ela tirou mais duas cartas para ele e duas para si. Bond tinha dezessete e mais uma vez balançou a cabeça. Ela tinha doze, tirou um três e depois um nove — vinte e quatro e estourou de novo. Outra vez o capataz» acudiu com uma placa. Bond meteu-a no bolso e não mexeu na aposta. Desta vez ele tinha dezenove e ela virou um dez e um sete, em que, pelo regulamento, devia ficar. Outra placa foi para o bolso de Bond.

As largas portas no fundo da sala se abriram, dando passagem a uma pequena multidão que estivera assistindo à revista do jantar. As mesas de jogo não tardariam a se encher. Esta era a derradeira mão, finda a qual Bond deveria levantar-se e deixar a moça. Ela o mirava com impaciência. Ele apanhou as duas cartas que ela lhe tinha dado. Vinte. Então ela virou dois dez. Bond sorriu ante o requinte. Com presteza, ela lhe deu mais duas cartas no momento mesmo em que três outros jogadores se aproximaram da mesa e se guindaram aos tamboretes. Ele tinha dezenove e ela dezesseis.

E ficou nisso. O capataz nem se deu ao incômodo de entregar à moça a quarta placa. Atirou-a por cima da mesa a Bond, com uma expressão no rosto que traduzia escárnio.

— Puxa! — exclamou um dos novos jogadores, quando Bond enfiou a placa no bolso e levantou-se.

Bond olhou para a moça.

— Muito obrigado — disse ele. — Você carteia maravilhosamente bem.

— Essa é boa! — disse o homem que havia falado. Tiffany Case respondeu com um olhar duro:

— Não há de quê.

Ela sustentou o olhar de Bond durante uma fração de segundo. Depois, baixou a vista para as cartas, embaralhou-as completamente e passou-as a um dos novos jogadores para que cortasse.

Bond deu as costas à mesa e pôs-se a andar pela sala, pensando em Tiffany e de vez em quando procurando com a vista a silhueta ereta e imperiosa no excitante uniforme do Oeste. Sem dúvida outros viam nela os mesmos atrativos que Bond via, pois em pouco tempo oito homens estavam sentados à mesa e alguns a contemplavam de pé.

Bond sentiu uma picada de ciúme. Foi ao bar e pediu um Bourbon com água do rio para comemorar os cinco mil dólares que tinha no bolso.

O homem do bar sacou de uma garrafa arrolhada e colocou-a ao lado do "Old Grandad" de Bond.

— De onde vem essa água? — perguntou Bond, lembrando-se do que Félix Leiter lhe dissera.

— Da Barragem de Boulder — disse o homem, sério. — Vem de caminhão todos os dias. Pode beber sem susto — acrescentou. — É legítima.

Bond. jogou um dólar de prata no balcão. — Sei que é — disse com igual seriedade. — Fique com o troco.

De costas para o bar, o copo na mão, Bond começou a pensar no passo que devia dar. Bom, agora tinha recebido o dinheiro, e Shady Tree lhe havia dito que em nenhuma hipótese voltasse às mesas de jogo.

Bond bebeu o resto do uísque e marchou decidido para a roleta mais próxima. Havia pouca gente em volta da mesa, e as apostas eram insignificantes.

— Qual é o máximo aqui? — perguntou ao homem da pá, um velhote careca, de olhos sem brilho, que estava apanhando na roda a bola de marfim.

— Cinco mil — respondeu o homem com indiferença.

Bond tirou do bolso as dez notas de cem dólares e as quatro placas de mil e colocou-as ao lado do crupiê.

— No vermelho.

O crupiê empertigou-se na cadeira e olhou de soslaio para Bond. Atirou as quatro placas, uma a uma, no vermelho, aparando-as com a pá. Contou as cédulas de Bond, enfiou-as por uma fenda rasgada na mesa, retirou uma quinta placa da prateleira de fichas que tinha ao lado e juntou esta última às demais. Bond viu o joelho do homem erguer-se debaixo da mesa. O capataz ouviu a cigarra e acercou-se da mesa no instante em que o crupiê fazia girar a roda.

Bond puxou um cigarro e acendeu-o. A mão estava firme. Experimentou uma sensação maravilhosa de liberdade por ter enfim tomado a iniciativa que até então tinha pertencido aos adversários. Sabia que ia ganhar. Mal olhou para a roda que ia parando e a bolinha de marfim que chocalhava na ranhura.

— Trinta e seis. Vermelho.

O homem da pá arrastou as fichas dos perdedores e os dólares de prata e atirou por cima da mesa algum dinheiro aos vencedores. Em seguida tirou da prateleira uma placa fina' do tamanho de um livro de orações e colocou-a mansamente ao lado de Bond.

— Preto — disse Bond.

O homem jogou uma placa única de cinco mil dólares no preto e arrastou com a pá a aposta de Bond no vermelho.

Havia um zunzum em volta da mesa e várias outras pessoas acercavam-se. Bond sentiu que era alvo da curiosidade de todos, mas tratou apenas de observar, no outro lado da mesa, os olhos do capataz. Estes o fitavam com a hostilidade de uma víbora, mas não escondiam o assombro.

Bond sorriu delicadamente para o capataz quando a roda começou a girar e se ouviu o zunido da bolinha iniciando sua viagem.

— Dezessete. Preto — disse o homem da pá.

Um suspiro dos curiosos seguiu-se a essas palavras e olhos ávidos acompanharam a grande placa que foi retirada da prateleira e colocada diante de Bond.

Mais uma vez, pensou Bond, mas não nesta parada.

— Desta vez não — disse ele ao crupiê.

O homem encarou-o e depois estendeu a pá, recolheu a aposta e entregou-a a Bond.

A esta altura havia outro homem ao lado do capataz. Fitava Bond com olhos cintilantes e duros como as lentes de uma câmera. O gordo charuto que segurava no centro dos beiços vermelhos apontava para Bond como se fosse uma arma. O corpanzil metido num smoking azul quase negro estava totalmente imóvel e revelava uma espécie de tensa tranquilidade. Era um tigre olhando um macaco acorrentado e sentindo-se inseguro. A cara tinha a palidez do marfim, mas assemelhava-se à do irmão que morava em Londres.

