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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DIAMANTES SÃO ETERNOS
OS DIAMANTES SÃO ETERNOS

 

                                                                                                                                             

 

 

 

 

 

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

CONTINUA

8 - O olho que nunca dorme

 

 


ERAM 12h30 quando Bond desceu do elevador e saiu para a rua esturricante.

Virou à direita e foi perambulando devagarinho para Times Square. Ao passar pela elegante frontaria de mármore negro da House of Diamonds, deteve-se a olhar as duas discretas vitrinas-forradas de veludo azul-escuro.

No centro de cada uma havia uma única jóia, um brinco formado por um grande diamante talhado como uma pêra, pendente de outra pedra perfeita, circular e lavrada ao jeito de um brilhante. Debaixo de cada brinco via-se uma delicada placa de ouro, em forma de cartão de visita, com uma ponta dobrada para baixo. Em cada placa estavam gravadas as palavras: Os Diamantes São Eternos.

Bond sorriu, curioso de saber qual de seus antecessores tinha contrabandeado esses quatro diamantes para a América.

Prosseguiu na caminhada em busca de um bar com ar condicionado, onde pudesse refugiar-se do calor e pensar um pouco. Estava satisfeito com a entrevista. Pelo menos não tinha sido o massacre que imaginara. O corcunda até que o divertira. Havia nele certa pompa teatral, e a fatuidade em relação à Turma de Spang era interessante. Mas o homem não era nada engraçado.

Bond flanara alguns minutos quando, de súbito, teve a impressão de que o seguiam. Não tinha outro indício além de ligeiro formigamento do couro cabeludo e uma aguda percepção dos transeuntes à sua volta. Mas, confiando em seu sexto sentido, parou diante da vitrina por onde ia passando e lançou um olhar despreocupado para trás, ao longo da Rua 46. Nada. Só viu a multidão heterogênea que caminhava lentamente pelas calçadas, a maioria no mesmo lado em que ele se encontrava, o lado da sombra. Não notou nenhum movimento brusco para o interior de uma loja, ninguém passando o lenço no rosto para evitar ser reconhecido, ninguém curvando para amarrar os sapatos.

Bond passou os olhos pelos relógios suíços da vitrina e continuou a andar. Algumas jardas adiante, parou de novo. Nada ainda. Tornou a andar e dobrou a Avenida das Américas, parando no primeiro pórtico, a entrada de uma loja de artigos femininos, onde um homem de roupa cinzenta, com as costas para a rua, examinava as calças pretas rendadas de um manequim particularmente realista. Bond voltou-se, encostou-se a um pilar e dirigiu um olhar preguiçoso mas atento para a rua.

Foi então que algo lhe prendeu o braço direito e uma voz rosnou: — Está bem, godeme. Fique quieto se não quiser chumbo para o almoço.

Bond sentiu que alguma coisa lhe comprimia as costas, logo acima dos rins.

O que havia de familiar naquela voz? A Lei? A Quadrilha? Bond baixou os olhos para ver o que lhe segurava o braço. Era um gancho de aço. Bem, se o homem tivesse só um braço... Como um raio, Bond fez pião, inclinou-se para um lado e rodou o punho esquerdo num soco de cima para baixo.

Houve um estalo quando a mão esquerda do outro lhe agarrou o punho, e no mesmo instante em que o contacto tele-grafou à mente de Bond que não havia arma, soou a gargalhada bem conhecida e a voz indolente falou: — Não adianta, James. Você foi pegado mesmo.

Recompondo-se aos poucos, Bond encarou um momento o rosto aquilino e sorridente de Félix Leiter. E enquanto olhava incrédulo para o outro, a tensão ia-se dissipando.

— Então, seu velhaco, você me seguia, andando à minha frente — disse afinal. Contemplou com alegria o amigo que vira pela última vez feito um casulo de ataduras imundas, na cama ensanguentada de um hotel da Flórida, o agente secreto americano com quem partilhara tantas aventuras. — Que diabo você faz aqui? Por que cargas d'água resolve bancar o palhaço nesse solão? — Bond puxou um lenço e enxugou o rosto. — Houve um instante em que quase me deixou nervoso.

— Nervoso?! — Félix Leiter riu com desdém. — Você estava era dizendo suas orações. E sua consciência anda tão pesada que você não sabia se tinha sido pegado pelos tiras ou pelos bandidos. Não é verdade?

Bond soltou uma risada e esquivou-se à pergunta.

— Ora, vamos, seu vigarista — disse ele. — Você me paga um trago e me conta o que anda fazendo. Não acredito em acasos como este. Aliás, você vai pagar o almoço. Vocês, texanos, são ursos como o diabo.

— Topo — disse Leiter.

Enfiou o gancho de aço no bolso direito do paletó e segurou o braço de Bond com a mão esquerda. Seguiram pela rua e Bond reparou que Leiter coxeava pesadamente.

— No Texas até mesmo as pulgas são tão ricas que se dão ao luxo de alugar cachorros. Vamos. O restaurante de Sardi fica ali adiante.

Leiter evitou o salão elegante, frequentado por atores e escritores célebres, e conduziu Bond para o andar superior. Subindo a escada, sua coxeadura tornava-se mais evidente, e ele se arrimava ao corrimão. Bond não disse nada, mas quando deixou o amigo a uma mesa de canto do restaurante abençoadamente refrigerado e retirou-se para o reservado a fim de se limpar, recapitulou suas impressões. O braço direito amputado, a perna esquerda também, e as cicatrizes imperceptíveis, abaixo da sobrancelha e acima do olho direito, indicavam ter havido algum enxerto no local. Mas, a não ser isso, Leiter parecia em boa forma. Os olhos cinzentos continuavam impávidos, o topete cor-de-palha não tinha nem um fio branco e, no rosto, não havia nem sombra da amargura dos inválidos. Contudo, insinuara-se nas maneiras de Leiter certa reticência enquanto caminhavam juntos, e Bond sentia que isto dizia respeito a ele, Bond, e talvez às atuais atividades do próprio Leiter. De modo algum, pensou enquanto atravessava o salão para juntar-se ao amigo, relacionava-se com os danos sofridos.

