11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.
CONTINUA
11 - Shy Smile
A PRIMEIRA COISA A impressionar Bond em Saratoga foi a verde majestade dos olmos, que conferiam às discretas avenidas de casas coloniais de madeira um pouco da paz e serenidade de uma estância de águas europeia. E por toda parte viam-se cavalos, conduzidos pelas ruas, com um guarda que parava o tráfego, descendo dos caminhões à porta dos estábulos, trotando ao largo das estradas, levados para as pistas de treinamento nas proximidades do hipódromo, quase no centro da cidade. Estribeiras e jóqueis, brancos, negros e mexicanos faziam ponto nas esquinas. Relinchos e bufos de cavalos enchiam o ar.
Era uma mistura de Newmarket e Vichy. De repente ocorreu a Bond que, embora tivesse pouco interesse por cavalos, não podia deixar de apreciar a vitalidade que havia neles.
Leiter deixou Bond no Sagamore, que estava localizado à margem da estrada e distava apenas meia milha do hipódromo, e foi tratar de seus negócios. Combinaram que se encontrariam somente à noite ou casualmente nas corridas, mas que iriam bem cedinho à pista de treinamento caso Shy Smile fosse submetido a um exercício matinal no dia seguinte. Leiter prometeu informar-se a respeito disso, e de muitos outros pontos, quando passasse à noite pelos estábulos e pelo Tether, restaurante e bar que ficava aberto a noite inteira e que era o lar do rebota-lho das corridas por ocasião do programa de agosto.
Bond registrou-se na portaria do Sagamore, assinou "James Bond, Hotel Astor, Nova York" — sob as vistas de uma mulher de rosto estreito, cujos olhos, por trás dos óculos de aros de aço, admitiram que o hóspede, como tantos outros perseguidores do "conforto" do Sagamore, tinha a intenção de surripiar as toalhas e possivelmente os lençóis — pagou trinta dólares por três dias e recebeu a chave do Quarto 49.
Carregou a maleta através do relvado ressequido, por entre os canteiros de Beauty Bush e gladíolos, e entrou no espaçoso e limpo quarto de casal, com a poltrona, a mesa de cabeceira, a estampa de Currier e Ives, a cômoda e o cinzeiro marrom de plástico, que constituem o mobiliário-padrão dos motéis americanos. O banheiro e a privada, projetados com esmero, estavam impecavelmente limpos. Como Leiter havia profetizado, os copos ocultavam-se em saquinhos de papel, "para a sua proteção", e uma tira de papel "higienizado" recobria o assento da latrina.
Bond tomou uma ducha, trocou de roupa, saiu para a rua e, no restaurante refrigerado da esquina, tão característico do "estilo de vida americano" como o motel, tomou dois Bourbons old-fashioned e comeu o Prato de Galinha por dois dólares e oitenta. Em seguida, voltou ao quarto e estendeu-se na cama com um exemplar do Saratogian, no qual leu a notícia de que certo T. Bell iria montar Shy Smile nas Perpetuidades.
Pouco depois das dez, Félix Leiter bateu de leve na porta e entrou coxeando. Tresandava a álcool e fumo de mata-ratos e parecia satisfeito de si.
— Fiz alguns progressos — anunciou. Fisgou com o gancho a poltrona e arrastou-a para perto da cama em que Bond jazia. Sentou-se e sacou um cigarro. — Temos que levantar bem cedinho amanhã. Cinco horas. Está tudo certo. Às cinco e trinta vão cronometrar a carreira de Shy Smile em quatro oitavos de milha. Quero ver quem vai estar por perto nessa ocasião. Quem vai aparecer como proprietário é um tal de Pissaro. Acontece que um dos proprietários do Tiara Hotel tem esse nome. É mais um cara de nome gozado. Pissaro Miolo Mole. Antigamente era traficante de liamba. Passava o material pela fronteira mexicana, depois repartia e distribuía pelos intermediários que se espalhavam pela costa. O FBI conseguiu apanhá-lo, e ele passou uns tempos em San Quentin. Quando foi solto, Spang arranjou-lhe um lugar no Tiara, como compensação. Agora é um turfista como Vanderbilt. Bacana! A passagem por San Quentin parece que lhe afetou o miolo. Daí o apelido. O jóquei é Tingaling Bell. Monta bem, mas também faz suas traquinagens quando a grana é alta e pode se safar. Quero ver se tenho uma conversinha com ele a sós. Tenho uma proposta a fazer. O
treinador é outro desordeiro... chamado Budd, "Rosy" Budd. É tudo assim, de nome engraçado. Mas não vá atrás disso não. Budd vem de Kentucky e conhece tudo sobre cavalos. Meteu-se em encrencas lá pelo Sul... vigarices.
Furto, agressão, defloramento... nada sensacional. Só o bastante para ficar manjado na polícia. Mas nos últimos anos tem sido correto, se é possível falar assim, como treinador dos cavalos de Spang.
Pela janela aberta, Leiter atirou a ponta do cigarro na touceira de gladíolos. Ergueu-se e se espreguiçou.
— Esses são os atores por ordem de entrada em cena — disse ele. — Elenco de primeira. Mas vou acender um fogaréu debaixo deles.
Bond sentia-se desnorteado.
— Mas por que não os denuncia à comissão de corridas? Para quem você está trabalhando? Quem paga o serviço?
— Fomos contratados pelos grandes proprietários — disse Leiter. — Eles deram um sinal e darão mais alguma coisa no fim. Além disso, não iria muito longe com a comissão de corridas. Não seria justo meter o rapaz no xadrez. Seria sua sentença de morte. O veterinário aprovou o cavalo, e o verdadeiro Shy Smile foi baleado e incinerado há vários meses. Não. Tenho meus projetos, que vão causar mais dores de cabeça aos meninos de Spang do que a exclusão das corridas. Você vai ver. Bom. Cinco horas em ponto.
Em todo caso darei uma batida na sua porta.
— Não precisa — disse Bond. — Vai me encontrar do lado de fora, de botas e com a sela, enquanto os coiotes ainda ladram à lua.
Bond acordou na hora marcada. Pairava no ar um frescor agradável quando ele seguiu o vulto claudicante de Leiter através da meia luz que se infiltrava pelas copas dos olmos entre os estábulos. Para as bandas do nascente, o céu revestia-se de um cinzento perolado e iridescente, como um balão de brinquedo cheio de fumaça de cigarro. Nos arbustos, os tordos entoavam as primeiras árias do dia. Dos lumes acesos nos alojamentos por trás dos estábulos erguiam-se finas colunas de fumaça azulada, e a atmosfera recendia a café, lenha queimada e orvalho. O fragor de caçambas e os outros ruídos triviais de homens e cavalos enchiam o alvorecer. Quando os dois homens chegaram ao corrimão de madeira pintado de branco, que cercava a pista, passou por eles uma fila de cavalos cobertos com mantas e conduzidos por rapazotes que lhes seguravam as rédeas na altura do freio e lhes falavam com branda aspereza.
— Eh, preguiçoso! Levanta as patas. Vamos! Xi, você hoje não quer nada!
— Estão se preparando para os exercícios matinais — explicou Leiter.
— A galopada. É a hora que os treinadores mais detestam. É quando vêm os proprietários.
Debruçaram-se no corrimão, o pensamento voltado para o amanhecer e o café. E de súbito o sol se espraiou sobre as árvores, meia milha além, no outro lado da pista, tingindo de ouro pálido os galhos mais altos das árvores.
Minutos depois, as derradeiras sombras tinham-se desvanecido, e era dia.
Como se estivessem aguardando o sinal, três homens emergiram de sob as árvores da esquerda. Um deles puxava um garanhão castanho, com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas.
— Não olhe pra eles — disse Leiter baixinho. — Fique de costas para a pista e repare os cavalos que estão vindo pra cá. O velho corcunda que vem com eles é "Sunny Jim" Fitzsimmons, o maior treinador da América. Os cavalos são de Woodward. A maioria vai vencer nesses páreos. Veja se banca o despreocupado enquanto eu dou uma espiada nos nossos amigos.
Não é bom mostrar muito interesse. Bem, agora vejamos. O moço do estábulo, conduzindo Shy Smile. Aquele é Budd. Ao lado, meu velho amigo Miolo Mole, todo alinhado, numa camisa bacana, de lavanda. Sempre pintoso. O cavalo tem presença. Quartos dianteiros possantes. Tiraram-lhe a manta e ele não está gostando do frio. Pinoteia feito louco, com o garoto pendurado. Espero que não dê um coice na cara de Mr. Pissaro. Agora Budd agarrou-o e ele se acalmou mais. Budd ajudou o garoto a montar. Vai para a pista. Agora avança devagarinho, num meio galope, para o extremo da pista.
Chegou a um dos postes. Os caras consultam o cronômetro. Estão olhando em volta. Descobriram a gente. Naturalidade, James. Logo que o cavalo começar a correr, eles deixarão de se interessar pela gente. Pronto. Pode virar-se agora. Shy Smile está lá no fim da pista. Eles botaram o binóculo pra ver a largada. Corrida de quatro oitavos de milha. Pissaro está perto do quinto poste.
Bond voltou-se e, olhando para a esquerda ao longo do corrimão, viu os dois vultos retacos e atentos. O sol fazia reluzir-lhes os binóculos e os cronômetros. Embora Bond não acreditasse nesse pessoal, a penumbra parecia cair da copa dourada dos olmos e envolver os dois homens.
— Largou.
Bond divisou à distância um cavalo castanho em disparada, que acabava de dar a volta ao extremo da pista e entrava na reta, galopando em direção ao ponto em que eles estavam. Nenhum som lhes chegava aos ouvidos, mas logo perceberam um leve tamborilar que foi aumentando até que, numa tempestade de cascos velozes, 'o cavalo dobrou a curva diante deles, em cima da cerca externa, e enveredou reboando pela reta final, para o local em que o aguardavam os homens dos binóculos.
Ura estremecimento percorreu a espinha de Bond quando o animal passou como um meteoro, os dentes à mostra, os olhos desvairados pelo esforço, os quartos reluzentes, as ventas resfolegantes, o garoto agachado nos estribos feito um gato, o rosto abaixado e quase tocando o pescoço do cavalo. E, depois que desapareceram numa rajada de ruído e de poeira, Bond moveu os olhos para os dois observadores, agora acocorados, e viu-os baixarem os braços a fim de parar os cronômetros.
Leiter pegou Bond pelo braço e os dois afastaram-se negligentemente, voltando para o carro, estacionado além dos arvoredos.
— Correndo maravilhosamente — comentou Leiter. — Melhor do que o verdadeiro Shy Smile. Não sei qual foi o tempo, mas a verdade é que engoliu a pista. Se correr assim uma milha e um quarto, vai fazer bonito. E terá uma bonificação de seis libras, considerando que não ganhou uma carreira este ano. Isso lhe dará uma cota extra. Está bom. Agora vamos tomar um baita dum café. Ver esses gaiatos de manhã cedo me abriu o apetite. — E ajuntou à meia voz, quase para si mesmo: — E depois vou ver quanto o menino Tingaling quer para fazer uma sujeira e ser desqualificado.
