Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FAVORITOS DA FORTUNA - P.2 / Colleen McCullough
OS FAVORITOS DA FORTUNA - P.2 / Colleen McCullough

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Tinha chegado o momento de meter na ordem aquela peste de rapaz: Sila teria de mostrar a César a besta fera que vivia dentro dele, o animal que uivava à luz da Lua. Mas no instante em que a besta se preparava para exibir as suas garras, Sila percebeu porque é que os olhos de César lhe eram tão familiares. É que aqueles olhos eram iguais aos seus! Eram olhos que o fitavam com a frieza e a fixidez desprendida de uma serpente. E a besta fera encolheu as garras, impotente. Pela primeira vez na sua vida, Sila não conseguia submeter outro homem ao seu poder. A raiva que, naquele instante, deveria possuí-lo, não era raiva, porque logo se esfumara; obrigado a contemplar a sua própria imagem no rosto de outro homem, Lúcio Cornélio perdia todo o seu poder.

Tinha de lutar com palavras, apenas com palavras.

 

 

 

 

— Eu decidi consagrar-me à restauração da ética religiosa da mos maiorum — disse ele. — Roma honrará e cuidará dos seus deuses exactamente da mesma maneira que o fez nos primórdios da República. Júpiter Optimus Maximus está descontente. Contigo — ou melhor, com a tua esposa. Tu és o sacerdote especial de Júpiter, mas a tua esposa é uma parte inseparável do teu sacerdócio. Tens de separar-te dessa mulher, porque ela é inaceitável. Tens de casar-te com outra. Tens de te divorciar da filha de Cina porque ela não é romana.

— Não me divorcio — replicou César.

— Nesse caso, terei de encontrar outra solução.

— Solução? Dou-te já uma — retorquiu num instante César. — Deixa que Júpiter Optimus Maximus se divorcie de mim. Cancela o meu flaminato.

— Na minha qualidade de Ditador, poderia fazer isso. O problema é que envolvi os colégios sacerdotais na discussão do caso. E como fiz isso, agora tenho de atender às suas conclusões.

— Nesse caso — disse calmamente César — parece que estamos num beco sem saída, não é?

— Não, não estamos nada. Há uma saída.

— Matar-me.

— Precisamente.

— As tuas mãos ficariam manchadas com o sangue do flamen Dialis.

— Não ficariam se por acaso fosse outra pessoa a matar-te. Eu não subscrevo a metáfora grega, Caio Júlio César. E os nossos deuses romanos também não. A culpa não pode ser transferida para outrem.

César reflectiu no que acabava de ouvir.

— Sim, creio que tens razão. Se conseguires que seja outra pessoa a matar-me, será sobre essa pessoa que a culpa recairá. — César ergueu-se e verificou que era alguns centímetros mais alto que Sila. — Nesse caso, a nossa entrevista chegou ao fim.

— Chegou. A menos que reconsideres.

— Não me divorciarei.

— Então farei com que sejas morto.

— Se puderes — disse César, e foi-se embora. Sila chamou-o.

— Esqueceste-te da laena e do apex, sacerdote!

— Fica com eles! São para o próximo flamen Dialis.

César forçou-se a ir directamente para casa, pois temia que Sila conseguisse recuperar rapidamente o equilíbrio. Apercebera-se claramente de que o Ditador perdera esse equilíbrio durante a entrevista; era evidente que muito poucas pessoas se atreviam a desafiar Lúcio Cornélio Sila.

O ar estava frio, demasiado frio e seco para que nevasse. E aquele gesto infantil impedia-o agora de se proteger do frio. Mas isso não era importante, de facto não era. Não morreria de frio por causa de um passeio entre o Palatino e Subura. Muito mais importante era o que faria a seguir. Porque Sila mandaria matá-lo, quanto a isso não tinha a mínima dúvida. Suspirou. Teria de fugir. Embora soubesse que era capaz de se defender, não tinha a mínima ilusão quanto à vitória de Sila, se por acaso permanecesse em Roma. No entanto, tinha pelo menos um dia de clemência; a máquina burocrática emperrava tudo, incluindo as acções do Ditador; ora, Sila teria primeiro de se encontrar com um daqueles grupos de homens de aspecto normal; e esse encontro ainda demoraria, pois Sila tinha uma agenda sobrecarregada: como César não deixou de reparar, a casa do Ditador estava cheia de clientes e não de assassinos pagos. A vida em Roma não era nada parecida com uma tragédia grega; não havia chefes gritando ordens veementes a homens que, como cães, ansiavam ver-se livres do açaimo. Sila só daria as suas ordens quando tivesse tempo. Mas isso não seria para já.

Quando chegou à casa da mãe, estava azul de frio.

— As tuas roupas? — perguntou Aurélia, boquiaberta de espanto.

— Ficaram na casa de Sila — conseguiu ele dizer. — Deixei-as para o próximo flamen Dialis. Mater, ele mostrou-me a maneira de me ver livre do cargo!

— Conta-me — disse ela, levando-o para perto de um braseiro. César contou-lhe.

— Mas porquê, César? Porquê? — exclamou ela por fim.

— Ora, Mater, sabes bem porquê. Eu amo a minha mulher. Essa é a primeira razão. Durante todos estes anos, ela viveu connosco e procurou em mim o carinho e a atenção que nem o pai nem a mãe lhe podiam dar. De tal modo que acabou por achar que eu era a coisa mais maravilhosa que lhe sucedera em toda a sua vida. Como posso eu abandoná-la? Ela é filha de Cina! Uma indigente! Já nem sequer é romana! Mãe, eu não quero morrer. Viver como flamen Dialis é infinitamente melhor que morrer. Mas há coisas pelas quais vale a pena morrer. Princípios. Os deveres de um nobre romano, aqueles deveres que tu me ensinaste com tanto desvelo. Eu sou responsável por Cinila. Não posso abandoná-la! — César encolheu os ombros: parecia triunfante. — Além disso, encontrei a maneira de sair disto. Se eu recusar o divórcio, o Grande Deus não me poderá aceitar como seu sacerdote. Por isso, tenho de manter a minha recusa.

— Até que Sila consiga matar-te.

— Isso está nas mãos do Grande Deus, mãe, tu sabes que está. Acredito que Fortuna me ofereceu esta oportunidade e que eu não posso deixá-la fugir. O que eu tenho de fazer é permanecer vivo até que Sila morra. Depois de ele morrer, ninguém terá a coragem de matar o flamen Dialis e os colégios serão obrigados a libertar-me das grilhetas do sacerdócio. Mãe, eu não acredito que Júpiter Optimus Maximus me queira como seu flamen especial! Acredito, isso sim, que ele tem outras obras para eu fazer. Obras mais proveitosas para Roma.

Aurélia não discutiu mais.

— Dinheiro. Vais precisar de dinheiro, César. — E passou com as mãos pelo cabelo, como sempre fazia quando precisava de se lembrar onde tinha deixado este ou aquele dinheiro. — Vais precisar de mais do que dois talentos de prata, porque esse é o preço de um homem proscrito. Se fores descoberto num esconderijo, precisarás de pagar muito mais que dois talentos para convencer o informador a deixar-te partir. Três talentos devem chegar para uma situação dessas e para tu viveres normalmente. Mas onde é que euvou encontrar três talentos sem falar com banqueiros? Setenta e cinco mil sestércios... Eu tenho dez mil no meu quarto. E há as rendas, posso cobrá-las esta noite. Quando os meus inquilinos souberem para o que é, pagam sem hesitar. Eles adoram-te, embora eu não perceba porquê — tu és tão difícil, tão teimoso! Caio Macio pode saber de alguma maneira de arranjar mais dinheiro. E imagino que Lúcio Decúmio deve guardar o seu pé-de-meia debaixo da cama...

E foi-se embora num ápice, falando sozinha. César suspirou, levantou-se. Era tempo de organizar a sua fuga. E teria de falar com Cinila antes de se ir embora, teria de lhe explicar tudo.

Pediu ao chefe dos criados, Eutico, que fosse chamar Lúcio Decúmio. Ele próprio chamou por Burgundo.

O velho Caio Mário tinha legado Burgundo a César por testamento; na altura, César suspeitara que tal oferta não era mais do que um último elo da cadeia com que Caio Mário o atara de pés e mãos. As suas suspeitas iam mesmo no sentido de que, se por acaso deixasse de ser o padre especial de Júpiter, Burgundo deveria matá-lo. Mas a verdade é que César, com todo o seu encanto pessoal, acabara por fazer com que Burgundo deixasse de ser um homem de Mário e passasse a ser o seu homem; um outro facto contribuíra para isso: a criada de Aurélia, a descomunal Cardixa, uma gaulesa dos Arvernos, tinha capturado o coração de Burgundo. Germano de origem címbria, Burgundo fora capturado aos 18 anos, na seqüência da batalha de Vercelas. Tinha agora 37 anos e Cardixa ia nos 45. Um tema que divertia a família de César era a fecundidade de Cardixa: durante quantos anos mais seria aquela mulher capaz de dar à luz, à média de um filho por ano? Por ora, ia já nos cinco. Burgundo e Cardixa tinham sido emancipados no dia em que César vestira a sua toga de adulto, mas este rito formal de emancipação não alterara nada, a não ser o seu estatuto de cidadãos: agora, eram ambos romanos (ainda que, como é evidente, tivessem sido inscritos na tribo urbana de Subura e, por isso, os seus votos não valessem nada). Aurélia, que sempre fora simultaneamente poupada e justa nos pagamentos, atribuíra a Cardixa um salário razoável, e achava que Burgundo também valia bom dinheiro. Como as suas necessidades básicas eram da conta dos patrões, Burgundo e Cardixa, ao que se dizia, juntavam todos os sestércios possíveis para os filhos.

— Mas agora tens de levar as nossas poupanças, César — disse-lhe Burgundo no seu latim cheio de sotaque. — Vais precisar desse dinheiro.

César era alto para um romano, pois tinha um metro e oitenta e oito de altura, mas Burgundo tinha mais cinco centímetros de altura e era duas vezes mais largo que o seu amo. Ao dizer aquilo a César, o seu rosto claro, um rosto feio segundo os padrões romanos pois tinha um nariz demasiado pequeno e estreito e uma boca demasiado grande, expressava a solenidade habitual da sua pessoa, ainda que os seus olhos azuis claros denunciassem o amor e o respeito que sentia por César.

César sorriu para ele e abanou a cabeça.

— Agradeço-te a oferta, mas a minha mãe vai conseguir arranjar o dinheiro necessário. Se não conseguir, bom, se não conseguir, aceitarei a tua oferta e pagar-te-ei com juros.

Lúcio Decúmio chegou entretanto, trazendo atrás de si uma revoada de neve; César tratou de dar as últimas instruções a Burgundo.

— Trata das nossas bagagens, Burgundo. Coisas quentes. Podes levar um bastão. Eu levo a espada do meu pai. — Ah, que bom que era poder dizer aquilo! Eu levo a espada do meu pai! Afinal havia coisas bem piores do que fugir à ira do Ditador.

— Eu sabia que aquele homem nos ia trazer complicações! — disse Lúcio Decúmio com um ar soturno, embora não referisse uma ocasião em que Sila, só com o seu olhar, o deixara perfeitamente arrepiado. — Eu mandei os meus filhos buscar dinheiro a casa. Terás dinheiro bastante — acrescentou Decúmio, cravando um olhar feroz nas costas de Burgundo. — César, com este tempo invernoso, tu não podes ir apenas com aquele gigante pateta! Eu e os rapazes vamos também!

César, que estava à espera daquilo, lançou-lhe um olhar que silenciava todos os protestos.

— Não, pai, eu não posso permitir isso. Quanto mais formos, tanto mais atenções atrairemos.

— Atrair atenções? — disse Lúcio Decúmio, espantado. — Como podes não atrair as atenções com aquele gigante tolo ao teu lado? Deixa-o ficar e leva-me a mim. A mim ninguém me vê, eu confundo-me com as paredes.

— Dentro dos limites de Roma, sim, é verdade que ninguém dá por ti — retorquiu César, sorrindo com muito afecto para Lúcio Decúmio. — Mas em plena região sabina, as coisas seriam diferentes: darias tanto nas vistas como os tomates de um cão! Eu cá me arranjarei com Burgundo. E sabendo que tu ficas cá a tomar conta das mulheres, posso partir muito mais descansado.

Como aquela era, de facto, a verdade, Lúcio Decúmio resignou-se.

— com as proscrições, é da máxima importância que haja alguém para proteger as mulheres. A tia Júlia e Múcia Tércia só nos têm a nós. Não creio que lhes possa acontecer alguma coisa, pois toda a gente em Roma adora a tia Júlia. Mas Sila não a adora, bem pelo contrário; portanto, terás de velar por elas. Quanto à minha mãe — acrescentou, com um encolher de ombros —, bom, quanto à minha mãe, ela é como todos nós sabemos, e isso tem tanto de bom como de mau para o caso de haver um confronto com Sila. Se as coisas mudarem — se, por exemplo, Sila decidir proscrever-me e proscrever, por minha causa, a minha mãe — serás tu quem terá de salvar a minha casa e a sua gente. — César pôs um sorriso de todo o tamanho e acrescentou: — Gastámos demasiado dinheiro a engordar os filhos de Cardixa para agora aparecer Sila e fazer lucro com eles!

— Meu querido Pavão, podes estar certo de que não lhes acontecerá nada!

— Obrigado, pai. — César lembrou-se nesse instante de outro assunto. — Só mais uma coisa: tens de nos alugar um casal de mulas e de ir buscar os cavalos ao estábulo.

Aquele era o segredo de César, o único aspecto da sua vida que era ignorado por todos; por todos, excepto Burgundo e Lúcio Decúmio. Na sua qualidade de flamen Dialis, não podia tocar num cavalo; porém, desde que Caio Mário lhe ensinara a montar, apaixonara-se pela sensação da velocidade e também por aquela rara sensação que era ter o corpo poderoso de um cavalo entre os seus joelhos e sob o seu comando. Embora a sua única riqueza fossem as valiosas terras que possuía, a verdade é que César tinha algum dinheiro seu, dinheiro em que Aurélia nunca pensaria em mexer. Obtivera esse dinheiro graças ao testamento do pai e, com ele, podia comprar o que quisesse sem ter de pedir a Aurélia. E foi assim que comprou um cavalo. Um cavalo muito especial.

César conseguira encontrar em si a força e a capacidade de renúncia para obedecer a todas as regras do seu flaminato. Como não ligava muito ao que comia, não lhe custara nada agüentar o monótono regime alimentar do flâmine. Já com as armas, era diferente: muitas vezes sentira o ardente desejo de pegar na espada do pai e de, com ela, se exercitar. Mas a única coisa de que não conseguira desistir era o seu amor pelos cavalos e pela arte de montar. Porquê? Por causa da associação entre duas criaturas vivas tão diferentes entre si e da perfeição que daí resultava. E foi assim que comprou um belíssimo cavalo castrado de pelagem castanha, tão veloz como Bóreas, ao qual chamou Bucéfalo, o nome do lendário cavalo de Alexandre, o Grande. Este animal era a maior alegria da sua vida. Sempre que conseguia escapulir-se, ia sozinho a pé até à Porta Capena, onde o esperavam Burgundo e Lúcio Decúmio com Bucéfalo. Depois, era cavalgar, cavalgar velozmente pelas margens do Tibre, sem pensar em quedas ou quaisquer outros perigos, serpenteando entre os pacientes bois que puxavam as barcaças ao longo do rio — e depois, quando a corrida pelas praias deixava de o interessar, embrenhava-se pelos campos, saltando todos os muros que era preciso saltar, ele e o seu querido Bucéfalo, duas criaturas transformadas numa só. Muitos eram os que conheciam o cavalo, mas ninguém conhecia o cavaleiro; de facto, para essas ocasiões, César vestia-se como um galaciano e usava um lenço à maneira dos Médios, um lenço que lhe cobria a cabeça e quase todo o rosto.

As cavalgadas secretas introduziam também na sua vida um elemento de risco, o risco que, sem se dar conta, o atraía fortemente; de facto, ele não pensava naquilo em termos de risco, mas apenas como uma diversão, porque divertia-o imenso ludibriar Roma e pôr em perigo o seu flaminato. Embora honrasse e respeitasse o Grande Deus, sabia que tinha com ele uma relação absolutamente única; o seu antepassado Eneias nascera da deusa do amor, Vénus, e o pai de Vénus era Júpiter Optimus Maximus. Por isso Júpiter compreendia, Júpiter dava o seu consentimento, Júpiter sabia que o seu criado terreno tinha nas veias uma gota do divino ícore. César obedecia a todos os dogmas do seu flaminato o melhor que podia e sabia; mas o preço dessa obediência chamava-se Bucéfalo, a comunhão com uma outra criatura viva que, para ele, era mais preciosa que todas as mulheres de Subura. Com elas, a soma era menos do que ele próprio. com Bucéfalo, a soma era mais, muito mais, do que ele próprio.

Pouco depois de a noite cair, já César estava pronto. Lúcio Decúmio e os seus dois filhos, puxando uma pequena carroça, tinham levado os setenta e seis mil sestércios que Aurélia conseguira arranjar até à Porta Quirinal, enquanto dois outros confrades do colégio, tão leais a César como Decúmio, haviam levado os cavalos desde os estábulos do Campo Lanatário até às portas da cidade, para lá das Muralhas Sérvias.

— Preferia que tivesses escolhido um cavalo que desse menos nas vistas. Ainda por cima, tens-te fartado de cavalgá-lo por todo o Lado — disse-lhe Aurélia sem mostrar o mínimo sinal da tremenda ansiedade que sentia.

César fitou-a boquiaberto e desatou a rir; logo que se recompôs da surpresa, limpou os olhos molhados e disse-lhe:

— Não posso crer, Mater! Há quanto tempo sabias do Bucéfalo?

— É assim que lhe chamas? — retorquiu ela, zangada. — Pelos vistos, meu filho, a tua recusa do sacerdócio revela que tens ilusões de grandeza! — Nos seus olhos brilhou uma chispa de alegre divertimento. — Eu sempre soube, César. Até sei o dinheirão que deste por ele — cinqüenta mil sestércios! És um gastador incorrigível e não percebo onde é que foste arranjar o dinheiro. Eu é que não to dava!

César abraçou-a e beijou-a na testa larga e sem rugas.

— Pois bem, uma coisa te prometo: tu é que hás-de tratar das minhas contas! Mas estou curioso em saber como é que descobriste que eu tinha o Bucéfalo.

— Eu tenho muitas fontes de informação — retorquiu ela, sorrindo. — Ao fim de vinte e três anos em Subura, é natural. — Agora que o sorriso se esbatia, fitou-o com um olhar perscrutador. — Ainda não falaste com Cinila e ela está preocupada. Eu mandei-a para o quarto dela, mas, mesmo assim, apercebeu-se de que se passa qualquer coisa.

César suspirou, franziu o sobrolho, fitou a mãe como que a pedir-lhe ajuda.

— Que lhe hei-de dizer, mãe? Quanto lhe hei-de dizer?

— Diz-lhe a verdade, César. Ela tem doze anos.

Cinila ocupava aquele que fora o quarto de Cardixa, debaixo das escadas que davam para os andares de cima, no lado do edifício da Vicus Patricius; Cardixa vivia agora com Burgundo e os filhos num apartamento especial que César projectara e construíra, com a maior satisfação e sem ajuda de ninguém, por cima das casas dos criados.

Quando César entrou, Cinila estava sentada ao tear, trabalhando num tecido de cor parda e muito peludo, destinado ao seu guarda-roupa de flaminica Dialis, ao ver aquela cena e aquele tecido tão grosseiro, o coração de César deixou-se vencer por uma compaixão extrema.

— Ah, não é justo! — exclamou; e mal disse isto, pegou nela e levou-a para o único sítio disponível, a sua pequena cama, onde a sentou no seu colo.

César achava-a de uma beleza requintada, embora fosse demasiado jovem para encontrar atractivos numa rapariga que apenas começava a revelar os sinais da feminilidade; César gostava de mulheres bastante mais velhas que ele. Mas aquela criatura pequena, levemente roliça e muito morena, não podia deixar de exercer um fascínio irresistível num homem que tinha passado toda a vida rodeado de gente alta, esguia e clara de tez. Os seus sentimentos em relação a Cinila eram algo de confuso, pois ela vivia há cinco anos em sua casa como se fosse sua irmã e, no entanto, era sua esposa; por outro lado, logo que Aurélia lho permitisse, ele levá-la-ia para a sua cama. Não havia qualquer elemento moral nesta confusão; quanto muito, quase seria uma questão de logística. O que perturbava César era o facto de aquela rapariga passar de súbito a ser sua mulher depois de ter sido sua irmã. Claro que todos os reis orientais casavam com as suas irmãs, mas César ouvira dizer que nos quartos das crianças dos Ptolemeus e dos Mitridates se ouviam ruídos de guerra e não de ternas brincadeiras, pois irmãos e irmãs se guerreavam como animais. Ao passo que ele nunca tivera qualquer guerra com Cinila, tal como não tivera com as irmãs verdadeiras; Aurélia nunca permitiria tais comportamentos.

— Vais-te embora, César? — perguntou Cinila.

Uma mecha de cabelo mais rebelde caía-lhe sobre a testa; César, com um gesto suave, tirou-lhe o cabelo da testa e continuou a afagar-lhe a cabeça como se ela fosse um gatinho de estimação, com gestos ritmados, sensuais, capazes de acalmar qualquer pessoa. Ela fechou os olhos e encostou-se muito encostada à curva do braço dele.

— Ora esta, menina, agora não adormeças! — disse ele, de repente, abanando-a um pouco. — Bem sei que já devias estar na cama, mas tenho de falar contigo. Eu vou-me embora, é verdade.

— Que se tem passado nestes últimos tempos? Tem tudo a ver com as proscrições, é isso? Aurélia disse que o meu irmão fugiu para Hispânia.

— Sim, Cinila, em parte tem a ver com as proscrições; além disso, quem decide as proscrições é Sila. Eu tenho de me ir embora porque Sila diz que há uma dúvida no que toca ao meu sacerdócio.

Ela sorriu e o seu lábio superior, muito carnudo, ergueu-se e revelou uma dobra da sua superfície interior, um traço de Cinila que toda a gente achava encantador.

— Devias estar contente. Tu preferias não ser flamen Dialis.

— Ah, mas ainda sou o flamen Dialis — disse César com um suspiro. — Segundo os sacerdotes, o problema está em ti. — César fê-la sentar-se na ponta dos seus joelhos para que pudesse olhá-la no rosto. — Tu conheces a actual situação da tua família, mas provavelmente não te apercebeste de que o teu pai, a partir do momento em que foi considerado um sacer — um prescrito —, deixou de ser cidadão romano.

— bom, eu compreendo por que motivo Sila pode tirar-nos todos os nossos bens, mas a verdade é que o meu pai morreu muito tempo antes do regresso de Sila a Itália — disse Cinila, que não era muito inteligente e precisava que lhe explicassem tudo. — Mas como é possível que nós tenhamos perdido a cidadania?

— Porque as leis de Sila retiram automaticamente a cidadania a uma pessoa e também porque alguns homens já estavam mortos quando Sila pôs os nomes deles nas listas dos proscritos. O jovem Mário, o teu pai, os pretores Caninas e Damásipo, e muitos outros, estavam já mortos quando foram proscritos. Mas esse facto não obstou a que perdessem os seus direitos de cidadão.

— Não acho justo.

— Concordo contigo, Cinila — disse César, e prosseguiu a sua explicação, sentindo que seria uma grande coisa se os deuses lhe tivessem dado o dom da síntese e da simplificação. — O teu irmão tinha atingido a maioridade quando o teu pai foi prescrito. Por isso, mantém o seu estatuto romano. Só não pode herdar os bens ou o dinheiro da família, nem exercer as funções de magistrado curul. Contigo, porém, as coisas são completamente diferentes.

— Porquê? Por eu ser uma rapariga?

— Não! Por tu seres ainda uma criança. A questão do sexo, neste caso, é irrelevante. A lex Minicia de liberis diz que os filhos de um casal formado por um romano e um não romano devem ficar com a cidadania do pai não romano. Isto significa — pelo menos, segundo a versão dos sacerdotes — que tu agora tens o estatuto de estrangeira.

Ela começou a tremer, mas não a chorar, e os seus enormes olhos negros fitavam César com dolorosa apreensão.

— Ah! Então isso quer dizer que eu já não sou tua esposa?

— Não, Cinila, não é nada disso. Tu és minha mulher até ao dia em que um de nós morrer, porque nós casámos segundo as praxes antigas. Não há nenhuma lei que proíba um romano de casar com uma não romana. Por isso, o nosso casamento não está em causa. Aquilo que de facto está em causa é o teu estatuto de cidadã — e o estatuto de cidadão de todos os filhos de homens prescritos que, na altura da proscrição, eram menores. Percebeste?

— Creio que sim. — A expressão de Cinila revelava a mesma concentração. — Isso significa que os filhos que eu te der não serão cidadãos romanos?

— Precisamente. Pelo menos, enquanto vigorar a lex Micinia.

— Oh, César, isso é terrível! -É.

— Mas eu sou uma patrícia!

— Já não és, Cinila.

— Que posso fazer?

— Por ora, nada. Mas Sila sabe que tem de clarificar estes aspectos das suas leis. Esperemos, por isso, que o faça de modo a que os nossos filhos possam vir a ser romanos, ainda que tu não o sejas. — Os braços de César desprenderam-se um pouco dela. — Sila chamou-me hoje a sua casa e ordenou-me que me divorciasse de ti.

Agora sim, as lágrimas encheram os olhos de Cinila, silenciosamente, tragicamente. Apesar de ter apenas 18 anos, César já estava acostumado às lágrimas das mulheres; de facto, já estava farto das lágrimas das mulheres, pois muitas tinham chorado quando ele se cansava delas ou quando elas descobriam que havia outra. Eram lágrimas que ele detestava, capazes de o fazer explodir. Embora estivesse habituado a controlar-se, a verdade é que as lágrimas das mulheres lhe provocavam sempre um acesso de fúria, com os resultados desastrosos que seria de esperar — para a mulher que chorava. Mas as lágrimas de Cinila eram a revelação da mais pura dor e toda a raiva de César estava concentrada em Sila, que era a causa daquelas lágrimas.

— Mas não há nenhum problema, amorzinho! — disse ele, aproximando-a mais de si. — Eu nunca me divorciaria de ti! Nem que aparecesse Júpiter Optimus Maximus em pessoa e mo ordenasse! Nem que vivesse mil anos, não me divorciaria de ti!

Ela soltou um risinho e fungou e deixou que ele lhe secasse as lágrimas com o seu lenço.

— Vá, agora assoa-te! — ordenou ele. Ela assoou-se. — Pronto, já chega de lágrimas! Não há razão para chorares. Tu és a minha esposa e continuarás a sê-lo aconteça o que acontecer.

Cinila pôs um braço à volta do pescoço dele, encostou o rosto ao seu ombro e suspirou de felicidade.

— Ah, César, amo-te tanto! Custa-me tanto esperar até que seja mulher!

Aquela observação chocou-o. Tal como o facto de sentir os pequenos seios dela roçando-se por ele, pois vestia apenas uma túnica. Encostou o seu rosto ao cabelo dela, mas, delicadamente, foi-se desprendendo daquele abraço, pois não queria cometer nenhum acto que manchasse a sua honra.

— Júpiter Optimus Maximus não pode aparecer em pessoa — disse ela, como uma menina romana bem comportada que sabia as normas da religião. — Júpiter está em todo o lado onde está Roma — é por isso que Roma é a melhor e a maior!

— Terias dado uma boa flaminica Dialis!

— Faria um esforço. Por ti. — Cinila ergueu a cabeça para olhar para ele. — Se Sila te ordenou que te divorciasses e tu respondeste que não, isso quer dizer que ele tentará matar-te? É por isso que te vais embora, César?

— Ele tentará matar-me, disso não tenho dúvidas. É por isso que mevou embora. Se ficasse em Roma, ele não teria dificuldade nenhuma em matar-me. Sila tem muitos homens espalhados pela cidade e ninguém conhece os seus nomes ou rostos. Mas se for para a província, terei mais hipóteses. — César fê-la cavalgar no seu joelho, como se o seu joelho fosse um cavalinho; era assim que brincava com ela desde que Cinila fora viver para sua casa, tinha ele 7 anos. — Não deves preocupar-te comigo, Cinila. Os fios da minha vida são muito resistentes — demasiado duros para as tesouras de Sila! Só tens de fazer uma coisa: mitigar as preocupações da minha mãe.

—vou tentar — disse ela, beijando-o no rosto; preferia beijá-lo na boca e dizer-lhe que já era crescida para o fazer, mas sentia-se demasiado insegura para tomar tal iniciativa.

— Óptimo! — disse ele. Depois, ergueu-a do seu colo e levantou-se. — Eu estarei de volta logo que Sila morra — disse César, e foi-se embora sem mais despedidas.

Quando chegou à Porta Quirinal, César encontrou Lúcio Decúmio e os seus filhos à espera. As duas mulas levavam o dinheiro em sacas equitativamente dividas, o que implicava que nenhuma delas levasse uma carga excessiva. Não havia bolsas de couro, normalmente usadas para guardar dinheiro, à vista; em vez disso, Lúcio Decúmio tinha guardado o dinheiro no forro falso daquilo que parecia ser — e eram! — sacos de livros cheios de pergaminhos.

— Não fizeste isto hoje, de um momento para o outro — comentou César com um sorriso arreganhado. — É nisto que trabalha o teu pessoal do colégio?

— Olha, vai dizer isso ao teu cavalo. Mas primeiro, deixa-me dizer-te uma coisa. Quando for preciso pegar no dinheiro, deixa que seja Burgundo a fazê-lo — aconselhou Lúcio Decúmio, após o que se virou para o germano com um olhar tão feroz e poderoso que o gigante, involuntariamente, recuou. — Ouve lá, meu bruto, ouve-me com atenção: quando pegares naqueles sacos, tens de dar a impressão de que estás a levantar sacos de penas, ouviste?

Burgundo aquiesceu.

— Ouvi muito bem, Lúcio Decúmio. Penas.

— Agora põe o resto da bagagem em cima dos livros. Ah, e se o rapaz voar que nem o vento, tu faz-me o favor de não ficares para trás! Entendido?

César estava de pé junto ao cavalo, o seu rosto contra a cabeça do animal, segredando-lhe palavras carinhosas. E só deixou de falar com ele, depois de Burgundo ter arrumado o resto da bagagem em cima das mulas. com a ajuda do criado, César subiu para a sela.

— Cuida bem de ti, Pavo! — disse Lúcio Decúmio, com a voz embargada pela emoção, os olhos enchendo-se de lágrimas. Depois, ergueu a sua mão suja para César.

César, o fanático da limpeza, baixou-se, pegou na mão de Decúmio e beijou-a.

— Cuidarei, meu pai!

E num instante César e Burgundo desapareceram por entre o manto de neve.

A montada de Burgundo era o garanhão dos estábulos de César, um cavalo que custara quase tanto dinheiro como Bucéfalo. Era um cavalo de Neso, da linhagem dos cavalos da Média, e, por isso, muito mais corpulento que os cavalos dos povos do mar Mediterrâneo. Os cavalos nesinos eram uma raridade em Itália, pois só podiam ser usados para transportar cavaleiros de invulgar corpulência. Muitos tinham sido os agricultores e os mercadores que haviam desejado transformá-los em bestas de carga ou prendê-los a pesados arados ou carroças, já que eram mais velozes e inteligentes do que os bois. Porém, se lhes punham o jugo e os obrigavam a puxar uma carga, aqueles cavalos corriam o risco de morrer estrangulados; o movimento para a frente comprimia demasiado o arnês contra a traqueia do animal. Como animais de transporte de carga também eram inúteis; comiam tanto que não davam lucro. No entanto, um cavalo vulgar nunca poderia agüentar o peso de Burgundo; uma boa mula agüentaria, só que Burgundo tinha umas pernas tão altas que, quando montava em mulas, os seus pés roçavam pelo chão.

César foi à frente, na direcção de Crustumério, debruçado sobre a cabeça de Bucéfalo para se proteger do vento — e que vento frio aquele!

Cavalgaram a bom ritmo durante toda a noite, a fim de se afastarem o mais possível de Roma, e só pararam quando a noite seguinte estava já próxima. Tinham chegado a Trebula, não muito longe do cume da primeira cordilheira. Era uma aldeia, mas possuía uma estalagem que servia também de taberna local; o local era por isso muito barulhento e quente, para além de estar sempre cheio de gente. César não ficou nada satisfeito com aquele ambiente sujo e descuidado. — bom, de qualquer modo sempre temos um telhado e uma espécie de cama — disse ele a Burgundo depois de inspeccionar um quarto do andar de cima, onde teriam de dormir, acompanhados por vários cães pastores e seis galinhas.

Como seria de esperar, César e Burgundo atraíram as atenções dos clientes, gente que habitualmente se encontrava ali para beber vinho; a maior parte conseguiria regressar a casa no meio da neve, mas alguns (conforme confidenciou o estalajadeiro) passariam a noite no sítio onde caíssem de bêbedos.

— Temos chouriços e pão — disse o estalajadeiro.

— Venha o chouriço e o pão — retorquiu César.

— Vinho?

— Água — disse César com firmeza.

— Demasiado jovem para beber? — perguntou o estalajadeiro, pouco satisfeito com a resposta. Era no vinho que ele lucrava.

— A minha mãe matava-me se eu tocasse em vinho.

— E o teu amigo? Também não pode beber? Já não é nenhuma criança...

— Pois não, mas é atrasado mental e é melhor não lhe dar vinho pois os efeitos são tremendos — ele é capaz de arrasar um urso hircaniano e já deu cabo de dois leões que um pretor queria levar aos Jogos — disse César, com um ar muito sério, enquanto Burgundo mantinha uma expressão apática e ausente, como se não estivesse ali.

— Foge! — exclamou o homem e bateu em retirada.

Ninguém tentava importunar César quando Burgundo estava por perto. Daí que pudessem sentar-se no recanto mais sossegado daquela turbulenta taberna, onde assistiram ao desporto local, o qual parecia consistir em encher de vinho o mais jovem dos bebedores e especular sobre quanto tempo ele agüentaria.

— Assim é a vida no campo! — comentou César, batendo no seu braço nu. — Quem vê estes labregos, não percebe como é possível que eles votem nas eleições romanas! E ainda por cima, os votos deles contam, porque pertencem a tribos rurais, ao passo que tipos sagazes e despertos para as coisas da política, mas com o infortúnio de terem nascido em Roma, têm votos que não valem nada. Não está certo!

— E nem sequer sabem ler — disse Burgundo, que aprendera a ler recentemente, graças às lições de César e Gnifão.

O seu sorriso, muito lento sempre, começava a formar-se nos lábios. — Ainda bem que assim é, César. Os nossos livros estão a salvo.

— Sem dúvida — disse César, batendo de novo no braço. — Este sítio está cheio de mosquitos!

— Metem-se cá dentro por causa do frio — disse Burgundo. — Aqui está tanto calor que até dava para cozer ovos.

Burgundo exagerava, mas a verdade é que estava um calor insuportável na taberna, o qual resultava do excesso de corpos metidos num espaço limitado e de um fogo que ardia exuberantemente numa lareira; não havia frio que resistisse àquelas achas de madeira, tão grandes como a cintura de um homem, àquelas chamas enormes que se elevavam na direcção do buraco por onde saía o fumo; não havia dúvida que os homens de Trebula, a quem não faltava lenha para queimar, odiavam o frio.

Se os recantos escuros estavam cheios de mosquitos, as camas abundavam em pulgas e percevejos; César passou a noite numa cadeira dura e de bom grado deixou a estalagem ao alvorecer. Atrás dele deixava muitas e variadas especulações sobre os motivos que o levavam a ele e ao seu gigantesco criado a viajar com um tempo assim — e sobre que tipo de homem seria ele.

— Gente arrogante! — comentou o estalajadeiro.

— Prescritos — sugeriu a esposa dele.

— Demasiado jovem para ser um prescrito — disse um indivíduo de aspecto urbano que chegara à estalagem no momento em que César e Burgundo partiam. — Além disso, se Sila andasse atrás deles, teriam um ar muito mais assustado!

— Então se calhar vai visitar alguém — disse a esposa.

— É muito provável — disse o estranho, parecendo de súbito inseguro. — É capaz de valer a pena investigar um pouco. Mas aqueles dois, ninguém os esquece, não é? Aquiles e Ajax! — exclamou, exibindo alguma instrução. — O que me surpreendeu foram os cavalos. Valiam uma fortuna! É gente com dinheiro.

— Provavelmente, o rapaz é proprietário da rosea rum, em Reate — disse o estalajadeiro. — Aposto que foi daí que vieram aqueles cavalos.

— Há qualquer coisa de Palatino naquele jovem — disse o recém-chegado, cujas suspeitas se avolumavam. — Deve pertencer a uma das Famílias Famosas. Sim, não há dúvida: é gente com dinheiro.

— Pois se é gente com dinheiro, olhe que ele não o traz! — atirou-lhe o estalajadeiro, já aborrecido com a conversa. — Sabe o que é que as mulas traziam? Livros! Uma dúzia de sacas com livros! É o que lhe digo: livros!

Um dia depois, enfrentando um tempo cada vez mais rigoroso à medida que iam subindo as montanhas em torno do monte Fiscelo, César e Burgundo chegaram a Nersas.

A mãe de Quinto Sertório era viúva há mais de trinta anos e parecia nunca ter tido marido. Sempre que a via, César não podia deixar de se recordar do falecido e muito lamentado Escauro Princeps Senatus, pois ela era pequena e franzina, com a pele incrivelmente enrugada e com muito pouco cabelo para uma mulher, e possuía um traço de uma beleza extrema: um par de olhos verdes de uma vivacidade inultrapassável. Era um mistério que uma mulher tão pequena e frágil tivesse dado à luz uma criança tão forte e grande como Quinto Sertório.

— O meu filho está bem — disse ela a César enquanto enchia a sua velha mesa de produtos do fumeiro e da despensa; como era costume no campo, todos se sentavam à mesa para comer. — Quinto Sertório não teve o mínimo problema em conquistar o governo da Hispânia Citerior, mas prevê que venha a ter muitos problemas agora que Sila é Ditador — disse ela, com uma risadinha jovial. — Ora, não faz mal, não faz mal! Ele vai dar muito mais trabalho a Sila do que o filho do meu primo Mário, pobre rapaz. O jovem Mário teve uma educação demasiado branda. Júlia é uma senhora encantadora. Mas demasiado branda. E o meu primo Mário esteve sempre fora e não acompanhou o rapaz. Tu também tiveste um pai assim, César, mas a tua mãe não é amiga de branduras, pois não?

— Não, Ria — retorquiu César, sorrindo para ela.

— Seja como for, a verdade é que Quinto Sertório gosta da Hispânia. Sempre gostou. Ele e Sila estiveram em Hispânia quando andaram a espiar entre os Germanos, já lá vão alguns anos. Ele disse-me que tinha uma mulher germânica em Osca. Uma mulher e um filho. Fico contente. De outro modo, não haveria ninguém depois de ele morrer.

— Quinto Sertório devia casar com uma mulher romana — disse César num tom austero.

Ria soltou um risinho cacarejado.

— Quem? O meu Quinto Sertório? Ora, ele não gosta de mulheres! A mulher germânica apanhou-o porque, para ele se meter na tribo, tinha de ter uma esposa. Não, ele não gosta de mulheres. — Ria franziu os lábios e abanou a cabeça. — Mas também não gosta de homens.

Durante algum tempo, a conversa girou em torno de Quinto Sertório e dos seus feitos. Até que Ria se decidiu a falar do que César devia fazer.

— Eu recebia-te em minha casa com o maior agrado, mas as nossas ligações são demasiado conhecidas e tu não és o primeiro refugiado que eu recebo. O meu primo Mário mandou-me o rei dos Volcas Tectósagos, nem mais nem menos! Chamava-se Copilo. Um homem muito simpático! Muito civilizado, para um bárbaro. É claro que o estrangularam no Cárcer, depois do triunfo do meu primo Mário. Mas ainda cuidei dele durante uns bons anos e isso permitiu-me fazer um bom pé-de-meia. Foram quatro anos, acho eu... Sempre generoso, o meu primo Mário. Pagou-me uma fortuna por esse trabalho. E eu tê-lo-ia feito de graça. Copilo era uma boa companhia... Quinto Sertório não é homem de estar em casa. Gosta da guerra. — Encolheu os ombros, deu umas palmadas nos joelhos e abordou finalmente o que interessava. — Há um casal que eu conheço, que vive nas montanhas entre esta região e Amiterno. Eles ficam contentes por ganharem uns dinheiros extra, e vocês podem confiar inteiramente neles — disso não tenho a mínima dúvida. Eu mando-lhes uma carta e instruções logo que vocês estejam prontos para partir.

— Partimos já amanhã — disse César. Mas ela abanou a cabeça.

— Não, amanhã não! E depois de amanhã também não. Está uma grande tempestade e vocês não conseguem encontrar a estrada. Nem vão saber o que têm por debaixo dos pés! Ali o teu criado germânico, quando der por isso, já está no fundo do rio sem sequer saber que estava a atravessar um rio! Vão ter de ficar comigo até que o Inverno abrande.

— Abrande?

— Depois das primeiras tempestades, que são as piores. É preciso que o gelo assente. Só então é que é seguro viajar, pois o gelo fica rijo e não há o perigo de se desfazer. É difícil para os cavalos, mas hão-de lá chegar. Deixa o teu criado ir à tua frente, pois os cascos do cavalo dele são tão grandes que o animal, além de pouco escorregar, sempre vai desbastando o terreno para o teu delicado cavalo avançar melhor. Imagina só: trazer um cavalo daqueles para estas bandas, no pino do Inverno! Falta-te bom senso, César!

— Foi o que a minha mãe me disse — retorquiu César, pesaroso.

— A essa é que não falta bom senso. Outra coisa: os Sabinos gostam de cavalos. E esse belo animal dá nas vistas. Ainda bem que, no sítio para onde vais, não há ninguém que dê pelo cavalo! — Ria fitou-o com um sorriso franco, revelando alguns dentes estragados. — Mas afinal só tens dezoito anos! Hás-de aprender!

No dia seguinte, César verificou que Ria tinha razão quanto ao tempo; a neve continuava a cair com a mesma intensidade e ia-se empilhando no chão, formando maciços montes. Se César e Burgundo não tivessem pegado em pás e mourejado umas boas horas, a confortável casa de pedra de Ria depressa teria ficado cercada de neve e nem mesmo Burgundo teria conseguido abrir a porta. Nevou ainda durante mais quatro dias. Depois, começaram a aparecer no céu algumas réstias de azul e o ar ficou muito mais frio.

— Gosto do Inverno aqui — disse Ria, ajudando-os a empilhar a palha no calor dos estábulos. — Em Roma, um Inverno frio é uma desgraça, e a verdade é que nesta década estamos a passar por um ciclo de Invernos frios. Mas aqui, pelo menos, é um Inverno limpo e seco, ainda que muito frio.

— Tenho de partir muito em breve — disse César.

— Tendo em conta as quantidades de comida que o teu criado e o cavalo dele comem, ficarei muito contente em vê-los pelas costas — disse a mãe de Sertório, com um riso grunhido. — Mas não amanhã. Talvez depois de amanhã. Logo que seja possível viajar entre Roma e Nersas vocês deixarão de estar em segurança aqui. Se Sila se lembrar de mim — e é muito capaz de se lembrar, pois conheceu muito bem o meu filho — é certo e sabido que a primeira coisa que fará será mandar os seus lacaios à minha casa.

Mas os hóspedes de Ria não partiriam tão cedo. Na noite anterior à partida, César adoeceu. Embora o tempo não estivesse exageradamente frio, a casa estava bem aquecida, pois possuía braseiros, dispostos contra as largas paredes de pedra, e boas e fortes persianas que a protegiam dos ventos. Apesar disso, César tinha frio, cada vez mais frio.

— Não estou a gostar disto — disse-lhe Ria. — Até oiço os teus dentes a baterem. E é mais do que uma simples sezão, pois já dura há demasiado tempo. — Pôs a mão na testa dele e recuou, assustada. — Tu estás a arder em febre! Não te dói a cabeça?

— Muito — murmurou ele.

— Então não sais daqui amanhã. Anda cá, meu gigante, leva o teu amo para a cama!

E César meteu-se na cama, consumido pela febre, abalado por uma tosse seca e por uma dor de cabeça perpétua, e incapaz de ingerir comida.

— Caelum grave et pestilens — disse a curandeira chamada para ver o doente.

— Não é uma sezão típica — disse a teimosa Ria. — Não é uma quarta, nem uma terça. E além disso, ele não sua.

— É uma sezão, sim, Ria. Mas é uma sezão fora do comum.

— Ah, então vai morrer!

— O rapaz é forte — disse a curandeira. — Faz com que ele beba. Não posso dar melhor conselho. Água misturada com neve.

Sila preparava-se para ler uma carta de África, enviada por Pompeu, quando lhe apareceu o chefe dos criados, Crisógono, muito alvoroçado.

— O que é que se passa? Estou ocupado, não vês? Quero ler esta carta!

— Domine, é uma senhora, uma senhora que quer vê-lo.

— Diz-lhe que desapareça!

— Não posso, domine!

Aquela resposta distraiu Sila da leitura da carta; surpreendido, fitou Crisógono.

— Nunca pensei que houvesse alguém capaz de te vencer e convencer, Crisógono! — disse ele, divertido. — Mas tu estás a tremer, homem! Ela mordeu-te?

— Não, domine — retorquiu o criado, que não tinha o mínimo sentido de humor. — Mas cheguei a pensar que era capaz de me matar.

— Ah, então tenho de vê-la! Disse-te o nome? É mortal?

— Ela disse que se chamava Aurélia. Sila estendeu o braço e observou-o.

— Olha! Ainda não estou a tremer!

— Mando-a entrar?

— Não. Diz-lhe que nunca mais quero vê-la — retorquiu Sila, mas não pegou de novo na carta de Pompeu; a carta já não lhe interessava.

— Domine, ela recusa-se a abandonar esta casa enquanto não o vir!

— Então manda os criados pô-la na rua.

— Já tentei fazer isso, domine. Mas eles recusaram. Nem com um dedo lhe tocaram.

— Pois fizeram bem! — Sila soprou, cerrou os olhos. — Está bem, Crisógono, manda-a entrar.

Aurélia não demorou.

— Senta-te — disse-lhe Sila.

Ela sentou-se. A luz forte do Inverno banhava-a sem mercê e, uma vez mais, Sila, ou os destroços do que ele fora, podia ver que o tempo não marcara ainda aquele rosto de traços perfeitos. No seu quartel-general de Teano, a luz era tão fraca que mal a enxergava. Por isso, agora, tirava a desforra. Aquela magreza poderia tê-la tornado menos bela; pelo contrário, ainda a tornava mais bela, e o tom róseo que lhe impregnava os lábios e as faces tinha-se esbatido, deixando que a pele ganhasse uma brancura de mármore. O cabelo não tinha encanecido; por outro lado, era evidente que ela não queria ficar com um ar mais jovem, pois continuava a usar o mesmo tipo de penteado austero, puxado atrás, num rolo. E os olhos eram tão belos, rodeados por espessas pestanas negras, sob umas sobrancelhas igualmente negras e fartas. Aqueles olhos que agora o fitavam gravemente.

— Vieste por causa do teu rapaz, imagino — disse ele, recostando-se na sua cadeira.

— Sim.

— Então fala! Estou a ouvir.

— Foi por causa de ele ser tão parecido com o teu filho? Abalado, Sila não conseguiu continuar a olhá-la nos olhos.

Fixou a carta de Pompeu até a dor desaparecer.

— Foi um choque quando o vi, é verdade. Mas não foi por isso que tomei aquela decisão. — Os olhos dele voltaram a fixar-se nos dela, frios e poderosos.

— Eu gostava do teu filho, Lúcio Cornélio.

— Não será assim que levarás a água ao teu moinho, Aurélia. O meu filho morreu há muito tempo. Aprendi a viver com isso, mesmo quando pessoas como tu tentam aproveitar-se do facto.

— Nesse caso, sabes o que eu pretendo.

— Claro que sei. — Inclinou a cadeira para trás, pois não se sentia muito confortável naquela cadeira baixa e larga e com pernas recurvadas. — Queres que eu poupe o teu filho. Apesar de o meu não ter sido poupado.

— Não podes culpar-me ou culpar o meu filho por isso!

— Posso culpar quem eu quiser por tudo o que eu muito bem entender! Eu sou o Ditador! — gritou ele, com espuma ao canto dos lábios.

— Disparates, Sila! Tu acreditas nisso tanto como eu! Eu estou aqui para te pedir que poupes o meu filho, porque o meu filho não merece morrer, tal como não mereceu ser nomeado flamen Dialis.

— Concordo que ele não é o homem certo para esse cargo. Mas foi o cargo que lhe deram. E tu deves ter querido que ele desempenhasse esse cargo.

— Eu não queria que ele fosse flamen Dialis. O meu marido também não. Fomos informados da sua nomeação, nada mais. Pelo próprio Mário, no meio das suas atrocidades — disse Aurélia, erguendo o seu lábio em sinal de repulsa. — E foi também Mário quem disse a Cina que o meu filho devia casar com a filha dele. A última coisa que Cina queria era ver Cinila no cargo de flaminica Dialis.

Sila mudou de assunto.

— O teu rosto já não tem o mesmo tom rosado de outros tempos — disse ele. — Como tens uma cara ossuda, ficava-te bem.

— Ora, deixa-te de disparates! — atirou-lhe ela. — Eu não vim aqui para agradar aos teus olhos inquisidores, vim aqui para defender o meu filho!

— Gostaria muito de poupar o teu filho. Ele sabe o que tem a fazer. Divorciar-se da filha de Cina.

— Ele não se divorciará.

— E porque não? — gritou Sila, erguendo-se num impulso. — Porque não?

Um pouco de cor subiu pelas faces de Aurélia, avermelhou-lhe os lábios

— Porque tu, grande imbecil, tu lhe mostraste que continuar casado é uma maneira de fugir a um cargo que ele abomina com todas as forças do seu ser! Divorciar-se dela e permanecer flamen Dialis por toda a vida? O meu filho preferia morrer!

Sila fitou-a boquiaberto.

— O quê?

— És um imbecil, Sila! Um imbecil! Ele nunca se divorciará dela!

— Não me chames imbecil!

— Chamo-te o que muito bem entender, velha relíquia! Velho poço de maldade!

Um silêncio estranho fez-se então entre os dois. A fúria de Sila esbateu-se, enquanto a dela crescia. Ele tinha-se virado para a janela, mas agora fitava-a de novo, com algo mais na sua mente do que a raiva ou a provação que ela representava.

— Comecemos do princípio — disse ele. — Diz-me porque é que Mário tornou o teu filho flamen Dialis se nenhum de vós o queria.

— Mário fez isso por causa da profecia — disse ela.

— Sim, eu sei dessa história. Cônsul sete vezes. Terceiro Fundador de Roma. Ele contava isso a toda a gente.

— Não contava tudo. Havia uma segunda parte que ele não contava. Só contou quando a sua mente começou a falhar. Contou ao filho, que contou a Júlia, que me veio contar a mim.

Sila sentou-se de novo, intrigado.

— Continua — disse ele.

— A segunda parte da profecia dizia respeito ao meu filho César. A velha Marta predisse que César seria o maior romano de todos os tempos. E Caio Mário também acreditou nisso. E nomeou César flamen Dialis para o impedir de ir para a guerra e de fazer carreira política. — Aurélia sentou-se, lívida.

— Porque um homem que não pode ir para a guerra e não pode disputar o consulado nunca será famoso — disse Sila, aquiescendo. Assobiou. — Muito esperto, aquele Mário! Brilhante! Se o teu rival for o flamen Dialis, tens a vitória garantida! Nunca pensei que aquela velha besta fosse tão perspicaz.

— Ah sim, perspicácia não lhe faltava!

— É uma história interessante — disse Sila, pegando na carta de Pompeu. — Podes ir, já ouvi que chegue.

— Poupa o meu filho!

— Só se ele se divorciar.

— Ele nunca fará isso.

— Então não temos mais nada a dizer. Vai-te embora, Aurélia. Mais uma tentativa. Mais uma tentativa por César.

— Eu chorei por ti uma vez. Tu gostaste disso. Agora dou comigo desejando chorar por ti uma vez mais. Mas tu não gostarias dessas lágrimas. Porque eu estaria a chorar a morte de um grande homem. Porque aquele que eu vejo à minha frente desceu tão baixo que agora até persegue crianças. A filha de Cina tem doze anos. O meu filho, dezoito. Crianças! E no entanto, a viúva de Cina passeia-se impudentemente por toda a cidade porque agora é esposa de outro homem, e porque esse outro homem te apoia. O filho de Cina ficou sem dinheiro e não teve outra alternativa senão deixar o seu país. Outra criança. Enquanto a viúva de Cina prospera na vida. Mas ela não é nenhuma criança. — Aurélia sorriu-lhe com desprezo. — Ânia é ruiva, é claro. Terás ainda nessa cabeça velha e calva alguns dos cabelos de Ânia?

E dito isto, virou-lhe as costas e foi-se embora. Crisógono entrou então, tão agitado como antes.

— Quero que me encontres uma pessoa — disse Sila, com o ar mais preverso que podia ter. — Que encontres, Crisógono. Não quero o homem proscrito, nem morto.

Desejoso de saber o que transpirara da conversa entre o seu amo e aquela mulher extraordinária — ah, com certeza que tinha havido alguma coisa entre os dois, noutros tempos! —, o chefe dos criados suspirou para dentro (nunca se sabia como Sila reagiria, até mesmo a um suspiro) e disse muito baixinho:

— Uma transacção privada?

— Ora aí está um bom nome para o que eu quero! Isso mesmo, uma transacção privada. Dois talentos de recompensa para quem localizar Caio Júlio César, o flamen Dialis. O qual deve ser trazido à minha presença sem um único arranhão! Informa os teus homens correctamente. Ninguém mata o flamen Dialis. Eu só o quero aqui, à minha frente. Entendido?

— Claro, domine — retorquiu o chefe dos criados, embora não fizesse nenhum movimento para se ir embora. Em vez disso, pigarreou delicadamente.

Sila voltara a atentar na carta de Pompeu, mas, perante aquela insistência, ergueu de novo a cabeça.

— O que há?

— Eu já fiz o esboço que me pediste, domine, na altura em que te perguntei se podia ser nomeado como o burocrata encarregado da administração das proscrições. Também já tenho um chefe de criados para me ajudar nas tarefas domésticas. Podes falar com ele quando quiseres, para o caso de concordares com a minha nomeação.

O sorriso de Sila não era nada agradável.

— E acreditas mesmo que vais poder fazer os dois trabalhos ao mesmo tempo? Isto é, se eu aceitar o chefe de criados que me propões.

— É preferível que eu faça os dois trabalhos, domine. Lê o meu esboço. Ele mostra de forma muito clara que eu entendo realmente a natureza desse trabalho administrativo. Porque hás-de dar o cargo a um profissional do Tesouro que se mostrará demasiado tímido para procurar clarificar os problemas e que estará demasiado preso aos métodos do Tesouro para tirar proveito dos aspectos mais comerciais do cargo?

—vou pensar no caso. Depois, comunico-te a minha decisão — disse Sila, pegando uma vez mais na carta de Pompeu. Impassível, viu o criado fazer a vénia e deixar a sala. Depois, pôs um sorriso amargo. Que criatura abominável! Que homem abjecto! E no entanto, era de um homem assim que a administração das proscrições precisava — um homem absolutamente abominável. Mas digno de confiança. Se o administrador fosse Crisógono, Sila podia ter a certeza de que não haveria liberdades desastrosas na administração. Sem dúvida que Crisógono arranjaria maneira de desviar algum lucro para os seus bolsos, mas ninguém estava em melhor posição do que Crisógono para saber que as coisas lhe correriam muito mal, caso esses lucros se reflectissem pessoalmente em Sila. O aspecto comercial das proscrições tinha de ser conduzido de uma forma positiva e respeitável, pelo menos na aparência — venda de propriedades, encaminhamento de dinheiros, joalharia, mobiliário, obras de arte, interesses e acções. Sila não teria a mínima possibilidade de administrar tudo aquilo; por isso, alguém teria de o fazer. Crisógono tinha razão. Antes ele que um burocrata do Tesouro! com um desses burocratas, o trabalho nunca estaria feito. As coisas tinham de andar rápidas. Mas ninguém podia ter a mínima hipótese de dizer que Sila tinha lucrado com essas operações, à custa do Estado. Embora fosse um liberto, a verdade é que Crisógono era sobretudo um homem de Sila; e Crisógono sabia que o seu amo não teria a menor relutância em matá-lo caso ele errasse.

Satisfeito com o facto de ter resolvido o dilema das proscrições, Sila começou finalmente a ler a carta de Pompeu.

A Província de África e a Numídia estão pacificadas e calmas. Foi um objectivo que realizei em quarenta dias. Parti de Lilibeu no final de Outubro com seis legiões e dois mil cavaleiros, deixando Caio Mémio à frente da Sicília. Achei que não havia necessidade de deixar uma guarnição militar na Sicília. Já tinha começado a reunir navios quando cheguei à Sicília e, no final de Outubro, havia mais de oitocentos navios à nossa disposição. Sempre gostei da boa organização, poupa-nos muito tempo. Antes de partir, enviei um mensageiro ao rei Bogud da Mauritânia, o qual se encontra desde há algum tempo em lol, com o seu exército. lol não fica tão longe como Tíngis. Bogud reina agora em lol e deixou um representante seu, Ascális, em Tíngis. Todas estas mudanças se devem às lutas na Numídia, onde o príncipe larbas usurpou o trono ao rei Hiempsal. O meu mensageiro instruiu o rei Bogud para que invadisse imediatamente a Numídia pelo lado ocidental. A minha estratégia consistia no seguinte: Bogud empurraria larbas para leste, onde eu estaria à sua espera e poderia facilmente destroçá-lo.

Distribuí os meus homens por duas divisões, deixando a primeira na velha Cartago e a segunda em Útica. Eu próprio comandei a segunda divisão. No momento em que desembarquei, sete mil homens de Cneu Aenobarbo vieram comunicar-me a sua submissão, o que me pareceu ser um bom augúrio. Aenobarbo decidiu travar a batalha imediatamente. Tinha medo de que desertassem mais homens do seu exército, caso não o fizesse. Instalou o seu exército na encosta de uma ravina, planeando emboscar-me a meio do meu caminho. Mas eu subi a um penhasco e vi o exército dele. Por isso não caí na armadilha que ele tinha montado. Entretanto começou a chover (o Inverno é a estação das chuvas na Província de África) e tirei proveito do facto de que a chuva batia de frente nos soldados de Aenobarbo. Obtive uma grande vitória e os meus homens proclamaram-me imperador no campo de batalha. Mas Aenobarbo e três mil dos seus homens escaparam ilesos. Os meus homens iam já a meio da cerimónia de consagração do imperador quando eu os detive, dizendo-lhes que podiam fazer isso mais tarde. Eles deram-me razão. Por isso, corremos para o campo de Aenobarbo e matámo-lo a ele e a todos os seus homens. Permiti então que os meus homens me consagrassem finalmente imperador no campo de batalha.

Avancei então na direcção da Numídia, já que todos os insurrectos ainda em liberdade se tinham rendido. Executei-os em Útica. larbas, o usurpador, fugiu para Bula Régis — uma cidade junto ao curso superior do rio Bágrada —, pois soube que eu me aproximava vindo do leste, ao passo que Bogud vinha de oeste. Claro que cheguei a Bula Régis primeiro que o rei Bogud. Bula Régis abriu-me as portas no instante em que cheguei e entregou-me larbas. Executei-o imediatamente, tal como um outro chefe, de seu nome Masinissa. Devolvi ao rei Hiempsal o seu trono. Até tive tempo para caçar animais selvagens. Esta região abunda em animais selvagens de todos os tipos, desde elefantes até criaturas enormes parecidas com gatos. Estou a escrever-te esta carta do nosso acampamento na planície numidiana.

Tenciono regressar em breve a Útica, depois de ter submetido todo o Norte de África em quarenta dias, como já referi. Não é necessário guarnecer militarmente esta nossa província. Podes mandar um governador sem qualquer espécie de receio.vou embarcar com as minhas seis legiões e dois mil cavaleiros e partir para Tarento. Depois, marcharei com eles pela Via Ápia na direcção de Roma, onde gostaria que me fosse concedido um triunfo. Os meus homens consagraram-me imperador no campo de batalha, portanto tenho direito a um triunfo. Pacifiquei a Sicília e a África em cem dias e executei todos os teus inimigos. Também tenho uns belos despojos para exibir no meu desfile do triunfo.

Quando terminou a leitura, Sila chorava já de tanto rir, sem saber ao certo se as ingénuas confidências da missiva o divertiam mais do que a sua arrogância ou do que o cuidado posto nas informações (em particular, o facto de o Inverno ser a estação das chuvas naquela região africana ou o facto de Bula Régis ficar no curso superior do Bágrada) — com certeza que Pompeu sabia que Sila tinha passado muitos anos em África e capturara sem qualquer auxílio o rei Jugurta...! Ao fim de apenas quarenta dias Pompeu sabia tudo. Quantas vezes dizia ele na carta que as suas tropas o tinham consagrado imperador no campo de batalha? Mas que palerma aquele!

Pegou numa folha de papel e escreveu a Pompeu; aquela era uma carta que nunca por nunca ditaria a um secretário.

Foi com grande prazer que recebi a tua carta e desde já te agradeço as interessantes informações que me dás sobre África. Gostaria de a visitar um dia, nem que seja para ver, com os meus próprios olhos, essas criaturas enormes parecidas com gatos de que tu falas na tua missiva.

Parabéns. Mas que rapaz despachado que tu és! Quarenta dias. Quarenta dias, ao que sei, foi o tempo que a Mesopotâmia demorou a ser inundada já lá vai um milênio.

Sei que posso confiar em ti quando dizes que a África e a Sicília não precisam de guarnições militares, mas, meu caro Pompeu, as formalidades têm de ser cumpridas. Ordeno-te, por isso, que deixes cinco das tuas legiões em Útica e que regresses apenas com uma. Não interessa qual: se tens uma legião favorita, trá-la contigo. A propósito de favoritos: está visto que és um dos favoritos de Fortuna!

Infortunadamente, não poderei autorizar-te a celebrar um triunfo. Embora as tuas tropas te tenham consagrado imperador no campo de batalha, os triunfos são reservados aos membros do Senado que atingiram o estatuto de pretor. Tu vencerás mais guerras nos anos que hão-de vir, por isso terás direito ao teu triunfo mais tarde.

Também queria agradecer-te o rápido envio do aparelho de comer, ver, ouvir e cheirar que pertenceu a Carbão. Não há nada como uma cabeça para convencer os homens de que outros homens acabaram na poeira do chão, isto para citar Homero. A força da minha asserção de que Carbão estava morto e de que Roma não tinha cônsules tornou-se imediatamente evidente. Que bela ideia a tua, a de meteres a cabeça em vinagre! Obrigado também por Sorano. E pelo velho Bruto.

Há apenas um pequeno pormenor, meu caro Pompeu. Preferia que tivesses tratado do caso de Carbão de uma maneira menos pública, já que estavas determinado a seguir um processo tão bárbaro. Começo a acreditar no que dizem as pessoas — no fundo de um homem do Piceno está sempre a Gália toda. A partir do momento em que resolveste sentar-te num tribunal com a toga praetexta vestida e com cadeira curul e lictores, passaste a ser Roma. Mas a verdade é que tu não te comportaste como um romano. Depois de teres atormentado o pobre Carbão durante horas e horas debaixo de um sol abrasador, anunciaste, em tons de rei e senhor, que ele não merecia um julgamento e que, por isso, seria executado ali mesmo. Como lhe tinhas dado alojamento e o tinhas alimentado de forma atroz durante alguns dias antes desse deprimente acto público, o homem estava doente. No entanto, quando ele te pediu que o autorizasses a retirar-se, porque queria aliviar os intestinos antes de morrer, tu negaste-lhe a permissão! Segundo me disseram, o homem morreu enterrado na sua própria merda.

Como é que eu soube de tudo isto? Tenho as minhas fontes. Se não tivesse, duvido que fosse agora o Ditador de Roma. Tu és muito novo e cometeste o erro de pensar que eu, por querer que Carbão morresse, não tinha tempo nenhum para ele. Em parte, é verdade. Mas eu tenho todo o tempo do mundo para o consulado de Roma. E o que é verdade também é que Carbão, quando foi morto, era um cônsul eleito. De futuro, jovem Pompeu, é melhor que te lembres de que todas as honras são devidas ao cônsul, mesmo que o seu nome seja Cneu Papírio Carbão.