Aguardava-o um martini seco com uma rodela de limão. Bond sorriu ante a lembrança de Leiter e provou a bebida. Era excelente, mas não reconheceu o vermute.

— Preparado com Cresta Blanca — explicou Leiter. — Nova marca nacional, da Califórnia. Gosta?

— O melhor que já provei.

— E me arrisquei a pedir pra você salmão defumado e Brizzola — disse Leiter. — Você encontra aqui uma das melhores carnes da América, e o Brizzola é inigualável. Bife, assado e grelhado. Serve?

— Você é quem manda — disse Bond. — Comemos juntos tantas vezes que conhecemos os gostos um do outro.

— Eu disse a eles que não se apressassem — continuou Leiter, arranhando a mesa com o gancho. — Primeiro vamos tomar outro martini e, enquanto bebe, você vai desembuchando. — O sorriso era cordial, mas os olhos sondavam Bond. — Me diga só uma coisa. Qual é o negócio que você tem com meu velho amigo Shady Tree?

Fez o pedido ao garçom e curvou-se para a frente, à espera.

Bond acabou o primeiro martini e acendeu um cigarro. Girou como que casualmente na cadeira e viu que as mesas ao lado estavam desocupadas.

Voltou-se e fitou o americano.

— Diga-me primeiro, Félix — falou em voz baixa. — Para quem você trabalha atualmente? Ainda para a CIA?

— Que nada! — respondeu Leiter. — Sem a mão direita, só podia ter trabalho de escritório. Foram muito camaradas e me indenizaram generosamente quando eu disse que queria a vida ao ar livre. Então o pessoal de Pinkerton me fez uma boa oferta. Pinkerton, "O olho que Nunca Dorme".

Portanto, agora sou detetive particular. É a velha história: "Bota a roupa e vá falando". Mas é divertido. Gosto de trabalhar com eles. Um dia me aposento com uma pensão e um relógio de ouro que mareia no verão. No momento estou à frente da equipe que investiga as corridas... dopagem, trapaça nos páreos, guarda noturna nos estábulos... essa coisa toda. Nada mau. Corre-se o país de ponta a ponta.

— Está ótimo — disse Bond. — Só que eu não sabia que você entendia de cavalos.

— Bom, eu não era capaz de reconhecer um, a menos que estivesse atrelado à carrocinha do leite — admitiu Leiter. — Mas num instante a gente aprende, e o que interessa mesmo são as pessoas, não os cavalos. E você? — baixou a voz. — Ainda trabalhando pra velha firma?

— Isso mesmo — confirmou Bond.

— Alguma missão agora?

— Sim.

— Secreta?

— É.

Leiter deu um suspiro. Bebericou o martini, pensando..

— Bom — disse, por fim. — Você é um perfeito idiota se está agindo sozinho num troço em que entram os meninos de Spang. Olhe, você representa um risco tão grande que só um louco como eu topa almoçar com você. Mas vou lhe contar porque é que eu estava rondando Shady hoje de manhã. Talvez assim possamos ajudar um ao outro. Sem misturar as nossas coisas, naturalmente. Tá bom?

— Você sabe, Félix, como eu gostaria de trabalhar com você — disse Bond, com seriedade. — Mas ainda estou trabalhando para o governo, enquanto você provavelmente faz concorrência ao seu. Se, porém, chegarmos à conclusão que os nossos alvos são os mesmos, não vejo por que tenhamos de agir separadamente. Se você está atrás da mesma lebre, então vamos correr juntos. Agora — Bond olhou ironicamente para o texano — me diga se acertei ao imaginar que você está interessado em alguém com uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas? Alguém que se chama Shy Smile?

— Acertou — disse Leiter, sem se mostrar excessivamente surpreso. — Correrá em Saratoga na terça-feira. E o que é que a carreira desse cavalo tem a ver com a segurança do Império Britânico?

— Mandaram-me apostar nele — explicou Bond. — Mil dólares numa certa. Pagamento por outro serviço já prestado.

— Bond ergueu o cigarro e cobriu a boca com a mão. — Cheguei hoje de manhã, de avião, com 100 000 libras esterlinas em diamantes brutos para entregar a Mr. Spang e seus amigos.

Os olhos de Leiter se apertaram e ele deu um assobio abafado, de surpresa.

— Menino! — disse com respeito. — Não tenha dúvida que você está voando muito alto pra mim. Eu só estou interessado nisso porque Shy Smile é uma fraude. O cavalo que deverá vencer na terça-feira não será Shy Smile de jeito nenhum. Shy Smile não foi nem colocado nas três últimas carreiras em que tomou parte. Aliás, já o mataram. Será um animal muito veloz chamado Pickapepper. E só por acaso tem ele uma estrela na testa e malhas brancas nas quatro patas. É um castanho quarteado. Fizeram bom trabalho nas patas e em outros pontos, para eliminar as diferenças. Passaram mais de um ano nisso. Lá no deserto de Nevada, onde os Spangs têm uma espécie de fazenda. E vão abafar a banca! Vai ser um grande páreo, com 25 000 dólares extra. Pode apostar que vão derramar dinheiro pouco antes da largada. Vai ser coisa de cinco, talvez dez ou quinze para um. Vão encher a burra.

— Mas eu pensava que, na América, todos os cavalos eram obrigados a ter os beiços tatuados — disse Bond. Como é que eles contornaram esse problema?

— Enxertaram pele nova na boca de Pickapepper e copiaram as marcas de Shy Smile. Aliás, meu velho, essa história de tatuagem já está superada.

A ordem em Pinkerton é conseguir que o Jóquei Clube substitua a tatuagem por fotos dos agriões.

— Que são agriões?

— São aquelas calosidades no curvilhão dos cavalos. Parece que são diferentes de um animal para outro. Como as impressões digitais do homem.

Mas aí teremos a novela costumeira. Fotografarão os agriões de todos os cavalos de corrida da América e logo descobrirão que a rapaziada bolou um meio de alterá-los com ácido. A polícia nunca anda tão depressa como os malfeitores.

— Onde é que você foi buscar tanta informação a respeito de Shy Smile?