Depois do café e de ter ouvido mais alguns pormenores dos planos de Leiter, Bond perambulou o resto da manhã. Almoçou no hipódromo e assistiu às corridas medíocres que, como Leiter lhe havia informado, marcavam a primeira tarde do programa.
Mas fazia um dia esplêndido, e Bond divertiu-se absorvendo o linguajar de Saratoga, mistura de Brooklyn e Kentucky, no meio da multidão; observando a elegância dos proprietários e de seus amigos no padoque à sombra das árvores; apreciando o mecanismo eficaz do pari-mutuel e os grandes painéis de luzes cintilantes que registravam o movimento das apostas e as quantias investidas; as saídas facilitadas através da cancela puxada a trator, a miniatura de lago com seis cisnes e a canoa ancorada, e, por toda parte, o toque especial de exotismo dado pelos negros que, exceto como jóqueis, são parte integrante do turfe americano.
A organização afigurava-se mais perfeita do que na Inglaterra. Eram tantas as garantias contra a fraude que parecia não haver margem para o menor deslize. Contudo, por trás de todo o aparato, Bond sabia que as redes ilegais de palpites transmitiam os resultados de cada corrida a todos os quadrantes do país, reduzindo as vantagens assinaladas pelo totalizador de apostas a um máximo de 20-4-8, vinte para uma vitória, oito para primeiro ou segundo e quatro para um placê. Sabia que, todos os anos, milhões de dólares eram abocanhados pelos gangsters, para os quais o turfe era apenas outra fonte de renda, como o lenocínio e o tráfico de narcóticos.
Bond experimentou o sistema celebrizado por "Chicago" O'Brien.
Apostou em todos os favoritos para os placês e, ao cabo do oitavo páreo, último da reunião do dia, tinha abiscoitado quinze dólares e alguns centavos.
Voltou ao motel, tomou um banho de chuveiro, dormiu um pouco e mais tarde dirigiu-se ao restaurante perto do pavilhão dos leilões. Passou uma hora tomando a bebida que Leiter lhe dissera estar na moda nos círculos turfísticos: Bourbon com água de rio. Bond reparou que, na realidade, a água provinha da torneira atrás do bar, mas Leiter havia dito que os apreciadores do Bourbon insistiam em tomar o seu uísque à maneira tradicional, com água apanhada a montante no braço do rio local, onde deveria ser mais pura. O
balconista do bar não pareceu surpreso ante o pedido, e Bond divertiu-se com a extravagância. Depois, comeu um filé e, após uma derradeira dose de Bourbon, encaminhou-se para o pavilhão que Leiter havia designado como ponto de encontro.
Era um recinto de madeira pintada de branco, com teto mas sem paredes, em que as filas de bancos sobrepostos descambavam para um falso relvado circular, cercado de cordas prateadas, diante do estrado do leiloeiro. Quando cada cavalo era introduzido no relvado iluminado a gás néon, o leiloeiro — o terrível Swinebroad de Tennessee — fazia o histórico do animal, dava início à licitação pelo preço que julgava básico e avançava de centena em centena, numa espécie de melopeia ritmada, apanhando, com o auxílio de dois homens de smoking colocados nas passagens entre as fileiras de bancos, cada aceno de cabeça ou movimento de lápis dos elegantes proprietários e agentes.
Bond sentou-se atrás de uma senhora magricela, que ostentava uma pele de visão sobre um traje de cerimônia e cujos punhos tilintavam e reluziam cada vez que fazia um lance. Ao lado dela estava um homem entediado, num dinner jacket branco e gravata borboleta escarlate, que podia ser seu marido ou treinador.
Um baio nervoso entrou aos arrancos, com o número 201 pregado cuidadosamente na garupa. A áspera melopeia começou.
— Seis mil é o lance inicial. Sete agora. Sete mil. Quem dá mais? Sete mil, e trezentos, e quatrocentos, e quinhentos. Só sete mil e quinhentos por esse belo potrilho de Teerã? Oito mil, muito obrigado. E nove, quem dá?
Oito mil e quinhentos é o lance. Quem me dá nove? Oito mil e quinhentos.
Nove, quem dá? E seiscentos, e setecentos, quem dá mais, quem arredonda?
Uma pausa, uma batida do martelo, um olhar de sincera reprovação para os lugares onde se localizava o dinheiro graúdo.
— Senhores, é de graça este potro. Em todo o verão não cheguei a vender um vencedor tão barato. Oito mil e setecentos, muito obrigado. E
quem me dá nove? Onde está o nove? Nove, nove, nove?
A mão mumificada dos anéis e braceletes tirou da bolsa um lápis de ouro e bambu e rabiscou uma conta no programa em que Bond leu: "34.° Leilão Anual de Potrilhos de Saratoga". Os olhos plúmbeos da dama percorreram as cordas prateadas e os olhos eletrizados do animal, e depois ela ergueu o lápis de ouro.
— E nove mil. Nove mil é o lance. Nove, muito obrigado. Quem me dá dez? Terei ouvido nove mil e cem? Nove mil e cem? Nove e cem? Nove e cem? — Uma pausa, um último olhar inquiridor pelas fileiras apanhadas e uma pancada do martelo. — Vendido por nove mil dólares. Muito obrigado, minha senhora.
Cabeças giraram, pescoços espicharam-se, a mulher lançou um olhar de tédio ao homem que tinha ao lado, cochichou alguma coisa, e o homem encolheu os ombros.
E o 201, um potrilho baio, foi levado para fora. O 202 entrou de viés e ficou um instante trêmulo com o impacto das luzes, da muralha de caras desconhecidas, da neblina de cheiros estranhos. , Houve um movimento na fileira atrás de Bond, o rosto de Leiter aproximou-se e a boca murmurou-lhe ao ouvido: —. Tudo certo. Custou três mil dólares, mas ele vai trair a turma. Uma sujeirazinha na reta final, quando se espera que dê tudo pra ganhar. Bom. Te vejo de manhãzinha.
O sussurro emudeceu. Bond não se voltou. Continuou a assistir ao leilão por mais algum tempo e, depois, sem pressa, afastou-se, percorrendo o caminho sob os olmos. Sentia pena de um jóquei chamado Tingaling Bell, que se dispunha a topar uma parada danada de perigosa, e de um garanhão castanho, chamado Shy Smile, que ia correr com o nome de outro e ainda por cima ia ser vítima de uma falseta.
12 - As perpetuidades
BOND ENCARAPITOU-SE na tribuna e, através do binóculo alugado, observou o proprietário de Shy Smile comendo siri mole.
O gangster estava sentado no recinto do restaurante, quatro degraus abaixo de Bond. Diante dele, Rosy Budd espetava o garfo em salsichas e chucrutes e bebia cerveja numa caneca de barro. Embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, dois garçons rondavam aquela onde estavam os dois homens e o maître d'hôtel visitava-a com frequência para saber se tudo corria bem.
Pissaro lembrava um gangster de revista de quadrinhos. Tinha uma cabeça arredondada, do formato de uma bexiga, no meio da qual as feições se comprimiam — dois olhinhos miúdos como cabeças de alfinete, duas narinas negras, uma boca franzida, úmida e cor-de-rosa, montada num queixo apenas sugerido, um corpo gorducho, metido num terno marrom e numa camisa branca de colarinho de pontas compridas, ao qual estava presa uma gravata estampada, cor-de-chocolate. Não prestava atenção aos preparativos da primeira corrida. Concentrado na comida, lançava de vez em quando um olhar para o prato do companheiro como se a qualquer momento lhe fosse arrebatar um bocado.
Rosy Budd era um tipo dobrado e mal-encarado, de cara quadrada, imóvel e inexpressiva, na qual os olhos pálidos se enterravam debaixo de finas sobrancelhas alouradas. Vestia um terno de brim listado e gravata azul-escuro. Comia devagar e quase nunca levantava a vista do prato. Quando acabou de comer, pegou um programa das corridas e estudou-o, virando as páginas cuidadosamente. Sem despregar a vista do papel, produziu um rápido movimento de cabeça quando o maître lhe ofereceu o cardápio.
Pissaro palitou os dentes até à chegada da taça de sorvete. Curvou, então, outra vez a cabeça e passou a enfiar rápidas colheradas de sorvete na minúscula boca.
Pelo binóculo, Bond examinava e julgava os dois homens. O que representavam eles? Bond recordou os russos, frios, dedicados, calculistas; os alemães brilhantes e neuróticos; os homens silenciosos, inflexíveis, anônimos da Europa Central; o pessoal do seu próprio Serviço — os destemidos, alegres soldados da fortuna, que arriscavam a vida por mil libras anuais. Comparados com estes, aqueles dois indivíduos não passavam de fantasias de adolescentes.
Anunciaram-se os resultados da terceira corrida. Agora faltava apenas meia hora para o início das Perpetuidades. Bond baixou o binóculo e apanhou o programa, aguardando que o imenso painel do outro lado da pista começasse a piscar à medida que o dinheiro passava pelo totalizador e as apostas estabeleciam as vantagens.
Olhou pela última vez os pormenores. "Segundo Dia, 4 de Agosto", dizia o programa. "Prêmio Perpetuidades. 25.000 dólares adicionais. 52.a Carreira.
Para Animais de Três Anos. Por subscrição de 50 dólares cada, para acompanhar a indicação, participantes pagarão 250 dólares adicionais. Dos 25 000 destinam-se 5 000 para o segundo, 2 000 para o terceiro e 1 250 para o quarto. O proprietário do vencedor receberá um troféu. Uma Milha e um Quarto." Seguia-se a lista dos doze cavalos, com os nomes dos proprietários, treinadores e jóqueis, rematada pela previsão das proporções entre as apostas.
Os favoritos, N.° 1, Come Again, de Mr. C. V. Whitney, e N.° 3, Pray Action, de Mr. William Woodward, figuravam nos prognósticos com vantagens de seis para quatro. O N.° 10, Shy Smile, de Mr. P. Pissaro, treinador R. Budd, jóquei T. Bell, estava em último lugar nas apostas: 15
para 1.
Bond dirigiu o binóculo para o restaurante. Os dois homens tinham ido embora. Bond apontou então para o outro lado da pista, onde as luzes piscavam no grande painel. Agora o favorito era o N.° 3, em 2 para 1. Come Again registrava um empate. Shy Smile estava cotado cm 20 para 1, mas chegou a 18 enquanto Bond observava o painel.
Faltava ainda um quarto de hora. Bond reclinou-se e acendeu um cigarro, repassando mentalmente o que Leiter lhe tinha dito e perguntando a si mesmo se iria dar certo.
Leiter seguira o jóquei até a pensão em que este se hospedava, e o abordara, exibindo a carteira de detetive particular, Então, calmamente, aplicara uma chantagem. Se Shy Smile vencesse, Leiter procuraria a comissão de corridas, denunciaria a fraude, e Tingaling Bell não voltaria a montar mais nunca. Mas havia um meio de evitar que isto acontecesse. Se o jóquei concordasse, Leiter se comprometeria a esquecer a denúncia. Shy Smile deveria vencer a corrida mas ser desqualificado. Isto poderia ser feito se, na reta final, o jóquei interferisse na carreira do cavalo que lhe estivesse mais próximo, de modo que se pudesse provar que ele havia impedido o outro animal de sair vencedor. Então haveria um protesto, que tinha de ser justificado. Seria fácil para Bell cometer a falta na última curva, e de uma forma que pudesse convencer os patrões de que tinha sido ò empenho de ganhar, que outro cavalo o desviara para a esquerda, que Shy Smile tinha tropeçado. Não havia motivo algum para que ele não desejasse vencer (Pissaro lhe prometera 1 000 dólares extra pela vitória) e o que acontecera não passara de um desses azares que ocorrem no turfe. Leiter daria 1 000
dólares adiantados e prometia outros dois mil para depois da corrida.