Tinha as mesmas sobrancelhas retas, negras, coléricas, a mesma crista curta de cabelo de arame cortado en brosse e a mesma saliência impiedosa na queixada.

A roda girou de novo e os dois pares de olhos curvaram-se para contemplá-la.

A bolinha caiu num dos dois compartimentos verdes da roda e Bond deu um suspiro de alívio.

— Dois zeros — disse o homem da pá, arrastando todo o dinheiro que estava sobre a mesa.

Agora, pensou Bond, o último lance — e, depois, fora daqui com vinte mil dólares do dinheiro de Spang. Olhou para seu empregador. As duas lentes e o charuto continuavam a mirá-lo, mas o rosto pálido nada exprimia.

— Vermelho.

Entregou uma placa de cinco mil dólares ao crupiê e viu-a resvalar pela mesa.

Estaria pedindo demais à roleta com este último lance? Não, reconheceu Bond, convicto.

— Cinco. Vermelho — disse o crupiê, obediente.

— Está bem. Me dê as fichas — disse Bond. — Grato por tudo.

— Venha outra vez — disse o homem da pá, sem emoção.

Bond pôs a mão em cima das quatro placas que havia colocado no bolso do paletó, abriu caminho por entre os curiosos que o cercavam e cruzou o longo salão em direção ao guichê.

— Três notas de cinco mil e cinco de mil — disse ele ao homem da pala verde por trás da grade.

O homem recebeu as quatro fichas de Bond e contou as cédulas. Bond enfiou-as no bolso e foi até a portaria.

— Envelope aéreo, por favor — pediu.

Dirigiu-se a uma escrivaninha junto à parede, sentou-se, meteu as três cédulas de cinco mil no envelope e escreveu: "Pessoal. Diretor-Presidente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres, N. W. 1, Inglaterra". Em seguida, comprou selos e introduziu o envelope na fenda com os dizeres "Correio USA", esperando que ali, no mais sacrossanto repositório da América, o dinheiro estivesse seguro.

Consultou o relógio. Faltavam cinco para a meia-noite. Lançou um último olhar ao salão, notou que outra moça estava à mesa de Tiffany Case e que não havia mais sinal de Mr. Spang. Passou pela porta envidraçada e, na noite quente e sufocante, atravessou o gramado, chegando ao edifício Turquesa. Entrou no apartamento e trancou a porta.

 

 

 

18 - Cai a noite no "abismo de paixão

 

 

 

— COMO SE SAIU?

Era o anoitecer do dia seguinte. O táxi de Ernie Cureo rolava lentamente pelo Strip a caminho do centro de Las Vegas. Bond cansara-se de esperar que alguma coisa acontecesse, telefonara ao homem de Pinkerton e o convidara para um bate-papo.

— Mais ou menos — disse Bond. — Arranquei um dinheirinho deles na roleta. Mas acho que não deu para preocupar o nosso amigo. Ouvi dizer que têm dinheiro pra esbanjar.

Ernie Cureo fungou. — Quer saber de uma coisa? — disse ele. — Aquele cara anda tão cheio da gaita que não usa óculos quando dirige automóvel. Os para-brisas de seus Cadillacs têm lentes prescritas pelo oculista.

Bond riu.

— Além disso, em que é que ele gasta? — perguntou.

— É biruta — disse o chofer. — A mania dele é o velho Oeste. Comprou uma cidade morta à beira da Rodovia 95. E restaurou tudo... calçadas de madeira, botequim, hotel, onde hospeda os capangas... até mesmo a velha estação de trem.

Aí por volta de 1905, essa pocilga, chamada Spectreville por causa da proximidade com a serra Spectre era uma mina de prata. Durante uns três anos, extraíram milhões da cacunda daquelas montanhas, e um ramal da estrada de ferro transportava o material para Rhyolite, a umas cinquenta milhas de distância. Essa é outra famosa cidade morta. Agora é ponto turístico. Tem uma casa feita com garrafas de uísque. Antigamente era a estação de onde se embarcava o material para a costa. Pois bem, Spang comprou uma das velhas locomotivas, uma "Highland Lights"... já ouviu falar nela?... e um dos primeiros Pullman de luxo. Guarda tudo lá na estação de Spectreville. Nos fins de semana carrega os parceiros num passeio de ida e volta a Rhyolite. Ele mesmo é o maquinista. Champanha, caviar, música, pequenas... esse troço todo. A vida que pediu a Deus. Mas eu nunca vi.

Ninguém pode nem chegar perto do local. Sim, senhor — o chofer baixou o vidro da porta e cuspiu enfaticamente na estrada — é assim que Mr. Spang gasta o dinheiro. Completamente biruta, não lhe disse?

Então estava tudo explicado, pensou Bond. Foi por isso que não tinha tido notícia de Mr. Spang nem dos seus amigos durante todo o dia. Era sexta-feira, e eles estavam na casa do patrão, brincando de trem. Bond nadara um pouco, dormira e flanara pelo Tiara o dia inteiro, esperando por alguma coisa. Ê verdade que apanhara um ou outro olhar que se desviava do seu, que tivera sempre alguém a vigiá-lo, um empregado ou um dos xerifes uniformizados, todos com ares de quem se esforçava por não fazer nada.

Mas, a não ser isso, Bond podia ter sido julga"do um simples hóspede do hotel.

Só de relance tivera oportunidade de ver o mandachuva, e as circunstâncias lhe tinham dado um prazer perverso.

Às dez da manhã, depois de nadar e tomar café, Bond resolvera ir cortar o cabelo. A barbearia estava quase deserta. O único freguês era um vulto grandalhão, metido num roupão encarnado e felpudo. O rosto, uma vez que o homem jazia estirado de costas na cadeira, estava escondido debaixo de toalhas quentes. A mão direita, pendendo do braço da cadeira, estava entregue aos cuidados de uma bonita manicura. A moça tinha rosto alvo e rosado, como a cara de uma boneca, e uma trunfa de cabelo cor-de-manteiga.

Sentada ao lado do homem num tamboretezinho baixo, equilibrava nos joelhos um vaso cheio de instrumentos.