— Chantagem — retrucou Leiter, jovial. — Eu botei as mãos em cima de um dos rapazes do estábulo de Spang que estava envolvido no tráfico de narcóticos. Pra se ver livre, ele me contou essa história tintim por tintim.

— E o que é que você vai fazer agora?

— É o que resta saber. Vou a Saratoga no domingo. — O rosto de Leiter iluminou-se. — Taí! Por que não vem comigo? Iremos de carro, e eu te levarei pro meu tugúrio. O Sagamore. Motel de luxo. Afinal você tem de dormir em algum lugar. Sei que é melhor não sermos vistos juntos com frequência, mas poderemos encontrar-nos de noite. Que tal?

— Fabuloso! — disse Bond. — Não podia ser melhor. E agora são quase duas horas. Vamos almoçar enquanto eu lhe conto a minha parte nessa estória toda.

O salmão defumado era da Nova Escócia, bem pobre sucedâneo do produto escocês legítimo. Mas o Brizzola era tudo quanto Leiter havia dito, tão tenro que Bond podia cortá-lo com o garfo. Findou o almoço comendo metade de um abacate com molho francês e, depois, sorveu devagarinho seu café expresso.

— Aí está. Toda a estória. — Bond concluiu a narrativa que vinha fazendo entre uma garfada e outra. — Minha impressão é que os Spangs fazem o contrabando e a House of Diamonds, que é deles, trata de vender.

Que acha?

Com a mão esquerda, Leiter bateu a ponta de um Lucky Strike na mesa e acendeu-o na chama do Ronson de Bond.

— É possível — concordou depois de uma pausa. — Mas não sei muito a respeito desse irmão de Seraffimo, Jack Spang. E se Jack Spang é "Saye", é a primeira vez que ouço falar nele nesses últimos tempos. Temos informações sobre todo o resto da turma, e eu já topei com Tiffany Case.

Boa moça, mas vive há muitos anos em contacto com quadrilhas. Não tem tido muita sorte desde o berço. A mãe dela dirigia a pensão mais chique de São Francisco. Ia muito bem até que cometeu um engano de lascar. Um dia resolveu deixar de pagar a taxa de proteção à quadrilha local. Pagava à polícia e acho que pensava estar a salvo. Maluquice. Uma noite, a turma apareceu lá e desmanchou a baiúca. Não mexeram com as pequenas mas buliram com Tiffany. Ela tinha só dezesseis anos naquela época. Não surpreende que de lá pra cá não tenha querido mais nada com homem. No outro dia, ela se apoderou do cofre da mãe, arrombou-o e se mandou. Aí começou a clássica estória: vestiários, dancings, extra de cinema, garçonete.

Até os vinte anos. Depois, a vida parecia difícil, e deu pra beber. Instalou-se numa casa de cômodos de uma das Florida Keys e passou a tomar porres tremendos. Ficou conhecida por lá como a garota do pifão. Foi então que ura, meninote caiu no mar. Ela caiu atrás e salvou-o. Seu nome apareceu nos jornais, e uma matrona rica engraçou-se dela e praticamente sequestrou-a.

Fez com que ela entrasse para uma liga antialcoólica e carregou-a como dama de companhia numa volta ao mundo. Mas Tiffany caiu fora quando chegaram a São Francisco e foi viver com a mãe, que nesse tempo já tinha largado o negócio de pensão e estava aposentada. Mas não se fixou por lá.

Creio que achou a vida meio monótona. Deu no pé outra vez e acabou em Reno. Trabalhou no Clube de Harold por algum tempo. Conheceu nosso amigo Seraffimo, que ficou todo irrequieto quando viu que ela não queria dormir com ele. Seraffimo arranjou-lhe um emprego qualquer no Tiara, em Las Vegas, onde ela passou os dois últimos anos. Fazendo essas viagens à Europa de vez em quando, suponho. Mas é boa moça. Só que nunca teve sorte depois do episódio da quadrilha.

Bond evocou os olhos taciturnos que o miravam do espelho e a radiola tocando Feuilles Mortes na solidão da sala.

— Gosto dela — disse ele, lacônico, e sentiu o olhar inquiridor de Félix Leiter. Consultou o relógio. — Bem, Félix — continuou. — Parece que estamos caçando o mesmo tigre. Mas seguimos rastros diferentes. Vai ser engraçado avançarmos simultaneamente. Agora vou embora dormir um pouquinho. Estou num apartamento do Astor. Onde nos encontraremos no domingo?

— É melhor que a gente evite esta parte da cidade — disse Leiter. — Vamos nos encontrar do lado de fora do Plaza. Cedo, assim a gente não pegará o tráfego na auto-estrada. Nove horas, tá bom? No ponto dos cabriolés, porque, se eu me atrasar, você pelo menos aprende a reconhecer um cavalo. Vai ser útil em Saratoga.

Pagou a conta e ambos desceram a escada. Na rua escaldante, Bond fez sinal para um táxi. Leiter recusou a carona. Em lugar disso, tomou Bond afetuosamente pelo braço.

— Só uma coisa, James — disse ele em tom sério. — Talvez você não dê muito valor aos gangsters americanos, comparados com a SMERSH, por exemplo, e outros grupos que você tem enfrentado. Mas posso lhe dizer que os meninos de Spang não são de brincadeira não. A máquina deles é bem montada. Os nomes que adotam são gozados, reconheço. Mas estão bem protegidos. Infelizmente é assim que as coisas são hoje em dia na América.

Não faça pouco caso do que estou lhe dizendo. Esse pessoal é parada dura. A sua missão não me cheira bem.

Leiter largou o braço de Bond e viu o amigo entrar no táxi. Depois curvou-se e enfiou a cabeça na janela do carro.

— E sabe a que é que cheira essa sua missão? — disse sorrindo. — A formol e lírios.


9 - Champanhe amargo

Não vou DORMIR com você — disse Tiffany Case com simplicidade. — Portanto, não gaste seu dinheiro tentando me embriagar. Mas tomarei outro e talvez mais outro. Não quero é beber seus vodca-martinis e deixar você na mão.