Bell topara sem vacilar. E pedira que os 2 000 dólares lhe fossem entregues, depois das corridas, nas Termas, aonde ele ia todas >as noites a fim de manter o peso. Às seis horas. Leiter concordara. E, agora, Bond estava com os 2 000 dólares no bolso. Relutante, aquiescera por fim em ir às Termas e efetuar o pagamento se Shy Smile deixasse de ganhar o páreo.
Daria certo?
Bond agarrou o binóculo e perscrutou a raia. Notou os quatro postes grossos que balizavam os quartos de milha e continham as câmeras automáticas para registrar todo o percurso e cujos filmes chegavam à comissão alguns minutos depois do encerramento de cada corrida. Era esta última, perto do poste de chegada, que iria ver e fixar tudo o que acontecesse na curva final. Bond sentia-se ligeiramente inquieto. Faltavam cinco minutos e o portão de largada foi colocado em posição, cem jardas à sua esquerda.
Uma volta completa da raia, mais um oitavo de milha. O poste de chegada situava-se logo abaixo dele. Bond dirigiu o binóculo para o painel. Nenhuma alteração nos favoritos, nem na cotação de Shy Smile. Agora chegavam os cavalos, trotando despreocupados para a largada. Primeiro vinha o N.° 1, Come Again, o segundo favorito. Cavalo negro, quarteado, trazia a insígnia azul-claro e marrom do estábulo de Whitney. Ressoaram gritos de aplauso ao favorito Pray Action, um ruano corredor que ostentava o pavilhão dos Woodwards, branco com pontos vermelhos, do famoso Belair Stud. Na cauda do desfile vinha o castanho da estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas, montado pelo jóquei de cara amarela, que usava um blusão de seda cor-de-lavanda com um enorme diamante negro no tórax e nas costas.
O cavalo desfilava tão bem que Bond olhou para o painel e não se surpreendeu de ver que a cotação chegava rapidamente a 17 e depois 16.
Bond continuou contemplando o painel. Num minuto, o dinheiro graúdo seria computado (tudo, menos as sobras dos 1 000 dólares de Bond, que continuariam em seu bolso) e a cotação cairia vertiginosamente. O alto-falante anunciava a corrida. Mais adiante, à esquerda, os cavalos enfileiravam-se atrás do portão de largada. Uma a uma, as lâmpadas diante do N.° 10 no painel puseram-se a piscar — 15, 14, 12, 11 e, finalmente, 9 para 1. Então as lâmpadas emudeceram e o totalizador parou. E quantos outros milhares se tinham espalhado, através da Western Union, por inocentes endereços telegráficos de Detroit, Chicago, Nova York, Miami, São Francisco e dezenas de outras agências ilegais?
Uma sineta retiniu estridente. O ar se eletrizou e cessaram os ruídos da multidão. Então atroou o áspero tropel que veio se aproximando da tribuna, passou por ela e se perdeu numa trovoada de cascos e pó levantado do chão.
Houve um lampejo de faces pálidas, ardentes, semi-escondidas pelos óculos de proteção, uma torrente de impetuosos quartos dianteiros e traseiros, um brilho súbito de olhos brancos e desvairados e uma confusão de números, dentre os quais Bond fixou apenas o importante N.° 10, bem à frente e próximo à cerca. Logo o pó foi-se assentando, e a massa pardacenta já alcançava a primeira curva e lentamente se avolumava na reta. Bond sentiu o binóculo resvalar no suor em volta de seus olhos.
O N.° 5, um cavalo negro que não figurava entre os favoritos, estava na dianteira, ganhando por um corpo. Iria esse animal desconhecido vencer o páreo? Mas no instante seguinte o N.° 1 emparelhou com ele, e depois o N.° 3. O N.° 10 estava meio corpo atrás. Iam esses quatro na frente, isolados, e o resto se agrupava a um distância de três corpos. Faziam a curva e o N.° 1 ocupava a dianteira. O preto de Whitney. O N.° 10 era o quarto. Percorriam a longa reta no lado oposto à tribuna. O N.° 3 avançava célere — com Shy Smile em seu encalço. Ambos passaram o N.° 5 e se aproximaram do N.° 1, que tinha agora uma dianteira de meio corpo. Mais uma curva, outra reta, o N.° 3 ia à frente, com Shy Smile em segundo e o N.° 1 um corpo atrás. Shy Smile continuava a ganhar terreno e emparelhou quando ambos entravam na curva final. Bond prendeu a respiração. Agora! Agora! Quase podia ouvir o zunido da câmera oculta no grande poste branco. O N.° 10 estava à frente ao dobrar a curva, mas o N.° 3 corria junto à cerca interna. A multidão torcia pelo favorito. Agora, Bell avançava cada vez mais para a banda do outro, a cabeça curvada no pescoço do cavalo, pelo lado oposto, de modo a poder fingir que não via o ruano junto à cerca. Os cavalos estavam cada vez mais próximos, e, de repente, a cabeça de Shy Smile encobriu a cabeça do N.° 3, depois seus quartos dianteiros passaram à frente e o que se viu então foi o jóquei de Pray Action levantar-se nos estribos, forçado pela falta a frear a montaria. Imediatamente Shy Smile pôs-se um corpo à frente.
Um rugido de cólera brotou da multidão. Bond baixou o binóculo, sentou-se e viu quando o espumante castanho passou trovejando pelo poste, seguido por Pray Action a uma distância de cinco corpos e Come Again em terceiro lugar.
Perfeito, pensou Bond, enquanto a multidão ululava à sua volta. Perfeito!
E com que brilhantismo o jóquei fizera a coisa! A cabeça tão bem abaixada que até mesmo Pissaro teria de admitir que Bell não podia ver o outro cavalo. O ímpeto natural para a arrancada derradeira. A cabeça ainda continuava abaixada quando ele passou pelo poste, agitando o rebenque, como se Tingaling acreditasse que estava apenas meio corpo à frente do N.° 3.
Bond aguardou a proclamação dos resultados. Ouvia-se um coro de assobios e vaias. "N.° 10, Shy Smile, cinco corpos. N.° 3, Pray Action, meio corpo. N.° 1, Come Again, três corpos. N.° 7, Pirandello, três corpos".
Os cavalos encaminhavam-se num meio galope para a pesagem. A multidão esbravejava. Tingaling Bell, com um sorriso arreganhado na cara, atirou o rebenque para o estribeiro, apeou-se da montaria e carregou a sela para a balança.
Houve então uma explosão de vivas. Diante do nome de Shy Smile apareceu a palavra OBJEÇÃO, branca em fundo preto, e o alto-falante bradou: "Atenção, por favor. Neste páreo houve uma objeção formulada pelo jóquei T. Lucky, do N.° 3, Pray Action, contra o jóquei T. Bell, do N.° 10, Shy Smile. Não destruam suas pules. Repetimos: não destruam suas pules".
Bond puxou o lenço e enxugou as mãos. Podia imaginar a cena na sala de projeção por trás do compartimento dos juízes. Estavam agora examinando o filme. Bell estaria lá, com ar aflito, e, ao lado dele, o jóquei do N.° 3, ainda mais aflito. Estariam lá também os proprietários? Estaria o suor correndo pelas papadas de Pissaro e molhando-lhe o colarinho? Estariam lá também alguns dos outros proprietários, pálidos e coléricos?
Ouviu-se novamente o 'alto-falante, e a voz disse: — Atenção, por favor. Nesta corrida o N.° 10, Shy Smile, foi desqualificado, e o N.° 3, Pray Action, foi declarado vencedor. Este é o resultado oficial.
No meio do alarido da multidão, Bond ficou em pé e saiu em direção ao bar. Depois faria o pagamento. Talvez um Bourbon com água do rio lhe desse algumas ideias sobre a maneira de entregar o dinheiro a Tingaling Bell. Isto o intranquilizava. Entretanto, as Termas pareciam o melhor lugar.
Ninguém o conhecia em Saratoga. Mas, depois disso, não faria mais serviços para Pinkerton. Ia telefonar para Shady Tree e queixar-se que não tinha ganho seus cinco mil dólares. Ia azucrinar-lhe a paciência por causa de sua paga. Divertira-se ajudando Leiter a infernar a vida dessa gente. Logo chegaria a sua vez.
Abriu caminho por entre a multidão até o bar.
13 - Lama e enxofre
No PEQUENO ÔNIBUS vermelho havia somente uma negra com um braço murcho e, junto ao chofer, uma jovem que escondia as mãos enfermas e cuja cabeça estava completamente coberta por um espesso véu negro que lhe caía pelos ombros, como um chapéu de colmeeiro, sem lhe tocar a pele do rosto.
O ônibus, que anunciava "Banhos de Lama e Enxofre", nos flancos, e "Na hora em todas as horas", acima do para-brisa, atravessou a cidade sem receber mais nenhum passageiro e deixou a estrada principal, enveredando por um caminho cascalhento e mal conservado, rasgado no meio de uma plantação de abetos. Meia milha adiante, dobrou uma esquina e desceu um morro que ia dar num bloco cinzento e encardido de casas de madeira. No centro do bloco erguia-se uma chaminé alta de tijolo amarelo, de onde subia em linha reta no ar parado um fiapo de fumaça negra.
Não havia sinal de vida no local, mas quando o ônibus estacionou na nesga de cascalho e grama, diante do que parecia ser a entrada, dois homens idosos e uma negra manquejante adiantaram-se pela porta alambrada e aguardaram no topo dos degraus que os passageiros se apeassem.
Do lado de fora do ônibus, Bond atordoou-se com o cheiro carregado e nauseante do enxofre. Era um odor fétido, proveniente de algum desvão das entranhas da terra. Bond afastou-se da entrada e sentou-se num banco rústico sob um grupo de abetos mortiços. Passou ali alguns minutos preparando-se para o que o esperava do outro lado da porta alambrada e tentando afastar de si aquela sensação de opressão e asco. Reconhecia que tal sensação era, em parte, a reação de um corpo saudável ao contacto da doença. Por outra parte, também, era produto da contemplação daquela chaminé de Belsen expelindo seu penacho de fumaça inofensiva. Mas, acima de tudo, era a perspectiva de cruzar esses umbrais, adquirir o ingresso, desnudar o corpo limpo e submetê-
lo aos abomináveis processos adotados nesse sombrio e desconjuntado estabelecimento.
O ônibus partiu, matracolejando, e Bond ficou só. A quietude era total.
As duas janelas laterais e a porta de entrada assumiam, para Bond, a forma de dois olhos e uma boca. Tinha a impressão de que o lugar o encarava, observava, convocava. Entraria?