A propósito de nomes. Ouvi dizer que, com esse bárbaro episódio na agora de Lilibeu, ganhaste mais um nome. Um grande benefício para os infortunados que, nascendo sem um terceiro nome, se vêem condenados a um certo apagamento. Não é verdade, Pompeu Sem Terceiro Nome? Adulescentulus carnifex! O Miúdo Carniceiro. Acho que é um apelido maravilhoso para ti! Miúdo Carniceiro! És um carniceiro, tal e qual como o teu pai.

Repito: cinco das tuas legiões ficarão em Útica, onde aguardarão a chegada do novo governador. Tratarei de escolher alguém para esse cargo quando tiver tempo. Quanto a ti, podes regressar à vontade. Estou ansioso por te ver. Podemos ter uma conversa muito agradável sobre elefantes e eu juro quevou aproveitar as tuas lições sobre África e sobre as coisas africanas.

Tenho também de te mandar as minhas condolências pela morte de Públio Antístio Veto e da sua esposa, teus sogros. É difícil entender por que motivo Bruto Damásipo incluiu Antístio entre as suas vítimas. Mas é claro que Bruto Damásipo já está morto e não poderá explicar. Mandei-o executar. Mas em privado, Pompeu Miúdo Carniceiro. Em privado.

Ora aqui está uma carta que eu gostei realmente de escrever!, pensou Sila ao concluir a missiva. Porém, nesse mesmo instante, o seu semblante carregou-se. Começou a pensar no que haveria de fazer com o Miúdo Carniceiro nos tempos mais próximos. É que aquele rapaz dificilmente largaria uma coisa a que se tivesse agarrado com unhas e dentes. Era o caso do triunfo. E um homem que era capaz de se instalar, no maior estadão, na praça pública de uma cidade não romana, e rodear-se de lictores e sentar-se na cadeira curul, e que depois se comportava como o mais bárbaro dos bárbaros, não ia apreciar as nuances de um protocolo triunfal. Talvez Sila se apercebesse de que o Miúdo Carniceiro era suficientemente esperto para reivindicar a consagração através de processos que minariam a sua recusa em conceder-lhe o triunfo; é que, nesse momento, Sila imaginava já intrigas e conspirações contra Pompeu. O seu sorriso voltava a iluminar-lhe o rosto e, quando o seu secretário entrou, o homem soltou involuntariamente um suspiro, tal era o alívio por ver o seu amo bem disposto.

— Ah, Flósculo! Chegaste mesmo no momento certo. Senta-te e pega nas tuas tábuas. Estou tão bem disposto que me apetece tratar com a maior generosidade todo o género de pessoas, incluindo aquele indivíduo esplêndido que dá pelo nome de Lúcio Licínio Murena e que é o meu governador da Província da Ásia. Sim, sim, decidi perdoar-lhe todas as suas agressões contra o rei Mitridates e o facto de não ter obedecido às minhas ordens. Creio quevou precisar do indigno Murena; por isso, escreve-lhe a dizer que decidi que ele deve voltar a Roma o mais depressa possível a fim de celebrar um triunfo. Escreve também ao Flaco que está na Gália Transalpina e diz-lhe também que regresse imediatamente a fim de celebrar o seu triunfo. Ah, e cada um desses homens deve trazer consigo pelo menos duas legiões...

Sila estava imparável e o secretário fez todos os esforços possíveis para o acompanhar. Da mente de Sila tinham desaparecido todas as recordações de Aurélia e daquela irritante entrevista; nem sequer se lembrava de que Roma tinha um flamen Dialis recalcitrante. Tinha de tratar primeiro do caso de um outro jovem, muito mais perigoso, e, para tal, teria de usar processos quase tão subtis como os que planeara para o jovem César — quase, mas não tão subtis. De qualquer modo, tinha de levar em conta que o Miúdo Carniceiro, quando tocava a defender os seus interesses, era sempre muito, muito esperto.

Em Nersas, como Ria previra, o tempo invernoso caracterizava-se agora por temperaturas baixas e um céu muito azul; porém, a Via Salária, que conduzia a Roma, encontrava-se aberta, tal como a estrada que ia de Reate a Nersas, e o caminho que percorria os cimos dos montes até ao vale do rio Aterno.

Mas nada disso interessava César, o qual vinha piorando de dia para dia. Na fase inicial, e mais lúcida, da sua doença, tentara levantar-se e sair, mas logo que se levantava era invadido por uma incontrolável vaga de fraqueza que o deitava por terra como se fosse uma criança aprendendo a andar. Ao sétimo dia, desenvolveu uma tendência para ficar adormecido e apático, a qual, gradualmente, se foi transformando num coma superficial.

Foi então que chegou à casa de Ria Lúcio Cornélio Fagita, acompanhado pelo desconhecido que vira César e Burgundo na estalagem de Trebula. Ria não pôde impedi-los de entrar, já que tinha mandado Burgundo cortar lenha.

— Tu és a mãe de Quinto Sertório e o homem que está naquela cama a dormir é Caio Júlio César, o flamen Dialis — disse Fagita, extremamente satisfeito.

— Ele não está a dormir. Ele não consegue deixar de dormir — disse Ria.

— Está a dormir.

— Há uma pequena diferença. Eu não consigo acordá-lo. Aliás, ninguém consegue. O rapaz está doente. com a pior das sezões. O que significa que vai morrer.

Aquela não era uma notícia agradável para Fagita, pois sabia que a recompensa pela cabeça de César só seria paga se a cabeça permanecesse ligada a um corpo vivo.

Tal como os outros esbirros de Sila que eram também os seus libertos, Lúcio Cornélio Fagita tinha muito poucos escrúpulos e nenhuma moral. Fagita, um grego alto e belo, na casa dos quarenta, e que preferira vender-se como escravo a procurar um meio de ganhar a vida na sua devastada terra natal, tinha-se agarrado a Sila como uma lapa e, como recompensa, fora nomeado chefe de um dos bandos que perseguiam os proscritos; quando lhe foi entregue o caso de César, havia já ganho um total de catorze talentos por matar homens incluídos nas listas. Se levasse César vivo, ganharia mais dois talentos; e Fagita não gostava da perspectiva de perder dinheiro.

No entanto, Fagita não revelou a Ria a natureza da sua comissão. Primeiro que tudo, pagou ao seu informador, que não largava a cama de César, para que o homem desaparecesse rapidamente. Neste caso, a morte não era uma boa coisa para os seus rendimentos. Mas talvez o rapaz tivesse dinheiro com ele. com alguma esperteza, pensou Fagita, talvez conseguisse arrancar dinheiro à velha contando-lhe uma história.

— Muito bem — disse ele, pegando na sua enorme faca. — De qualquer modo, posso cortar-lhe a cabeça. E depoisvou a Roma receber os meus dois talentos.

— Toma mas é cuidado, citocacia! — gritou-lhe Ria, enfrentando-o corajosamente. — Há um homem que não tarda aí e que te mata num abrir e fechar de olhos se por acaso tocares no amo dele!

— O quê, aquela besta germânica? Então, ouve o que te digo: vai chamá-lo. Vá, vai lá chamá-lo, que eu sento-me aqui na beira da cama e faço companhia ao amo dele. — Fagita sentou-se ao lado da figura que jazia na cama, com a faca encostada à garganta de César.

Enquanto Ria corria pelos caminhos gelados a chamar por Burgundo, Fagita foi até à porta da frente e abriu-a; lá fora, estavam os seus capangas, os membros da sua decúria.

— O gigante germânico está cá. Matamo-lo se for preciso, mas é muito possível que alguns de nós fiquem com uns quantos ossos partidos. Por isso, só lhe damos luta se não tivermos outra hipótese. O rapaz está a morrer, não ganhamos nada com ele — explicou Fagita. — O que euvou fazer é tentar sacar-lhes o máximo de dinheiro possível. Mas quando o fizer, preciso que vocês me protejam do germano. Entendido?

Fagita voltou para dentro de casa e estava sentado na cama, com a faca encostada à garganta de César, quando Ria regressou com Burgundo. Do peito de Burgundo cresceu um rugido tremendo, mas a verdade é que a gigantesca criatura não fez qualquer movimento na direcção da cama, limitando-se a ficar no vão da porta, cerrando e abrindo as suas mãos enormes.

— Ora muito bem! — disse Fagita num tom muito amistoso e sem qualquer receio. — Agora, velha,vou dizer-te o que deves fazer. Se tiveres dinheiro que chegue, eu posso deixar-te o rapaz com a cabeça em cima dos ombros. Os meus nove homens estão lá fora à minha espera, de maneira que eu posso cortar este belo pescoço e chegar ao caminho mais depressa que o teu gigante chegaria aqui. Entendido?

— Eu entendo, mas Burgundo não. Ele não fala uma palavra de grego.

— Mas que animal! Então eu negoceio contigo, avozinha. Quanto tens para me dar?

Por um momento, Ria ficou quieta, de olhos cerrados, perguntando a si mesma o que haveria de fazer. E como era tão prática como o seu filho, decidiu negociar com Fagitas para se ver livre dele. Se não o fizesse, César morreria antes que Burgundo conseguisse chegar à cama; e Burgundo e ela teriam a mesma sorte. Por isso, abriu os olhos e apontou para as sacas de livros que estavam empilhadas a um canto.

— Estás a ver aquelas sacas? Tens ali três talentos — disse ela.

Fagita olhou para as sacas e assobiou.

— Três talentos! Muito interessante!

— Pega nas sacas e vai-te embora. Deixa-o morrer em paz.

— Deixo, avozinha, está descansada. — Pôs os dedos entre os lábios e assobiou estridentemente.

Os seus homens entraram então aos tropeções, brandindo as espadas, pensando que iam lutar contra Burgundo. Para sua grande surpresa, todos os actores daquela cena estavam tão quietos como estátuas; mas a maior surpresa veio quando viram que o seu prêmio era constituído por livros.

— Por todos os deuses, mas que livros mais pesados! — disse Fagita ao pegar numa das sacas. — O nosso flamen Dialis é uma inteligência!

Três idas e vindas e as sacas de livros desapareceram. Da terceira vez que os seus homens entraram na casa, Fagita ergueu-se da cama e misturou-se rapidamente com eles.

— Adeuzinho! — disse ele, e desapareceu. Do caminho vieram sons de actividade, depois o barulho das patas dos cavalos nas lajes, e, finalmente, o silêncio.

— Devias ter-me deixado matá-los — disse Burgundo.

— Se eu tivesse deixado, o teu amo seria o primeiro a morrer — disse a velha, suspirando. — bom, eles não vão voltar enquanto não gastarem o dinheiro, mas hão-de voltar. Tens de levar César para as montanhas.

— Mas ele morre! — disse Burgundo, que começava a chorar.

— Pode ser que sim, pode ser que não. Mas se ficar aqui é que vai morrer pela certa.

O coma de César era pacífico: não delirava, não estava numa agitação constante, muito longe disso. O rapaz, pensou Ria, estava muito magro e abatido, e tinha feridas à volta da boca, causadas pelas febres, mas mesmo a dormir, mesmo dominado por aquele estranho sono, aceitava tudo o que lhe dessem a beber; por outro lado, como a sua imobilidade era relativamente recente, o seu peito não produzia ainda os ruídos que indicavam uma obstrução fatal.

— É pena termos perdido o dinheiro, porque eu não tenho um trenó e tu vais ter de levá-lo sem trenó. Conheço um homem que era capaz de me vender um, mas desde que Quinto Sertório foi proscrito que eu não vejo a cor ao dinheiro. Se fiquei com esta casa, foi porque ela era o meu dote.

Burgundo ouviu estas palavras sem qualquer reacção; depois, revelou que, afinal, era capaz de ter boas ideias.

— Vende o cavalo dele! — disse e desatou a chorar. — Ah, ele vai ficar destroçado! Mas não temos outra saída.

— Muito bem, Burgundo! — disse Ria, animada. — Vai ser fácil vender o cavalo. Não pelo que ele vale, mas pelo menos ficamos com dinheiro suficiente para comprar o trenó e alguns bois e para pagar a Prisco e Gratídia pelo alojamento — mesmo que tu comas tanto como de costume!

O trenó — que, na realidade, era uma carroça com rodas e um estrado de pranchas polidas com as extremidades recurvadas — custou quatro mil sestércios e os dois bois que a puxavam mil sestércios cada. No entanto, o proprietário disse-lhes que estava interessado em readquirir a carroça e os bois no Verão seguinte, por quatro mil sestércios, o que lhe permitia obter um lucro de dois mil.

— És muito capaz de ter a carroça e os bois de volta antes do Verão — disse-lhe Ria, com um ar pesaroso.

Burgundo e Ria fizeram todos os possíveis para que César ficasse confortável no trenó, envolvendo-o com o maior número possível de mantas.

— Agora tem cuidado para que ele não dê muitas voltas! Caso contrário, ainda lhe saem os ossos pela pele — e ele é só pele e osso, coitado! com este tempo, a vossa comida aguenta-se durante muito tempo, isso sempre é uma ajuda. E tens de tentar dar-lhe leite da minha ovelha. E água também — disse-lhe Ria, qual professora de crianças. — Ah, quem me dera poder ir contigo! Mas já sou muito velha!

Ria ficou a vê-los avançando pelos prados cobertos de neve até que Burgundo e César, deitado no trenó, desapareceram; quanto à ovelha, Ria tinha-a dado, na esperança de que o leite contribuísse para a cura de César. Depois, quando deixou de os ver, voltou para casa e preparou-se para ofertar uma das suas pombas à deusa da família, Vénus, e uma dúzia de ovos a Telo e a Sol Indígete, que eram a mãe e o pai de tudo o que era italiano.

A jornada até à casa de Prisco e Gratídia demorou oito dias, pois os bois eram tremendamente lentos. Esta lentidão acabou por ser benéfica para César, pois ia naquele transporte quase como se fosse numa cama; o trenó deslizava suavemente pelas terras cobertas de gelo graças à aplicação nas rodas de muitas camadas de cera. Deixaram o vale do rio Himela, onde ficava Nersas, mesmo na margem desse veloz curso de água, subindo por uma estrada que atravessava uma íngreme elevação; do outro lado, tinham uma descida igualmente íngreme até ao vale do Aterno.

Entretanto, algo de estranho se passou: César começou a melhorar logo que sentiu algum frio, depois de ter estado tanto tempo numa casa tão quente. Bebia algum leite (as mãos de Burgundo eram tão grandes que tinha a maior dificuldade em ordenhar a ovelha, felizmente um animal velho e paciente) e chegou mesmo a mastigar muito lentamente um pedaço de queijo que Burgundo lhe dera a chupar. No entanto, a prostração mantinha-se e, por outro lado, César não conseguia falar. Não encontraram casa nenhuma naquele caminho e, por isso, não puderam abrigar-se durante a noite; mas o frio era seco, o céu mantinha-se muito azul durante o dia e, à noite, enchia-se de profusas teias de estrelas.

O coma, entretanto, começou a desvanecer-se, para dar lugar à sonolência que o precedera; e, gradualmente, também essa sonolência acabou por se esfumar. Vendo as coisas por um determinado prisma, isso parecia ser uma melhoria, dizia Burgundo para si mesmo, fazendo as suas lentas conjecturas. Porém, ao olhar para César, Burgundo tinha a impressão de que alguma horrenda criatura do mundo dos mortos se apossara do seu amo e lhe chupara todo o sangue. De facto, César quase não conseguia erguer a mão. Conseguira falar uma vez, porque dera pela falta do seu querido cavalo.

— Onde está Bucéfalo? — perguntou. — Não vejo Bucéfalo!

— Tivemos de deixar Bucéfalo em Nersas, César. Podes ver com os teus próprios olhos que esta estrada não era para um cavalo daqueles. Mas não te preocupes. O cavalo está em segurança, ficou com Ria. — Burgundo achou que era melhor não lhe dizer a verdade, tanto mais que César acreditou nele.

Prisco e Gratídia viviam numa pequena quinta, a alguns quilômetros de Amiterno. Tinham sensivelmente a mesma idade que Ria e eram pobres; os seus dois filhos, que poderiam ter contribuído para uma maior prosperidade da família, haviam sido mortos durante a Guerra Italiana. Filhas, não tinham. Por isso, quando leram a carta de Ria e Burgundo lhes entregou os três mil sestércios que lhe restavam, receberam de braços abertos os fugitivos.

— Se a febre subir, levo-o lá para fora — disse Burgundo ao casal. — É que, logo que ele deixou a casa de Ria e apanhou um bocado de frio, começou a ficar melhor. — Depois, apontando para o trenó e para os bois, acrescentou: — Podem ficar com aquilo. Se César sobreviver, não precisará nem do carro, nem dos bois.

Conseguiria César vencer a morte? Aquelas três pessoas que cuidavam dele não faziam a mínima ideia, pois os dias iam passando e as melhoras eram poucas. Por vezes o vento soprava forte e a neve parecia cair durante uma eternidade. Depois, o tempo voltava a ficar mais seco e mais frio, mas César parecia não dar por nada. A febre tinha baixado e, ao mesmo tempo, César saíra do coma, mas a verdade é que as grandes melhoras demoravam e o jovem flamen Dialis continuava com o mesmo aspecto de quem ficara sem pinga de sangue.

Em fins de Abril, começou o degelo e surgiu uma promessa de Primavera. Segundo diziam os habitantes daquela região de Itália, aquele fora o mais terrível Inverno de que tinham memória. Para César, fora o mais terrível Inverno de toda a sua vida.

— Creio — disse Gratídia, que era prima de Ria — que César acabará por morrer, a menos que possa ir para um sítio como Roma, onde há médicos e remédios e alimentos que nós, nas montanhas, não podemos ter. Não há sinal de vida no seu sangue. É por isso que ele não melhora. Não sei que remédios lhe dar e tu proíbes-me de ir a Amiterno buscar alguém para o ver. Por isso, Burgundo, creio que chegou a hora de ires a Roma contar à mãe dele o que se passa.

Sem uma palavra, Burgundo virou-lhe as costas e correu a pôr a sela no seu cavalo; Gratídia só teve tempo de lhe dar um naco de comida antes de ele partir.

— Eu já estava intrigada por não ter notícias — disse Aurélia, o rosto muito branco. Mordia no lábio inferior, como se o estímulo de uma pequena dor a ajudasse a pensar. — Não encontro palavras para te agradecer, Burgundo. Sem ti, o meu filho estaria certamente morto a esta hora. E temos de trazê-lo para Roma antes que ele morra de facto. Agora vai ter com Cardixa. Ela e os teus filhos estão cheios de saudades.

De nada lhe serviria ir falar de novo com Sila, disso estava Aurélia ciente. Se esse processo não resultara antes do Ano Novo, não era agora, quatro meses depois do Ano Novo, que ia resultar. As proscrições continuavam a assolar gente e bens — embora ultimamente com menos virulência, ou assim parecia, e as leis começavam a sair; grandes leis ou leis terríveis: isso dependia da opinião daqueles com quem ela falava. Mas uma coisa era certa: Sila estava extremamente ocupado.

Quando soube que Sila mandara chamar Marco Púpio Pisão Frugi, alguns dias depois da sua entrevista, e que Sila ordenara a Pisão Frugi que se divorciasse de Ânia porque ela era a viúva de Cina, Aurélia chegou a ter uma réstia de esperança em relação ao futuro do filho. Porém, apesar de Pisão Frugi ter obedecido, divorciando-se rapidamente de Ânia, a verdade é que nada de especial aconteceu. Ria tinha-lhe escrito uma carta, dizendo que o dinheiro fora engolido por um homem a quem tinham posto um apelido por causa das grandes quantidades que podia engolir, e que César e Burgundo se tinham ido embora; mas Ria não mencionara a doença de César e Aurélia concluíra que tudo estava a correr bem.

—vou ter com Dalmática — decidiu por fim. — Talvez uma outra mulher me possa indicar a melhor maneira de abordar Sila.

A mulher de Sila, que chegara de Brindísio em Dezembro do ano anterior, quase não fora vista em Roma desde então. Corriam vários boatos: segundo uns, ela estaria doente; segundo outros, Sila não tinha tempo para a sua vida privada e, por isso, não dava a mínima atenção à mulher; mas ninguém murmurava que Sila a tinha substituído por outra pessoa. Assim sendo, Aurélia escreveu-lhe uma breve nota, pedindo uma entrevista, de preferência a uma hora em que Sila não estivesse em casa. Aurélia teve o cuidado de explicar que preferia que o Ditador não estivesse em casa pois tinha receio de irritá-lo. Perguntava também se seria possível que Cornélia Sila estivesse presente, pois gostaria de ver uma pessoa que em tempos conhecera tão bem; talvez Cornélia Sila pudesse também aconselhá-la, pois debatia-se com um problema. De facto, o que pretendia, assim terminava a nota, era discutir esse problema.

Sila vivia já na sua casa com vista para o Circus Maximus, que entretanto fora reconstruída; a casa tresandava ainda a estuque fresco e a cal e a todo o tipo de tintas e tinha ainda o aspecto grosseiro que só o tempo atenua. Aurélia foi conduzida através de um vasto átrio para um peristilo ainda mais vasto, e finalmente até aos aposentos de Dalmática, que eram tão grandes como o apartamento de Aurélia. As duas mulheres conheciam-se mas nunca tinham sido amigas; Aurélia não entrava no círculo do Palatino, a que pertenciam as mulheres dos homens mais poderosos de Roma, já que era senhoria de uma ínsula em Subura e estava sempre tão ocupada que não tinha tempo para aquelas reuniões fúteis em que as senhoras temperavam os mexericos com bolinhos e vinho doce misturado com água.

Dalmática, justiça lhe seja feita, também não pertencia a esse círculo. De facto, os muitos anos de clausura que o seu primeiro marido, Escauro Princeps Senatus, lhe tinha imposto, tinham-na feito perder todo o interesse por esse tipo de futilidades. Depois, viera o exílio na Grécia — um idílio com Sila em Éfeso, Esmirna e Pérgamo, os gémeos e, por fim, a terrível doença de Sila. Demasiadas preocupações, infortúnios, saudades da terra natal, sofrimento. Cecília Metela Dalmática nunca mais voltaria a sentir qualquer inclinação pelas actividades fúteis de muitas senhoras da sua classe: compras, actores de comédia, pequenas contendas, escândalos, ociosidade. Além disso, o seu regresso a Roma quase ganhara as proporções de um triunfo, pois Sila parecia amá-la mais do que nunca.

Contudo, Sila não confiava nela e, por isso, Dalmática nada sabia quanto à sorte do flamen Dialis, aliás, nem sequer sabia que Aurélia era a mãe do flamen Dialis. E Cornélia Sila apenas sabia que Aurélia fora uma presença constante da sua infância, que Aurélia era um elo apenas nas suas vagas recordações de uma mãe que bebia demasiado e que se matara, e nas recordações, bem mais nítidas, da sua querida madrasta, Élia. O seu primeiro casamento — com o filho do colega de Sila no seu consulado — terminara em tragédia: o marido morrera em tumultos ocorridos no Fórum, durante o período em que Sulpício fora tribuno da plebe; o segundo casamento, com o irmão mais novo de Druso, Mamerco, era um casamento feliz.

Cada uma das três mulheres apreciava a beleza das outras e, já que eram consideradas em Roma como três das mais belas mulheres da cidade, era fácil deduzir que todas elas sentiam ter suportado as corrosivas tempestades do tempo melhor do que a maioria das mulheres. com 42 anos, Aurélia era a mais velha; Dalmática tinha 37 anos; e Cornélia Sila ia apenas nos 26.

— Agora estás mais parecida com o teu pai — disse Aurélia a Cornélia Sila.

com os seus olhos demasiado azuis e cintilantes para serem parecidos com os de Sila, Cornélia desatou a rir.

— Ah, não digas uma coisa dessas, Aurélia! A minha pele está intacta e, além disso, não uso peruca!

— Pobre homem — disse Aurélia. — É uma verdadeira provação para ele.

— Assim é, de facto — concordou Dalmática, cuja formosura de morena era mais suave do que a imagem que Aurélia guardava dela, e cujos olhos acinzentados se mostravam agora muito mais tristes.

A conversa girou em torno de futilidades durante algum tempo, graças ao tacto de Dalmática, que evitou os temas desagradáveis que a sua enteada desejaria abordar. Como não era uma conversadora nata, Aurélia limitou-se a contribuir com um ou outro comentário insignificante.

Dalmática, que tinha um rapaz e uma rapariga do seu primeiro casamento e gémeos do segundo, estava preocupada com a filha mais velha, Emília Escaura.

— É a mais bela das raparigas! — disse ela, exultante e feliz. — Cremos que está grávida, mas ainda é um bocado cedo para se ter a certeza.

— com quem casou ela? — perguntou Aurélia; nunca estava a par dos casamentos.

— com Mânio Acílio Glábrio. Escauro insistiu que ficassem noivos desde muito cedo. Laços tradicionais entre as famílias.

— Glábrio? É boa pessoa — disse Aurélia num tom cuidadosamente neutral; em privado, considerava-o um homem demasiado presunçoso e espalhafatoso, o contrário do pai, uma excelente pessoa.

— Não passa de um presunçoso e adora dar nas vistas — comentou Cornélia Sila sem o mínimo embaraço.

— Ora, Cornélia! Está certo que Glábrio não fosse homem para ti, mas já o mesmo não podemos dizer de Emília Escaura — disse Dalmática.

— E como está a nossa querida Pompeia? — perguntou rapidamente Aurélia.

Cornélia Sila ficou radiante.

— Ah, está linda de morrer! Tem oito anos, já anda na escola. — Como era filha de Sila e tinha muito do desprendimento do pai, acrescentou: — Só é pena que seja de uma estupidez abismal! Já me dou por feliz se ela aprender latim que chegue para escrever uma nota de agradecimentos! De certeza que não vai conseguir aprender grego... De maneira que estou muito contente pelo facto de ela ser tão bonita. Para uma rapariga, é melhor ser bonita que brilhante.

— Claro que é bom ser-se bonita quando é preciso encontrar um marido, mas um dote decente também ajuda — retorquiu secamente Aurélia.

— Ah, mas ela vai ter um dote em condições! — replicou a mãe de Pompeia. — O meu pai está riquíssimo e ela herdará uma parte dos bens dele e também uma parte dos bens dos Pompeus Rufos — os quais mudaram completamente em relação aos tempos em que fui viúva e vivi em casa deles! Nessa altura transformaram a minha vida na pior das provações! Mas agora, como eu tenho o meu pai ao meu lado, estão completamente diferentes! Além disso, têm medo que ele os proscreva.

— Façamos votos para que Pompeia encontre um óptimo marido — disse Dalmática, após o que olhou para Aurélia com um ar mais sério. — Estou muito contente por te ver, Aurélia, e espero que, a partir de agora, possa contar contigo como amiga, mas sei perfeitamente que não vieste cá apenas para me fazer uma visita de cortesia — tanto mais que tu és uma mulher famosa pela tua sabedoria e sensatez e por não te imiscuíres na vida de ninguém! Há algum problema, Aurélia? De que modo te posso ajudar?

Aurélia contou imediatamente a sua história, no estilo despojado que a caracterizava. Quanto à audiência, Aurélia não poderia censurá-la, pois as duas mulheres escutavam-na em absoluto silêncio.

— Temos de fazer qualquer coisa — disse Dalmática, mal Aurélia terminou. — Lúcio Cornélio tem demasiados assuntos a tratar e temo que ele não seja propriamente o mais afável dos homens. — Remexeu-se no seu assento, pouco à vontade. — Tu és amiga dele há muitos anos — disse ela, algo embaraçada. — Se tu não conseguiste influenciá-lo, custa-me a crer que eu consiga.

— Espero que isso não seja verdade — disse Aurélia num tom severo. — Sila visitava-me de quando em quando, mas garanto-lhes que não houve nada de menos próprio entre nós. Não era a minha suposta beleza que o atraía. Ainda que isto possa soar muito pouco romântico, a verdade é que aquilo que o atraía em mim era o meu senso prático.

— Acredito no que dizes — disse Dalmática, com um sorriso nos lábios.

Cornélia Sila tomou as rédeas da conversa.

— bom, mas tudo isso já se passou há muito tempo — disse ela bruscamente — e a vossa amizade de outros tempos já não exerce qualquer influência hoje. Tens toda a razão, Aurélia, quando dizes que não faz sentido encontrares-te de novo sozinha com o tata. Mas isso não quer dizer que não devas vê-lo uma vez mais. E quanto mais depressa melhor. Neste momento, ele está numa pausa entre duas leis. Creio que o melhor será reunir uma delegação formal. Sacerdotes, parentes homens, Virgens Vestais e tu. Mamerco ajudará, eu falo com ele. Quais são os parentes de César mais próximos que não estejam nas listas de proscritos?

— Os Cotas — os meus três meio-irmãos.

— Óptimo, os Cotas vão contribuir para dar peso à delegação! Caio Cota é pontífice e Lúcio Cota é augure, e isso dá-lhes um peso religioso, para além do mais. Quanto a Mamerco, estou certa de que te apoiará. E vamos precisar de quatro Virgens Vestais. Ponteia, porque é a Chefe das Vestais. Fábia. Licínia. E a filha de César Estrabão, Júlia, que é parente de César. Conheces alguma das Vestais?

— Nenhuma delas. Nem sequer Júlia Estrabão — respondeu Aurélia.

— Não faz mal. Eu conheço-as a todas. Deixa o caso comigo.

— Que posso eu fazer para ajudar? — perguntou Dalmática, algo intimidada com a extrema eficiência da filha de Sila.

— A tua missão vai ser convencer o tata a receber a delegação amanhã à tarde — disse Cornélia Sila.

— Como? Ele anda tão ocupado!

— Disparate! És demasiado humilde e tímida, Dalmática. O tata faz tudo o que tu lhe pedires. O problema é que tu não pedes, de maneira que não fazes a mínima ideia do que ele adora satisfazer os teus pedidos. Pede-lhe hoje ao jantar, não tenhas medo — disse a filha de Sila. Depois, virando-se para Aurélia, assegurou-lhe. — Euvou arranjar as coisas para que a delegação esteja cá algum tempo antes da entrevista. Poderás falar com eles antes de entrares.

— Que achas que vista amanhã? — perguntou Aurélia, preparando-se para partir.

Cornélia Sila pestanejou, surpreendida, tal como Dalmática.

— Só perguntei — disse Aurélia, como que a desculpar-se — porque, da última vez, ele comentou o que eu trazia vestido. Negativamente, é claro.

— Porquê? — perguntou Cornélia Sila.

— Creio que achou que eu trazia uma roupa demasiado descolorida.

— Então veste cores vivas!

Mal chegou a casa, Aurélia pôs-se a remexer nos seus baús e a tirar vestidos que deixara de usar há muitos anos porque os considerava demasiado provocantes para uma mãe de família da aristocracia romana. Azul? Verde? Vermelho? Rosa? Lilás? Amarelo? Pouco antes de sair, optou por camadas de rosa, mais escuras por baixo, o todo coberto por uma gaze do mais pálido rosa.

Cardixa abanou a cabeça.

— Assim ataviada, ficas tal e qual como quando o pai de César veio jantar com o teu tio Rutílio Rufo. E nem um dia mais velha!

— Ataviada, Cardixa?

— Sim, como os Cavalos Públicos na parada!

—vou já mudar de roupa!

— Ah, nem pensar! Não tens tempo para isso. Vai-te embora já. Lúcio Decúmio vai contigo — disse firmemente Cardixa, empurrando-a para a rua, onde Lúcio Decúmio a esperava com os seus dois filhos.

Como Lúcio Decúmio tinha suficiente bom senso para não se pronunciar sobre o aspecto de Aurélia e os seus dois filhos não se pronunciavam sobre nada sem autorização do pai, a longa caminhada até ao extremo do Palatino decorreu em silêncio. Aurélia esperava e temia que chegassem notícias de Prisco e Gratídia; temia que viesse a notícia fatal, a notícia de que era demasiado tarde, de que César morrera, e cada momento sem notícias era um golpe mais no seu coração.

A verdade é que se espalhara nas redondezas da ínsula o boato de que César estava às portas da morte; a todo momento chegavam à casa de Aurélia pequenas oferendas, desde ramos de flores dos Mercados Cupedenis até peculiares amuletos dos Licianos que viviam no quinto andar, passando pelos sons lamentosos das orações especiais que vinham do piso dos Judeus. A maior parte dos inquilinos de Aurélia vivia na ínsula há anos e conhecia César desde bebê. Criança muito viva, conversadora e curiosa, César passeava de andar em andar, pondo à prova a dúbia (a sua mãe achava-a muito dúbia) qualidade que possuía em abudância, o encanto pessoal. Muitas das mulheres que ali viviam tinham sido suas amas-secas, davam-lhe a provar as suas iguarias nacionais, cantarolavam-lhe ladainhas nas suas próprias línguas até que, a certa altura, já ele cantava com elas — e César era extremamente musical — e tocava naqueles estranhos instrumentos, tanto os de cordas como os de sopro. Mais tarde, César e o seu melhor amigo, Caio Macio, que vivia no outro piso térreo, alargaram os seus contactos para lá da ínsula, passando a fazer parte integrante da vida de Subura; e agora, a notícia da sua doença espalhava-se por todo o bairro e as oferendas vinham cada vez de mais longe.

Como hei-de explicar a Sila que César significa diferentes coisas para diferentes pessoas? Que ele é o mais romano dos homens e que, ao mesmo tempo, contém em si uma série de nacionalidades? Não é a questão sacerdotal que me interessa: o que me interessa é aquilo que César representa para toda a gente que ele conhece. César pertence a Roma, mas não à Roma do Palatino. César pertence à Roma de Subura e do Esquilino e, quando for um dos grandes de Roma, dará uma dimensão ao seu cargo que nenhum homem poderá igualar, unicamente por causa da vastidão da sua experiência, da sua vida. Só Júpiter sabe quantas raparigas — e mulheres tão velhas como eu! — já dormiram com ele, quantas incursões ele já fez com Lúcio Decúmio e aqueles rufiões do colégio das encruzilhadas, quantas vidas ele já influenciou, porque nunca está quieto, porque está sempre pronto a escutar, porque tudo lhe interessa. O meu filho tem apenas 18 anos. Mas eu também acredito na profecia, Caio Mário! Aos 40 anos, o meu filho será uma criatura formidável! E aqui e agora, perante todos os deuses, faço este voto: para salvar o meu filho, eu farei não importa o quê! Nem que tenha de ir ao mundo dos mortos e trazer o cão de três cabeças de Hades!

Claro que quando chegou à casa de Sila e foi conduzida para uma sala cheia de gente importante, Aurélia perdeu toda a eloqüência que os seus pensamentos prometiam; o seu rosto não revelava o que se passava na sua mente; tinha um ar apenas austero, severo. Intimidante.

Como Cornélia Sila prometera, estavam presentes quatro Vestais, todas elas mais novas que Aurélia; as Vestais entravam para a ordem com 7 ou 8 anos e só a deixavam ao fim de trinta anos: e nenhuma daquelas quatro mulheres, incluindo a Chefe, estava prestes a retirar-se. Traziam vestidos brancos com longas mangas dotadas de belas dobras, apanhadas por uma nervura longitudinal, e, por cima dos vestidos, usavam faixas também brancas e a corrente e a medalha da bulla de Vestal; nas cabeças, tinham coroas feitas de sete fiadas de lã enrolada, sobre as quais flutuavam finíssimos véus brancos. A vida que levavam, que não implicava o seqüestro mas obrigava à virgindade, transformava mesmo a mais jovem das Vestais numa presença poderosa; ninguém sabia melhor do que elas que a sua castidade significava a boa sorte de Roma e era nítido que elas tinham uma consciência muito clara do seu estatuto particular. Poucas eram as contemplavam a possibilidade de quebrar os votos, já que quase todas entravam para a ordem ainda crianças e sentiam imenso orgulho pelas funções que desempenhavam na sociedade romana.

Os homens traziam a toga vestida: Mamerco com o debrum púrpura que agora podia usar, pois era praetor peregrinus; e os Cotas, demasiado jovens para usarem togas com debrum púrpura, vestiam togas inteiramente brancas. O que significava que Aurélia, com todos aqueles matizes de rosa, era a presença mais colorida naquela sala! Atormentada por esse facto, sentia-se rígida e emperrada e previa já que as coisas não iam correr bem.

— Estás com um aspecto magnífico! — segredou-lhe Cornélia Sila. — Já me tinha esquecido de que eras a mais bela das mulheres.

Basta que decidas trazer cá para fora essa beleza. Tu fecha-la bem fechada como se não existisse e, de repente, basta um pequeno toque... e ei-la cá fora, para todos verem!

— Será que os outros compreendem? Concordam comigo? — murmurou Aurélia, arrependida por não ter trazido um conjunto bege ou marfim.

— Claro que concordam. Em primeiro lugar, porque ele é o flamen Dialis. E, além disso, acham que ele é tremendamente corajoso. Imagina só: enfrentar o Ditador. Ninguém o enfrenta. Nem Mamerco. Eu às vezes dou-lhe luta. E olha que ele gosta. O tala, quero dizer. A maior parte dos tiranos gosta. Desprezam os cobardes, embora se rodeiem deles. Portanto, quem vai à frente da delegação és tu. E trata de enfrentá-lo!

— Foi sempre isso o que eu fiz — disse a mãe de César. Crisógono estava presente, falando com todos os membros da delegação no tom falso e melífluo que lhe era habitual, ainda que a untuosidade dos seus modos variasse conforme a importância ou qualidade de cada um dos seus interlocutores; começava a tornar-se conhecido como um dos homens que mais ganhava com as proscrições e a verdade é que já estava riquíssimo. Quando um criado veio ter com ele e lhe segredou qualquer coisa, Crisógono encaminhou-se para as grandes portas duplas que davam para o átrio de Sila e afastou-se para deixar a delegação entrar.

Sila esperava a delegação com uma disposição particularmente azeda, já que caíra numa armadilha montada por mulheres; por outro lado, sentia-se furioso por não ter conseguido resistir a essa armadilha. Não era justo! O que a mulher e a filha não tinham feito para conseguirem o que queriam! Primeiro, defenderam a sua causa; depois, tentaram persuadi-lo com mimos e agrados; quando foi preciso, puseram um ar triste e melancólico ou deram-lhe a perceber que ficariam eternamente em dívida para com ele se vissem aquele insignificante pedido satisfeito — e que ficariam muito, muito aborrecidas, se ele não o satisfizesse. Dalmática não era a pior, de maneira nenhuma, ela ficara com aquele feitio de cãozinho a quem tinham batido desde que Escauro a condenara à clausura, mas Cornélia Sila era do seu sangue e de que maneira! Um virago! Como é que Mamerco conseguia suportá-la e ainda por cima ter um ar feliz? Provavelmente porque evitava sempre os conflitos.

Aí estava uma atitude inteligente. Ah, o que nós não fazemos pela harmonia doméstica! Incluindo aquilo que estou prestes a fazer.

No entanto, aquela reunião era pelo menos uma mudança, uma diversão na longa e cansativa rotina dos deveres ditatoriais. Ah, como tudo aquilo o entediava! Estava farto, farto, farto... Roma sempre o entediara. E o tédio levava-o a pensar nos prazeres proibidos, nas festas onde não podia ir, nos círculos onde não podia entrar... E em Metróbio. A sua imaginação conduzia-o sempre a Metróbio. Que ele não via — há quanto tempo? Quando teria sido a última vez? No meio da multidão, sim, vira-o no meio da multidão, mas onde? No seu triunfo? Na tomada de posse como cônsul? Nem disso conseguia lembrar-se?

Do que ele se lembrava claramente era da primeira vez em que vira o jovem Metróbio. Naquela festa em que se mascarara de Medusa, a Górgona, com uma grinalda de cobras vivas. A berraria que as cobras tinham provocado! Mas Metróbio não berrara, Metróbio, o jovem grego mascarado de Cupido, com o interior das coxas, muito suaves, pintadas de açafrão, e o mais belo rabo do mundo...

A delegação entrou. No local onde estava, para lá do enorme rectângulo azul da piscina, a meio da vasta sala, o olhar de Sila era ainda suficientemente forte para absorver todo o quadro. Talvez porque a sua mente estivera a pairar pelo mundo do teatro (concentrando-se em especial num actor), aquilo que Sila viu não foi uma delegação romana cerimoniosa e respeitável mas um esplêndido quadro vivo, chefiado por uma mulher esplêndida, vestida em todos os tons de rosa, a sua cor favorita. E que inteligente que ela fora, ao rodear-se de pessoas vestidas de branco e algumas delas com um pequeno nada de púrpura!

O mundo dos deveres ditatoriais evaporou-se nesse instante, tal como a disposição azeda de Sila. O seu rosto iluminou-se, todo o seu corpo vibrou deliciado.

— Ah, que maravilha! Isto é melhor do que uma peça, melhor do que os jogos! Não, não, não se aproximem mais! Fiquem desse lado da piscina! Aurélia à frente. Quero que pareças uma rosa, uma rosa muito alta e esbelta. As Vestais — para a direita, acho eu, mas a mais jovem pode ficar atrás de Aurélia, quero que Aurélia fique com um pano de fundo branco. Sim, isso mesmo, isso mesmo!

Agora, os outros: todos para esquerda. Isso. Mas acho que seria melhor que o jovem Lúcio Cota se postasse também atrás de Aurélia, porque ele é o mais jovem e, portanto, não deve ter nenhuma fala nesta peça. Gosto muito das pequenas sugestões de púrpura, mas francamente, Mamerco, tu estragas o efeito geral. Não devias ter vestido a praetexta, é púrpura a mais. De maneira que... sim, vais para a esquerda, para a ponta. Isso. — O Ditador levou a mão ao queixo e examinou-os atentamente; finalmente, aquiesceu. — Óptimo! Estou a gostar! Mas preciso de uma atmosfera mais mágica! Sim, porque afinal eu estou aqui sozinho, deste lado, pareço mesmo o Mamerco, até tenho praetexta e tudo, e estou com um ar tão pesaroso como o dele!

Bateu as palmas; Crisógono saiu de detrás da delegação e correu para o amo, fazendo várias vénias.

— Crisógono, manda vir os meus lictores em... em túnicas carmins... sim, túnicas carmins, nada de togas brancas... ah, e traz-me a cadeira egípcia! Sabes qual é. Aquela que tem crocodilos nos braços e áspides nas costas. E um pequeno pódio. Sim, preciso de um pequeno pódio! Coberto com um tecido... púrpura. Púrpura de Tiro, não quero imitações! Vá, homem, despacha-te!

A delegação — que não tinha dito palavra — preparou-se para uma longa espera, mas por alguma razão Crisógono era chefe-administrador das proscrições e chefe dos criados do Ditador. Em pouco tempo, realizava todas as instruções do encenador: de facto, instantes depois, entravam na sala vinte e quatro lictores, vestidos com túnicas carmins, com os fasces e a machadinha, os rostos estudadamente inexpressivos. Atrás deles vinha o pequeno pódio, transportado por quatro corpulentos escravos, que o colocaram precisamente no centro da sala, para lá da piscina, cobrindo-o depois com uma tapeçaria que de facto tinha sido tingida com púrpura de Tiro, tão escura que era quase negra. A cadeira chegou a seguir, uma magnífica cadeira de ébano com dourados; as serpentes das costas tinham rubis nos olhos e, nos olhos dos crocodilos das pernas, havia esmeraldas; finalmente, no centro das costas, brilhava um magnífico escaravelho multicolorido.

Montado o cenário, Sila virou-se para os seus lictores.

— Gosto das machadinhas no meio dos feixes, por isso estou contente por ser o Ditador e por ter o poder de executar no interior do pomerium! Agora deixem-me ver... Doze para a minha esquerda e doze para a minha direita — em linha, mas próximos uns dos outros. Distribuam-se de maneira a que a distância entre os primeiros seja menor do que a distância entre os últimos... Isso, isso! — Virou-se então para a delegação, observou-a minuciosamente e, franzindo muito a testa, disse: — Há um problema! Não consigo ver os pés de Aurélia! Crisógono, vai buscar aquele banquinho de ouro que eu surripiei a Mitridates. Quero que ela fique sobre o banquinho. Depressa, homem, despacha-te!

Finalmente, Sila ficou satisfeito com o palco em que se iria dar a representação. Sentou-se na sua cadeira com crocodilos e serpentes, aparentemente esquecido de que deveria estar sentado numa cadeira curul, feita em marfim, e não naquela espaventosa cadeira egípcia. Não que qualquer dos presentes sentisse o mínimo impulso para o criticar; o que era preciso era que o Ditador se sentisse o melhor possível, que desfrutasse o mais possível daquele momento. É que o prazer do Ditador representava meio caminho andado para um veredicto favorável.

— Fala! — disse ele num tom retumbante.

— Lúcio Cornélio, o meu filho está a morrer.

— Mais alto, Aurélia! Estás a falar para a cavea!

— Lúcio Cornélio, o meu filho está a morrer! Eu vim com os meus amigos suplicar-te que lhe perdoes!

— com os teus amigos? Estas pessoas são todas tuas amigas? — perguntou ele, exagerando um pouco o tom divertido.

— Sim, são todas minhas amigas. Associaram-se à minha súplica para que tu deixes o meu filho voltar a Roma antes de morrer. — Aurélia enunciava de forma muito clara, representando para as últimas filas da cavea, decidida a executar na perfeição o seu papel. Se ele queria uma tragédia grega, pois teria uma tragédia grega! Estendeu os braços e os drapeados cor-de-rosa esvoaçaram ao afastar-se da sua pele branco-marfim. — Lúcio Cornélio, o meu filho tem dezoito anos! É o meu único filho! — Uma vibração especial na voz: tudo estava a correr bem. Sim, tudo estava a correr bem, nem que fosse pela sua magnífica expressão! — Tu conheces o meu filho. Um deus! Um deus romano! Um descendente de Vénus e digno de Vénus! E com tal coragem! Não teve ele a coragem de te desafiar, a ti que és o homem mais poderoso do mundo? E houve da parte dele alguma demonstração de receio? Não!

— Ah, que maravilha! — exclamou Sila. — Não sabia que tinhas tanto talento, Aurélia! Continua, continua!

— Lúcio Cornélio, suplico-te! Poupa o meu filho! — Conseguiu dar meia-volta no pequeno banco de ouro e estendeu as mãos para Ponteia, na esperança de aquela mulher austera entendesse o papel que tinha de representar. — Peço-te, Ponteia, Chefe das Vestais de Roma, suplica pela vida do meu filho!

Felizmente que os outros presentes já tinham recuperado da estupefacção inicial, ou pelo menos faziam uma tentativa para recuperar. Ponteia estendeu os seus braços e o seu rosto ganhou uma expressão de sofrimento que não conhecia desde a infância.

— Poupa-o, Lúcio Cornélio! — exclamou. — Poupa-o!

— Poupa-o! — murmurou Fábia.

— Poupa-o! — gritou Licínia.

Nesse momento, a jovem Júlia Estrabão, desfeita em lágrimas, tornou-se o foco de todas as atenções.

— Por Roma, Lúcio Cornélio! Poupa-o por Roma! — atroou Caio Cota, com a mesma voz estentória que tornara o seu pai famoso. — Suplicamos-te, Lúcio Cornélio, poupa o jovem César!

— Por Roma, Lúcio Cornélio! — gritou Marco Cota.

— Por Roma, Lúcio Cornélio! — clamou Lúcio Cota.

Só restava Mamerco, que não conseguiu mais que uma voz sumida:

— Poupa-o!

Silêncio. Os dois lados fitavam-se, expectantes.

Sila endireitou-se na sua cadeira, com o pé direito para a frente e o pé esquerdo ligeiramente recuado, na pose clássica dos grandes romanos. Tinha o queixo todo franzido e a cabeça pendia, ameaçadora. Esperava. Até que por fim veio a resposta:

— Não!

As súplicas repetiram-se. E a rotunda recusa também:

— Não!

Ainda que fragilizada e angustiada, Aurélia, melhorando cada vez mais a sua representação, pediu uma terceira vez que a vida do seu filho fosse poupada. As mãos tremiam-lhe e, na voz, reflectia-se toda a força de um coração destroçado. Nesse momento já Júlia Estrabão perdera por completo o controlo de si mesma e, da sua boca, só saíam gemidos portentosos; Licínia, pelo seu lado, parecia prestes a imitar a sua colega vestal. O coro de suplicantes voltou a erguer-se, até que, chegando à vez de Mamerco, se desvaneceu uma vez mais num quase murmúrio.

Um silêncio pesado impôs-se em toda a sala. Sila esperou um ror de tempo; parecia ter adoptado uma pose que, aos seus olhos, se assemelharia à de Zeus, imponente e ameaçadora, magnificente e portentosa. Por fim, levantou-se da cadeira e desceu até à extremidade do seu pequeno pódio, onde se postou com imensa dignidade, exibindo um cenho horrendo.

Depois, soltou um suspiro que, num teatro, teria sido facilmente ouvido na última fila da cavea, cerrou os punhos e ergueu-os na direcção das esplendorosas estrelas do tecto dourado.

— Muito bem, que seja feito como pretendem! — exclamou. — Euvou poupá-lo! Mas de uma coisa vos advirto: nesse jovem, eu vejo muitos Mários!

Depois, saltou como um cabrito do pódio para o chão e, com um passo leve e jovial, contornou a piscina.

— Ah, eu precisava disto! Magnífico, magnífico! Não me divertia tanto desde que dormi entre a minha madrasta e a minha amante! Ser Ditador não é nada agradável! Nem sequer tenho tempo de ir ao teatro! Mas isto é melhor do que qualquer peça que já vi e, além do mais, fui eu o protagonista! Foram todos muito bem. Excepto tu, Mamerco, estragaste tudo com a tua praetexta e com a tua vozinha. Estás demasiado rígido, homem! Tens de tentar entrar na personagem!

Abeirando-se de Aurélia, ajudou-a a descer do banquinho de ouro e abraçou-a uma série de vezes.

— Esplêndido, esplêndido! Parecia Ifigénia em Áulida, minha querida.

— Senti-me como uma peixeira num mimo.

Sila já se esquecera dos lictores, que continuavam nos seus postos, rodeando o trono vazio; o cargo de lictores nunca mais lhes reservaria uma surpresa tão grande!

— Vá, vamos para a sala de jantar, quero dar uma festa! — disse o Ditador, empurrando toda a gente do coro enquanto punha um braço sobre os ombros da aterrada Júlia Estrabão. — Não chores, minha tonta, está tudo bem! Foi apenas um pequeno divertimento em minha intenção — disse ele, empurrando Júlia Estrabão para Mamerco. — Vá, Mamerco, limpa estas lágrimas com o teu lenço! — O braço de Sila encontrou então Aurélia. — Magnífico! Verdadeiramente magnífico! Devias vestir-te sempre de rosa.

Tão aliviada que sentia os joelhos tremendo, Aurélia fitou-o com um olhar feroz e disse-lhe com uma voz cavada:

— ”Eu nele vejo muitos Mários!” Devias ter tido: ”Eu nele vejo muitas Silas!” Estaria mais correcto. Ele não é nada parecido com Mário, mas por vezes é tremendamente parecido contigo.

Dalmática e Cornélia Sila estavam à espera lá fora, perfeitamente intrigadas; quando os lictores entraram não ficaram especialmente surpreendidas; porém, quando viram o pequeno pódio e a tapeçaria em púrpura de Tiro e a cadeira egípcia e, por fim, o banquinho de ouro maciço, uma estupefacção total tomou conta delas. Agora saíam todos a rir — e por que raio é que só Júlia Estrabão vinha a chorar? — e Sila abraçava Aurélia e o sorriso desta dir-se-ia ser eterno.

— Uma festa! — exclamou Sila, envolvendo o rosto da mulher com as mãos e beijando-a. — Vamos dar uma festa e euvou embebedar-me até cair!

Só passado algum tempo é que Aurélia se apercebeu de que nenhum daqueles actores encontrara algo de aviltante naquela inacreditável cena ou cometera o erro de menosprezar Sila por ter posto em cena aquele drama improvisado. No fundo, o efeito tinha sido precisamente o oposto; como não temer um homem que ligava tão pouco às aparências?

Nenhum dos participantes naquele teatro contou o que ali se passara, nenhum deles tentou tirar proveito do episódio ou do comportamento de Sila, fosse em jantares, em festas ou em reuniões de senhoras condimentadas com bolinhos e vinho doce misturado com água. Não por que temessem pelas suas vidas. Nada disso. Apenas porque ninguém pensava que Roma viesse alguma vez a acreditar que aquele drama fora efectivamente representado.

Quando César chegou a casa, pôde sentir imediatamente os resultados da peça em um acto que a sua mãe protagonizara; Sila enviou-lhe o seu médico pessoal, Lúcio Túcio.

— Para ser sincera, não me parece que Sila seja um caso muito recomendável — disse Aurélia a Lúcio Decúmio. — É caso para pensar que, sem Lúcio Túcio, Sila seria a personificação da degradação física e mental.

— Lúcio Túcio é romano — disse Lúcio Decúmio. — O que já é qualquer coisa. Eu cá não confio nos físicos gregos.

— Os físicos gregos são muito perspicazes.

— Nas teorias, são. Tratam os doentes com novas ideias e não com as velhas receitas. Mas as velhas receitas são as melhores. Aranhas cinzentas trituradas e arganazes secos, não há melhor remédio! — bom, Lúcio Decúmio, como tu dizes, este é mesmo romano! Como o médico de Sila saía nesse momento do quarto de César,

Aurélia e Decúmio calaram-se. Túcio era um homem de baixa estatura, muito redondo de formas e com um ar simpático e lavado; fora cirurgião-chefe do exército de Sila e, por outro lado, fora ele quem tivera a ideia de mandar Sila para Edepso em conseqüência da doença deste.

— Creio que a curandeira de Nersas tinha razão. A doença do teu filho é uma daquelas sezões fora do comum — disse ele, com a maior alegria. — É um rapaz com sorte. Poucos são os homens que conseguem curar-se.

— Então ele vai curar-se? — perguntou Aurélia, ansiosa.

— Claro que vai. A crise já passou há muito tempo. Mas a doença deixou-lhe o sangue debilitado. É por isso que não tem cor e está tão fraco.

— Nesse caso, que temos de fazer? — perguntou Lúcio Decúmio, destemidamente.

— bom, os homens que perdem muito sangue por causa de uma ferida têm praticamente os mesmos sintomas que César — retorquiu Túcio, despreocupado. — Em tais casos, quando não morrem, vão melhorando gradualmente, de forma espontânea. Mas sempre achei que ajudava muito dar-lhes um fígado de ovelha uma vez ao dia. Quanto mais jovem for a ovelha, mais rápida é a recuperação. Recomendo que César coma um fígado de ovelha e beba três ovos de galinha misturados com leite de cabra, todos os dias.

— O quê? E não lhe damos nenhum remédio? — perguntou Lúcio Decúmio, desconfiado.

— Não são os remédios que vão curar César. Tal como os físicos gregos de Edepso, acredito que, na maior parte das situações, o regime alimentar é melhor que os remédios — disse firmemente Lúcio Túcio.

— Estás a ver? Afinal de contas, o homem é grego! — disse Lúcio Decúmio mal o médico partiu.

— Isso não interessa — retorquiu vivamente Aurélia. —vou seguir os conselhos dele pelo menos durante um intervalo entre mercados. Depois veremos. Mas a mim pareceu-me um bom conselho.

— Nesse caso,vou já ao Campo Lanatário — disse Decúmio, que amava César mais do que os seus próprios filhos. — Compro uma ovelha e peço que a matem à minha frente.

O verdadeiro problema viria a ser o paciente, que se recusava terminantemente a comer fígado de ovelha, e que odiou tanto o primeiro batido de ovos e leite que acabou por vomitá-lo.

Aurélia decidiu então reunir a sua equipa de pseudo-enfermeiros.

— Mas será que o fígado tem de ser comido cru? — perguntou Murgo, o cozinheiro.

Aurélia pestanejou, surpresa.

— Não sei. Pensei que tinha de ser cru.

— Então o melhor será ir perguntar a Lúcio Túcio — disse o chefe dos criados, Eutico. — César não é grande garfo. Ou seja: não é como aquelas pessoas que quase ficam em êxtase só de provar uma boa iguaria. Em comida, César tem um gosto razoável, mas não é niquento. No entanto, uma coisa em que eu sempre reparei é que ele é incapaz de comer coisas que apresentem um cheiro muito forte. É o caso dos ovos crus. bom, e quanto ao fígado cru...! Que fedor! Que nojo!

— E se eu cozinhasse o fígado? E quanto ao batido, podia juntar-lhe uma boa quantidade de vinho doce! — sugeriu Murgo.

— E como cozinhavas o fígado?

— Cortava-o em fatias finas, passava cada fatia por um pouco de sal e espelta e dava-lhes uma fritura ligeira com um lume muito forte.

— Muito bem, Murgo. Euvou mandar alguém a casa de Lúcio Túcio para que ele se pronuncie sobre a tua ideia — disse a mãe do doente.

A resposta não tardou:

— Ponham o que quiserem no batido de leite e ovos e, evidentemente, cozinhem o fígado!

Tomada esta medida, o paciente começou a tolerar o seu regime, embora sem demonstrar grande satisfação.

— Digas o que disseres da tua comida, a verdade é que está a dar resultado — comentou a mãe.

— Eu sei que está a dar resultado! Senão porque é que achas que eu como esta droga? — replicou o paciente, irritado.

Amanhecia; Aurélia sentou-se à cabeceira de César com uma expressão que dizia que ia ficar ali até obter algumas respostas.

— Muito bem, César. O que é que se passa contigo? com os lábios muito comprimidos, César olhou pela janela

aberta da sala de estar, fitando o jardim que Caio Macio construíra.

— O que se passa é que eu me portei horrivelmente mal da primeira vez que fiz qualquer coisa sozinho — disse ele, por fim. — Enquanto toda a gente se comportava com uma coragem e uma ousadia notáveis, eu dormia. Não dizia palavra, não fazia nada. Os heróis foram Burgundo, Ria e a minha mãe.

Aurélia escondeu o seu sorriso.

— Talvez haja uma lição a tirar de tudo isto, César. Talvez o Grande Deus — de quem ainda és servo! — achasse que tinha de te dar uma lição que tu nunca quiseste aprender: que um homem não pode combater os deuses, e que os Gregos tinham razão quanto ao hubris. Um homem com hubris é uma abominação.

— Mas eu tenho assim tanto orgulho? Ao ponto de achares que tenho a doença do hubris?

— Sem dúvida. Tens uma imensidão de falso orgulho.

— Não vejo a mínima relação entre o hubris e aquilo que aconteceu em Nersas — disse César, obstinadamente.

— É aquilo a que os Gregos chamam hipotético.

— Julgo que queres dizer filosófico.

Como tinha uma instrução profunda, Aurélia não deu qualquer importância àquela tergiversação, e continuou.

— O facto de tu teres um orgulho e um autoconvencimento desmesurados constitui uma grave tentação para os deuses. Hubris significa que quem o possui se julga intocável perante os deuses e superior ao estatuto comum a todos os homens. E — como nós, Romanos, muito bem sabemos! — os deuses não mostram a um homem que ele se está a exceder através daquilo a que poderíamos chamar uma intervenção pessoal. Júpiter Optimus Maximus não fala aos homens com uma voz humana. E quanto ao Júpiter Optimus Maximus que aparece aos homens em sonhos, bom, creio que isso não passa de uma fantasia própria de sonhos. Os deuses intervém de uma forma natural, os deuses castigam com coisas naturais. E tu foste punido com uma coisa natural — ficaste doente. E eu acredito que a seriedade da tua doença é um índice claro da amplidão do teu orgulho. Quase te matou!

— Tu atribuis a uma intervenção divina — retorquiu César — um evento que é meramente, desprezivelmente, animal. Eu acredito que o vector que conduziu tudo isto foi tão prosaicamente animal como o evento. E como nenhum de nós pode provar aquilo que defendemos, que interessa discutirmos o caso? O que interessa é que eu falhei na minha primeira tentativa para governar sozinho a minha vida. Limitei-me a ser um objecto passivo, rodeado de heroísmo por todos os lados, e nem uma ponta de heroísmo me calhou.

— Oh, César, mas será que tu nunca vais aprender? Nos lábios de César, surgiu o seu belo sorriso.

— Provavelmente não, Mater.

— Sila quer falar contigo.

— Quando?

— Logo que estejas em condições. Terei de lhe pedir uma entrevista.

— Então pode ser amanhã.

— Não. Depois das próximas nundinae.

— Amanhã. Aurélia suspirou.

— Amanhã.

César insistiu em deslocar-se até casa de Sila sem ninguém a ajudá-lo. Quando descobriu que Lúcio Decúmio vinha atrás dele, mandou-o para casa com uma firmeza que Lúcio Decúmio não ousou desafiar.

— Estou farto de mimos! Estou farto de asas protectoras! — disse ele num tom que assustou os transeuntes. — Deixa-me só!

A caminhada era longa, mas César chegou a casa de Sila sem sintomas de cansaço; não havia dúvida que a convalescença estava a ser rápida.

— Pelo que vejo, vens de toga — disse Sila, sentado à sua secretária. Apontou para a laena e para o apex, cuidadosamente dispostos sobre um divã próximo. — Guardei-os para ti. Não tens outros?

— Pelo menos outro apex, não tenho. Esse que aí está foi uma oferta do meu querido benfeitor Caio Mário.

— O de Mérula não te servia?

— Eu tenho uma cabeça enorme — disse César, com um ar sério.

Sila deu uma risadinha.

— Não há dúvida que tens! — Sila mandara perguntar a Aurélia se César conhecia já a segunda parte da profecia e, tendo recebido uma resposta negativa, decidira que César não a ouviria da sua boca. Mas tencionava discutir o envolvimento de Mário naquilo tudo. As suas ideias tinham mudado radicalmente, graças a dois factores. O primeiro fora a informação de Aurélia acerca das circunstâncias em que César se tornara flamen Dialis; o segundo fora aquele drama em um acto, e a festa que se seguira, momentos que lhe tinham proporcionado um imenso prazer; sentira-se de tal forma retemperado com aquele teatro que, um mês depois, ainda dava consigo a pensar em determinados instantes da peça nos momentos menos apropriados; ganhara novas forças para se consagrar às suas leis.

Sim, naquele momento em que a magnificente delegação entrara no seu átrio com um ar soberbamente solene e teatral, Sila sentira-se transportado para fora de si mesmo — para longe da sua lúgubre carapaça, para longe de uma vida esvaziada de prazer e de leveza. Durante um curto espaço de tempo, a realidade desaparecera por completo e ele tinha mergulhado num cintilante e esplêndido quadro vivo. E desde esse dia voltara a conhecer a esperança; desde esse dia, sabia que aquele tormento teria um fim. Sabia que um dia ficaria livre, livre para fazer aquilo que desejava, mergulhar todo o seu ser e tudo o que nele havia de chocante num mundo de prazer, fascínio, ociosidade, artificialidade, diversões, num mundo de gente bizarra, de máscaras e travestis. Deixaria a rotina do presente e mergulharia num futuro muito diferente e infinitamente mais atraente.

— Fizeste um sem-número de erros quando fugiste, César — disse Sila num tom perfeitamente amistoso.

— Não preciso que mo digas. Tenho perfeita consciência disso.

— És demasiado belo para não seres notado e, além disso, tens um sentido natural do dramático — explicou Sila, contando com os dedos os pontos em que se baseava. — O criado germano, o cavalo, o teu belo rosto, a tua arrogância natural — preciso de continuar?

— Não — disse César, com um ar triste. — A minha mãe disse-me o mesmo. E muitas outras pessoas, também.

— Óptimo. Contudo, aposto que não te deram o conselho que eu te vou dar. E que se resume a isto: aceita o teu destino. Se és um homem fora do vulgar, se não podes passar despercebido na multidão, então não te metas a fazer excursões tresloucadas. A menos que faças como eu fiz uma vez, quando vesti a pele de um gaulês de aspecto terrífico. Quando regressei a Roma, trazia um daqueles colares de ouro que os Gauleses usam. Pensava que o colar me dava sorte. Mas Caio Mário tinha razão. O colar dava nas vistas, de um modo que não me agradava, que não me interessava. Por isso deixei de usar o colar. Eu era um romano, e não um gaulês — e a deusa Fortuna é que me favorecia, e não um colar de ouro inanimado, por muito bonito que ele fosse. Onde quer que tu vás, as pessoas hão-de dar por ti. Tal e qual como eu. Por isso, aprende a comportar-te dentro dos limites da tua natureza e da tua aparência. — Sila fez um ruído como que resmungando; parecia algo surpreendido. — Ah, mas que bem-intencionado que eu estou! Olha que é muito raro dar bons conselhos seja a quem for!