Bond riu. Fez o pedido ao garçom e voltou-se para ela.

— Ainda não encomendamos o jantar — disse ele. — Eu ia sugerir mariscos e vinho branco do Reno. Isso pode levá-la a mudar de ideia. Dizem que essa mistura não falha nunca.

— Escute, Bond — disse Tiffany Case — é preciso mais do que Ravigotte de mariscos para me fazer ir pra cama com um homem. De qualquer maneira, desde que é você quem paga, vou pedir caviar, costeleta e champanha palhête. Não é todo dia que eu tenho um encontro com um inglês bonitão, e o jantar tem de estar à altura do acontecimento. — Inclinou-se para Bond, estendeu a mão e colocou-a sobre a dele. — Desculpe — disse bruscamente. — Estava brincando a respeito da conta. O jantar quem paga sou eu. Mas falei sério a respeito do acontecimento.

Bond sorriu, fitando-a nos olhos.

— Deixe de meninice, Tiffany — disse ele, empregando o nome dela pela primeira vez. — Eu estava sonhando com este momento. E vou comer o que você comer. Tenho dinheiro suficiente para pagar a conta. Mr. Tree apostou comigo hoje de manhã e eu ganhei mil dólares.

À menção do nome de Shady Tree, as maneiras da moça se modificaram.

— É. Isso dá pra pagar — disse ela com rudeza. — Sabe o que dizem desta espelunca? "Tem tudo o que se pode comer por trezentos bagarotes".

O garçom trouxe os martinis, batidos e não mexidos, como Bond havia recomendado, e algumas rodelas de limão numa taça. Bond espremeu duas rodelas e deixou-as cair no fundo do líquido. Ergueu o copo e olhou para a moça por cima da borda.

— Ainda não bebemos ao êxito de certa missão — disse ele.

A moça dobrou para baixo os cantos da boca, num trejeito sarcástico, bebeu de um gole metade do martini e repôs o copo na mesa.

— Nem ao susto por que passei — disse secamente. — Você e seu maldito golfe. Vi a hora de você pegar um taco e uma bola e mostrar ao homem que sabia jogar.

— Você me deixou nervoso também com aqueles estalidos no isqueiro.

Aposto que terminou acendendo aquele Parliament pelo filtro.

Ela deu uma risadinha.

— Acho que você tem olhos nos ouvidos — admitiu. Não é que eu quase fiz isso? Pois bem. Estamos quites. — Bebeu o resto do martini. — Ora, vamos. Você não é nenhum esbanjador. Eu quero outro martini. Estou começando a me regalar. E por que não encomenda o prato? Ou está esperando que eu fique inconsciente para então você se repimpar?

Bond acenou para o maître d'hôtel. Fez o pedido, e o escansão, que vinha de Brooklyn mas usava jaleco listado e avental verde e conduzia uma taça pendurada de uma corrente de prata que lhe circundava o pescoço, saiu em busca do Clicquot Rose.

— Se eu tiver um filho — disse Bond — hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi só isto: "Gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor".

— Mas que feio! — exclamou a moça. — Isso é lá vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: "Se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?"

— Mas eu não comecei a abalar ainda. Você não me deixa passar os braços pelo tronco!

Ela riu e deu a Bond um olhar de aprovação.

— Mas que beleza, Mr. Bond! O senhor não brinca em serviço, hem?

— E quanto ao vestido — Bond continuou — é um sonho, e você sabe que é. Adoro veludo preto, principalmente numa pele bronzeada. Gosto de ver que você não usa muita jóia nem pinta as unhas. E quer saber de uma coisa? Aposto que não há esta noite em Nova York uma contrabandista mais bonita do que você. Com quem estará você fazendo contrabando amanhã?

Ela pegou o terceiro martini, olhou-o e, depois, sorveu-o devagarinho, em três goles. Botou o copo na mesa, tirou um Parliament do maço ao lado do prato e curvou-se para a chama do isqueiro de Bond. O vale entre os seios dela abriu-se à contemplação do homem. Ela fitou-o através da fumaça do cigarro. De súbito, os olhos se dilataram e lentamente voltaram a apertar-se.

"Gosto de você", diziam eles. "Tudo é possível entre nós. Mas não se impaciente. Seja bonzinho. Não quero mais ser ofendida".

O garçom chegou com o caviar, e no mesmo instante o ruído do restaurante invadiu-lhes o aconchegante e silencioso recanto que tinham construído para si mesmos, desmanchando o sortilégio.

— Que é que vou fazer amanhã? — repetiu Tiffany Case no tom de voz que a gente adota na frente de garçons. — Ora, vou para Las Vegas, passando por Chicago e Los Angeles. É uma volta bastante longa, mas chega de voo por enquanto. E você?

_ O garçom afastou-se. Por alguns momentos, comeram o caviar em silêncio. Não era necessário dar resposta imediata à pergunta. Bond sentiu de repente que eles dispunham de todo o tempo do mundo. Ambos conheciam a resposta à grande pergunta. Para responder às perguntas triviais não havia pressa.

Bond recostou-se. Chegou o champanha e Bond provou-o. Estava gelado e parecia ter um gostinho de morangos. Era delicioso.

— Vou a Saratoga — disse ele. — Tenho de apostar num cavalo que vai me render algum dinheiro.

— Acho que é uma pulha — observou Tiffany Case com amargura.

Bebeu um pouco de champanha. Seu humor alterou-se novamente. Deu de ombros. — Parece que você causou boa impressão a Shady hoje de manhã — disse com indiferença. — Ele pretende arranjar um lugar pra você no meio da turma.

Bond baixou a vista para a pocinha cor-de-rosa do champanha. Podia apalpar a bruma de perfídia que se arrastava furtiva entre ele e essa moça de quem gostava. Mas não fez caso. Devia continuar a engabelá-la.

— Isso é ótimo — disse tranquilo. — Me agrada. Mas quem é "A Turma"?

E tratou de acender um cigarro, invocando o profissional a fim de manter o homem em silêncio.

O olhar penetrante da moça meteu-o em brios. O agente secreto assumiu seu posto e o cérebro começou a trabalhar friamente, à procura de pistas, de mentiras, de hesitações.