Pelo espelho diante da cadeira em que estava sentado, Bond viu com interesse como o barbeiro erguia delicadamente primeiro uma ponta das toalhas quentes e depois a outra e com infinita precaução cortava os pêlos das orelhas do freguês com uma tesourinha fina. Antes de recobrir com a toalha a segunda orelha, o barbeiro curvou-se e murmurou cerimoniosamente: — E as narinas, senhor?

Houve um resmungo de aprovação por trás das toalhas quentes e o barbeiro tratou de abrir uma fenda nas toalhas nas imediações do nariz do homem. Em seguida, com a mesma precaução, passou a trabalhar com a tesourinha.

Findo esse ritual, desceu sobre a saleta de azulejos brancos um silêncio sepulcral, cortado apenas pelo estalido da tesoura ao redor da cabeça de Bond e pelo tinido ocasional de algum instrumento que a manicura depositava no vaso esmaltado. Por fim ouviu-se um rangido quando o barbeiro rodou cautelosamente a manivela da cadeira do freguês a fim de colocá-la na vertical.

— Que tal, senhor? — perguntou o barbeiro, segurando um espelho por trás da cabeça de Bond.

Foi no instante em que Bond examinava a nuca que a coisa aconteceu.

Talvez, com a suspensão da cadeira, a mão da moça tenha tremido, mas o que se ouviu foi um rugido abafado e o que se viu foi o homem do roupão encarnado dar um pulo da cadeira, arrancar as toalhas do rosto e enfiar o dedo na boca, tirá-lo logo depois, curvar-se e dar uma bofetada no rosto da moça, com tanta força que a derrubou do tamborete e jogou ao chão o vaso e os instrumentos. O homem empertigou-se e volveu uma cara furiosa para o barbeiro.

— Despeça esta cadela — rosnou ele.

Tornou á meter o dedo ferido na boca e, esbarrando os chinelos nos instrumentos espalhados pelo chão, chegou cego à porta e desapareceu.

— Agora mesmo, Mr. Spang — disse o barbeiro atordoado e começou a esbravejar contra a moça que se desfazia em soluços. Bond virou a cabeça e disse calmamente:

— Pare com isso.

Levantou-se da cadeira e tirou a toalha do pescoço. O barbeiro olhou-o com espanto. Depois disse, embaraçado: — Pois não, senhor — e curvou-se para ajudar a moça a apanhar os instrumentos.

Enquanto Bond pagava, ouviu a moça ajoelhada choramingar: — A culpa não foi minha, Mr. Lucian. Ele estava nervoso hoje. As mãos tremiam. Eu juro como tremiam. Nunca o vi assim antes. Devia estar aperreado.

E Bond teve um momento de alegria ao pensar nos aperreios de Mr. Spang.

A voz de Ernie Cureo interrompeu-lhe os pensamentos.

— Temos companhia — disse ele pelo canto da boca. — Dois, um na frente e outro atrás. Não se volte. Está vendo o Chevrolet negro lá na frente?

Vai com dois marmanjos. Eles têm dois retrovisores e vêm nos observando e marcando passo. Atrás de nós vem uma baratinha vermelha. E um velho Jaguar esporte com assento suplementar. Nele também estão dois sujeitos, com tacos de golfe na traseira. Mas acontece que eu conheço esses gaiatos. Vermelhinhos de Detroit. Casalzinho de bonecas. Sabe o que eu quero dizer, não? Veados. Essa história de golfe é embromação. Os únicos tacos que sabem manejar estão guardados nos bolsos. Olhe para os lados como se estivesse admirando a paisagem. Vigie as mãos direitas deles enquanto eu faço uma experiência. Pronto?

Bond fez o que Ernie mandou. O chofer meteu o pé no acelerador e ao mesmo tempo desligou a chave da ignição. O escape ribombou, e Bond viu as duas mãos direitas mergulharem nos blusões de cores berrantes. Bond tornou a virar a cabeça.

— Tem razão — disse ele e, depois de uma pausa, acrescentou: — É melhor que eu salte, Ernie. Não quero metê-lo em apuros.

— Bobagem — disse o chofer, com um gesto de enfado. — Eles não podem fazer nada comigo. Você paga a avaria que houver no táxi? Vou tentar abalroá-los.

Bond retirou da carteira uma cédula de mil dólares e enfiou-a no bolso da camisa do chofer.

— Aí está. Mil — disse ele. — E muito grato. Vamos ver o que você pode fazer.

Bond puxou a Beretta do coldre e aninhou-a na mão. Por isso mesmo era que estava esperando, disse de si para si.

— Tá bem, velhinho — disse o chofer, alegremente. — Há muito tempo que eu andava procurando uma ocasião de topar com esses caras. Não gosto de que me pisem os calos, e eles há muito tempo vêm pisando nos meus e nos dos meus amigos. Segure-se. Lá vamos nós.

Estavam num trecho pouco movimentado da estrada. Ao longe, os cumes das montanhas tingiam-se de amarelo sob o sol poente. A rua passava a adquirir aquela tonalidade azulada dos primeiros quinze minutos do crepúsculo, quando a gente não sabe se deve ou não acender as luzes.

Avançavam tranquilamente a uma velocidade de quarenta milhas, seguidos de perto pelo Jaguar agachado e escorregadio. Na frente, à distância de um quarteirão, corria o Sedan negro. Inesperadamente, com tal violência que Bond foi projetado para a frente, Ernie Cureo calcou os freios e derrapou em seco até parar com um grito estridente dos pneus. Ouviu-se o estardalhaço de metal amassado e vidro estilhaçado quando o Jaguar foi de encontro ao para-choque. O táxi foi impelido contra os freios e saiu aos arrancos. Então o chofer passou a marcha e, com o tremendo baralho do ferro que se rompe, desvencilhou-se do radiador despedaçado do Jaguar e acelerou estrada afora.

— Estreparam-se, hein? — disse Ernie com satisfação. — Como é que ficaram?

— Grade do radiador esculhambada — disse Bond, olhando pelo vidro traseiro. — Os dois para-lamas dianteiros amassados. O para-choque arrastando pelo chão. O para-brisa rachado, talvez mesmo quebrado. — Perdeu de vista o carro e voltou a olhar para a frente. — Estão no meio da rua tentando afastar os para-lamas dos pneus. É possível que não tardem a vir atrás da gente. Mas foi um bom começo. Mais uma batida como essa?