— Fico-te grato por isso — disse César, e estava a ser sincero. O Ditador ignorou o agradecimento.

— Quero saber quais foram, em tua opinião, as razões que levaram Caio Mário a tornar-te flamen Dialis.

César fez uma pausa para escolher as palavras, compreendendo que aquela resposta tinha de ser lógica e sem ponta de emoção.

— Caio Mário conviveu muito comigo depois de ter tido a segunda trombose — começou ele.

Sila interrompeu-o.

— Que idade tinhas então?

— Dez, quando tudo começou. Quase doze quando acabou.

— Continua.

— Eu estava interessado nos ensinamentos militares dele. Escutava-o com toda a atenção. Ele ensinou-me a montar, a servir-me da espada, a lançar uma lança, a nadar. — César pôs um sorriso irônico. — Naqueles tempos, eu tinha desmesuradas ambições militares.

— E por isso escutava-lo com toda a atenção.

— Sim, claro. E creio que Caio Mário ficou com a impressão de que eu queria ultrapassá-lo.

— E porque é que ele ficou com essa impressão?

— Porque eu lhe disse! — respondeu César, de novo com uma expressão triste.

— Muito bem. Agora vamos ao flaminato. Fala.

— Não posso dar-te uma resposta lógica quanto a esse ponto. A sério que não. Excepto que acredito que ele me nomeou flamen Dialis para eu não poder seguir uma carreira militar ou política. — disse César, muito constrangido. — Esta ideia não se baseia apenas nas minhas suposições. Caio Mário não estava bom da cabeça. É muito provável que o seu objectivo fosse esse.

— Muito bem — disse Sila, com uma expressão inescrutável. — Caio Mário está morto, por isso nunca saberemos a verdade. Contudo, e tendo em conta que a mente dele estava doente, a tua teoria adequa-se perfeitamente ao caracter dele. Caio Mário sempre teve medo de ser suplantado. Por velhos e grandes nomes. O seu nome era novo e ele sentia que fora injustamente discriminado precisamente por ser um Homem Novo. Pensa por exemplo na captura do rei Jugurta. Foi ele que ficou com os louros, como sabes. Mas afinal o trabalho foi todo meu! Se eu não tivesse capturado Jugurta, a guerra em África não terminaria tão cedo, nem de uma forma tão decisiva. O primo do teu pai, Catulo César, procurou repor a verdade nas suas memórias, mas essa sua tentativa foi abafada.

Nem mesmo que a sua vida dependesse disso, César não revelaria, por palavras ou por expressões, o que realmente pensava daquela espantosa versão da captura do rei Jugurta. Sila fora legado de Mário! Por muito brilhante que fosse a captura, os louros tinham de ir para Mário! Fora Mário quem mandara Sila executar a missão, fora Mário quem comandara a guerra. E o general não podia fazer tudo sozinho — era por isso que tinha legados. Creio, pensou César, que estou a ouvir uma das primeiras versões, ainda em esboço, do que será a história oficial! Mário perdeu, Sila venceu. Por uma única razão. Porque Sila sobreviveu a Mário.

— Estou a ver — retorquiu César, sem mais.

com um andar um tanto arrastado, Sila encaminhou-se para o divã onde se encontrava o traje do flamen Dialis. Pegou no capacete de marfim com o espigão e o disco de lã, mexeu-lhe e remexeu-lhe.

— Está bem forrado — disse.

— É muito quente, Lúcio Cornélio, e eu não gosto de sentir o suor — disse César.

— Mudas freqüentemente o forro? — perguntou Sila, erguendo o capacete para cheirar o interior. — Cheira bem. Por todos os deuses, que mal que cheira um capacete militar! Já vi cavalos virarem o focinho por lhes darem de beber com um capacete militar.

Na expressão de César notou-se um vago sinal de enojamento. Contudo, encolheu os ombros e procurou ignorar.

— Exigências da guerra! — disse ele, ligeiro. Sila pôs um sorriso arreganhado.

— Será muito interessante ver como vais enfrentar tais exigências, rapaz! És um bocadinho picuinhas, não és?

— Em certas coisas, talvez — disse César, sensatamente. Sila deixou cair o apex de marfim no divã.

— com que então odeias este cargo, não é verdade?

— Odeio, sim.

— E Caio Mário tinha tanto medo de ti que te deu esse cargo. Para que tu ficasses preso de pés e mãos.

— Assim parece.

— Lembro-me de que, na tua família, diziam que tu eras muito esperto. Que lias um texto num abrir e fechar de olhos. É verdade?

-É.

Sila voltou num instante à secretária, remexeu nos seus papéis e tirou uma folha, que entregou imediatamente a César.

— Lê-me isso — disse.

César percebeu logo a escolha. A caligrafia era de tal modo execrável, as letras tão comprimidas e as linhas tão desordenadas que aquilo mais parecia um conjunto de rabiscos sem significado.

— Tu não me conheces Sila mas eu tenho uma coisa a dizer-te e que é o seguinte há um homem da Lucânia chamado Marco Aponto que tem uma rica propriedade em Roma e só quero que saibas que Marco Crasso pôs esse Apónio na lista das proscrições para ele poder comprar a propriedade muito barata tão barata que só lhe custou dois mil sestércios — um amigo.

César concluiu aquela fácil tradução e olhou para Sila com os olhos a piscar.

Sila desatou a rir.

— Bem me pareceu que era isso! O meu secretário também. Obrigado, César. Mas atenção: tu não viste o papel e, se o viste, não o leste!

— com certeza!

— O facto de uma pessoa não poder fazer tudo sozinha levanta imensos problemas — disse Sila, num tom sério. — Isso é o que o cargo de Ditador tem de pior. Tenho de recorrer a agentes — porque o meu trabalho é um trabalho de Hércules. O homem que aí é referido é alguém em quem confiei. Sim, eu sabia que ele era ganancioso, mas nunca pensei que desse tanto nas vistas.

— Toda a gente em Subura conhece Marco Licínio Crasso.

— Por causa dos seus incendiozinhos premeditados? As ínsulas que arderam?

— Sim. E por causa das suas brigadas de bombeiros que chegaram no exacto momento em que ele comprou a propriedade barata e que só então extinguiram o fogo. Crasso tornou-se o maior proprietário de terras de Subura. E também o mais impopular. Mas na ínsula da minha mãe é que ele não toca! — jurou César.

— Aliás, não vai tocar em mais nenhuma propriedade de prescritos — disse Sila num tom amargo e duro. — Ele prejudicou a minha reputação. Eu avisei-o! Ele não quis ouvir. De maneira que nunca mais quero vê-lo à minha frente. Ele que apodreça!

Tudo aquilo era muito estranho: mas que tinha César a ver com os problemas de um ditador? com os problemas que ele tinha com os seus agentes? Roma nunca mais teria um ditador! No entanto, aguardou, na esperança de que Sila revelasse onde queria chegar, e sentindo que todos aqueles rodeios eram a maneira que Sila tinha de testar a sua paciência — e provavelmente também uma maneira de o atormentar.

— A tua mãe não sabe e tu também não, mas não ordenei que te matassem — disse o Ditador.

César abriu muito os olhos.

— Não? Mas não foi isso que Ria achou depois de Lúcio Cornélio Fagita lá ter estado em casa? Ele surripiou três talentos do dinheiro da minha mãe, pois, segundo ele, se não lhos dessem, matava-me. Acabas de me dizer quão horrível é ter de recorrer a agentes, precisamente porque eles são gananciosos. Pois isso aplica-se tanto aos principais agentes, como aos mais pequenos.

— Não mevou esquecer do nome. A tua mãe vai receber esse dinheiro — disse Sila, evidentemente furioso. — Mas não é isso que me interessa agora. O que me interessa agora é que eu não mandei matar-te! Ordenei que te trouxessem vivo, para que eu pudesse fazer-te as perguntas que te fiz agora.

— E depois matavas-me.

— Essa era a ideia inicial.

— E agora deste a tua palavra de honra de que não me matarás.

— Não mudaste de ideias quanto a um eventual divórcio, pois não?

— Não. Nunca me divorciarei.

— Ora bem. Isso deixa Roma perante um problema difícil. Eu não posso mandar matar-te, tu não queres o cargo, e não queres divorciar-te da filha de Cina porque isso constitui a única maneira de te livrares do cargo — ah, e por favor não me venhas com explicações grandiloqüentes acerca da honra, da ética e dos princípios! — De súbito, o rosto degradado tornou-se muito mais velho do que realmente era; os lábios, na boca sem dentes, vacilavam, desamparados; e Sila era Cronos à espera de devorar o seu próximo filho. — A tua mãe contou-te o que se passou?

— Contou-me apenas que me tinhas poupado. Sabes como ela é.

— É uma criatura extraordinária. Devia ter nascido homem. Aos lábios de César aflorou o mais encantador dos seus sorrisos.

— Muitas vezes dizes tu isso! Tenho de confessar que estou muito contente por ela não ser um homem.

— Também eu, também eu! Se ela fosse um homem, ficava-me com os louros todos! — Sila deu uma palmada nas coxas e curvou-se um pouco para a frente. — Portanto, meu caro César, tu continuas a ser um problema para todos os membros dos colégios sacerdotais. Que havemos de fazer contigo?

— Libertar-me do meu flaminato, Lúcio Cornélio. A outra hipótese era matar-me, mas desse modo não honrarias a tua palavra. Não creio que fosses capaz disso.

— Que te faz pensar que eu não o faria?

César ergueu as sobrancelhas.

— Eu sou um patrício, da mesma classe que tu! Mas, mais do que isso, pertenço aos Júlios. Tu nunca faltarias à tua palavra em relação a uma pessoa com tal linhagem.

— Assim é, assim é — disse o Ditador, recostando-se na cadeira. — Os membros dos colégios sacerdotais decidiram libertar-te do teu flaminato, como tu muito bem adivinhaste. Eu não posso falar pelos outros, mas posso dizer-te por que motivo eu quero libertar-te desse cargo. Penso que Júpiter Optimus Maximus não te quer para essas funções. Creio que ele tem outras coisas em mente para ti. É muito possível que o que sucedeu com o templo dele fosse a maneira que ele arranjou de se ver livre de ti. Não estou completamente certo disso. Mas sinto-o de uma forma espontânea e profunda. Caio Mário foi a mais longa provação da minha vida. Como uma Némesis grega. De uma ou de outra maneira, conseguiu sempre estragar os meus mais grandiosos dias. E por razões que eu não tenciono explorar, Caio Mário procurou, com todo o seu afinco, deixar-te preso com as mais fortes grilhetas. Pois ouve o que te digo, César! Se ele queria ver-te preso, eu só posso querer ver-te livre! Quero ser o último a rir. E tu és o último riso.

A César nunca lhe passara pela cabeça que a sua salvação dependeria daquele antagonismo, daquele quadro tão inesperado. Porque Caio Mário o prendera, Sila tinha de libertá-lo. Enquanto fitava atentamente Sila, César convenceu-se firmemente de que aquela era, de facto, a única razão da sua libertação. Sila queria ser o último a rir. Por isso, a derrota final fora de Caio Mário, e não de Sila.

— Eu e os meus colegas dos colégios sacerdotais pensamos que deve ter havido irregularidades nos rituais da tua consagração como flamen Dialis. Vários de entre nós — eu não, mas muitos de nós — assistiram a essa cerimónia, e não há um único que esteja absolutamente certo de que não houve irregularidades. Tendo em conta os sanguinolentos horrores que se viveram nesses tempos, a dúvida é o suficiente para te libertarmos. Contudo, não poderemos nomear um outro flamen Dialis enquanto tu fores vivo, pois também podemos estar enganados e não ter havido nenhuma irregularidade. — Sila assentou as palmas das mãos na secretária. — É preferível arranjar uma cláusula que providencie uma saída. Estar sem um flamen Dialis é uma grave inconveniência, mas Júpiter Optimus Maximus é Roma e, como tal, quer que as coisas sejam legais. Portanto, enquanto tu viveres, os outros flamines partilharão entre si os deveres de Júpiter.

César tinha de falar. Humedeceu os lábios.

— Parece-me uma decisão justa e prudente — disse.

— É o que nós pensamos. No entanto, esta medida significa que a tua qualidade de membro do Senado cessará logo que o Grande Deus manifestar o seu consentimento. Para obter o seu consentimento, darás a Júpiter Optimus Maximus o animal dele, um touro branco. Se o sacrifício correr bem, o teu flaminato acaba. Se não correr bem — bom, se não correr bem, teremos de repensar o caso. O Pontifex Maximus e o Rex Sacrorum presidirão ao sacrifício. — Pelos seus olhos frios e pálidos perpassou por um breve instante uma alegria antiga. — Mas serás tu a conduzir o sacrifício. Depois, ofereceremos um banquete a todos os colégios sacerdotais, no templo de Júpiter Estator, no alto Fórum Romano. Esta oferenda e o banquete assumem a natureza de um piaculum, para compensar as inconveniências que o Grande Deus terá de suportar, devido ao facto de ficar sem um sacerdote especial.

— Obedecerei com a maior satisfação a essas instruções — disse César formalmente.

— Se tudo correr bem, serás um homem livre. Poderás estar casado com quem muito bem entenderes. Até mesmo com a filha de Cina.

— Posso concluir que não houve qualquer mudança no estatuto de Cinila, não é verdade?

— Claro que não houve! Se houvesse, usarias a laena e o apex para o resto da tua vida! Desapontaste-me, meu rapaz! Isso é pergunta que se faça?

— Eu fiz essa pergunta, Lúcio Cornélio, porque a lex Minicia se aplica automaticamente à minha mulher e também aos meus filhos. Ora, eu não fui proscrito. Por isso, por que hão-de os meus filhos sofrer?

— Sim, eu sei — disse o Ditador, nada ofendido com a franqueza de César. — Para proteger homens como tu é que euvou emendar a minha lei. A lex Minicia de liberis aplicar-se-á apenas aos filhos dos proscritos. Se esses proscritos tiverem a sorte de casar com um cidadão romano, então os seus filhos serão romanos. — De sobrolho franzido, prosseguiu: — Estes casos deviam ter sido previstos. Mas não foram. É um dos problemas resultantes da necessidade de produzir tanta legislação num espaço de tempo tão curto. Mas a forma como o problema veio parar às minhas mãos deixou-me, publicamente, numa posição extremamente ridícula. E tudo por tua culpa, meu rapaz! E por culpa do parvo do teu tio, o Cota. A interpretação sacerdotal das minhas leis que tenham a ver com as outras leis de Roma, deve ser aplicada aos filhos dos prescritos.

— Fico muito satisfeito com isso — disse César, com um imenso sorriso. — Fico livre das garras de Caio Mário.

— Lá isso ficas — retorquiu Sila, o qual, de repente, ficou com um ar muito vivo e empreendedor; e, de facto, num instante saltou para um assunto completamente diferente. — Mitilene revoltou-se contra o tributo que deve a Roma. Por ora, é o meu proquestor Lúculo quem governa, mas mandei o meu pretor Termo com a missão de tomar as rédeas do governo da Província da Ásia. A sua primeira tarefa consistirá em dominar a revolta de Mitilene. Tu disseste que preferias a carreira militar e, por isso,vou mandar-te para Pérgamo, a fim de te integrares na equipa de Termo. Espero que te tornes notado, César — disse Sila, com a mais ameaçadora das expressões. — Da tua conduta como tribuno militar júnior depende o veredicto final sobre todo este caso. Na história romana, o mais reverenciado dos homens é o herói militar. Tenciono exaltar todos esses homens. Receberão privilégios e honras que não serão dados a outros. Se revelares coragem no campo de batalha, também exaltarei o teu valor. Mas se não te portares bem, far-te-ei descer tão baixo que até o próprio Caio Mário ficará surpreendido.

— Parece-me justo — disse César, deliciado com aquela missão.

— Mais uma coisa — disse Sila, com um olhar matreiro. — O teu cavalo. O animal que tu montaste quando eras flamen Dialis, contra todas as leis do Grande Deus.

César ficou paralisado.

— Sim?

— Ouvi dizer que tencionas readquirir o animal. Não o farás. Ordeno-te que montes uma mula. A mim, sempre me chegou uma mula. Por isso, se uma mula chega para mim, para ti também deve chegar.

Os olhos de César pareciam querer assassinar Sila. Mas... não!, disse Caio Júlio César para si mesmo, eu nãovou cair na tua armadilha, Sila!

— Crês, Lúcio Cornélio, que eu me considero demasiado bom para montar uma mula? — perguntou ele, em voz bem alta.

— Não faço a mínima ideia do conceito em que te tens!

— Pois digo-te que nunca vi melhor cavaleiro do que eu próprio — disse calmamente César. — Ao passo que tu, segundo o que se diz, és por certo um dos piores cavaleiros que já houve no mundo. Mas se uma mula é montada que chegue para ti, então é porque, para mim, uma mula chega e sobra. E agradeço sinceramente a tua compreensão. E a tua discrição.

— Nesse caso, podes ir — disse Sila, não se deixando perturbar. — Olha, e diz ao meu secretário para entrar.

Aquele instante em que quase perdera o controlo dos seus nervos fez com que César se sentisse menos grato com a sua liberdade do que normalmente se sentiria; a caminho de casa, deu consigo a pensar se Sila não teria estipulado aquela insignificante cláusula da mula exactamente para o espicaçar. Sila não queria a sua gratidão, não queria que o filho de Aurélia ficasse ligado a ele por qualquer tipo de servidão, por qualquer elo que seria mais próprio da relação entre um cliente e um senhor. Um Júlio devedor de um Cornélio? Isso era troçar da classe patrícia. Apercebendo-se disto, César acabou por ficar com melhor impressão de Lúcio Cornélio Sila. Ele libertou-me em todos os sentidos! Devolveu-me a minha vida, para eu fazer com ela o que muito bem entenda. Ou possa fazer. Nunca gostarei dele. Mas houve tempos em que até gostei dele.

Lembrou-se de Bucéfalo e chorou.

— Sila é sensato, César — disse Aurélia, aprovando inteiramente as decisões de Sila. — A tua bolsa vai sofrer um rombo considerável. Tens de comprar um touro branco sem defeitos nem imperfeições, o que significa que terás de gastar pelo menos cinqüenta mil sestércios. O banquete que vais oferecer a todos os sacerdotes e augures de Roma custar-te-á o dobro. Depois, terás de comprar os teus equipamentos militares. E terás de suportar as tuas despesas na Província da Ásia, e, para mais, num meio que é dado a gastos excessivos. Lembro-me de o teu pai dizer que os tribunos militares júniores desprezavam os colegas que não tinham dinheiro para pagar luxos ou extravagâncias. Tu não és rico. Os rendimentos das tuas terras foram-se acumulando desde que o teu pai morreu, pois não precisaste de gastar. Essa situação vai alterar-se. Readquirir o cavalo seria um peso dificilmente suportável. No fim de contas, tu nem estarás cá para montar o cavalo. Tens de montar uma mula até que Sila diga o contrário. E podes comprar uma esplêndida mula por dez mil sestércios.

O olhar com que fitou a mãe não era filial, mas da sua boca não saiu palavra. E se sonhasse com o seu cavalo e chorasse a sua ausência, guardaria essas coisas só para si.

O sacrifício expiatório realizou-se vários dias depois. Por essa altura, já César estava pronto para a sua jornada rumo à Província da Ásia, onde ficaria sob as ordens de Marco Minúcio Termo, governador da região. Embora o banquete decorresse no templo de Júpiter Estator, o ritual de compensação do Grande Deus tinha lugar no altar erigido ao fundo da escadaria do antigo templo de Júpiter Optimus Maximus, no Capitólio.

Foi o próprio César que, envergando uma toga (a laena e o apex tinham ficado à guarda dos sacerdotes até que pudessem ser depositados no novo templo de Júpiter), conduziu o seu belíssimo touro branco pelas Fauces Suburae e pelo Argileto. Embora pudesse ter-se limitado a decorar com fitas os esplêndidos cornos do animal, César resolvera manifestar o seu desdém pela poupança: por isso os cornos do touro estavam cobertos por espessa folha de ouro; à volta do cachaço, exibia grinaldas das mais exóticas e dispendiosas flores; e, entre os cornos, levava uma coroa das mais belas rosas brancas. Os cascos também tinham sido pintados a ouro e o rabo estava decorado com fitas de brocado de ouro entrelaçadas com flores. com César, vinham os seus convidados — os tios Cotas, Caio Macio, Lúcio Decúmio e os filhos, e a maior parte dos confrades do colégio das encruzilhadas. Todos envergavam toga. Aurélia não estava presente; as mulheres não podiam assistir a nenhum sacrifício em honra de Júpiter Optimus Maximus, que era um deus exclusivo dos homens romanos.

Os diversos colégios sacerdotais encontravam-se à espera à volta do altar, e os profissionais que haviam de executar o touro também lá estavam — popa, cultarius, escravos. Embora fosse costume drogar o animal antecipadamente, César recusara-se a seguir esse costume; em sua opinião, deveria proporcionar a Júpiter todas as oportunidades de manifestar o seu agrado ou desagrado. Um tal facto tornou-se imediatamente evidente aos olhos de todos; o belo touro branco, sem qualquer defeito ou imperfeição na possante carcaça, exibia uns olhos muito vivos e uma passada enérgica, e dava à cauda com um ar importante — era óbvio que gostava de ser o centro das atenções.

— Estás louco, rapaz! — segredou-lhe Caio Aurélio Cota, depois de subirem a Clivus Capitolinus, já com uma larga multidão à vista. — Todos os olhos vão estar no animal e tu não o drogaste! Que vais fazer se ele se portar mal? Nessa altura será demasiado tarde!

— Ele vai portar-se bem — retorquiu serenamente César. — Ele sabe que depende de si o meu destino. É preciso que toda a gente veja que eu me curvo sem reservas à vontade do Grande Deus. — E, com um risinho entredentes, acrescentou: — Além disso, eu sou um dos favoritos de Fortuna, tenho a sorte pelo meu lado!

Toda a gente estava já concentrada em torno do altar. César encaminhou-se para o trípode de bronze com uma bacia de água, onde lavou as mãos; nisso foi imitado pelo Pontifex Maximus (Metelo Pio, o Bacorinho), pelo Rex Sacrorum (Lúcio Cláudio), e pelos outros dois principais flamines, Martialis (o Princeps Senatus, Lúcio Valério Placo) e Quirinalis (o recém-nomeado Mamerco). com os corpos e as roupas agora ritualmente puros, os sacerdotes ergueram as dobras das togas que caíam sobre os seus ombros e com elas taparam as cabeças. Logo que acabaram de o fazer, todos os outros presentes os imitaram.

O Pontifex Maximus encaminhou-se então para o altar.

— Ó poderoso Júpiter Optimus Maximus — se é que desejas que te invoque pelo teu nome, pois, se não o desejares, invocar-te-ei com o nome que pretendas ouvir —, atende o teu servo Caio Júlio césar, que foi teu flamen e que agora deseja compensar-te pela sua errônea nomeação, pela qual não foi responsável! — clamou o Bacorinho sem gaguejar uma única vez; depois, recuou e, com os olhos faiscando de raiva, olhou para Sila, que procurava manter uma cara séria; aquela exibição sem mácula custara ao Bacorinho dias e dias de treino, mais extenuante que todo o treino militar.

Os sacerdotes encarregados destes rituais começaram a retirar as flores e a folha de ouro do touro, transformando esta última, com todo o cuidado, numa bola imperfeita, e nem prestaram atenção a César que, nesse instante, avançou para o touro e colocou a sua mão no nariz rosado e húmido da sua oferenda. Os olhos rubi-escuros, rodeados por longas e espessas pestanas, tão incolores como o cristal, seguiram atentamente o seu gesto, e César pôde aperceber-se de que o touro branco não manifestava o mínimo desagrado por causa da sua presença ou da sua mão.

Orou numa voz colocada muito acima do seu tom natural, a fim de que todos pudessem ouvir cada uma das suas palavras.

— Ó poderoso Júpiter Optimus Maximus — se é que desejas que te invoque pelo teu nome, pois, se não o desejares, invocar-te-ei com o nome que pretendas ouvir —, tu que assumes o sexo que muito bem entendes, tu que és o espírito de Roma, rogo-te que aceites esta oferta do teu animal sagrado, esta oferenda que te faço para te compensar da minha errônea nomeação como teu flamen. Rogo-te que me libertes dos meus votos e que me concedas a oportunidade de te servir de outro modo. Submeto-me à tua vontade, mas ofereço-te a melhor e mais poderosa e mais forte das criaturas vivas, sabendo que me concederás o que eu peço porque te ofereci exactamente aquilo que devia oferecer-te.

César sorriu para o touro, que olhava para ele com um ar de quem parecia entender o que se passava.

Os sacerdotes encarregados do ritual avançaram então; César e o Pontifex Maximus afastaram-se e cada um retirou um cálice de ouro de um trípode, ao passo que o Rex Sacrorum pegou numa bacia de ouro cheia de espelta.

— Peço silêncio! — atroou a voz de César.

Fez-se silêncio, um silêncio tão absoluto que era possível ouvir os ruídos da azáfama nas distantes lojas das arcadas do Fórum, trazidos por uma brisa quente e suave.

O flautista levou aos lábios o seu instrumento, feito com uma tíbia de um inimigo, e começou a tocar uma melodia triste, de forma a que não se ouvissem os ruídos vindos do Fórum.

Logo que o flautista começou a tocar, o Rex Sacrorum aspergiu o focinho e a cabeça do touro com espelta; o animal pareceu receber aquele aguaceiro de grãos como se fosse chuva; deitou a língua de fora e chupou os grãos que se tinham colado ao nariz.

O popa postou-se então em frente do touro, segurando o colossal maço junto ao corpo.

— Agone? Dou-lhe o golpe? — perguntou bem alto a César.

— Dá-lhe o golpe! — exclamou César.

Num ápice, o popa elevou o maço e descarregou-o com força e uma precisão absoluta no meio dos meigos e desprevenidos olhos do touro. O animal caiu de borco sobre os joelhos da frente, com um impacte tão forte que se sentou no chão; a cabeça pendia e, lentamente, as partes traseiras do touro deslizaram para a direita, o que era um bom auspício.

Nu da cintura para cima, tal como o popa, o cultaris pegou nos chifres do touro com as mãos e ergueu a cabeça lassa do bicho na direcção do céu; os músculos dos seus braços contraíam-se num esforço extremo, porque a cabeça do touro pesava mais de vinte quilos. Depois, baixou a carga para que o focinho roçasse o chão.

— A vítima consente — disse ele a César.

— Então façam o sacrifício! — exclamou César.

O cultarius desembainhou o seu facalhão muito afiado e, enquanto o popa, pegando nos cornos do touro, erguia a cabeça na direcção do céu, o cultarius cortou-lhe a garganta com um único e profundo golpe. O sangue jorrou, mas sem esguichar em todas as direcções — o sacerdote era perito naquele trabalho. Ninguém — nem mesmo ele — ficou salpicado de sangue. O popa largou então a cabeça, deixando-a virada para a direita, e César entregou o seu cálice ao cultarius, o qual encheu o cálice com gestos tão precisos que nem uma gota ficou a escorrer pelo recipiente. Depois, foi a vez de Metelo Pio lhe entregar o seu cálice para que ele o enchesse.

Evitando o túrgido fluxo carmim que corria incessantemente das entranhas do touro, César e o Pontifex Maximus encaminharam-se na direcção das lajes do altar. Logo que aí chegou, César verteu o conteúdo do seu cálice, e disse:

— Ó poderoso Júpiter Optimus Maximus — se é que desejas que te invoque pelo teu nome, pois, se não o desejares, invocar-te-ei com o nome que pretendas ouvir —, tu que assumes o sexo que muito bem entendes, tu que és o espírito de Roma, aceita esta oferenda que te é feita em sinal de recompensa, e aceita também o ouro dos cornos e das patas da tua vítima, e guarda-o para adornares o teu novo templo.

Depois, foi a vez de Metelo Pio esvaziar o seu cálice.

— Ó poderoso Júpiter Optimus Maximus — se é que desejas que te invoque pelo teu nome, pois, se não o desejares, invocar-te-ei com o nome que pretendas ouvir —, rogo-te que aceites a compensação oferecida por Caio Júlio César, que foi o teu flamen e que ainda é teu servo.

No momento em que Metelo Pio concluiu, sem qualquer percalço, a sua prece, ouviu-se um suspiro de alívio colectivo, suficientemente alto para abafar a triste melopéia do tibicen.

O último a orar era o Rex Sacrorum, que aspergiu com a espelta que lhe restava os cintilantes borrifos de sangue do altar.

— Ó poderoso Júpiter Optimus Maximus — se é que desejas que te invoque pelo teu nome, pois, se não o desejares, invocar-te-ei com o nome que pretendas ouvir —, sou testemunha de que te foi oferecida a força vital da melhor, mais forte e mais poderosas das vítimas, e que tudo foi feito de acordo com o ritual prescrito, e que nenhum erro foi cometido. Segundo os termos dos acordos que nos ligam a ti, concluo, portanto, que estás satisfeito com a oferenda e com o ofertador, Caio Júlio César. Por outro lado, Caio Júlio César deseja queimar a sua oferenda para teu deleite e não pretende ficar com nenhum resto dela. Que Roma e todos os que vivem em Roma possam prosperar em conseqüência deste sacrifício.

E assim terminou o ritual. Sem um único erro, do princípio ao fim. Enquanto os sacerdotes e augures destapavam as cabeças e começavam a descer a Clivus Capitolinus, na direcção do Fórum, os profissionais dos rituais dos sacrifícios começaram a limpar o local. Usaram uma talha para içarem a enorme carcaça e para a depositarem na pira; depois, enquanto rezavam, lançaram uma tocha para a pira. Enquanto os escravos desses sacerdotes encarregados dos sacrifícios lavavam, com baldes de água, os últimos traços de sangue, um aroma muito peculiar espalhou-se pelos ares, uma mistura de carne assada e dos caros incenses que César comprara para rechear a pira. O sangue do altar só seria limpo depois de o touro ficar reduzido a cinzas. E a bola de ouro ia já a caminho do Tesouro. Nela ficariam inscritos o nome do doador e a natureza e a data da cerimónia em que ela fora oferecida.

O banquete que se seguiu, no templo de Júpiter Estator, teve pelo menos tanto êxito como o sacrifício; enquanto César passeava entre os seus convidados, exortando-os a passar um bom bocado e trocando graças e piadas, muitos eram os olhos que lhe diziam que ele nunca estivera tanto em evidência como naquele momento. Por cargo e nascimento, César era agora um competidor importante na arena política, e os seus modos, o seu porte, a expressão do seu belo rosto, tudo isso sugeria que ele era alguém que não se devia perder de vista.

— Ele tem qualquer coisa do teu pai — disse Metelo Pio a Catulo, todo entusiasmado com o facto de ter executado uma cerimónia sem tropeçar numa única palavra.

— Não admira — disse Catulo, fitando César com um desagrado instintivo. — O meu pai era um César. Belo rapaz, não é? Bom, a sua beleza física ainda sou capaz de agüentar. Mas não sei se agüento a sua tremenda vaidade. Repara-me só nele! Muito mais novo que Pompeu! E, no entanto, pavoneia-se por aí como se fosse o dono do mundo.

O Bacorinho estava decidido a encontrar razões para tal comportamento.

— Se tu estivesses no lugar dele, como é que te sentias? Repara que ele acaba de se libertar do seu horrendo flaminato.

— Pode ser que venhamos a arrepender-nos de termos acedido às instruções de Sila para o libertarmos do flaminato — disse Catulo. — Estás a vê-lo agora? Ali, ao lado de Sila! Olha que dois!

O Bacorinho fitou-o, razoavelmente surpreendido; Catulo fora longe demais. Esquecera-se por um momento de que o seu interlocutor não era Quinto Hortênsio, tão habituado estava à companhia e à atenção do cunhado. Mas Hortênsio não estava presente, porque Sila não o nomeara para nenhum cargo sacerdotal. E Catulo considerava indesculpável essa omissão. Tal como Quinto Hortênsio.

Sila, nesse momento, pensava em tudo menos no melindre de Catulo. O que ele queria era esclarecer alguns factos com César.

—- Não drogaste o animal. Foi um risco tremendo — disse Sila.

— Eu sou um dos favoritos de Fortuna — retorquiu César.

— O que é que te leva a concluir isso?

— Repara bem no que aconteceu nos últimos tempos! Fui libertado do flaminato. Antes disso, sobrevivi a uma doença que normalmente é fatal. Consegui escapar à tua sentença de morte.

E tenho tido imenso êxito com a minha mula, pois já consegui ensiná-la a imitar o mais aristocrático dos cavalos.

— A tua mula já tem um nome? — perguntou Sila, com um largo sorriso.

— Claro que tem. Chama-se Orelhas Caídas.

— E como se chamava o teu aristocrático cavalo?

— Bucéfalo.

Sila desatou a rir, mas não fez mais comentários; os seus olhos passearam por toda a sala; depois, estendeu um braço para César.

— Para um rapaz de dezoito anos, fizeste tudo muito bem feito.

— Segui o teu conselho — retorquiu César. — Como não consigo passar despercebido no meio da multidão, decidi que o meu primeiro banquete tinha de ser digno do meu nome.

— Ah, mas que arrogante! És mesmo arrogante! Mas de facto é um banquete memorável. Ostras, salmonetes, lampreias, codornizes bebés — deve ter-te custado uma fortuna!

— Custou-me por certo mais do que eu posso pagar — disse calmamente César.

— Então és um perdulário — retorquiu Sila, tão calmamente como César.

César encolheu os ombros.

— O dinheiro é um instrumento, Lúcio Cornélio. Não me preocupa se tenho ou não dinheiro, se por acaso acreditas que a função do dinheiro é a acumulação. Eu creio que o dinheiro tem de circular. Caso contrário, estagna. E, com ele, estagna a economia. A partir de agora, o dinheiro que me vier parar às mãos será usado para apoiar a minha carreira pública.

— Ora aí está uma boa maneira de cair na bancarrota.

— Eu hei-de aguentar-me — disse César, despreocupadamente.

— Como, se és tão perdulário?

— É que eu gozo dos favores de Fortuna. Eu tenho sorte. Sila estremeceu.

— Eu gozo dos favores de Fortuna! Eu tenho sorte! Pode ser que sim, mas lembra-te de uma coisa — é preciso pagar um preço. Fortuna é uma amante ciumenta e exigente.

— São as melhores! — retorquiu César, e soltou uma gargalhada tão sonora que toda a sala se calou. Muitos dos homens presentes guardaram aquela memória de um César rindo a bom rir, não porque tivessem premonições, mas porque César possuía duas qualidades que eles invejavam — juventude e beleza.

Claro que César só podia deixar o banquete depois de ter saído o último convidado, e isso só veio a acontecer muitas horas depois; no final da festa, todos aqueles rostos, todos aqueles homens, encontravam-se já no seu arquivo mental, porque assim era o seu cérebro: armazenava tudo. Sim, eram gente interessante, foi o seu veredicto.

— Embora não encontrasse nenhum de quem gostasse de ser amigo — disse ele a Caio Macio, no dia seguinte. — Tens a certeza de que não queres vir comigo, Pústula? Não te esqueças que tens de fazer dez campanhas.

— Não, obrigado. Não quero ir para tão longe.vou ficar à espera de uma comissão. Espero que seja para a Gália Italiana.

As despedidas foram francamente cansativas. Embora desejasse dispensá-las, César suportou-as com a paciência que conseguiu reunir. O pior de tudo era que muita gente queria ir com ele, apesar da sua recusa categórica em levar mais alguém para além de Burgundo. Os seus dois servos pessoais eram novas aquisições — homens sem qualquer ligação à sua mãe.

Finalmente, as despedidas acabaram — Lúcio Decúmio, os seus filhos e os confrades do colégio das encruzilhadas, Caio Macio, os criados da mãe, Cardixa e os filhos, a irmã, Ju-Ju, a esposa, a mãe. César podia finalmente montar a sua obscura mula e partir.

 

Não tinham passado ainda dois meses quando Sila decidiu que Roma aceitara já, de forma satisfatória, a imposição das suas medidas de prescrição. A carnificina de Sila só marginalmente fora mais subtil que a de Mário, durante os poucos dias do seu sétimo consulado; com Sila, as ruas de Roma não ficaram tão manchadas de sangue e, por outro lado, não havia corpos empilhados no baixo Fórum Romano. Os cadáveres dos prescritos de Sila (as vítimas não tinham direito aos ritos funerários, nem ao enterro) eram arrastados até ao Tibre, presos sob o esterno por um gancho de talhante, e depois atirados ao rio; só as cabeças eram expostas no baixo Fórum Romano, à volta do perímetro da fonte pública conhecida sob o nome de lago Servílio.

Como o total de bens canalizados para o Estado por Crisógono, o administrador, não parava de crescer, foram promulgadas mais algumas leis: a viúva de um proscrito não podia voltar a casar-se e as máscaras de cera de Caio Mário e do jovem Mário, de Cina ou dos seus antepassados, ou de qualquer proscrito e dos seus antepassados, não podiam ser exibidas em nenhum funeral.

A casa de Caio Mário tinha sido vendida em hasta pública a Sexto Perquitieno, neto do homem que tinha feito a fortuna dessa família; Caio Mário havia construído a sua casa ao lado da casa do avô Perquitieno, de maneira que o neto Perquitieno aproveitara a antiga residência para fazer dela um anexo para as suas obras de arte.

Nos primeiros leilões conduzidos por Crisógono, as propriedades dos proscritos foram arrematadas a um preço razoável. Mas não havia muito dinheiro para gastar, pelo que, por altura do décimo leilão, os preços registavam já uma forte queda. Foi então que Marco Crasso começou a fazer as suas compras. Usava uma técnica perspicaz; em vez de se virar para as melhores propriedades, preferia concentrar-se em propriedades menos atraentes e, assim, conseguia arrematá-las a preços muito baixos. A técnica de Lúcio Sérgio Catilina era mais brutal. Informava Crisógono de conversas ou acções que indiciassem traição e, desse modo, conseguiu que o seu irmão mais velho, Quinto, e o seu cunhado, Cecílio, fossem proscritos. O irmão foi mandado para o exílio, mas o cunhado morreu, e Catilina pediu ao Ditador que promulgasse uma lei especial para que pudesse herdar, argumentando que o seu nome não estava em nenhum dos testamentos e que, por outro lado, não era um herdeiro directo — os dois homens tinham filhos varões. Sila acedeu ao seu pedido e Catilina ficou rico sem ter gasto um único sestércio nos leilões.

Foi portanto num clima duplamente gelado que Sila celebrou o seu triunfo no último dia de Janeiro. Roma compareceu em massa para honrar o acontecimento, mas os cavaleiros ficaram em casa, aparentemente porque tinham medo de ir parar à próxima lista de prescritos, caso Sila ou Crisógono vissem as suas caras. O Ditador exibiu os despojos e os tributos da Ásia e do rei Mitridates, fazendo os possíveis e os impossíveis para camuflar o facto de que terminara aquela guerra de uma forma tão apressada quanto prematura; é que, tendo em conta a riqueza do inimigo, o produto do saque não podia deixar de ser decepcionante.

No dia seguinte, Sila realizou o que era mais uma exposição do que um triunfo, exibindo tudo o que conquistara ao jovem Mário e a Carbão; teve o cuidado de informar os espectadores de que os artigos expostos deveriam ser devolvidos aos templos e às pessoas que os tinham emprestado para a exposição. Nesse dia, os antigos exilados a quem tinham sido devolvidos os direitos de cidadania — homens como Ápio Cláudio Fulcro, Metelo Pio, Varrão Lúculo e Marco Crasso — desfilaram, não como senadores de Roma, mas como antigos exilados, embora Sila, obsequiosamente, os tivesse poupado ao ultraje de terem de pôr o Barrete da Liberdade, habitualmente usado pelos libertos.

Pelos vistos, como Sila pôde concluir no dia seguinte ao do seu triunfo, era mais difícil domar Pompeu do que levar Roma a aceitar pacificamente as proscrições. Pompeu ignorara as instruções do Ditador e embarcara para Itália com todo o seu exército.

Em Tarento, enviara uma carta para Sila, em que o informava de que fora impotente para conter os seus leais soldados, que tinham embarcado todos, pois não queriam vê-lo partir com tão poucas tropas (sem explicar como é que conseguira reunir navios suficientes para embarcar cinco legiões e dois mil soldados de cavalaria); no final da missiva, voltava a pedir que Sila o autorizasse a celebrar um triunfo.

O Ditador mandou então um mensageiro à cidade de Tarento, com uma carta em que, pela segunda vez, negava a Pompeu o tão desejado triunfo. O mesmo mensageiro trouxe-lhe a resposta de Pompeu. Este pedia desculpa pelo comportamento refractário dos seus homens, reafirmando que não conseguia controlá-los. Ah, aqueles soldados malcomportados insistiam que o seu adorado general tinha direito à celebração do triunfo! Se o Ditador mantivesse a sua atitude negativa, aqueles soldados malcomportados eram muito capazes de tomar o caso nas suas próprias mãos e quem sabe se não decidiriam mesmo marchar na direcção de Roma! Como era evidente, acrescentava Pompeu, ele faria tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir uma tal acção!

Sila enviou rapidamente uma segunda carta a Pompeu, contendo uma terceira recusa: TRIUNFO, NEM PENSAR! Já eram recusas a mais. As seis legiões e os dois mil cavaleiros de Pompeu abandonaram Tarento e marcharam para Roma. O seu amado general vinha com eles, unicamente para impedir os seus homens de desencadearem acções de que mais tarde pudessem arrepender-se, como ele afirmava numa outra carta para Sila.

O Senado manteve-se ao corrente de todos os episódios deste duelo, horrorizado com a presunção de um cavaleiro de 24 anos; por isso, aprovara um senatus consultum para apoiar todas as ordens e recusas de Sila. Daí que a resistência tenha atingido o auge quando Sila e o Senado foram informados de que Pompeu chegara a Cápua. Estava-se já em fins de Fevereiro, as tempestades de Inverno iam e vinham, e o Campo de Marte encontrava-se já cheio de soldados: as duas legiões pertencentes a Lúcio Licínio Murena, o ex-governador da Província da Ásia e da Cilícia, e as duas legiões pertencentes a Caio Valério Flaco, o ex-governador da Gália Transalpina. Murena e Flaco deveriam celebrar os seus triunfos muito em breve.

Logo a seguir à inevitável carta ordenando a Pompeu que se detivesse em Cápua (e informando-o de que, no Campo de Marte, estavam quatro legiões experimentadas na guerra), o próprio Ditador deixou Roma na direcção de Cápua. com ele, seguiam Decula e o velho Dolabela, Metelo Pio Pontifex Maximus, Flaco Princeps Senatus e uma escola de lictores; não levavam nenhum séquito de soldados para os proteger.

Pompeu recebeu a carta de Sila antes de poder deixar Cápua. E a notícia de que havia quatro legiões acampadas em Roma deixou-o de tal forma surpreendido que não mais pôs a hipótese de deixar aquela cidade. Pompeu nunca tivera a intenção de declarar guerra a Sila; a marcha não passava de uma manobra, tendo por único objectivo conseguir a celebração do triunfo. A notícia de que o Ditador tinha quatro legiões com forte experiência de guerra à sua disposição caiu em cima de Pompeu como uma torrente de água gelada. É que ele sabia que aquilo era uma manobra, um logro — mas Sila saberia? Claro que não! Como poderia saber? Aos olhos de Sila, aquela marcha assemelhava-se à sua própria marcha a partir de Cápua, no ano em que fora cônsul. Pompeu estava positivamente apavorado.

Por isso, quando soube que Sila se aproximava sem nenhum exército a apoiá-lo, Pompeu abandonou a toda a pressa o seu campo e avançou pela Via Ápia — também sem exército. As circunstâncias daquele encontro tinham algo de parecido com as do seu primeiro encontro, nos baixios do rio Calor. Só que agora Sila não estava bêbedo, ainda que a sua montada continuasse a ser uma mula. Estava vestido com a toga praetexta, debruada a púrpura, e à sua frente vinham vinte e quatro lictores, tremendo nas suas túnicas carmins e empunhando os feixes com as machadinhas. Atrás de Sila, vinham mais trinta lictores — doze pertencentes a Decula, doze ao velho Dolabela e seis ao Princeps Senatus, que tinha um cargo de pretor. Daí que aquele encontro tivesse uma coloração muito mais digna e impressionante do que o encontro no rio Calor. Sim, de facto aquele era um encontro muito mais conforme às fantasias do pobre Pompeu.

Do que não havia dúvida era que a importância e a envergadura de Pompeu tinham crescido durante os vinte e dois meses que haviam transcorrido desde o seu primeiro encontro com Sila; chefiara uma campanha ao lado de Metelo Pio e Crasso, uma outra em Clúsio, com Sila e Crasso, e uma terceira, no estrangeiro, inteiramente só. Por isso, não hesitara em vestir a sua melhor armadura, revestida a ouro, brilhando quase tanto como o seu Cavalo Público, sempre vistosamente ataviado. O grupo do Ditador vinha a pé; como não desejava parecer mais marcial que os outros, Pompeu desmontou.

Sila trazia a sua Coroa de Erva; dessa forma muito pouco simpática, lembrava a Pompeu que ainda não conseguira ganhar um tal troféu — aliás, nem sequer ganhara ainda uma Coroa Cívica! Apesar da disparatada peruca, apesar das cicatrizes que lhe cobriam o rosto, o Ditador conseguia, em todos os pormenores, ter o aspecto que se espera de um Ditador. E Pompeu apercebeu-se rapidamente disso. Os lictores afastaram-se para as bermas da estrada, permitindo assim que o jovem avançasse na direcção de Sila, que tinha parado e disposto o seu grupo de forma a ficar alguns passos à frente dos outros, mas não inteiramente isolado.

— Ave, Pompeu Magno! — exclamou Sila, erguendo a mão direita.

— Ave, Ditador de Roma! — exclamou Pompeu, exultante. Sila tinha-o tratado em público pelo terceiro nome que a si próprio atribuíra — agora já podia ser oficialmente Pompeu, o Grande!

Beijaram-se na boca, como era tradicional; na realidade, nenhum deles sentia a mínima atracção pelo outro para procederem de bom grado a esse gesto. com os lictores atrás, seguiram depois na direcção do campo de Pompeu.

— Já estás pronto a admitir que sou Pompeu, o Grande — comentou Pompeu, cheio de felicidade.

— O nome pegou — disse Sila. — Mas Miúdo Carniceiro também pegou.

— O meu exército está decidido a que eu tenha o meu triunfo, Lúcio Cornélio.

— O teu exército não tem esse direito, Cneu Pompeu Magno. Os braços sardentos, poderosos, de Pompeu agitaram-se.

— Mas que posso eu fazer! — exclamou. — Eles não ligam nenhuma aos meus conselhos!

— Ora, que disparate — atirou-lhe Sila. — com certeza que já percebeste, Magno, que as tuas cartas demonstraram que não és competente para controlar as tuas tropas.

Pompeu corou e a sua boca, já de si pequena, franziu-se tanto que quase não se via.

— Essa crítica não é justa! — exclamou.

— Pois justa é que ela é. Tu próprio admites isso em nada menos do que três cartas.

— A tua falta de compreensão é deliberada — exclamou Pompeu, muito vermelho. — Eles comportam-se assim porque me adoram!

— Adorem-te ou odeiem-te, a insubordinação é sempre insubordinação. Se eles fossem meus, dizimava-os.

— É uma insubordinação inofensiva — protestou Pompeu, desajeitadamente.

— Nenhuma insubordinação é inofensiva, como tu muito bem sabes. com o teu comportamento, estás a ameaçar o legalmente nomeado Ditador de Roma.

— Isto não é uma marcha sobre Roma, Lúcio Cornélio, é apenas uma marcha para Roma — tratou de explicar Pompeu. — Há uma diferença! Os meus homens querem apenas que eu receba aquilo que me é devido.

— Aquilo que te é devido, Magno, é aquilo que eu, enquanto Ditador de Roma, decidir dar-te. Tu tens vinte e quatro anos. Não és um senador. Concordei chamar-te por um belo nome: Magno. Melhor do que Magno, só há Máximo. E, para se conseguir ser Máximo, é preciso subir na escala social. Mas de Magno também se pode passar a epítetos inferiores: Parvo, Minuto, ou mesmo Pusilo — disse Sila.

Pompeu parou no meio da estrada e fitou Sila; o grupo que vinha atrás esqueceu-se de parar e aproximou-se o suficiente para ouvir o diálogo.

— Eu quero um triunfo — disse bem alto Pompeu, batendo com um pé.

— E eu digo-te que não poderás tê-lo — retorquiu Sila, tão alto como o outro.

O rosto largo e vermelho de Pompeu ganhou uma expressão ameaçadora e os seus lábios finos afastaram-se, revelando uns dentes brancos, muito pequenos.

— Pois lembra-te do que te vou dizer, Lúcio Cornélio Sila, Ditador de Roma: são mais aqueles que adoram o Sol nascente do que o Sol posto!

Por nenhuma razão que os fascinados ouvintes conseguissem entender, Sila desatou a rir. E riu-se, riu-se, riu-se, até às lágrimas, batendo com as mãos nas coxas e deixando cair e roçar pelo chão as muitas dobras da toga que segurava no braço esquerdo.

— Pois muito bem! — disse ele, quando conseguiu falar. — Celebra o teu triunfo! — E depois, agitado por novas gargalhadas, acrescentou: — Não fiques para aí especado, Magno, meu grande pateta! Ajuda-me a endireitar a toga!

— És um idiota, Magno — disse Metelo Pio a Pompeu logo que teve uma oportunidade de falar com ele em privado.

— Pois eu acho que fui muito inteligente — retorquiu Pompeu, enfatuadamente.

O Bacorinho, que ainda não fora cônsul, apesar de já estar quase na casa dos cinqüenta, estava bem conservado de aspecto; o cabelo castanho, encaracolado, só ganhara umas manchas grisalhas nas têmporas e, nos cantos dos olhos, as rugas davam-lhe um ar ainda mais atraente. Mesmo assim, ao lado de Pompeu, Metelo Pio era, do ponto de vista da beleza física, uma insignificância. E tinha consciência disso. Uma consciência triste, mais do que invejosa.

— Foste tudo menos inteligente — insistiu o Bacorinho, contente por ver aqueles olhos azuis, muito brilhantes, abrindo-se de incredulidade. — Eu conheço o nosso chefe muito melhor que tu, e posso garantir-te que ele é mais inteligente do que nós os dois juntos. Se ele tem algum defeito, é um defeito de temperamento — e não de carácter! E esse defeito não perturba minimamente o brilho da sua mente! Nem afecta a realização das suas acções, como homem ou como Ditador.

Pompeu fez um ruído de troça.

— Oh, Pio, essa conversa não faz sentido! Defeito? Mas a que defeito te referes?

— Ao seu sentido do ridículo, é claro. Prefiro cha-cha-chamar-lhe sentido do ridículo a chamar-lhe sentido de hu-hu-hu-humor — atrapalhou-se o Bacorinho, de novo gaguejando, e parou por um momento para disciplinar a língua. — Estou a pensar em coisas como a minha nomeação para Pontifex Maximus, quando toda a gente sabe que eu tropeço nas palavras. É um tipo de partida a que ele não consegue resistir.

Pompeu procurou pôr um ar entediado.

— Não faço a mínima ideia de onde queres chegar, Pio. Nem do que isso tem a ver comigo.

— Magno, Magno! Ele não tem feito outra coisa senão rir-se à tua custa! Era aí que eu queria chegar. Ele sempre pensou que tu devias celebrar o teu triunfo — que lhe importa a ele a tua idade ou o teu estatuto de cavaleiro? Tu és um herói militar e ele rodeia os heróis militares das maiores honras! Mas Sila queria ver até que ponto o caso era importante para ti e até onde chegarias para obter o triunfo. Nunca devias ter ido atrás do engodo. O que acontece é que agora tu já estás devidamente classificado e inserido no sistema de contabilidade mental de Sila. Ou seja: ele já sabe que a tua coragem é quase tão grande como a tua auto-estima, isto para não falar da tua ambição. Quase. Mas não tão grande. Ele sabe agora que, quando as coisas dão para o torto, tu arrepias caminho.

— Eu arrepio caminho? Que queres dizer com isso?

— Sabes perfeitamente o que eu quero dizer.

— Eu ia marchar sobre Roma!

— Disparate! — disse o Bacorinho, sorridente. — Tu ias marchar para Roma. Tu próprio o disseste. E eu acreditei. Tal como Sila.

Confundido, Pompeu fitou o seu crítico, sem saber ao certo o que devia — ou o que podia — dizer.

— Eu ganhei o meu triunfo.

— Sim, é verdade. Mas ele vai fazer-te pagar um preço que não terias de pagar se por acaso te tivesses portado bem.

— Preço? Que preço? — Pompeu abanou a cabeça, como um animal que fica furioso e confuso por estarem a espicaçá-lo. — Não há dúvida que hoje estás com queda para enigmas!

— Pois descansa, que hás-de perceber a solução! — retorquiu o Bacorinho, tão obscuro como antes.

E de facto Pompeu percebeu a solução do enigma, mas só no dia do seu triunfo. As pistas estavam todas lá; o problema de Pompeu era a excitação em que se encontrava e que lhe toldava o entendimento. A data do seu triunfo foi fixada para o décimo segundo dia de Março. No sexto dia de Março, Caio Flaco, o ex-governador da Gália Transalpina, celebrou o seu triunfo pelas vitórias sobre as tribos gaulesas rebeldes; e, no nono dia de Março, foi a vez de Murena, o ex-governador da Província da Ásia, celebrar as suas vitórias na Capadócia e no Ponto. Por isso, quando chegou a vez de Pompeu, Roma já estava farta de desfiles vitoriosos. Poucas foram as pessoas que compareceram à cerimónia, nada que se assemelhasse a uma multidão. Depois do magnificente espectáculo proporcionado por Sila, durante dois dias, o desfile de Flaco despertara ainda algum interesse; Murena pouca gente cativara e Pompeu atraíra apenas uns quantos populares. É que ninguém conhecia aquele nome, ninguém sabia da sua juventude ou beleza, ninguém se importava com ele. Outro triunfo?, perguntou-se Roma, e, encolhendo os ombros, pura e simplesmente ignorou.

Contudo, ao partir da Villa Publica para o seu desfile, Pompeu não estava particularmente preocupado; a notícia correria célere e as pessoas viriam a correr de todas as direcções quando soubessem do que havia de especial naquele triunfo! Quando virasse a esquina do Circus Maximus com a Via Triunfal, toda a cidade de Roma estaria lá à sua espera. O seu desfile era, em quase todos os aspectos, igual a todos os outros — em primeiro lugar, vinham os magistrados e os senadores, depois os músicos e os bailarinos, as carroças exibindo despejos de guerra e carros alegóricos representando vários incidentes da campanha, os sacerdotes e as vítimas sacrificiais, os cativos e os reféns, e por fim o general na sua quadriga, seguido pelo exército.

Até mesmo o traje de Pompeu era o que normalmente se vestia naquelas ocasiões — a toga púrpura bordada a ouro, a coroa de louros na cabeça, a túnica enfeitada com folhas de palma e coberta pela larga faixa púrpura. Mas quando chegou o momento de lhe pintarem o rosto com minim, recusou-se firmemente. Era vital para os seus planos que Roma visse a sua juventude e beleza, que Roma visse o seu rosto puro. A sua parecença com Alexandre, o Grande. Se o seu rosto ficasse transformado numa mancha vermelha, ninguém se aperceberia disso. Portanto, nada de miniml

Mas a ausência de minim não era a principal diferença entre Pompeu e todos os outros generais triunfantes; a grande diferença residia nos animais que puxavam a antiga quadriga triunfal em que vinha Pompeu. Em vez dos habituais cavalos brancos, Pompeu escolhera quatro enormes elefantes africanos que capturara na Numídia. Quatro domadores de elefantes trabalhavam desde então — em Útica e Tarento, na Via Ápia, em Cápua — para convencer os recalcitrantes paquidermes a servirem de bestas de carga, ainda que a carga fosse, para eles, muito leve. Um trabalho árduo e que não chegara ainda ao seu termo. De qualquer modo, Pompeu pôde iniciar o seu desfile num carro triunfal puxado por quatro elefantes. O seu companheiro no carro não conduzia: limitava-se a segurar numas rédeas ornamentadas, presas aos vistosos arreios usados por aquelas fabulosas criaturas. Os elefantes eram controlados pelos domadores, cada um dos quais se encontrava sentado entre um par de rugosos e maciços cachaços cinzentos, a mais de três metros do solo. Logo que a notícia se espalhasse — e havia de espalhar-se, rapidamente! —, a multidão aglomerar-se-ia nas ruas por onde passava o cortejo, para assistir àquele extraordinário espectáculo — o Novo Alexandre, puxado por animais que Roma incluía entre os mais sagrados. Elefantes! Elefantes gigantescos, com umas orelhas do tamanho de velas e patas com mais de dois metros de comprimento!

O cortejo partia da Villa Publica, no Campo de Marte, e seguia depois por uma rua estreita, com villae e edifícios de apartamentos de ambos os lados, que serpeava em torno da base do monte Capitolino e que se aproximava das Muralhas Sérvias, sob os escarpados penhascos da ponta oeste do monte; era aí que ficava a Porta Triunfal, que o cortejo tinha de atravessar para entrar na cidade propriamente dita. Como o triunfo de Pompeu era o terceiro em seis dias, os senadores e os magistrados estavam já francamente cansados: daí que este primeiro contingente fosse escasso e desejasse acabar com aquilo rapidamente. Seguindo o exemplo dos que iam na frente do cortejo, músicos, bailarinos, carroças, carros alegóricos, sacerdotes, vítimas sacrificiais, cativos e reféns moviam-se também rapidamente. Pompeu depressa ficou para trás, pois a passada dos elefantes, como seria de prever, era excessivamente lenta.

Quando finalmente chegou à Porta Triunfal, a quadriga teve de parar. O exército — sem espadas nem lanças, mas com bastões envolvidos em folhas de louro — também parou. O carro triunfal era muito antigo (tão antigo que vinha da era etrusca e fora utilizado num sem-número de cerimónias) e, como todos os carros antigos, tinha um estrado muito mais baixo que os clássicos carros de guerra, de duas rodas, ainda usados por algumas tribos gaulesas; por isso, Pompeu não conseguia ver o que acontecia para lá dos majestáticos rabos do par de elefantes que se encontrava à sua frente. Ao princípio, limitou-se a bufar de impaciência; porém, depressa ficou farto de esperar e mandou o seu condutor à frente para ver o que se passava.

O condutor voltou num instante, com uma expressão horrorizada.

— Triunfador, os elefantes são demasiado grandes! Não conseguem passar pela porta!

Pompeu ficou de cara à banda. Sentiu um formigueiro percorrer-lhe a pele, gotas de suor formando-se na testa.

— Mas que disparate! — retorquiu.

— É verdade, Triunfador, é verdade! Os elefantes são tão grandes que não conseguem atravessar a porta — insistiu o condutor.

Pompeu, gloriosamente ataviado, desceu imediatamente do seu carro e correu para a porta. Os domadores dos dois paquidermes da frente estavam junto à porta, com um ar perfeitamente impotente. Mal viram Pompeu, correram para ele.

— A porta é muito pequena — disse um deles.

A caminho da porta, Pompeu imaginara uma solução: desatrelaria os elefantes e fá-los-ia passar um a um; agora, porém, podia ver o que não conseguira ver da quadriga; não era uma questão de largura, mas sim de altura! Aquela porta — a única por onde podia passar um cortejo triunfal — era suficientemente larga para permitir a passagem de um exército, com oito soldados lado a lado, ou mesmo para permitir a passagem de um carro puxado por quatro cavalos lado a lado ou de um grande carro alegórico; mas não era suficientemente alta para deixar passar a cabeça de um velho e poderoso elefante africano.

— Muito bem — disse Pompeu, confiante. — Desatrelem-nos e conduzam-nos um a um. Mas é claro que têm de obrigá-los a baixar as cabeças.

— Eles não estão treinados para isso — disse um dos domadores.

— Isso importa-me tanto como eles não estarem treinados para cagar pelo buraco de uma agulha — atirou-lhes Pompeu, cujo rosto estava a ficar tão vermelho como se tivesse sido pintado com minim. — Façam o que lhes mando!

O primeiro elefante recusou-se a baixar a cabeça.

— Puxem-lhe pela tromba e façam-no passar — disse Pompeu.

Porém, por muito que lhe puxassem a tromba ou se pendurassem nas suas gloriosas presas, a verdade é que ninguém conseguia convencer o animal a curvar a cabeça; em vez disso, começou a ficar furioso. A sua inquietação acabou por contagiar os outros, dois dos quais estavam ainda atrelados ao carro. Estes começaram então a recuar, ameaçando assim os porta-estandartes de Pompeu, vestidos com peles de leão, que se encontravam imediatamente atrás.

Enquanto os domadores faziam o possível e o impossível para lhe obedecer, Pompeu continuava a berrar todas as obscenidades correntes na gíria militar e a proferir ameaças que deixavam os domadores a tremer de medo. Tudo em vão. Os elefantes eram demasiado grandes e demasiado rebeldes para atravessarem a Porta Triunfal.

Passara já mais de uma hora quando Varrão chegou ao local para ver o que se passava. Varrão, evidentemente, seguia na frente do cortejo, ao lado dos senadores.

Num instante, o amigo de Pompeu percebeu tudo. Sentiu uma vontade terrível de se atirar por terra e desatar a rir incontrolavelmente. Aí estava uma coisa que não podia fazer, se por acaso — e a expressão de Pompeu não deixava margem para dúvidas — queria viver.

— Manda Escápcio e alguns dos seus homens buscar cavalos aos Stabulae — atirou-lhe Varrão. — Acorda, Magno! Deixa-te de fantasias e pensa! O resto do desfile já chegou ao Fórum e ninguém sabe por que estás atrasado. Sila está no pódio de Castor, cada vez mais nervoso e impaciente, e os organizadores do banquete em Júpiter Estator já estão como loucos!

A resposta de Pompeu foi desatar a chorar; e, chorando que nem uma Madalena, sentou-se nas lajes sujas, deixando assim num triste estado todos os seus atavios triunfais. Por isso, foi Varrão quem mandou buscar os cavalos e quem dirigiu o desatrelamento dos elefantes. Entretanto, a cena complicara-se com a chegada de vários jardineiros do mercado da Via Recta, armados de pás e carrinhos de mão, e determinados a recolher aquele que era considerado o melhor adubo do mundo. Caminhando despreocupadamente entre as gigantescas pernas dos paquidermes, os jardineiros andavam numa azáfama infernal, recolhendo montes de esterco, tão grandes como rodas de queijo de Arpino. Enquanto gritava ordens e enxotava jardineiros, só a pressa e a compaixão impediam Varrão de dar largas à sua hilaridade. Até que, por fim, os domadores conseguiram dominar os elefantes e conduzi-los na direcção do Fórum Holitorium — ninguém poderia tê-los obrigado a seguir pelo mesmo caminho por onde tinham vindo, pois havia seis legiões a congestionar a estrada.

Entretanto, a primeira metade do desfile tinha parado no Fórum Romano, em frente da imponente fachada jónica do templo de Castor e Pólux — no qual se encontrava Sila, com o seu Senhor do Cavalo, os dois cônsules e alguns familiares e amigos. A cortesia e o costume obrigavam a que o triunfador fosse o homem mais importante tanto no cortejo como no banquete e, por isso, estes augustos chefes de Roma não participavam no desfile nem estariam presentes no banquete.

Toda a gente estava já nervosa, de tanto esperar; por outro lado, todos se queixavam do frio. Estava um bonito dia, mas soprava um vento norte gelado e o sol que chegava ao baixo Fórum não era suficientemente forte para derreter os pingentes de gelo que pendiam dos beirais do templo. Finalmente, Varrão regressou, subiu os degraus do templo de Castor e Pólux dois a dois e curvou-se para segredar qualquer coisa ao ouvido de Sila. Um acesso tremendo de riso despertou a atenção de todos os presentes, subitamente curiosos; depois, ainda a rir, Sila levantou-se e deslocou-se até à extremidade do pódio, a fim de falar à multidão.

— Esperem um pouco mais — gritou. — O nosso triunfador vem aí, finalmente! Decidiu melhorar o aspecto do seu cortejo usando elefantes para puxar a sua quadriga, em vez de cavalos! Mas os elefantes não cabiam na Porta Triunfal e por isso ele teve de mandar vir cavalos! — Sila fez uma pausa e exclamou, de forma perfeitamente audível: — Ah, quem me dera lá estar para ver o espectáculo!