Bond impacientava-se. Afinal ergueu-se, marchou decidido pelo caminho revestido de seixos, galgou os degraus de madeira e passou pela porta, que bateu atrás de si.
Achou-se numa enfumaçada sala de recepção. As emanações do enxofre eram mais intensas. Havia uma escrivaninha por detrás de uma grade de ferro. Cartas emolduradas, que davam testemunhos de curas, guarneciam as paredes. Algumas ostentavam selos vermelhos por baixo das assinaturas.
Numa vitrina viam-se embrulhos transparentes. Em cima dela um anúncio dizia, em maiúsculas mal escritas: "ADQUIRA UM PACOTE, TRATE-SE EM
CASA". Uma lista de preços emendava com uma cartolina que recomendava um desodorante barato: "Faça das Axilas uma Fonte de Encantos".
Uma mulher descorada, com uma rosca de cabelo alaranjado sobreposta a um rosto triste e cremoso, ergueu vagarosamente a cabeça e olhou-o através das grades, marcando com a ponta do dedo o local em que interrompera a leitura das Estórias de Amor da Vida Real.
— Em que posso servi-lo?
Era a voz reservada a estranhos, àqueles que não estavam a par dos mistérios da casa.
Bond olhou pelas grades com a cautelosa repulsa que a mulher esperava.
— Queria um banho.
— Lama ou enxofre? — ela estendeu a mão livre para o talão de ingressos.
— Lama.
— Quer levar um talão? Sai mais barato.
— Só um ingresso, por favor.
— Um dólar e cinquenta.
Ela empurrou pelas grades um bilhete malva e ficou com o dedo em cima dele até que Bond lhe passou o dinheiro.
— Por onde se entra?
— Pela direita. Siga o corredor. É melhor deixar aqui os seus objetos de valor. — Enfiou um grande envelope branco por baixo da grade. — Escreva seu nome em cima. — Olhava de esguelha enquanto Bond colocava o relógio e o conteúdo dos bolsos no envelope e rabiscava o nome.
As vinte cédulas de cem dólares estavam por dentro da camisa de Bond.
Pensou nelas, mas devolveu o envelope.
— Muito obrigado.
— Não há de quê.
No fundo da sala havia uma borboleta baixa e duas mãos de madeira, pintadas de branco, cujos indicadores inclinados apontavam para a direita e para a esquerda. Numa das mãos lia-se a palavra LAMA, na outra ENXOFRE.
Bond passou pela borboleta, tomou a direita seguindo um corredor úmido, com um piso de cimento que descia como uma rampa. Foi avançando até passar por uma porta de vaivém. Viu-se num salão comprido e elevado, com uma clarabóia no teto e quartinhos ao longo das paredes.
O salão era quente, fumegante e sulfuroso. Dois homens ainda moços, de ar simpático, com toalhas cinzentas amarradas à cintura, jogavam cartas numa mesa de pinho, perto da entrada. Na mesa estavam dois cinzeiros cheios de pontas de cigarros e um prato de cozinha entulhado de chaves. Os homens levantaram a vista quando Bond entrou, e um deles tirou uma chave do prato e estendeu-a nas pontas dos dedos. Bond deu alguns passos e recebeu-a.
— Doze — disse o homem. — Cadê o ingresso?
Bond entregou-o, e o homem fez um gesto para os quartinhos às suas costas. Sacudiu a cabeça para a porta no fundo do salão.
— Banhos, por ali.
Os dois reiniciaram o jogo.
Não havia nada no quartinho abafado. Só uma toalha dobrada, da qual as sucessivas lavagens tinham removido a felpa. Bond tirou a roupa e amarrou a toalha na cintura. Dobrou o polpudo pacote de cédulas e guardou-o no bolso interno do paletó por baixo do lenço. Esperava que fosse esse o último lugar a ocorrer a um gatuno numa batida rápida. Pendurou num cabide o coldre com a arma, saiu e trancou a porta.
Bond não fazia ideia do que ia ver do outro lado da porta no fundo do salão. Sua primeira reação foi a de quem houvesse entrado num necrotério.
Antes que pudesse reunir suas impressões, um negro calvo e gordo, com um bigode ralo cujas pontas escorriam pelos cantos da boca, aproximou-se e examinou-o de alto a baixo.
— De que sofre o senhor? — perguntou com indiferença.
— De nada — disse Bond, lacônico. — Quero só um banho de lama.
— Pois não — disse o negro. — Alguma coisa no coração?
— Não.
— Está bem. Por aqui.
Bond acompanhou o negro, caminhando no piso escorregadio de cimento, até um banco de madeira ao lado de um par de velhos cubículos com chuveiro, num dos quais um corpo nu e enlameado recebia um banho de mangueira aplicado por um homem de orelha deformada.
— Volto já — disse o negro com displicência, os pés enormes a chapinhar no piso molhado, enquanto ia de um lado a outro, atendendo a suas ocupações.
Bond seguiu com os olhos o tipo grandalhão e adiposo, e sentiu uma contração na pele ao pensar em entregar o corpo àquelas mãos bamboleantes e rechonchudas de palmas cor-de-rosa.
Bond tinha natural afeição para com os negros, mas refletiu na felicidade da Inglaterra, em comparação com a América, onde é preciso ter consciência do problema de cor desde a infância. Sorriu ao recordar algo que Félix Leiter lhe havia dito por ocasião da última missão de ambos nos Estados Unidos.
Bond se referira a Mr. Big, o célebre criminoso do Harlem, chamando-o de "negro sujo". Leiter advertira-o.
— Calminha, James. Devagar com a louça. Quando se trata do problema de cor, o ponche é prego.
A lembrança do dito de Leiter reanimou-o. Afastou os olhos da figura do negro e examinou o resto do estabelecimento.
Era uma sala quadrada, sombria, de cimento. Do teto, quatro lâmpadas elétricas nuas, manchadas de excremento de mariposa, derramavam um clarão baço pelas paredes gotejantes e pelo piso. Cavaletes arrimavam-se às paredes. Bond contou-os automaticamente. Vinte. Em cada um havia um pesado ataúde de madeira. Três quartos de cada caixão estavam cobertos por uma tampa. Em quase todos aparecia o perfil de uma cara suarenta, um pouco acima dos flancos de madeira, apontada para o teto. Alguns olhos rolaram curiosos pela o lado de Bond, mas a maioria das faces vermelhas e congestionadas parecia dormir.
Um ataúde estava aberto, a tampa encostada na parede e o flanco virado para baixo. Parecia destinado a Bond. O negro estava espalhando dentro dele um lençol grosso e encardido. Alisava o lençol a fim de o transformar num forro para a caixa. Quando acabou, foi ao centro da sala, onde havia uma fileira de baldes, escolheu dois cheios até a borda de lama pardacenta e fumegante, e arriou-os, provocando um duplo clangor, ao lado da caixa aberta. Depois, com as mãos, foi retirando o conteúdo viscoso e espesso de um dos baldes e lambuzando o lençol. Prosseguiu nessa tarefa até cobrir o lençol com uma camada de duas polegadas de lama. Deixou-o, então — a esfriar, pensou Bond — e dirigiu-se a uma tina denteada, cheia de blocos de gelo, cutucou dentro dela durante alguns instantes e extraiu várias toalhas de mão gotejantes. Pendurou-as no braço e foi de um a outro caixão ocupado, detendo-se aqui e ali para passar a toalha fria na testa suada dos fregueses.
— Nada mais acontecia. O único ruído era o chiado da mangueira perto de Bond. O jato da mangueira cessou e uma voz disse: — Está bem, Mr. Weiss. Por hoje chega.
Um homem gordo e nu, o corpo revestido de pêlos pretos, saiu cambaleante do cubículo e parou do lado de fora. Então, o homem da orelha deformada ajudou-o a vestir um roupão felpudo, deu-lhe uma esfregadela ligeira e conduziu-o para a porta por onde Bond tinha entrado.
Em seguida, o homem da orelha deformada foi até a porta do fundo da sala e saiu. Por alguns momentos a luz invadiu a porta, e Bond viu a relva do lado de fora e um pedaço abençoado do céu azul. O homem retornou com dois baldes de lama fumegante. Fechou a porta com o calcanhar e pôs os baldes no meio da sala, junto aos outros.
O negro aproximou-se do caixão de Bond e tocou na lama com a palma da mão. Voltou-se e acenou para Bond.
— Está pronto o do senhor — disse ele.
Bond deu alguns passos para a frente. O homem tirou-lhe a toalha e pendurou-lhe a chave num gancho acima do caixão. Bond estava nu diante do homem.
— Já tomou alguns banho desses antes?
— Não.
— É. Imaginei que não. Vamos começar com a lama a 45 graus. Se suportar bem, poderemos chegar aos 50 ou mesmo 55. Deite-se aí.
Bond entrou cautelosamente na caixa e deitou-se, a pele ardendo ao primeiro contacto com a lama escaldante. Devagarinho, estirou-se todo e apoiou a cabeça na toalha limpa que tinha sido colocada sobre o travesseiro de paina.
Quando se acomodou, o negro meteu ambas as mãos num dos baldes de lama nova e começou a espalhá-la por todo o corpo de Bond.
A lama tinha cor de chocolate e era lisa, pesada e viscosa, O cheiro de turfa queimada invadiu as narinas de Bond, que contemplava os braços reluzentes e graxentos do negro trabalhando no monte escuro e obsceno que outrora tinha sido seu corpo. Teria Félix Leiter sabido que ia ser assim?
Bond arreganhou selvagemente os dentes para o teto. Se esta fosse uma das pilhérias de Félix...
Afinal, o negro concluiu seu trabalho. Bond estava coberto de lama ardente. Apenas o rosto e uma área em volta do coração continuavam brancas. Sentiu-se sufocar, e o suor começou a inundar-lhe a fronte.
Com um movimento rápido o negro curvou-se, apanhou as pontas do lençol e enrolou firmemente o corpo e os braços de Bond. Em seguida, agarrou a outra metade do lençol sujo e passou-a por cima. Bond podia mover os dedos e a cabeça, mas a verdade é que tinha menos liberdade de movimentos do que dentro de uma camisa-de-força. Depois, o homem fechou o flanco aberto do ataúde, baixou a pesada tampa de madeira, e lá ficou Bond estatelado.
O negro tirou uma lousa da parede, acima da cabeça de Bond, olhou para um relógio na parede do fundo e anotou a hora. Eram seis horas em ponto.
— Vinte minutos — disse ele. — Sente-se bem? Bond respondeu com um grunhido neutro.
O negro foi cuidar de suas ocupações e Bond ficou a olhar estupidamente para o teto. Sentia o suor correr pela testa e entrar nos olhos.
Amaldiçoou Félix Leiter.
Passavam três minutos das seis horas quando a porta se abriu para dar entrada ao vulto nu e escanifrado de Tingaling Bell. Tinha a cara esperta, de fuinha, e um corpo miserável, em que cada osso estava à mostra. Caminhou com arrogância até o meio da sala.
— Ai, Tingaling — disse o da orelha deformada. — Ouvi dizer que você hoje se meteu numa embrulhada. Que azar!