— Não é tão fácil agora — grunhiu o chofer. — A guerra foi declarada.

Cuidado. É melhor abaixar-se. O Chevrolet está parado à margem da estrada.

Podem começar a atirar. Vamos embora.

Bond sentiu o carro precipitar-se para a frente. Quase deitado na boleia, Ernie Cureo guiava com uma mão apenas e divisava a estrada com os olhos pouco acima do painel.

Houve um estrondo e dois estampidos quando passaram a toda pelo Chevrolet. Um bocado de vidro partido caiu em volta de Bond. Ernie Cureo praguejou, o carro deu uma guinada e depois voltou ao rumo.

Bond ajoelhou-se no assento traseiro e arrebentou o vidro com a coronha do revólver. O Chevrolet vinha atrás deles, os faróis acesos.

— Sustente-se — disse Cureo com voz estranha, abafada.

— Vou fechar a curva e parar no outro lado do próximo quarteirão. Vai poder atirar quando eles apontarem na curva.

Bond firmou-se quando os pneus cantaram, e o carro cambaleou sobre duas rodas, depois aprumou-se e parou. Bond abriu a porta e agachou-se com a arma em punho. As luzes do Chevrolet invadiram a transversal e houve um guincho rouco dos pneus ao fazerem a curva no lado. Agora, pensou Bond, antes que se endireite.

Um estampido — uma pausa. Outro. Outro. O último. Quatro balas, à distância de vinte jardas, todas no alvo.

O Chevrolet não se endireitou. Foi para cima do meio-fio do outro lado da estrada, bateu com os costados numa árvore, foi de encontro a um poste de luz, deu uma volta completa e lentamente virou de lado.

Enquanto Bond observava, esperando que os ecos do metal amassado cessassem de lhe atenazar os ouvidos, as chamas começaram a lavrar na boca cromada do automóvel. Alguém arranhava uma porta, procurando escapar. A qualquer momento as chamas encontrariam a bomba de vácuo e, percorrendo toda a extensão do chassi, chegariam ao tanque. Então seria tarde demais para quem estivesse dentro do carro.

Bond ia atravessar a rua quando ouviu um gemido, vindo da boleia do táxi. Voltou-se a tempo de ver Ernie Cureo resvalar de sob o volante para o piso. Bond esqueceu o automóvel em chamas, abriu a porta do táxi e debruçou-se sobre o chofer. Havia sangue por toda parte e o braço esquerdo do chofer estava completamente empapado. Bond conseguiu sentar o homem na boleia. Ernie abriu os olhos.

— Ai, meu irmão — disse ele por entre os dentes trincados. — Tire-me daqui. Depressa. O Jaguar não tarda a vir atrás de nós. Depois me leve ao Pronto Socorro.

— Está certo, Ernie — disse Bond sentando-se ao volante.

— Eu me encarrego de tudo. — Pôs o carro em movimento e saiu em disparada pela estrada, deixando para trás a pira ardente e as pessoas assustadas que se haviam corporificado no crepúsculo e contemplavam as chamas, embasbacadas.

— Não pare — murmurou Ernie Cureo. — Vamos sair perto da estrada da Represa de Boulder. Está vendo alguma coisa no espelho?

— Um carrinho baixo com um farol em cima da gente. Vem a toda — disse Bond. — Pode ser o Jaguar. Distância de uns dois quarteirões agora.

Pisou no acelerador e o táxi zuniu pela transversal deserta.

— Em frente. Sempre em frente — disse Ernie Cureo. — A gente vai achar um lugar pra se esconder e eles perderão a nossa pista. Olhe aqui.

Existe um "Abismo de Paixão" exatamente no ponto em que a gente desemboca na Estrada 95. É um cinema em que se entra de automóvel.

Estamos chegando. Devagar. À direita. Está vendo aquelas luzes? Toque pra lá. Depressa. Direita. Pelo areai e no meio daqueles carros. Apague as luzes. Calma. Pare.

O táxi parou na última de uma meia dúzia de fileiras de carros, colocados de frente para a tela de concreto que se empinava para o céu e na qual um homem descomunal dizia qualquer coisa a uma moça também descomunal.

Bond voltou-se e olhou para os renques de postes metálicos, semelhantes aos medidores de estacionamento, dos quais os alto-falantes podiam ser ligados aos automóveis. Enquanto estava olhando, alguns carros entraram e se colocaram na fila de trás. Nenhum era suficientemente baixo para ser um Jaguar. Mas estava escuro e difícil de enxergar. Bond ficou de costas no assento, os olhos pousados na entrada do cinema.

Uma moça bonita, vestida como um mensageiro de hotel, apareceu com uma bandeja pendurada no pescoço. — Custa um dólar — disse ela, passando os olhos pelo carro para ver se não havia uma terceira pessoa escondida no soalho. Trazia aparelhos de som enrolados no braço direito.

Tirou um, enfiou a tomada no poste mais próximo e pendurou o minúsculo alto-falante na porta ao lado de Bond. O homem e a mulher descomunais da tela passaram a discutir acaloradamente.

— Coca-cola, cigarros, confeitos? — perguntou a moça recebendo a cédula que Bond lhe tinha estendido.

— Não, muito obrigado — disse Bond.

— Não há de quê — disse a moça e foi embora em direção dos recém-chegados.

— Por favor, Mr. Bond, desligue essa porcaria — pediu Ernie Cureo com os dentes trincados. — E não deixe de observar. Vamos esperar só um pouquinho mais. Depois me leve a um médico. Desligue essa joça. — A voz era fraquinha e agora que a moça tinha ido embora ele estava derreado, com a cabeça encostada à porta.

— Vamos já, Ernie. Veja se aguenta mais um pouco.

Bond remexeu no alto-falante, encontrou o botão e silenciou as vozes altercadoras. Na tela o homem parecia que ia bater na mulher e esta escancarava a boca num urro inaudível.

Bond voltou-se e perscrutou a treva que se estendia atrás deles. Nada ainda. Um amontoado informe jazia num assento traseiro. Dois rostos idosos, sérios, enlevados, olhavam para o alto. O lampejo de luz numa garrafa tombada.