Risinhos abafados da multidão pontuaram este anúncio, mas só os homens que conheciam Pompeu — Metelo Pio, Varrão Lúculo, Crasso — expressaram livremente a sua hilaridade.

— O problema é que ofender Sila não é uma atitude inteligente — disse Metelo Pio para os que o rodeavam. — Há algo em Sila que já tive oportunidade de verificar repetidas vezes. Ele tem uma espécie de relação exclusiva com a deusa Fortuna. Para ver um homem humilhado, não precisa de fazer um grande esforço. A deusa fá-lo por ele. Sila é o grande favorito de Fortuna.

— Há uma coisa que eu não consigo perceber — disse Varrão Lúculo, intrigado. — Porque é que Pompeu não mediu a porta antes de optar pelos elefantes? Façamos-lhe justiça: ele costuma ser muito eficiente!

— Sim, ele é eficiente, mas só enquanto as suas fantasias não afogam o bom senso — disse Varrão, aproximando-se do grupo, ofegante; viera a correr desde a Porta Triunfal e subira a correr os degraus de Castor. — Pompeu estava tão entusiasmado com os elefantes que não lhe passou uma única vez pela cabeça que alguma coisa podia correr mal. Pobre Magno, estava desfeito.

— Para ser franco, tenho pena dele — disse Varrão Lúculo.

— Também eu. Ele já deve ter percebido o que eu lhe disse noutro dia — afirmou Metelo Pio, fitando atentamente o rosto vermelho de Varrão. — Como é que ele está a reagir?

— Já deve estar bem quando cá chegar — disse Varrão, demasiado leal para descrever o acesso de choro.

E de facto Pompeu conduziu o resto da sua parada triunfal com encanto e dignidade, ainda que fosse evidente, inclusivamente para o próprio, que as duas horas de espera tinham transformado o seu triunfo numa manifestação perfeitamente prosaica. Poucas pessoas assistiam nas ruas ao desfile; comparados com os elefantes, os cavalos eram uma atracção demasiado vulgar; e, para cúmulo do azar, Escápcio não conseguira arranjar melhor do que quatro medíocres cavalos baios, que se arrastavam pelo caminho.

Só quando entrou no templo de Júpiter Estator, onde decorria o banquete, é que Pompeu compreendeu por completo até que ponto os homens importantes de Roma se divertiam com o seu fiasco. Na realidade, a provação começara antes, quando vinha a descer o Capitólio, logo após o encerramento da cerimónia do triunfo; Pompeu encontrara no caminho um grupo de gente aglomerada à volta da base da estátua de Cipião Africano, rindo desalmadamente. No entanto, quando se aproximou, toda a gente se desviou para que ele pudesse ver bem o que algum indivíduo mais espirituoso tinha escrito no plinto, com um pau de giz e em letras garrafais: O Africano que está lá em cima Pelos elefantes tinha muita estima. O Carniceiro, miúdo e já cagão, P’los elefantes não tem devoção!

Dentro do templo de Júpiter Estator as coisas ainda correram pior. Alguns dos seus convidados limitaram-se a dizer com grande ênfase a palavra ”Magno”, quando se dirigiam a ele, mas outros fingiam um pequeno deslize na pronúncia e, em vez de ”Magnus”, diziam ”Magus” — um ridículo sábio da Pérsia — ou faziam, deliciados, um trocadilho com ”Manus” (mão), o qual poderia sugerir todo o tipo de interpretações (incluindo que Pompeu estaria sempre à mão de semear quando era preciso adular Sila ou que ele seria capaz de adular Sila usando a sua mão). Muito poucos, como Metelo Pio e Varrão Lúculo, mantiveram uma atitude cortês; uns quantos eram amigos e parentes de Pompeu, e estes ainda tornaram as coisas piores quando, mostrando-se muito indignados, desafiaram para a luta todos os que troçavam de Pompeu; alguns, como Catulo e Hortênsio, tornavam-se notados devido à sua ausência.

No entanto, Pompeu fez um novo amigo; nem mais nem menos do que Públio Cornélio Sila, que só muito recentemente descobrira que era sobrinho do Ditador. Foi Catilina quem lho apresentou.

— Não sabia que Sila tinha um sobrinho — disse Pompeu.

— Ele também não — retorquiu Públio Sila, com um ar divertido, e acrescentou: — Aliás, só muito recentemente é que eu soube.

Catilina desatou a rir.

— É verdade! — disse ele para Pompeu, agora obviamente confuso.

— É melhor esclarecerem-me — disse Pompeu, satisfeito por ouvir alguém rir por outra razão que não ele.

— Eu cresci pensando que era filho de Sexto Perquitieno — explicou Públio Sila. — Vivi na casa ao lado de Caio Mário durante toda a minha vida! Quando o meu avô morreu e o meu pai herdou os seus bens, nenhum de nós suspeitava da verdade. Mas o meu pai era amigo de Cina e, por isso, quando as listas dos prescritos começaram a aparecer, pensou sempre que o seu nome ia surgir à cabeça de uma delas. E tanto se ralou com isso que acabou por morrer.

Isto foi dito de uma forma tão despreocupada que Pompeu concluiu correctamente que não havia grande amor entre pai e filho — o que não era uma surpresa, tendo em conta que o velho Sexto Perquitieno (e pai de Públio Sila) fora odiado por quase toda a Roma.

— Estou fascinado — disse Pompeu.

— Eu descobri quem era quando me pus a vasculhar um baú cheio de documentos que pertencera ao meu avô — disse Públio Sila. — É que nesse baú encontrei os papéis da adopção! O meu pai fora adoptado pelo meu avô antes de o meu tio, o Ditador, ter nascido — ele nunca soube que tinha um irmão mais velho. De qualquer modo, achei que era melhor mostrar os papéis ao tio Lúcio antes que alguém pusesse o meu nome numa lista de proscritos!

— bom, de facto até tens parecenças com Sila — disse Pompeu, sorridente. — Julgo que não deve ter sido difícil convencê-lo.

— Não foi nada difícil! Não é mesmo um golpe de sorte? — perguntou Públio Sila, com o ar mais feliz deste mundo. — Agora, tenho toda a riqueza dos Perquitienos, safei-me das prescrições e, provavelmente, ainda herdo uma parte dos milhões do tio Lúcio.

— Crês que ele vai fazer de ti uma espécie de sucessor? Ao ouvir tal pergunta, Públio Sila não pôde impedir uns risinhos, para os quais, aliás, também contribuía o muito vinho que bebera.

— O quê? Eu? Suceder a Sila? Por todos os deuses, não! Eu, meu caro Magno, não tenho quaisquer ambições políticas!

— Já estás no Senado? Catilina meteu-se na conversa.

— Sila autorizou-nos a assistir às reuniões do Senado, mas oficialmente ainda não nos fez senadores. Públio Sila e eu pensámos que tu eras capaz de precisar de gente jovem e amiga à tua volta, de maneira que viemos até cá provar os comes e ver se te animávamos.

— Ainda bem que vieram — disse Pompeu, sinceramente grato.

— Não deixes que estes arrogantes defensores da mos maiorum te deitem abaixo — disse Catilina, dando palmadinhas nas costas de Pompeu.

— Alguns de nós estão verdadeiramente deliciados pelo facto de um jovem como tu ter tido um triunfo. Muito em breve estarás no Senado, disso podes estar certo. Sila tenciona encher o Senado de homens de quem os obcecados da mos maiorum não gostam!

E de repente Pompeu enfureceu-se.

— No que me diz respeito — disse ele, entredentes —, o Senado bem que pode desaparecer pelo seu próprio orifício acima! Eu sei perfeitamente o que pretendo fazer da minha vida e isso não inclui tornar-me membro do Senado! Antes de eu ajustar contas com essa instituição — ou antes de entrar nela, obviamente! —, pretendo provar que o Senado não pode impedir um homem notável de exercer o cargo ou a chefia que muito bem entender — e fá-lo-ei como cavaleiro, e não como senador!

Catilina ergueu uma das suas finas e negras sobrancelhas; quanto a Públio Sila, parecia não ter entendido o significado daquela observação.

Pompeu mirou a sala e, de súbito, todo o seu furor desapareceu para dar lugar a um sorriso radiante.

— Ah! Lá está ele! Também está sozinho no seu divã. Venham, venham comer comigo e com o meu cunhado Mémio. Mémio é a melhor das criaturas ao cimo da terra.

— Tu devias era estar a comer com todos os arrogantes defensores da mos maiorum que tiveram o desplante de aparecer cá hoje! — disse Catilina. — Compreenderíamos perfeitamente que te juntasses a Metelo Pio e aos seus amigos. Pois resolves deixar-nos com Caio Mémio! Vamos sentir-nos tão felizes com dois velhos Peripatéticos discutindo para que serve o umbigo de um homem.

— Pois é, mas esta é a minha festa triunfal e eu como com quem muito bem me apetecer — disse Pompeu.

No início de Abril, Sila publicou uma lista de duzentos novos senadores, prometendo que, nos próximos meses, sairiam mais. O primeiro nome da lista era Cneu Pompeu Magno, que, de imediato, foi ter com Sila.

— Eu não entro para o Senado! — exclamou ele, irado. Sila olhou fixamente para a sua visita, com um ar de espanto.

— Porquê? Sempre pensei que eras capaz de revolver meio mundo para entrar para o Senado!

A ira desapareceu imediatamente; o instinto de conservação ficou em primeiro plano no momento em que o jovem compreendeu como havia de levar Sila a ver um Pompeu completamente diferente da imagem que tinha dele; no fim de contas, já tinha feito um grande esforço para construir uma certa imagem em intenção de Sila — que lhe custava um esforço mais? Portanto, esfria, Magno! Esfria e planeia bem a coisa. Encontra uma razão em que Sila acreditará porque se ajusta à ideia que ele tem de mim. Não! Não! Dá-lhe uma razão que se ajuste à ideia que ele tem de si mesmo.

— Tudo isto tem a ver — disse o jovem, fitando a expressão séria e perplexa de Sila — com a lição que tu me deste com aquele maldito triunfo. — Respirou fundo. — Desde então, reflecti muito, Lúcio Cornélio. E compreendi que era demasiado jovem e que me faltava instrução. Por favor, Lúcio Cornélio, deixa-me encontrar o meu caminho para chegar ao Senado no devido tempo. Se eu entrar agora para o Senado, vão-se rir de mim durante anos! — O que, pensou Pompeu, é inteiramente verdade! Sim, porque eu nãovou entrar para o Senado numa altura em que todos se riem de mim. Eu entrarei para o Senado quando eles ficarem a tremer da cabeça aos pés só de me verem!

Sila encolheu os ombros.

— Taz como quiseres, Magno.

— Obrigado, eu prefiro assim, francamente. Esperarei até que faça qualquer coisa que os leve a esquecer-se dos elefantes. Por exemplo, assumir as funções de questor, de forma decente e conscenciosa, depois de fazer trinta anos.

Pompeu já falara demasiado; os olhos claros de Sila estavam agora francamente divertidos, como se a sua mente tivesse penetrado em Pompeu mais do que Pompeu queria. Mas Sila não disse mais que isto:

— Ora aí está uma óptima ideia! Eu retiro o teu nome antes de apresentar a minha lista à Assembleia Popular para ratificação.vou propor ao Povo a ratificação de todas as minhas leis mais importantes e começarei precisamente por esta. De qualquer modo, quero que estejas presente no Senado amanhã. É bom que todos os meus legados de guerra assistam ao princípio. Por isso, trata de aparecer.

Pompeu não faltou.

— Começarei — disse o Ditador com uma voz forte — por discutir a Itália e os Italianos. De acordo com as promessas que fiz aos chefes italianos, farei com que todos os italianos sejam inscritos regularmente como cidadãos de Roma, com uma igual distribuição por todo o espectro das trinta e cinco tribos. Não poderá haver mais tentativas para impedir o acesso do povo italiano ao sufrágio universal, através da inclusão dos seus votos num número restrito de tribos seleccionadas. Dei a minha palavra de honra quanto a este ponto e honrarei a minha palavra.

Sentados lado a lado na bancada do meio, Hortênsio e Catulo trocaram um olhar significativo; nenhum deles apoiava aquela concessão de direitos a um povo que, segundo eles, valia tanto como um atacador de uma bota de um Romano.

Sila remexeu-se um pouco na sua cadeira curul.

— Lamentavelmente, verifico que é impossível honrar a minha promessa de distribuir os libertos de Roma pelas trinta e cinco tribos. Terão de permanecer inscritos na Esquilina ou na Suburana urbanas. Faço isto por uma razão específica: garantir que um homem que possui milhares de escravos não se sinta tentado, no futuro, a libertar um vasto número desses homens, sobrecarregando assim a sua própria tribo rural de clientes libertos.

— Espertalhão! — disse Catulo a Hortênsio.

— Não lhe escapa nada — murmurou Hortênsio. — Até parece que estava a pensar em Marco Crasso, que está a abarrotar de escravos!

Sila passou então à discussão das cidades e das terras.

— Brindísio, uma cidade que me tratou a mim e aos meus homens com as honras que merecíamos, será recompensada, ficando isenta de todos os direitos alfandegários e outros impostos.

— Uh! — fez Catulo. — com este decreto, Brindísio vai tornar-se o porto mais popular de Itália!

O Ditador recompensou algumas regiões, mas castigou muitas mais, embora segundo graus diversos; Preneste foi talvez a que mais sofreu, embora Sulmona, uma cidade menos importante, fosse arrasada; Cápua, pelo seu lado, voltou ao seu velho estatuto e perdeu todas as suas terras, que passaram a fazer parte do ager publicus romano.

Catulo deixou praticamente de ouvir Sila quando este ia a meio da infindável lista das cidades; de repente, porém, uma rude cotovelada de Hortênsio fê-lo regressar das nuvens.

— Quinto, ele está a falar de ti — disse Hortênsio.

— ...Quinto Lutácio Catulo, meu leal seguidor, por este meio te faço assumir a tarefa da reconstrução do templo de Júpiter Optimus Maximus no Capitólio. — Os lábios pregueados de Sila abriram-se num sorriso que lhe deixava à vista as gengivas; e, nos seus olhos, brilhou uma chama de desprezo e troça. — A maior parte dos fundos virá dos rendimentos gerados pelo nosso novo ager publicus. Mas espero que tu, meu caro Quinto Lutácio, completes esta fonte de rendimentos com os fundos da tua própria bolsa.

Literalmente de cara à banda, Catulo ficou quieto, paralisado por um medo imenso, pois compreendera que aquele era o castigo de Sila por ter permanecido em Roma, em total segurança, no tempo de Cina e Carbão.

— O nosso Pontifex Maximus, Quinto Cecílio Metelo Pio, deverá restaurar o templo de Ops, danificado pelo mesmo incêndio — prosseguiu calmamente Sila. — Contudo, este projecto terá de ser inteiramente financiado pelos fundos públicos, já que Ops é a manifestação da riqueza pública de Roma. No entanto, exijo que seja o próprio Pontifex Maximus a reconsagrar esse templo logo que a obra esteja concluída.

— O que nós nos vamos divertir com o gago! — comentou Hortênsio.

— Acabei de publicar uma lista contendo os nomes de duzentos homens que elevei ao cargo de senadores — prosseguiu Sila. — Cneu Pompeu Magno informou-me de que não deseja por ora integrar o Senado. O seu nome foi riscado.

Esta informação deixou o Senado na maior agitação; todos os olhos se viraram para Pompeu, que estava sozinho, perto das portas, muito satisfeito consigo mesmo, e com um ar sorridente e respeitável.

— Tenciono, no futuro, integrar mais cerca de cem homens no Senado. Dessa forma, o total de senadores aproximar-se-á dos quatrocentos, pois perdemos muitos senadores na década passada.

— Uma pessoa até é capaz de pensar que não foi ele quem matou muitos deles — comentou Catulo para Hortênsio. Mas nesse momento, Catulo já pensava nas avultadas somas que teria de arranjar para a construção do Grande Templo. O Ditador prosseguiu.

— Tentei ir buscar os meus novos membros do Senado às famílias senatoriais, embora tenha incluído cavaleiros sem antecedentes senatoriais na sua família, desde que as suas linhagens honrassem o Senado. Não encontrarão arrivistas na minha lista! Contudo, no que toca a um dos tipos de novos senadores, ignorei todas as qualificações, desde o censo, totalmente não oficial, de um milhão de sestércios, até aos antecedentes familiares adequados. Estou a referir-me aos militares que revelaram um valor excepcional. Pretendo que Roma honre todos esses homens como fazia nos tempos de Marco Fábio Buteão. Nas gerações recentes, ignorámos por completo o herói militar. Pois bem, eu porei um termo a isso! Se um homem ganhar uma Coroa de Erva ou uma Coroa Cívica, entrará automaticamente para o Senado, seja ele quem for, ou sejam quais forem os seus antecedentes. Deste modo, o pouco sangue novo que deixei entrar no Senado será, pelo menos, sangue corajoso! E espero que venha a haver nomes famosos entre os premiados com as nossas principais coroas: não nos fica bem que os mais corajosos venham de famílias de que nunca ouvimos falar!

Hortênsio resmungou.

— Ora aqui está um édito popular!

Mas Catulo não conseguia abstrair-se da pesada carga financeira que teria de suportar; por isso, limitou-se a espreitar para o cunhado com um olhar que inspirava piedade.

— Só mais uma coisa e encerrarei esta reunião — disse Sila. — Cada um dos nomes da minha lista de novos senadores será apresentado à Assembleia do Povo, seja ele patrício ou plebeu, e pedirei a esse corpo que proceda à sua votação. — Levantou-se, e concluiu: — A sessão está encerrada.

— Como é quevou arranjar o dinheiro? — lamentava-se Catulo ao abandonar a Cúria Hostília.

— Não o arranjes — retorquiu calmamente Hortênsio.

— Mas tenho de o arranjar!

— Ele vai morrer, Quinto. Enquanto não morrer, terás de adoptar as tácticas necessárias para atrasar a coisa. Depois de ele morrer, quem é que se preocupa com o caso? Deixa ser o Estado a pagar.

— Tudo isto por causa do flamen Dialis — comentou Catulo, enraivecido. — Foi ele quem causou o fogo, ele que pague o novo Templo!

Hortênsio, que era um perito em leis, não podia estar de acordo com aquela observação.

— Será bom que não te oiçam dizer uma coisa dessas! O flamen Dialis não pode ser considerado responsável por um fenômeno puramente acidental, a menos que tenha sido formalmente acusado e julgado num tribunal, tal como qualquer outro sacerdote. Sila não explicou por que razão o jovem César terá fugido de Roma, mas a verdade é que não o baniu. Nem apresentou nenhuma acusação formal contra ele.

— Ele é sobrinho de Sila por casamento!

— Precisamente, meu caro Quinto.

— Ah, cunhado, mas por que havemos nós de nos ralar com tudo isto? Há momentos em que me apetece pegar no meu dinheiro todo, vender as minhas propriedades e ir viver para Cirenaica — disse Catulo.

— Nós ralamo-nos porque o nosso nascimento assim o determina — retorquiu Hortênsio.

Os novos e antigos senadores reuniram-se dois dias depois para ouvir Sila anunciar que tencionava abolir a eleição dos censores, pelo menos durante os tempos mais próximos; conforme explicoft, a reorganização que ia operar nas finanças do Estado tornaria desnecessária a realização de contratos e, por outro lado, durante pelo menos mais uma década não faria sentido fazer censos da população.

— Nessa altura, poderão reexaminar a questão dos censores — disse o Ditador num tom grandioso. — Não estou a pensar legislar no sentido de acabar completamente com os censores.

Iria, contudo, fazer algo de especial relativamente aos homens da sua própria ordem, o Patriciado.

— Séculos passados sobre a primeira revolta plebéia — disse ele —, o estatuto de patrício acabou por ter muito pouco significado. Actualmente, a única vantagem que um patrício possui sobre um plebeu consiste na possibilidade de assumir certos cargos religiosos que estão vedados aos plebeus. Não considero este estado de coisas digno da mos maiorum. Um homem que nasceu patrício possui uma linhagem que remonta de forma clara aos tempos anteriores aos reis. O mero facto de existir mostra que a sua família serve Roma há mais de meio milénio. À luz do que acabo de dizer, creio que é justo que o patrício goze de alguma honra especial — menor talvez, mas exclusiva da sua classe. Assim, relativamente à idade necessária para disputar um cargo curul, seja ele o de pretor ou o de cônsul,vou legislar no sentido de que os patrícios o possam fazer com menos dois anos de idade que os plebeus.

— O que ele quer é salvaguardar os seus — disse o plebeu Marco Júnio Bruto à sua esposa, Servília, uma patrícia.

Servília encontrara o marido ligeiramente mais comunicativo naqueles tempos em que o perigo pairara sobre a sua cabeça. Desde que o sogro dela morrera em Lilibeu, em conseqüência das operações de limpeza lançadas por Pompeu, Bruto vivia no maior sobressalto. O seu pai viria a ser prescrito? E ele, seria prescrito? Como filho de um homem prescrito, não podia herdar nada e perderia tudo; e se fosse proscrito, perderia a vida. Mas o nome do velho Bruto não fazia parte da lista dos quarenta senadores proscritos e, desde essa primeira lista, não tinham sido publicados mais nomes de senadores. Bruto fazia votos para que o perigo tivesse passado — mas não podia estar completamente certo. Ninguém podia estar certo de nada! É que Sila não se esquecia de fazer, de quando em quando, algumas insinuações ameaçadoras.

Mas Bruto mostrava-se menos distante em relação a Servília porque pensava que, muito provavelmente, fora o seu casamento com ela que evitara a sua prescrição. Esta nova honra que Sila atribuía aos patrícios era apenas mais uma maneira de ele dizer que os patrícios constituíam uma classe especial, uma classe que merecia mais honras do que os mais ricos e poderosos plebeus de famílias consulares. E, no seio do Patriciado, haveria algum nome mais augusto do que o de Servílio Cepião?

— É pena — retorquiu Servília — que o nosso filho não possa ter um estatuto de patrício.

— O meu nome é suficientemente antigo e reverenciado para que o nosso filho possa orgulhar-se dele — replicou Bruto. — Nós, os Júnios Brutos, descendemos do fundador da República.

— Sempre achei estranho — disse calmamente Servília — que, sendo as coisas como tu as pões, os Júnios Brutos do nosso tempo não sejam patrícios. Porque o fundador da República era por certo1 0patrício. Tu costumas dizer que houve uma adopção por uma família plebéia, por uma questão de conveniência, mas uma família plebéia chamada Júnio Bruto só pode ter descendido de um escravo ou de um camponês pertencente a uma família patrícia.

Este discurso, que Bruto não pôde deixar de engolir, era mais um índice de que Servília já não era uma esposa calada e obediente. Servília tinha agora menos medo do divórcio e, ao mesmo tempo, sentia-se muito mais poderosa. O seu filho, agora com dois anos, era tudo para ela. Ao passo que o pai da criança não significava rigorosamente nada. Se tencionava preservar o estatuto do marido, era unicamente por causa do filho. Mas isso não implicava que tivesse de ter um comportamento obsequioso em relação ao marido, como acontecia antes da traição do velho Bruto.

— A tua irmã mais nova é que está bem — disse Bruto, com uma ligeira dose de malícia. — Uma patrícia casada com um patrício! Ela e Druso Nero acertaram em cheio!

— Druso Nero é um plebeu — disse Servília, com um ar altivo. — Pode ter nascido Cláudio, mas o meu tio Druso adoptou-o. Ele é um Lívio, com uma posição igual à tua.

— De qualquer modo, vaticino que há-de enriquecer.

— Druso Nero tem vinte anos e inteligência é coisa que ele desconhece. O nosso filho, só com dois anos, é mais inteligente do que ele — atirou-lhe Servília.

Bruto lançou-lhe um olhar cauteloso; já se tinha apercebido de que a mulher se dedicara ao filho de uma forma impressionante. Era o mínimo que se podia dizer: impressionante. Uma verdadeira leoa!

— Seja como for — disse Bruto, pacificamente — Sila dir-nos-á o que pretende depois de amanhã.

— Tens alguma ideia do que ele vai fazer?

— Só depois de amanhã é que poderei ter.

No dia em questão, Sila atacou o problema das eleições e dos cargos eleitos com uma expressão que não admitia controvérsias ou discussões.

— Estou farto de competições eleitorais realizadas à toa e na maior confusão — disse ele. — Legislarei, por isso, no sentido de fixar um procedimento correcto para as eleições. De futuro, todas as eleições decorrerão em Quinctilis, ou seja, cinco a seis meses antes de um eleito iniciar as suas funções. Durante o período de espera, o curul ganhará uma nova importância no Senado. Os cônsules eleitos falarão imediatamente a seguir aos cônsules em funções, e os pretores eleitos usarão da palavra imediatamente após os pretores em funções. A partir de agora, o Princeps Senatus, os ex-censores e consulares falarão apenas depois do último pretor eleito. É um desperdício de tempo ouvir homens que já ocuparam determinados cargos antes de ouvirmos os homens que os ocupam ou que vão ocupá-los.

Todos os olhos se viraram para Flaco Princeps Senatus, fortemente afectado por este édito, mas ele permaneceu quieto, pestanejando ligeiramente, aparentemente nada perturbado.

Sila prosseguiu.

— As eleições curuis da Assembleia das Centúrias realizar-se-ão em primeiro lugar, no dia anterior aos Idos de Quinctilis. Depois, seguir-se-ão as eleições para questores, edis curuis, tribunos dos soldados e outras posições menores na Assembleia do Povo, dez dias antes das Calendas de Sextilis. E, finalmente, na Assembleia da Plebe, as eleições plebéias decorrerão numa data entre dois a seis dias antes das Calendas.

— Não está mal de todo — disse Hortênsio a Catulo. — Saberemos todos o nosso destino eleitoral muito antes do fim do ano.

— E gozaremos de uma nova importância — disse Catulo, satisfeito.

— Voltemos agora aos cargos propriamente ditos — disse Sila. — Depois de completar a minha lista de novos senadores, tenciono fechar a porta. A partir desse dia, a entrada no Senado só será possível através do cargo de questor, que um homem poderá disputar a partir do momento em que tenha trinta anos e nunca antes. Haverá vinte questores eleitos todos os anos, o que é um número suficiente para contrabalançar eventuais mortes de senadores e manter a Casa cheia. Há duas pequenas excepções que não afectarão os números globais: um homem eleito tribuno da plebe e que ainda não seja senador continuará a entrar para o Senado através do seu cargo. E um homem que tenha sido premiado com a Coroa de Erva ou com a Coroa Cívica será promovido ao Senado automaticamente.

Remexeu-se um pouco na cadeira e fitou o seu rebanho mudo.

— Serão eleitos oito pretores todos os anos. Um plebeu não poderá disputar a eleição de pretor enquanto não tiver feito trinta e nove anos, mas um patrício poderá fazê-lo com menos dois anos de idade, como já afirmei. Haverá um período de espera de dois anos entre a eleição de um homem como pretor e a sua eventual eleição como cônsul. Só será possível disputar o cargo de cônsul depois de se ter sido pretor. E reinstaurarei a lex Genucia com toda a força do seu texto inicial. Ou seja, de acordo com essa lei, um homem — patrício ou plebeu! — só poderá disputar o cargo de cônsul pela segunda vez depois de um período de espera de dez anos. Não permitirei que haja mais Caios Mários! E isso, todos acharam, era, de facto, excelente!

Porém, quando Sila apresentou a sua legislação para cancelar os poderes dos tribunos da plebe, a aprovação não foi tão forte, nem tão generalizada. Ao longo dos vários séculos de existência da República, os tribunos da plebe tinham vindo a ganhar cada vez mais poderes legislativos, transformando a sua Assembleia no mais poderoso dos corpos legislativos. Em muitos casos, o principal objectivo dos tribunos da plebe consistira em perturbar os poderes do Senado (em grande medida não inscritos nas leis) e em reduzir a importância dos cônsules.

— Tudo isso acabou — disse Sila, muito satisfeito. — De futuro, os tribunos da plebe ficarão com muito poucos direitos; ficarão nomeadamente com o direito a exercer o ius auxilii ferendi.

A sala ficou desde logo extremamente agitada; depois de muitos murmúrios e remexidas, os senadores, de cenho franzido e com um ar desolado, voltaram a fixar-se em Sila.

— Farei com que o Senado seja o corpo supremo! — atroou a voz de Sila. — Para tal, terei de tornar o tribunato da plebe impotente — e fá-lo-ei! Segundo as minhas novas leis, nenhum homem que tenha sido ou venha a ser tribuno da plebe poderá voltar a assumir um cargo de magistrado — ou seja, não poderá tornar-se edil, pretor, cônsul ou censor! E só poderá voltar a disputar o cargo de tribuno da plebe dez anos depois. Poderá exercer o ius auxilii ferendi, mas apenas na sua forma original, ou seja, resgatando um membro individual da Plebe das garras de um magistrado. Nenhum tribuno da plebe poderá considerar uma lei que ameace a Plebe como um todo abrangida por esse direito! Tal como não poderá integrar nesse direito um tribunal devidamente convocado e reunido!

Os olhos de Sila fixaram-se, estranhamente, em dois homens que não podiam disputar o cargo de tribuno da plebe porque eram patrícios — Catilina e Lépido.

— O direito de veto do tribuno da plebe — prosseguiu — será severamente restringido. O tribuno da plebe não poderá vetar decretos senatoriais, leis aprovadas pelo Senado, o direito do Senado a nomear governadores provinciais ou comandantes militares, nem o direito do Senado de conduzir os negócios estrangeiros. Nenhum tribuno da plebe poderá promulgar uma lei na Assembleia da Plebe, a menos que tenha sido autorizado pelo Senado a apresentar um senatus consultum. Deixará de ter o poder de convocar reuniões do Senado.

Havia muitos rostos taciturnos e uns quantos furiosos; Sila, muito teatralmente, fez uma pausa, a fim de ver se havia alguém capaz de protestar de forma audível. Mas ninguém protestou. Sila pigarreou.

— Que tens a dizer, Quinto Hortênsio? Hortênsio engoliu em seco.

— Estou de acordo, Lúcio Cornélio.

— Há alguém que não esteja de acordo? Silêncio.

— Óptimo! — disse Sila, radiante. — Então, esta lex Cornelia entrará em vigor imediatamente!

— É horrível — disse Lépido a Caio Cota, pouco depois.

— Não podia estar mais de acordo.

— Nesse caso — perguntou Catulo — porque é que nos mostrámos tão submissos? Porque é que o deixámos avançar com aquilo? Como pode a República ser uma verdadeira República sem um tribunato da plebe activo e devidamente constituído?

— Então porque é que tu não falaste? — perguntou Hortênsio furioso, interpretando o comentário de Catulo como uma crítica directa à sua própria cobardia.

— Porque — retorquiu Catulo, com a maior franqueza — gosto de ter a cabeça bem agarrada aos ombros.

— E essa frase resume tudo — disse Lépido.

— Entendo a lógica que está por detrás daquilo tudo — disse Metelo Pio, que entretanto apanhara o grupo. — Muito inteligente! Um homem menos inteligente teria simplesmente abolido o cargo. Mas ele não fez nada disso! Não alterou o ius auxilii ferendi.

O que ele fez foi limar os poderes acrescentados em tempos mais recentes. Por isso, poderá argumentar com êxito que não tem saído dos limites da mos maiorum — e esse tem sido o lema em tudo. De qualquer modo, não me parece que isto possa resultar. O tribunato da plebe é demasiado importante para demasiada gente.

— As medidas dele resultarão enquanto ele viver — comentou soturnamente Cota.

E foi neste tom soturno que o grupo se desfez. Ninguém estava muito feliz — mas, por outro lado, ninguém queria revelar os seus pensamentos e sentimentos secretos. Isso era demasiado perigoso!

Enfim, pensou Metelo Pio, sozinho, a caminho de casa, não há dúvida que o clima de terror de Sila continua a funcionar na perfeição.

Por altura dos jogos de Apoio, nos primeiros dias de Quinctilis, estas primeiras leis tinham já sido complementadas por outras duas: a lex Cornelia sumptuaria e a lex Cornelia frumentaria. A lei sumptuária era extremamente rigorosa, chegando ao ponto de fixar um máximo de trinta sestércios por cabeça nas refeições normais, e trezentos sestércios por cabeça nos banquetes. Certos artigos de luxo, como perfumes, vinhos estrangeiros, especiarias e jóias, eram fortemente taxados; o custo dos funerais e dos túmulos era limitado; e a púrpura de Tiro tinha de pagar um imposto muito elevado. A lei dos cereais era extremamente reaccionária. Abolia a venda de cereais baratos pelo Estado, embora Sila fosse demasiado astuto para proibir o Estado de vender cereais; a sua lei dizia apenas que o Estado não podia vender mais barato que os mercadores de cereais privados.

Tratava-se de um programa pesado e que de modo nenhum chegara ao fim. Talvez porque a cansativa elaboração de todas estas leis lhe tomara todo o tempo desde que celebrara o seu triunfo, o Ditador decidiu, de um momento para o outro, que era altura de gozar de alguns dias de repouso, durante os quais assistiria aos ludi Apollinares. Como era evidente, não era aos jogos que decorriam no Circus Maximus que ele queria assistir; o que ele queria era ir ao teatro, tanto mais que estava prevista a representação de dez ou onze peças no teatro de madeira provisoriamente montado no espaço do Circo Flamínio, no Campo de Marte. Entre os géneros teatrais, era a comédia que reinava. Plauto, Terêncio e Névio tinham várias peças no programa, mas também havia vários espectáculos conhecidos sob o nome de mimos, e esses eram os favoritos de Sila. A verdadeira comédia tinha um texto escrito, um texto de que os actores não podiam desviar-se; mas os mimos partiam de uma situação genérica que o elenco e o seu director exploravam de forma improvisada; além disso, os actores actuavam sem máscaras.

Talvez a recordação do seu breve interlúdio com a delegação de Aurélia o tivesse levado a entusiasmar-se com as representações previstas para os Jogos de Apolo; ou talvez a razão estivesse no facto de um dos seus antepassados ter sido o fundador dos Jogos de Apolo; ou seria o desejo de ver o actor Metróbio? Trinta anos! Teria passado assim tanto tempo? Quando se conheceram, Metróbio era um rapaz e Sila celebrava o seu trigésimo aniversário, consumido por uma amarga frustração. com a entrada de Sila para o Senado, três anos depois, os seus encontros com Metróbio tornaram-se cada vez mais reduzidos e cada vez mais angustiantes.

A decisão de Sila de negar essa parte de si mesmo fora uma decisão reflectida, inexorável, firmemente baseada na lógica. Os homens públicos que admitiam ou que sucumbiam a uma preferência pelo seu próprio sexo eram execrados por isso. Nenhuma lei os forçava a retirar-se, embora houvesse várias leis sobre a questão, incluindo uma lex Scantinia que previa a pena de morte; essas leis, na sua maior parte, não eram usadas, pois havia uma certa tolerância entre os homens justos. A realidade era mais subtil. Não era preciso sequer afectar directamente a carreira pública de um homem. Bastava uma boa dose de piadas, desprezo, ditos espirituosos, troça, sarcasmo, para afectar drasticamente a dignitas de um homem. Os pares desse homem passariam a vê-lo como um ser inferior. E isso era o suficiente para que Sila recalcasse o seu desejo, mesmo que o desejo fosse muito forte — e era-o, de facto. As suas esperanças viravam-se para o momento em que havia de retirar-se — depois, dizia para si mesmo, não se preocuparia minimamente com o que os outros homens pudessem dizer dele. Depois, havia de ser ele mesmo, havia de se atirar impetuosamente a um prêmio que merecia. Quando se retirasse, os seus feitos seriam tangíveis e formidáveis e a sua dignitas estaria solidamente cimentada e nunca poderia ser afectada pelas derradeiras aventuras sexuais de um velho.

Ah, mas desejava tanto Metróbio! Metróbio que, provavelmente, não estaria interessado num homem velho e feio. Isso também contribuíra para a sua decisão de ir ao teatro. Antes saber agora do que quando chegasse o momento de se retirar. Antes deliciar-se agora com a visão do objecto amado, agora que os seus olhos ainda viam qualquer coisa, do que esperar pelos derradeiros anos e pela cegueira total.

No festival participavam várias companhias, incluindo uma que era dirigida por Metróbio, o qual, há cerca de dez anos, abandonara por completo a tragédia para se dedicar apenas à comédia. O seu espectáculo só estava previsto para o terceiro dia, mas Sila não deixou de comparecer nos dois primeiros dias, consagrados aos mimos, pois esse tipo de teatro divertia-o imenso.

Dalmática foi com ele, embora não pudesse sentar-se ao lado dos homens, ao contrário do que sucedia no Circo; no teatro, fora estabelecida uma rígida hierarquia, pois a sociedade romana não tinha boa opinião das representações teatrais. Cria-se que as mulheres podiam ser corrompidas se se sentassem ao lado dos homens para assistir a imoralidades e mesmo a cenas de nudez. As duas filas da frente da cavea semicircular, constituída por bancadas, eram reservadas aos membros do Senado; as catorze filas que ficavam atrás dessas costumavam ser reservadas para os cavaleiros do Cavalo Público. Este privilégio fora concedido aos cavaleiros séniores por Caio Graco. E Sila tivera um prazer imenso em acabar com esse privilégio. Assim, todos os cavaleiros eram agora obrigados a disputar os melhores lugares com todo o tipo de indivíduos de classes inferiores. As poucas mulheres que assistiam aos espectáculos sentavam-se ao fundo da cavea; ouviam bem o que os actores diziam, mas tinham dificuldade em ver o que quer que se passasse no palco. Na comédia formal (o tipo de teatro a que Metróbio se dedicava), todo o elenco usava máscaras e, por outro lado, não havia actrizes; mas, nos mimos de Ateia, os papéis femininos eram desempenhados por mulheres, e ninguém usava máscaras; muitas vezes, acontecia mesmo que ninguém usava roupas.

A peça do terceiro dia era uma das mais apreciadas de Flauto: O Soldado Vaidoso. O protagonista era desempenhado por Metróbio — que ridículo! Tudo o que Sila conseguia ver do seu rosto era a máscara grotesca, com a boca aberta, curvando-se num ridículo sorriso, embora as mãos fossem perfeitamente visíveis, tal como o corpo bem constituído e musculado, em que a armadura grega assentava na perfeição. Claro que, no final, para os agradecimentos, todo o elenco tirou as máscaras; Sila pôde ver finalmente o que os anos tinham feito a Metróbio. Muito pouco, embora o cabelo preto apresentasse belos salpicos grisalhos e, de ambos os lados do nariz estreito, bem grego, com a cana alta, houvesse uma ruga cavada.

Sila não podia chorar, ali, no meio da fila da frente. Queria chorar, mas tinha de combater as lágrimas. O rosto de Metróbio estava demasiado longe, separado dele pelo fosso vazio da orquestra. Sila não conseguia ver-lhe os olhos. Ah sim, conseguia distinguir duas manchas negras, mas não o que elas expressavam. Nem sequer percebia se aqueles olhos estavam a olhar para ele ou para algum amante, três filas atrás. Mamerco estava com Sila; este virou-se para o genro e, com algum constrangimento na voz, disse-lhe:

— Mamerco, agradecia que pedisses ao homem que representou o miles gloriosas que viesse ter comigo. Tenho a impressão de que o conheci em tempos, mas não estou certo disso. De qualquer modo, gostaria de felicitá-lo pessoalmente.

O público estava já a abandonar a estrutura de madeira provisória e as mulheres presentes encaminhavam-se para os seus maridos, se por acaso eram mulheres respeitáveis, ou preparavam-se para fazer negócio, se por acaso eram prostitutas. Diligentemente escoltadas por Crisógono — e cuidadosamente evitadas por aqueles que as reconheceram —, Dalmática e Cornélia Sila juntaram-se ao Ditador e a Mamerco no preciso momento em que Metróbio, ainda de armadura vestida, se abeirava de Sila.

— Foste muito bem, actor — disse o Ditador.

Metróbio sorriu, exibindo uma dentadura perfeita.

— Fiquei muito contente quando te vi entre o público, Lúcio Cornélio.

— Tu foste meu cliente em tempos, não foste?

— De facto, fui. Tu libertaste-me das minhas obrigações de cliente imediatamente antes de partires para a guerra contra Mitridates — disse o actor, cujos olhos em nada o traíam.

— Sim, lembro-me disso. Tu advertiste-me para as acusações que Censorino pretendia lançar contra mim. Pouco antes de o meu filho morrer. — O rosto destroçado franziu-se, e, com um esforço, procurou voltar ao normal. — Foi antes de eu ser cônsul.

— Foi um feliz acaso eu poder avisar-te — disse Metróbio.

— Um feliz acaso para mim.

— Tu sempre foste um dos favoritos de Fortuna.

O teatro já estava quase vazio; cansado daquela conversa banal, Sila virou-se para as mulheres e para Mamerco.

— Vão para casa — disse-lhes bruscamente. — Quero falar um bocado com o meu velho cliente.

Dalmática (que ultimamente não andava bem) parecia fascinada com o actor grego e os seus olhos não largavam o rosto dele. Então, Crisógono intrometeu-se nos devaneios dela; com um sobressalto, Dalmática virou-se e foi no encalço dos dois enormes escravos germanos, cujo trabalho consistia em abrir caminho para a mulher do Ditador, para onde quer que ela fosse.

Sila e Metróbio, já sozinhos, foram seguindo de longe o grupo, tão longe que não levantariam quaisquer suspeitas quanto ao seu verdadeiro relacionamento. Em circunstâncias normais, o Ditador teria sido logo rodeado por clientes e peticionários, mas tal era a sua sorte que ninguém se aproximou.

— Só este passeio — disse Sila. — Não te peço mais nada.

— Pede-me o que quiseres — disse Metróbio. Sila parou.

— Olha para mim, Metróbio, e vê o que o tempo e a doença fizeram de mim. O meu íntimo não mudou. Mas mesmo que tivesse mudado, eu já não servia para ti, nem para ninguém, a não ser para estas pobres e tontas mulheres que persistem em... ah, quem sabe no que elas persistem? Em ter pena de mim, muito provavelmente. Não creio que possa ser amor.

— Claro que é amor! — Metróbio agora estava perto, suficientemente perto para que Sila pudesse ver que aqueles olhos ainda o fitavam com amor, ainda o fitavam com ternura. E com um interesse muito vivo, não desgastado pela antipatia ou pela repulsa. Uma versão mais suave, mais pessoal, do olhar com que Aurélia o fitara em Teano Sidicino. — Sila, aqueles que alguma vez se deixaram enfeitiçar por ti nunca poderão libertar-se desse encantamento! Mulheres ou homens, não há qualquer diferença. Tu és único. Ao pé de ti, todos os outros perdem o brilho. Não é uma questão de virtude ou de bondade. — Metróbio sorriu. — Virtude ou bondade são coisas que tu não tens! Talvez nenhum grande homem seja virtuoso. Ou bom. Os homens que possuem em abundância essas qualidades provavelmente nunca chegam a ser grandes. Já não me lembro de nada do que aprendi sobre Platão, por isso não sei ao certo o que ele e Sócrates pensavam sobre isto.

Pelo canto do olho, Sila reparou que Dalmática se virara para o espreitar a ele e a Metróbio. Porém, àquela distância, não poderia enxergar a expressão da mulher. Depois, Dalmática virou a esquina, e desapareceu.

— Aquilo que acabaste de dizer — perguntou o ditador — significa que, quando eu puder alijar a presente carga, poderás pôr a hipótese de viver comigo o resto dos meus dias? Já não tenho muito tempo, mas espero que pelo menos algum desse tempo possa ser meu, só meu, possa ser dedicado inteiramente à minha pessoa, e não a Roma. Se me acompanhares no meu retiro, prometo-te que não te penalizarei de forma nenhuma. E muito menos financeiramente.

Metróbio riu-se, abanando a sua cabeça, coberta por uma cabeleira escura e encaracolada.

— Oh, Sila! Como podes tu comprar aquilo que foi teu durante trinta anos?

As lágrimas assomaram aos olhos de Sila, que logo decidiu detê-las.

— Então, quando eu me retirar, acompanhar-me-ás?

— Assim farei.

— Quando esse momento chegar, chamar-te-ei.

— E será amanhã? No próximo ano?

— Já não faltará muito. Talvez dois anos. Esperas?

— Espero.

Sila suspirou, um suspiro de felicidade, uma felicidade quase perfeita: uma felicidade demasiado breve, demasiado breve! Porque Sila lembrava-se de que, cada vez que vira Metróbio, nas últimas ocasiões, alguém que amava tinha morrido. Julila. O seu filho. Quem seria desta vez? Ora, tanto me faz!, pensou. Porque Metróbio é mais importante. Só o meu filho era mais importante, e já não vive. Se alguém tinha de morrer, então que fosse Cornélia Sila. Ou os gémeos. Mas nunca Dalmática! Fez um breve aceno para Metróbio, como se aquele tivesse sido o mais trivial dos encontros, e afastou-se.

Metróbio ficou a observá-lo enquanto se afastava, cheio de felicidade. Afinal sempre era verdade aquilo que os pequenos deuses da sua distante terra natal da Arcádia diziam: se um homem queria muito uma coisa, acabava sempre por consegui-la. E quanto mais alto fosse o preço, maior seria a recompensa. Só quando Sila desapareceu é que Metróbio regressou aos camarins.

Sila avançou lentamente, completamente só; caminhar sozinho pelas ruas de Roma era, para o Ditador, um luxo a que raramente tinha acesso. Como encontrar a força necessária para esperar por Metróbio?, pensava. Metróbio já não era um rapaz, mas continuava a ser o seu rapaz.

Sila ouviu vozes ao longe e abrandou ainda mais o passo, pois não queria que vissem o seu rosto naquele momento. É que, embora o seu coração estivesse inundado de esperança e antecipasse já uma felicidade radiosa, outros sentimentos o atormentavam: raiva, porque tinha de levar até ao fim aquele trabalho que não lhe dava qualquer prazer; e medo, medo de que Dalmática pudesse ser, agora, a vítima.

As duas vozes eram já perfeitamente audíveis e uma delas suplantava claramente a outra. Sila conhecia-as bem. Que estranho!, pensou. Quão distinta pode ser a voz de um homem! Tirando semelhanças superficiais de altura e acento, podia dizer-se que não havia no mundo duas vozes iguais. Aquele homem de voz mais forte só podia ser Mânio Acílio Glábrio, marido de Emília Escaura, enteada de Sila.

— O que não há dúvida é que ele já deu cobertura a muitos excessos — dizia agora Glábrio, num tom vigoroso e, ao mesmo tempo, aristocraticamente desprendido. — As suas proscrições encaminharam para o Tesouro apenas treze mil talentos, e ele vangloria-se disso! Ele devia era enforcar-se de vergonha! A soma devia ter sido dez vezes maior! Propriedades que valiam milhões foram arrematadas por uns quantos milhares e a sua própria mulher é agora dona de propriedades que valiam cinqüenta milhões e que ela comprou por cinqüenta mil! Uma desgraça! Uma desgraça!

— Ouvi dizer que tu próprio fizeste algum lucro — disse uma outra voz familiar; era a voz de Catilina.

— Uma ninharia, não mais do que me era devido. Um patife! Um velho e horrendo patife! Como é que ele pôde ter o descaramento de dizer que as prescrições acabariam nas Calendas do mês passado — os nomes continuam a aparecer nos rostra, sempre que um dos seus esbirros ou parentes cobiça um pedaço mais apetecível da Campânia ou alguma terra à beira-mar! Reparaste que ele ficou para trás, para conversar com o tipo que fez o papel do soldado vaidoso? Ele não consegue resistir ao apelo do palco — ou à gentalha que se pavoneia no palco! É claro que essa atracção remonta à sua juventude, àqueles tempos em que ele não era melhor prenda que a mais reles prostituta que vende a rata nas redondezas de Vénus Erucina! Imagino que os maricas que andam para aí se fartam de rir dele quando se juntam em grupos e têm de decidir quem come quem! Nunca viste um comboio de maricas, todos agarrados uns aos outros a comerem-se? Pois Sila viu um ror deles!

— Cuidado com o que dizes, Glábrio — disse Catilina, um tanto constrangido. — Ainda acabas nas listas dos prescritos!

Mas Glábrio respondeu-lhe com uma gargalhada.

— Quem? Eu? Nem pensar! — exclamou, divertido. — Eu faço parte da família, sou genro de Dalmática! Nem mesmo Sila pode proscrever um membro da família, não sei se sabes.

As vozes foram-se esbatendo, à medida que os homens se afastavam, mas Sila deixou-se ficar onde estava, encoberto por uma esquina. O seu corpo parecia paralisado e, naqueles olhos frios como o gelo, fulgia um brilho sinistro. Então era aquilo o que se dizia? Tantos anos depois... Claro que Roma ignorava muito do que Glábrio sabia — mas era evidente que, dentro de algum tempo, Roma estaria a par de tudo o que Glábrio imaginasse ou soubesse. Quanto do que ele dizia seria apenas fruto de meros mexericos? Ou teria ele conseguido ler documentos e papéis que ao longo dos tempos fora arquivando? Sila entregava-se agora ao difícil labor de coligir todos os seus documentos escritos, pois tencionava escrever as suas memórias, tal e qual como Catulo César fizera dez anos antes. Por isso, tinha muitos desses documentos espalhados pelo seu gabinete e não era preciso ter um grande talento para os encontrar. Glábrio! Porque é que não pensara em Glábrio, um indivíduo que a todo o momento entrava e saía de sua casa? Nem todos os membros desse círculo privilegiado que o visitava tinham o nível de uma Cornélia Sila ou de um Mamerco! Glábrio! Quem mais poderia ter sido, senão ele?

As cinzas da sua raiva por ter de permanecer afastado de Metróbio atiçaram uma viva conflagração dentro da sua mente, alimentando-a de uma constante amargura. com que então não posso proscrever um membro da minha família?, pensou ele, despertando dos seus devaneios e pondo-se a caminho. De facto não posso — quanto a isso, tem ele razão. No entanto... não é preciso que seja uma proscrição... é muito capaz de haver um processo mais interessante...

Porém, mal tinha virado a esquina, deu de caras com Pompeu. Os dois homens recuaram, um tanto espantados.

— Magno? Sozinho? — perguntou Sila.

— Sim, por vezes ando sozinho — retorquiu Pompeu, acompanhando já o Ditador. — Estar só é um prazer.

— Concordo de todo o coração. Mas não me digas que estás farto de Varrão!

— Varrão pode tornar-se um verdadeiro pesadelo, especialmente quando começa a dissertar sobre Catão, o Censor, e as coisas antigas e os tempos em que o dinheiro tinha realmente valor. Embora eu prefira ouvi-lo dissertar sobre esses temas do que sobre a mão invisível do poder — disse Pompeu, com um sorriso de todo o tamanho.

— É verdade, eu tinha-me esquecido de que ele era amigo do velho Ápio Cláudio — disse Sila, muito contente por ter dado de caras com Pompeu e não com outra pessoa qualquer. — Velho Ápio Cláudio? Mas por que raio é que, quando pensamos em Ápio Cláudio, vemos sempre um velho?

Pompeu riu-se.

— Porque esse já nasceu velho! Mas tu não andas a par das novidades, Sila! Ápio Cláudio já passou de moda. Agora, o homem de quem se fala é Públio Nigídio Fígulo. Um verdadeiro sofista. Ou será pitagórico? — Encolheu os ombros, sem ligar muito ao caso, e acrescentou: — Ah, não vale a pena cansar-me! Nunca consigo distinguir as escolas filosóficas!

— Públio Nigídio Fígulo! Esse é um velho e honrado nome, mas, para ser franco, nunca tinha ouvido dizer que um deles estivesse a dar nas vistas em Roma. Não será por acaso um bucólico?

— Não será propriamente um camponês, se é isso que queres saber. É como uma abóbora oca cheia de pevides: a gente mexe nela e ela chocalha, chocalha, chocalha... Pois o nosso homem, se alguém lhe toca com um dedo, nunca mais pára de falar... Falar, não, matraquear! É um grande especialista na adivinhação etrusca; sabe de tudo, desde relâmpagos a fígados. Conhece mais lóbulos hepáticos do que eu conheço figuras de estilo.

— Quantas figuras de estilo conheces tu, Magno? — perguntou Sila, extremamente divertido.

— Duas, creio. Ou serão três?

— Diz o nome delas.

— Color... e descriptio.

— São duas.

— Duas.

Caminharam em silêncio por um momento, ambos sorridentes, mas pensando em coisas completamente diferentes.

— Diz-me uma coisa, Pompeu. Que tal se sente um cavaleiro sem lugares reservados no teatro? — perguntou Sila.

— Eu não me queixo — retorquiu Pompeu, jovialmente. — Nuncavou ao teatro!

— Ah! Então onde é que estiveste esta noite?

— Fui até à Via Recta. Só pelo passeio. Sinto-me muito preso em Roma. Não gosto da cidade.

— Estás sozinho em Roma, não é?

— Mais ou menos. A mulher ficou em Piceno — retorquiu Pompeu, com uma expressão algo amarga.

— Não gostas dela?

— Ah, ela serve, enquanto não aparecer melhor. Adora-me! Só que não está à altura do marido.

— Hum! Ela vem de uma família de edis.

— E eu venho de uma família consular. A minha esposa devia estar ao meu nível.

— Então divorcia-te e procura uma esposa consular.

— Detesto conversas de chacha, tanto com as mulheres como com os pais delas.

Nesse preciso momento, Sila teve uma inspiração extraordinária. De tal modo que parou a meio do caminho que levava do Velabrum à Viscus Tuscus, aos pés do Palatino.

— Por todos os deuses! — disse ele, com a voz entrecortada. — Por todos os deuses!

Pompeu parou também.

— Sim? — perguntou, educadamente.

— Meu querido jovem cavaleiro, tive uma ideia brilhante!

— É bom, ter ideias brilhantes.

— Ah, pára já com as tuas banalidades! Eu estou a pensar! Pompeu, obedientemente, calou-se, enquanto os lábios de Sila

se revolviam sobre as gengivas desdentadas, como uma medusa flutuando no mar. Finalmente, Sila levou a mão ao braço de Pompeu e disse-lhe:

— Magno, vem ter comigo amanhã de manhã à terceira hora. — E, dando um saltinho de júbilo, afastou-se a grande velocidade.

Pompeu ficou onde estava, com a testa toda franzida. Até que por fim, também ele se pôs a caminho de casa, que ficava no bairro de Carinal.

Sila correu para casa como se as Fúrias o perseguissem; ali estava uma tarefa que realmente era do seu agrado!

— Crisógono! Crisógono! — berrou ele, mal entrou, deixando cair a sua toga como se fosse uma tenda a desmoronar-se.

O chefe dos criados apareceu imediatamente, com um ar ansioso — um ar bastante freqüente nele nos últimos tempos, mas que Sila não notava.

— Crisógono, pega numa liteira e vai a casa de Glábrio. Quero que Emília Escaura venha ter comigo imediatamente.

— Lúcio Cornélio, vieste para casa sem os lictores!

— Oh, mandei-os embora antes de a peça começar. Às vezes são um estorvo horrível — disse o Ditador, impenitente. — Vá, agora vai buscar a minha enteada!

— Emília? Para que queres falar com Emília? — perguntou Dalmática, ao entrar na sala.

— Já vais ver — disse Sila, com um sorriso arreganhado. Dalmática lançou-lhe um olhar perscrutador.

— Sabes uma coisa, Lúcio Cornélio? Desde a tua entrevista com Aurélia e a delegação, tu estás diferente.

— De que forma?

Dalmática tinha dificuldade em responder àquela pergunta, talvez porque não queria desagradar-lhe. Porém, acabou por responder:

— Creio que é a tua disposição. Andas com uma disposição diferente.

— Mas melhorou ou piorou, Dalmática?

— Melhorou, sem dúvida. Tu agora estás... feliz.

— E estou mesmo! — disse ele, com uma voz feliz. — Eu já pensava que não teria direito a um fim de vida privado, mas ela devolveu-me a esperança. Ah, que dias felizesvou viver quando me retirar!

— Aquele actor... Metróbio. É teu amigo, não é?

Houve algo no olhar dela que o fez de ter-se; a sua despreocupação desapareceu imediatamente e, na sua mente, surgiu a imagem de Julila, com a espada dele enterrada no ventre, uma imagem que o impedia mesmo de ver Dalmática. O quê? Outra mulher que não queria partilhá-lo com ninguém? Como é que ela sabia? Que podia ela saber? Como é que as mulheres se apercebiam daquilo? Farejavam, como os cães?

— Conheci Metróbio era ele um rapaz — disse ele, sem mais, num tom que sugeria que as perguntas deviam cessar.

— Nesse caso, porque fizeste de conta que não o conhecias antes de ele vir ter contigo? — perguntou ela, intrigada.

— Porque ele passou a peça toda com uma máscara na cara — atirou-lhe Sila. — Já passaram muitos anos, eu não estava certo de que o conhecia. — Fatal como o destino! Ela tinha conseguido pô-lo à defesa, e isso era algo de que ele não gostava.

— Sim, claro — disse ela, lentamente. — Sim, claro.

— Agora vai-te embora, Dalmática, se fazes favor! Já desperdicei muito tempo desde que os Jogos começaram, tenho muito trabalho à minha espera.

Ela virou-lhe as costas, com um ar menos perturbado, e encaminhou-se para a porta.

— Só mais uma coisa — disse-lhe ele, antes de ela sair.

— Sim?

—vou precisar de ti quando a tua filha chegar, por isso deixa-te estar por perto.

Que estranho que ele estava ultimamente!, pensou ela, enquanto atravessava o vasto átrio, na direcção do jardim do peristilo e dos seus aposentos particulares. Susceptível, feliz, instável. Alegre num instante, deprimido logo de seguida. Como se tivesse de tomar uma decisão e não pudesse fazê-lo imediatamente, ele que odiava protelar fosse o que fosse. E aquele actor, aquele homem tão bem parecido... Que lugar ocupava ele na vida de Sila? Um lugar importante, por certo. Mas não fazia a mínima ideia dos motivos. Se por acaso houvesse alguma semelhança física, ainda que superficial, entre os dois, teria concluído que o actor era filho de Sila — sim, porque só um filho podia despertar as emoções que ela detectara no marido porque já o conhecia muito bem.

Quando Crisógono a foi informar de que Emília Escaura tinha chegado, Dalmática estava ainda absorta nestas conjecturas. Esquecera por completo que Sila tinha chamado a sua filha.

Emília Escaura estava no quarto mês de gravidez. Ganhara um brilho na pele e nos olhos que não enganava ninguém — sim, de facto, naquela grávida não havia o mínimo sinal de afecção física! Pena que, fisicamente, saísse ao pai, sendo, por isso, baixa e algo atarracada; no seu rosto, porém, havia ecos da beleza da mãe, além do que herdara os belos e vivos olhos verdes de Escauro.

Escaura, que não era uma rapariga inteligente, nunca aceitara o casamento da mãe com Sila, que detestava e temia. Passara por um mau bocado logo nos primeiros anos, nesse tempo em que Sila era ainda suficientemente atraente para que ela pudesse entender a paixão da mãe; mas depois da doença que afectara Sila, Escaura considerava um verdadeiro enigma que a mãe continuasse tão apaixonada por ele como dantes. Como era possível que uma mulher, qualquer mulher, continuasse a amar um homem tão feio, tão horrendo e velho? Claro que Escaura se lembrava do pai: também ele era velho e feio. Mas não havia nele a degradação interior de Sila, uma degradação interior que ela pressentia, mas não conseguia descrever, porque para isso lhe faltava uma percepção aguda e uma inteligência apurada.

E agora eis que ele a chamava à sua presença e com tanta pressa que só tivera tempo de deixar uma mensagem rabiscada para o marido. O padrasto saudou-a afagando-lhe a mão e conduzindo-a para uma confortável cadeira — um comportamento que a deixou imediatamente de pé atrás e que a fez temer muitas coisas. Que se passaria naquela cabeça? Ele transbordava de alegria e estava tão prenhe de malícia como ela estava prenhe de criança.

Quando a mãe entrou, Sila tratou-a da mesma maneira que à filha: muita simpatia, muitos afagos, uma boa cadeira. Escaura teve a impressão de que ele estava a preparar convenientemente o terreno para que elas aceitassem sem grandes protestos o que ele queria impor-lhes. E o que ele queria impor-lhes não era por certo uma ninharia. Não, de modo nenhum.

— E como está o pequeno Glábrio que vem a caminho? — perguntou ele à enteada, com os modos mais simpáticos deste mundo.

— Muito bem, Lúcio Cornélio.

— Quando é o grande acontecimento?

— Lá para o fim do ano, Lúcio Cornélio.

— Hmmm! Que aborrecido! Ainda falta muito.

— Sim, Lúcio Cornélio, ainda falta muito.

Sila sentou-se e pôs-se a bater com os dedos nas costas da sua cadeira de sólido carvalho, com os lábios franzidos, o olhar perdido na distância. Depois, aqueles olhos que tanto temia fixaram-se nela; Emília Escaura estremeceu.

— És feliz com Glábrio? — perguntou ele de súbito. Escaura sentiu um sobressalto.

— Sou, Lúcio Cornélio.

— A verdade, rapariga! Eu quero a verdade!

— Sou feliz, Lúcio Cornélio, sinceramente feliz!

— Não terias escolhido outro homem, se por acaso te fosse dada essa oportunidade?

Escaura enrubesceu e baixou os olhos.

— Eu nunca senti qualquer inclinação por outro homem, se é isso que queres saber, Lúcio Cornélio. Mânio Acílio estava bem para mim.

— E continua a estar?

— Sim! Continua! — retorquiu ela, a voz à beira do desespero. — Porque fazes essas perguntas? Eu sou feliz! Eu sou feliz!

— É pena — disse Lúcio Cornélio Sila. Dalmática endireitou-se na cadeira.

— Marido, que significa isto? — perguntou. — Onde queres chegar com todas estas perguntas?

— Quero chegar ao seguinte, esposa: a união entre a tua filha e Mânio Acílio Glábrio não me agrada. Ele considera que é seguro criticar-me pelo simples facto de ser membro da minha família — disse Sila, mostrando toda a sua ira. — Ora isso significa, como é evidente, que eu não posso permitir que ele continue a pertencer à minha família.vou tratar do divórcio entre os dois. Imediatamente.

As duas mulheres fitaram-no boquiabertas; os olhos de Emília Escaura inundavam-se de lágrimas.

— Lúcio Cornélio, euvou ter um filho! Não posso divorciar-me dele! — exclamou ela.

— Podes, sim — disse o Ditador num tom perfeitamente casual. — Podes fazer tudo o que eu te ordenar. E eu ordeno-te que te divorcies de Glábrio imediatamente. — Bateu as palmas para chamar um secretário, Flósculo, que logo entrou segurando um papel. Sila pegou no papel e mandou o secretário sair. — Vem cá, rapariga. Assina aqui.

Emília Escaura levantou-se de um salto.

— Não!

Dalmática também se levantou.

— Sila, estás a ser injusto! — disse ela, furiosa. — A minha filha não quer divorciar-se.

O monstro exibiu as suas garras.

— Para mim, é absolutamente irrelevante o que a tua filha quer ou deixa de querer — disse ele. — Vamos, rapariga! Assina!

— Não! Não assino! Não assino!

Sila levantou-se tão rapidamente que nenhuma das mulheres deu por isso. Os dedos da sua mão direita cravaram-se então na cara de Emília Escaura, à volta da boca, e arrastaram-na literalmente até à secretária, enquanto ela berrava de dor e chorava freneticamente.

— Pára! Pára! — gritou Dalmática, tentando libertar o rosto da filha. — Por favor, deixa-a em paz! Ela está grávida, não podes fazer-lhe mal!

Os dedos dele apertaram ainda mais.

— Assina — disse.

Ela não podia responder e a mãe chegara já a um estado em que não conseguia dizer nada.

— Assina — disse Sila de novo, com uma voz branda. — Assina ou mato-te, rapariga. Mato-te com o mesmo à-vontade com que matei os legados de Carbão. Julgas que me importa alguma coisa que estejas prenha de Glábrio? Até me agradava que perdesses a criança! Assina o divórcio, Emília, ou podes estar certa de que te corto os seios e te arranco o útero!

Ainda a chorar, toda convulsa, Emília assinou. Depois, Sila largou-a com o maior desprezo.

— Ora muito bem — disse ele, limpando a saliva que ela deixara na sua mão. — Nunca mais me voltes a irritar, Emília. Não é uma atitude sensata. Agora vai-te embora.