Levantou a vista com ar cândido.

Ela pareceu satisfeita.

— A Turma de Spang, como dizem. Dois irmãos chamados Spang.

Trabalho para um deles em Las Vegas. Ninguém parece saber o que é feito do outro. Alguns acham que ele está na Europa. E há também alguém chamado ABC, que é quem me dá ordens sempre que eu me meto no tráfico de diamantes. O outro, Seraffimo, é o irmão para quem eu trabalho. Está mais interessado em jogo e cavalos. Comanda uma rede de palpites e o Tiara em Las Vegas.

— O que é que você faz lá?

— Trabalho lá, somente — disse ela, encerrando o assunto.

— Gosta do serviço?

Ela ignorou a pergunta, considerando-a estúpida demais para merecer resposta.

— Depois deles, vem Shady — continuou a moça. — Não é mau sujeito não. Só que é trapaceiro de marca. Depois de dar a mão a ele, é bom contar os dedos. Toma conta das pequenas, do narcótico e do resto. Há muitos outros tipos... um bando de espertalhões. Gente ruim mesmo. — Ela o encarou com dureza. — Vai conhecer todos eles — escarneceu. — E vai gostar. Sua laia.

— Nada disso — disse Bond, indignado. — Outro emprego. Apenas isso. Afinal, preciso ganhar dinheiro.

— Existem mil outras maneiras.

— Bom, mas esse é o pessoal com quem você resolveu trabalhar.

— Tem razão nesse ponto. — Ela esboçou um riso torto, e o gelo quebrou-se outra vez. — Mas, acredite no que lhe digo. você vai se sentir importante quando fizer parte da turma. Mas, se eu fosse você, pensaria muito, mas muito mesmo, antes de ingressar neste nosso circulozinho íntimo. E não venha com truques não. Se planeja alguma coisa desse gênero, é melhor começar a tomar lições de harpa.

Interromperam a conversa à chegada das costeletas, acompanhadas de aspargos com molho musselina, e de um dos famosos irmãos Kriendler, que possuem o "21" desde o tempo em que era o melhor bar clandestino de Nova York.

— Olá, Miss Tiffany — disse Kriendler. — Bons olhos a vejam. Como vão as coisas em Las Vegas?

— Alô, Mac. — A moça deu-lhe um sorriso. — O Tiara vai indo bem, obrigado — e relanceou o olhar pelo salão abarrotado. — Parece que a sua baiúca não vai mal.

— Não me queixo — disse o jovem alto. — Muito aristocrata do pendura. Mas pouca moça bonita. A senhorita bem que podia vir com mais frequência. — Sorriu para Bond. — Tudo em ordem?

— Não podia ser melhor.

— Venham outra vez. — Estalou um dedo para o escanção. — Sam, veja o que é que os meus amigos vão tomar com o café — e, com um sorriso que abraçava a ambos, deslocou-se para outra mesa.

Tiffany pediu um Stinger feito com creme de menthe branco, e Bond acompanhou-a.

Quando os licores e o café chegaram, Bond retomou a conversa no ponto em que a tinham interrompido.

— Mas Tiffany — disse ele, — esse tráfico de diamantes parece bastante fácil. Por que não cuidamos dele nós dois juntos? Duas ou três viagens por ano nos darão bom dinheiro e não serão suficientes para provocar as perguntas impertinentes da Imigração ou da Alfândega.

Tiffany não ficou impressionada.

— Faça você a proposta a ABC — disse ela. — Estou lhe dizendo que esse pessoal não é tolo. Esse negócio é muito arriscado. Nunca tive o mesmo portador duas vezes, e não sou a única pessoa a vigiá-lo. E mais: estou convencida de que não estávamos sozinhos naquele avião. Aposto que eles tinham mais alguém que nos observava. Eles controlam e fiscalizam tudo o que fazem. — Ela estava irritada com a falta de respeito de Bond pelo caráter de seus patrões. — Olhe aqui, eu nunca vi ABC — disse a moça. — Disco um número em Londres e recebo ordens de um gravador. Qualquer coisa que tenho a comunicar a ABC, emprego esse mesmo processo. Tudo isso está muito acima de você e de seus furtos idiotas. — Ela se exasperava.

— Entende? Tem outro pensamento brilhante na cachola?

— Entendo — disse Bond respeitosamente, perguntando a si mesmo como poderia arrancar dela o telefone de ABC. — Parece que eles pensam em tudo mesmo.

— Pode ficar bem certo disso — disse a moça de modo categórico. O

assunto começava a cacetear. Ela atirou um olhar sorumbático ao Stinger e tomou-o de um sorvo. Bond pressentiu a aproximação de um fin triste.

— Gostaria de ir a alguma outra parte? — perguntou, sabendo que tinha sido ele quem destruíra a noitada.

— Não — disse ela rudemente. — Leve-me para casa. Estou ficando bêbada. Você não podia ter achado outro assunto pra falar que não fossem esses vigaristas?

Bond pagou a conta. Em silêncio, eles deixaram o ambiente refrigerado do restaurante e saíram para a noite abafada que recendia a gasolina e asfalto quente.

— Estou hospedada no Astor também — disse ela quando entraram num táxi.

Sentando-se no canto do assento traseiro, o queixo apoiado na mão, ela pôs-se a contemplar o abominável pisca-pisca do néon.

Bond nada disse. Olhava pela janela e amaldiçoava seu trabalho. Tudo o que desejava dizer a essa moça era: "Escute. Venha comigo. Eu gosto de você. Não tenha medo. Não pode ser pior do que estar sozinha." Mas se ela dissesse "sim", ele saberia ser ladino. Não queria ser ladino com ela. Era seu dever usá-la, mas o que quer que lhe ditasse o dever, sabia, no fundo do coração, que nunca a "usaria".

Defronte do Astor, Bond ajudou-a a descer, e ela deu-lhe as costas enquanto ele pagava ao chofer. Galgaram a escada naquele silêncio constrangedor dos esposos que se desentenderam ao fim de uma noite desagradável.