E então uma onda de loção almiscarada de barba invadiu-lhe o nariz, um vulto escuro ergueu-se do chão, uma arma surgiu-lhe diante dos olhos e uma voz, do outro lado do carro, junto de Ernie Cureo, murmurou: — Vamos, rapazes. Nada de afobação.

Bond fitou a cara sebenta que estava a seu lado. Os olhos eram sorridentes e frios. Os lábios úmidos abriram-se e sussurraram: — Vamos, godeme, ou seu companheiro entra pelo cano. Meu amigo tem um silenciador. Você vai dar um passeio com a gente.

Bond girou a cabeça e viu a salsicha negra de metal encostada à nuca de Ernie Cureo. Tomou uma decisão.

— Está bem, Ernie — disse ele. — Melhor um do que dois. Volto logo Até já.

— Sujeitinho gozado — disse o cara de sebo. Abriu a porta, mantendo a arma apontada para o rosto de Bond.

— Desculpe, amigo — disse Ernie Cureo numa voz cansada. — Acho...

— mas houve um ruído surdo quando a arma o atingiu por trás da orelha e ele afundou em silêncio.

Bond trincou os dentes e seus músculos se enrijeceram debaixo do paletó. Calculou se podia alcançar a Beretta. Olhou de uma arma para a outra, avaliando, somando as probabilidades. Os quatro olhos por cima de duas armas estavam sedentos, ansiando por um pretexto para o liquidarem.

As duas bocas sorriam, desejosas de que ele fizesse qualquer gesto suspeito.

O sangue gelou-se-lhe nas veias. Deixou escorrer outro minuto e depois, com as mãos erguidas, desceu vagarosamente do carro com a ideia de homicídio escondida no fundo do cérebro.

— Caminhe para o portão — disse o cara de sebo a meia voz. — Com naturalidade. Você está sob a minha mira.

O revólver desaparecera, mas a mão estava no bolso. O outro homem veio juntar-se a eles. Sua mão direita estava no bolso traseiro das calças.

Colocou-se no outro lado de Bond.

Os três homens marcharam céleres para o portão. A lua, erguendo-se além das montanhas, esparramou-lhes as sombras compridas à frente deles no chão de areia branca.


19 - Spectreville

O JAGUAR VERMELHO esperava do outro lado do portão, junto do muro do cinema. Bond deixou que lhe tirassem a arma e sentou-se ao lado do chofer.

— Nada de truques se quiser continuar vivo — disse o cara de sebo, subindo para o assento suplementar, ao lado dos tacos de golfe. — Há uma arma apontada para você.

— Belo carro o que vocês tinham — disse Bond. O para-brisa espatifado fora abaixado e um pedaço de cromo do radiador sobressaía como uma flâmula entre os dois pneumáticos dianteiros sem para-lamas. — Aonde vamos nas sobras?

— Verás — respondeu o chofer, um tipo ossudo, com uma boca cruel e grandes costeletas.

Colocou o carro na estrada e acelerou rumo à cidade. Pouco depois, estavam em plena selva dos anúncios luminosos e não tardou que a deixassem para trás, enveredando a grande velocidade por uma rodovia de duas faixas, que avançava pelo deserto enluarado em demanda das montanhas.

Um letreiro imenso anunciava a rodovia 95. Bond lembrou-se do que Ernie Cureo lhe havia dito e percebeu que estavam a caminho de Spectreville. Encurvou-se no assento para resguardar os olhos contra a poeira e os mosquitos, concentrou os pensamentos no futuro imediato e no meio de vingar o amigo.

Então esses homens e os outros dois do Chevrolet tinham sido incumbidos de o conduzir à presença de Mr. Spang. Por que tinham sido necessários quatro homens? Sem dúvida eles representavam uma resposta peso-pesado à desobediência de Bond às ordens que devia acatar no cassino.

O carro devorava a estrada retilínea com a agulha do velocímetro oscilando nas imediações das oitenta milhas. Os postes do telégrafo se sucediam com a regularidade de um metrônomo.

De súbito Bond sentiu que não conhecia suficientemente as respostas.

Estava ele completamente desmascarado como inimigo da quadrilha de Spang? Poderia defender-se das apostas na roleta alegando que não tinha entendido as ordens. E se tinha dado algum trabalho quando os quatro homens o foram buscar, poderia pelo menos fingir que tinha pensado tratar-se de membros de uma quadrilha inimiga. "Se queria me ver por que então não me chamou em meu apartamento?" Bond ouviu a si mesmo dizendo essa frase num tom de quem se sentia ofendido.

Pelo menos mostrara que era bastante duro para qualquer serviço que Mr. Spang lhe pudesse oferecer. E de qualquer maneira, Bond tranquilizou-se, estava a ponto de atingir seu objetivo principal, que era o de chegar ao extremo da linha e, de uma forma ou de outra, vincular Seraffimo Spang ao irmão que morava em Londres.

Bond encolheu-se, os olhos cravados nos mostradores luminosos que tinha diante de si. Concentrava-se na entrevista que o aguardava e em imaginar quanta prova útil poderia extrair dela para continuar suas suspeitas.

Mais tarde, pensou em Ernie Cureo e na vingança que lhe devia.

Não era de seu feitio preocupar-se com a maneira de se safar, uma vez atingidos esses dois objetivos. Sua própria segurança não o inquietava.

Ainda não sentia nenhum respeito por aquela gente. Só desprezo e asco.

Bond estava ainda ensaiando a imaginária conversa com Mr. Spang quando, após duas horas de viagem, notou que a velocidade do carro diminuía. Levantou a cabeça acima do painel de instrumentos. Estavam costeando um trecho de alta cerca de arame, com uma cancela e um letreiro enorme, iluminado pelo único farol do Jaguar. O letreiro dizia: SPECTREVILLE. LIMITES DA CIDADE. NÃO ENTRE. CÃES PERIGOSOS. O Carro parou debaixo do cartaz e ao lado de um poste de ferro enterrado em cimento. No poste havia um botão de campainha, uma gradezinha de ferro e, com letras vermelhas, a tabuleta: APERTE O BOTÃO E DIGA O QUE DESEJA.

Sem largar o volante, o sujeito das costeletas estirou o braço e calcou o botão. Houve uma pausa e então uma voz metálica atendeu: — Quem é?

— Frasso e McGonigle — respondeu o chofer em voz alta.