— Aqueles comissários são todos ignorantes — disse Tingaling de mau humor. — Por que ia eu atropelar Tommy Lucky? O cara é meu chapa. E
que necessidade tinha eu de fazer isso? A corrida estava no papo. Ei, seu moleque safado — estirou o pé para que tropeçasse o negro que vinha conduzindo um balde de lama — você vai ter de me tirar as banhas. Comi só um prato de batatinhas fritas. E amanhã vão me dar uma barra de chumbo pra transportar para Oakridge.
O negro passou pelo pé estendido e deu uma risadinha gorda.
— Te aquieta, garoto — respondeu carinhosamente. — Olha que eu te arranco um braço fora. Num instante você perde peso. Já vou cuidar de ti.
A porta abriu-se outra vez e um dos jogadores de cartas botou a cabeça para dentro.
— Ei, lutador — disse ele para o homem da orelha deformada. — Mabel tá dizendo que não pode encomendar a tua gororoba. O telefone pifou. Não tá dando sinal.
— Ih, será? — disse o outro. — Pede a Jack pra trazer na próxima viagem.
— Tá bom.
A porta fechou-se. Desarranjo de telefone na América é coisa rara, e este era o momento em que um ligeiro sinal de perigo teria estridulado na mente de Bond. Mas desta vez, não. Em vez disso, olhou para o relógio. Passaria ainda dez minutos na lama. O negro achegou-se com as toalhas frias no braço e enrolou uma em volta do cabelo e da testa de Bond. Foi um alívio delicioso, e, por um momento, Bond achou que talvez o troço fosse mesmo suportável.
Os segundos tiquetaqueavam. O jóquei, lançando uma torrente de obscenidades, espichou-se no caixão exatamente defronte de Bond, e este imaginou que ele teria lama a 55 graus. Foi envolvido no lençol, e a tampa fechou-se sobre ele.
O negro anotou 6,15 na lousa do jóquei.
Bond cerrou as pálpebras e pensou como iria fazer para entregar o dinheiro a esse homem. Na sala de repouso, depois do banho? Era de presumir que houvesse algum lugar onde se pudesse descansar depois de tudo isso. Ou no corredor da saída? Ou no ônibus? Não. Era melhor que não fosse no ônibus. Era bom não ser visto ao lado dele.
— Muito bem, pessoal. Ninguém se mexa agora. Nada de afobação e ninguém sofrerá nada.
Era uma voz dura, implacável, que falava sério.
Os olhos de Bond descerraram-se instantaneamente, e o corpo vibrou ante o cheiro de perigo que invadiu o quarto.
A porta que dava para o exterior, a porta por onde entrava a lama, estava escancarada. Um homem permanecia de pé na ombreira e outro caminhava para o centro da sala. Ambos traziam armas nas mãos e ambos usavam capuz preto na cabeça, com fendas abertas para os olhos e a boca.
O silêncio da sala era perturbado somente pelo rumor da água que pingava dos chuveiros. Cada cubículo continha um homem nu, que espreitava a sala através do céu de água, a boca arquejante e os cabelos emaranhados nos olhos. O homem da orelha deformada era uma coluna imóvel. O branco dos olhos rolava-lhe nas órbitas e a mangueira que tinha na mão jorrava-lhe aos pés.
O homem que entrara na sala estava agora perto dos fumegantes baldes de lama. Parou diante do negro que tinha estacado com um balde cheio em cada mão. O negro tremia ligeiramente, de modo que a alça de um dos baldes produzia leve chocalhar.
Enquanto esse homem tinha sobre si os olhos do negro, Bond viu-o rodar a arma na mão de modo a segurá-la pelo cano. De repente, com violento golpe das costas da mão, largou a coronha do revólver no centro da enorme barriga do negro.
Ouviu-se apenas o estalo de uma palmada molhada, mas os baldes despencaram no chão quando as duas mãos do negro saltaram para agarrar a barriga. O negro deixou escapar um gemido abafado e rojou-se sobre os joelhos. A cabeça raspada e luzidia curvou-se quase até os sapatos do homem, dando a impressão de lhe estar prestando uma reverência.
O homem preparou um pontapé.
— Onde está o jóquei? — perguntou ameaçador. — Bell. Qual a caixa?
O braço direito do negro moveu-se no ar.
O homem da arma pôs o pé no chão. Deu meia volta e caminhou para o ponto em que Bond jazia ao lado de Tingaling Bell.
Avançou e olhou primeiro para o rosto de Bond. Pareceu enrijecer-se.
Dois olhos brilhantes reluziram por trás da fenda rasgada no capuz preto.
Depois o homem deu um passo para a esquerda e parou diante do jóquei.
Ficou imóvel um instante. Em seguida, deu um salto e foi sentar-se em cima da tampa da caixa, encarando Tingaling nos olhos.
— Ora, vejam só! Não é que é Tingaling Bell! — Havia na voz uma aterradora afabilidade.
— Que que há? — a voz do jóquei era estridente e apavorada.
— Ora, Tingaling — o homem queria parecer razoável. — Que que pode haver? Não se lembra de nada?
O jóquei arquejou.
— Nunca ouviu falar de um cavalo chamado Shy Smile, Tingaling? Será que você não estava lá quando ele foi desqualificado às duas e meia da tarde?
O tom era de ameaça.
O jóquei começou a choramingar a meia voz.
— Santo Deus, patrão. Não tive culpa. Pode acontecer a qualquer um.
Era o choradeira do menino que sabe que vai ser punido. Bond estremeceu.
— Meus amigos acham que você fez safadeza. — O homem se inclinava sobre o jóquei e a voz se tornava mais veemente. — Meus amigos creem que um jóquei como você só podia fazer uma coisa dessas de propósito. Meus amigos deram uma batida no seu quarto e encontraram uma cédula de mil enfiada num suporte da lâmpada. Meus amigos me pediram para ver de onde vinha o tutu.
O estalo da bofetada e o gritinho foram simultâneos.
— Fale, seu porra, ou eu lhe estouro os miolos. Bond escutou o clique do cão puxado para trás. Um gaguejo esganiçado rompeu dentro da caixa.
— Eu juro. É tudo o que eu tenho. Escondi no bocal da lâmpada.
Palavra. Juro. Por Deus! Acredite. Tem que acreditar.
A voz soluçava e implorava.
O homem emitiu um grunhido de impaciência e levantou a arma, de modo que ela entrou no raio de visão de Bond. Um polegar, com uma verruga inflamada na primeira articulação, repôs o cão no lugar. O homem desceu devagarinho, escorregando, da tampa do caixão. Fitou a cara do jóquei e falou, pegajoso.
— Você tem montado muito ultimamente, Tingaling — cochichava quase. — Anda estafado. Precisa de repouso. Muito repouso. Num sanatório, ou num troço aí qualquer.
Lentamente o homem pôs-se a andar pela sala. Continuava falando baixinho e com voz melíflua. Agora estava fora da visão do jóquei. Bond viu-o curvar-se e apanhar um dos baldes de lama fumegante. Voltou-se, carregando o balde, falando ainda, ainda tranquilizador.
Aproximou-se da caixa e inclinou-se sobre o jóquei.
Bond contraiu-se e sentiu a lama agitar-se pesadamente em sua pele.
— Como estou dizendo, Tingaling, muito repouso. Um regimezinho por algum tempo. Um quarto alinhado, com as cortinas cerradas para não deixar entrar luz.
A lengalenga terminou por fundir-se no silêncio. Lentamente o braço foi-se erguendo. Alto, mais alto.
Então o jóquei viu o balde subindo e compreendeu o que ia acontecer.
Começou a gemer.
— Não. Não. Nããããão.
Embora fizesse muito calor na sala, o visgo negro impregnava-se de vapores ao escorrer molemente do balde.
Quando terminou, o homem moveu-se rapidamente para um lado e jogou o balde no da orelha deformada, que estava imobilizado e deixou-se atingir.
Depois, o homem cruzou apressadamente a sala e foi postar-se ao lado do outro, junto à porta.
Deu meia volta.
— Nada de palhaçadas. Nada de polícia. O telefone está mudo — e soltou uma risadinha cruel. — É melhor tirar o garoto antes que seus olhos virem fritada.
A porta bateu. Fez-se silêncio, entrecortado pelo borbulhar da lama fumegante e pelo ruído da água esguichando do chuveiro.
14 - "Não gostamos de equívocos"
— E DEPOIS, o que aconteceu? Leiter estava sentado na poltrona de Bond no motel, e Bond andava de um lado para o outro do quarto, parando de vez em quando para tomar um gole do copo de uísque com água que estava perto da cama.
-— O caos — respondeu Bond. Todo mundo berrando que queria sair do caixão. O homem da orelha deformada procurando tirar com a mangueira a lama da cara de Tingaling e pedindo socorro aos dois homens do salão de junto. O negro choramingando no chão e os caras que saíam nus dos cubículos tremiam pela sala como galinhas de cabeça cortada. Os dois jogadores de cartas chegaram e levantaram a tampa do caixão de Tingaling.
Desembrulharam o rapaz e o colocaram no chuveiro. Acho que ele estava nas últimas. Meio asfixiado. A cara entufada pelas queimaduras. Um espetáculo sinistro. Então, um dos homens nus recobrou o sangue-frio e saiu abrindo as caixas e ajudando o povo a sair. Daí a pouco éramos vinte homens nus, cobertos de lama, e só havia um chuveiro disponível. Teve que ser na base do sorteio. Um dos ajudantes foi de carro pra cidade buscar uma ambulância. Alguém jogou um bocado de água no negro, e ele aos poucos tornou a si. Sem querer dar parte de interessado, procurei descobrir se alguém tinha alguma ideia da identidade dos dois capangas. Ninguém sabia.
Pensavam que se tratava de uma quadrilha de fora. Ninguém ligava também, agora que se viam fora de perigo. Tudo o que queriam era tirar a lama do corpo e dar o pira o mais cedo possível. Bond tomou outro gole de uísque e acendeu um cigarro.
— Não houve nada que lhe chamasse a atenção nos dois caras? — perguntou Leiter. — Altura, roupa, ou outra coisa qualquer?
— Mal pude enxergar o homem que ficou na porta — disse Bond. — Era mais baixo e mais magro do que o outro. Usava calça escura e camisa cinzenta sem gravata. O revólver parecia um 45. Talvez um Colt. O outro, o que fez o serviço, era um tipo grandalhão e gorducho. Gestos bruscos mas calculados. Sapatos pretos, limpos, caros. Um 38 Police Positive. Não usava relógio de pulso. Ah, sim — Bond lembrou-se de repente. — Tinha uma verruga na primeira articulação do polegar direito. Vermelha, como se ele estivesse sempre com ela na boca.
— Wint — disse Leiter categórico. — O outro tipo era Kidd. Sempre agem juntos. Estão entre os melhores capangas dos Spangs. Wint é um tarado, um sádico perfeito. Tem prazer na coisa. Vive sempre chupando a verruga do polegar. "Goela" é o apelido dele, mas só o chamam assim pelas costas, é claro. Todos eles têm esses apelidos infectos. Wint não tolera viajar. Enjoa de carro e de trem, e supõe que todos os aviões são arapucas mortais. Percebe gratificação especial quando faz um serviço que implica em viajar. Mas é muito atrevido quando está com os pés no chão. Kidd é um leão de chácara. "Boneca" é o nome que lhe dão os parceiros. Provavelmente dorme com Wint. Aliás, alguns desses pederastas são os piores assassinos.