Apanharam as chaves na portaria e ela disse ao ascensorista: — "Quinto". Permaneceu de frente para a porta enquanto subiam. Bond notou que os nós dos dedos da mão com que ela segurava a bolsa estavam brancos.

No quinto andar, saiu apressada e não protestou quando Bond a acompanhou. Dobraram várias esquinas até chegar à porta dela. A moça curvou-se, enfiou a chave na fechadura e empurrou a porta. Virou-se no umbral e fitou Bond.

— Escute aqui, Mr. Bond...

Parecia o princípio de uma raivosa descascadela. Logo, porém, a moça se interrompeu e cravou os olhos nos de Bond. Ele percebeu que ela tinha os cílios úmidos. De súbito, ela lhe envolvera o pescoço com um braço, encostara o rosto no dele e lhe dizia baixinho: — Tenha cuidado, James. Não quero perdê-lo.

Então, puxou o rosto dele contra o seu e beijou-o forte e demoradamente nos lábios, com uma ternura furiosa, quase desprovida de sexo.

Mas, quando os braços de Bond a circundaram e ele começou a retribuir-lhe o beijo, ela se enrijeceu e lutou por ver-se livre, pondo fim ao enleio.

Com a mão na maçaneta da porta aberta, ela se voltou e encarou-o.

Retornara-lhe aos olhos o fulgor mormacento.

— Agora afaste-se de mim — disse com arrebatamento.

Bateu a porta e correu o trinco.


10 - Num Studillac para Saratoga

JAMES BOND passou quase todo o sábado em seu apartamento refrigerado no Astor, evitando o calor, dormindo e redigindo um telegrama endereçado ao Presidente da Exportadora Universal, em Londres, Valeu-se de um simples código de transposição baseado no fato de que era o sexto dia da semana e que a data era quatro do oitavo mês.

O relatório concluía dizendo que o tráfico dos diamantes tinha início em alguma parte, na vizinhança de Jack Spang, oculto sob o nome de Rufus B.

Saye, e terminava em Seraffimo Spang, e que o principal entroncamento era o escritório de Shady Tree, de onde as pedras passavam à House of Diamonds para serem lapidadas e postas à venda.

Bond solicitava a Londres que acompanhasse de perto as atividades de Rufus B. Saye, mas prevenia que um indivíduo conhecido como "ABC"

parecia estar no comando direto do contrabando, agindo em nome da Turma de Spang. Acrescentava não ter nenhuma pista para estabelecer a identidade desse indivíduo, exceto a suposição de que morava em Londres.

Presumivelmente só esse homem poderia mostrar o caminho que levava ao ponto de origem dos diamantes contrabandeados, num rincão qualquer do continente africano.

Bond comunicou sua intenção de continuar a avançar em direção a Seraffimo Spang, usando Tiffany Case como agente inconsciente, e forneceu breve relato das atividades da moça.

Passou o telegrama pela Western Union, tomou o quarto banho frio do dia e dirigiu-se para o Voisin, onde tomou dois vodca-martinis e comeu Oeufs Benedict e morangos. Durante o jantar leu os prognósticos das corridas de Saratoga, tendo observado que os favoritos das Perpetuidades eram Come Again, de C. V. Whitney, e Pray Action, de William Woodward Jr. Shy Smile não era mencionado.

Voltou depois para o hotel e foi para a cama.

No domingo de manhã, às nove horas em ponto, um Studebaker conversível negro parou junto à calçada onde Bond aguardava de pé, ao lado de sua maleta.

Depois que Bond largou a maleta no assento traseiro e tomou lugar na boleia, Leiter estirou o braço paia a capota e puxou para trás uma alavanca.

Em seguida, apertou um botão do painel. Com um fraco gemido hidráulico, a capota de lona ergueu-se lentamente no ar e, dobrando-se, sumiu num desvão entre o assento traseiro e a mala. Depois, manobrando a alavanca de mudança do volante da direção com movimentos desembaraçados de seu gancho de aço, Leiter pôs o carro em marcha através do Central Park.

— São cerca de duzentas milhas — disse ele, quando se achavam no Hudson River Parkway. — Mais ou menos ao norte, subindo o Rio Hudson.

No Estado de Nova York. Exatamente ao sul dos Adirondacks e não muito longe da fronteira canadense. Pegaremos a estrada de Taconic. Como não há pressa, não vamos correr. Além disso, não quero ser multado. Em quase todo o Estado de Nova York o limite de velocidade é cinquenta milhas, e os patrulheiros são terríveis. Bom, geralmente, quando estou com pressa, deixo-os para trás. Não multam quando a gente é mais ligeiro do que eles. Ficam com vergonha de aparecer no Tribunal e admitir que existe alguma coisa mais veloz do que seus carros.

— Mas eu pensava que eles iam muito além das noventa milhas — disse Bond, julgando que o amigo tinha-se tornado agora um pouco exibicionista.

— Não sabia que esses Studebakers desenvolviam tanto.

À frente deles estendia-se um trecho vazio da estrada. Leiter lançou um rápido olhar para o espelho retrovisor, engrenou a segunda e empurrou o pé no acelerador. A cabeça de Bond foi atirada para trás, e ele sentiu a espinha comprimir-se de encontro ao assento de encosto dobradiço. Incrédulo, passou os olhos pela seta do velocímetro. Oitenta. Produzindo um ruído metálico, o gancho de Leiter impeliu para o alto a alavanca de mudança. O

carro continuou a ganhar velocidade. Noventa, noventa e cinco, seis, sete— estavam então nas proximidades de uma ponte e de uma estrada convergente. O pé de Leiter buscou o freio, e o ronco forte do motor deu lugar a um zunido uniforme enquanto eles passavam tranquilamente a setenta milhas pelas curvas de nível.

Leiter olhou de soslaio para Bond e arreganhou os dentes.

— Podia puxar mais outras trinta — disse ele com orgulho. — Não faz muito tempo paguei cinco dólares e fiz a prova da milhagem em Daytona. O

velocímetro marcou cento e vinte e sete, e aquela superfície de praia não é das melhores.

— Puxa! — exclamou Bond, incrédulo. — Mas, afinal, que carro é este?