— Passem — disse a voz.

Ouviu-se um estalido. A alta cancela de arame abriu-se lentamente. O carro cruzou o portão e avançou por cima de uma faixa de ferro que levava a um caminho estreito e sujo. Bond olhou por cima do ombro e viu a cancela fechar-se atrás deles. Notou também com prazer que a cara de, presumivelmente, McGonigle estava rebocada de pó e do sangue das moscas mortas.

A estrada suja continuava por mais uma milha, aberta na superfície bruta e pedregosa do deserto, em que uma ou outra touceira de cactos gesticuladores constituía a única vegetação. Adiante, divisaram uma incandescência, rodearam um esporão de montanha, desceram uma colina e foram dar num aglomerado,.feèricamente iluminado, de cerca de vinte casas isoladas uma das outras. Mais além, a lua iluminava os trilhos de uma ferrovia que corria, em linha reta, para o horizonte longínquo.

Estacionaram entre os cinzentos edifícios de madeira com os letreiros FARMÁCIA, BANCO, BARBEARIA e WELLS FARGO, debaixo de um lampião de gás que sibilava do lado de fora de um sobrado, no qual um anúncio em letras de ouro desbotado dizia: PINK GARTER SALOON e, logo abaixo, Cerveja e Vinho.

De detrás das tradicionais portas de vaivém uma luz amarelada projetava-se na rua, escorrendo pela superfície lustrosa de uma barata conversível Stutz Bearcat, 1920, pintada de branco e negro, estacionada no meio-fio. Um piano de boteco, fanho e monótono, tocava I Wonder Who's Kissing Her Now. A música trouxe à memória de Bond soalhos cobertos de pó de serra, bebida choca e pernas femininas metidas em frouxíssimas meias de malha. O cenário parecia copiado de uma fita do Oeste.

— Cai fora, godeme — disse o chofer.

Os três homens saltaram do carro e com andar entrevado subiram a calçada de madeira. Bond baixou-se para massagear uma perna dormente e examinou os pés dos dois pistoleiros.

— Anda, maricas — disse McGonigle, dando-lhe uma cutucada com o revólver mal seguro na mão.

Bond ergueu-se lenta e calculadamente. Manquejando pesadamente, seguiu o homem até a entrada do botequim. Parou quando as portas de vaivém bateram-lhe na cara. Sentiu nas costas a estocada da arma de Frasso.

Agora! Bond retesou-se e pulou por entre as portas ainda oscilantes. As costas de McGonigle estavam à sua frente e, além delas, via-se uma taverna bem iluminada e vazia, com um piano automático a tocar por si mesmo.

As mãos de Bond precipitaram-se para a frente e agarraram o homem acima dos cotovelos. Levantando-o do chão e rodando-o no ar, Bond atirou-o às portas, atingindo Frasso, que vinha entrando. Toda a casa de madeira estremeceu quando os dois corpos se chocaram e Frasso, tornando a passar pelas portas, estatelou-se na calçada.

Lançado de volta, McGonigle virou-se para enfrentar Bond, erguendo a mão com uma arma. Com a esquerda, Bond segurou-o pelo ombro, ao mesmo tempo que, com a mão direita aberta, aplicou um tabefe na arma.

McGonigle foi bater com os calcanhares na ombreira da porta e a arma caiu com estrondo no chão.

O bico do revólver de Frasso assomou na frincha da porta de vaivém, inclinando-se para o lado de Bond, como uma cobra prestes a armar o bote.

Quando sua língua amarela e azul repontou no cano, Bond, com o sangue a cantar-lhe nas veias ao calor da luta, mergulhou em busca da arma que estava aos pés de McGonigle. Alcançou-a e fez dois disparos rápidos para o alto antes que McGonigle lhe pisasse a mão e lhe trepasse às costas. Ao cair, Bond vislumbrou o revólver de Frasso espremido entre as portas e atirando para o teto. Desta vez a queda do corpo nas pranchas da calçada pareceu definitiva.

Preso às mãos de McGonigle, Bond ajoelhou-se, baixando a cabeça para proteger os olhos. A arma estava no soalho ao alcance da primeira mão livre.

Por alguns segundos, lutaram em silêncio como animais. Então Bond, erguendo um joelho, levantou os ombros com violência e sacudiu-se para cima. O peso saiu-lhe das costas e ele conseguiu agachar-se. Nesse momento recebeu uma joelhada de McGonigle no queixo que o fez sentar-se no chão.

A pancada nos dentes quase lhe estoura o crânio.

Bond ainda não se refizera do choque e já o gangster soltava um grunhido pesado e se precipitava sobre ele, a cabeça voltada para baixo e os braços prontos para esmurrar.

Bond dobrou-se para resguardar o estômago. A cabeça do gangster atingiu-lhe as costelas e os dois punhos malharam-lhe o corpo.

Bond ofegava de dor, mas marcou a posição da cabeça de McGonigle e, com um movimento do corpo que colocou todo o ombro no impulso do braço, encaixou uma canhota; quando a cabeça do gangster se ergueu, aplicou-lhe um direto no queixo com a direita.

O impacto dos dois golpes atirou McGonigle ao chão. Bond saltou sobre ele como uma pantera, cobrindo-o com uma saraivada de murros que só se interrompeu quando o gangster deu mostras de desfalecimento. Bond agarrou um punho agitado, segurou um calcanhar e suspendeu o homem.

Depois, empregando toda a força de que era capaz, curvou-se para trás a fim de tomar impulso e arremessou o gangster para um canto da sala.

Primeiro ouviu-se um baque estridente quando o corpo arremessado atingiu a pianola. Depois, com uma explosão de dissonâncias metálicas e madeira partida, o agonizante instrumento inclinou-se para a frente e, com McGonigle esparramado em cima, trovejou no soalho.

Enquanto morriam os ecos do piano, Bond deteve-se no centro da sala, as pernas retesadas pelo esforço final e a respiração raspando na garganta.

Com lentidão, levantou a mão machucada e passou-a nos cabelos gotejantes de suor.

— Corte.

Era uma voz de mulher e vinha da banda do bar.

Bond estremeceu e lentamente deu meia volta.