Dalmática puxou a rapariga para si e lançou um olhar de profundo ódio a Sila, um olhar que ele nunca lhe tinha visto. Sila pôs um ar de indiferença e voltou-lhes as costas.

Nos seus aposentos, Dalmática teve de tentar acalmar a histeria da filha e a raiva que a consumia a si mesma. Mas precisaram ainda de muito tempo para se acalmarem.

— Ouvi dizer que ele era capaz deste tipo de comportamento, mas foi a primeira vez que o vi assim — disse Dalmática, logo que se recompôs. — Ah, Emília, que pena! Euvou tentar fazê-lo mudar de ideias logo que possa olhar para ele sem o ódio que sinto agora.

Mas a rapariga, vencendo a apatia que costuma sobrevir após as grandes comoções, ergueu a mão num gesto definitivo:

— Não, mãe, não! Só ias piorar tudo!

— Que poderia Glábrio ter feito para provocar uma coisa destas?

— Disse qualquer coisa que não devia. Ele não gosta de Sila, isso sei eu. Está sempre a sugerir que Sila gosta de homens de uma forma que os homens não devem gostar.

Dalmática ficou branca.

— Mas que disparate! Oh, Emília, como pôde Glábrio ser estúpido a esse ponto? Sabes muito bem como são os homens! Quando não merecem esse estigma, são capazes de se portar como loucos!

— Eu não sei se ele não o merece — retorquiu Emília Escaura, segurando uma toalha fria e húmida contra o rosto, onde as marcas dos dedos do padrasto mudavam lentamente de cor, passando de um púrpura-avermelhado a um púrpura-escuro. — Sempre achei que havia nele muito de feminino.

— Minha querida, eu estou casada com Lúcio Cornélio há quase nove anos — disse Dalmática, que parecia ter encolhido. — E posso garantir-te que se trata de uma infâmia.

— Está bem, está bem, que seja como dizes! Não me interessa o que ele é ou deixa de ser! Só sei que o odeio! Animal!

— Euvou tentar fazer qualquer coisa logo que acalme. Prometo-te que vou.

— Não te exponhas mais à sua ira, mãe. Ele não vai mudar de ideias — disse Emília Escaura. — O que me preocupa é o meu bebê, só ele me importa.

Dalmática fitou a filha com um olhar dolorido.

— O mesmo posso dizer eu.

A toalha fria caiu no colo de Emília.

— Mãe! Também estás grávida?

— Sim. Só soube há pouco tempo.

— Que vais fazer? Ele sabe?

— Não, não sabe. E eu não farei nada que possa levá-lo a divorciar-se.

— Sabes o que sucedeu a Élia.

— Quem não sabe?

— Oh, mãe, mas isso muda tudo! Euvou portar-me o melhor possível! Ele não pode ter o mínimo pretexto para se divorciar de ti!

— Façamos votos — disse Dalmática, exausta — para que ele trate o teu marido melhor do que te tratou a ti.

— Ah, não, ele vai tratá-lo muito pior!

— Não necessariamente — disse a esposa de Sila, que o conhecia bem. — Tu foste a primeira pessoa que ele teve à sua frente. Muitas vezes, a sua primeira vítima satisfá-lo. Quando Glábrio descobrir o que se passou, é muito provável que Sila já esteja suficientemente apaziguado para se mostrar clemente.

Se Sila não estava suficientemente apaziguado para se mostrar clemente, pelo menos dera já largas a grande parte da raiva causada pelas palavras indiscretas de Glábrio. E Glábrio era perspicaz o bastante para perceber que eventuais protestos tornariam a sua situação ainda mais perigosa.

— Não há necessidade de uma coisa destas — disse Glábrio a Sila. — Se te ofendi, farei tudo o que for necessário para reparar a ofensa. Garanto-te que tudo o que menos desejo é pôr a posição da minha mulher em perigo.

— Ah, a tua ex-mulher não corre perigo nenhum — disse Sila, sorrindo exultante. — Emília Escaura — que é um membro da minha família! — está em total segurança. Mas ela não pode, de maneira nenhuma, continuar casada com um homem que critica o seu padrasto e que espalha histórias acerca dele que são mentiras óbvias.

Glábrio humedeceu os lábios secos.

— A minha língua não traduziu os meus pensamentos.

— Pelo que ouvi dizer, tens uma língua demasiado rebelde... bom, mas isso é um problema teu, evidentemente. Contudo, de futuro, a tua língua ficará sem a protecção de poder clamar que és um membro da minha família. A tua língua ficará assim e tu irás tratar da tua vida, como qualquer outra pessoa. Não bani um único senador desde que publiquei a minha primeira lista. Mas não há nada que me impeça de mudar de ideias. Dei-te a honra de te nomear para o Senado antes de fazeres trinta anos, tal como fiz como muitos outros jovens de famílias e antepassados ilustres. Pois bem, por ora deixarei o teu nome entre o elenco de senadores e não numa lista nos rostra. A minha clemência futura dependerá unicamente de ti, Glábrio. Tens um filho teu no ventre da meia-irmã dos meus filhos, e essa é a única protecção de que dispões. Quando a criança nascer, mandar-ta-ei. Agora, podes sair.

Glábrio foi-se embora sem fazer nenhum reparo. Também não informou nenhum dos seus íntimos das circunstâncias que rodearam o seu precipitado divórcio. Nem das razões que o levaram a abandonar Roma e a instalar-se nas suas propriedades na província. O seu casamento com Emília Escaura não implicara para ele qualquer envolvimento emocional: ela satisfazia-o, e era tudo. Nascimento, dote, tudo como devia ser. Era possível que, com o tempo, o afecto se consolidasse entre eles. Agora é que isso já não era possível. De quando em quando, Glábrio pensava em Escaura e sentia uma vaga mágoa, basicamente porque o seu filho nunca conheceria a mãe.

O que a seguir sucedeu em nada contribuiu para curar a ferida que se instalara no relacionamento entre Sila e Dalmática; como lhe fora ordenado, Pompeu foi ter com o Ditador na manhã seguinte.

— Tenho uma esposa para ti, Magno — disse Sila sem mais delongas.

Havia algo de um leão adormecido em Pompeu, uma qualidade que lhe permitia manter-se calmo e descontraído quando lhe aconteciam coisas em que pretendia pensar antes de agir ou falar.

Por isso, demorou o seu tempo a digerir aquela informação, com uma expressão que, embora não fosse defensiva, nem por isso denunciava o que lhe ia na cabeça. Sim, pensou Sila, observando-o atentamente, Pompeu era como um leão adormecido que se limitava a rolar sobre si mesmo, a mudar de posição para apanhar o calor de um qualquer sol metafórico e que lambia os beiços para retirar um bocado de carne esquecido entre os bigodes. Indolente mas perigoso. Sim, o melhor era amarrá-lo à família — Pompeu não era propriamente um Glábrio. Finalmente, Pompeu reagiu:

— É uma atitude muito amável da tua parte, Ditador! E quem é essa mulher?

— A minha enteada, Emília Escaura — disse Sila. — Uma patrícia. De uma óptima família, não encontrarias melhor se vivesses um milênio. Um dote de duzentos talentos. E já provou que é fértil. Está grávida de Glábrio. Divorciaram-se ontem. Percebo que é um tanto ou quanto inconveniente para ti ficares com uma esposa que está grávida de outro, mas também é verdade que a criança foi concebida de acordo com as normas. Escaura é uma boa rapariga.

Era manifesto que Pompeu não tinha ficado abalado nem desconcertado com aquela notícia; pelo contrário, estava radiante, ridiculamente radiante.

— Lúcio Cornélio, meu querido Lúcio Cornélio! Estou tão contente!

— Óptimo! — retorquiu Sila, vivamente.

— Posso vê-la? Creio que nunca a vi!

Um débil sorriso perpassou pelos lábios do Ditador, ao lembrar-se das nódoas negras à volta da boca de Emília Escaura; abanou a cabeça e disse:

— Espera dois ou três intervalos entre mercados, Magno. Depois vem ter comigo e eu caso-te com ela. Entretanto,vou fiscalizar a devolução de todo o seu dote e trazê-la para a minha casa.

— Que maravilha! — exclamou Pompeu, fora de si. — Ela já sabe?

— Ainda não, mas vai ficar muito contente. Embora tenha calado os seus sentimentos, a verdade é que está apaixonada por ti desde que assistiu ao teu triunfo — disse Sila, num tom muito afável.

Não havia dúvida: aquela lança penetrara bem fundo na pele do leão! Pompeu quase rebentava de prazer.

— Ah, que maravilha! — exclamou, e logo saiu, de facto com o aspecto de um felino que acabara de comer uma bela refeição.

Sila tinha de ir dar a notícia à mulher e à enteada. Uma tarefa que não lhe desagradava. Dalmática tratava-o de uma maneira muito diferente desde que aquele caso rebentara, destroçando uma tranqüilidade que durava há quase nove anos, e ele detestava as manifestações de desagrado da mulher; por isso, precisava de magoá-la.

As duas mulheres estavam na sala de estar de Dalmática e ficaram paralisadas de medo quando viram Sila entrar sem se fazer anunciar. A primeira coisa que Sila fez foi examinar o rosto de Emília Escaura, que estava ainda muito contundido e um pouco inchado sob o nariz. Só depois olhou para Dalmática. Na expressão da mulher não se notava sinal de ira ou repulsa, ainda que os olhos não conseguissem disfarçar reprovação. Parecia doente, pensou ele. Depois, lembrou-se de que as mulheres se refugiavam freqüentemente em doenças verdadeiras quando a raiva as consumia.

— Boas notícias — disse ele, com o ar mais jovial deste mundo.

As duas mulheres ficaram caladas.

— Tenho um novo marido para ti, Emília.

Chocada, Emília fitou-o com olhos apáticos, avermelhados pelas lágrimas.

— Quem? — pergunta ela, com uma voz débil.

— Cneu Pompeu Magno.

— Sila, francamente! — atirou-lhe Dalmática. — Recuso-me a acreditar que estás a falar a sério! Casar a filha de Escauro com esse imbecil picentino? A minha filha, que tem o sangue dos Cecílios Metelos? Não consentirei!

— Tu não tens de ter opinião nesta matéria.

— Ah, quem me dera que Escauro fosse vivo! O que ele não diria!

Sila riu-se.

— Diria muita coisa, não é? Mas o que ele diria ou não diria acabaria por não ter importância nenhuma. Eu preciso de amarrar Magno com um laço mais forte do que a gratidão — porque gratidão é coisa que ele não conhece. E tu, enteada, és a única mulher da família que está disponível neste momento.

Dalmática estava cada vez mais pálida.

— Por favor, Lúcio Cornélio, não faças uma coisa dessas! Por favor!

— Eu estou grávida de Glábrio — murmurou Emília Escaura. — Pompeu quer casar comigo, mesmo assim?

— Quem, Magno? Magno não liga a isso! Nem que tu tivesses dezasseis maridos e dezasseis crianças — retorquiu Sila. — Ele reconhece imediatamente um bom negócio e tu és um bom negócio para ele. Dou-te vinte dias para ficares com a cara em condições. Depois casas com ele. Quando a criança nascer, mando-a para Glábrio.

Emília Escaura desatou de novo a chorar.

— Por favor, Lúcio Cornélio, não me faças isso! Deixa-me ficar com o bebê!

— Podes ter mais filhos com Magno. Agora deixa de te portar como uma criança pequena e enfrenta os factos! — O olhar de Sila fixou-se em Dalmática. — E isto que eu disse aplica-se também a ti, mulher!

Sila abandonou a sala, deixando Dalmática a confortar a filha.

Dois dias depois, Pompeu informou-o, por carta, de que se tinha divorciado e que gostaria de marcar uma data para o casamento.

”Tenciono ausentar-me de Roma até às Nonas de Sextilis”, respondeu-lhe Sila, também por carta. ”Por isso, creio que dois dias depois das Nonas de Sextilis estará bem. Podes apresentar-te em minha casa nessa data, mas não antes.”

Hércules Invicto era o deus do imperador triunfante e os seus domínios estendiam-se por todo o Fórum Boarium, o vasto espaço aberto, em frente da saída do Circus Maximus, em que decorriam os diversos mercados de carne. Era aí que o deus tinha o seu Grande Altar, o seu templo, e também a sua estátua, uma estátua que só não estava nua no dia em que um general realizava o seu desfile vitorioso; nesse dia, a estátua era vestida com um traje adequado à cerimónia do triunfo. A zona possuía ainda outros templos dedicados a outros aspectos de Hércules, pois este era ainda o deus das azeitonas, dos plutocratas mercadores, e das viagens comerciais pessoalmente colocadas sob a sua protecção.

Numa proclamação a toda a cidade, Sila anunciou que, no dia da festa de Hércules Invicto, consagraria um décimo da sua fortuna privada a esse deus, em sinal de agradecimentos pelos favores concedidos em todas as suas actividades marciais. Uma vaga de satisfação percorreu a populaça que assistia à proclamação, pois o templo de Hércules Invicto não dispunha de um fundo financeiro: todo o dinheiro que lhe era ofertado acabava por ser gasto, em seu nome e em nome do general triunfante, numa festa pública dedicada a todos os homens livres de Roma. No dia anterior aos Idos de Sextilis — que era o dia da festa daquele deus —, eram instaladas em toda a cidade cinco mil mesas com comida, dando cada uma dessas mesas para mais de cem cidadãos ávidos de iguarias (o que não significava que houvesse meio milhão de indivíduos do sexo masculino livres em Roma — mas apenas que era difícil excluir do banquete as anciãs mais lépidas, as esposas mais determinadas e as crianças mais atrevidas). Uma lista da localização destas cinco mil mesas era junta à proclamação; como constituía um impressionante exercício em termos de logística, a festa era cuidadosamente planeada e executada, de forma a que os participantes permanecessem nos seus bairros e não transbordassem para bairros rivais, pois, dessa forma, poderiam causar rixas, distúrbios, crimes e motins.

Lançados os preparativos necessários, Sila partiu para a sua villa de Miseno, com a mulher, a filha, os filhos pequenos, os netos, a enteada e Mamerco. Dalmática evitava-o desde o rompimento do casamento de Emília Escaura com Glábrio. Porém, sempre que a via, ainda que de passagem, Sila tinha a clara sensação de que ela estava doente. Uns dias de repouso junto ao mar era o que ela estava a precisar. A sua comitiva era ainda engrossada pelo cônsul Decula, que fazia o esboço de todas as leis de Sila, e pelo ubíquo Crisógono.

Por causa destes dois últimos acompanhantes, só ao fim de alguns dias Sila teve oportunidade de passar algum tempo com a mulher, que continuava a fazer tudo para o evitar.

— Não vale a pena continuares a reprovar-me por coisas como o caso de Emília — disse ele, num tom razoável mas que não continha qualquer sugestão de arrependimento. — Farei sempre aquilo que tiver de fazer. Já devias saber isso, Dalmática.

Estavam sentados num recanto da varanda que dava para o mar, refrescada por uma brisa suave e pela sombra de um renque de ciprestes. Apesar de a luz não ser muito intensa, era visível que os ares saudáveis da região não tinham provocado melhoras em Dalmática; continuava a ter um ar abatido, uma tez de uma tonalidade cinza, e parecia ter muito mais idade do que os seus 37 anos.

— Eu sei — disse ela, em resposta àquela proposta de paz, mas não tão serena como desejaria. — Quem me dera poder aceitar isso! O problema é que, quando são os meus filhos que estão envolvidos, as coisas são diferentes.

— Glábrio tinha de ser afastado — retorquiu Sila. — E só havia uma maneira de fazer isso — separá-lo da minha família. Emília é jovem. Acabará por se refazer do choque. E Pompeu não é assim tão mau tipo.

— Está abaixo dela.

— Concordo. No entanto, preciso de tê-lo preso a mim. O casamento entre Pompeu e Emília também é uma maneira de dizer a Glábrio que não tenha mais o atrevimento de falar contra mim, pois eu até tenho o poder de dar a filha de Escauro a um qualquer Pompeu do Piceno. — Franzindo o sobrolho, acrescentou: — Deixa estar as coisas como estão, Dalmática! Tu não tens forças que cheguem para lutar comigo.

— Sei isso muito bem — disse ela, com uma voz sumida.

— Tu não estás bem, e eu começo a pensar que o teu estado não tem nada a ver com Emília — disse ele, mais afável. — Diz-me, o que é que se passa?

— Creio... Creio...

— Diz-me!

— Creio quevou ter outro filho.

— Júpiter! — exclamou ele, surpreendido. Mas depressa recuperou do espanto e fitou a mulher com um ar sombrio.

— Concordo que nenhum de nós desejaria um filho nesta altura — disse ela, abatida. — Receio ser demasiado velha.

— Se tu és demasiado velha, que hei-de eu dizer de mim? — E encolheu os ombros, parecendo mais feliz. — Pois bem, o que está feito, está feito, e eu mereço tanta censura como tu. É claro que não queres abortar, pois não?

— Já nãovou a tempo, Lúcio Cornélio. Não seria seguro para mim, a criança já tem cinco meses. Não dei por nada. Francamente. Quando me apercebi de que estava grávida, já era demasiado tarde.

— Não foste vista por um médico? Por uma parteira?

— Ainda não. Ele levantou-se. —vou mandar chamar Lúcio Túcio. Dalmática teve um sobressalto.

— Oh, Sila, por favor, não o chames! Ele foi cirurgião do exército, não sabe nada de mulheres!

— É melhor do que todos os teus malditos físicos gregos!

— Para tratar de homens, sim, sem dúvida. Mas eu preferia ser vista por uma física de Nápoles ou Putéolos.

Sila abandonou a luta.

— Pois bem, consulta quem quiseres — disse ele e, sem mais, abandonou a varanda.

Várias físicas e parteiras foram vê-la; todas concordaram que Dalmática estava esgotada, mas acrescentaram que, à medida que o tempo da gravidez fosse passando, se sentiria melhor.

E assim, nas Nonas de Sextilis, os escravos fizeram as malas e a comitiva partiu para Roma. Sila foi à frente, porque não tinha paciência para acompanhar o ritmo de caracol imposto pelas liteiras em que vinham as mulheres. Por isso, chegou à cidade dois dias antes do resto do grupo, mergulhando de imediato nos últimos pormenores da sua festa.

— Todos os padeiros de Roma foram contratados para fazer o pão e os bolos e os carregamentos especiais de farinha já foram entregues — disse-lhe Crisógono, com um ar enfatuado; Crisógono chegara a Roma ainda antes de Sila.

— E o peixe? Será todo fresco? com este calor...

— Está tudo tratado, Lúcio Cornélio. Mandei cercar uma secção do rio com redes e os peixes só estão à espera que os pesquem. Mil escravos começarão a tirar as tripas aos peixes e a cozinhá-los na manhã do banquete.

— E as carnes?

— A corporação dos abastecedores de carne garantiu-me que serão assadas no momento. Leitões, galinhas, enchidos, anhos. Recebi uma mensagem da Gália Italiana, segundo a qual as primeiras maçãs e peras do ano chegarão a tempo — quinhentas carroças escoltadas por dois esquadrões de cavalaria descem, neste momento, a Via Flamínia. Os morangos de Alba Fucência estão a ser colhidos e conservados em gelo do monte Fiscelo. Chegarão a Roma na noite anterior à festa — também sob escolta militar.

— É uma pena que as pessoas roubem tanto quando se trata de comida — disse o Ditador, que, na sua juventude, fora suficientemente pobre e passara bastantes vezes fome para entender as motivações das pessoas nesse campo específico.

— Se fosse só pão e papas, não haveria razões para nos preocuparmos, Lúcio Cornélio — disse Crisógono, com um ar mais casual. — Normalmente só roubam as coisas que têm sabores novos ou temperos diferentes.

— Tens a certeza de que o vinho chega?

— Haverá vinho e comida a mais, domine.

— Espero que não seja vinho avinagrado!

— Todo o vinho é excelente. Os vendedores que podiam sentir-se tentados a vender uma ou outra ânfora envinagrada sabem muito bem quem é o comprador — retorquiu Crisógono, com um sorriso que evocava outros tempos. — Disse-lhes que se encontrássemos uma só ânfora de vinagre, acabavam todos crucificados, fossem eles cidadãos romanos ou não.

— É preciso que não haja o mínimo empecilho, Crisógono. O mínimo empecilho!

Mas os empecilhos, quando surgiram, não tinham qualquer ligação (ou assim parecia) com a festa; o problema era Dalmática, que chegou a Roma rodeada de todas as parteiras que Cornélia Sila encontrou nas cidades por onde tinham passado.

— Ela está a sangrar — disse a filha de Sila ao pai. ele fitou-a com uma expressão de evidente alívio.

— Vai perder a criança? — perguntou, impaciente.

— Parece que sim.

— Antes assim.

— Concordo que não será uma tragédia se perder a criança — disse Cornélia Sila, que não desperdiçava as suas energias irritando-se ou indignando-se com o pai; conhecia-o demasiado bem. — Mas o grande problema é a própria Dalmática, tata.

— Que queres dizer?

— Quero dizer que ela pode morrer.

Uma sombra negra de horror toldou-lhe os olhos, sem que a filha percebesse minimamente o que significava essa sombra; e, logo de seguida, abanando violentamente a cabeça, Sila exclamou:

— Sim, sim, ele é o arauto da morte! É sempre o preço mais alto que ele pede! Mas não me importa, não me importa! — A expressão estupefacta de Cornélia Sila fê-lo cair em si mesmo. —- Mas ela é uma mulher forte, não morrerá — disse ele, bufando.

— Espero que não. Sila levantou-se.

— Ela não quis vê-lo, mas agora vai vê-lo. Quer queira, quer não.

— Quem?

— Lúcio Túcio.

Quando o antigo cirurgião entrou no gabinete de Sila, algumas horas depois, vinha com um ar grave. E Sila, que esperara todas essas horas sozinho, passara do horror inicial, o horror perante o facto de que, sempre que via Metróbio, algum dos seus entes queridos tinha de morrer, a fortes sentimentos de culpa e, finalmente, à resignação. A última coisa que queria era ver Dalmática, pois não acreditava que suportasse vê-la.

— Não trazes boas notícias, Túcio.

— Pois não, Lúcio Cornélio.

— Qual é exactamente o problema? — perguntou Sila.

— Parece haver uma impressão generalizada de que Dalmática está grávida e é isso certamente o que ela pensa — disse Lúcio Túcio. — Mas, francamente, duvido da existência de um feto no seu útero.

As manchas carmins das cicatrizes de Sila tinham-se tornado mais nítidas que o costume.

— Nesse caso, que tem ela no útero?

— As mulheres falam de hemorragias, mas a perda de sangue é demasiado lenta para que se trate de hemorragias — disse o médico, com a testa franzida. — Há algum sangue, mas misturado com uma substância que cheira mal e a que eu chamaria pus, se ela fosse um soldado ferido. O meu diagnóstico é que se trata de alguma supuração interna, mas, com a tua permissão, Lúcio Cornélio, gostaria de dispor de outras opiniões.

— Faz o que muito bem entenderes — disse Sila, rispidamente. — Só te peço que as idas e vindas dos médicos não dêem nas vistas amanhã. Tenho um casamento amanhã. É claro que a minha mulher não poderá assistir, não é verdade?

— De maneira nenhuma, Lúcio Cornélio.

E foi assim que Emília Escaura, grávida de cinco meses do anterior marido, se casou com Cneu Pompeu Magno, na casa de Sila, sem o apoio de nenhuma das pessoas que realmente a amavam. E embora, sob os seus véus vermelhos e cor de açafrão, Escaura chorasse amargamente, Pompeu, mal a cerimónia acabou, fez tudo para a acalmar e para lhe agradar, e com tanto êxito que, quando abandonaram aquela casa, já ela conseguia sorrir.

Devia ser Sila a informar Dalmática daquela inesperada reviravolta no comportamento de Escaura, mas Sila continuava a arranjar desculpas para não entrar nos aposentos da esposa.

— Creio — disse Cornélia Sila, que fazia as vezes do pai nestas circunstâncias — que ele não suporta ver-te tão doente. Sabes bem como ele é. Se o doente é alguém com quem não tem qualquer ligação, mostra-se completamente indiferente. Mas se é alguém que ele ama, não consegue enfrentar a situação.

Havia um cheiro a decomposição no vasto e arejado quarto de Dalmática; um cheiro que se tornava mais forte à medida que o visitante se aproximava da cama. Cornélia Sila sabia que a madrasta estava a morrer; Lúcio Túcio tinha razão: não era um bebê o que ela tinha no útero. Ninguém parecia saber o que dera ao seu pobre ventre os contornos de um arremedo de gravidez; mas toda a gente sabia que era algo de mórbido, de maligno. A pútrida descarga não cessava de fluir, impiedosa, daquele corpo, e ela ardia em febre, uma febre que nenhum remédio ou cuidado parecia poder abrandar. No entanto, Dalmática continuava consciente, e os seus olhos, brilhantes como duas chamas, fixavam-se, doloridos, na enteada.

— Eu não conto — disse ela, revolvendo a cabeça na almofada ensopada em suor. — Só quero saber como está a minha pobre Emília. Correu muito mal?

— De facto, até correu bem — disse Cornélia Sila, com surpresa na voz. — Acredites ou não, minha querida madrasta, a verdade é que estava com um ar feliz quando partiu para a sua nova casa. Olha que Pompeu é um homem notável! Eu nunca o tinha visto de perto e, por outro lado, estava cheia de preconceitos contra ele, os preconceitos que qualquer Cornélio teria. Mas a verdade é que ele é um homem muito bem-parecido, muito mais atraente do que aquele idiota do Glábrio! E, pelos vistos, não lhe falta simpatia, nem encanto. De tal maneira que Escaura começou a cerimónia a chorar e, quando tudo acabou, parecia outra, muito mais animada. E tudo graças às palavras amorosas de Pompeu.

Garanto-te, Dalmática, que aquele homem tem muito mais qualidades do que eu pensava. Aposto que faria feliz qualquer mulher. Dalmática pareceu acreditar no que lhe dizia Cornélia.

— Correm muitas histórias acerca dele. Há uns anos atrás, quando ele era pouco mais que um miúdo, dizia-se que tinha relações com Flora — sabes de quem estou a falar?

— A famosa prostituta?

— Sim. Ela já não é nova, mas, segundo me disseram, continua a chorar por Pompeu, que, diz ela, lhe deixava as marcas dos dentes no corpo todo — não posso entender como é que ela gostava de uma coisa dessas, mas pelos vistos gostava! Ele cansou-se dela e passou-a a um dos seus amigos. A mulher ficou destroçada. Pobre criatura! Uma prostituta apaixonada é sempre tão ridícula!

— Pode ser que Emília Escaura acabe por agradecer ao tata por a ter libertado de Glábrio.

— Ah, o teu pai! Quem me dera que ele viesse ver-me!

Finalmente, chegou o dia anterior aos Idos de Sextilis; Sila doou a sua Coroa de Erva e as suas insígnias triunfais, pois esse era o costume quando um homem de renome militar procedia a um sacrifício na Ara Máxima do Fórum Boarium. Precedido pelos seus lictores e chefiando um desfile de membros do Senado, o Ditador caminhou desde a sua casa até aos Degraus de Caco e daí até aos terrenos onde costumavam decorrer os mercados de carne. Quando passou pela estátua do deus — nesse dia, vestido com trajes triunfais —, fez uma pausa para o saudar e orar. Depois, deslocou-se até ao Grande Altar, atrás do qual ficava o pequeno templo redondo de Hércules Invicto, uma velha estrutura dórica que gozava de alguma fama por possuir alguns frescos executados pelo famoso poeta trágico Marco Pacúvio.

A vítima, um gordo bezerro de pelagem creme, estava à espera, entregue aos cuidados do popa e do cultarius, ruminando ervas aspergidas de substâncias entorpecentes e observando, com os seus meigos olhos castanhos, os frenéticos preparativos do banquete nos terrenos do mercado. Embora Sila usasse a sua Coroa de Erva, os outros membros do desfile tinham coroas de louros e, quando o jovem Dolabela — pretor urbano e, por isso, encarregado de tais cerimónias — deu início às suas orações a Hércules Invicto, ninguém cobriu a cabeça. Por ser um estrangeiro, Hércules era adorado segundo a tradição grega, ou seja, de cabeça descoberta.

Tudo decorria sem qualquer problema. Como dador do bezerro e celebrante da festa pública, Sila baixou-se para apanhar algum do sangue com o skyphos, uma taça especial pertencente a Hércules. Porém, quando se agachou para encher a taça, uma forma pequena e negra intrometeu-se, tão furtiva quanto uma sombra, entre o Pontifex Maximus e o cultarius, mergulhou o focinho na poça de sangue que se espalhava pelas lajes e começou a lamber ruidosamente.

com um salto, Sila recuou e ergueu-se, ao mesmo tempo que emitia um grito de horror que parecia vindo das entranhas. A sua mão nervosa deixou cair o skyphos e a Coroa de Erva, já ressequida, deslizou-lhe pela cabeça e foi cair no meio do sangue. Nesse momento, já o pânico se espalhava mais depressa do que a poça de sangue que o cão preto, esfomeado, continuava a lamber. Os homens dispersavam em todas as direcções, alguns dando gritos estridentes, outros arrancando as coroas de louros, outros ainda arrancando mancheias de cabelo; ninguém sabia o que fazer, ninguém sabia como pôr um fim àquele pesadelo.

Foi Metelo Pio, o Pontifex Maximus, quem tirou o maço das mãos do estupefacto popa, com ele desferindo um golpe na cabeça do cão. O cão deu um único guincho e começou a rodopiar, executando algo que se assemelhava a uma dança circular, rangendo muito os dentes, até que, após o que parecia ter sido uma eternidade, caiu no meio da poça de sangue, o corpo ainda varado por convulsões e, lentamente, vomitando uma espuma ensangüentada, foi perdendo todo o sinal de vida.

Mais pálido ainda que Sila, o Pontifex Maximus deixou cair o maço.

— O ritual foi profanado! — exclamou com a mais poderosa voz que alguma vez lhe fora ouvida. — Pretor urbano, temos de começar tudo de novo! Senadores, controlem-se! E onde estão os escravos de Hércules, que deviam ter impedido a entrada do cão neste recinto?

O popa e o cultarius chamaram então os escravos do templo, que se tinham ido embora antes da cerimónia começar, atraídos pelas iguarias que começavam a ser distribuídas pelas mesas. com a peruca descaída, Sila encontrou finalmente forças para se baixar e pegar na sua Coroa de Erva, salpicada de sangue.

— Tenho de ir a casa tomar um banho — disse a Metelo Pio. — Estou sujo. De facto, estamos todos sujos e todos temos de ir tomar banho. Voltamos a encontrar-nos dentro de uma hora. — Depois, virando-se para o jovem Dolabela, disse-lhe, num tom menos simpático: — Depois de limparem toda essa porcaria e de atirarem ao rio a carcaça do bezerro e essa horrenda criatura, manda os viri capitules prender os escravos até amanhã. Depois, crucifica-os — e não lhes partas as pernas. É preciso que demorem dias a morrer. Aqui, no Fórum Boiaram, à vista do deus Hércules. Ele não os quer, porque eles fizeram com que este sacrifício fosse profanado por um cão.

Sujo, sujo, sujo, sujo: Sila repetia mentalmente essa palavra enquanto se dirigia para casa para tomar banho e vestir, desta feita, a toga praetexta — um homem não podia possuir mais do que um traje triunfal. Quanto à Coroa de Erva, limpou-a com as suas próprias mãos, chorando desoladamente porque, apesar dos seus gestos delicados, a coroa acabou por se desintegrar. O que restava da coroa, quando finalmente a pôs a secar sobre um pano branco, eram uns meros fragmentos desconexos. A minha corona graminea já não existe. Estou amaldiçoado. A minha sorte desapareceu. A minha sorte! Como posso eu viver sem a minha sorte? Quem mandou aquele rafeiro negro, quem o arrancou às regiões ínferas, quem o trouxe da região das trevas e o levou até ali? Quem me estragou este dia, agora que Caio Mário não o pode fazer? Metróbio? Estou a perder Dalmática por causa dele! Não, não é Metróbio...

Sila regressou então à Ara Máxima de Hércules Invicto, usando agora uma coroa de louros como todos os demais, avançando pelo caminho que os seus aterrados lictores iam implacavelmente abrindo por entre a multidão, que se aglomerava já para participar no banquete. Havia ainda umas quantas carroças puxadas por bois levando provisões para as mesas; os homens que as conduziam entraram em pânico, ao verem o cortejo de sacerdotes aproximar-se; correram a desviar os bois e a retirá-los do caminho; se um boi deixasse alguma bosta no caminho dos sacerdotes, estes ficariam sujos e o proprietário do boi seria muito provavelmente açoitado e condenado a uma pesada multa.

Crisógono arranjara um segundo bezerro tão bonito como o primeiro e que se mostrava já muito entontecido, por causa da droga que o chefe dos criados de Sila lhe empurrara literalmente pelas goelas abaixo. A cerimónia voltou então ao princípio e, desta feita, tudo correu na perfeição. Os trezentos senadores presentes passaram toda a cerimónia a esquadrinhar o recinto, não fosse aparecer outro cão, e, por isso, pouca atenção prestaram ao ritual.

Uma vítima sacrificada em honra de Hércules Invicto não podia ser retirada da pira montada ao lado do Grande Altar do deus; por isso, tal como sucedera com o touro branco de César, também o bezerro ficou a ser consumido pelas chamas, enquanto as testemunhas dos horrendos eventos daquela manhã correram para casa logo que puderam. Só Sila não foi para casa. Tal como planeara, passeou pelas ruas da cidade, manifestando o voto de que a populaça pudesse partilhar a sua boa sorte. Mas como poderia ele manifestar um tal voto, se, por obra de um rafeiro negro, Fortuna deixara de o considerar seu favorito?

Construídas com pranchas montadas sobre armações, cinco mil mesas regurgitavam de comida e o vinho corria mais depressa que o sangue num campo de batalha. Desconhecendo o desastre ocorrido na Ara Máxima, mais de meio milhão de homens e mulheres empanturravam-se de peixe e fruta e bolos de mel, e enchiam os sacos que tinham trazido para que aqueles que haviam ficado em casa — incluindo os escravos — pudessem também festejar. Saudavam Sila com gritos de júbilo e invocações aos deuses e prometiam-lhe que se lembrariam dele nas suas orações, enquanto fossem vivos.

A noite caía quando Sila finalmente regressou à sua casa do Palatino, onde mandou embora os lictores com agradecimentos e a notícia de que poderiam festejar no dia seguinte, no seu recinto situado na esquina da Clivus Orbius.

Cornélia Sila estava à espera dele no átrio.

— Pai, Dalmática quer que vás vê-la! — disse-lhe.

— Estou exausto — atirou-lhe Sila, sabendo que nunca conseguiria enfrentar a sua mulher, a quem amava, mas não o suficiente.

— Por favor, pai, vai vê-la! Enquanto não te vir, ela não desiste daquela ideia imbecil que a tua conduta pôs na sua cabeça!

— Mas que ideia é essa? — perguntou ele, despindo a toga e encaminhando-se rapidamente para o altar de Lares e Penates. Aí chegado, baixou a cabeça, partiu um torrão de sal na prateleira de mármore e depôs sobre o sal a coroa de louros.

A filha esperou pacientemente pelo fim daquela cerimónia.

— Mas que ideia imbecil é essa? — perguntou ele de novo.

— Ela pensa que está suja. Está constantemente a dizer que está suja.

Sila ficou como que petrificado, assaltado por todo o horror deste mundo, possuído por um sem-número de abomináveis sensações que não conseguia controlar nem suportar. Num repente, arremessou os braços, como se à sua frente estivessem assassinos e fitou a filha com os olhos de um tresloucado, dominado por uma loucura que a filha nunca lhe tinha visto em toda a sua vida.

— Suja! — berrou. — Suja!

Desatou a correr, desapareceu de casa.

Ninguém sabia onde passara a noite, embora Cornélia Sila tivesse mandado grupos armados de archotes procurá-lo no meio das ruínas das cinco mil mesas do banquete. Porém, aos primeiros raios de sol, Sila voltou a casa, vestido unicamente com a sua túnica; no átrio, deu com a filha, ainda à espera dele. Crisógono, que permanecera ao lado de Cornélia Sila durante toda a noite porque também ele estava muito assustado, avançou hesitante na direcção do amo.

— Ainda bem que estás aqui — disse Sila. — Informa todos os sacerdotes — maiores e menores! — de que devem ir ter comigo, dentro de uma hora, ao templo de Castor no Fórum.

— Pai? — perguntou Cornélia Sila, confusa.

— Hoje não quero conversas com mulheres. — Foi tudo o que ele lhe respondeu antes de se encaminhar para os seus aposentos.

Sila lavou-se escrupulosamente e rejeitou três togas debruadas a púrpura por as achar sujas; só a quarta lhe pareceu absolutamente limpa. Depois, precedido pelos lictores (quatro dos quais tiveram de mudar de toga, pois as que tinham estavam sujas), deslocou-se ao templo de Castor e Pólux, onde os sacerdotes esperavam apreensivos.

— Ontem — disse ele, sem preâmbulos —, ofereci um décimo de todos os meus bens a Hércules Invicto. Hércules Invicto é um deus de homens, apenas de homens. Nenhuma mulher pode aproximar-se do seu Grande Altar e, em memória da sua jornada ao Mundo Inferior, os cães não podem entrar nos seus domínios, pois os cães são criaturas ctonianas, tal como todas as criaturas negras. Hércules é servido por vinte escravos, cujo principal dever consiste em velar para que não entrem nos seus domínios nem mulheres, nem cães, nem criaturas negras. Ontem, porém, um cão preto bebeu o sangue da primeira vítima que ofereci ao deus, o que constitui uma ofensa horrenda para qualquer deus — e também para mim. Que poderei eu ter feito, perguntei-me então, para incorrer em tal ofensa? Foi de boa fé que consagrei ao deus uma oferenda avultada e também uma vítima sacrificial que respeitava todas as normas estabelecidas. Foi de boa fé que esperei que Hércules Invicto aceitasse a minha oferenda e o meu sacrifício. Mas em vez disso, um cão preto bebeu o sangue do bezerro na Ara Máxima. E a minha Coroa de Erva foi poluída ao cair no sangue que o cão preto bebia.

Os noventa homens que Sila convocara escutavam-no como que paralisados, sentindo formigueiros na pele só de pensarem em tão grave profanação. Todos esses homens tinham assistido à cerimónia; depois, tinham recolhido a casa, horrorizados, e passado o resto do dia e da noite interrogando-se sobre o que poderia haver de errado naquilo tudo, sobre as razões que teriam levado o deus a manifestar tamanho desagrado em relação ao Ditador de Roma.

— Os livros sagrados desapareceram e não dispomos, por isso, de qualquer ponto de referência — prosseguiu Sila, perfeitamente consciente do que pensavam aquelas cabeças que tinha à sua frente. — Quis o deus que fosse a minha filha a agir como seu mensageiro. Ela preenchia todos os critérios: falou sem se aperceber da importância do que estava a dizer; e falou sem saber dos eventos que ocorreram em frente do Grande Altar de Hércules Invicto.

Sila deteve-se, perscrutando as primeiras filas, mas sem encontrar o rosto que procurava.

— Pontifex Maximus, vem cá! — ordenou ele, no tom formal de um sacerdote.

As filas da frente agitaram-se um pouco para dar passagem a Metelo Pio.

— Aqui estou, Lúcio Cornélio.

— Quinto Cecílio, tu estás intimamente envolvido nisto. Quero-te de costas para os outros, porque nenhum homem pode ver o teu rosto. Desejaria também ter esse privilégio, mas todos os presentes têm de ver o meu rosto. O que tenho a dizer é o seguinte: a minha esposa, Cecília Metela Dalmática, filha de um Pontifex Maximus e prima direita do nosso actual Pontifex Maximus, está... — Sila respirou fundo — ...está suja. No preciso momento em que a minha filha me disse isto, eu soube que essa era a verdade. A minha esposa está suja. O seu ventre está a apodrecer. Eu sabia disso há algum tempo. Mas não sabia que o estado de saúde da pobre mulher poderia constituir uma ofensa aos deuses dos homens. Só fiquei a sabê-lo quando a minha filha falou. Hércules Invicto é um deus de homens. Tal como Júpiter Optimus Maximus. A mim, que sou um homem, foi-me confiado o governo de Roma. A mim, que sou um homem, foi-me confiada a tarefa de ajudar Roma a recuperar das guerras e das vicissitudes de muitos e muitos anos. Quem eu sou e aquilo que eu sou é o que importa. E nada na minha vida pode ser impuro. Nem mesmo a minha esposa. É isto que eu hoje posso concluir. Agora diz-me, Quinto Cecílio, Pontifex Maximus, são correctas as minhas conclusões?

Ah, o que o Bacorinho tinha crescido!, pensou Sila, o único que podia ver o seu rosto. Ainda ontem era ele que recebia todas as ordens e agora é ele o único que pode saber de tudo sobre os deuses e os homens!

— Sim, Lúcio Cornélio — disse Metelo Pio, num tom firme.

— Convoquei-os para que procedam à consulta dos auspícios e decidam o que deve ser feito — prosseguiu Sila. — Informei-os da situação e comuniquei-lhes aquilo em que acredito. Porém, de acordo com as leis que promulguei, não posso tomar nenhuma decisão sem vos consultar. E isto é reforçado pelo facto de que a pessoa mais afectada é a minha esposa. Naturalmente, não se pode inferir daqui que me servi desta situação para me ver livre da minha mulher. Eu não quero ver-me livre da minha mulher, isto que fique claro. Que fique claro nas vossas mentes e, através de vós, nas mentes de todos os Romanos. Tendo isso em conta, acredito que a minha mulher está impura e acredito que os deuses dos homens estão ofendidos. Pontifex Maximus, como chefe da nossa religião romana, que tens a dizer?

— Tenho a dizer que os deuses dos homens estão ofendidos — disse Metelo Pio. — Tenho a dizer que deves apartar a tua mulher de ti, que nunca mais deves olhar para ela e que não deves permitir que ela polua a tua residência ou a tua missão legalmente autorizada.

O rosto de Sila revelava uma profunda tristeza; isso era evidente para todos.

— Eu amo a minha mulher — disse ele, com voz grave. — Ela foi-me leal e fiel. Deu-me filhos. Antes de mim, foi a esposa leal e fiel de Marco Emílio Escauro e deu-lhe filhos. Não sei por que motivo os deuses dos homens exigem isto de mim, nem por que razão a minha mulher deixou de lhes agradar.

— A tua afeição pela tua mulher não está em causa — disse o Pontifex Maximus, seu primo direito. — Nenhum de vós ofendeu necessariamente os deuses, tanto os deuses dos homens como os das mulheres. Será melhor dizer que a presença dela na tua casa ou a tua presença na vida dela, de uma forma que ignoramos, obstruiu ou distorceu os caminhos através dos quais a graça e os favores divinos são conduzidos até Roma. Em nome dos meus confrades sacerdotes, afirmo que nenhum de vós é merecedor de censura. Que não há qualquer falta, nem do teu lado, Lúcio Cornélio, nem da parte da tua mulher. O que é, é. E não há mais nada a dizer.

Virou-se então para a silenciosa assembleia e disse, com uma voz forte, grave e sem falhas:

— Eu sou o vosso Pontifex Maximus! O facto de eu falar sem gaguejar uma única vez é prova suficiente de que Júpiter Optimus Maximus me está a usar como seu porta-voz e de que ele me ofertou a sua língua. E por isso digo que a mulher deste homem está suja, que a sua presença na vida dele e na casa dele é uma afronta aos nossos deuses e que ela deve ser afastada da vida dele e da casa dele imediatamente. Não peço nenhuma votação. Se algum homem aqui presente discorda de mim, que o diga neste momento!

O silêncio foi profundo, como se afinal não houvesse ali nenhum homem.

Metelo Pio virou-se então para o Ditador.

— Ordenamos-te, Lúcio Cornélio Sila, que dês instruções aos teus criados para que retirem a tua esposa, Cecília Metela Dalmática, da tua casa, e a levem para o templo de Juno Sospita, onde deve permanecer até morrer. Não deves de forma nenhuma e em nenhuma ocasião olhar para ela. E depois de ela ter sido levada para o templo, o Rex Sacrorum e o flamen Martialis que faz as vezes do flamen Dialis devem proceder aos ritos de purificação na casa de Lúcio Cornélio Sila.

Depois de ter coberto a cabeça com a toga, acrescentou:

— Ó Gémeos Celestiais, vós que vos chamais Castor e Pólux, ou os Dioscuros, ou os Deuses Penates, ou que podereis ter qualquer outro nome do vosso agrado, e que podeis ser deuses ou deusas ou não ter qualquer sexo, nós viemos reunir-nos no vosso templo porque precisamos da vossa intercessão junto do poderoso Júpiter Optimus Maximus — de quem podeis ou não ser filhos — e do triunfador Hércules Invicto. Pedimos-vos que testemunheis junto de todos os deuses que nós somos sinceros e que lutámos por corrigir o que quer que estivesse errado. Conforme os nossos acordos, que remontam à batalha do lago Regilo, aqui vos prometemos um sacrifício de potros brancos gémeos logo que encontremos uma tão rara oferenda. Suplicamos-vos que veleis por nós, como sempre fizesteis.

Procedeu-se depois à observação dos auspícios, os quais confirmaram a decisão do Pontifex Maximus. A luz clara da manhã, que invadia o interior do templo através da porta aberta, tornou-se de repente sombria quando o sol se moveu na direcção do zénite; nesse mesmo instante, um misterioso vento gelado assobiou em torno do templo.

— Só mais uma questão antes de nos irmos — disse Sila. Os pés dos sacerdotes ficaram imediatamente quietos.

— Temos de substituir os Livros Sibilinos, pois embora dispunhamos do Livro de Vegos e Tagete, que se encontra em segurança no templo de Apoio, a verdade é que esse livro de nada nos serve no que respeita aos deuses estrangeiros, como é o caso de Hércules Invicto. Há muitas sibilas por todo o mundo e algumas delas estão ligadas por laços de sangue à Sibila de Cumas, que escreveu os seus versos em folhas de palma e os ofereceu ao rei Tarquínio Prisco. Pontifex Maximus, desejaria que encarregasses alguém de organizar uma busca por todo o mundo, tendo em vista encontrar os versos que estavam contidos nos nossos livros proféticos.

— Tens toda a razão, Lúcio Cornélio. Esse trabalho tem de ser feito — disse Metelo Pio, gravemente. — Escolherei um homem adequado para tal tarefa.

O Ditador e o Pontifex Maximus seguiram juntos para a casa do primeiro.

— A minha filha não vai reagir bem — disse o Ditador. — Mas se receber as ordens de ti, é possível que não me censure pelo que vai acontecer.

— Lamento muito tudo isto.

— Também eu — disse Sila com uma expressão infeliz. Cornélia Sila acreditou no pai, um facto que a surpreendeu tanto a ela como a ele.

— Acredito que a amas sinceramente, pai, e não penso tão mal de ti que chegue ao ponto de crer que queres ver-te livre dela.

— Como está ela? Está a morrer? — perguntou Metelo Pio, cheio de remorsos porque tinha sido ideia sua encerrar Dalmática no templo de Juno Sospita enquanto vivesse.

— Já está por pouco, segundo Lúcio Túcio. Ela tem um tumor.

— Então façamos de imediato o que tem de ser feito. Oito corpulentos carregadores de liteira levaram Dalmática do seu leito para o templo de Juno Sospita; no entanto, essa curta viagem não se fez em silêncio, como a gravidade do momento exigiria. A leniência e dignidade com que a esposa de Sila se comportara durante toda a sua vida desapareceram no momento em que a informaram da decisão dos sacerdotes e em que ela se apercebeu de que nunca mais voltaria a ver Sila. Protestou, chorou, gritou o nome dele incessantemente enquanto a levavam, enquanto Sila se encerrava no seu gabinete, as mãos tapando os ouvidos, as lágrimas correndo-lhe pelo rosto. O preço a pagar. Mas tinha de pagá-lo por amor a Fortuna? Ou por amor a Metróbio?

Havia quatro templos seguidos, no exterior das Muralhas Sérvias, nos terrenos dos mercados de legumes: Pietas, Janus, Spes e Juno Sospita. Esta Juno não era uma das deusas que se ocupavam basicamente das mulheres grávidas, mas, para além de ser simultaneamente uma derivação guerreira da Grande Mãe de Pessinunte, Juno das Cobras de Lanúvio e Rainha dos Céus, ela era também a Salvadora das Mulheres. Talvez por causa deste último aspecto da sua identidade, as mulheres de Roma tinham, desde há muito tempo, o hábito de lhe ofertar as páreas sempre que tinham um parto bem sucedido.

Na época da Guerra Italiana, quando o dinheiro escasseava e os escravos dos templos eram poucos, Metela Baleárica, que fora esposa de Ápio Cláudio Fulcro, sonhara que Juno Sospita lhe aparecera e se queixara amargamente de que o seu templo estava tão sujo que não podia viver nele. Então, Baleárica foi ter com o cônsul, Lúcio César, e pediu-lhe que a ajudasse a limpar o templo. Encontraram mais do que placentas apodrecidas; todo o templo era um pântano infecto e putrefacto, juncado dos restos de mulheres mortas, de cadelas mortas, de crianças mortas, e de ratos. Grávida na altura em que ela e Lúcio César se entregaram a tão repulsivo labor, Cecília Metela Baleárica morrera dois meses depois de ter dado à luz o seu sexto filho, Públio Clódio.

Desde então, porém, o templo resplandecia de limpeza; as páreas ofertadas eram colocadas num cesto devidamente estanque e levadas regularmente para serem ritualmente queimadas pela flaminica Dialis (ou, na presente época, por aquela que fazia as suas vezes). Cornélia Sila preparara um recanto do templo para instalar a cama de Dalmática. Os carregadores da liteira levaram-na até à cama, horrorizados porque eram homens e tinham penetrado num templo de mulheres. Dalmática continuava a gritar por Sila, mas já com uma voz débil, perto do fim, e parecia não reconhecer o sítio onde estava.

Uma estátua pintada da deusa erguia-se sobre um plinto; usava sapatos com as biqueiras viradas para cima, brandia uma lança e enfrentava uma serpente que se erguia para ela; mas o traço mais impressionante da sua imagem era a pele de cabra que lhe caía pelos ombros, atada à sua cintura, e com a cabeça e os cornos da cabra cobrindo o cabelo castanho-escuro da deusa como se fosse um capacete. Foi aí, à sombra desta bizarra imagem, que Cornélia Sila e Metelo Pio se sentaram, afagando as mãos de Dalmática para a ajudarem a vencer as mortais barreiras da dor e da perda. A espera foi breve, e revelou-se uma provação mais espiritual que física. A pobre mulher morreu a chamar por Sila, surda às respostas sensatas de Cornélia Sila e Metelo Pio.

Logo que morreu, o Pontifex Maximus ordenou aos agentes funerários que instalassem o lectus funebris no templo, já que ela não podia ser levada para a sua casa. Por outro lado, também não podia ser exibida perante ninguém; puseram-na na tradicional posição vertical, completamente coberta por um tecido negro, debruado a ouro; rodeavam-na as carpideiras profissionais e, como pano de fundo, tinha aquela estranha deusa vestida com uma pele de cabra e empunhando uma lança perante uma serpente ameaçadora.

— Se fui eu que elaborei a lei sumptuária, então posso-me dar ao luxo de ignorá-la — disse Sila, logo após a morte da mulher.

Por isso, o funeral de Cecília Metela Dalmática custou cem talentos e foi acompanhado por mais de duas dúzias de actores que usavam as ancestrais máscaras de cera dos Cecílios Metelos e de duas famílias patrícias, os Emílios Escauros e os Cornélios Silas. Mas a multidão que encheu o Circo Flamínio (foi decidido que levar o seu corpo para dentro do pomerium seria imprudente, dado o seu estatuto impuro) deu menos atenção ao brilho das cerimónias do que a duas figuras vestidas de negro, os gémeos Fausto e Fausta, filhos de Dalmática, então com três anos, que davam a mão à sua gigantesca criada gaulesa.

Foi nas Calendas de Setembro que Sila atacou verdadeiramente a questão da revisão legislativa. O Senado estremeceu perante tão violenta investida.

— Os actuais tribunais caracterizam-se pela inépcia, pelo irrealismo e pelo desperdício de tempo — disse Sila, sentado na sua cadeira curul. — Nenhuma assembleia deveria reunir para assistir a processos civis ou criminais. Os procedimentos são demasiado longos, demasiado atreitos à manipulação política e demasiado influenciados pela fama ou pela popularidade do acusado; isto para não falar dos seus advogados de defesa. E um júri que pode chegar a conter vários milhares de eleitores é um corpo tão pesado e difícil de manejar como é pouco judicioso.

Rejeitando assim, de forma clara, o tradicional julgamento numa das Assembleias, Sila prosseguiu.

— Darei a Roma sete tribunais permanentes. Traição, extorsão, peculato, suborno, contrafacção, violência e assassínio. Todos estes tribunais, excepto o último, têm algo a ver com o Estado ou com o Tesouro, e serão presididos por um dos seus pretores júniores, de acordo com sorteio efectuado para esse efeito. O último tribunal julgará todos os casos de homicídio, incêndio criminoso, feitiçaria, envenenamento, perjúrio e um novo crime a que chamarei homicídio judicial, ou seja, exílio concretizado por intermédio da acção de um tribunal. É de esperar que este tribunal seja o que tem mais trabalho, apesar de o seu funcionamento ser o mais simples de todos. E será presidido por um homem que já foi edil, mas ainda não foi pretor. Os cônsules nomeá-lo-ão.

Hortênsio estava horrorizado, pois as suas maiores vitórias tinham sido obtidas numa das Assembleias, onde o seu estilo e capacidade para manipular multidões o tinham transformado numa lenda; júris pequenos eram demasiado íntimos para lhe servirem.

— Mas isso provocará a morte da genuína advocacia — exclamou.

— E que importância é que isso tem? — perguntou Sila, com um ar surpreendido. — Muito mais importante do que a advocacia é o processo judicial, e eu tenciono retirar os processos judiciais às Assembleias. Não tenhas ilusões quanto a este ponto, Quinto Hortênsio! No entanto, pedirei à Assembleia do Povo que aprove uma lei sancionando a instauração dos meus tribunais e, segundo o texto dessa lei, as três Assembleias deporão formalmente os seus direitos jurídicos nas mãos dos meus tribunais.

— Excelente — comentou o historiador Lúcio Cornélio Sisena. — Dessa forma, todos os homens que serão julgados pelos tribunais sê-lo-ão com o consentimento das Assembleias! Isso implica que um homem não poderá apelar para uma Assembleia depois de o tribunal ter pronunciado o seu veredicto.

— Exactamente, Sisena! Este procedimento torna o apelo nulo e sem valor e acaba com as Assembleias enquanto juizes de homens.

— Mas isso é abominável — gritou Catulo. — Não só abominável, como também absolutamente inconstitucional! Todos os cidadãos romanos têm direito a apelar!

— Apelo e julgamento passam a ser uma e a mesma coisa, Quinto Lutácio — disse Sila. — E assim ficará determinado no texto da nova constituição.

— A velha constituição era suficientemente boa para questões deste género!

— Em questões deste género, a história mostrou-nos a todos, de forma muito clara, que o texto da velha constituição fez com que não fossem condenados muitos homens que deveriam tê-lo sido, e unicamente porque uma qualquer Assembleia foi persuadida, por um qualquer artifício de retórica, a anular uma decisão legal de um tribunal. O capital político que era retirado de tais julgamentos e apelos perante as Assembleias era algo de absolutamente odioso, Quinto Lutácio. Actualmente, Roma é demasiado grande e demasiado movimentada para se deixar atolar em costumes e procedimentos inventados quando Roma pouco mais era que uma aldeia. Não nego a nenhum homem um julgamento justo. Na realidade, o que pretendo é dar a todos os homens julgamentos mais justos. E simplificar os procedimentos.

— E quanto aos júris? — perguntou Sisena.

— Os júris serão puramente senatoriais — mais uma razão para eu precisar de pelo menos quatrocentos homens no Senado. Os júris sempre foram uma pesada carga, e continuarão a sê-lo havendo, como haverá, sete tribunais. Contudo, tenciono reduzir o tamanho dos júris. O velho júri de cinqüenta e um homens será retido unicamente nos casos de grandes crimes contra o Estado. De futuro, o tamanho do júri dependerá do número de homens disponíveis e, se por qualquer razão, houver um número par de homens num júri, então um empate a nível de decisão será considerado como uma absolvição. O Senado encontra-se já dividido em decúrias de dez homens, cada uma das quais chefiada por um senador patrício. Usarei essas decúrias como a base para os júris, embora nenhuma decúria possa exercer permanentemente os seus deveres num tribunal particular. O júri para cada julgamento individual, em qualquer tribunal, será escolhido por sorteio, depois de a data do julgamento ter sido marcada.

- Apoiado! — exclamou o jovem Dolabela.

— Não apoiado! — exclamou Hortênsio. — Que acontece, por exemplo, se a minha decúria for escolhida para um júri e eu estiver ocupado a defender um cliente num outro julgamento?

— Pois num caso desses, terás de aprender a satisfazer os dois clientes, ou seja, o júri e o acusado, ao mesmo tempo — disse Sila, com um sorriso exultante. — As prostitutas fazem-no, Hortênsio! Por isso, não deves ter grande dificuldade em aprender...

— Quinto, por favor, cala-me essa boca — segredou-lhe Catulo.

— Quem decide o número de homens que devem pertencer a um determinado júri? — perguntou o jovem Dolabela.

— O presidente do tribunal — disse Sila. — Mas esse número terá de ser limitado. O critério a seguir terá de ser o número de decúrias disponíveis. Mas creio que um número entre vinte e cinco e trinta e cinco homens estaria bem. Nem todos os membros de uma decúria serão chamados ao mesmo tempo, porque isso faria com que o número de membros do júri fosse par.

— Cada um dos seis pretores júniores ficará com uma presidência de tribunal, atribuída por sorteio — disse Metelo Pio. — Isso significa que o velho sistema continuará a prevalecer no que toca à escolha de quem será pretor urbano e de quem será pretor externo?

— Não. Eu abolirei o sistema que dava o cargo de pretor urbano ao homem com mais votos e o cargo de pretor externo ao que vinha a seguir — retorquiu Sila. — De futuro, todos os oito cargos serão distribuídos puramente por sorteio.

Mas Lépido não estava interessado em saber com que atribuições ficaria cada um dos pretores; fez uma pergunta cuja resposta já conhecia, unicamente para obrigar Sila a formulá-la.

— Tencionas portanto impedir toda a participação dos cavaleiros nos tribunais?

— Absolutamente. com um breve intervalo, o controlo dos júris de Roma, desde os tempos de Caio Graco, sempre dependeu dos cavaleiros.vou acabar com isso! Caio Graco não se deu ao trabalho de incluir na sua lei uma cláusula que previsse o procedimento judicial contra um jurado cavaleiro acusado de corrupção. Mas eu farei com que os senadores sejam inteiramente responsabilizados perante a lei, isso vos garanto!

— Em que consistirá então a missão dos pretores urbano e externo? — perguntou Metelo Pio.

— Serão responsáveis por todos os litígios civis, — disse Sila —, bem como, no caso do pretor externo, pelos litígios criminais entre não romanos. Contudo,vou retirar ao pretor urbano e ao pretor externo o direito de pronunciar um veredicto num caso civil. Esse direito será exercido por um único juiz, escolhido por sorteio de um painel de senadores e cavaleiros, e esse homem actuará como iudex. A sua decisão vinculará todas as partes, embora o pretor urbano ou externo possa decidir supervisionar todos os procedimentos.

Catulo decidiu-se a falar porque Hortênsio, ainda vermelho e furioso com a piada de Sila, não se atrevia a perguntar.

— De acordo com o actual texto da constituição, só uma Assembleia legalmente convocada poderá aprovar uma sentença de morte. Se tencionas retirar todos os julgamentos às Assembleias, isso significa que darás aos teus tribunais o poder de formular uma sentença de morte?

— Não, Quinto Lutácio, não significa. Significa precisamente o contrário. A sentença de morte deixará de ser aplicada. As futuras sentenças limitar-se-ão a exílios, multas, e/ou confiscação de alguns ou todos os bens de um homem considerado culpado. As minhas novas leis também regularão as actividades do grupo que se debruçará sobre as indemnizações — esse grupo terá entre dois e cinco dos jurados escolhidos por sorteio mais o presidente do tribunal.

— Referiste sete tribunais — disse Mamerco. — Traição, extorsão, peculato, suborno, contrafacção, violência e assassínio. Mas já existe um tribunal para casos de violência pública previstos na lex Plautia. Tenho duas questões: primeira, que acontece a este tribunal? E segunda, que acontece em casos de sacrilégio?

— A lex Plautia deixa de ser necessária — disse Sila. Recostou-se na sua cadeira, com um ar satisfeito; o Senado parecia contente com a ideia de os procedimentos criminais serem retirados das mãos das Assembleias. — Os crimes de violência serão julgados, ou no meu tribunal específico para esses casos, ou então no tribunal de traição, para os casos em que a magnitude do crime o justifique. Quanto ao sacrilégio, as ofensas desse tipo são tão pouco freqüentes que não justificam o estabelecimento de um tribunal permanente. Um tribunal especial reunirá quando for necessário será presidido por um ex-edil. O seu comportamento, porém, será idêntico ao dos tribunais permanentes — não será possível apelar para as Assembleias. Se o caso tiver a ver com a eventual ausência de castidade por parte de uma Virgem Vestal, a sentença que prevê que a infractora seja enterrada viva será mantida. Mas o amante ou amantes da infractora serão julgados num outro tribunal e não incorrerão na pena de morte.

Sila pigarreou para logo prosseguir.

— Os nossos trabalhos, por hoje, estão praticamente acabados. Para terminar, gostaria de falar, em primeiro lugar, dos cônsules. Não é bom para Roma que os cônsules participem em guerras no estrangeiro. Esses dois homens, durante o ano em que exercem o seu cargo, deverão ser directamente responsáveis pelo bem-estar de Roma e de Itália, nada mais. Agora que os tribunos da plebe foram reconduzidos à sua merecida dimensão, espero que os cônsules se mostrem mais activos na promulgação de leis. Em segundo lugar, gostaria de falar da conduta no interior do Senado. De futuro, um homem poderá levantar-se para falar, se assim o desejar, mas deixará de poder andar de um lado para o outro enquanto fala. Terá de falar do lugar que lhe foi atribuído, sentado ou de pé. O barulho não será tolerado. Nada de aplausos, nada de bater com os pés, nada de chamamentos ou gritos. Os cônsules aplicarão uma multa de mil denários a qualquer homem que infringir as minhas novas normas de comportamento no interior do Senado.

Um pequeno grupo de senadores concentrou-se ao fundo dos degraus da Cúria Hostília depois de Sila ter encerrado a sessão; alguns deles (como Mamerco e Metelo Pio) eram adeptos indefectíveis de Sila, enquanto outros (como Lépido e Catulo) consideravam que Sila era o menor entre todos os males possíveis naquelas circunstâncias.

— Não há dúvida — comentou o Bacorinho — que estes novos tribunais livrarão os corpos legislativos de um pesado fardo. Deixaremos de perder tempo com as tentativas para levar a Assembleia da Plebe a reunir tribunais especiais, deixaremos de preocupar-nos por causa deste ou daquele cavaleiro que foi subornado. Sim, em minha opinião, estas reformas são boas.

— Oh, Pio, tu já és suficientemente velho para te lembrares de como correram as coisas depois de Cepião, o Cônsul, ter devolvido os tribunais ao Senado! — exclamou Filipe. — Eu estive sempre em júris, até mesmo durante o Verão! — E, virando-se para Marco Perperna, seu colega censor, acrescentou: — Tu lembras-te, com certeza!

— Lembro-me até demasiado bem — disse Perperna, enfaticamente.

— O vosso problema — disse Catulo — é que querem que o Senado controle os júris, mas já não gostam quando chega a vossa vez de servir. Se nós, membros do Senado, queremos dominar a estrutura global dos julgamentos, então temos de estar preparados para as coisas boas e para as coisas más.

— Agora não vai ser tão difícil como da outra vez — disse Mamerco, pacificamente. — Agora somos mais.