Kidd tem cabelos brancos, embora não tenha mais de trinta anos. Esse é um dos motivos por que eles gostam de usar capuz. Mas um dia esse Wint vai se arrepender de não ter arrancado a verruga. Pensei nele assim que você falou nela. Acho que vou dar o serviço aos tiras. Não mencionarei você, naturalmente. Mas contarei a tratantada de Shy Smile. O resto é com eles.
Wint e o parceiro devem estar pegando um trem em Albany a esta hora, mas não faz mal. Vou fazer a cama deles. — Leiter voltou-se, ao chegar à porta.
— Calma, James. Estarei de volta em uma hora, pra irmos jantar. Vou descobrir onde foi que meteram Tingaling e depois mandarei a grana pra ele pelo correio. Isso vai animá-lo um pouquinho. Até já.
Bond despiu-se e passou dez minutos debaixo do chuveiro, ensaboando-se da cabeça aos pés para se limpar do menor resquício do banho que havia tomado. Depois, botou uma calça e uma camisa e foi até a cabina telefônica, na sala de recepção, onde pediu linha para falar com Shady Tree.
— A linha está ocupada, cavalheiro — entoou a telefonista. — Quer que mantenha a chamada?
— Quero sim. Muito obrigado — disse Bond. Sentiu-se aliviado ao saber que o corcunda ainda estava no escritório. Agora poderia dizer, sem mentir, que havia tentado telefonar mais cedo. Tinha a impressão de que Shady estaria matutando sobre sua demora em lhe telefonar para queixar-se de Shy Smile. Depois de assistir ao que tinha acontecido ao jóquei, Bond estava mais propenso a tratar a Turma de Spang com mais respeito.
O telefone produziu aquele zumbido seco e surdo que representa a campainhada no sistema americano.
— Era o senhor que queria Wisconsin 7-3697?
— É sim.
— Está pronta a ligação. Pode falar. Alô, Nova York? — e entrou a voz aguda e roufenha do corcunda: — Alô. Quem está falando?
— James Bond. Tentei chamá-lo mais cedo.
— Sim?
— Shy Smile bromou.
— Sei. O jóquei tava no monde. E daí?
— Meu dinheiro — disse Bond.
Fez-se silêncio na outra ponta do fio. Depois: — Está bem, vamos começar de novo. Vou lhe mandar mil, por ordem telegráfica. Os mil que você ganhou de mim, se lembra?
— Me lembro, sim.
— Aguarde um instante perto do fone. Chamarei dentro de alguns minutos e lhe direi e que deve fazer com o dinheiro. Onde está hospedado?
Bond informou.
— Está certo. Receberá o dinheiro de manhã. Chamo você daqui a pouco.
O telefone emudeceu..x
Bond dirigiu-se ao balcão da portaria e passou os olhos pela prateleira das brochuras. Estava divertido e impressionado com a meticulosa contabilidade desse pessoal e com a precaução tomada para que cada uma de suas operações tivesse cobertura legal. Era evidente que tal política era correta. Como poderia ele, um inglês, ganhar 5 000 dólares senão em apostas? E onde seria a próxima cartada?
O telefone encurvou um dedo mecânico em sua direção, e ele tornou a entrar na cabina, fechou a porta e apanhou o receptor.
— É você, Bond? Bom, preste atenção. Vai recebê-lo em Las Vegas.
Venha a Nova York e tome um avião. Bote a passagem na minha conta.
Darei meu endosso. Vá dará Los Angeles. Lá tem avião de meia em meia hora para Las Vegas. Foi feita reserva pra você no Tiara. Vá para o hotel e...
agora ouça bem... exatamente às dez e cinco da noite de quinta-feira vá para o centro das três mesas de vinte-e-um do Tiara, no lado da sala perto do bar.
Entendeu?
— Sim.
— Sente-se e aposte no máximo, isto é, mil dólares, cinco vezes. Depois levante-se e retire-se da mesa. E não jogue mais. Está me ouvindo?
— Estou.
— Sua conta no Tiara está paga. Depois do jogo, fique aguardando novas instruções. Entendido? Repita.
Bond repetiu.
— Perfeito — disse o corcunda. — Não converse nem cometa nenhum equívoco. Não gostamos de equívocos. Você terá a prova disso amanhã, quando ler os jornais.
Soou um estalido abafado. Bond colocou o receptor no gancho e saiu caminhando pensativo, pelo gramado, a caminho do quarto.
Vinte-e-um! Sim senhor! O velho 21 dos dias da infância. Ressurgiram as lembranças de chás tomados nas salas de jogos de outros meninos; de adultos que não levavam em consideração as fichas coloridas de osso, dispostas em pilhas, a fim de que cada criança tivesse direito a um xelim; da excitação de virar um dez e um ás e receber em dobro; da emoção daquela quinta carta, quando já se tinha dezessete e faltava um quatro ou "o menos de cinco".
E agora ia ele regressar aos jogos da infância. Só que desta vez o banqueiro seria um escroque e as fichas coloridas valeriam 300 libras esterlinas cada mão. Era um adulto, e esse seria um jogo de adultos de verdade.
Bond espichou-se na cama e pôs-se a fitar o teto. Enquanto esperava Félix Leiter, o espírito levava-o à famosa capital do jogo. Indagava a si mesmo o que faria por lá e se teria oportunidade de ver Tiffany Case.
Cinco pontas de cigarro amontoavam-se no cinzeiro do plástico. Por fim, Bond ouviu o passo claudicante de Leiter nos seixos do lado de fora.
Cruzaram juntos o relvado, tomaram o Studillac e, enquanto desciam a avenida, Leiter ia contando as novidades.
Os rapazes de Spang já tinham deixado a cidade — todos, Pissaro, Budd, Wint, Kidd. Até mesmo Shy Smile já estava a caminho do rancho de Nevada, do outro lado do continente.
— O FBI está à frente do caso — disse Leiter — mas este será apenas mais um conto das obras completas de Spang, Sem você para testemunhar, ninguém fará a menor ideia dos dois pistoleiros. Ficarei surpreendido se o FBI se enfronhar mesmo na estória de Pissaro e seu cavalo. Vai terminar deixando isso comigo e o meu pessoal. Falei com o escritório central e recebi ordens de ir a Las Vegas averiguar onde estão enterrados os restos do verdadeiro Shy Smile. Tenho de localizá-los eu mesmo. Que acha disso?
Antes que Bond tivesse tido tempo de fazer algum comentário, o carro tinha parado à entrada do Pavilion, o único restaurante elegante de Saratoga.
Saltaram e deixaram o estacionamento a cargo do porteiro.
— É esplêndido podermos comer juntos outra vez — disse Leiter. — Você nunca provou uma lagosta do Maine, assada na brasa, com manteiga derretida, igual à que eles servem aqui. Mas o gosto não seria tão bom se um dos meninos de Spang estivesse mascando macarrão com molho Caruso na mesa ao lado.
Era tarde e quase todos os fregueses tinham jantado e partido para o leilão de cavalos. Os dois amigos ficaram a uma mesa de canto e Leiter disse ao chefe dos garçons que não desse pressa às lagostas mas trouxesse dois martinis secos, preparados com vermute Cresta Blanca.
— Então você vai a Las Vegas— disse Bond. — Curiosa coincidência!
E contou a Leiter a conversa com Shady Tree.
— Sim — disse Leiter. — Não há nenhuma coincidência nisso. Ambos trilhamos caminhos deletérios e todos os caminhos deletérios levam à cidade deletéria. Tenho que botar umas coisas em ordem aqui em Saratoga antes de partir. E escrever um montão de relatórios. Nesses relatórios vai-se metade da minha vida com os Pinkertons. Mas antes do fim da semana estarei farejando em Las Vegas. Não vou poder vê-lo, James, com muita frequência.
Lá estaremos sob as vistas dos meninos de Spang. Mas creio que poderemos encontrar-nos de tempos em tempos e trocar impressões. Veja bem — acrescentou — temos lá um ótimo sujeito, que atua pra nós por baixo do pano. Chofer de táxi, chamado Cureo, Ernie Cureo. Vou avisá-lo de sua ida e ele vai lhe dar uma mãozinha. Conhece o monturo, os antros, os elementos das quadrilhas de fora que passam pela cidade. Conhece até as batotas que pagam as percentagens mais altas. E esse segredo é o mais valioso em toda a zona do Strip. Cinco milhas compactas de cumbucas. Anúncios luminosos que botam a Broadway no chinelo. Monte Cario! — Leiter riu com desdém.
— Coisa do passado.
Bond sorriu.
— Quantos zeros eles têm na roleta?
— Acho que dois.
— Aí está. Na Europa a gente pelo menos joga contra a percentagem correta. Pode ficar com seus anúncios luminosos. O outro zero dá para os manter acesos.
— Talvez. Mas o jogo de dados paga apenas pouco mais de um por cento à casa. E é nosso jogo nacional.
— Sei disso — disse Bond. — "O guri precisa de um novo par de sapatos". Conheço essa conversa fiada. Queria ver o banqueiro de uma roda de trapaceiros resmungar "o guri precisa de um novo par de sapatos" quanto tivesse contra si um nove na mesa principal e visse em cada quadro dez milhões de francos.
Leiter soltou uma gargalhada.
— Puxa! —exclamou. — Você está muito tranquilo para esse desempate fraudulento na mesa do vinte-e-um. É capaz de voltar pra Londres se gabando de ter abafado a banca no Tiara. — Leiter tomou um gole de uísque e recostou-se na cadeira. — Mas acho bom lhe dar uma ideia da coisa para o caso de você querer apostar os seus magros caraminguás contra a mina de ouro deles.
— Vá dizendo.
— E é mina de ouro mesmo — continuou Leiter. — Veja bem, James, todo o Estado de Nevada que, para a maioria das pessoas, se compõe de Reno e Las Vegas, é a mina de ouro que todos procuram. A resposta ao sonho geral de obter "alguma coisa por nada" tem de ser encontrada, pelo preço de uma passagem de avião, no Strip em Las Vegas ou no Main Stem em Reno. E ela, realmente, está lá. Não faz muito tempo, quando a sorte e os dados eram honestos, um jovem pracinha ganhou vinte e oito lances seguidos numa mesa de dados do Desert Inn. Vinte e oito! Se ele tivesse começado com um dólar e lhe tivessem deixado ir até o limite permitido pela casa, o que, conhecendo Mr. Wilbur Clark do Desert Inn, imagino que não aconteceu, teria ganho duzentos e cinquenta milhões de dólares!
Apostadores que estavam em volta ganharam cento e cinquenta mil dólares.
O pracinha ganhou setecentos e cinquenta dólares e deu no pé como se o diabo o estivesse perseguindo. Nunca chegaram sequer a saber o nome dele.
Hoje, o par de dados vermelhos está numa almofada de cetim, dentro de uma vitrina do cassino.
— Deve ter sido excelente golpe publicitário.