Não é Studebaker. É?

— Studillac — disse Leiter. — Studebaker com motor de Cadillac.

Transmissão, freios e eixo traseiro especiais. Coisa de Conversão. É uma firma pequena, perto de Nova York, que fabrica desses carros. Poucos, mas como carros-esporte são mais espetaculares do que esses Corvettes e Thunderbirds. E não se podia desejar melhor carroceria do que esta.

Desenhada pelo francês Raymond Loewy, o maior do mundo. Mas é um pouco avançada para o mercado americano. A fábrica Studebaker nunca foi suficientemente elogiada por ter lançado essa carroceria. Revolucionária demais. Gosta do carro? Aposto que daria uma boa tunda no seu velho Bentley. — Leiter deu um risinho de satisfação e meteu a mão esquerda no bolso à procura de.uma moeda de dez centavos para pagar o pedágio da ponte Henry Hudson.

— Até o instante em que uma das suas rodas se desprendesse — retrucou Bond com sarcasmo, enquanto Leiter tornava a acelerar. — Essas geringonças espalhafatosas são boas para meninos que não podem ter um carro de verdade.

Continuaram a arenga jovial em torno dos méritos respectivos dos carros esportivos ingleses e americanos até chegar ao pedágio de Westchester County. Quinze minutos depois, entravam em Taconic Parkway, que serpeava para o norte, através de cem milhas de prados e bosques. Bond reclinou-se e pôs-se a apreciar em silêncio uma das mais belas auto-estradas do mundo, indagando-se preguiçosamente o que a moça estaria fazendo àquela hora e como, depois de Saratoga, iria aproximar-se dela outra vez.

Às 12h30 pararam para almoçar na Galinha na Cesta, restaurante de beira de estrada, todo construído de madeira no estilo da fronteira e dotado do equipamento usual: balcão alto, coberto com as marcas mais conhecidas de chocolates e confeitos, cigarros, charutos, revistas e brochuras; toca-discos automático, chamejante de cromo e luzinhas coloridas, semelhando um invento da ficção científica; uma dúzia de lustrosas mesas de pinho no centro do salão encaibrado e igual número de tendas baixas ao longo das paredes; um cardápio que destacava galinha frita e "truta fresca da montanha", a qual passara meses em algum distante congelador, uma variedade de pratos à minuta, e um par de garçonetes negligentes.

Mas os ovos mexidos, as salsichas, as torradas de centeio, quentes e amanteigadas, e a cerveja Millers Highlife não demoraram a chegar e eram saborosos. Também o era o café gelado que se seguiu. Depois do segundo copo, deixaram de lado os assuntos profissionais e pessoais e passaram a falar de Saratoga.

— Em onze meses do ano — explicou Leiter — o lugar fica completamente morto. Gente que vagueia pelas fontes, bebendo as águas e tomando banhos de lama para ver se se cura do reumatismo e de outras enfermidades e achaques. Nessa fase é igual a todas as estâncias de águas do mundo inteiro. Toda a gente vai pra cama às nove e, durante o dia, os únicos sinais de vida surgem quando dois velhos cavalheiros, de chapéu panamá, começam a discutir acerca da rendição de Burgoyne em Schuylerville, que fica um pouco abaixo da estrada, ou da cor do piso de mármore do velho Union Hotel, que uns dizem que era preto e outros, branco. E então, durante um mês, agosto, o lugar fervilha. É provavelmente a mais elegante reunião turfística da América. Abundam os Vanderbilts e Whitneys. As hospedarias multiplicam os preços por dez e a comissão de corridas passa uma mão de tinta na tribuna de honra, arranja uns cisnes para o lago no centro da raia, ancora a velha canoa indígena no meio do lago e liga o repuxo. Ninguém é capaz de se lembrar de onde veio a canoa. Um cronista que andou indagando por lá chegou a descobrir que se tratava de algo ligado a uma lenda indígena.

Mas aí perdeu o interesse. Disse que quando estava na quarta série sabia inventar mentiras mais interessantes do que qualquer lenda indígena.

Bond riu.

— E o que mais? — perguntou.

— Você deve estar informado — disse Leiter. — Outrora o local era muito frequentado pelos ingleses... os de sela, bem entendido. Jérsey Lily andava muito por lá, Lily Langtry... Mais ou menos na época em que Novelty bateu Iron Mask no Prêmio Promissor. Mas tudo mudou desde então. Veja — tirou do bolso um recorte de jornal. — Isto porá você em dia com as novidades. Recortei do Post hoje de manhã. Jimmy Cannon é o redator esportivo do jornal. Bom jornalista. Sabe onde tem o nariz. Mas deixe para ler no carro. Vamos embora.

Leiter pagou as despesas e os dois se retiraram. Enquanto o Studillac arfava ao longo da estrada que levava a Troy, Bond se entregou à prosa rude de Jimmy Cannon. E, à medida que ia lendo, a Saratoga dos dias de Jérsey Lily sumia-se no passado poeirento e ameno, e o século vinte assomava, mostrando os dentes numa careta de zombaria.

Debaixo da fotografia de um jovem simpático, de olhos grandes e francos e sorriso nos lábios finos, Bond leu:

O burgo de Saratoga Springs foi a Coney Island do mundo do crime até o momento em que os rapazes de Kefauver deram seu espetáculo na televisão. Esse espetáculo assustou os caipiras e enxotou os desordeiros para Las Vegas. Mas durante muito tempo as quadrilhas dominaram Saratoga, transformando-a num reduto do banditismo nacional, governado a bala e porretada.

Saratoga conseguiu libertar-se, como os outros antros de jogatina que colocavam as administrações municipais sob a guarda dos bandos de extorsionários.

É ainda um lugar onde os honrados herdeiros de antigas fortunas e nomes famosos podem dirigir seus estábulos em condições turfísticas que, de tão antiquadas, fazem lembrar uma honesta reunião de parelheiros rurais.