— Ora, ora, tu és o genro do Grande Homem, ele puxa pelos teus cordelinhos e tu ganes como um cão ou bales como uma ovelha — atirou-lhe Filipe. — Nós nunca seremos suficientes! E, com tribunais permanentes, não poderá haver atraso. Dantes, pelo menos, podíamos agüentar as coisas, levando as Assembleias a ocupar-se dos casos durante uns tempos, enquanto nós tirávamos férias. Agora, tudo o que o presidente de um tribunal tem de fazer é sortear os seus jurados! E nós nem sequer saberemos antecipadamente se pertenceremos a um júri. Por isso, nunca poderemos planear nada. Sila diz que os sorteios só serão realizados depois de a data do julgamento ter sido marcada. Agora é que eu estou a perceber! Dois dias de lazer junto ao mar e pronto: toca a regressar a Roma para fazermos parte de um desses malditos júris!

— Os deveres dos júris deviam ter sido repartidos — disse Lépido. — Os tribunais importantes — extorsão e traição — deviam ficar sob o controlo do Senado. O tribunal consagrado aos homicídios podia funcionar adequadamente com jurados cavaleiros — provavelmente até funcionaria bem se os seus júris fossem sorteados entre os capite censi!

— O que tu queres dizer com isso — contestou acidamente Mamerco — é que os júris que julgam senadores devem ser compostos por senadores, ao passo que os júris que julgam o resto das pessoas, por acusações como feitiçaria ou envenenamento, não são suficientemente importantes para os senadores.

— Sim, não anda muito longe disso — replicou Lépido, sorrindo.

— O que eu gostaria de saber — disse o Bacorinho, considerando que já era tempo de mudarem de assunto — é o que ele pretende fazer ainda em termos de legislação.

—- Quase apostava que não será para nosso proveito — disse Hortênsio.

— Que disparate, Hortênsio — disse Mamerco, muito pouco perturbado por o terem considerado como uma marioneta nas mãos de Sila. — Tudo aquilo que ele fez até agora só reforçou a influência do Senado e contribuiu para devolver a Roma os antigos valores e costumes.

— Se calhar — disse Perperna, com um ar pensativo. — Já é demasiado tarde para voltar aos velhos processos e aos velhos costumes. Muito do que ele aboliu ou alterou esteve connosco o tempo suficiente para merecer ser associado ao resto da mos maiorum. Ultimamente, a Assembleia da Plebe mais parece um clube de jogadores de dados. Essa situação não persistirá durante muito tempo, simplesmente porque não pode persistir. Os tribunos da plebe foram, durante séculos, os maiores legisladores de Roma.

— Sim, o que ele fez aos tribunos da plebe não é nada popular — disse Lépido. — Tens razão. A nova ordem de coisas na Assembleia da Plebe não pode persistir durante muito tempo.

Nas Calendas de Outubro, o Ditador provocou novos choques; alterou os limites sagrados de Roma nas vizinhanças do Fórum Boarium, aumentando-os mais de trinta metros: Roma ficava assim um tudo nada maior. Ninguém tinha mexido nas dimensões do pomerium desde os tempos dos reis de Roma; fazer uma coisa dessas era considerado como um sinal de realeza, era um acto não republicano. Mas esses preconceitos não deteram Sila. Alteraria os limites do pomerium, anunciou ele, porque, a partir de agora, o rio Rubicão passaria a ser a fronteira oficial entre a Itália e a Gália Italiana. Há muito que se pensava que esse rio deveria ser a fronteira, mas o rio Metauro fora o escolhido aquando da última decisão formal relativamente à divisão entre a Itália e a Gália Italiana. Portanto, acrescentou Sila, num tom brando e afável, podia-se dizer que ele tinha alargado o território de Roma dentro de Itália, o que justificava que marcasse o acontecimento acrescentando uns negligenciáveis trinta metros ao pomerium de Roma.

— Esta medida, no que me diz respeito, é excelente — comentou Pompeu para a sua nova (e já muito grávida) esposa.

Emília Escaura fitou-o confusa. — Porquê? — perguntou.

Emília abusava dos ”porquês”; se tivesse dado com um homem menos egotista, talvez o irritasse. Mas Pompeu adorava que ela lhe fizesse aquelas perguntas.

— Porque, minha querida rechonchudinha, tão rechonchuda que até parece que engoliu um melão gigante — disse ele, fazendo-lhe cócegas no ventre com um ar deliciado e malicioso —, eu possuo a maior parte do Ager Gallicus a sul de Arimino e, a partir de agora, toda essa região passa a pertencer oficialmente à Úmbria. Ou seja, eu agora sou um dos maiores proprietários de terras de toda a Itália, se não mesmo o maior. Não estou bem certo. Há homens que têm talvez mais terras, graças às suas propriedades na Gália Italiana: é o caso dos Emílios Escauros — a família do teu tata, meu querido pudinzinho — e dos Domícios Aenobarbos. Mas eu herdei a maior parte das propriedades dos Lucílios na Lucânia, e, se acrescentar a metade sul do Ager Gallicus às minhas terras da Úmbria e do Norte do Piceno, duvido que tenha um rival em toda a Itália! Há muito quem lamente a acção do Ditador, mas eu é que nãovou criticá-lo!

— Estou ansiosa por ver as tuas terras — disse ela, com um ar melancólico, pondo a mão sobre o ventre. — Prometeste que me levavas logo que eu estivesse em condições de viajar.

Estavam sentados lado a lado num divã; Pompeu virou-se para ela e, com um gesto suave, fê-la tombar sobre o divã; depois, apertou-lhe ternamente os lábios entre os dedos e beijou-lhe o rosto todo.

— Mais — pediu ela, extasiada, quando ele parou.

A cabeça dele debruçou-se sobre o rosto dela. Os olhos incrivelmente azuis de Pompeu pestanejaram.

— Quem é que é uma bacorinha glutona? Ha? Quem é? — perguntou. — A bacorinha glutona não devia portar-se assim, pois não?

Escaura desatou num risinho incontrolável e Pompeu não resistiu: começou a fazer-lhe cócegas porque adorava ouvi-la rir; porém, ao fim de um momento, já a desejava tanto que teve de levantar-se e afastar-se da mulher.

— Ah, que aborrecido que é este bebê! — exclamou ela, aborrecida.

— Já não temos de esperar muito, minha gatinha querida — conseguiu ele dizer, num tom razoavelmente jovial. — Depois de vir o Glábrio, havemos de fazer muitos bebês nossos.

Pompeu conseguira suportar a continência, pois estava decidido a não suscitar a mínima crítica ao seu comportamento como marido; queria que todos — e sobretudo os Cecílios Metelos, os arrogantes parentes de Emília Escaura — o considerassem o mais amável dos maridos. É que Pompeu desejava ardentemente ser integrado no clã.

Sabendo que o jovem Mário fora íntimo de Précia, Pompeu ganhara o hábito de visitar a sumptuosa casa da meretriz, pois considerava que não era nenhuma desonra provar os restos de outro homem, desde que esse homem tivesse sido famoso, possuísse muita influência política ou pertencesse à mais alta nobreza. Além do mais, Précia era uma verdadeira iguaria sexual, capaz de o satisfazer muito mais que Emília Escaura, quando chegasse a sua vez. As esposas serviam para uma actividade mais séria, que era fazer bebês, ainda que a pobre Antístia nem a essa alegria tivesse tido direito.

Se Pompeu gostava do casamento, como de facto gostava, era porque possuía o feliz talento de deixar a esposa completamente enamorada. Rodeava-a de gentilezas e atenções, não se preocupava com o facto de dizer tontices (mesmo que houvesse outras pessoas por perto; Pompeu, nesse particular, só tinha problemas em relação a Metelo Pio Pontifex Maximus), e mantinha uma atitude jovial e bem-disposta que a predispunha a amá-lo. No entanto — e nisso, Pompeu era muito perspicaz —, permitia que a esposa se irritasse e chorasse e que o criticasse e castigasse. E se nem Antístia nem Emília Escaura se apercebiam de que ele as manipulava, pensando, pelo contrário, que eram elas que o manipulavam, então é porque tudo corria bem no melhor dos mundos; as duas partes ficavam satisfeitas e não havia contendas.

Pompeu sentia uma gratidão ilimitada em relação a Sila, pelo facto de lhe ter dado a filha de Escauro Princeps Senatus em casamento. Ele achava que estava perfeitamente à altura da filha de Escauro, mas o facto de um homem como Sila também o achar reforçava ainda mais a imagem positiva que Pompeu tinha de si mesmo. Claro que percebia que Sila queria prendê-lo através dos laços do casamento; e isso também contribuía para reforçar essa imagem positiva; aristocratas romanos como Glábrio podiam ser derrubados por causa de um capricho do Ditador, mas o Ditador estava suficientemente preocupado com Cneu Pompeu Magno para lhe dar o que tirara a Glábrio. Sila, aliás, podia ter dado a filha de Escauro ao seu próprio sobrinho, Públio Sila, ou a Lúculo, um homem que gozava dos seus favores.

Pompeu estava determinado a não integrar, por ora, o Senado, mas não tinha a mínima intenção de se ausentar do círculo do Ditador; aliás, os seus sonhos tinham tomado um rumo novo e já se imaginava a si mesmo tornando-se o único herói militar da história da República a arrebatar comandos proconsulares sem ter passado, pelo menos, pelo cargo de senador. Diziam-lhe que isso não podia ser feito. Tinham mesmo troçado dele, tinham-lhe atirado sorrisos de desdém. Mas troçar e desdenhar de Cneu Pompeu Magno eram actividades perigosas! Dentro de alguns anos, imaginava ele, faria com que esses homens pagassem! E não os mataria, como Mário teria feito, nem os condenaria à proscrição, como fizera Sila. Fá-los-ia sofrer de outra maneira: chamá-los-ia à sua presença e fá-los-ia sentir tanta inveja que o facto de se terem de mostrar simpáticos para com ele destruiria por completo o alto conceito em que se tinham. E isso agradava muito mais a Pompeu do que vê-los mortos!

Assim, enquanto conseguia conter o seu desejo por aquele delicioso rebento da gens Emília, Pompeu contentava-se com muitas visitas a Précia e consolava-se a apreciar o ventre de Emília Escaura, que só voltaria a encher-se com os filhos que ele lhe fizesse.

Estava previsto que Emília Escaura tivesse a criança no princípio de Dezembro; porém, em fins de Outubro, entrou subitamente num doloroso trabalho de parto. Até então, a gravidez decorrera normalmente: por isso, aquele acidente fora um choque para toda a gente, incluindo os médicos. O esquelético prematuro morreu no dia seguinte e Emília Escaura não demorou muito tempo a segui-lo. Inexoravelmente, esvaiu-se em sangue e morreu.

A morte de Emília deixou Pompeu destroçado. Amara-a genuinamente, ainda que ao seu jeito dominador e promíscuo; se Sila tivesse remexido de alto a baixo toda a cidade, à procura da noiva certa para Pompeu, num esforço consciente para lhe agradar, não teria encontrado melhor que a bisonha, vagamente obtusa e completamente ingênua Emília Escaura. Sendo filho de um homem a quem chamavam O Carniceiro, e tendo ganho, ele próprio, a alcunha de Miúdo Carniceiro, Pompeu estivera exposto à visão da morte durante toda a sua vida e nunca se sentira condicionado pelos impulsos da compaixão ou da misericórdia. Se um homem, ou uma mulher, vivia, teria de morrer um dia. Nada era mais certo que isso. Quando a mãe morrera, choramingara um pouco, mas, antes da morte de Emília Escaura, só a morte do pai o afectara profundamente.

E, no entanto, quando viu o cadáver da mulher na pira funerária, Pompeu quase corria a juntar-se a ela; Varrão e Sila, que o agarraram, ficaram sem saber se tal impulso era total ou parcialmente genuíno, tal era o desespero e a loucura de que ele dava provas. Na verdade, nem o próprio Pompeu sabia. Tudo o que sabia era que a deusa Fortuna o premiara com a inestimável oferta da filha de Escauro e lhe roubara a prenda antes que ele pudesse gozá-la.

Chorando desoladamente, o jovem deixou Roma pela Porta Colina, pela segunda vez por causa de uma morte inesperada. Primeiro fora o seu pai, agora era Emília Escaura. Para um Pompeu do Norte do Piceno, só havia uma alternativa. Voltar para casa.

— Roma tem agora dez províncias — disse Sila, no Senado, um dia depois do funeral da enteada. Vestia o traje de luto senatorial: toga e túnica brancas, com a estreita faixa púrpura de cavaleiro, em vez da larga faixa púrpura de senador. Se Emília Escaura fosse sua filha, só ao fim de dez dias poderia, em princípio, ter voltado aos assuntos públicos; porém, a ausência de qualquer ligação de sangue com a falecida obviava a que isso sucedesse. Uma coisa boa para ele: Sila tinha um programa com datas para cumprir.

— Eis as dez províncias em questão: Hispânia Ulterior, Hispânia Citerior, Gália Transalpina, Gália Italiana, Macedónia e Grécia, Ásia, Cilícia, África e Cirenaica, Sicília e ainda a Sardenha juntamente com a Córsega. Dez províncias para dez homens governarem. Se nenhum homem permanecer na sua província mais do que um ano, ficaremos com dez homens para dez províncias no início de cada ano: dois cônsules e oito pretores que acabam de concluir as suas funções.

O seu olhar fixou-se em Lépido, a quem parecia dirigir as suas próximas observações — aparentemente por razão nenhuma, a não ser o acaso.

— A partir de agora, cada governador disporá de um questor, excepto o governador da Sicília, que terá dois questores, um para Siracusa e outro para Lilibeu. Desta forma, dos vinte questores de que dispomos, ficaremos com nove para Itália e para Roma. É um número suficiente. Cada governador disporá também de uma equipa completa de funcionários públicos, desde lictores e mensageiros a escribas, amanuenses e contabilistas. Será dever do Senado — depois de consultar o Tesouro — atribuir a cada governador uma soma específica. Este estipêndio não será aumentado durante o ano de funções, aejam quais forem as razões invocadas para pedir o aumento. Esse será portanto o salário do governador e ser-lhe-á pago antecipadamente. com esse dinheiro, deverá ele pagar os custos inerentes ao seu cargo e também os salários da sua equipa. Por outro lado, o governador deverá apresentar, no final das suas funções, uma contabilidade detalhada e correcta. No entanto, se não gastar uma parte do seu estipêndio, não será obrigado a devolvê-la. O estipêndio é seu a partir do momento em que lhe é pago, e aquilo que faz com ele é unicamente da sua conta. Se desejar investi-lo em Roma, em seu próprio nome, antes de partir para a sua província, poderá perfeitamente fazê-lo. No entanto, terá de entender que, durante todo o ano em que estiver em funções, não receberá mais dinheiro! É ainda necessária mais uma advertência. Como passa a ser sua propriedade pessoal no momento em que lhe for pago, este estipêndio poderá vir a ser retido caso o novo governador tiver contraído dívidas. Advirto, pois, todos os potenciais governadores de que as suas carreiras públicas correrão perigo caso contraiam dívidas. Um governador que vá sem dinheiro para a sua província terá de enfrentar pesadas acusações quando regressar a Roma!

Depois de um breve e fulminante olhar pela sala, Sila retomou o asssunto.

—vou retirar às Assembleias o direito de discutirem os problemas relacionados com guerras, províncias e outros assuntos externos. A partir de agora, as Assembleias ficarão proibidas de discutir as guerras, as questões das províncias e outros assuntos externos, mesmo que em contio. Estes assuntos passarão a ser uma prerrogativa exclusiva do Senado. — Um outro olhar breve e fulminante e Sila prosseguiu. — De futuro, as Assembleias promulgarão leis e realizarão eleições. Nada mais. Não terão rigorosamente nada a dizer nas questões relativas a tribunais, assuntos externos ou matérias militares.

Um pequeno murmúrio começou a fazer-se ouvir na sala. A tradição estava do lado de Sila, mas desde os tempos dos Irmãos Gracos que as Assembleias eram usadas para obter comandos militares e províncias — ou mesmo para destituir homens nomeados pelo Senado dos seus comandos militares e governos de províncias. Fora o que sucedera ao pai do Bacorinho, quando Mário lhe retirara o comando de África; fora o que acontecera a Sila, quando Mário lhe retirara o comando da guerra contra Mitridates. Por isso, esta nova legislação era bem-vinda.

O olhar de Sila fixou-se então em Catulo.

— Os dois cônsules deverão ser mandados para as duas províncias que sejam consideradas mais instáveis ou em perigo. As províncias consulares e as províncias pretorianas serão atribuídas por sorteio. Roma terá de aderir a certas convenções se por acaso quiser manter o seu bom nome no estrangeiro. Se forem extorquidos navios ou frotas às províncias ou a reinos clientes, os custos de tais extorsões terão de ser deduzidos do tributo anual. A mesma lei aplica-se à apropriação por Roma de soldados ou abastecimentos militares.

Marco Júnio Bruto, até então amedrontado, ganhou coragem.

— Se um governador estiver fortemente envolvido numa guerra na sua província, será obrigado a deixar o seu cargo no final do ano?

— Não — disse Sila. Fez silêncio por um momento, reflectindo, e acrescentou: — Até pode acontecer que o Senado não tenha outra hipótese senão mandar os cônsules do ano para uma guerra no estrangeiro. Se Roma se vir acossada de todos os lados, dificilmente poderá evitar uma tal solução. Só peço ao Senado que considere as suas alternativas muito cuidadosamente, antes de lançar os cônsules do ano para uma campanha no estrangeiro, ou antes de alargar o período normal de funções de um governador.

Quando Mamerco ergueu a mão para falar, os senadores ficaram alerta; Mamerco era já conhecido pelas suas perguntas a Sila, que mais pareciam encomendadas por este; por isso, todos sabiam que Mamerco ia falar de algum assunto que Sila achava melhor introduzir através de uma pergunta.

— Posso levantar uma situação hipotética? — perguntou Mamerco.

— Absolutamente — disse Sila, com a maior cordialidade. Mamerco levantou-se. Como era, naquele ano, o pretor para

os assuntos externos e tinha, portanto, um cargo curul, estava sentado no pódio, tal como todos os outros magistrados curuis, e por isso, quando se levantou, toda a gente podia vê-lo. As novas normas de Sila, proibindo os senadores de deixarem o seu lugar enquanto falavam, fazia com que só os homens que estavam no pódio curul pudessem ser vistos por toda a gente.

— Supúnhamos que, em determinado ano — começou cuidadosamente Mamerco —, Roma se vê efectivamente acossada de todos os lados. Suponhamos que os cônsules e os pretores do ano que pudermos ter em Roma terão de participar na guerra durante o período em que exercem o seu cargo. Ou que os cônsules do ano em questão não têm suficientes capacidades militares para irem combater. Suponhamos que não dispomos de todos os governadores — que um ou dois foram mortos por bárbaros ou que morreram por outras causas. Suponhamos que, no Senado, não há homens com experiência ou capacidade, dispostos ou livres para assumirem um comando militar ou um cargo de governador. Tu proíbes as Assembleias de debaterem estes assuntos. Portanto, a decisão tem de caber inteiramente ao Senado. Sendo assim, que deverá fazer o Senado?

— Aí está uma óptima pergunta, Mamerco! — exclamou Sila, como se não fosse ele o seu autor. — Roma vê-se acossada de todos os lados. Não temos magistrados curais disponíveis. Não temos consulares ou ex-pretores disponíveis. Não encontramos nenhum senador com experiência ou capacidade. Mas Roma precisa de outro comandante militar ou governador. É isso, não é? Entendi bem a tua pergunta?

— É isso mesmo, Lúcio Cornélio — retorquiu Mamerco com um ar grave.

— Num caso desses — disse Sila, lentamente —, o Senado terá de ir procurar homens a hostes que não as suas, não é verdade? A situação que descreveste dificilmente encontraria uma solução segundo os processos normais. Portanto, a solução terá de ser encontrada segundo processos anormais. Por outras palavras, é dever do Senado vasculhar Roma de alto a baixo para encontrar um homem de reconhecida capacidade e experiência; depois, deverá dar a esse homem todos os poderes legais para assumir um comando militar ou um cargo de governador.

— Mesmo que seja um liberto? — perguntou Mamerco, surpreendido.

— Mesmo que seja um liberto. Embora eu ache que seria mais provável que esse homem fosse um cavaleiro, ou talvez um centurião. Eu conheci um centurião que comandou uma perigosa retirada e que, por isso, foi premiado com a Coroa de Erva. E, posteriormente, foi-lhe concedida a toga debruada a púrpura de um magistrado curul. O seu nome era Marco Petreio. Sem ele, muitas vidas teriam sido perdidas e o exército de que ele fazia parte não teria voltado a combater. Marco Petreio foi nomeado senador e morreu honrosamente durante a Guerra Italiana. O seu filho é um dos meus novos senadores.

— Mas o Senado não tem poderes legais para dar a um homem que não pertença às suas hostes um império para comandar ou governar — objectou Mamerco.

— Segundo as minhas novas leis, o Senado terá poderes legais para fazer isso; e, de facto, em tais situações, teria mesmo de fazer isso — disse Sila. — Chamarei a este governador ou comando militar uma ”comissão especial” e concederei ao Senado a necessária autorização para atribuir tal ”comissão” a qualquer cidadão romano, ainda que seja um liberto. Além disso, o Senado poderá atribuir a esse homem o império que for considerado necessário.

— Qual é a ideia dele? — murmurou Filipe para Flaco Princeps Senatus. — Nunca na minha vida ouvi tal coisa!

— Gostava de saber, mas não sei — sussurrou Flaco.

Mas Sila sabia, e Mamerco adivinhava; aquele era mais um processo para prender Cneu Pompeu Magno, que se recusara a pertencer ao Senado, mas que, por causa dos veteranos do seu pai, continuava a constituir uma força militar tremenda. Não fazia parte dos planos de Sila permitir fosse a quem fosse uma nova investida contra Roma; decidira que, depois dele, ninguém voltaria a fazer isso. Portanto, se os tempos mudassem e se Pompeu se tornasse uma ameaça, tinha de haver um caminho aberto para que os seus consideráveis talentos pudessem ser legalmente aproveitados pelo Senado. Sila tencionava legislar aquilo que, no fundo, não passava do mais puro senso comum.

— Resta-me definir traição — disse o Ditador alguns dias depois. — Antes da criação dos meus novos tribunais, havia vários tipos de traição, desde a perduelio à maiestas minuta — grandes traições, pequenas traições, traições médias. E aquilo que faltava a todas estas traições era uma verdadeira especificidade. De futuro, todas as acusações de traição serão julgadas no quaestio de maiestate, o meu tribunal permanente para os casos de traição. Tais acusações de traição, como irão ver, serão largamente limitadas aos homens a quem foram dados governos provinciais ou comandos em guerras no exterior. Se um civil romano comete traição dentro de Roma ou de Itália, esse homem será objecto do único julgamento por traição que uma Assembleia poderá conduzir. Mais concretamente: esse homem será julgado por perduelio nas Centúrias e terá, por conseguinte, de se confrontar com a antiga sentença — morrer atado a uma cruz suspensa de uma árvore aziaga.

Sila deixou que estas revelações penetrassem bem na mente dos seus ouvintes; ao fim de um momento, prosseguiu.

— Qualquer um e todos os comportamentos que infrinjam as regras que seguem serão considerados traição:

”Um governador provincial não poderá deixar a sua província.

”Um governador provincial não poderá permitir que os seus exércitos marchem para lá da fronteira provincial.

”Um governador provincial não poderá lançar uma guerra por sua iniciativa.

”Um governador provincial não poderá invadir o território de um rei cliente sem a autorização formal do Senado.

”Um governador provincial não poderá fomentar intrigas junto de um rei cliente ou junto de qualquer corpo de cidadãos estrangeiros, tendo em vista alterar o status quo de qualquer país estrangeiro.

”Um governador provincial não poderá recrutar tropas adicionais sem o consentimento do Senado.

”Um governador provincial não poderá tomar decisões ou promulgar editos dentro da sua província, susceptíveis de alterarem o estatuto da sua província, sem o consentimento formal do Senado.

”Um governador provincial não poderá permanecer na sua província mais de trinta dias após a chegada a essa província do seu sucessor, nomeado pelo Senado.

”É tudo — concluiu Sila, sorridente. — Quanto a coisas positivas, direi que um homem detendo um império continuará a deter esse império até atravessar os limites sagrados de Roma. Sempre foi assim. Reafirmo agora que assim continuará a ser.”

— Não estou a ver por que raio é que todas estas normas específicas são necessárias — comentou, irado, Lépido.

— Ora, francamente, Lépido — retorquiu Sila, com um ar entediado. — Quem é que tu tens à tua frente? Um homem chamado Sila, não é? Um homem que infringiu quase todas as normas da minha lista! Eu tinha justificações para o fazer! Eu tinha sido ilegalmente privado do meu império e do meu comando. Mas estou agora a promulgar leis que impossibilitarão qualquer homem de privar outro homem do seu império e do seu comando! Portanto, a situação em que eu me vi não pode voltar a acontecer. Portanto, aqueles que infringirem alguma das minhas normas serão culpados de traição. Nenhum homem poderá sequer alimentar a ideia de marchar sobre Roma ou de conduzir o seu exército para lá das fronteiras da sua província, na direcção de Roma. Os tempos em que essas coisas aconteciam morreram. E eu estou aqui para o provar.

No vigésimo sexto dia de Outubro, o sobrinho de Sila, Sexto Nónio Sufenate (o filho mais novo da irmã de Sila), deu início àqueles que viriam a ser os Jogos da Vitória, os ludi Victoriae, disputados todos os anos; estes jogos atingiam o seu auge no Circus Maximus, no primeiro dia de Novembro, aniversário da batalha da Porta Colina. Eram jogos interessantes, mas não propriamente magnificentes, excepto no que diz respeito ao facto de, pela primeira vez em doze décadas, incluírem o Jogo Troiano. A multidão adorava esse jogo porque era algo de novo — uma complexa série de manobras realizadas sobre uma montada por jovens que tinham necessariamente de ser nobres. A Grécia, contudo, não ficou nada contente com estes Jogos da Vitória. Sufenate tinha passado a Grécia a pente fino, para encontrar atletas, bailarinos, músicos e comediantes, de tal modo que os Jogos Olímpicos, disputados em Olímpia mais ou menos na mesma altura do ano, foram um desastre absoluto. E — escândalo dos escândalos! — o filho mais novo de António Orador, Caio António Híbrida, envergonhou toda a sua classe ao conduzir uma quadriga numa das corridas; a participação dos jovens nobres nos Jogos Troianos era aplaudida, mas disputar corridas de quadrigas não era coisa para nobres.

Nas Calendas de Dezembro, Sila anunciou os nomes dos magistrados para o ano que se avizinhava. Ele próprio seria o cônsul sénior, sendo Quinto Cecílio Metelo Pio, o Bacorinho, o cônsul júnior. A lealdade era finalmente recompensada. O velho Dolabela ficava à frente da província da Macedónia e o jovem Dolabela governaria a Cilícia. Embora o sorteio lhe tivesse dado um bom questor, Caio Publício Maléolo, o jovem Dolabela insistiu em levar Caio Verres como seu legado sénior. Lúculo permanecia no Oriente, às ordens de Termo, o governador da Ásia, mas Caio Escribónio Curió voltava para Roma a fim de desempenhar o cargo de pretor.

Chegara o momento de Sila iniciar a mais dura de todas as suas tarefas — a concessão de terras aos seus veteranos. O Ditador tencionava, nos dois anos seguintes, desmobilizar cento e vinte mil homens pertencentes a vinte e três legiões. Durante o seu primeiro consulado, no final da Guerra Italiana, Sila distribuíra aos seus veteranos dessa guerra as terras rebeldes de Pompeus, Fésulas, Hádria, Telésia, Grumento e Boviano, mas esse fora um trabalho fácil, se comparado com o actual.

O programa foi meticulosamente preparado. As recompensas eram maiores ou menores consoante o número de anos que um homem servira, o posto que tinha e o seu valor pessoal. Os centuriões primus pilus das legiões que combateram Mitridates (todos eles, para mais, com muitas condecorações) recebiam, cada um, quinhentos iugera de terras de primeira qualidade, ao passo que os soldados rasos das legiões de Carbão que desertaram para se juntarem a Sila recebiam dez iugera de terras de menor qualidade.

Sila começou pelas terras confiscadas da Etrúria, nas zonas que tinham pertencido às cidades de Valaterras e Fésulas, uma vez mais penalizadas. Como a Etrúria tinha já uma tradição de oposição a Sila, este não concentrou de início os seus veteranos em comunidades fechadas de soldados; em vez disso, espalhou-os por uma larga região, pensando que, desse modo, seria fácil prevenir qualquer futura rebelião. Afinal, tal medida revelou-se errada. Valaterras revoltou-se imediatamente, fechou as portas depois de ter linchado muitos veteranos de Sila e preparou-se para agüentar o cerco. Como ficava situada no alto de uma íngreme ravina, Valaterras não se preocupava com a perspectiva de ter de agüentar um longo cerco. Sila deslocou-se ao local para lançar o assalto, mas, ao fim de três meses, ”concluiu que a submissão de Valaterras seria tarefa para muito tempo e regressou a Roma.

Contudo, aprendeu com esta lição e mudou de ideias quanto à melhor maneira de instalar os seus veteranos; assim, fez das suas últimas colônias coesos núcleos de ex-soldados, capazes de se associarem e lutarem sempre que a oposição local era mais dura. A sua única experiência ultramarina ocorreu na Córsega, onde instalou duas colônias separadas, na esperança de civilizar a ilha e eliminar a praga que desde há muito assolava a Córsega: o banditismo. Uma esperança fútil.

Os novos tribunais funcionavam bem, fornecendo o palco ideal para uma nova estrela das leis, o jovem Marco Túlio Cícero. Quinto Hortênsio (que triunfara numa atmosfera completamente diferente, a dos tribunais realizados pelas Assembleias) demorou algum tempo a habituar-se ao ambiente íntimo daqueles pequenos tribunais, instalados ao ar livre; para Cícero, pelo contrário, aquele era o ambiente perfeito. No final do ano anterior, Cícero surgiu sozinho, do lado da defesa, numa audiência preliminar perante o jovem Dolabela, que era pretor urbano. O objecto da audiência consistia em decidir se a soma de dinheiro conhecida sob o nome de sponsio devia ser depositada ou se o julgamento podia avançar sem tal depósito. Os adversários de Cícero eram temíveis — Hortênsio e Filipe. Mas Cícero venceu, Hortênsio e Filipe perderam e Cícero lançava-se numa carreira forense absolutamente imbatível.

Foi em Junho do ano em que Sila era cônsul sénior, que um nobre de vinte e seis anos, de família patrícia, Marco Valério Messala Nigro, pediu ao seu bom amigo Marco Túlio Cícero, então com a mesma idade, que defendesse um homem que, para além de amigo de Nigro, era seu cliente.

— É Sexto Róscio Júnior, de Améria — disse Messala Nigro a Cícero. — Foi acusado de ter assassinado o pai.

— Oh! — exclamou Cícero, surpreendido. — Tu és um bom advogado, meu caro Nigro. Porque não defendes o homem? O homicídio tem que se lhe diga, mas acaba sempre por ser muito fácil. Pelo menos, não há interferências políticas.

— Isso é o que tu pensas — disse Messala Nigro com um ar grave. — Este caso tem mais ciladas políticas que quantas estacas pontiagudas há num fosso! Só há um homem com hipóteses de o vencer, e esse homem és tu, Marco Túlio. Hortênsio ficou tão horrorizado que se negou a aceitar o caso.

Cícero endireitou-se na sua cadeira, uma luzinha de interesse brilhando nos olhos escuros; usou então um dos seus artifícios preferidos: baixou a cabeça e lançou ao amigo um olhar penetrante, por debaixo das sobrancelhas.

— Um caso de homicídio com tantas complicações? Como é isso possível?

— Quem defender Róscio de Améria terá de atacar todo o sistema de proscrições de Sila — disse Messala Nigro. — Para que Róscio seja absolvido, será preciso provar que Sila e o seu sistema de proscrições estão absolutamente corrompidos.

A boca generosa de Cícero, com um lábio superior muito grosso, franziu-se numa assobiadela sem som.

— Por todos os deuses!

— Dizes bem. Ainda estás interessado?

— Não sei... — Cícero franziu o sobrolho, em guerra consigo mesmo; preservar a sua pele era o mais importante, mas um caso tão difícil como aquele constituía uma hipótese única de alcançar os louros por que ansiava. — Conta-me tudo, Nigro. Depois verei.

Nigro tratou de contar a sua história de forma a que Cícero se sentisse estimulado.

— Sexto Róscio tem a minha idade. Conheço-o desde os tempos de escola. Fizemos ambos as nossas seis campanhas sob as ordens de Lúcio César e, posteriormente, sob o comando de Sila, na Campânia. O pai de Róscio possuía a maior parte das terras de Améria, incluindo nada mais nada menos do que treze propriedades situadas nas margens do Tibre — terras fabulosamente ricas! O meu amigo é filho único, mas tem dois primos que são os verdadeiros vilões da trama. O velho Róscio deslocou-se a Roma no início do ano e foi assassinado em Roma. Não sei se foram os sobrinhos dele que o mataram e Róscio também não. É provável, mas não obrigatório — disse Messala Nigro, com um esgar. — A notícia do assassínio do velho Róscio chegou a Améria através de um agente dos primos, quanto a isso não há qualquer dúvida. E o que há de mais suspeito nesta história toda é que esse agente não contou nada ao pobre Róscio! Pelo contrário, contou apenas aos primos, que logo trataram de antoar uma cilada ao meu amigo para lhe roubarem todas as propriedades.

— Creio que começo a entender — disse Cícero, que possuía uma inteligência penetrante para tudo o que envolvesse a perfídia dos homens.

— Valaterras acabara de se revoltar e Sila encontrava-se nos arredores, conduzindo as primeiras fases do cerco. com ele, encontrava-se Crisógono.

Nigro não precisava de informar o amigo de quem era Crisógono; toda a gente em Roma conhecia o infame burocrata encarregado das listas, da contabilidade e de todas as questões relacionadas com as proscrições de Sila.

— Os primos seguiram então para Valaterras, onde Crisógono lhes concedeu uma entrevista. Crisógono mostrou-se interessado em fazer negócio com eles — mas por um preço elevadíssimo. Concordou em falsificar uma das velhas listas de prescritos, de forma a incluir nela o nome do falecido Róscio. Depois, como que por acaso, chegaria às suas mãos um relatório de rotina sobre o homicídio. Dessa forma, Crisógono lembrar-se-ia de que aquele era um nome proscrito. Isto foi o que transpirou. As propriedades do pai de Róscio — que valem à vontade seis milhões — foram imediatamente postas em hasta pública por Crisógono, que as arrematou a todas — e por apenas dois mil!

— Adoro esse vilão! — exclamou Cícero, com um ar tão alerta como o de um cão de caça.

— Pois eu odeio-o — retorquiu Messala Nigro.

— Sim, claro, é uma criatura abominável! Mas diz-me: que aconteceu depois?

— Tudo isto se passou antes mesmo de Róscio saber que o pai fora morto. Róscio só soube da morte do pai quando o segundo primo apareceu com a ordem de proscrição de Crisógono, expulsando-o depois das propriedades do pai. Crisógono ficou com dez das treze propriedades e instalou o segundo primo numa delas, como seu administrador e agente. As outras três propriedades, deu-as ao primeiro primo. Róscio teve, não um, mas dois choques — ficou de repente a saber que o pai não só tinha sido proscrito meses antes, como também fora assassinado.

— E ele acreditou nessa teia de mentiras? — perguntou Cícero.

— Completamente. Porque não haveria de acreditar? Qualquer pessoa com mais de dois sestércios na bolsa tinha medo de ir parar às listas, vivesse ela em Roma ou em Améria. Não admira que Róscio tenha acreditado! Por isso, abandonou sem oposição as suas terras.

— E quem é que começou a suspeitar do caso?

— Os velhos da cidade — disse Messala Nigro. — Um filho sabe menos do valor e da natureza do pai do que os amigos deste. É lógico. Os amigos de um homem conhecem-no sem terem de passar pelos problemas emocionais que um filho sofre.

— Sem dúvida — concordou Cícero, que se dava muito mal com o seu próprio pai.

— De maneira que os amigos do velho convocaram uma reunião em que concluíram, acertadamente, que o pai Róscio nunca tivera a mínima simpatia por Mário, Cina ou Carbão. Concordaram em deslocar-se a Valaterras para terem uma audiência com o próprio Sila, em que lhe pediriam que anulasse a prescrição e autorizasse Róscio a herdar. Juntaram todas as provas disponíveis e seguiram para Valaterras.

— E que primo os acompanhou? — perguntou Cícero, sagazmente.

— Adivinhaste! — retorquiu Messala Nigro, sorridente. — Foram acompanhados pelo primeiro primo, que teve mesmo a audácia de assumir a chefia da missão! Entretanto, o segundo primo galopava a toda a pressa para Valaterras, a fim de avisar Crisónogo do que se passava. Foi por isso que a delegação não chegou sequer a ver Sila. Crisógono antecipou-se. Tomou nota de todos os pormenores — e de todas as provas, que eram muitas! — e prometeu-lhes que pediria ao Ditador que anulasse a proscrição. Não se preocupem!, disse-lhes ele. Não se preocupem que tudo vai acabar bem e Róscio poderá herdar aquilo a que tem direito.

— Nenhum deles suspeitou que estavam a falar com o verdadeiro proprietário de dez das treze propriedades? — perguntou Cícero, incrédulo.

— Nenhum, Marco Túlio.

— É um sinal dos tempos, não é?

— Temo bem que sim.

— Continua, por favor.

— Passaram dois meses. Ao fim desses dois meses, os amigos do velho Róscio perceberam que tinham sido enganados, pois nunca mais vinha a anulação da proscrição e, por outro lado, os dois primos viviam nas propriedades confiscadas como se fossem os donos delas. Após alguns inquéritos, concluíram que o primeiro primo era o proprietário de três delas e que Crisógono detinha as outras dez. Os velhos ficaram positivamente aterrados, pois pensaram que Sila participara activamente na vilania.

— Achas que participou? — perguntou Cícero.

Messala Nigro reflectiu por um momento e, finalmente, abanou a cabeça.

— Não, Cícero. Duvido que tenha participado.

— Porquê? — perguntou aquele que nascera para ser advogado.

— Sila é um homem duro. Para dizer a verdade, é um homem que me apavora. Diz-se que, na sua juventude, assassinou mulheres para lhes ficar com o dinheiro e que foi com esse dinheiro que conseguiu entrar para o Senado. No entanto, eu conheci-o razoavelmente quando estive no exército. Sim, é verdade que eu era demasiado jovem para me poder aproximar dele, mas também é verdade que ele andava sempre por perto, sempre atarefado, sempre preocupado com o correcto exercício das suas funções. Enfim, devo dizer que ele me impressionou. Achei-o aristocraticamente escrupuloso. Sabes o que quero dizer com isso?

Cícero sentiu a pele arrepiar-se-lhe, mas fingiu que estava à vontade. Sabia ele o que significava, para o nobre patrício Marco Valério Messala, a expressão ”escrúpulo aristocrático”? Ah, se sabia! Ninguém sabia melhor do que ele o que isso significava, pois Cícero era um Homem Novo e sentia uma profunda inveja em relação a patrícios como Messala Nigro e Sila.

— Creio que sim — disse ele.

— Na personalidade de Sila há um lado sinistro. Sim, é verdade que ele era capaz de me matar a mim, ou a ti, sem o mínimo remorso, se por acaso isso lhe conviesse. Mas, se o fizesse, fá-lo-ia pelas razões de um patrício. Não o faria para ficar com treze belas propriedades nas margens do Tibre. Se se lembrasse de ir a um leilão de propriedades prescritas e encontrasse terras baratas, era muito capaz de comprá-las. Mas conspirar para enriquecer ou para enriquecer os seus libertos, de uma forma desonrosa, quando a sua carreira estava em jogo? Não. Não creio que fosse capaz disso. A honra não é para ele uma palavra vã. Vejo-o nas suas leis, que penso serem leis honrosas. Posso não concordar com ele quando retira todos os poderes aos tribunos da plebe, mas a verdade é que ele tomou essa medida de uma forma legal e aberta. Ele é um patrício romano.

— Nesse caso, Sila não sabe de nada — disse Cícero, com um ar pensativo.

— Acredito que não.

— Continua, por favor, Marco Valério.

— Quando os velhos de Améria começaram a achar que Sila participara na conspiração, o meu amigo Róscio recuperou finalmente da mudez em que caíra. Porém, logo que começou a falar, foi alvo de vários atentados. Por isso, há dois meses, fugiu para Roma e procurou abrigo junto de uma velha amiga do pai, a Vestal Metela Baleárica. A irmã de Metelo Nepos, não sei se conheces.

A sua outra irmã era a mulher de Ápio Cláudio Fulcro, aquela que morreu ao dar à luz aquela criança gigantesca, Públio Clódio.

— Continua, Nigro — pediu Cícero, afavelmente.

— O facto de Róscio conhecer pessoas tão importantes como os Metelo Nepos e uma Virgem Vestal retirada, da família dos Cecílios Metelos, parece que deixou os dois primos preocupados. Começaram a pensar que Róscio era capaz de conseguir avistar-se com Sila. Mas não se atreviam a matar Róscio, pois arriscavam-se a que os Cecílios Metelos exigissem um inquérito que lhes poderia ser fatal. Por isso, decidiram que era melhor destruir a reputação de Róscio, inventando provas de que ele matara o pai. Conheces um indivíduo chamado Erúcio?

O rosto de Cícero franziu-se em sinal de desprezo.

— Quem não conhece? É um acusador profissional.

— Pois bem. Erúcio foi encarregado de acusar Róscio do assassínio do pai. As testemunhas da morte do velho Róscio foram os seus escravos, os quais, como é evidente, também foram vendidos a Crisógono. Portanto, não há qualquer hipótese de eles aparecerem e contarem a verdade dos factos! E Erúcio está convencido de que nenhum advogado capaz assumirá a defesa de Róscio, pois ninguém ousaria dizer horrores do processo de proscrições.

— Pois ele que se cuide — retorquiu animadamente Cícero. —vou defender o teu amigo, Nigro.

— E não te preocupa o facto de teres, por isso mesmo, de afrontar Sila?

— Não! Que disparate! Claro que não! Eu sei exactamente o que devo fazer — e fá-lo-ei! Prevejo, aliás, que Sila acabará por me agradecer — disse Cícero, jovialmente.

Embora o tribunal dos homicídios já tivesse julgado outros casos, a verdade é que o julgamento de Sexto Róscio de Améria, acusado de parricídio, foi aquele que mais sensação causou. A lei de Sila estipulava que o tribunal fosse presidido por um ex-edil, mas, nesse ano, era um pretor, Marco Fânio, o presidente. Sem qualquer receio, Cícero contou a história de Róscio no seu actio prima, não deixando qualquer dúvida de que o principal esteio da defesa era a corrupção que grassava a coberto das proscrições de Sila.

Até que chegou o derradeiro dia do julgamento, aquele em que Cícero deveria dirigir-se pela última vez ao júri. Havia uma cara nova nesse dia: Lúcio Cornélio Sila, que estava sentado na sua cadeira curul de marfim ao lado do presidente do tribunal.

A presença do Ditador não perturbou minimamente Cícero; pelo contrário, constituiu um estímulo para que ele se elevasse a uma eloqüência e a um brilhantismo que nunca antes alcançara.

— Há três culpados neste hediondo caso — disse Cícero, declamando não para o júri, mas para Sila. — Os primos Tito Róscio Capito e Tito Róscio Magno são obviamente culpados, ainda que personagens secundárias. Aquilo que fizeram, não o poderiam ter feito sem as proscrições. Sem Lúcio Cornélio... Crisógono — disse ele, fazendo uma pausa tão longa entre o segundo e o terceiro nomes que até mesmo Messala Nigro pensou, por momentos, que ele iria dizer ”Sila!”.

Cícero prosseguiu.

— Quem é exactamente este ”menino de ouro”? Este Crisógono? Permitam-me que lhes diga! É um grego. Não há qualquer desonra nisso. É um antigo escravo. Não há qualquer desonra nisso. É um liberto. Não há qualquer desonra nisso. É cliente de Lúcio Cornélio Sila. Não há qualquer desonra nisso. É rico. Não há qualquer desonra nisso. É poderoso. Não há qualquer desonra nisso. É administrador das proscrições. Não há qualquer desonra nisso — ha? o quê? O que é que eu disse? Peço o vosso perdão colectivo, Pais Conscritos! Estão a ver o que acontece quando uma pessoa se deixa embalar pela retórica? Eu deixei-me embalar, não há dúvida! Podia continuar a dizer ”Não há qualquer desonra nisso” durante horas! E vejam só que armadilha retórica eu teria montado a mim mesmo!

Perfeitamente lançado no seu discurso, Cícero fez uma pausa para se deleitar, de uma forma absolutamente consciente, com aquilo que estava a fazer.

— Permitam que eu me repita. Como tinha dito, ele é o administrador das proscrições. E há nisso uma desonra monumental, gigantesca, olímpica! Estão todos a ver este esplêndido homem na sua cadeira curul — este modelo de todas as virtudes romanas, este general sem rival, este legislador que abriu novos caminhos à arte de governar, esta jóia preciosa na coroa da ilustre gens Cornélia? Estão todos a vê-lo? Tão calmamente sentado, tão desprendido e soberano como Zeus? Estão todos a vê-lo? Pois olhem-no bem!

Então, Cícero virou as costas a Sila e espreitou para o júri por debaixo das suas sobrancelhas; era uma figura magra e pequena, mesmo envergando a toga; e, no entanto, ali, parecia crescer, parecia ter os músculos de Hércules e a majestade de Apolo.

— Há alguns anos atrás, este esplêndido homem comprou um escravo. Que viria a ser o chefe dos seus criados. Um excelente chefe de criados, como se veio a verificar. Quando a falecida esposa deste esplêndido homem se viu obrigada a fugir de Roma e a ir para a Grécia, o seu chefe dos criados estava lá para a ajudar e consolar. O chefe dos criados estava lá, tomando conta dos dependentes deste homem esplêndido — a mulher, os filhos, os netos, os criados —, enquanto o nosso grande Lúcio Cornélio Sila avançava, como um titã, pela península italiana. Ele confiava no seu chefe dos criados, o qual não traía essa confiança. E assim, o escravo foi liberto e, com a libertação, apropriou-se das primeiras duas partes de um nome poderoso — Lúcio Cornélio. De acordo com o costume, o seu último nome passou a ser aquele que era o seu nome original — Crisógono. O menino de ouro. Que foi acumulando honras, confiança, responsabilidades. Ele não era agora apenas o liberto, o chefe dos criados de uma grande casa, mas também o director, o administrador, o executante de um processo que foi criado para atingir dois objectivos: em primeiro lugarf aplicar um justo e correcto castigo a todos os traidores que seguiram Mário, que seguiram Cina, que seguiram mesmo um insecto tão pequeno como Carbão; em segundo lugar, usar os bens e propriedades dos traidores como o combustível de que a empobrecida Roma precisava para se aquecer de novo com as chamas da prosperidade.

Cícero passeou por um momento pelo espaço em frente da mesa de Marco Fânio, com o braço esquerdo erguido para segurar a toga e o braço direito caído junto ao corpo. Ninguém se mexia. Todos os olhos se fixavam nele. A atenção era tanta que ninguém parecia respirar naquela sala.

— Então que fez ele, este Crisógono? Enquanto mostrava uma cara falsamente sorridente e agradável ao patrão, usava de todas as suas manhas para exercer a sua vingança em relação a este ou àquele homem que o tinham insultado, a este ou àquele homem que o tinham prejudicado — pela calada da noite, com a pena do falsificador e a confiança do patrão, introduzia sub-repticiamente nas listas de prescritos os nomes dos homens cujas propriedades cobiçava, conspirava com vermes e transformava-se num verme para enriquecer à custa do patrão e à custa de Roma. Ah, membros do júri, mas que astucioso era este homem! Quantas maquinações para não deixar rasto, quanta lisonja, quantos agrados, em frente do patrão, quanta perícia na manipulação do seu pequeno exército de parasitas — e com que engenho, com que engenho ele conseguiu que o seu nobre e ilustre patrão não suspeitasse sequer do que se passava! Porque foi isso que aconteceu. Tinham-lhe dado confiança e autoridade e ele abusou da confiança e da autoridade que lhe deram, da forma mais vil e mais desprezível que podemos imaginar!

As lágrimas corriam-lhe já pelas faces; Cícero soluçava, as mãos cravadas uma na outra, o corpo dobrado num paroxismo de dor.

— Ah, não posso olhar para ti, Lúcio Cornélio Sila! É triste que tenha de ser eu — eu, um homem simples e insignificante nascido nos campos latinos, eu, um grosseiro homem do campo, um campónio —, a tirar-te a areia dos olhos, a abrir-te os olhos para a... para a... ah, com que adjectivo poderemos qualificar adequadamente a perfídia, a deslealdade, do teu mais estimado cliente, Lúcio Cornélio Crisógono? Vil? Horrenda? Miserável? Mas nenhum destes adjectivos é suficientemente baixo para qualificar tal perfídia!

Cícero limpou as lágrimas.

— Porque tive de ser eu? Quem me dera que tivesse sido outra pessoa qualquer! Quem me dera que tivesse sido o teu Pontifex Maximus ou o teu Senhor do Cavalo — ambos grandes homens e cobertos de honras! Mas o acaso quis que fosse eu o escolhido. Eu não o desejava. Mas tive de aceitar. Porque, membros do júri, que pensam que eu preferia fazer? Poupar o grande Lúcio Cornélio Sila a esta agonia, nada dizendo sobre a deslealdade de Crisógono, ou poupar a vida de um homem que, embora acusado de parricídio, nada fez afinal que justificasse a acusação? Sim, têm razão! Eu tinha de provocar o constrangimento, a mortificação pública de um homem honrado, distinto, lendário — porque não podia apoiar a injusta condenação de um homem inocente. — Cícero endireitou-se. — Membros do júri, assim dou por concluída a minha defesa.

O veredicto foi o que se esperava: ABSOLVO. Sila levantou-se e encaminhou-se na direcção de Cícero, que, de repente, reparou que a multidão à sua volta encolhera drasticamente.

— Muito bem, meu jovem magrizela — disse o Ditador, estendendo a mão. — Mas que belo actor que tu terias dado!

Tão exultante que tinha a sensação de andar nas nuvens, Cícero desatou a rir-se e cumprimentou fervorosamente o Ditador.

— Diz antes: que belo actor que eu sou! Porque, afinal, o que é um grande advogado senão um bom actor que trabalha com as suas próprias palavras?

— Nesse caso, prevejo que serás o Téspis dos tribunais de Sila!

— Desde que me perdoes as liberdades que tive de tomar neste caso, serei tudo aquilo que quiseres.

— Mas é evidente que te perdôo — disse Sila, num tom jovial. — Creio que posso perdoar quase tudo, se pensar que assisti a um belo espectáculo. E, com uma única excepção, meu caro Cícero, esta foi a melhor produção amadora a que assisti em toda a minha vida. Além disso, já há algum tempo que andava a pensar na melhor maneira de me ver livre de Crisógono. É que, não sei se sabes, eu não sou completamente parvo. Mas a verdade é que o caso podia revelar-se difícil. — O Ditador olhou à sua volta. — Onde está Sexto Róscio?

Sexto Róscio foi trazido à sua presença.

— Sexto Róscio, agora podes recuperar as tuas terras e a tua reputação e a reputação do teu falecido pai — disse Sila. — Lamento muito que a corrupção e venalidade de alguém em quem eu confiava te tivesse causado tanto sofrimento. Mas essa pessoa será castigada pelo que fez.

— Graças à qualidade excepcional do meu advogado, tudo acabou em bem, Lúcio Cornélio — disse Sexto Róscio, emocionado.

— Mas ainda falta o verdadeiro epílogo — disse o Ditador, fazendo um sinal aos seus lictores e seguindo com eles na direcção dos degraus que conduziam ao Palatino.

No dia seguinte, Lúcio Cornélio Crisógono, cidadão romano da tribo Cornélia, foi arremessado do alto da Rocha Tarpeia.

— Dá-te por feliz — disse-lhe Sila, momentos antes. — Eu podia ter-te retirado a cidadania e ordenar que te açoitassem e crucificassem. Vais ter uma morte romana porque, quando os tempos eram difíceis, cuidaste bem das mulheres da minha família. Mais não posso fazer por ti. Contratei-te porque sabia que eras um indivíduo desprezível. Mas nunca pensei que a azáfama da minha governação me impedisse de vigiar-te. Mas a verdade, mais tarde ou mais cedo, vem sempre ao de cima. Adeus, Crisógono.

Os dois primos Róscios — Capito e Magno — desapareceram de Améria antes que os pudessem deter e julgar; nunca mais se soube deles. Quanto a Cícero, tornava-se de repente num homem famoso e, além disso, num herói. É que, antes dele, nunca ninguém travara um combate vitorioso contra um contender chamado ”prescrições”.

Libertado do seu flaminato e enviado para a Província da Ásia, a fim de cumprir os seus deveres militares, sob o comando do governador Marco Minúcio Termo, Caio Júlio César partiu para o Oriente um mês antes do seu décimo nono aniversário, acompanhado pelos seus dois novos criados e pelo seu liberto germano, Caio Júlio Burgundo. Embora a maior parte dos homens que seguiam para a Província da Ásia optassem pela via marítima, César decidira ir por terra, o que significava que tinha de percorrer uma distância superior a mil e duzentos quilômetros ao longo da Via Egnácia, desde Apolónia, na Macedónia Ocidental, até Calípolis, no Helesponto. Como era Verão, tanto pelo calendário como de acordo com as estações do ano, a jornada não foi desconfortável, embora os viajantes não pudessem dispor das estalagens que, em Itália, eram abundantes; aqueles que iam por terra para a Ásia costumavam acampar.

Visto que o flamen Dialis não estava autorizado a viajar, César vira-se forçado a viajar em pensamento; por isso, devorara todos os livros cuja acção se localizasse em terras longínquas e, dessa forma, acabara por construir uma imagem daquilo que o mundo poderia ser. Depressa se apercebeu de que o mundo não era afinal o que ele imaginava; a verdade, porém, é que a realidade era muito mais interessante do que tudo o que imaginara! Quanto ao acto de viajar — nem mesmo César, que era tão eloqüente, conseguia encontrar as palavras justas para o descrever. É que nele havia um viajante nato, dado à aventura, curioso, ansioso por tudo conhecer. Falava com toda a gente, desde pastores a mercadores, desde mercenários à procura de trabalho a chefes locais. O seu grego era Ático e superlativo, mas todas aquelas estranhas línguas que aprendera na infância, porque a ínsula da mãe albergava uma confusão de nacionalidades, eram-lhe agora extremamente úteis; não porque tivesse a sorte de encontrar gente que as falava, mas porque essa prática, iniciada na infância, lhe dera uma capacidade muito especial para entender todos os sotaques e termos estranhos; por isso tinha facilidade em compreender mesmo os mais estranhos dialectos do grego, tal como detectava, logo à primeira, as palavras estrangeiras que haviam sido introduzidas no grego básico. O facto de poder comunicar com gentes de outras terras e línguas fazia dele um bom viajante.

Teria sido maravilhoso se pudesse montar Bucéfalo, mas a verdade é que a jovem mula Orelhas Caídas só na aparência era um corcel desprezível; havia momentos em que César imaginava que a mula possuía garras em vez de patas, de tão segura que ela se mostrava em terrenos acidentados. Burgundo montava o seu gigante de Neso e os dois criados seguiam em óptimos cavalos — se, por uma questão de honra, César estava determinado a montar apenas aquela mula, quem o visse acharia que essa opção era uma excentricidade, pois, se reparassem nos cavalos dos criados, compreenderiam que o patrão tinha dinheiro que chegasse para montar um bom cavalo. Que esperto era aquele Sila! Porque tocara no ponto certo — César adorava exibir-se, deslumbrar toda a gente com quem se cruzava. E, montando numa mula, era difícil deslumbrar quem quer que fosse!

A primeira parte da Via Egnácia era a mais agreste, pois a estrada, bem conservada apesar de não ter pavimento, subia pelas terras altas de Candávia, uma região que provavelmente pouco mudara desde os mais longínquos tempos. Uns quantos rebanhos e, uma vez, ao longe, um grupo de guerreiros montados que talvez fossem Escordiscos, foram todos os sinais de ocupação humana que os viajantes viram. A partir de Edessa Macedónia, onde os férteis vales e planícies constituíam um cenário mais agradável para se viver, os homens tornaram-se mais numerosos e as aldeias mais largas e mais perto umas das outras. Em Tessalónica, César hospedou-se no palácio do governador. Teve então oportunidade de tomar um banho quente — desde que deixara Apolónia, só pudera banhar-se em rios ou lagos, todos de água muito fria mesmo no Verão. Embora o governador o convidasse a permanecer mais tempo, César ficou apenas um dia em Tessalónica.

Filipos — que fora palco de várias batalhas famosas e que, recentemente, fora ocupada por um dos filhos do rei Mitridates — interessou-o muito, por causa da sua história e da sua posição estratégica nos flancos do monte Pangeu; mas mais interessante ainda era a estrada a leste da cidade, onde pôde detectar as possibilidades militares inerentes aos estreitos desfiladeiros, antes de o terreno se tornar mais plano e fácil. Até que, por fim, tinha à sua frente o golfo de Meias, rodeado de montanhas mas muito fértil; depois de um anel de cumes, vinha o Helesponto, mais do que um simples estreito. Fora aí que Hele caíra do Velo de Ouro, dando assim o seu nome àquelas águas; aquele era também o local onde as Rochas Fragorosas quase afundaram o navio Argo e era também por ali que tinham passado os exércitos dos reis asiáticos, desde Xerxes a Mitridates, deixando para trás a Ásia e internando-se na Trácia. O Helesponto era a verdadeira encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente.

Em Calípolis, César embarcou finalmente para efectuar a última parte da sua jornada. O navio tinha espaço suficiente para acomodar os cavalos, a mula e os animais de carga, e seguia directamente para Pérgamo. Sabia agora da revolta de Mitilene e do cerco que fora montado a essa cidade, mas as suas ordens eram claras: tinha de se apresentar em Pérgamo. Mas esperava que o enviassem para uma zona de guerra.

No entanto, o governador, Marco Minúcio Termo, tinha outra coisa em mente.

— É vital que contenhamos esta rebelião — disse ele ao seu novo tribuno militar júnior. — Porque ela foi causada pelo novo sistema de tributação que o Ditador introduziu na Província da Ásia. Ilhas-estados como Lesbos e Quios estavam muito bem sob o domínio de Mitridates, e dariam tudo para acabar com Roma. Algumas cidades do continente sentem o mesmo. Se Mitilene consegue aguentar-se durante um ano, haverá por certo revoltas noutras cidades. Uma das dificuldades em conter Mitilene reside no seu duplo porto e no facto de nós não possuirmos uma boa esquadra. Por isso, Caio Júlio, quero que vás ver o rei Nicomedes da Bitínia, com a missão de lhe arrancar uma esquadra. Depois de reunires a esquadra, quero que a conduzas a Lesbos, onde a porás à disposição do meu legado, Lúculo, que foi encarregado do ataque.

— Terás de perdoar a minha ignorância, Marco Minúcio — disse César. — Mas quanto tempo é preciso para reunir uma esquadra e quantos navios devo reunir?

— bon, esse é um trabalho que demora uma eternidade — disse Termo, entediado. — E quanto aos navios, bon, reunirás tantos quantos os que o rei deixar reunir. Nicomedes é igual a todos os outros reis orientais.

O jovem franziu o sobrolho, muito pouco satisfeito com aquela resposta, e logo resolveu mostrar a Termo que possuía uma boa dose de arrogância natural (embora não destituída de atractivos).

— Isso não chega — disse ele. — Roma deve ter tudo o que achar por bem ter!

Termo não se conteve; desatou a rir.

— Ah, jovem César, tens muito que aprender! — exclamou. César não gostou. Apertou os lábios e pôs uma expressão muito

parecida com a da mãe (que Termo não conhecia; se a conhecesse, teria compreendido César muito melhor).

— Pois bem, Marco Minúcio, porque não me dizes qual deverá ser a data de entrega da frota e que composição esta deve ter? — perguntou, num tom altivo. — Se mo disseres, tomarei por inteiro a responsabilidade de entregar a frota ideal na data ideal.

Termo ficou estupefacto e, por um momento, não soube o que responder. Mas achou curioso que não tivesse ficado irritado com a extrema presunção do jovem; e a verdade é que a arrogância de César, dessa feita, já não o fez rir. O governador da Província da Ásia acabou por acreditar que César se considerava realmente capaz de fazer o que prometia. O tempo e o rei Nicomedes encarregar-se-iam por certo de desfazer equívocos. Porém, tendo em conta a carta de Sila que César lhe entregara, Termo não deixava de achar interessante que César pudesse levar o seu equívoco até ao fim. Eis o que rezava a carta:

César é meu sobrinho devido a um dos meus casamentos. Porém, é preciso que fique muito claro que eu não quero que ele seja favorecido. Mais concretamente: não o favoreças de maneira nenhuma! Quero que ele tenha missões difíceis, quero que ele ocupe cargos difíceis. Ele possui uma inteligência invulgar, associada a uma grande coragem, e é possível que se saia muito bem de tudo o que o mandares fazer.

No entanto, se excluir a conduta de César durante duas entrevistas que teve comigo, a sua história, até hoje, nada teve de notável, graças ao facto de ter sido flamen Dialis. Encontra-se agora liberto desse cargo, tanto legal como religiosamente. Mas isto significa que não fez serviço militar e, portanto, pode muito bem acontecer que o seu valor seja unicamente verbal.

Põe-no à prova, Marco Minúcia, e diz ao meu querido amigo Lúculo que faça o mesmo. Se ele falhar, tens toda a minha autorização para o castigar como muito bem entenderes, ainda que o castigo possa ser cruel. Se ele não falhar, espero que lhe dês o que merece.

Tenho ainda um outro pedido a fazer, apesar de peculiar. Se, alguma vez, testemunhares ou souberes que César montou um animal melhor que a sua mula, cobre-o de ignomínia, mandando-o imediatamente para casa.

Lembrando-se do teor da carta, Termo, recuperando da sua profunda estupefacção, disse num tom sereno

— Muito bem, Caio Júlio.vou fixar-te uma data para a entrega e um número para os navios. Entregarás a frota a Lúculo, no porto a norte da cidade de Anatólia, nas Calendas de Novembro. Nessa altura, não terás, com toda a certeza, arrancado um único navio ao velho Nicomedes, mas como pediste uma data, eu estou a fixar-te a data ideal: as Calendas de Novembro. Se conseguires fazer isso, poderemos isolar ambos os portos antes do Inverno e infligir uma pesada derrota aos revoltosos. Quanto ao número de navios: quarenta. Pelo menos metade destes navios devem ser trirremes ou mesmo maiores. Mas já será uma grande sorte se conseguires trinta navios, dez dos quais trirremes.

Termo fitou-o com uma expressão grave.

— No entanto, jovem César, já que disseste o que disseste, acho que é meu dever avisar-te de que, se houver atrasos, ou se a frota não for a ideal, não serás louvado, bem pelo contrário, no meu relatório para Roma.

— Assim deve ser feito — retorquiu César, imperturbável.

— Por ora, podes instalar-te aqui no palácio — disse cordialmente Termo; embora Sila lhe tivesse dado inteira liberdade, Termo não tinha o mínimo desejo de hostilizar um parente do Ditador.

— Não, obrigado. Eu parto ainda hoje para a Bitínia — disse César, encaminhando-se para a porta.

— Não é preciso exagerar, Caio Júlio!

— Talvez não. Mas é preciso partir já — retorquiu César e, pouco tempo depois, partia de facto.

Só ao fim de algum tempo é que Termo encontrou a concentração necessária para voltar ao seu trabalho de escritório. Mas que indivíduo extraordinário! Extremamente cortês e educado, mas com o toque que só os patrícios das grandes famílias pareciam ter; o jovem não deixara a mínima dúvida quanto ao facto de que gostava de todos os seus colegas e não se sentia superior a nenhum, embora, ao mesmo tempo, se soubesse superior a todos eles, excepto (talvez) a um Fábio Máximo. Impossível de definir, mas era assim mesmo que aquela gente era, especialmente os Júlios e os Fábios. E tão bem parecido! Não tendo qualquer inclinação pelo mesmo sexo, Termo reflectiu um pouco acerca da beleza de César; os homens que tinham esse tipo de beleza sentiam-se freqüentemente atraídos por outros homens. No entanto, concluiu Termo, César não revelara, no seu comportamento, qualquer afectação, qualquer indício de menos masculinidade.

Mas os papéis que tinha na secretária clamavam pela sua atenção. Momentos depois, já se tinha esquecido por completo de Caio Júlio César e da sua esquadra impossível.