— No duro! — disse Leiter. — Nenhum agente de publicidade podia ter bolado um troço igual. Realizou os desejos de muita gente. E você há de ver os alucinados. Em um só dos cassinos, eles utilizam oitenta pares de dados por dia e cento e vinte baralhos de plástico. Todos os dias, de madrugada, descem para a garagem cinquenta caça-níqueis. Vai ver as velhotas de luvas acionando essas máquinas. Usam as cestas de compras para carregar os níqueis, as moedas de prata de dez centavos e as de vinte e cinco. Cutucam nessas máquinas dez, vinte horas por dia, sem parar. Não acredita? Sabe por que andam de luvas? Para impedir que as mãos fiquem sangrando.
Bond resmungou evasivamente.
— Tá bem, tá bem — concordou Leiter. — É claro que esse pessoal está arruinado. Histeria, colapso cardíaco, apoplexia. As cerejas e ameixas e figos sobem-lhes pelos olhos até o cérebro. Mas todos os cassinos mantêm serviços médicos ininterruptos, e as velhotas são carregadas gritando "Sorte Grande! Sorte Grande! Sorte Grande!" como se fosse o nome de um amante morto. E dê uma espiada nos salões de víspora, nas Rodas da Fortuna e nos caça-níqueis do centro comercial, no Golden Nugget e no Horseshoe. Mas não vá apanhar a febre e esquecer o trabalho, a pequena e até mesmo os rins.
Acontece que eu estou a par das cotas básicas de todos os jogos e sei como você gosta de apostar. Assim me faça o favor de meter isso nessa cachola dura. Vá, tome nota.
Bond estava interessado. Pegou o lápis e rasgou um pedaço do cardápio.
Leiter olhou para o teto.
— 1,4 por cento em favor da casa, nos dados; 5 por cento no vinte-e-um.
— Fitou Bond. — Exceto no seu caso, seu trapaceiro! 5 e meio por cento na roleta. Até 17 por cento no bingo e na Roda da Fortuna, e 15 a 20 por cento nos caça-níqueis. Nada mau para a casa, é ou não é? Cada ano, onze milhões de pessoas pagam essas percentagens a Mr. Spang e seus amigos. Suponha que o capital médio do otário seja duzentos dólares. Faça a conta e veja quanto fica em Las Vegas durante um ano.
Bond guardou o lápis e o papel no bolso.
— Grato pela documentação, Félix. Mas você parece esquecer que eu não vou passar férias em Las Vegas.
— Sei disso, ora bolas! — disse Leiter, resignado. — Mas não vá brincar com fogo. O negócio deles é altamente rendoso, e é evidente que eles não tolerarão macaquices. — Leiter debruçou-se na mesa. — Vou lhe contar uma coisa. Outro dia, um desses carteadores das bancas de vinte-e-um, se não me engano, resolveu encher o bolso. Abafou algumas cédulas uma noite, durante o jogo. Mas a turma percebeu a maroteira. Bom, no dia seguinte, um cara que ia de Boulder City para Las Vegas, de automóvel, viu uma coisa cor-derosa despontando em pleno deserto. Não podia ser um cacto ou outra planta qualquer. Então parou e foi olhar. — Leiter espetou um dedo no tórax de Bond. — Meu caro, aquela coisinha cor-de-rosa plantada no deserto era um braço. E a mão na ponta do braço estava segurando um baralho aberto em forma de leque. Os policiais chegaram com as pás e cavaram o chão.
Encontraram o corpo do homem pendurado na outra ponta do braço. Era o tal carteador. Tinha sido baleado e enterrado. A extravagância do braço e do baralho era só um aviso aos interessados. E então? Que acha disso?
— Curioso — disse Bond.
Chegou o jantar e ambos começaram a comer.
— Repare bem — disse Leiter, por entre bocados de lagosta. — O cara também caiu feito um patinho. Pois esses cassinos de Las Vegas têm seus truques. Não deixe de examinar a iluminação do teto. Moderníssima. Só orifícios com os feixes luminosos convergindo sobre a mesa. A luz é muito forte, sem resplendor oblíquo para perturbar os fregueses. Se examinar a segunda vez verá que a iluminação se alterna nos orifícios. Você vai pensar que os orifícios vazios estão lá só por amor à decoração. — Leiter abanou lentamente a cabeça para um lado e outro. — Qual nada, meu caro! Lá em cima, sobre o piso, há uma câmera de televisão montada sobre rodas, que passa o tempo todo bispando através dos orifícios vazios. Dessa maneira eles vão acompanhando o movimento das mesas de jogo. Quando eles cismam com um banqueiro ou com algum dos jogadores, põem a câmera de olho na mesa e cada carta ou lance é observado pelos rapazes comodamente instalados lá em cima. Infernal, não? Essas cumbucas têm de tudo, e os banqueiros sabem disso. O tal cara certamente esperava que a câmera estivesse olhando para outra mesa. Erro fatal. Estrepou-se.
Bond sorriu.
— Tomarei cuidado — prometeu. — Mas não esqueça que eu tenho de ir, de qualquer jeito, até o fim da linha. Na realidade, tenho de chegar o mais perto possível de seu amigo Mr. Seraffimo Spang. E não posso fazer isso enviando meu cartão de visita. E tem mais uma coisa, Félix. — Bond falou num tom decidido. — Eu já estou cheio com esses irmãos Spang. Não gostei daqueles dois tipos encapuzados. A maneira como um deles tratou aquele negro gordo... a lama escaldante... Não teria ficado tão chateado se ele tivesse aplicado boa sova no jóquei... embrulhada de vigaristas, afinal. Mas a estória da lama foi obra de gente perversa. E enchi também com Pissaro e Budd. Não sei o que foi exatamente. Só sei que enchi com todos eles. A atitude de Bond era a de quem se desculpa. — Achei que devia avisar a você.
— Está certo. — Leiter empurrou o prato vazio. — Estarei por perto tentando apanhar as sobras. E direi a Ernie para ficar atento. Mas não pense que pode recorrer a advogado ou ao cônsul britânico se se meter em maus lençóis com os meninos de Spang. A única lei em vigor por lá é a do Smith & Wesson. — Bateu na mesa com o gancho. — É melhor tomar um último Bourbon com água de rio. Você vai para o deserto. Seco feito um osso e mais quente do que o inferno nesta época do ano. Nada de rios, nem riachos onde apanhar a água para o uísque. Vai tomá-lo com soda para logo em seguida enxugá-lo na testa. A temperatura lá é mais de quarenta à sombra.
Só que lá não tem sombra.
O garçom trouxe o uísque.
— Vou sentir a sua falta, Félix — disse Bond, satisfeito de se ver livre de seus pensamentos. — Ninguém pra me ensinar o estilo de vida americano. Aliás, acho que você fez um belo serviço no caso de Shy Smile.
Seria ótimo tê-lo comigo na hora de enfrentar papai Spang. Juntos, creio que o pegaríamos.
Leiter olhou com simpatia para o amigo.
— Quando trabalha para os Pinkertons, a gente não pode apelar para a pancadaria — disse ele. — Também ando atrás de Spang, mas tenho de agarrá-lo legalmente. Se eu puder descobrir onde enterraram o cavalo, garanto que o nosso amigo vai ver a coisa preta pro lado dele. Pra você é fácil chegar aqui, envolver-se com ele e depois voltar para a Inglaterra. Os meninos não sabem quem é você e, pelo que você me diz, nunca descobrirão. Mas eu tenho de viver aqui. Se eu trocar tiros ou me meter numa barafunda desse tipo com Spang, os parceiros dele passarão a andar atrás de mim, de minha família £ de meus amigos. E não descansarão enquanto não fizerem comigo o que eu tiver feito com o chefe deles. Até mais. Mesmo que eu o mate. Não é engraçado chegar em casa e saber que incendiaram a casa de nossa irmã com ela dentro. Desconfio que isso ainda pode acontecer hoje em dia neste país. As quadrilhas não se acabaram com Capone. Aí está Crime & Cia. Veja o Relatório Kefauver. Atualmente, os gangsters não controlam mais o contrabando de bebidas alcoólicas.
Controlam os governos. Governos estaduais como o de Nevada. Os jornais falam. Escrevem-se livros. Pronunciam-se discursos. Sermões. Mas quem dá bola? — Leiter soltou uma risada. — Talvez você possa dar uma rajada pela Liberdade, pela Pátria e pela Beleza, com aquele seu velho tranquilizador enferrujado. Ainda é a Beretta?
— Ainda — respondeu Bond. — Ainda é a Beretta.
— Ainda tem aqueles dois zeros que querem dizer que você tem permissão de matar?
— Tenho, sim — disse Bond secamente.
— Ótimo, então — disse Leiter, erguendo-se. — Vamos pra casa. Está na hora de botar pra dormir o olho da pontaria. Estou vendo que vai precisar dele.
15 - A Strip
O AVIÃO FEZ UMA ampla curva sobre o azul cintilante do Pacífico, sobrevoou Hollywood e ganhou altura a fim de alcançar o Cajon Pass, além do gigantesco penhasco dourado das High Sierrais.
Bond vislumbrou de passagem as inumeráveis avenidas ladeadas de palmeiras, ou rodopiantes repuxos que aspergiam a esmeralda dos gramados diante de graciosas vivendas, as acachapadas fábricas de aviões, os exteriores dos estúdios cinematográficos com sua estapafúrdia mistura de cenários — ruas de cidades, ranchos do Oeste que lembravam miniaturas de pistas de corridas automobilísticas, uma escuna de tamanho natural, de quatro mastros, fundeada em terra seca — e, mais adiante, as montanhas e o infindável deserto vermelho, que é o pano de fundo de Los Angeles.
Voaram por cima de Barstow, o entroncamento de onde o monocarril de Santa Fé avança pelo deserto em sua longa rota através dos altiplanos do Colorado, margeando à direita os montes Calico, outrora centro mundial do bórax, e deixando ao longe, à esquerda, os ermos juncados de ossos do Vale da Morte. Depois, surgiram outras montanhas, raiadas de vermelho como gengivas sangrando sobre dentes apodrecidos, que deram lugar a um traço verde no meio da crestada paisagem marciana. Por fim, a lenta descida e o aviso: "Façam o obséquio de amarrar os cintos e apagar os cigarros".
O calor bateu na cara de Bond como um punho fechado, e o suor saiu-lhe pelos poros enquanto percorria as cinquenta jardas que mediavam entre o avião e o edifício refrigerado do terminal aéreo. As portas de vidro, operadas por células fotoelétricas, abriram-se com um chiado diante dele e fecharam-se devagarinho após a sua passagem. Já os caça-níqueis, quatro renques de máquinas, atravancavam o caminho. Era perfeitamente natural sacar do bolso o dinheiro miúdo, dar um sopapo na manivela e observar os limões e laranjas e cerejas e figos redemoinharem até produzirem aquele clique-pausa-tim, seguido de leve tossidela mecânica. Cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos. Bond fez uma tentativa em cada uma das máquinas, e só uma vez duas cerejas e um figo tossiram três moedas em troca de uma que ele havia introduzido.