Quatro pessoas haviam entrado na taverna. Estavam em pé, uma ao lado da outra, de costas para o balcão de mogno e latão, por trás do qual fileiras de garrafas cintilantes subiam até o teto. Bond não tinha ideia de quanto tempo fazia que elas estavam ali.

Um passo adiante dos outros três estava o primeiro cidadão de Spectreville, resplendente, imóvel, dominador.

Mr. Spang vestia um uniforme completo do Oeste, que incluía as compridas esporas de prata presas às lustrosas botas negras. A indumentária, com os largos safões de couro que cobriam as pernas, era toda em negro, com adornos de prata. As mãos grandes e tranquilas pousavam nas coronhas de marfim de dois revólveres de cano longo, metidos em coldres amarrados às coxas, e o cinto negro e largo estava carregado de munição.

Mr. Spang devia parecer ridículo, mas não o era. A cabeçorra inclinava-se ligeiramente para a frente e os olhos eram frios e ferozes.

À direita de Mr. Spang, com as mãos nos quadris, estava Tiffany Case.

Num vestido branco e ouro do Oeste, ela parecia saída do filme Annie, Get Your Gun. Fitava Bond. Os olhos brilhavam. Os lábios carnudos e vermelhos estavam ligeiramente abertos, e ela palpitava como se tivesse sido beijada. A outra metade do quarteto eram os dois encapuzados de Saratoga. Cada um apontava um 38, Police Positive, para a barriga arfante de Bond.

Bond sacou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Sentia-se leve, e o cenário, na taverna profusamente iluminada e cheia de acessórios de latão e anúncios rústicos de marcas de cerveja e uísque há muito desaparecidas, tornou-se repentinamente macabro.

Mr. Spang rompeu o silêncio.

— Vão buscá-lo. — As duras mandíbulas que acionavam os lábios finos e bem delineados, separaram-se e cortaram cada palavra como se fosse uma fatia de carne. — E mandem alguém chamar Detroit e dizer aos rapazes que eles lá estão sofrendo de delírio das proporções. Digam-lhes que mandem mais dois pra cá, mas que sejam melhores do que os últimos que eles enviaram. E mandem alguém fazer a limpeza disto aqui. Entendido? Houve um fraco tilintar de esporas no piso de madeira quando Mr. Spang saiu da sala. Lançando um último olhar a Bond, um olhar que continha uma mensagem que era mais do que mera advertência, a moça saiu também.

Os dois encapuzados aproximaram-se de Bond e o grandalhão falou.

— Vamos.

Bond caminhou vagarosamente atrás da moça e os dois homens enfileiraram-se às suas costas.

Havia uma porta no fundo do bar. Bond passou por ela e achou-se na sala de espera de uma estação, repleta de bancos, velhos anúncios de trens e a recomendação para não cuspir no chão.

— À direita — ordenou um dos homens, e Bond atravessou uma porta de vaivém que dava para uma plataforma de madeira.

Então Bond estacou e não deu atenção às cutucadas de um cano de revólver nas suas costelas.

Provavelmente era o trem mais bonito do mundo. Era uma das velhas locomotivas do tipo "Highland Light", mais ou menos do ano de 1870, consideradas as mais belas locomotivas a vapor já construídas. Os brunidos corrimões de latão, o estriado coletor de areia e o pesado sino colocado acima do longo e cintilante cilindro da caldeira fulguravam sob os assobiantes lampiões de gás da estação. Um filete de vapor desprendia-se da elevada chaminé-balão do velho combustor de lenha. O majestoso limpa-trilhos era encimado por três luminárias de bronze maciço — uma bojuda lâmpada de sinal na base da chaminé e dois faróis em -baixo. Acima das duas altas rodas motrizes, apareciam gravadas em ouro as belas capitulares vitorianas The Cannonbal, que se repetiam ao longo do costado do tender, pintado de amarelo e preto e abarrotado de achas de lenha, por trás da alta e retangular cabina do maquinista.

Engatado ao tender estava um Pullman marrom de alto luxo. Suas janelas abobadadas, por cima das estreitas almofadas de mogno, realçavam com adornos de cor creme. Numa placa oval, a meia-nau, lia-se The Sierra Belle. Acima das janelas e abaixo do teto cilíndrico um pouco saliente viam-se as palavras Tonopah and Tidewater R. R. em maiúsculas creme sobre fundo azul-escuro.

— Aposto que nunca viu nada igual, godeme — disse com orgulho um dos guardas. — Agora toca pra frente.

A voz era abafada pelo capuz negro de seda.

Bond deu alguns passos vagarosos e galgou os degraus da plataforma de observação, circundada por um corrimão de latão e tendo no centro a roda reluzente do guarda-freio. Pela primeira vez na vida viu a vantagem de ser milionário e de súbito, também pela primeira vez, admitiu que esse tal de Spang merecia mais respeito do que imaginara.

O interior do Pullman deslumbrava pelo esplendor vitoriano. Os pequenos lustres de cristal do teto reverberavam nas paredes de mogno envernizado e tremeluziam nos adornos de prata, nos vasos de vidro lapidado e nos pedestais das lâmpadas. Os tapetes e cortinas drapeadas em festão eram cor de vinho, e o teto abobadado, ornamentado aqui e ali por telas ovaladas de querubins engrinaldados e coroas de flores entrelaçadas sobre um fundo de céu e nuvens, era creme, como eram as tabuinhas das persianas.

Passaram primeiro por uma pequena sala de jantar, com os restos de uma ceia para dois — uma cesta de frutas e uma garrafa aberta de champanha dentro de uma caçamba de gelo — e, depois por um estreito corredor, no fundo do qual três portas conduziam, Bond presumiu, aos quartos de dormir e ao lavatório. Bond ainda estava pensando nesse arranjo, quando, com os guardas quase a lhe pisar os calcanhares, abriu a porta do salão de recepções.

No fundo do salão, de costas para uma lareira flanqueada com filetes dourados, assomava Mr. Spang. Tiffany Case sentava-se empertigada num poltrona de couro vermelho ao pé de uma escrivaninha colocada quase no centro da peça. Bond não deu maior atenção à maneira como a moça segurava o cigarro, nervosa, artificial, assustada.

Bond caminhou até uma poltrona confortável. Virou-a a fim de ficar de frente para ambos, sentou-se e cruzou as pernas. Tirou a cigarreira, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e expeliu a fumaça com um sopro lento e sossegado.