César avançou para o interior a partir de Pérgamo, sem permitir à sua minúscula comitiva uma noite de descanso nessa cidade. Seguiu o curso do rio Caico até à sua nascente, antes de atravessar uma elevada cordilheira e descer ao vale do rio Macesto, o qual, perto da costa, era conhecido pelo nome de Ríndaco. Segundo apurou junto de gente da região, era preferível não seguir o curso do Ríndaco. Em vez disso, rumou a Prusa. Tinham-lhe dito que era possível que o rei Nicomedes estivesse de visita à sua segunda maior cidade. A situação de Prusa, nos flancos de um imponente maciço coberto de neve, impressionou fortemente César. Mas o rei não se encontrava na sua residência. De modo que César teve de seguir o curso do rio Sangário, e, após uma curta incursão para oeste, avistou a capital, Nicomédia, como que adormecida sobre a sua vasta e abrigada enseada.

Tão diferente de Itália! A Bitínia tinha um clima suave, nunca muito quente, e era extremamente fértil, graças aos seus muitos rios, os quais, naquela época do ano, tinham todos caudais mais abundantes que os rios italianos. Era evidente que o rei dirigia um país próspero e que o seu povo não tinha falta de nada. Em Prusa, César não encontrara pobres; e em Nicomédia também não encontraria.

O palácio ficava situado numa colina, o ponto mais alto da cidade, embora dentro das magníficas muralhas. A primeira impressão que César teve do palácio foi a de uma pureza de linhas absolutamente grega, sendo que as cores e a concepção eram também gregas — para além de ser evidente que havia ali muita riqueza, apesar de Mitridates ter ocupado o reino durante vários anos, enquanto o rei bitínio se refugiava em Roma. Não se lembrava de alguma vez ter visto o rei em Roma, mas isso não era surpreendente; Roma não permitia que reis estrangeiros entrassem no pomerium, e, por isso, Nicomedes tinha alugado uma villa luxuosa no monte Pinciano e mantido aí todos os contactos necessários com o Senado.

À porta do palácio, César foi saudado por um homem extremamente efeminado, de idade indefinida, que o olhou de alto a baixo com indisfarçável interesse. Esse homem disse a um colega seu, tão efeminado quanto ele, que conduzisse os criados de César aos estábulos, a fim de deixarem os cavalos e a mula, e levou César para uma antecâmara onde devia esperar até que o rei fosse informado da sua chegada e tomasse uma decisão quanto aos aposentos que devia dar-lhe. Quanto à possibilidade de ter imediatamente uma audiência com o rei, o chefe dos criados (pois esse era o cargo do homem) nada sabia.

A pequena sala onde César tinha de esperar era fresca e muito bela. Nas paredes não havia frescos; as paredes dividiam-se numa série de painéis com molduras de estuque e as cornijas eram douradas, a condizer com os remates e as pilastras dos painéis. Dentro dos painéis, a cor usada era um rosa suave; fora, era um vermelho-púrpura muito vivo. O chão era de mármore rosa e púrpura, e as janelas — que davam para o que parecia ser os jardins do palácio — pareciam molduras para as belas imagens do exterior: exóticos e requintados pátios, fontes, arbustos floridos. As flores eram tão luxuriantes que os seus perfumes chegavam à sala; César cerrou os olhos e respirou, deliciado, aquelas fragrâncias.

Só abriu os olhos porque ouviu vozes; vozes que vinham de uma porta meio-aberta: uma voz masculina, aguda e ciciada, e uma voz feminina, grave e sonora.

— Salta — dizia a mulher. — Vá, bebê, salta!

— Que disparate — dizia o homem. — Estás a degradá-lo!

— Agora rebola! Vá, bebê, deita e rebola — disse a mulher, rindo a bom rir.

— Vai-te embora — disse o homem.

— Muito bem, bebê! Muito bem — disse a mulher, que não parava de rir.

Talvez fosse falta de educação, mas César não se preocupou com isso; lentamente, foi-se pôr num sítio de onde pudesse ver aquilo que os seus ouvidos já tinham ouvido. A cena passava-se na sala ao lado — obviamente uma espécie de sala de estar privada — e era absolutamente fascinante. Envolvia um homem muito velho, uma mulher enorme, talvez dez anos mais nova, e um cão bastante velho e bastante gordo de uma raça pequena que César não reconheceu. O cão estava a fazer habilidades — punha-se de pé para pedir, deitava-se no chão e rebolava, fazia de morto com as quatro patas no ar. Enquanto executava os seus números, os olhos do cão não largavam a mulher, obviamente a sua dona.

O velho estava furioso.

— Vai-te embora! Desaparece — gritou. Como usava diadema na cabeça, César só podia deduzir que fosse o rei Nicomedes.

A mulher (a rainha, pois também usava um diadema) dobrou-se para pegar no cão, que desatou numa correria à volta dela para não ser apanhado e que, no meio da confusão que se seguiu, acabou por mordê-la no rotundo traseiro. Aí, o rei desatou a rir, o cão fez-se de morto novamente e a rainha ficou quieta a afagar as nádegas doridas, sem saber se havia de ficar furiosa ou se havia de rir. O riso acabou por vencer, mas só depois de o cão ter recebido um pontapé, desferido com toda a perícia entre o ânus e os testículos do animal. Este desatou a ganir e fugiu, com a rainha a correr desenfreadamente atrás dele.

Vendo-se sozinho (pelos vistos, não sabia que havia gente na antecâmara, nem lhe tinham comunicado a chegada de César), o riso do rei foi-se esbatendo. Sentou-se numa cadeira e suspirou. Parecia ser um suspiro de satisfação.

Tal como Mário e Júlia tinham sentido um choque quando viram pela primeira vez o pai daquele rei, também César examinava o rei Nicomedes com considerável surpresa. Alto, magro, curvado, usava um manto até aos pés, tingido com púrpura de Tiro, bordado a ouro e semeado de pérolas. Nos pés, usava umas sandálias douradas ornamentadas com pérolas que revelavam que ele pintava a ouro as unhas dos pés. Embora não usasse peruca — tinha o cabelo bastante curto e grisalho —, enfeitara o rosto com uma elaborada maquilhagem de creme e pó tão brancos como a neve, pintara cuidadosamente de negro as sobrancelhas e as pestanas, enchera de rosa as faces e dera aos lábios velhos um tom de carmim muito vivo.

— Julgo que Sua Majestade a rainha teve o que mereceu — disse César, irrompendo pela sala.

O rei da Bitínia esbugalhou os olhos. De repente, à sua frente, tinha um jovem romano, em traje de viagem, ou seja, uma armadura e um saiote de couro. Era muito alto e tinha uns ombros largos, mas, reparando bem, o resto parecia menos corpulento, excepto nas barrigas das pernas, fortes e musculadas, sobre uns tornozelos finamente desenhados, envolvidos pelas botas militares. Coroada por um cabelo ouro-pálido desgrenhado, a cabeça do romano era uma verdadeira contradição: o crânio era tão largo e redondo que parecia bulboso, ao passo que o rosto era alongado e pontiagudo. E que rosto aquele! Todo ele ossos — mas ossos esplêndidos, cobertos por uma pele muito suave e clara, e iluminados por um par de olhos grandes e profundos e bem espaçados. As sobrancelhas claras eram escassas, mas as pestanas, também claras, eram espessas e longas; os olhos, só por si, pensou o rei, bastariam para desassossegar qualquer um, pois o azul-claro das íris era circundado por um azul tão escuro que parecia preto, o que dava às pupilas negras um toque penetrante, suavizado naquele instante pelo divertimento. Contudo, para o gosto do rei, tudo era pouco quando comparado com a boca do jovem, cheia mas sem exageros, e com cantos profundos, verdadeiramente deliciosos.

— Ora... olá! — disse o rei, endireitando-se a toda a pressa na cadeira, numa pose de feminina sedução.

— Ah, deixe-se disso — atirou-lhe César, sentando-se numa cadeira à frente do rei.

— És demasiado bonito para não gostares de homens — disse o rei; depois, com um ar melancólico, acrescentou: — Ah, quem me dera ter menos dez anos!

— Que idade tens? — perguntou César, com um sorriso, exibindo os seus dentes brancos e regulares.

— Sou demasiado velho para te dar o que desejaria dar-te!

— Agradecia que fosses mais claro — quanto à idade, evidentemente.

— Tenho oitenta anos.

— Dizem que um homem nunca é demasiado velho.

— Para olhar, não. Para fazer, sim.

— Dá-te por feliz por não estares à altura da ocasião — disse César, sorrindo ainda, sem qualquer constrangimento. — Se estivesses, teria de te dar uma surra — o que criaria um incidente diplomático.

— Ora, que disparate! — escarneceu o rei. — És demasiado bonito para gostares de mulheres.

— Na Bitínia, talvez. Em Roma, certamente que não.

— Nunca te sentiste tentado?

— Não.

— Ah, mas que desperdício!

— Conheço muitas mulheres que não pensam assim.

— Aposto que nunca amaste nenhuma delas.

— Amo a minha esposa — disse César. O rei pareceu arrumado.

— Ah, nunca compreenderei os Romanos! — exclamou. — Chamam bárbaros aos outros, mas vocês é que não são civilizados.

Colocando uma perna sobre o braço da sua cadeira, César começou a dar ao pé ritmicamente.

— Conheço todo o Homero e todo o Hesíodo — disse ele.

— Um pássaro também é capaz disso, se o ensinares.

— Eu não sou um pássaro, rei Nicomedes.

— Quem me dera que fosses! Punha-te numa gaiola de ouro e passava o tempo a olhar para ti!

— Outro bicho de estimação? Podia morder-te!

— Pois morde — atirou-lhe o rei, mostrando-lhe o pescoço esquelético.

— Não, obrigado.

— Isto não nos leva a nada! — disse o rei, num tom irritado.

— Então entendeste a lição!

— Mas final quem és tu?

— O meu nome é Caio Júlio César e sou um tribuno militar júnior pertencente à equipa de Marco Minúcio Termo, governador da Província da Ásia.

— Estás aqui em missão oficial?

— Claro.

— Então porque é que Termo não me informou?

— Porque eu viajo mais depressa que arautos e mensageiros. Só não percebo por que razão o teu chefe dos criados não me anunciou — disse César, dando ainda ao pé.

Nesse instante, o chefe dos criados entrou na sala e ficou a olhar espantado para o visitante.

— Pensavas que o apanhavas, não? — perguntou o rei. — Pois bem, Sarpedon, podes tirar daí o sentido! Ele não gosta de homens. — A sua cabeça virou-se para César, com a curiosidade estampada nos olhos. — Júlio. Patrício?

— Sim.

— És parente do cônsul que foi morto por Caio Mário? Lúcio Júlio César?

— Ele era primo direito do meu pai.

— Então és o flamen Dialis!

— Fui o flamen Dialis. Pelos vistos, estiveste bastante tempo em Roma.

— Demasiado. — Dando-se conta de súbito que o chefe dos criados ainda estava na sala, o rei, franzindo o sobrolho, perguntou-lhe: — Já arranjaste aposentos para o nosso distinto hóspede, Sarpedon?

— Sim, meu rei.

— Então espera lá fora.

com uma série de vénias, o chefe dos criados abandonou a sala às arrecuas.

— Que vieste cá fazer? — perguntou o rei.

A perna de César desceu do braço da cadeira. Endireitando-se, César retorquiu:

— Vim cá para obter uma frota.

No rosto do rei não se notou nenhuma expressão particular.

— Hmm! Uma frota, ha? Quantos navios pretendes? E de que tipo?

— Esqueceste-te do ”quando”.

— E quando?

— Quero quarenta navios, metade dos quais trirremes ou maiores, que serão reunidos num porto à tua escolha em meados de Outubro — disse César.

— Dois meses e meio? Francamente! Porque é que não me cortas antes as duas pernas? — berrou Nicomedes, levantando-se num repente.

— Cortarei, se não obtiver o que quero. O rei voltou a sentar-se.

— Lembro-te, Caio Júlio, que este é o meu reino e não uma província de Roma — disse ele, mas a boca ridiculamente pintada era incapaz de exprimir a raiva que sentia. — Dar-te-ei o que puder dar e quando puder! Tu pedes! Não exiges!

— Meu caro rei Nicomedes — disse César, num tom amistoso. — Tu és um rato apanhado no meio do caminho por dois elefantes que vêm em sentido contrário — Roma e Ponto. — Os seus olhos tinham deixado de sorrir e Nicomedes lembrou-se de repente da hedionda imagem de Sila. — O teu pai morreu com uma idade demasiado avançada e, por isso, tu só pudeste subir ao trono quando já eras velho. Mas já és rei há tempo suficiente para perceberes que a tua, posição é muito, muito frágil — passaste tantos anos no exílio como neste palácio e, se estás aqui agora, podes agradecer a Roma, na pessoa de Caio Escribónio Curió. Se Roma, que fica muito mais longe do Ponto do que a Bitínia, sabe que o rei Mitridates não está de modo nenhum acabado — e muito longe ainda da velhice! —, então tu também deves sabê-lo. A Bitínia é considerada um amigo e aliado do povo romano desde o tempo do segundo Prúsias e tu próprio te ligaste de forma inextricável a Roma. Evidentemente que estás muito melhor no teu trono do que no exílio. Isso significa que deves cooperar com Roma e com os pedidos de Roma. Caso contrário, os dois elefantes continuarão a avançar e tu, pobre ratinho, serás esmagado — pelas patas de um ou do outro.

O rei ficou paralisado, boquiaberto, os olhos esbugalhados. Depois de uma longa pausa em que pareceu não respirar, respirou fundo com um solavanco e os seus olhos encheram-se de lágrimas.

— Não é justo! — exclamou e desfez-se em pranto. Exasperado, César levantou-se enquanto procurava um lenço

na cava da manga da armadura; abeirou-se do rei e estendeu-lhe o lenço.

— Por favor, um pouco mais de compostura! Não te esqueças que és o rei da Bitínia! Apesar de ter começado informalmente, esta é uma audiência entre o rei da Bitínia e um enviado de Roma. E afinal o que é que eu vejo? Um rei tão arrebicado como uma saltatix tonsa e que desata a chorar quando ouve a verdade nua e crua! Eu não acho correcto da minha parte atormentar veneráveis avozinhos que, além do mais, também são reis clientes de Roma, mas, francamente, tu não mereces outra coisa! Vá, vai lavar a tua cara, rei Nicomedes. Reatamos depois a nossa conversa.

Dócil como um menino, o rei da Bitínia levantou-se e retirou-se. Num instante estava de volta, de cara lavada e acompanhado por vários criados trazendo bandejas com comidas e bebidas.

— Vinho de Quios! — exclamou o rei, sentando-se e sorrindo para César, aparentemente sem qualquer ressentimento. — Já tem vinte anos!

— Agradeço-te, mas prefiro água.

— Água?

O sorriso voltara aos olhos de César.

— Terá de ser. Eu não gosto de vinho.

— Então ainda bem que a água da Bitínia é das melhores — disse o rei. — Que vais comer?

César encolheu os ombros, indiferente à questão.

— Tanto me faz.

O rei Nicomedes olhava agora para o seu hóspede de maneira diferente; era um olhar perscrutador, mas onde não se notava a atracção que sentia pela beleza masculina. Procurava algo que estava para lá daquilo que previamente o fascinara em César, procurava algo de mais profundo.

— Que idade tens, Caio Júlio?

— Preferia que me tratasses por César.

— Está bem. Enquanto não começares a perder o teu belo cabelo — retorquiu o rei, mostrando que a sua longa permanência em Roma lhe permitira pelo menos aprender algum latim.

César riu-se.

— Concordo que é difícil ter um apelido que significa uma bela cabeleira! Só espero que, nesse particular, saia aos Césares, que nunca ficaram carecas, ao contrário dos Aurélios. — Fez uma pausa e acrescentou: — Fiz dezanove anos há pouco tempo.

— És mais novo que o meu vinho — disse o rei, maravilhado. — Então também tens sangue dos Aurélios? Por parte dos Orestes ou dos Cotas?

— A minha mãe à uma Aurélia dos Cotas.

— E és parecido com ela? Não te acho muito parecido com Lúcio César nem com César Estrabão.

— Tenho algumas coisas dela e outras do meu pai. Se queres encontrar o César que há em mim, pensa, não no irmão mais novo de Lúcio César, mas sim no irmão mais velho — Catulo César. Morreram os três após o regresso de Caio Mário.

— Sim, lembro-me bem. — Nicomedes sorveu o seu vinho de Quios com um ar pensativo; depois, comentou: — Verifiquei que os Romanos, normalmente, se sentem impressionados perante a realeza. Parecem adorar a filosofia republicana, mas, ao mesmo tempo, mostram-se impressionados perante a realidade da realeza. Mas tu não estás nada impressionado.

— Estaria, se Roma tivesse um rei — retorquiu simplesmente César.

— Por seres um patrício?

— Por ser patrício? — perguntou César, com um ar incrédulo. - Não! Eu sou um Júlio! O que significa que a minha ascendência vai até Eneias, cujo pai era mortal, mas cuja mãe era Vénus — Afrodite.

— Tu descendes do filho de Eneias, Ascânio?

— Nós chamamos lúlo a Ascânio — disse César.

— O filho de Eneias e Creusa?

— Há quem diga que sim. Creusa morreu no incêndio de Tróia, mas o filho dela escapou com Eneias e Anquises e foi para o Lácio. No entanto, Eneias tinha um outro filho, de Lavínia, a filha do rei Latino. E esse filho também se chamava Ascânio, ou lúlo.

— Então de qual desses filhos de Eneias é que tu descendes?

— De ambos — retorquiu César com um ar sério. — É que eu acredito que houve apenas um filho — o enigma consiste em saber quem foi a sua mãe, pois toda a gente sabe que o pai foi Eneias. É mais romântico acreditar que lúlo era filho de Creusa, mas creio que é mais provável que ele fosse filho de Lavínia. Depois da morte do pai, lúlo fundou a cidade de Alba Longa, no monte Albano. lúlo morreu em Alba Longa e deixou a sua família — os Júlios — a governar. Nós somos os reis de Alba Longa e, depois de Alba Longa ter caído em poder do rei Sérvio Túlio de Roma, fomos levados para Roma como os seus principais cidadãos. Continuamos a ser os principais cidadãos de Roma, como é demonstrado pelo facto de sermos os celebrantes hereditários de Júpiter Latiaris, que é muito mais antigo do que Júpiter Optimus Maximus.

— Pensava que eram os cônsules que celebravam esses ritos — disse o rei Nicomedes, revelando o seu conhecimento das coisas romanas.

— Só no festival anual do deus, o que constitui uma concessão a Roma.

— Então se os Júlios são tão augustos, por que razão não se tornaram mais proeminentes durante os séculos da República?

— Por uma questão de dinheiro — disse César.

— Ah, dinheiro! — exclamou o rei, que parecia perfeitamente esclarecido. — Um problema terrível, César! Para mim também. É que eu não tenho o dinheiro necessário para te dar a tua frota — a Bitínia está falida.

— A Bitínia não está falida e tu vais dar-me a minha frota, ó rei dos ratos! Caso contrário, és esmagado! Quando a pata do elefante te cair em cima, ficas tal e qual uma bolacha!

— Eu não tenho a frota que tu queres!

— Nesse caso, por que raio estamos aqui a perder o nosso precioso tempo? — perguntou César, levantando-se. — Arruma já a tua taça e põe a máquina a andar! — E, agarrando o cotovelo do rei, acrescentou: — Vá, levanta-te! Vamos para o porto! Vamos ver os navios que temos!

Ofendido, Nicomedes abanou-se para se libertar daquela mão que o apertava.

— Agradecia que deixasses de me dizer o que devo ou não devo fazer!

— Só quando o fizeres!

— Está bem, eu faço! Eu faço!

— Tem de ser agora. O melhor momento é o momento presente.

— Amanhã.

— Amanhã podes já ter o elefante Mitridates no teu encalço.

— Essa é boa! Mitridates está na Cólquida e dois terços dos seus soldados estão mortos.

César sentou-se, com um ar interessado.

— Conta-me lá isso.

— Mitridates levou duzentos e cinqüenta mil homens, com o intuito de dar uma lição aos selvagens do Cáucaso por terem atacado a Cólquida. É mesmo típico de Mitridates! Não conseguiu entender que, levando tantos homens, acabaria forçosamente por ser derrotado. Os selvagens nem sequer precisaram de combater. O frio das altas montanhas fez o trabalho por eles. Dois terços dos soldados do Ponto morreram devido ao frio — disse Nicomedes.

— Roma não sabe disso — comentou César com um ar sério. — Porque não informaste os cônsules?

— Porque isto aconteceu há muito pouco tempo — e, além disso, não me cabe a mim informar Roma!

— Cabe, sim, porque és amigo e aliado de Roma. Segundo as últimas notícias que nos chegaram, Mitridates estaria em Cimério com a intenção de consolidar os seus domínios a norte do Euxino.

— Ele fez isso logo que Sila ordenou a Murena que deixasse o Ponto em paz — aquiesceu Nicomedes. — Mas a Cólquida não quis pagar tributo a Mitridates e foi assim que ele ficou a saber das incursões bárbaras.

— Muito interessante.

— Por isso, como vês, não há elefante nenhum. Os olhos de César faiscaram.

— Ai isso é que há! Um elefante ainda maior. Chama-se Roma. O rei da Bitínia não resistiu e desatou num riso desenfreado.

— Está bem! Eu desisto, eu desisto! Terás a tua frota!

A rainha Oradaltis entrou nesse momento, com o cão atrás, e, para sua surpresa, encontrou o marido de cara lavada e chorando de tanto rir. E também a uma distância decente de um jovem romano, de quem, em condições normais, estaria muito mais perto, tanto mais que o jovem, aos olhos da rainha, tinha todo o aspecto de quem não negaria uma maior proximidade.

— Minha querida, apresento-te Caio Júlio César — disse o rei, já mais calmo. — Um descendente da deusa Afrodite e muito melhor nascido do que nós. Acaba de me convencer a dar-lhe uma vasta e importante frota.

Oradaltis (que não nutria qualquer ilusão em relação a Nicomedes) inclinou regiamente a cabeça.

— Admira-me que não lhe tenhas dado todo o reino — disse ela, enchendo uma taça de vinho e pegando num bolo antes de se sentar.

O cão aproximou-se lentamente de César e foi postar-se aos seus pés, fitando-o com um olhar de adoração. Quando César se baixou para o afagar, o cão pôs-se de barriga para o ar para que ele o coçasse.

— Como é que ele se chama? — perguntou César, que gostava muito de cães.

— Sila — disse a rainha.

César lembrou-se nesse momento do pé da rainha desferindo um pontapé nas partes baixas de Sila e não pôde impedir as gargalhadas.

Ao jantar, ficou a saber da sorte de Nisa, filha única do rei e da rainha e herdeira do trono bitínio.

— Tem cinqüenta anos e nunca teve filhos — disse Oradaltis muito triste. — Naturalmente, não deixámos que Mitridates casasse com ela, mas, por causa disso, ele fez tudo para nos impedir de encontrar um marido adequado para a nossa filha. É uma tragédia.

— Poderei vê-la antes de me ir embora? — perguntou César.

— Isso não depende de nós — retorquiu Nicomedes, com um suspiro. — Quando fugi para Roma, da última vez que Mitridates invadiu a Bitínia, deixei Nisa e Oradaltis aqui em Nicomédia. E Mitridates levou a nossa filha como refém. Nisa continua em seu poder.

— E Mitridates casou-se com ela?

— Cremos que não. Ela nunca foi bonita e já era demasiado velha para ter filhos. Se ela o tivesse enfrentado abertamente, ele era muito capaz de matá-la. Mas, segundo as últimas notícias que temos, Nisa está viva. Encontra-se em Cabeira, que é onde ele guarda as mulheres, incluindo filhas e irmãs, cujo casamento não autoriza — disse a rainha.

— Nesse caso, esperemos que, quando os dois elefantes chocarem, o elefante romano vença o outro. Mesmo que eu não esteja pessoalmente envolvido na guerra, envidarei todos os meus esforços para que o comandante das operações descubra Nisa e a faça regressar à Bitínia.

— Ah, nessa altura já eu estarei morto — disse o rei.

— Não podes morrer antes de a tua filha voltar!

— Se ela alguma vez voltar, será mais uma marioneta do Ponto, essa é que é a realidade — disse Nicomedes amargamente.

— Nesse caso, será melhor deixares a Bitínia em testamento a Roma.

— Como o terceiro Átalo fez com a Ásia e Ptolemeu Apião com a Cirenaica? Nunca! — declarou o rei da Bitínia.

— Então, a Bitínia cairá em poder do Ponto. E o Ponto será vencido por Roma, o que significa que a Bitínia acabará sempre por se tornar romana.

— Só se eu não me puder opor.

— Não poderás — disse César gravemente.

No dia seguinte, o rei escoltou César até ao porto, onde insistiu na ausência de navios equipados para a guerra.

— Aqui seria impossível manter uma frota — comentou César, nada entusiasmado com o porto. — Sugiro que partamos para Calcedónia.

— Amanhã — disse o rei, cada vez mais encantado com o seu difícil hóspede.

,— Hoje — retorquiu firmemente César. — Qual é a distância? Sessenta quilômetros? Um dia não chegará.

— Vamos de barco — sugeriu o rei, que detestava viajar.

— Não, vamos por terra. Eu gosto de sentir o terreno. Caio Mário, que era meu tio por casamento, dizia-me que eu devia viajar por terra sempre que possível. Se no futuro, tiver alguma campanha aqui, já conhecerei bem a região. Ser-me-á muito útil.

— Então Mário e Sila são ambos teus tios por casamento.

— Sim. Como vês, tenho óptimos laços de parentesco — retorquiu solenemente César.

— Eu acho que tu tens tudo, César! Parentes poderosos, um elevado nascimento, uma notável inteligência, um óptimo corpo, e beleza. Ainda bem que eu não sou como tu.

— Porquê?

— Porque terás sempre inimigos. O ciúme — ou a inveja, se preferires usar este termo para descrever o desejo de ter as características de outra pessoa, e não o amor — perseguir-te-á com tanta violência como as Fúrias perseguiram o pobre Orestes. Alguns invejarão a tua beleza, outros o teu corpo, outros o nascimento, outros ainda a inteligência. A maior parte invejará tudo. E quanto mais alto subires, pior será. Terás inimigos por todo o lado. E nem um amigo. Não poderás confiar em ninguém: nem nos homens, nem nas mulheres. César escutou aquilo com uma expressão séria.

— Sim, creio que tens razão — disse ele, sinceramente. — Que sugeres que faça?

— Houve um romano, outrora, nos tempos dos reis. Chamava-se Bruto — disse o rei, revelando uma vez mais os seus conhecimentos sobre Roma. — Bruto era muito inteligente. Mas escondia a inteligência sob uma fachada de estupidez, e daí o cognome que lhe deram. Por isso, quando o rei Tarquínio Soberbo lançou a sua carnificina, nunca lhe ocorreu matar Bruto. Que o depôs e assim se tornou o primeiro cônsul da nova República.

— E que executou os seus próprios filhos quando estes tentaram fazer regressar o rei Tarquínio Soberbo do exílio e restaurar a monarquia em Roma — disse César. — Pah! Eu nunca admirei Bruto. Nem o imitarei, fingindo que sou estúpido.

— Então terás de enfrentar o que te espera.

— Ah, sim, podes crer que enfrentarei!

— Já é demasiado tarde para partirmos hoje para Calcedónia — sugeriu o rei, astuciosamente. — Apetecia-me jantar cedo e continuar esta nossa maravilhosa e estimulante conversa. Podíamos partir ao alvorecer.

— Pois bem, partiremos ao alvorecer! — disse César, jovialmente. — Mas não daqui. Eu vou-me embora dentro de uma hora. Se quiseres acompanhar-me, terás de te apressar.

E Nicomedes apressou-se, por duas razões: porque sabia que teria de vigiar atentamente aquele déspota; e porque estava perfeitamente apaixonado pelo jovem, o qual continuava a asseverar que não sentia qualquer atracção por homens.

Preparado para a viagem, o rei foi encontrar César montado numa mula.

— Uma mula?

— Uma mula — retorquiu César com um ar altivo.

— Porquê?

— Manias...

— Tu tens uma mula e o teu liberto tem um cavalo de Neso?

— É como vês.

com um suspiro, o rei, ternamente ajudado pelos criados, subiu para a sua carruagem de duas rodas, a qual conseguiu manter um bom ritmo, acompanhando de perto César e Burgundo. Contudo, quando pararam para passar a noite em casa de um nobre, um homem tão velho que já não esperava voltar a ver o rei, César pediu desculpa a Nicomedes.

— Desculpa. Se a minha mãe estivesse aqui, diria que eu não parei para pensar. Tu estás muito cansado. Devíamos ter vindo de barco.

— É verdade que o meu corpo está destroçado — disse Nicomedes com um sorriso. — Mas a tua companhia devolve-me juventude.

A verdade é que, quando se juntaram para tomar o pequeno-almoço na manhã seguinte à sua chegada a Calcedónia (onde havia uma residência real), o rei estava muito animado e conversador, parecendo ter descansado já o suficiente.

— Como podes ver — disse ele, já no molhe do porto de Calcedónia —, tenho uma bela frota, embora escassa. Navios pequenos, mas todos em bom estado. Doze trirremes, sete quinquerremes e catorze navios sem convés. Aqui a tens. Tenho mais alguns navios em Crisópolis e Dascílio.

Bizâncio não participa no pagamento dos tributos do Bósforo?

— Já não. Outrora, eram até eles que arrecadavam os tributos; eram muito poderosos, tinham uma frota quase tão grande como a de Rodes. Mas depois da queda da Grécia e da Macedónia, tiveram de manter um forte exército para repelir os bárbaros trácios, que, aliás, continuam a atacá-los. Simplesmente, Bizâncio não se podia dar ao luxo de ter uma esquadra e, ao mesmo tempo, um exército. Por isso, os tributos caíram todos sobre a Bitínia.

— E é por isso que os teus navios são todos tão pequeninos.

— E é por isso que eu tenho de guardar bem guardados os meus navios, pequeninos ou grandes! Posso doar a Roma dez trirremes e cinco quinquerremes, tendo em conta os navios que aqui estão e os que estão noutros portos. E dez navios sem convés. Quanto aos navios que faltam para completar a tua frota, terei de alugá-los.

— Alugá-los? — perguntou César, espantado.

— Claro. Como é que tu pensas que arranjamos navios?

— Como nós fazemos! Construindo-os!

— Isso é um desperdício. Mas que se há-de fazer: vocês, Romanos, são mesmo assim! — disse o rei. — Manter navios acostados quando não precisamos deles custa muito dinheiro. Por isso, nós, os povos da Ásia que falam grego e os Egeus, mantemos as nossas frotas a um nível mínimo. Se precisamos com urgência de mais navios, alugamo-los. E é isso que euvou fazer.

— Alugar navios a quem? — perguntou César, perplexo. — Se houvesse navios entre os povos egeus, claro que Termo já os teria reunido!

— É evidente que nãovou buscar os navios aos Egeus — retorquiu Nicomedes com desdém, deliciado por estar a ensinar alguma coisa àquele jovem tão inteligente e informado. —vou alugá-los à Paflagónia e ao Ponto.

— O quê? Mitridates aluga navios aos seus inimigos?

— E porque não? Eles agora têm os navios parados e isso sai-lhes muito caro. Por outro lado, Mitridates não tem neste momento soldados para os encher e não creio que planeie invadir a Bitínia ou a Província da Ásia este ano. Nem no próximo ano!

— Então quer dizer que atacaremos Mitilene com navios pertencentes ao reino a que Mitilene quer aliar-se — disse César, abanando a cabeça. — Extraordinário!

— Normal — retorquiu vivamente Nicomedes.

— E como fazes para os alugar?

— Uso um agente. Aquele em quem tenho mais confiança vive precisamente aqui, em Calcedónia.

César lembrou-se de que, se os navios iam ser alugados pelo rei da Bitínia para Roma os usar, então deveria ser Roma a pagar a conta, mas como Nicomedes parecia encarar o caso como pura rotina, César, inteligentemente, calou-se; em primeiro lugar, porque não tinha dinheiro, mas também porque não estava autorizado a encontrar esse dinheiro. Seria melhor aceitar as coisas tal qual elas se apresentavam. Começava, porém, a perceber por que razão Roma tinha problemas nas suas províncias e com os seus reis clientes. Da sua conversa com Termo, concluíra que a Bitínia receberia um pagamento pela sua frota, num futuro indefinido. Perguntava-se agora quanto tempo teria a Bitínia de esperar pelo pagamento.

— Muito bem. Está tudo tratado — disse o rei, seis dias depois. — A tua frota estará à tua espera no porto de Abido no décimo quinto dia do vosso mês de Outubro. O que quer dizer que ainda faltam quase dois meses e, como é evidente, passarás esses dois meses comigo.

— É meu dever acompanhar o encaminhamento e a reunião dos navios — disse César, não porque quisesse evitar o rei, mas porque acreditava que aquele era, de facto, o seu dever.

— Não podes — disse Nicomedes.

— Porquê?

— Porque estas coisas não se fazem assim. Regressaram então a Nicomédia, sem qualquer oposição de

César; quanto mais privava com o velho, mais gostava dele. E da mulher. E do cão.

Como tinha dois meses livres, César pensou visitar Pessinunte, Bizâncio e Tróia. Infortunadamente, o rei insistiu em acompanhá-lo a Bizâncio e em que fizessem a viagem por mar; por essa razão, César não chegou a visitar Pessinunte, nem Tróia; a viagem por mar, que em princípio não duraria mais de dois ou três dias, acabou por demorar quase um mês. O rei queria parar em todas as aldeias piscatórias e que os habitantes o vissem em toda a sua glória — embora, por deferência com César, sem maquilhagem.

Desde sempre grega, tanto em população, como do ponto de vista da sua natureza profunda, Bizâncio existia há seiscentos anos, na ponta de uma península montanhosa, no lado trácio do Bósforo, e possuía dois portos, um a norte e outro a sul. Tinha muralhas muito altas e poderosas e a sua riqueza manifestava-se claramente no tamanho e beleza dos seus edifícios, tanto os privados como os públicos.

O Bósforo Trácio era mais belo que o Helesponto — e mais majestático, pensou César, que já tinha passado o segundo destes estreitos. O facto de o rei Nicomedes ser o suserano da cidade tornou-se evidente mal a barcaça real aportou; todos os homens importantes da cidade se aglomeravam no porto para o saudar. Contudo, César não deixou de reparar que mesmo ele era olhado por algumas pessoas com desconfiança e desagrado ou que alguns dos presentes não gostavam de ver o rei da Bitínia confraternizando tão exuberantemente com um romano. O que o levava a um outro dilema. Até agora o relacionamento público entre César e o rei Nicomedes decorrera apenas dentro da Bitínia, onde o povo conhecia tão bem o rei que amava e compreendia todos os aspectos da sua pessoa. As coisas em Bizâncio eram completamente diferentes: ao fim de pouco tempo, já todos tinham concluído que César era o amante do rei da Bitínia.

Teria sido fácil refutar essa conclusão — bastar-lhe-ia fazer alguns comentários acerca de certos velhos patetas que faziam figuras muito tristes, insinuar aqui e acolá que regatear uma frota com um velho tonto era a tarefa mais maçadora deste mundo. O problema é que César não seria capaz de fazer uma coisa dessas; acabara por gostar de Nicomedes, excepto da forma que Bizâncio pensava, e não era capaz de magoar o pobre homem precisamente no ponto que, naquele momento, se apresentava mais vulnerável — o orgulho. Mas havia razões válidas para que César repusesse a verdade, e, em primeiro lugar, porque era o seu próprio futuro que estava em causa. César sabia para onde ia — sempre em frente, a caminho do topo. Já era mau ter de fazer essa dura escalada escondendo uma parte da sua natureza que era real; mas era muito pior fazê-lo no conhecimento de que as suspeitas, mormente neste caso, eram absolutamente injustificadas. Se o rei fosse mais novo, César teria feito sem dúvida uma declaração formal de que não tinha qualquer envolvimento com ele; apesar de Nicomedes condenar a intolerância romana relativamente à homossexualidade, considerando-a uma tendência não helénica ou mesmo bárbara, César, apesar de ser um indivíduo naturalmente afectivo e caloroso, teria lutado para desfazer qualquer tipo de ilusão. Porém, dada a idade avançada do rei, César temia que uma intervenção desse tipo provocasse em Nicomedes um sofrimento demasiado penoso. Em suma: depois da adolescência protegida e confinada a que se vira obrigado, César descobria que a vida era fonte de muitos dilemas para os quais nem sempre havia respostas adequadas.

O ressentimento dos Bizantinos em relação aos Romanos devia-se, obviamente, à ocupação da cidade por Fímbria e Flaco quatro anos antes, quando estes, nomeados pelo governo de Cina, tinham decidido avançar para a Ásia e para a guerra contra Mitridates, em vez de irem para a Grécia lutar contra Sila. Aos Bizantinos pouco importava que Fímbria tivesse morto Flaco e que Sila tivesse castigado Fímbria; o problema é que a cidade tinha sofrido, e muito. E agora, ali estava o seu suserano todo sorrisos e ternuras para com outro romano.

Assim, tendo chegado às conclusões a que podia chegar, César tratou de fazer o que era preciso para impressionar os Bizantinos e salvar tanto quanto possível o seu orgulho. A sua inteligência e educação constituíam uma grande ajuda, mas já não estava tão seguro quanto àquele elemento da sua natureza que a mãe detestava — o encanto. Essa qualidade conquistara os dirigentes da cidade e contribuíra decisivamente para atenuar os seus ressentimentos, mas, ao mesmo tempo, era provável que servisse para reforçar as ideias dos Bizantinos sobre as suas inclinações sexuais — um homem viril não era encantador.

Por isso, César lançou-se num ataque frontal. A primeira fase deste ataque consistiu na rejeição brutal de todo o assédio que lhe foi feito por outros homens; a segunda fase consistiu em descobrir a mais famosa cortesã de Bizâncio e fazer amor com ela de forma a deixá-la profundamente impressionada.

— É tão grande como um burro e tão insaciável como uma cabra! — confidenciou ela a todos os amigos e amantes habituais, exausta depois de um encontro com César. Sorridente, suspirou e esticou voluptuosamente os braços. — Ah, mas é maravilhoso! Há quantos anos eu não tinha um rapaz assim!

E a artimanha funcionou. Sem magoar o rei Nicomedes, cuja devoção pelo jovem romano passava a ser entendida como o que realmente era: uma paixão sem esperança.

Mas era tempo de regressar a Nicomédia, à rainha Oradaltis, ao cão Sila, àquele palácio louco a abarrotar de uma criadagem que adorava as intrigas e as disputas.

— Lamento imenso, mas tenho de ir — disse ele ao rei e à rainha, no seu último jantar juntos.

— Não lamentas mais do que nós — disse tristemente a rainha, enquanto afagava o cão com um pé.

— Voltas depois de Mitilene ser subjugada? — perguntou o rei. — Gostaríamos muito que viesses.

— Voltarei. Prometo que voltarei — disse César.

— Óptimo! — exclamou Nicomedes, satisfeito. — Mas agora, gostaria que me esclarecesses sobre um quebra-cabeças latino para o qual nunca encontrei resposta: por que razão cunnus é do género masculino e mentula do género feminino?

César pestanejou.

— O quê? Não sei!

— Ah, com certeza que há uma razão.

— Muito sinceramente, nunca pensei no assunto. Mas agora que chamaste a minha atenção para o caso, devo dizer que o acho muito peculiar.

— Cunnus devia ser cunna — são os órgãos genitais femininos! E mentula devia ser mentulus — porque, afinal, trata-se de um sinônimo de pénis! Não há dúvida: debaixo de toda a vossa jactância viril, há uma grande e desesperada confusão! As vossas mulheres são homens e os vossos homens, mulheres — disse o rei, radiante, recostando-se na cadeira.

— Não escolheste as palavras mais polidas para designar os órgãos genitais — disse César gravemente. — Cunnus e mentula são obscenidades. — A sua expressão mantinha a mesma seriedade à medida que ia falando. — Afinal, verifico agora que a resposta à tua pergunta é óbvia. Cunnus é do género masculino porque é masculino o sexo que cunnus pede. E inversamente no caso de mentula. O que está por detrás dessa inversão de géneros é isto: o que o pénis procura é um receptáculo feminino e o que a vagina quer é um visitante masculino.

— Disparates! — retorquiu o rei, com um estremecimento nos lábios.

— Sofismas! — comentou a rainha, dando aos ombros.

— Qual é a tua opinião, Sila? — perguntou Nicomedes ao cão, com o qual se dava muito melhor desde que César chegara — ou talvez fosse porque Oradaltis não o aborrecia tanto com o cão ultimamente.

César desatou a rir.

— Quando chegar a Roma,vou logo perguntar-lhe!

O palácio ficou desoladamente vazio depois da partida de César; os seus dois velhos residentes vagueavam como tontos pelas salas e até o cão andava triste.

— Ele é o filho que nunca tivemos — disse Nicomedes.

— Não! — retorquiu firmente Oradaltis. — Ele é o filho que nós nunca podíamos ter. Nunca.

— Por causa da predisposição da minha família?

— Não! Porque nós não somos romanos. Ele é romano.

— Talvez seja preferível dizer: ele é ele mesmo.

— Crês que voltará, Nicomedes?

Uma pergunta que pareceu deixar o rei mais animado. Retorquiu, confiante:

— Sim, creio que voltará.

Quando chegou a Abidos, nos Idos de Outubro, César encontrou a frota prometida ancorada no porto — dois enormes barcos pônticos com fileiras de dezasseis remadores, oito quinquerremes, dez trirremes e vinte galeras de boa construção mas com um aspecto pouco bélico.

”Como pretendes impor um bloqueio, e não lançar uma perseguição no mar”, dizia o rei numa carta a César, ”decidi que, no que respeita aos vinte navios de apoio, era preferível dar-te navios largos e com convés (na realidade, são navios mercantes reconvertidos), em vez das galeras de guerra sem convés que tu pediste. Se pretendes impedir os homens de Mitilene de terem acesso ao seu porto durante o Inverno, precisarás de navios resistentes, mais do que de galeras leves, pois estas têm de ser conduzidas para a margem sempre que rebenta uma tempestade. Os navios mercantes reconvertidos agüentam todos os ventos e tempestades. Quanto aos dois navios pônticos, achei que convinham aos teus propósitos, nem que fosse pelo facto de que têm um aspecto assustador. São navios capazes de romper todas as amarras; revelar-se-ão muito úteis quando atacares. Por outro lado, o comandante do porto de Sinope cedeu-os por um baixo preço: salários e comida para as tripulações (quinhentos homens em cada um deles). E isso porque o rei do Ponto não consegue arranjar trabalho para essa gente. A conta segue numa folha à parte.”

A distância de Abidos, no Helesponto, à costa anatólia da ilha de Lesbos, poucos quilômetros a norte de Mitilene,.era de cerca de cem milhas. Segundo o piloto-chefe, demorariam entre cinco e dez dias, se o tempo se mantivesse propício e se todas as embarcações agüentassem bem o mar.

— Então será melhor certificarmo-nos de que as embarcações são boas — disse César.

Não habituado a trabalhar para um almirante (pois esse era o seu estatuto até chegar a Lesbos, supunha César) que insistia numa inspecção rigorosa dos navios antes que a expedição começasse, o piloto-chefe chamou os três construtores de navios de Abidos e com eles examinou cuidadosamente todas as embarcações, com César atrás, importunando-os com um ror de questões.

— Enjoas no mar? — perguntou o piloto-chefe, desejoso de que a resposta fosse um sim.

— Que eu saiba, não — retorquiu César, surpreendido com a pergunta.

Dez dias antes das Calendas de Novembro, a frota de quarenta navios fez-se ao Helesponto, onde a corrente — que fluía sempre do Euxino para o Egeu — a levou, a um bom ritmo, até à embocadura sul do estreito: do lado trácio, ficava o promontório de Mastúsia; do lado asiático, ficava o estuário do rio Escamandro. Não muito longe do Escamandro ficava Tróia — a lendária cidade de ílio, de cujas ruínas o seu antepassado Eneias fugira, antes que Agamémnon pudesse capturá-lo. Pena que não pudesse visitar esse local fabuloso, pensou César; mas não fazia mal, por certo teria outras oportunidades.

O tempo manteve-se bon, disso resultando que a frota chegou à ponta norte de Lesbos seis dias mais cedo. Como queria chegar ao seu destino no prazo fixado, ou seja, as Calendas de Novembro, César consultou o piloto-chefe e decidiu atracar a frota na suave costa da pequena ilha de Cidoneia, de onde não podia ser visto de Lesbos. Não era o inimigo de Lesbos que o preocupava: o que ele queria era surpreender as tropas romanas. E fazer ver a Termo do que ele, César, era capaz.

— Tens uma sorte fenomenal — disse o piloto-chefe quando a frota se fez de novo ao mar, um dia antes das Calendas de Novembro.

— Porque dizes isso?

— Porque, para esta época do ano, nunca encontrei tão boas condições para a navegação — condições que se vão manter ainda durante vários dias.

—; bon, então, quando a noite cair, abrigar-nos-emos na primeira enseada que encontrarmos em Lesbos. Amanhã, ao alvorecer, eu seguirei num barco mais rápido para procurar o exército — disse César. — Não vale a pena levar toda a frota, enquanto eu não souber onde é que o comandante pretende fundeá-la.

César encontrou o seu exército pouco depois de o Sol ter nascido e dirigiu-se a terra para falar com Termo ou Lúculo, pois um deles seria por certo o comandante. Pelos vistos, era Lúculo. Termo continuava em Pérgamo.

Encontraram-se no local onde Lúculo dirigia a construção de uma muralha e de um fosso que rodeavam a estreita e elevada língua de terra onde ficava situada a cidade de Mitilene.

Dos dois, só César estava curioso; Lúculo estava apenas irritado, pois tinham-lhe dito unicamente que um tribuno desconhecido queria vê-lo: para ele, um oficial júnior desconhecido era sinônimo de aborrecimentos. A reputação de Lúculo crescera ao longo daqueles últimos anos, desde o momento em que se revelara o fiel questor de Sila, o único legado que concordara em marchar sobre Roma no tempo em que Sila fora cônsul. E, desde então, Lúculo fora sempre um adepto fiel de Sila, de tal modo que Sila lhe confiara missões que habitualmente só eram entregues a homens que já haviam sido pretores; Lúculo combatera contra o rei Mitridates e ficara na Província da Ásia depois de Sila regressar a Roma, agüentando a situação nessa região, enquanto o governador, Murena, se lançava numa guerra não autorizada contra Mitridates, na Capadócia.

César viu um homem esguio e rijo, com uma altura ligeiramente superior ao normal, e que tinha um andar algo rígido — não por ter qualquer problema nos ossos, mas, aparentemente, porque a sua mente era rígida. Não era um homem bonito — embora fosse, sem dúvida, um homem interessante. Tinha um rosto alongado e claro, coroado por uma cabeleira rija e ondeada de um castanho indefinido. Quando se aproximou o bastante para lhe ver a cor dos olhos, César descobriu que eram de um cinzento-claro, límpido, gelado.

As sobrancelhas do comandante arrepiaram-se num franzimento.

— Sim?

— Sou Caio Júlio César, tribuno militar júnior.

— Enviado pelo governador?

— Sim.

— Então? Que me queres? Não vês que estou ocupado?

— Trouxe-te a frota, Lúcio Licínio.

— A frota? Que frota?

— O governador ordenou-me que fosse buscar uma frota à Bitínia.

O olhar frio do outro fixou-o com atenção.

— Por todos os deuses! César limitava-se a esperar.

— Ora bem! Mas que belas notícias! Não sabia que Termo tinha mandado dois tribunos à Bitínia — disse Lúculo. — Quando é que ele te mandou? Em Abril?

— Tanto quanto eu sei, sou o único tribuno que foi à Bitínia.

— César... César... com certeza que não és aquele que ele mandou em Quinctilis!

— Sou.

— E já tens uma frota?

— Então vais ter de voltar à Bitínia, tribuno. O rei Nicomedes enganou-te. Deve ter-te dado os piores navios que ele lá tinha.

— Pelo contrário. Inspeccionei-os pessoalmente e devo dizer que são todos muito bons. São quarenta navios — dois com fileiras de dezasseis remadores, oito quinquerremes, dez trirremes e vinte navios mercantes reconvertidos, os quais, segundo o rei, agüentarão muito melhor um bloqueio de Inverno do que galeras sem convés — disse César, ocultando sabiamente o seu secreto gozo.

— Por todos os deuses! — exclamou Lúculo, examinando o tribuno militar júnior tão minuciosamente como se ele fosse uma criatura monstruosa exibida num circo. O canto esquerdo da sua boca parecia esboçar um sorriso e, nos olhos, o gelo derreteu-se um pouco. — Como é que conseguiste uma coisa destas?

— Sou um conversador persuasivo.

— Bem gostava de saber o que lhe disseste! Nicomedes é o maior forreta ao cimo da terra!

— Não te preocupes, Lúcio Licínio, que ele mandou a conta.

— Trata-me por Lúculo, porque aqui há pelo menos seis Lúcios Licínios. — O general começou a encaminhar-se para a praia. — Aposto que trazes a conta contigo! Quanto é que ele pede pelos navios com fileiras de dezasseis remadores?

— Apenas os salários e a alimentação das tripulações.

— Por todos os deuses! Onde está essa mágica frota?

— A cerca de uma milha a norte daqui. Pensei que era melhor vir à frente e perguntar-te se querias que a trouxesse para aqui ou se seria melhor que ela fosse bloquear imediatamente os portos de Mitilene.

Da expressão de Lúculo desaparecera já alguma da rigidez habitual.

— Creio que o melhor será dar-lhe trabalho imediatamente! — E esfregou as mãos de contentamento. — Ah, o choque que vai ser para Mitilene! Pensavam que iam ter o Inverno todo para armazenar provisões!

Quando os dois homens chegaram à embarcação onde viera César, Lúculo subiu imediatamente a bordo, mas César ficou parado.

— Então, tribuno? Não vens?

— Se assim o entenderes. Eu conheço mal a etiqueta militar, por isso não quero cometer erros — disse César, e estava a ser sincero.

— Entra, homem, vá!

Só quando os vinte remadores, dez de cada lado, começaram a rumar a norte, é que Lúculo voltou a falar.

— Conheces mal a etiqueta militar? Mas já vais longe dos dezassete anos, não vais, tribuno? Não disseste que eras um contubernalis.

Soltando um suspiro (pelos vistos, teria ainda de explicar muitas vezes o que se passara consigo), César disse, num tom informativo:

— Tenho dezanove anos, mas esta é a minha primeira campanha. Até Junho fui o flamen Dialis.

Mas Lúculo nunca pedia pormenores desnecessários. Era um homem demasiado ocupado e demasiado inteligente. Limitou-se a aquiescer, dispensando os desenvolvimentos que a maior parte dos interlocutores de César considerava indispensáveis.

— César... A tua tia não foi a primeira mulher de Sila?

— Sim.

— Então, ele favorece-te.

— Por ora.

— Bem respondido! Eu sou o mais fiel dos adeptos de Sila e estou a dizer-te isto como uma advertência que te devo, tendo em conta o teu parentesco com ele. Não permito a ninguém que o critique.

— Não ouvirás críticas da minha boca, Lúculo.

— Óptimo.

Um silêncio caiu entre os dois, rompido apenas pelo ruído uniforme dos vinte remos, mergulhando simultaneamente nas águas. Até que Lúculo, algo divertido, comentou:

— Adorava saber como é que conseguiste arrebanhar uma frota tão poderosa ao rei Nicomedes.

E o secreto gozo de César emergiu de repente à superfície de uma maneira que César não aprendera ainda a controlar; por isso, disse algo de indiscreto a alguém que não conhecia.

— O que aconteceu foi que o governador me irritou. Recusou-se a acreditar que eu conseguia ter quarenta navios, metade dos quais preparados para a guerra, nas Calendas de Novembro. Senti-me ferido no meu orgulho e deitei mãos à obra. E obtive os navios! Era o que o governador estava a pedir, por não acreditar que eu era capaz de cumprir a minha promessa.

Esta resposta irritou fortemente Lúculo; detestava ter homens excessivamente confiantes no seu exército, fosse a que nível fosse, e achara aquela declaração odiosamente arrogante. Tratou, por isso, de pôr o rapazito presunçoso no seu lugar.

— Conheço muito bem essa velha rameira maquilhada que dá pelo nome de Nicomedes — disse ele, numa voz capaz de fazer gelar qualquer um. — Evidentemente, tu és muito bonito e ele, bon, ele não é nada, mas mesmo nada inibido. Ele gostou de ti, não gostou? — Porém, como não tinha a mínima intenção de permitir que César respondesse, acrescentou imediatamente: — É claro que gostou! Pois bem, César, fizeste muito bem! É um gesto muito nobre, por Roma em primeiro lugar, à frente da nossa castidade! Julgo que ficarás conhecido como o palminho de cara que arrebatou quarenta navios. Ou deverei dizer: o rabinho?

Uma ira tremenda apoderou-se de César tão rapidamente que, para manter os braços quietos, teve de enterrar as unhas nas palmas das mãos; nunca na sua vida tivera de lutar tão arduamente consigo mesmo para se conseguir conter. Mas conseguiu. Por um preço que nunca esqueceria. Os seus olhos viraram-se para Lúculo, fixos e muito abertos. E Lúculo, apesar de já ter visto muitos olhares daqueles, empalideceu. Naquele momento, daria tudo para não estar ali; no entanto, com algum esforço, decidiu-se a agüentar a situação que ele próprio criara.

— Possuí pela primeira vez uma mulher — retorquiu César com uma voz calma e pausada — por volta dos meus catorze anos. São incontáveis as mulheres com quem já dormi, desde então. Isto significa que conheço muito bem as mulheres. E aquilo que me acusaste de fazer, Lúcio Licínio Lúculo, é precisamente o tipo de truque a que as mulheres precisam de recorrer. As mulheres, Lúcio Licínio Lúculo, para obterem o que querem ou o que alguns homens querem delas, só dispõem de uma arma: os seus cunni. No dia em que eu precisar de recorrer a truques sexuais para alcançar os meus fins, podes crer, Lúcio Licínio Lúculo, que a ponta da minha espada ditará o meu fim. Tu possuis um nome notável. Porém, comparado com o meu, é menos do que nada. Manchaste a minha dignitas. Não descansarei enquanto não tiver limpo essa nódoa. Como consegui a frota é algo que não te diz respeito. Nem a ti, nem a Termo! No entanto, podes ter a certeza de que a obtive honradamente, e sem precisar de ir para a cama com o rei — ou, já agora, com a rainha. O aproveitamento do sexo para tais fins é algo de desprezível. Não é com tais métodos que alcanço os meus fins. Alcanço-os, pelo contrário, usando a minha inteligência — um dom que, assim me parece, poucos homens possuem. É, pois, muito provável que, possuindo esse dom, eu vá muito longe. Mais longe, provavelmente, que tu.

Tendo concluído o seu discurso, César virou as costas a Lúculo e pôs-se a observar as construções do cerco a Mitiline, agora já esbatidas pela distância. E Lúculo, estupefacto, dava graças aos deuses por aquela conversa decorrer em latim; de outro modo, os remadores teriam compreendido tudo. Ah, obrigado, Sila! Mas que vespão que tu nos mandaste! Sempre trará alguma vivacidade à calmaria destas nossas manobras! Ah, sim, ele levantará mais problemas que um milhar de Mitilenes!

César e Lúculo passaram o resto da viagem num silêncio absoluto: César recolhido nos seus pensamentos e Lúculo revolvendo a cabeça, a pensar na melhor maneira de se retractar sem sacrificar a boa opinião que tinha de si mesmo — porque era absolutamente inconcebível que ele, o oficial que comandava as hostes romanas naquela guerra, descesse ao ponto de pedir desculpa a um tribuno militar júnior. E, no final da curta jornada, como não conseguira ainda encontrar uma solução satisfatória, subiu a escada do navio mais próximo, fazendo de conta que César não existia.

Quando já se encontrava no convés, esticou o braço direito, com a palma da mão para fora, para deter a subida de César.

— Não te incomodes, tribuno — disse ele, friamente. — Regressa ao meu acampamento e integra-te nele. Eu não quero ver-te.

— Posso procurar os meus criados e os cavalos?

— Evidentemente.

Burgundo, que conhecia o seu senhor melhor que ninguém, ficou certo, ao vê-lo, de que algo correra muito mal durante o pouco tempo em que ele estivera afastado da frota; no entanto, tinha suficiente bom senso para não fazer qualquer observação acerca da expressão rígida e vítrea de César, enquanto se dirigiam, por terra, para o acampamento de Lúculo.

Quanto a César, fez essa jornada sem dar por nada do que se passava à sua volta; nem reparou na situação e configuração do acampamento quando lá chegou. Uma sentinela indicou-lhe a via principalis e informou-o de que a residência dos tribunos militares júniores era o segundo edifício à direita. Ainda não era meio-dia, mas parecia-lhe que a manhã durara um milhar de horas; o tipo de cansaço que sentia naquele momento era inteiramente novo para ele — obscuro, aterrador, indecifrável.

Como aquele era um acampamento permanente — ou que, pelo menos, duraria até à Primavera seguinte —, os seus habitantes encontravam-se instalados mais sólida e confortavelmente do que era costume. Para os soldados, havia um sem-número de barracas de madeira de aspecto resistente, cada uma das quais dava para oito homens; para os não combatentes, havia barracões, também de madeira, que albergavam oitenta homens; para o general, havia uma casa tão grande que quase parecia uma mansão, construída com tijolos secados ao sol; para os legadores séniores, havia uma casa idêntica; para os oficiais de posto médio, fora construído um edifício com uma altura de quatro pisos, também em tijolo; e, finalmente, os tribunos militares júniores dispunham do mesmo tipo de edifício, só que mais pequeno.

César abriu a porta, hesitante, ouvindo logo as vozes dos colegas no interior, enquanto os seus criados e animais esperavam na rua.

De início pouco conseguiu ver do interior, mas os seus olhos adaptavam-se facilmente às mudanças de luz e, por isso, pôde dar-se conta da cena antes que alguém reparasse nele. Havia no meio da sala uma mesa de madeira enorme, à volta da qual estavam sentados sete jovens, com as botas em cima do tampo. César não os conhecia; essa era uma das conseqüências de ter sido flamen Dialis. Depois, um jovem de rosto agradável e corpo possante, que estava do outro lado da mesa, olhou para a porta e viu César.

— Olá! — disse ele, jovialmente. — Quem quer que tu sejas, entra!

César entrou com muito mais segurança do que efectivamente sentia, pois a acusação de Lúculo ainda o perturbava; os sete jovens que, nesse momento, se viraram para ele, viram um terrífico Apoio, nunca um Apoio lírico. Lentamente, foram retirando os pés da mesa. Depois daquela saudação inicial, todos se calaram. Limitavam-se a olhar para ele, fixamente.

Depois, o jovem que o saudara levantou-se e foi ter com ele, de mão estendida.

— Aulo Gabínio — disse ele, rindo-se. — Não ponhas um ar tão importante, homem! Já temos gente importante que chegue!

César cumprimentou-o fortemente.

— Caio Júlio César — disse, mas não conseguia retribuir o sorriso. — Julgo que é aqui quevou ficar. Sou tribuno militar júnior.

— Nós sabíamos que eles haviam de arranjar um oitavo tribuno — disse Gabínio, virando-se para os outros. — Pois é isso que somos: tribunos militares júniores! A escória da terra é um tormento constante para o nosso general! Ah, sim, de vez em quando trabalhamos! Mas como não nos pagam, o general não insiste muito. Olha, acabámos de almoçar. Ainda há alguma comida. Mas antes, vem conhecer os teus colegas de martírio.

Nesse momento, já os outros se tinham levantado todos.

— Caio Octávio. — De baixa estatura, mas dotado de um físico musculoso, Caio Octávio possuía um tipo de beleza grego, com a sua cabeleira castanha e olhos cor de avelã. Só as orelhas de abano destoavam naquele rosto. O seu aperto de mão era agradavelmente firme.

— Públio Cornélio Lêntulo. Podes tratá-lo por Lêntulo, sem mais. — Obviamente um dos ”importantes” de que Gabínio falara, e um Cornélio típico — tez morena, um rosto muito pouco atraente. Parecia inseguro mas determinado em vencer essa insegurança — inseguro, mas pertinaz.

— Este é o Lêntulo especial — Lúcio Cornélio Lêntulo Nigro. Chamamos-lhe Nigro, é claro. — Outro dos ”importantes”, outro Cornélio típico. Mais arrogante que o Lêntulo sem mais.

— Lúcio Márcio Filipe Júnior. Chamamos-lhe Lippus, e é cá um lesma! — A alcunha não era simpática nem justa, pois Lippus não tinha os olhos remelosos; pelo contrário, possuía uns olhos magníficos, grandes, negros, sonhadores, e o seu rosto era muito mais atraente do que o do pai Filipe — isso vinha-lhe evidentemente da avó, uma Cláudia, com quem se parecia. Dava imediatamente a impressão de ser uma criatura naturalmente plácida; e o seu aperto de mão era suave, embora não frágil.

— Marco Valério Messala Rufo, Conhecido como Rufo, o Vermelho. — Não, aquele não pertencia à classe dos ”importantes”, apesar de o seu nome patrício ser muito, muito importante. Neste caso, a alcunha era inteiramente justificada — todo ele vermelho: cabelos, pele, olhos. Mas não parecia ser homem capaz de ficar vermelho de raiva, bem pelo contrário.

— E, em último lugar, como de costume, porque é o que se vê menos: Marco Calpúrnio Bíbulo.

Bíbulo era o mais altivo de todos, talvez por ser, de longe, o mais pequeno, tanto em altura como em constituição física. Os seus traços prestavam-se naturalmente a uma expressão de superioridade, pois os ossos do rosto eram salientes, tal como o seu nariz abatatado, muito romano; os lábios moldavam-se num esgar grave e as sobrancelhas eram rigorosamente direitas, sobre uns olhos proeminentes, de um tom cinzento-pálido. O cabelo e as sobrancelhas eram de um louro tão desmaiado que quase parecia branco: por isso parecia mais velho, ele que afinal só tinha 21 anos.

Acontece, por vezes, que, num primeiro encontro, dois indivíduos se detestam imediatamente, sem que haja, para tal aversão, qualquer fundamento, seja em factos palpáveis, seja na lógica. Foi isso exactamente o que se passou entre Caio Júlio César e Marco Calpúrnio Bíbulo mal trocaram o seu primeiro olhar. O rei Nicomedes falara de inimigos — ali estava um, disso estava César certo.

Gabínio foi buscar a oitava cadeira e colocou-a junto à mesa, entre a sua e a de Octávio.

— Senta-te e come — disse ele.

—vou sentar-me, mas desculpa quanto ao comer. Não tenho fome.

— Vinho! Bebe uma taça!

— Nunca toco em vinho. Octávio soltou um risinho.

— Ah, vais adorar isto aqui! — exclamou. — Só se vê é gente a vomitar!

— Tu és o flamen Dialis! — exclamou o filho de Filipe.

— Eu fui o flamen Dialis — disse César, sem qualquer intenção de aprofundar o assunto. Um segundo depois, porém, pensou melhor e acrescentou: — bon, se eu lhes contar a história agora, nunca mais me importunam com perguntas. — E narrou a história num estilo muito vivo, escolhendo tão bem as palavras que os seus colegas — nenhum deles com tendências eruditas, bem pelo contrário — se aperceberam rapidamente de que o novo tribuno era um intelectual, ou mesmo um erudito.

— Mas que história! — disse Gabínio quando César terminou.

— Nesse caso, ainda estás casado com a filha de Cina — disse Bíbulo.

— Sim.

— E agora — comentou Octávio, com um riso desabrido — estamos empatados no velho combate, Gabínio! com César, são quatro os patrícios! Vitória ou morte!

Os outros lançaram-lhe um olhar fulminante; Octávio aquietou-se.

— Acabas de chegar de Roma? — perguntou Rufo.

— Não. Da Bitínia.

— Que foste fazer à Bitínia? — perguntou Lêntulo.

— Fui buscar uma frota para o assalto a Mitilene.

— Aposto que aquele velho maricas do Nicomedes gostou de ti. — atirou-lhe Bíbulo, malicioso. Sabendo que uma questão daquelas revelava uma falta de tacto e educação que ofenderia a maior parte dos seus colegas, Bíbulo procurara resistir-lhe; contudo, a tentação fora mais forte.