Antes de Saratoga encerrar suas atividades, os vagabundos eram metidos no xilindró por uma polícia que depositava no banco os vencimentos e vivia das gorjetas de assassinos e cafetões. A pobreza constituía grave infração da lei em Saratoga. Os bêbados, que enchiam a cara nos botecos e jogavam dados, também eram considerados perigosos quando trapaceavam.

Mas o assassino gozava de ampla liberdade, desde que soltasse a gaita e tivesse alguma participação numa instituição local, que podia ser um prostíbulo ou uma casa de tavolagem clandestina, onde os falidos apostavam alguns centavos. A curiosidade profissional me leva a ler as publicações turfísticas. Os cronistas especializados evocam os anos tranquilos, como se Saratoga tivesse sido sempre uma cidadezinha de frívola inocência. Mas como era sórdida!

É possível que haja alguma roleta viciada girando às escondidas em uma ou outra casa de fazenda à beira de estradas distritais. Tal atividade é insignificante, e o jogador deve estar preparado para levar na cabeça com a mesma rapidez com que o banqueiro sacode os dados. Mas os cassinos de Saratoga nunca primaram pela honestidade, e quem tivesse a ousadia de ganhar uma parada estava fadado a uma sova.

As espeluncas funcionavam a noite inteira nas margens do lago. Grandes nomes do teatro de variedades serviam de chamariz para os jogos que não eram financiados para serem logrados. Os crupiês eram cavadores nômades que ganhavam por dia de trabalho e faziam a praça de Newport a Miami, no inverno, e regressavam a Saratoga em agosto. Quase todos tinham feito os preparatórios em Steubenville, onde o pôquer "no escuro" era a escola de habilitação profissional.

Eram andarilhos, e poucos dentre eles tinham talento para castigar os devedores remissos. Funcionários do mundo do crime, arrumavam a trouxa e davam o fora ao primeiro sinal de tempo quente. A maioria radicou-se finalmente em Las Vegas e Reno, onde seus antigos patrões se estabeleceram legalmente, com licenças penduradas nas paredes.

Os patrões não eram banqueiros à moda do velho Coronel E. R. Bradley, homem altivo e de maneiras cavalheirescas. Mas há quem diga que seu bazar em Palm Beach foi muito bem até o dia em que as dívidas passaram a se acumular.

Depois disso, segundo aqueles que se opunham aos métodos de Bradley, o jeito foi apelar para os macetes da mecânica a fim de garantir a solvência do estabelecimento. Os que se recordam do velho coronel ficaram deliciados ao tomar conhecimento da canonização de Bradley como filantropo, cujo passatempo consistia em proporcionar aos milionários um pouco do divertimento que lhes negava o Estado da Flórida. Comparado, porém, com os patifes que controlavam Saratoga, o Coronel Bradley faz jus aos louvores que lhe tributam os saudosistas.

O hipódromo de Saratoga é um periclitante bloco de madeira. O clima é tórrido e úmido. Para lá acorrem alguns desportistas, no sentido obsoleto da palavra, como Al Vanderbilt e Jock Whitney, turfistas autênticos. Também o são alguns treinadores, como Bill Winfrey que inscreveu Native Dancer nas corridas. E há jóqueis que te meteriam a mão na cara se lhes propusesses sofrear um cavalo na raia.

Gostam de Saratoga e devem estar satisfeitos com o fato de gente da laia de Lucky Luciano ter arribado da cidadezinha que floresceu graças à atuação desenfreada dos valentões. Os corretores de apostas eram assaltados à saída do hipódromo, na época em que se apostava do lado de fora. Um deles, Kid Tatters, teve de cair com 50 000 dólares no pátio de estacionamento. Os assaltantes ameaçaram sequestrá-lo se não lhes desse mais da próxima vez.

Sabendo que Lucky Luciano recebia uma percentagem dos lucros de quase todos os cassinos, Kid Tatters resolveu recorrer a ele para sair da entaladela. Lucky disse que não tinha problema. Se procedesse direitinho, o corretor não seria mais importunado. Kid Tatters tinha licença para operar no hipódromo, e sua ficha era limpa, mas a verdade é que não achava outro meio de se proteger.

— Faça de mim seu sócio — aconselhou Lucky. A conversa me foi narrada por uma pessoa que estava presente. — Ninguém vai aporrinhar um sócio de Lucky.

Kid Tatters tinha-se na conta de sujeito honrado que exercia um ofício sacramentado pelo Estado, mas teve de se render, e Lucky foi seu sócio até o dia em que morreu. Perguntei à mesma pessoa se Lucky contribuía com dinheiro ou fazia alguma coisa para ajudar o corretor.

— Tudo que Lucky fazia era arrecadar a gaita — disse o homem. — Mas, para a época, Kid Tatters, fez ótimo negócio. Nunca mais foi importunado.

Era um burgo de vida airada, mas todas as cidades-cassinos o são.


Bond dobrou o recorte e enfiou-o no bolso.

— É. Parece muito distante dos dias de Lily Langtry — comentou, depois de alguns momentos.

— Sem dúvida — disse Leiter com indiferença. — E Jimmy Cannon não deixa transparecer que sabe que os cafajestes estão de volta. Eles ou os sucessores. Mas hoje em dia são proprietários, como os Spangs. Seus cavalos competem com os dos Vanderbilts, Whitneys e Woodwards. E de vez em quando acham jeito de perpetrar uma fraude como Shy Smile. Vão ganhar cinquenta mil líquidos nessa corrida, e isso é melhor do que esbordoar um corretor por causa de algumas centenas. Sim, os nomes mudaram em Saratoga. Como a lama dos banhos de lá também muda.

Um imenso cartaz apareceu à direita da estrada. Dizia:

PARE NO SAGAMORE.

AR CONDICIONADO. CAMAS SLUMBERITE. TELEVISÃO.

A CINCO MILHAS DE SARATOGA,

O SAGAMORE — PARA SEU CONFORTO.


— Isso quer dizer que os nossos copos estarão guardados em saquinhos de papel e o assento da latrina protegido por uma tira de papel higienizado — disse Leiter, irritado. — E não pense que pode roubar as camas Slumberite. Os motéis perdiam uma por semana. Agora elas estão aparafusadas no piso.

 

 

                                     CONTINUA