Mr. Spang tinha um charuto apagado no centro da boca. Tirou o charuto para falar.

— Fique aqui, Wint. E você, Kidd, vá fazer o que eu mandei. — Os dentes fortes trituravam as palavras como se elas fossem nacos de aipo. — Agora vejamos — os olhos coléricos dardejaram sobre Bond. — Quem é você e o que é que se passa?

— Se vamos conversar, eu vou precisar de um uísque — disse Bond.

Mr. Spang olhou-o com frieza.

— Prepare um uísque, Wint. Bond moveu a cabeça.

— Bourbon com água de rio — disse ele. — Metade, metade.

Ouviu-se um grunhido de raiva e a madeira estalou quando o homem gordo se pôs em movimento.

Bond não simpatizou muito com a pergunta de Mr. Spang. Repassou mentalmente a estória que havia inventado. Ainda lhe parecia boa. Recostou-se na poltrona, deu mais uma tragada no cigarro e encarou Mr. Spang, perscrutando-o.

O guarda-costas voltou com o copo e, ao introduzi-lo raivosamente na mão de Bond, entornou um pouco da bebida no tapete. "Obrigado, Wint" — disse Bond e tomou um gole reforçado. A bebida pareceu-lhe excelente.

Tomou outro gole e depositou o copo a seu lado, no soalho.

Encarou de novo o rosto tenso e duro.

— Não gosto de chacoalhação — disse Bond, tranquilamente. — Fiz o meu serviço e recebi meu dinheiro. Se resolvi apostar o dinheiro, isso não interessa a ninguém. Podia ter perdido. Aí então seus homens começaram a me chacoalhar e eu fui ficando impaciente. Se queria falar comigo, por que não me telefonou? Não foi nada amistoso de sua parte botar aquele magote de gente atrás de mim. E quando eles perderam a esportiva e começaram a atirar, achei que era hora de revidar à altura.

O rosto negro e branco contra o fundo colorido dos livros não se abalou.

— Você está completamente por fora, companheiro — disse Mr. Spang, calmamente. — O melhor mesmo é eu colocá-lo em dia com as novidades.

Recebi ontem de Londres uma mensagem cifrada.

Meteu a mão no bolso da camisa preta do Oeste e retirou lentamente uma folha de papel, sem despregar os olhos de Bond.

Bond sabia que a folha de papel boa coisa não podia ser. Estava certo disso, tão certo como quando a gente recebe um telegrama que começa pela palavra "profundamente..."

— Isto veio de um bom amigo de Londres — disse Mr. Spang. E

lentamente baixou a vista para o papel. — Diz assim: "Seguramente informado Peter Franks preso pela polícia sob acusações vagas. Empregue todos os esforços deter portador substituto para averiguações. Caso operação falhe elimine substituto e envie relatório".

O salão ficou em silêncio. Os olhos de Mr. Spang ergueram-se do papel e pousaram sua cólera sobre "Bond.

— Bem, seu Fulano de Tal, parece que o tempo vai esquentar para o seu lado.

Bond sabia o que o esperava, e parte de sua mente ocupava-se em imaginar como seria o castigo. Mas, ao mesmo tempo, outra parte recordava que ele havia descoberto o que pretendia descobrir, aquilo que viera desvendar na América. Os dois Spangs representavam a entrada e a saída do canal por onde passavam os diamantes. Nesse momento concluía a missão de que fora incumbido. Sabia as respostas. Restava-lhe, agora, achar um jeito de comunicar as respostas a M.

Bond estendeu a mão para seu copo. O gelo chocalhou no fundo vazio quando ele tomou o último gole e colocou o copo no soalho. Fitou candidamente Mr. Spang.

— Recebi a tarefa de Peter Franks. Ele teve medo de topar a parada e eu precisava de dinheiro.

—' Ah, não me venha com embromação — replicou Mr. Spang, prontamente. — Você é um tira ou um detetive particular. Vou descobrir quem é você, para quem trabalha e o que é que sabe... o que fazia nas termas ao lado daquele jóquei safado; por que anda armado e onde aprendeu a atirar; quais são suas relações com o pessoal de Pinkerton, de que faz parte aquele falso chofer de táxi. Esse troço todo. Você tem pinta de tira e age como tal. E... — voltou-se com inopinada fúria para Tiffany Case — Não posso entender como é que você, sua cadela imunda, foi atrás da conversa dele.

— Entenda se quiser — bradou Tiffany Case, irritada. — Quem me mandou o sujeito foi ABC. E ele não saiu da linha. Você queria bem que eu dissesse a ABC para mandar outro? Essa não, meu caro. Conheço meu lugar nesta joça. Não pense que pode fazer de mim o que quer, não. E apesar de tudo, esse sujeito pode estar falando a verdade.

No olhar que ela lhe lançou, Bond notou um lampejo de temor. O temor pelo que pudesse acontecer a ele, Bond.

— É o que vamos investigar — disse Mr. Spang — e vamos investigar até que ele resolva confessar. Aviso logo que não vai ser sopa, não. — Olhou por cima da cabeça de Bond para o capanga. — Wint, vá chamar Kidd e tragam as botas.

As botas?

Bond recostou-se, reunindo as forças e a coragem. Era inútil discutir com Mr. Spang ou tentar fugir em pleno deserto. Já escapara de enrascadas piores. Contanto que não pretendessem matá-lo. Contanto que ele não fraquejasse. Havia Ernie Cureo e havia Félix Leiter. Talvez mesmo Tiffany Case. Encarou-a. De cabeça baixa, ela examinava as unhas com cuidado.

Bond ouviu os dois guarda-costas se aproximarem.

— Levem-no para a plataforma — ordenou Mr. Spang. Bond viu-lhe a ponta da língua projetar-se e tocar de leve os beiços finos. — Passo de Brooklyn. Oitenta por cento. Entendido?

— Entendido.

Era a voz de Wint. Parecia sôfrega.

Os dois encapuzados deram alguns passos e foram sentar-se lado a lado numa chaise longue escarlate, diante de Bond. Colocaram as botinas de rugby no tapete grosso e começaram a desamarrar os sapatos.

 

 

                                        CONTINUA