Enquanto flanava, esperando que aparecesse na rampa de saída a bagagem da meia dúzia de passageiros do avião, deparou com um letreiro em cima de uma enorme máquina que bem poderia ser um reservatório de água gelada. O letreiro dizia: BAR DE OXIGÊNIO. Bond aproximou-se e leu o resto do anúncio: ASPIRE OXIGÊNIO PURO. SAUDÁVEL E INOFENSIVO. PARA UMA RÁPIDA RECUPERAÇÃO DAS FORÇAS. ALIVIA O MAL-ESTAR CAUSADO PELO EXCESSO DE ESFORÇO, O ENTORPECIMENTO, A FADIGA, A IRRITAÇÃO NERVOSA E MUITOS OUTROS SINTOMAS.
Bond colocou obedientemente uma moeda de vinte e cinco centavos na ranhura e curvou-se para enfiar o nariz e a boca num largo bocal negro de borracha. Apertou um botão e, seguindo as instruções, aspirou e expirou lentamente durante um bom minuto. Terminado o tempo, a máquina produziu um estalido e Bond se empertigou. Sentiu apenas uma ligeira tontura. Mais tarde, porém, reconheceu que se descuidara ao fazer uma careta irônica para um homem com um estojo de barbeador, de couro, debaixo do braço, que se plantara ao seu lado, observando-o.
O homem sorriu e foi embora.
O alto-falante convidava os passageiros a retirar a bagagem. Bond apanhou a maleta, empurrou as portas de vaivém e foi cair nos braços incandescentes do meio-dia.
— É o senhor que vai para o Tiara? — disse uma voz.
Um homem atarracado, de olhos pardos, grandes e francos sob um boné pontudo de chofer, atirou a pergunta através de uma boca larga da qual ressaltava um palito.
— Sou eu, sim.
— Então, vamos embora.
O homem não se ofereceu para carregar a maleta. Bond seguiu-o até um Chevrolet elegante, com um rabo de quati, que dá sorte, amarrado a uma figurinha cromada de mulher nua que servia de mascote. Jogou a maleta no banco de trás e montou atrás dela.
O carro partiu, deixando o aeroporto e enveredando pela auto-estrada.
Fez o cruzamento para pegar a faixa lateral e dobrou à esquerda. Outros carros passaram zunindo. O motorista de Bond manteve-se na faixa central, dirigindo sem pressa. Bond notou que estava sendo examinado no espelho retrovisor. Levantou a vista para olhar a papeleta de identificação do chofer, que dizia: "ERNEST CUREO. N° 2.584". Havia também um retrato, cujos olhos fitavam Bond.
O táxi recendia a fumaça de charuto. Bond comprimiu o botão do vidro da janela. Um jato de ar quente, de fornalha, obrigou-o a suspender o vidro outra vez.
O chofer volveu-se de lado.
— Não faça isso, Mr. Bond — disse num tom amistoso. — O carro é refrigerado. Pode parecer que não, mas é melhor do que lá fora.
— Muito obrigado — disse Bond e acrescentou: — Creio que você é o amigo de Félix Leiter.
— Certo — respondeu o chofer por cima do ombro. — Ótimo sujeito. Me disse pra ficar de prontidão. Terei muito prazer em ajudá-lo enquanto estiver por aqui. Vai se demorar?
— Não sei — disse Bond. — Uns dias, pelo menos.
— Vou lhe dizer uma coisa — continuou o chofer. — Não pense que quero explorar, mas se vamos trabalhar juntos e o senhor tem alguma grana, talvez seja melhor alugar o táxi para o dia todo. Cinquenta dólares, que tenho de ganhar a vida. Isso parecerá razoável aos caras dos hotéis. A não ser assim, não vejo jeito de ficar por perto. É a única maneira de fazer com que eles não estranhem me ver esperando pelo senhor, essa turma do Strip é um magote de safados desconfiados.
— Não podia ser melhor. — Bond havia simpatizado com o homem no primeiro instante e confiava nele. — Está combinado.
— Justo. — O chofer expandiu-se: — Veja, Mr. Bond. A tropa aqui não aprecia nada que saia da rotina. É o que estou lhe dizendo. Desconfiam de tudo. No duro mesmo. O senhor parece com tudo, menos com um turista que veio perder uma bolada nos cassinos. Eles logo começam a farejar. Veja o senhor mesmo. Qualquer um pode ver que o senhor é inglês antes mesmo de abrir a boca. Roupas e o mais. Bom, que é que um inglês vem fazer aqui? E que tipo de inglês é esse? Tem a pinta de quem topa qualquer parada. Se é assim, então vamos dar uma olhada nele. — Tornou a virar-se de lado no assento. — Viu no terminal um sujeito com um estojo de couro debaixo do braço?
Bond lembrou-se do homem que o examinara no Bar de Oxigênio e então compreendeu que o oxigênio o tinha deixado um pouco desatento.
— Pode estar certo de que ele está vendo seus retratos agora mesmo — disse o chofer. — Câmera de dezesseis milímetros naquele estojo de barbeador. Basta puxar o fecho para baixo, apertar o braço contra a máquina e ela começa a funcionar. Deve ter rodado uns quinze metros de filme. De frente e de perfil. E hoje de tarde estará no gabinete de identificação, no quartel-general, com uma lista do que está dentro da maleta. Não parece que o senhor esteja armado. Não se nota. Mas se estiver, haverá sempre outro homem armado seguindo seus passos no hotel. A ordem será dada hoje de noite. É melhor ter cuidado com qualquer sujeito de paletó. Ninguém aqui usa paletó exceto para agasalhar a artilharia.
— Muito obrigado — disse Bond, aborrecido consigo mesmo. — Acho que tenho de abrir mais o olho. A máquina deles funciona bem.
O chofer soltou um grunhido afirmativo e continuou a guiar em silêncio.
Estavam entrando no célebre Strip. Em ambos os lados da estrada, o deserto, que seria ermo não houvesse os ocasionais cartazes anunciando os hotéis, começava a pontilhar-se de postos de gasolina e motéis. Passaram por um motel com uma piscina cujos costados eram de vidro transparente. No momento em que iam passando, uma jovem mergulhou na água verde clara e seu corpo cortou o tanque numa nuvem de bolhas. Depois apareceu um posto de gasolina com elegante restaurante do tipo drive-in. GASETERIA, dizia o letreiro. REFRESQUE-SE AQUI! CACHORRO QUENTE! SANDUÍCHES DE TODOS OS TIPOS! BEBIDAS GELADAS!!! ENTRE COM O CARRO! Havia dois ou três automóveis sendo atendidos por garçonetes de sapato alto e biquíni.
A imensa autoestrada de seis faixas estendia-se através de uma floresta de anúncios e fachadas multicores até perder-se no centro da cidade, num lago dançante de ondas de calor. O dia estava quente e abafado como uma opala de fogo. O sol intumescido abrasava a superfície do concreto escaldante e não havia sombra em parte alguma, exceto sob as poucas palmeiras espalhadas à entrada dos motéis. Uma carga cintilante de estilhas luminosas, deflagradas pelos para-brisas e cromados chamejantes dos automóveis que vinham na outra mão, feriu os olhos de Bond, e ele sentiu a camisa colar-se à pele.
— Estamos entrando na Strip — anunciou o chofer. — À direita, o Flamingo. — Estavam passando por um hotel acaçapado, de linhas modernistas, com uma enorme torre de néon, agora apagada. — Bugsy Siegel construiu em 1946. Chegou a Las Vegas um dia, vindo da costa, e deu uma espiada no local. Trazia um bocado de dinheiro graúdo que queria investir. Las Vegas ia de vento em popa. Cidade aberta. Jogo. Prostituição legalizada. Lugar ideal. Bugsy não demorou muito a compreender. Viu as possibilidades.
Bond riu ao ouvir a última frase.
— Sim, senhor — prosseguiu o chofer. — Bugsy viu as possibilidades e se instalou. Ficou com o negócio até 1947, quando o mataram com tantas balas que a polícia nunca conseguiu contar. Ah, esse aqui é o Sands. Muito dinheiro metido aí dentro. Não sei exatamente de quem. Construído há coisa de dois anos. Quem aparece à frente do negócio é um sujeito chamado Jack Intratter. Vivia no Copa de Nova York. Já ouviu falar dele?
— Creio que não — disse Bond.
— Ah, aqui é o Desert Inn. Quem manda é Wilbur Clark. Mas o dinheiro veio do velho consórcio Cleveland-Cincinatti. E aquela cumbuca com um ferro de engomar como emblema é o Saara. O mais recente. Figuram como donos uns batoteiros ordinários de Óregon. O gozado é que eles perderam 50000 dólares no noite da inauguração. Pode acreditar! Todos os maiorais compareceram com o bolso cheio da gaita para fazer umas jogadas de cortesia, garantir o êxito da primeira noite, essa coisa toda. É hábito aqui as corridas rivais se confraternizarem numa inauguração. Mas o fato é que as cartas não cooperaram e os rapazes da oposição embolsaram cinquenta mil pacotes. Ainda hoje a cidade toda faz gozação. Ali — acenou para a esquerda, onde o néon se distribuía por uma carroça coberta, de uns sete metros de comprimento, em pleno galope — ali fica o Last Frontier. Aquilo, à esquerda, é a imitação de uma cidade do Oeste. Vale a pena ver. Mais adiante é o Thunderbird, e do outro lado da estrada é o Tiara. A baiúca mais chique da cidade. Imagino que já ouviu falar de Mr. Spang e seus cupinchas, não? — Diminuiu a marcha e parou do lado oposto ao hotel de Spang, em cujo topo havia uma coroa ducal de lâmpadas brilhantes que não paravam de piscar, numa luta inglória com o sol deslumbrante e as reverberações da via pública.
— Conheço as linhas gerais — disse Bond. — Mas gostaria que me contasse mais alguma coisa de outra vez. E agora?
— O senhor é quem manda.
Bond sentiu que já estava saturado do desagradável esplendor do Strip.
Desejava somente sair do calor, meter-se no quarto, almoçar, talvez dar umas braçadas na piscina e descansar um pouco até a noite. E disse isto ao chofer.
— Pra mim tá bem — disse Cureo. — Acho que não se meterá em encrenca logo na primeira noite. Tenha calma e não perca a naturalidade. Se vai entrar em ação em Las Vegas é melhor aguardar um pouco até conhecer bem a situação. E olho no jogo, meu caro. — Soltou uma risadinha gutural.
— Já ouviu falar das Torres do Silêncio da Índia? Dizem que os abutres lá levam somente vinte minutos para deixar um sujeito na ossada. Creio que demoram um pouquinho mais pra depenar um freguês no Tiara. — Passou à primeira. — Apesar disso — disse ele, observando o tráfego no espelho retrovisor — houve um cara que saiu de Las Vegas com cem mil. — Fez uma pausa, esperando por uma oportunidade para cruzar a rua. — Só que ele tinha meio milhão, quando começou a jogar.
O carro saiu cortando o tráfego até colocar-se sob os pilares do pórtico, diante das largas portas envidraçadas do edifício esparramado, de estuque cor-de-rosa. O porteiro, num uniforme azul-celeste, abriu a porta do táxi e apanhou a maleta de Bond.
Quando passava pelas portas envidraçadas, Bond ouviu Ernie Cureo dizer ao porteiro: — Esse inglês é louco. Alugou meu táxi por cinquenta paus o dia. Que é que acha?
Então a porta se fechou às suas costas e o ar refrigerado acolheu-o com um gélido beijo no cintilante palácio do homem chamado Seraffimo Spang.