— Gostou, de facto — retorquiu friamente César.

— E conseguiste a frota? — insistiu Bíbulo.

— Naturalmente — replicou César, com uma altivez que Bíbulo, por muito que fizesse, nunca conseguiria imitar.

Bíbulo riu-se: um riso ácido, como a sua expressão.

— Naturalmente? Não quererás dizer por acaso confra-naturalmente?

Ninguém viu muito bem o que a seguir se passou. Quando os outros seis deram por isso, já César tinha dado a volta à mesa e pegado em Bíbulo, mantendo-o a alguma distância de si e com os pés bem acima do chão. O efeito era francamente cômico. Bíbulo dava aos braços, tentando alcançar o rosto sorridente de César; mas os braços eram demasiado pequenos para lhe causar sequer um arranhão. Uma cena que parecia ter saído do mais inspirado dos mimos.

— Se não fosses tão insignificante como uma pulga — disse César — levava-te lá para fora e esmagava-te essa cara contra as lajes do chão. Infelizmente, Pulex, isso seria considerado homicídio. Mas tu és demasiado insignificante para que eu te transforme em polpa. Por isso, aconselho-te a que não te metas no meu caminho, miserável lêndea! — Segurando Bíbulo ainda bem alto, César procurou um sítio onde o pôr — um armário com quase dois metros de altura. Sem parecer fazer um grande esforço, atirou com Bíbulo para cima do armário, evitando airosamente os pontapés deste. — Dá aos pés aí em cima, Pulex!

Feito isto, César saiu.

— Ora aí está um bom nome para ti, Bíbulo! Pulex! — disse Octávio, rindo. — A partir de agora, chamar-te-ei Pulex! Bem mereces a alcunha! Que achas, Gabínio?

— Eu preferia chamar-lhe Podex! — exclamou Gabínio, vermelho de raiva. — Que te levou a dizer aquilo, Bíbulo? Veio completamente despropósito e só serviu para que ficássemos todos mal vistos! — Lançando um olhar feroz para os outros, acrescentou: — Não me interessa o que vocês vão fazer, mas euvou ajudar César a descarregar as bagagens.

— Ajudem-me a descer — pediu Bíbulo, no alto do armário.

— Não contes comigo — retorquiu Gabínio, com um ar de troça.

Nenhum dos outros tribunos se ofereceu para ajudar Bíbulo; este teve de se atirar do alto do armário, pois o móvel era demasiado frágil e instável para que ele pudesse descer agarrando-se aos rebordos. Para além de uma monumental raiva, Bíbulo experimentava também uma mistura de perplexidade e mortificação — Gabínio tinha razão. O que é que o levara a dizer aquilo? Que ganhara com aquilo? Portara-se como um grosseirão, perdera a estima dos companheiros e nem sequer tinha o consolo de ter vencido a contenda.

César obtivera uma vitória fácil, e com honra, pois não batera num homem mais pequeno e fraco, limitando-se a pôr a nu essa pequenez e fraqueza. Era natural que Bíbulo sentisse inveja em relação aos homens de elevada estatura e forte compleição física — eram coisas que ele não tinha, em absoluto. E o mundo, como ele muito bem sabia, pertencia aos homens grandes, aos homens imponentes. Só o aspecto físico de César — aquele rosto, aquele corpo, aquela altura — chegara para o pôr fora de si; e ainda por cima, o homem falava bem e sabia escolher as palavras certas! Não era justo!

Bíbulo ficou sem saber quem mais odiava — se ele próprio, se Caio Júlio César. O homem que tinha tudo. Da rua vinham gargalhadas, demasiado estrondosas para que Bíbulo não sentisse vontade de ir espreitar. Lentamente, foi-se encostar ao vão da porta e, furtivamente, lançou uma olhadela. Lá estavam eles, os seus seis colegas tribunos, estourando de riso, enquanto o homem que tinha tudo, no meio deles, montava uma mula! Bíbulo não conseguia ouvir o que César dizia, mas sabia que as palavras eram espirituosas, divertidas, encantadoras, irresistíveis, fascinantes, interessantes, soberbamente escolhidas, mágicas.

”Pois bem!”, disse ele para si mesmo enquanto, com passos furtivos, regressava à privacidade do seu quarto. ”Ele nunca mais se há-de ver livre desta pulga!”

com a chegada do Inverno, o cerco a Mitilene entrou num período lento, aquele período em que os sitiantes nada faziam, a não ser esperar que os sitiados morressem à fome; por isso, Lúcio Licínio Lúculo teve finalmente tempo para escrever ao seu muito estimado Sila.

Nutro grandes esperanças de que isto acabe na Primavera, graças a um acontecimento surpreendente, de que falarei mais abaixo. Em primeiro lugar, gostaria que me concedesses um favor. Se conseguir concluir esta missão na Primavera, posso voltar a Roma? Já passou tanto tempo, meu caro Lúcio Cornélio, e, francamente, preciso de voltar a ver Roma — e de te voltar a ver a ti. O meu irmão, Varrão Lúculo, já tem agora a idade e a experiência necessárias para ser um edil curul, e eu gostaria de partilhar a edilidade curul com ele. Não há mais nenhum cargo que dois irmãos possam partilhar a contento de todos. Pensa só nos jogos que nós vamos dar! Isto para não falar dos prazeres. Eu estou com 38 anos, o meu irmão tem 36 — quase a idade dos pretores, e, no entanto, ainda não fomos edis. O nosso nome exige que sejamos edis. Por favor, deixa-nos assumir este cargo, e depois deixa-me ser pretor logo que possível. Mas se achares que a minha pretensão é insensata ou imerecida, é evidente que compreenderei.

Na Província da Ásia, as coisas parecem estar a correr bem a Termo; caso contrário, não me teria dado o cerco de Mitilene — assim mantém-me ocupado e longe dele. Não é mau tipo. As populações locais gostam dele, porque ele tem paciência para ouvir as suas longas histórias sobre as razões por que não podem pagar o tributo; e eu gosto dele, porque, depois de ter escutado com tanta paciência, insiste em que paguem o tributo.

Estas duas legiões que tenho aqui são compostas por homens muito difíceis. Murena comandou-os na Capadócia e no Ponto e, antes dele, comandou-os Fímbria. Demonstram uma independência de espírito de que não gosto nada e tenho um trabalho imenso para os pôr na ordem. É claro que estão ressentidos com o teu edicto. Nunca mais poderão voltar a Itália por terem apoiado o assassínio de Flaco por Fímbria. Regularmente, manddtn-me uma delegação pedindo que esse edicto seja anulado. Não vão a lado nenhum e, neste momento, já me conhecem suficientemente bem para compreender que os dizimarei a todos se me derem o mínimo pretexto para o fazer. São soldados de Roma e, portanto, farão o que eu lhes mandar. Não há nada que mais me irrite do que um soldado ou um tribuno júnior pensar que tem voto seja em que matéria for — mas já voltarei a este assunto.

Parece-me agora que Mitilene estará já muito por baixo na Primavera, altura em que tenciono lançar um assalto frontal. Disporei de várias torres, e portanto é natural que o assalto seja um êxito. Se conseguir submeter esta cidade antes do Verão, toda a Província da Ásia ficará quieta e mansa.

A principal razão da minha confiança reside no facto de que possuo uma frota verdadeiramente extraordinária. Uma frota — imagina só — de Nicomedes! Termo enviou o teu sobrinho (por casamento) Caio Júlio César à Bitínia, com a missão de arrancar uma frota a Nicomedes antes do fim de Quinctilis. Termo escreveu-me a informar-me disso, mas nenhum de nós esperava pela frota antes de Março ou mesmo Abril do próximo ano. Mas, pelos vistos, Termo teve a audácia de se rir da confiança do jovem César nas suas capacidades. Por isso, César virou-se para Termo todo empertigado e, com o ar mais arrogante deste mundo, pediu-lhe que lhe indicasse, com todos os pormenores, a dimensão da frota e a data de entrega. Quarenta navios, metade dos quais quinquerremes ou trirremes, a entregar nas Calendas de Novembro. Estas foram as ordens que Termo deu ao seu arrogante interlocutor.

Pois queres crer que César apareceu no meu acampamento, precisamente nas Calendas de Novembro, com uma frota estupenda, uma frota que qualquer romano dificilmente conseguiria arrancar a uma pessoa do género de Nicomedes? Incluindo dois navios com fileiras de dezasseis remadores, pelos quais não tenho de pagar mais do que os salários e a comida da tripulação! Quando vi a conta, fiquei de boca aberta — bon, é verdade que a Bitínia acabará por ter algum lucro, mas não é um lucro desmedido, bem pelo contrário. É evidente que me sinto obrigado a devolver a frota logo que Mitilene caia em nosso poder. E a pagar a conta. Espero poder pagá-la com os despojos, mas se estes não forem tão avultados como prevemos, há alguma possibilidade de convenceres o Tesouro a conceder-me um empréstimo especial?

Devo acrescentar que o jovem César se mostrou arrogante e insolente quando me entregou a frota. Vi-me obrigado a pô-lo no seu lugar. É evidente que ele só poderia ter conseguido uma frota tão boa, e em tão curto espaço de tempo, de uma maneira: dormindo com aquele velho maricas. E foi isso que eu lhe disse, para o pôr no seu lugar. Mas duvido que haja no mundo algum modo de pôr César no seu lugar! Virou-se para mim como uma serpente venenosa e informou-me de que não precisava de recorrer a truques de mulheres para obter o que quer que fosse — e que, no dia em que o fizesse, a sua espada ditaria o seu fim. Deixou-me perfeitamente intrigado quanto à melhor maneira de o disciplinar — e esse é um problema que, como tu sabes, normalmente não me atormenta. Concluí que talvez os colegas dele fizessem o trabalho por mim. Lembras-te deles, com certeza — deves tê-los visto antes da partida. Gabínio, dois Lêntulos, Octávio, Messala Rufo, Bíbulo e o filho de Filipe.

Parece que Bíbulo, o pequenino, tentou pô-lo na ordem. Coitado! Acabou em cima de um armário que fazia dois dele! Entretanto, assiste-se a uma divisão nítida entre os tribunos militares júniores. César conquistou Gabínio, Octávio e o filho de Filipe. Rufo mostra-se neutral. E os dois Lêntulos e Bíbulo odeiam-no. Há sempre problemas com os jovens durante as operações de cerco, o que é natural, pois são períodos em que não acontece nada. Por outro lado, é difícil, até para mim, obrigá-los a trabalhar. Mas César atrai mais problemas do que o habitual. Detesto ter de me incomodar com militares de tão baixo posto, mas houve alturas em que não tive outra alternativa. César é insuportável. Demasiado bonito, demasiado confiante nas suas capacidades, demasiado consciente da sua (infelizmente) grande inteligência.

Mas façamos-lhe justiça: é um verdadeiro trabalhador. Nunca pára. Não sei como, mas a verdade é que, em todo o acampamento, não há soldado que não o conheça — e, o que é pior, todos gostam dele. O problema é que escapa a todo e qualquer controlo. Os meus legados até já o evitam, porque ele só aceita ordens para fazer um trabalho se achar que o trabalho vai ser bem feito. E infortunadamente as suas ideias são sempre as melhores! Ele é um daqueles tipos que já tem tudo planeado na cabeça antes de se avançar para uma batalha ou para uma obra. O resultado é que, a maior parte das vezes, os meus legados passam pelas maiores vergonhas.

Até agora, só encontrei uma maneira de abalar a sua confiança — referindo-me à forma como ele conseguiu a sua magnífica frota por um preço tão baixo. E funciona num certo sentido, porque ele fica desvairado de raiva. Mas crês que ele me responde como eu desejaria — atacando-me fisicamente e dando-me assim um pretexto para eu o levar a tribunal marcial? Não! É demasiado inteligente e autocontrolado para fazer uma coisa dessas. Não gosto dele, claro. E tu? Ele teve o descaramento de me dizer que o meu nascimento, comparado com o dele, é menos que nada!

Mas já chega de tribunos júniores. Devia tentar falar de homens mais importantes — legados séniores, por exemplo. Mas, francamente, não me consigo lembrar de nada que tenha interesse.

Soube que serviste de casamenteiro há pouco tempo e que deste a Pompeu, o Miúdo Carniceiro, uma esposa muito acima da sua posição. Pois uma coisa te peço, se tiveres tempo: arranja-me uma esposa. Tenho andado longe de Roma desde que fiz trinta anos. E agora, quase com idade para ser pretor, não tenho esposa e, muito menos, um filho varão. O problema é que eu prefiro bom vinho, boa comida e muita diversão ao tipo de mulher com que um Licínio Lúculo tem de casar-se. Além disso, gosto de rapariguinhas, e não há ninguém tão necessitado de dinheiro que me dê em casamento uma filha de treze anos! Se descortinares alguém, informa-me. O meu irmão recusa-se redondamente a fazer de casamenteiro; por isso, podes imaginar como fiquei contente ao saber que te tinhas iniciado nesse nobre ofício.

Recebe a minha estima e as minhas saudades, meu querido Lúcio Cornélio.

Em fins de Março, Marco Minúcio Termo chegou de Pérgamo e concordou que Lúculo devia atacar. Quando lhe contaram todos os pormenores relacionados com a frota bitínia de César, desatou numa gargalhada pegada, embora Lúculo não estivesse em condições de ver o lado divertido da questão; com efeito, já estava farto de ouvir queixas sobre os seus indisciplinados e briguentos tribunos militares júniores.

Havia, contudo, uma lei militar muito antiga e que nunca precisara de ser formulada por escrito: se um homem constitui uma fonte permanente de conflitos, o melhor será dar-lhe, na próxima batalha, um lugar tal que a sua morte seja certa. E ao fazer os seus planos para o assalto a Mitilene, Lúculo decidiu precisamente seguir esta antiga lei militar. César teria de morrer. Era Lúculo quem comandava por inteiro as hostes romanas; Termo estaria presente apenas na qualidade de observador.

Não era incomum um general reunir todos os seus oficiais, fosse qual fosse o seu posto, para uma prelecção final; mas, em Lúculo, isso era uma raridade — daí que a sua convocatória provocasse muitos comentários. Não que os outros oficiais achassem estranho ver os tribunos júniores presentes; de facto, aqueles oito eram invulgarmente conflituosos e o general não tinha confiança neles — daí que precisassem bem de ouvir as palavras do chefe. Normalmente, os tribunos júniores serviam, essencialmente, como mensageiros, sob a direcção dos tribunos legionários. Foi isso mesmo que Lúculo decidiu no final do seu conselho de guerra. Mas não em relação a todos. De acto, a única excepção a essa regra era César, a quem Lúculo disse, no tom mais frio deste mundo:

— Tu só me tens dado problemas, mas reparei que gostas de trabalhar. Decidi, por isso, dar-te o comando de uma coorte especial, formada pelos piores elementos de entre os fimbrianos. Manterei de reserva essa coorte até ao momento em que detectar o mais poderoso foco de resistência da cidade. Depois, mandá-la-ei combater precisamente para essa secção da batalha. Como comandante, terás de levar esses homens a inverter a situação.

— És um homem morto — comentou Bíbulo, complacentemente, depois do conselho.

— Não sou tal! — retorquiu César, jovialmente, cortando um cabelo com a espada e outro com a adaga.

Gabínio, que tinha por César grande afeição, estava preocupado.

— Mas que mentula que tu me saíste! Nunca vi mentula assim, que desse tanto nas vistas — disse ele. — Se calasses essa báca e não desses nas vistas, não terias sido escolhido para comandar a coorte. Ele nunca deveria ter dado tais funções a um júnior, quanto mais a um júnior que faz a sua primeira campanha. Todos os soldados dele são fimbrianos, condenados ao exílio para toda a vida. Pois ele juntou precisamente os mais refractários e pôs-te a ti a comandá-los! Se queria dar-te o comando de uma coorte, então deveria ter escolhido homens das legiões de Termo.

— Eu sei, eu sei — retorquiu César, pacientemente. — Que hei-de eu fazer? Estou condenado a ser um mentula que dá nas vistas! Ora pergunta às mulheres do acampamento e vais ver o que elas te dizem...!

A ironia de César provocou risinhos nuns e olhares sombrios noutros; aqueles que o detestavam talvez lhe tivessem perdoado mais facilmente se, durante o Inverno, ele não houvesse ganho uma invejável reputação entre as mulheres que seguiam o acampamento — tanto mais que ele introduzira uma novidade que as divertia e espicaçava: a felizarda teria de ser um modelo de higiene.

— Não estás mesmo preocupado? — perguntou Rufo, o Vermelho.

— Não — disse César. — Eu tenho sorte e talento. Espera e verás. — Meteu cuidadosamente a espada e a adaga nas respectivas bainhas e dirigiu-se depois para o seu quarto. Ao passar por Bíbulo, fez-lhe uma cócega sob o queixo. — Não tenhas medo, Pulex — disse ele. — És tão pequenino que o inimigo nem vai dar por ti.

— Se ele não fosse um tipo tão convencido, talvez o suportasse melhor — disse Lêntulo a Lêntulo Nigro ao subirem para os seus quartos.

— Ele há-de deixar de ser um convencido — disse Nigro.

— Então espero lá estar para ver, quando isso acontecer — retorquiu o outro, tremendo só de pensar no que esperava César. — Vai ser terrível amanhã, Nigro.

— Sobretudo para César — disse Nigro, com um sorriso de satisfação. — Lúculo vai transformá-lo a ele e à sua coorte num alvo fácil para as setas inimigas.

Havia seis torres montadas junto às muralhas de Mitilene, cada uma das quais suficientemente grande para permitir a passagem de centenas de soldados até ao cimo das muralhas; por outro lado, os soldados podiam movimentar-se de forma suficientemente rápida para atacarem em massa os defensores e arremessá-los do alto das muralhas. Infelizmente para Lúculo, os defensores estavam conscientes de que tinham menos hipóteses de resistir a um tal assalto do que de vencer uma batalha campal fora das muralhas.

A meio da noite, Lúculo acordou com a notícia de que todas as portas da cidade estavam abertas e que sessenta mil homens tinham saído para ocupar posições no espaço entre as muralhas de Mitilene e o fosso e as torres que ele construíra.

Num instante, ouviu-se o toque das trombetas e o atroar dos tambores e o acampamento romano, obedecendo às ordens de Lúculo para que se aprontasse para a guerra, transformou-se no palco de uma frenética actividade. Lúculo dispunha agora das quatro legiões da Ásia, pois Termo trouxera as duas que faltavam; estas duas últimas legiões não tinham pertencido ao exército de Fímbria e, por isso, poderiam voltar a Roma com Termo, logo que este concluísse o seu mandato como governador. A sua presença no acampamento acabou por avivar na memória dos fimbrianos a inevitabilidade da sua condenação ao exílio e por atiçar ainda mais o seu descontentamento. Agora que a batalha campal se tornava inevitável, Lúculo temia que os fimbrianos não combatessem. O que tornava ainda mais imperativo que a coorte de César fosse separada do resto do exército.

Lúculo tinha vinte e quatro mil homens contra os sessenta mil de Mitilene. Porém, entre os soldados de Mitilene, não havia apenas guerreiros experimentados: como sempre acontecia nos combates contra as forças sitiantes, os sitiados recorriam a todos os homens, e inclusivamente aos velhos e às crianças.

— Sou um idiota! Devia ter pensado nesta possibilidade! — exclamou Lúculo, furioso, em conversa com Termo.

— E como é que eles souberam que nós íamos atacar hoje? — perguntou Termo.

— Espiões. Provavelmente algumas das mulheres do acampamento — disse Lúculo. — Mandarei matá-las mais tarde. — Depois, voltando a debruçar-se sobre o que interessava, acrescentou: — O pior de tudo é que ainda está demasiado escuro para podermos ver de que modo é que eles se distribuíram. Tenho de mantê-los longe até conseguir elaborar um plano.

— Tu és um táctico brilhante, Lúculo — disse Termo. — Apesar disto, vai tudo correr bem.

De madrugada, Lúculo subiu a uma das suas torres, instalada junto às suas próprias muralhas, e observou as formações do inimigo; as tropas de Lúculo encontravam-se já na terra de ninguém, aglomeradas do outro lado do seu fosso, de onde haviam sido retiradas à pressa centenas de milhar de estacas pontiagudas. Lúculo não queria que os soldados romanos morressem empalados se por acaso o seu exército fosse obrigado a recuar. Havia desde já um factor positivo: naquela batalha, não haveria escapatória possível. As muralhas de Lúculo impediriam as suas tropas de abandonar o campo. Não que ele tivesse previsto isso; os fimbrianos, quando estavam decididos a lutar, eram tão bons como quaisquer soldados que tinha comandado.

Antes de o Sol nascer, Lúculo deslocou-se à terra de ninguém, rodeado pela sua cadeia de comando, a quem indicava as últimas instruções.

— Não posso falar aos soldados, eles nunca me ouviriam — disse ele, tenso. — Por isso, tudo depende da vossa atenção neste momento. E da vossa total obediência. Como ponto de orientação, usarão a grande porta norte de Mitilene, pois fica mesmo no centro da nossa esfera de operações. O meu exército distribuir-se-á sob a forma de um quarto crescente, com as alas esquerda e direita mais avançadas que o centro. Porém, no meio da concavidade, na exacta direcção da porta norte, quero que haja um pico. Este pico avançará à frente de todas as outras unidades, a passo, sendo a porta norte o seu objectivo. A minha táctica consiste em usar esse pico, de forma a dividir as hostes inimigas em duas partes e a encerrar cada uma dessas partes dentro dos arcos do crescente. Isto significa que os homens devem manter integralmente a formação inicial, ficando as pontas das alas praticamente ao mesmo nível que o pico central. Como não tenho cavalaria, tenho de pedir aos homens que se encontram nas pontas do crescente que se comportem como alas de cavalaria. Devem atacar em peso e depressa.

Cerca de setenta homens estavam reunidos à sua volta. Lúculo tivera de subir para uma pequena caixa, a fim de que todos o pudessem ver. Os centuriões das coortes também estavam presentes. A certa altura, o olhar de Lúculo fixou-se em César e no centurião pilus prior que comandava essa coorte de rebeldes que, originalmente, Lúculo pensara transformar em pasto das setas inimigas. Lúculo lembrava-se bem do nome do pilus prior — Marco Sílio, um indivíduo arrogante, agressivo e grosseiro que chefiava sempre as delegações dos fimbrianos que, regularmente, lhe iam pedir a revogação da pena de exílio. Aquele não era o momento azado para Lúculo se vingar; do que ele precisava, era de tomar uma decisão ditada pelo bom senso. E tinha duas hipóteses: ou esta coorte ia para a dianteira do pico central (e, nesse caso, seria certo que quase todos os seus homens morreriam), ou então ficava escondida na retaguarda de uma das duas curvas do crescente, onde pouco poderia fazer para além de servir de reforço. Mas Lúculo depressa tomou a sua decisão.

— César e Sílio — colocam a vossa coorte na dianteira do pico central e avançam para a porta norte. Logo que cheguem à porta, agüentam a vossa posição aconteça o que acontecer. — E prosseguiu com as suas instruções.

— Que os deuses me ajudem! Aquele cunnus deu-me um menino como comandante! — resmungou Sílio para César, pelo canto da boca, enquanto aguardava que Lúculo terminasse.

César não se irritou com o comentário, pois respeitava um centurião tão experiente na arte da guerra como era Sílio. Em vez disso, riu-se.

— Preferes ser comandado por um menino que aprendeu a combater com Caio Mário ou por um legado que só na aparência é bom militar, pois, no fundo, nem sabe distinguir a frente da rectaguarda?

Caio Mário! Esse era o nome que fazia bater mais forte os corações de todos os soldados romanos. Marco Sílio fitou o seu comandante com um olhar perscrutador, e mesmo um pouco mais brando.

— E qual é a tua relação com Caio Mário? — perguntou.

— Caio Mário era meu tio. E acreditava em mim — disse César.

— Mas esta é a tua primeira campanha! A tua primeira batalha! — contestou Sílio.

— Tu sabes tudo, não sabes, Sílio? Então, já que sabes tudo, acrescenta isto aos teus conhecimentos: eu nãovou deixar ficar mal os teus homens. Mas se vocês me deixarem ficar mal, podem ter a certeza de que os mando açoitar a todos — disse César.

— Negócio fechado! — retorquiu prontamente Sílio, afastando-se para comunicar as instruções do comando aos seus centuriões júniores.

O general Lúculo não gostava de perder tempo. Logo que os seus oficiais puseram os soldados em formação, deu ordens para avançar. Era evidente para Lúculo que o inimigo não tinha nenhum plano de batalha; de facto, os soldados de Mitilene limitavam-se a esperar, numa grande aglomeração, sob as suas muralhas; e quando o exército romano começou a avançar, não fizeram qualquer tentativa para carregar. Esperariam pelo asssalto; só depois combateriam. Mitilene estava convicta da sua vitória, unicamente porque tinha muito mais soldados.

Tão astuto como era truculento, Sílio apressou-se a espalhar a notícia pelos seus seiscentos homens: o comandante era um menino que por acaso também era sobrinho de Caio Mário — e Caio Mário acreditara nas suas capacidades.

César avançava sozinho, à frente do estandarte, segurando com o braço esquerdo o enorme escudo retangular. Tinha ainda a espada embainhada; Mário dissera-lhe que a espada só devia ser desembainhada no último momento, porque, acrescentara ele, ”um homem, quando avança para o combate, seja em passo de corrida ou em passo normal, não pode olhar para o chão”. E dissera-lhe ainda: ”Se levares a espada na tua mão direita e tropeçares num buraco ou numa rocha, o mais natural é que acabes por ficar bastante ferido.”

César não tinha medo, nem mesmo nos recessos mais secretos do seu ego, e não lhe passava pela cabeça que pudesse morrer naquela batalha. Depois, deu-se conta de que os seus homens estavam já a entoar um cântico:

”Nós — somos — os fim — bria — nos! Cui — da — do — com — os fim — bria — nos! Nós — apanhámos — o rei — do — Ponto! Nós — somos — os melhores — do — Mundo!”

Fascinante!, disse César para si mesmo enquanto as hordas de Mitilene iam ficando cada vez mais próximas. Há quatro anos que Fímbria morrera, quatro anos em que aqueles homens tinham lutado sob o comando de dois Licínios, de Murena e, finalmente, Lúculo. Fímbria era um fora-da-lei. E, apesar disso, aqueles soldados permaneciam-lhe fiéis. Eles não são — e suspeito que nunca serão — os licinianos. Não faço ideia de como se sentiram sob o comando de Murena. Mas o que sei é que odeiam Lúculo! bon, mas quem é que não odeia Lúculo? Não passa de um aristocrata emproado! E não acredita que é bon, que é útil, que os seus soldados gostem dele. Está completamente equivocado.

No momento exacto, César deu ordem ao corneteiro para tocar o sinal de arremessar as lanças; e manteve a calma necessária para não se baixar repentinamente quando mais de mil lanças assobiaram sobre a sua cabeça. Essas mil lanças, arremessadas em duas séries, afectaram fortemente os homens de Mitilene. Chegara o momento de avançar!

César desembainhou a espada e brandiu-a no ar, enquanto ouvia o peculiar ruído de seiscentas espadas a serem desembainhadas no mesmo momento. Depois, avançou calmamente na direcção do inimigo, tão calmamente como um senador avançando para uma multidão do Fórum, sem pensar uma única vez no que pudesse estar a acontecer nas suas costas. O gládio, uma arma pequena, dotada de dois gumes, muito afiada, não era uma arma que se pudesse fazer girar à volta da cabeça e arremessar depois contra o inimigo; César usava-a correctamente, ou seja, ao nível das virilhas, com a lâmina formando a hipotenusa do triângulo e a terrível ponta virada para cima e para o inimigo. Golpear e entranhar, entranhar e golpear.

O inimigo não gostava desta forma de ataque, dirigido precisamente às preciosas partes baixas dos soldados, e a coorte dos turbulentos fimbrianos não parava de avançar, dando aos homens de Mitilene poucas hipóteses de brandir e desferir as suas espadas. O choque fê-los recuar e a pressão romana manteve-os recuados o tempo suficiente para que o pico de Lúculo se enterrasse profundamente nas hostes inimigas.

Momentos depois, porém, ganharam coragem e atiraram-se à luta de todas as maneiras possíveis: todos eles odiavam profundamente Roma e estavam decididos a morrer para que a sua amada Mitilene não voltasse a cair nas mãos dos Romanos.

César depressa descobriu que muito do ardor guerreiro era uma questão de teatro. Quando um militar inimigo vinha lutar connosco, não devíamos mostrar terror nem ceder terreno; se o fizéssemos, perderíamos psicologicamente o confronto e as nossas hipóteses de morrer tornavam-se muito maiores. Atacar, atacar, atacar sempre. Fazer crer aos outros que éramos invencíveis: se fizéssemos isso, quem recuava era o inimigo. E César era perito nisto, pois possuía óptimos reflexos e uma visão extremamente apurada. E de tal modo se envolveu na luta que, durante muito tempo, combateu sem parar para pensar no que estaria a suceder por detrás dele.

Por outro lado, descobriu que, mesmo no mais ardoroso combate, havia lugar para a inteligência; ele era o comandante da coorte e, no entanto, quase se esquecera de que ela existia. Mas como havia ele de se virar para trás e ver o que se passava sem apanhar com uma espadeirada inimiga? Como chegar a um local de onde pudesse ter uma visão clara da situação? O seu braço estava a ficar algo cansado, embora a posição baixa e o pouco peso da espada não lhe provocasse a fadiga que acometia já o inimigo, o qual dispunha de armas muito mais pesadas; de facto, os soldados inimigos brandiam as suas espadas de forma cada vez mais desvairada e desferiam os seus golpes de um modo cada vez menos entusiástico.

Perto de César, via-se já uma pilha de cadáveres de inimigos; então, depois de um súbita explosão de violência para se libertar dos vivos que estavam por perto, César aproveitou a oportunidade para saltar para o alto daquele monte de cadáveres. As suas pernas, naquelas circunstâncias, podiam transformar-se num ponto fraco; mas a pilha era suficientemente vasta para que, ao chegar ao cimo, pudesse virar-se sem precisar de se preocupar com as pernas.

Os seus homens desataram aos vivas quando o viram e isso deixou-o imensamente feliz. Mas havia um problema: a sua coorte encontrava-se isolada; o pico de Lúculo tinha feito o seu trabalho, mas não fora convenientemente apoiada pela retaguarda. Somos uma ilha no meio do inimigo, pensou César. Graças a Lúculo. Mas nós vamos agüentar-nos, nós não vamos morrer! Descendo da pilha de cadáveres com uma série de desenfreados saltos que confundiram o inimigo, César postou-se ao lado de Marco Sílio, dando instruções.

— Estamos isolados. Manda tocar o sinal de ”formar quadrado” — disse ele ao corneteiro da coorte, que combatia ao lado do porta-estandarte.

As suas instruções foram cumpridas com uma precisão e uma rapidez extraordinárias — ah, mas que belos soldados aqueles! César e Sílio deram então uma volta pelo quadrado, incitando os homens e providenciando para que os pontos mais fracos fossem reforçados.

— Se eu tivesse aqui a minha mula, podia ficar a saber num instante o que se está a passar em todo o campo — disse César a Sílio. — Mas um tribuno júnior encarregado de uma simples coorte não tem direito a ter uma montada. É um erro!

— Não há nada mais fácil — disse Sílio, que agora sentia o maior respeito por César. Deu um assobio e logo apareceu uma dúzia de soldados de reserva. — Vamos fazer-te uma tribuna com homens e escudos!

Momentos depois, já César estava no alto de uma coluna humana, formada por quatro homens, dispostos aos pares e cobrindo as cabeças com os seus escudos.

— Cuidado com as lanças inimigas! — gritou-lhe Sílio. Apesar de a batalha continuar a ser violentamente disputada,

era já evidente que a táctica de Lúculo estava basicamente correcta; de facto, dava a impressão de que o inimigo acabaria por ser esmagado pelas alas romanas, que se iam inexoravelmente fechando.

— Dá-me o estandarte — gritou César. O porta-estandarte atirou-lho imediatamente e César agitou-o na direcção de Lúculo, que se via nitidamente daquela altura, montado num cavalo branco. — Pelo menos assim informamos o nosso general de que estamos vivos e de que mantemos a nossa posição como nos foi ordenado — disse César a Sílio logo que desceu. — Obrigado pela tribuna. Ainda é difícil saber quem vencerá.

Momentos depois, os homens de Mitilene lançaram uma ofensiva generalizada contra o quadrado de César.

— Não vamos agüentar — disse Sílio.

— Vamos, sim, Sílio! Faz com que toda a gente se mantenha firme nos seus postos — disse César. — Vamos, Sílio, faz o que eu digo!

com Sílio atrás dele, César abriu caminho até ao ponto onde o ataque era mais violento; e aí, sentindo o desespero do inimigo, lançou-se impetuosamente na luta, desferindo golpes à esquerda e à direita. Era evidente que, para o inimigo, aquela coorte fora-da-lei constituía o alvo ideal: aqueles romanos tinham de morrer, para servir de exemplo para o resto do campo. César sentiu alguém ao seu lado; depois, ouviu a respiração opressa de Sílio e viu um sabre abatendo-se sobre ele. Como conseguiu afastar o inimigo com o seu escudo e evitar o golpe que teria aberto a cabeça a Sílio, César nunca compreendeu — só compreendeu que o fez e que depois matou o homem com a sua adaga, embora, com o mesmo braço, segurasse ainda o escudo.

Este incidente pareceu ser o sinal de uma reviravolta; de facto, depois dele, a pressão do inimigo começou a enfraquecer e a coorte de César, ao fim de algum tempo, pôde continuar o seu avanço. Até que, por fim, atingiram a porta da cidade; os fimbrianos, exultantes, viraram-se então para a distante muralha romana — agora, nada nem ninguém conseguiria desalojá-los!

E de facto assim aconteceu. Cerca de uma hora antes do pôr do Sol, Mitilene estava derrotada, deixando trinta mil cadáveres no campo, a maior parte dos quais cadáveres de velhos e de rapazes. Implacavelmente justo, Lúculo ordenou então a execução de todas as mulheres de Lesbos que havia no acampamento romano, enquanto, ao mesmo tempo, autorizava as mulheres de Mitilene a deslocar-se ao campo de batalha, a fim de recolherem e enterrarem os seus mortos.

César deu-se conta de que seria preciso um mês para apagar os destroços da batalha e que esse era um trabalho mais duro do que a preparação para a peleja. Entretanto, a sua coorte — que agora o acompanhava permanentemente — decidira que, de facto, ele era digno da protecção que Caio Mário lhe havia concedido (é evidente que César não lhes dissera que essa protecção já se tinha manifestado sob a forma de um flaminato) e que merecia inteiramente ser seu comandante. Vários dias antes da cerimónia em que o general, Lúculo, e o governador, Termo, concederam condecorações militares àqueles que se tinham distinguido na batalha, o centurião pilus prior Marco Sílio fora ter com Lúculo e Termo, perante os quais jurara formalmente que César tinha salvo a sua vida e que não cedera um palmo de terreno ao inimigo; e jurara mais: que fora César quem salvara a coorte de uma morte certa.

— Se tivesse sido uma legião, terias ganho a Coroa de, Erva — disse Termo, ao colocar a coroa de folhas de carvalho na cabeça loura de César. — Mas como só estava envolvida uma coorte, o máximo que Roma te pode dar é a coroa cívica. — Após um momento de reflexão, acrescentou: — Sabes com certeza, Caio Júlio, que a concessão da Coroa Cívica te promove automaticamente a senador e te dá acesso a outras distinções, de acordo com as novas leis da República. Pelos vistos, Júpiter Optimus Maximus estava mesmo decidido a fazer-te entrar para o Senado! O lugar que perdeste ao deixares de ser flamen Dialis é-te agora devolvido.

César foi o único homem a receber tão elevada honra naquela batalha. Por outro lado, a sua coorte foi premiada com phalerae para adornar o seu vexillum; a Marco Sílio foi concedido um conjunto de nove phalerae de ouro que ele exibia, muito orgulhoso, na dianteira da sua couraça de couro. Sílio já tinha nove phalerae de prata (que agora adornavam a parte de trás da sua couraça), cinco armillae de prata e dois torques de ouro suspensos das correias dos ombros.

—vou dar isto a Sila — disse Sílio a César, enquanto recebiam na tribuna, juntamente com os outros militares condecorados, as saudações do exército. — Ele pode ter-nos negado a possibilidade de voltar para casa, mas foi suficientemente justo para nos conceder as condecorações. — E, olhando com admiração para a coroa de folhas de carvalho de César, acrescentou: — És um verdadeiro soldado, menino. Nunca vi melhor.

E esse comentário, disse César para si mesmo mais tarde, era um elogio mais valioso do que todas as congratulações e trivialidades que Lúculo, Termo e os legados lhe tinham dirigido durante o banquete dado em sua honra. Gabínio, Octávio, Lipo e Rufo estavam muito felizes com o que sucedera. Quanto aos dois Lêntulos, estavam muito calados. Mas Bíbulo, que não era um cobarde mas que não ganhara nada pois limitara-se a servir de mensageiro durante a batalha, não conseguia estar calado.

— Eu devia ter adivinhado — disse ele, amargamente. — O que tu fizeste, qualquer um de nós poderia ter feito. Bastava que tivéssemos a sorte de nos vermos na mesma situação que tu. Mas a sorte vai toda para ti, César. Sob todos os aspectos.

César desatou a rir-se, jovialmente, enquanto afagava Bíbulo sob o queixo, um gesto que se tornara um hábito; foi Gabínio quem acabou por protestar.

— Quando dizes isso, Bíbulo, estás a negar a César o mérito das suas acções — disse ele, irado. — César pôs-nos a todos a um canto, e de duas maneiras: com o trabalho que realizou durante o Inverno e com o trabalho, muito mais duro, que realizou durante a batalha! Sorte? A sorte, meu tacanho, meu pateta invejoso, não é para aqui chamada!

— Oh, Gabínio, não te deves aborrecer com ele — disse César, que não tinha a mínima dificuldade em mostrar-se cortês, e que sabia que isso ainda irritava mais Bíbulo, tanto que quase o deixava a chorar. — Há sempre um elemento de sorte. Mas trata-se de uma sorte especial! É um sinal dos favores de Fortuna, por isso ela só pertence aos homens com capacidades superiores. Sila tem sorte. É ele o primeiro a dizê-lo. Mas esperem e verão! A sorte de César tornar-se-á por demais conhecida!

— E a de Bíbulo, pura e simplesmente, não existirá — disse Gabínio, mais calmo.

— Provavelmente — retorquiu César, num tom que indicava que o assunto em causa o deixava completamente indiferente.

Termo, Lúculo e os seus legados, oficiais e tribunos, regressaram a Roma em finais de Junho. O novo governador da Província da Ásia, Caio Cláudio Nero, chegara entretanto a Pérgamo e Sila autorizara Lúculo a regressar, informando-o, ao mesmo tempo, de que ele e o irmão, Varrão Lúculo, seriam edis curuis no ano seguinte.

”Quando chegares a Roma”, concluía a carta de Sila, ”já serás edil curul. Quanto ao meu papel como casamenteiro, peço-te desculpa, mas não quero voltar a desempenhá-lo — pelos vistos, a minha proverbial sorte não me acompanha nesse terreno particular. Já deves saber que a esposa de Pompeu morreu. Além disso, meu caro Lúculo, se gostas de rapariguinhas novas, não será melhor seguires esse caminho, apesar de menos próprio? É que, mais tarde ou mais cedo, acabarás por encontrar um nobre arruinado, desejoso de te vender a sua filhinha. Mas que acontecerá quando ela crescer? É que todas crescem, não sei se sabes!”.

Se Lúculo não tinha nenhuma noiva à sua espera em Roma, Marco Valério Messala Rufo, mal chegou, teve de tratar de um casamento, não do seu, mas do da sua irmã. Quando ele ainda se encontrava no Oriente, Valéria Messala mandara-lhe angustiadas missivas em que o informava de que o marido se divorciara dela. Embora ela continuasse a jurar que amava o marido com todo o seu ser, o divórcio provara claramente que o marido não nutria por ela ponta de afeição. Porquê, ninguém entendia. Valéria Messala era bela, inteligente, bem educada e nada maçadora; não gostava de mexericos, não era gastadora e não andava atrás de outros homens.

Um dos mais ricos plutocratas da cidade morrera em fins de Junho e os seus dois filhos, para honrarem a sua memória, organizaram uns magníficos jogos no Fórum Romano. Estavam previstos combates entre vinte pares de gladiadores, vestidos com os seus trajes ornamentados a prata; não seriam, porém, vinte os combates, mas apenas dois, cada um dos quais envolvendo dez pares de gladiadores — os organizadores dos jogos tinham preferido o estilo trácio ao estilo gaulês, que eram os únicos dois estilos de luta praticados nessa época. Desejoso de se divertir, Sila não podia faltar. Por isso, os dois irmãos resolveram instalar o Ditador num lugar especial, no meio da fila da frente, onde Sila podia estar à vontade, sem se sentir esmagado pela multidão.

Não havia nada na mos maiorum que impedisse as mulheres de assistir a este tipo de jogos, podendo mesmo sentar-se ao lado dos homens; os jogos fúnebres tinham mais a ver com circo do que teatro. E o primo de Valéria, Marco Valério Messala Nigro, que acabara de obter um belo triunfo, por ter contratado Cícero para defender Róscio de Améria, pensou que talvez Valéria animasse um pouco se a levasse a ver os jogos.

Sila encontrava-se já instalado no seu lugar de honra quando os primos chegaram. Os lugares estavam já quase todos ocupados e os primeiros dez pares de gladiadores encontravam-se já no seu ringue com o chão coberto de serradura, exercitando os músculos, enquanto esperavam que os irmãos dessem início aos jogos com as orações e o sacrifício escolhidos para agradar ao falecido. Quando uma lotação esgotava, era muito útil ter amigos bem nascidos, e especialmente ter uma tia que fosse simultaneamente uma ex-vestal e a filha de Metelo Baleárico. Sentada ao lado do irmão, Metelo Nepo, da mulher deste, Licínia, e do primo Metelo Pio o Bacorinho (que era cônsul nesse ano, e logo uma personagem extremamente importante), a ex-vestal Cecília Metela Baleáricf tinha guardado dois lugares que ninguém se atrevera a disputar.

Para lá chegarem, Messala Nigro e Valéria Messala tinham de abrir caminho entre os que ocupavam a segunda fila e, portanto, imediatamente atrás do Ditador. Sila, como toda a gente notara, estava com um ar bem-disposto e descansado, talvez porque o tacto e a eficiência de Cícero lhe tinham permitido mitigar os ressentimentos causados pelas proscrições e eliminar um problema chamado Crisógono. O Fórum estava a abarrotar de gente: o povo miúdo empoleirava-se mesmo nos telhados e nos lanços de escadas, ao passo que os elementos mais importantes da cidade ocupavam as bancadas de madeira à volta do ringue, um quadrado com uma vedação de cordas e cerca de doze metros de lado.

Em Roma, quem chegasse atrasado a um espectáculo arriscava-se a ouvir os maiores impropérios por parte daqueles que já estavam confortavelmente sentados; Messala Migro não dava a mínima importância aos protestos, mas a pobre Valéria sentia-se obrigada a pedir desculpa a toda a gente. A certa altura, deu consigo mesmo atrás do Ditador de Roma; aterrorizada perante a possibilidade de o incomodar, fixou os olhos na nuca e nos ombros de Sila, convencida de que, desse modo, evitaria tocar-lhe. Sila tinha a sua ridícula peruca, como seria de esperar, e usava uma toga praetexta, com debrum púrpura. Viera acompanhado dos seus vinte e quatro lictores, todos eles agachados no chão em frente da primeira fila. Ao passar por ele, Valéria reparou num fio de lã púrpura que se colara às dobras brancas da toga, no ombro esquerdo de Sila; e não hesitou: puxou o fio de lã.

Sila nunca mostrara o mínimo resquício de medo quando se encontrava entre multidões: parecia sempre acima dessas coisas, como se desconhecesse o perigo. Porém, ao sentir aquele toque leve no ombro, Sila assustou-se, saltou da cadeira e virou-se tão rapidamente que Valéria, muito mais assustada que ele, recuou e acabou por pisar os pés do espectador que estava atrás dela. Ainda com uma ligeira névoa de terror toldando-lhe os olhos, Sila deu de caras com uma mulher tomada de pânico, uma mulher ruiva, de olhos azuis e juvenilmente bela.

— Peço imensa desculpa, Lúcio Cornélio — conseguiu ela dizer; depois, molhando os lábios, procurou explicar a sua conduta. Procurando ter uma aparência mais descontraída, mostrou-lhe o fio de lã e disse: — Estás a ver? Estava no teu ombro. Pensei que, se o tirasse, talvez ficasse com um bocadinho da tua sorte. — Os olhos dela encheram-se de lágrimas que, resolutamente, tentou controlar, e a sua bela boca começou a tremer. — É que eu preciso tanto de sorte!

Sorrindo para a jovem sem abrir os lábios, Sila pegou-lhe na mão e fechou-lha com ternura, para que ela guardasse a inocente causa de tanto medo.

— Fica com o fio de lã. Faço votos para que te dê sorte! — disse ele, e voltou a sentar-se.

Porém, ao longo dos jogos gladiatoriais, Sila não parou de se virar para trás, espreitando Valéria e o grupo com que ela estava; e Valéria, apercebendo-se perfeitamente daqueles olhares inquisidores, sorria para ele nervosamente, enrubescia e desviava o olhar.

— Quem é ela? — perguntou Sila ao Bacorinho quando a multidão, satisfeita com os magníficos combates, começou a dispersar.

É claro que todo o grupo de Valéria (e muitas outras pessoas) tinha reparado nos olhares de Sila. Por isso, Metelo Pio não fingiu qualquer espanto.

— Valéria Messala — disse. — Prima de Nigro e irmã de Rufo, que está prestes a chegar do cerco de Mitilene.

— Ah! — disse Sila, acenando com a cabeça. — Tão bem nascida quanto bela. O marido divorciou-se dela há pouco tempo, não foi?

— Inesperadamente e por nenhuma razão aparente. Ela ficou destroçada.

— Estéril? — perguntou o homem que, em tempos, se divorciara por a esposa ser estéril.

A expressão do Bacorinho denunciava algum desdém pelo ex-marido de Valéria.

— Duvido muito, Lúcio Cornélio. Aposto que ela não teve filhos meramente por falta de uso.

— Hmm! — Sila reflectiu por um instante e, depois, muito animado, disse a Metelo Pio: — Ela tem de vir jantar comigo amanhã. Diz a Nigro e a Metelo Nepos que venham. E tu também vens, é claro. Mas não quero mais mulheres no jantar.

Mal chegou a Roma, o tribuno militar júnior Marco Valério Messala Rufo foi chamado à presença do Ditador, que lhe falou sem rodeios. Estava apaixonado pela irmã de Rufo e queria casar com ela.

— Que podia eu responder? — perguntou Rufo ao seu primo Nigro.

— Espero que tenhas respondido: ”Encantado”!

— Foi isso mesmo que respondi.

— Óptimo!

— Mas o que é que sente a minha pobre irmã? Ele é tão velho e feio! Nem tive oportunidade de perguntar a Valéria se ela sentia alguma coisa por ele!

— Valéria será feliz, Rufo. Ele pode não ser nenhuma beldade, mas é o rei não oficial de Roma — e é tão rico como Creso! Para Valéria, um tal casamento, se não for outra coisa, será pelo menos um bálsamo para a ferida de um divórcio imerecido — argumentou Nigro. — Isto para não falar das vantagens que o casamento trará para todos nós! Creio que ele está a pensar nomear-me pontífice; e, para ti, reserva-te um cargo de augure. Por isso, bico calado e dá graças aos deuses!

Rufo seguiu o sensato conselho do primo, tanto mais que ficou a saber que a irmã achava Sila um homem atraente e agradável e queria realmente casar-se com ele.

Convidado para o casamento, Pompeu encontrou um momento para conversar em privado com o Ditador.

— Quem me dera ter só metade da tua sorte — disse o jovem, com um ar deprimido.

— De facto, não tens tido muita sorte com as tuas esposas, pois não? — perguntou Sila, deliciado com o casamento e a boda e mostrando a melhor das disposições em relação a toda a gente.

— Valéria é uma bela mulher — concedeu Pompeu. Os olhos de Sila dançaram.

— Só e abandonado, Pompeu?

— Isso mesmo, por Júpiter!

— Mas Roma está cheia de belas aristocratas, Pompeu! Porque não escolhes uma e pedes a mão dela ao seu tata?

— Eu não tenho jeito para esse género de campanhas.

— Disparates! Tu és jovem — és rico — és bonito — e és famoso — disse Sila, que gostava de enumerar as bases dos seus argumentos. — Pede uma mulher em casamento, Magno! É tudo o que tens a fazer: pedir! Só um pai muito esquisito é que seria capaz de te dizer que não.

— Não tenho jeito para esse género de campanhas — repetiu Pompeu.

Os olhos que, um momento antes, dançavam nas órbitas, examinavam agora o jovem com não pouca astúcia; Sila sabia perfeitamente por que razão Pompeu não se atrevia a pedir uma mulher em casamento. Tinha medo de que a sua origem pesasse demasiado na balança, pois era com uma jovem patrícia que desejava casar-se. Pompeu ambicionava o melhor para si; por outro lado, como tinha de si mesmo uma opinião exageradamente elevada, era de prever que não se contentasse com casamentos inferiores. Porém, o facto de ser um Pompeu do Piceno impedia-o de avançar: quem sabe se não seria recusado? Em suma: o que Pompeu queria era que fosse o pai da jovem a pedir a mão dele. E, até agora, nenhum pai se dispusera a fazê-lo.

De repente, Sila teve uma inspiração, o mesmo tipo de inspiração que o levara a dotar Roma de um Pontifex Maximus gago.

— Importavas-te se fosse uma viúva? — perguntou ele, os olhos dançando de novo.

— Desde que não seja tão velha como a República...!

— Julgo que deve ter uns vinte e cinco anos.

— É aceitável. A mesma idade que eu.

— Mas não tem dote.

— A origem interessa-me muito mais do que o dote.

— A origem dela — retorquiu Sila com um ar feliz — é absolutamente esplêndida, tanto por parte do pai, como por parte da mãe. Origens plebéias, mas magníficas!

— Quem é? — perguntou Pompeu, debruçando-se para Sila. — Quem é?

Sila desceu do divã e ficou a olhar para ele com um ar algo vacilante.

— Espera que eu volte da lua-de-mel, Magno. Depois vem ter comigo e volta a perguntar-me.

Para Caio Júlio César, o regresso a Roma significara um triunfo que, provavelmente, nunca encontraria igual. Além de estar livre, estava vingado. Tinha ganho uma importante coroa pelo seu comportamento no campo de batalha.

Sila mandou-o chamar imediatamente e César encontrou o Ditador com a melhor das disposições; a entrevista teve lugar pouco antes do casamento de Sila — de que toda a Roma falava já, embora não houvesse ainda nada de oficial. Foi por isso que César não se referiu uma única vez ao casamento.

— Muito bem, meu rapaz! Excedeste-te a ti mesmo!

Que responder àquilo? Depois do que Lúculo lhe dissera, César decidira que nunca mais se mostraria ingênuo, fosse com quem fosse.

— Espero que não, Lúcio Cornélio! Fiz o melhor que pude, mas posso fazer muito melhor!

— Não duvido. Basta olhar para ti. — Sila lançou-lhe um olhar especialmente malicioso — Disseram-me que, na Bitínia, conseguiste uma frota de uma excelência sem paralelo.

César não conseguiu evitar um ligeiro enrubescimento.

— Fiz o que me mandaram. Exactamente o que me mandaram — retorquiu ele, com uma expressão tensa.

— O assunto ainda te deixa nesse estado? — perguntou Sila.

— A acusação de que me prostituí para obter a frota não tem o mínimo fundamento.

— Deixa-me dizer-te uma coisa, César — disse o Ditador, cujo rosto parecia mais jovem e agradável do que da última vez que César o vira, mais de um ano antes. — Nós fomos ambos vítimas de Caio Mário. Mas tu, pelo menos, estás completamente livre dele aos... vinte anos?

— Sim, vinte anos — disse César.

— Pois eu tive de suportá-lo até aos cinqüenta. Portanto, podes dar-te por feliz. E, se isto te serve de consolação, devo dizer-te que me estou perfeitamente marimbando para o facto de um homem dormir com quem quer que seja: o que me interessa é que ele sirva bem Roma.

— Não, não me serve de consolação — atirou-lhe César. — Porque eu não seria capaz de vender a minha honra: nem por Caio Mário, nem por ti, nem por Roma!

— Nem mesmo por Roma?

— Se Roma é aquilo que eu penso, nunca me pediria que vendesse a minha honra.

— Sim, de facto essa é uma boa resposta — retorquiu Sila, aquiescendo. — Só é pena que não corresponda inteiramente à realidade. Roma, como tu descobrirás, pode ser uma rameira tão viciosa como a maior das rameiras. Tu não tens tido uma vida fácil, embora a minha tenha sido muito mais dura. Mas tu és como eu, César. Vejo-o tão bem! Tal como a tua mãe, aliás. O estigma é uma realidade. E tu vais ter de viver com ele. Quanto mais famoso fores, quanto mais eminente for a tua dignitas, tanto mais Roma falará do caso. De mim também disseram que assassinei mulheres para poder entrar para o Senado. A diferença existente entre nós não é uma diferença de natureza, mas de ambição. Eu só queria ser cônsul e depois consular, e talvez censor. Era aquilo a que eu tinha direito. Quanto ao resto, fui empurrado a fazê-lo, sobretudo por Caio Mário.

— Eu não quero mais do que isso — retorquiu César, surpreendido.

— Interpretaste-me mal. Eu não estou a falar de cargos, mas sim de ambição. Tu, César, queres ser perfeito. Não permites que te aconteça nada que possa tornar-te menos perfeito. Não é a injustiça do estigma que te apoquenta — porque aquilo que te faz sofrer é o facto de esse estigma te desviar da tua perfeição. Honra perfeita, carreira perfeita, folha de serviços perfeita, reputação perfeita. In suo armo sempre e sob todos os aspectos. E porque exiges a ti próprio a perfeição, exigirás a perfeição a todos os que te rodeiam — e quando eles se revelarem imperfeitos, rejeitá-los-ás. A perfeição consome-te tanto quanto me consumiu a mim a luta por aquilo a que tinha direito.

— Eu não me considero perfeito!

— Eu não disse isso. Ouve-me com atenção! Eu disse que tu queres ser perfeito. Que tu queres ser a personificação do escrúpulo. E isso não mudará. Tu não mudarás. Mas quando tiveres de mudar, farás tudo o que for preciso para mudar. E sempre que não te achares perfeito, odiarás essa ausência de perfeição — e odiar-te-ás a ti mesmo. — Sila pegou num papel. — Este é o decreto quevou afixar amanhã nos rostra. Ganhaste a Coroa Cívica. De acordo com as minhas leis, isso dá-te direito a entrar para o Senado, a ter um lugar especial no teatro e no circo, e a ser saudado com uma ovação de pé sempre que apareceres com a Coroa. Deverás usá-la no Senado, no teatro e no circo. A próxima reunião do Senado é daqui a quinze dias. Espero ver-te na Cúria Hostil.

E a entrevista chegava ao fim. Porém, quando chegou a casa, César encontrou outro galardão atribuído por Sila: um jovem e magnífico garanhão de pelagem castanha. Atada à crina vinha uma nota: ”Não precisas de continuar a montar uma mula, César. Tens a minha total autorização para montar este cavalo. No entanto, ele não é completamente perfeito. Repara nas suas patas.”

César foi ver as patas do cavalo e desatou a rir. É que os cascos do garanhão, caso invulgar num cavalo, dividiam-se em dois dedos, um pouco como as patas de uma vaca.

Lúcio Decúmio tremeu ao ver aquilo.

— Devias castrá-lo! — disse ele, sem entender a razão de tanto riso. — É melhor que ele não deixe descendência!

— Pelo contrário — disse César, limpando os olhos, pois chorara de tanto rir. — Não é grande montada, pois não pode ser ferrado. Mas o jovem Dedos vai estar comigo em todas as batalhas! E quando não for comigo para a guerra, estará a cobrir as minhas éguas em Bovilas. Lúcio Decúmio, este cavalo traz sorte! Tenho de ter sempre um Dedos. Porque assim nunca perderei uma batalha.

A mãe apercebeu-se imediatamente de que havia algo de diferente no filho e interrogava-se por que razão estaria ele tão triste. Tudo lhe correra tão bem! Tinha regressado com a coroa cívica e coberto de louvores. Nem sequer tinha gasto tanto dinheiro quanto ela temia; o rei Nicomedes dera-lhe ouro, e recebera uma elevada percentagem dos despojos de Mitilene precisamente por ter ganho a Coroa Cívica.

— Não compreendo — disse Caio Macio, sentado no chão do jardim, com as mãos sobre os joelhos, fitando César, sentado ao seu lado. — Dizes que a tua honra foi desacreditada e, no entanto, recebeste um saco de ouro do velho rei. Não foi um erro da tua parte?

Aquela pergunta, vinda de outra pessoa, não teria sido tolerada por César. Mas Macio era seu amigo desde a infância. César respondeu-lhe, com um ar pesaroso:

— Teria sido, se a acusação tivesse surgido antes do ouro. Quando o velho me deu o ouro, tratava-se, muito simplesmente, de um presente dado pelo anfitrião a um visitante. Exactamente o que qualquer rei cliente deve dar a um enviado oficial do seu patrono, Roma. Da mesma forma que paga o seu tributo, o rei cliente concede naturalmente presentes aos enviados de Roma. — E, encolhendo os ombros, acrescentou: — Eu recebi o presente com gratidão, Pústula. A vida nas campanhas de guerra é dispendiosa. Eu não tenho gostos caros, mas uma pessoa é obrigada a contribuir para o rancho, para os jantares especiais e para os banquetes, para luxos que todos perseguem. Os vinhos têm de ser os melhores, as comidas são ridiculamente requintadas — e não interessa se os meus gostos em bebidas e comidas são baratos. Por tudo isto, o ouro foi muito importante para mim. Depois de Lúculo me ter dito o que disse, ainda pensei devolver o ouro. Mas apercebi-me de que, se o fizesse, magoaria o rei. Como é evidente, não lhe podia dizer o que Lúculo e Bíbulo me disseram.

— Sim, estou a perceber — retorquiu Caio Macio, suspirando. — Sabes, Pavo, estou tão contente por não ter de ser senador ou magistrado. É muito mais agradável ser um vulgar cavaleiro dos tribuni aerarii!

César não podia compreender a posição do amigo e, por isso, não fez qualquer comentário. Em vez disso, voltou ao tema chamado Nicomedes.

— Eu comprometi-me a regressar à Bitínia — disse. — E isso só servirá para aumentar os boatos. Quando eu era flamen Dialis, pensava que ninguém ligava nenhuma aos feitos de pessoas como os tribunos militares júniores. Verifico agora que a realidade é muito diferente. As pessoas adoram mexericos! Só os deuses sabem a quantas pessoas Bíbulo não terá contado a história que ele próprio inventou! Mas também não ponho as mãos no fogo por Lúculo. Ou pelos Lêntulos, já agora. É mais que certo que algum deles contou a história a Sila, enchendo-a de pormenores picantes.

— Sila tem-te favorecido — disse Macio, com um ar pensativo.

— É verdade. Embora, francamente, eu não perceba porquê.

— Se tu não percebes, então que direi eu?! — Jardineiro inveterado, Macio reparou em duas folhas minúsculas de uma minúscula erva e apressou-se a arrancar a intrusa. — Seja como for, César, parece-me que terás de esperar que essa história seja esquecida. E acabará por ser. É o que acontece a todas as histórias.

— Sila diz que não. Macio torceu o nariz.

— Provavelmente porque as histórias que se contam acerca dele não foram esquecidas. Francamente, César! Vocês são muito diferentes: ele é mau, é perverso. Tu, não. Nunca poderias sê-lo.

— Eu sou capaz de matar, Pústula. Todos os homens são.

— Eu não disse que tu não eras, Pavo. A diferença é que Sila é um homem mau e tu não és — insistiu Caio Macio, e daí não arredou pé.

Após o casamento, Sila e Valéria partiram para a lua-de-mel na villa de Miseno. Mas o Ditador estava de volta para a reunião do Senado, para a qual César fora convocado. Aos 20 anos, César era um dos mais novos senadores de Sila. Senador pela segunda vez aos 20 anos!

Aquele deveria ter sido o dia mais maravilhoso da sua vida: entrar num Senado cheio, com a coroa de folhas de carvalho na cabeça, e ver todos os senadores — incluindo consulares tão veneráveis como Flaco Princeps Senatus e Marco Perperna — levantar-se e aplaudi-lo vigorosamente, no que era a única excepção às novas regras de conduta que Sila aprovara para o Senado!

Em vez disso, o jovem César deu consigo a examinar atentamente todos os rostos, à procura de um sinal de troça ou desprezo, perguntando-se até que ponto a história se teria espalhado e quem é que, entre aqueles homens, estaria a pensar mal dele. A sua entrada no Senado acabou por ser uma agonia; e o pior ainda foi quando subiu para a última fila — a fila dos pedarii, onde pensava que devia sentar-se — e Sila lhe gritou que se sentasse com os homens da fila do meio, aquela onde ficavam os heróis de guerra. Claro que alguns senadores soltaram uns risinhos; mas eram risinhos ternos, provocados apenas pelo embaraço do jovem. César, porém, como seria de esperar, tomou-os como troça, de tal forma que, nesse momento, teria dado tudo para poder refugiar-se no canto mais escuro da sala. Contudo, apesar de tudo isso, nem uma lágrima lhe molhou os olhos.

Quando chegou a casa, depois da reunião (uma reunião particularmente maçadora), encontrou a mãe à sua espera na sala de entrada. Aquilo não era habitual em Aurélia: raramente deixava o seu gabinete. Nervosa, Aurélia esperara pacientemente pelo filho, sem fazer a mínima ideia de como abordar um assunto que, sabia-o bem, ele não desejava discutir. Tudo teria sido menos penoso se ela fosse uma criatura com facilidade de conversação. Mas não era esse o seu caso. Por isso, manteve-se em silêncio enquanto ele se desembaraçava da toga. Depois, quando o viu encaminhar-se para os seus aposentos, sentiu que aquele era o momento de dizer qualquer coisa, pois, caso contrário, não mais o veria até ao dia seguinte e o melindroso assunto não seria abordado.

— César — disse ela, e calou-se.

Desde que ele vestira a toga de adulto que era seu costume tratá-lo pelo apelido, sobretudo porque, para ela, ”Caio Júlio” era o seu marido. Além disso, César era para ela, em grande parte, um estranho: esse era o preço que estava agora a pagar por ter mantido entre os dois uma grande distância, convencida de que o excesso de afeição ou solicitude poderia ser prejudicial para o filho.

Ele parou e virou-se para a mãe, com uma sobrancelha ligeiramente erguida.

— Mãe?

— Senta-te. Quero falar contigo.

Ele sentou-se, com uma expressão levemente inquisitiva, como se ela não pudesse ter nada de importante para lhe dizer.

— César, que aconteceu no Oriente? — perguntou ela, sem mais rodeios.

Agora, a expressão de César era, ao mesmo tempo, inquisitiva e divertida.

— Cumpri o meu dever, ganhei uma Coroa Cívica e os elogios de Sila — retorquiu.

Aurélia fitou-o com a sua bela boca franzida pela zanga.

— Tu não és homem de subterfúgios, César.

— Não se trata de subterfúgios, mãe.

— Mas também não me disseste o que eu preciso de saber! Ele começava a retrair-se e o seu olhar era agora um gelo.

— Não te posso dizer aquilo que não sei.

— Podes dizer-me mais do que disseste.

— Acerca de quê?

— Acerca do problema.

— Que problema?

— O problema que eu encontro em todos os teus movimentos, em todos os teus olhares, em todos os teus subterfúgios.

— Não há problema nenhum.

— Não acredito.

Ele levantou-se, com a intenção de se retirar para os seus aposentos.

— O que tu acreditas ou não, é contigo, Mater. Não há problema nenhum.

— Senta-te!

Ele sentou-se, com um leve suspiro.

— César, eu acabo por descobrir. Mas preferia que fosses tu a contar-me.

César inclinou a cabeça, cerrou os seus longos dedos, fechou os olhos. Depois, suspirou de novo e encolheu os ombros.

— Eu obtive uma frota magnífica do rei Nicomedes da Bitínia. Pelos vistos, foi um feito absolutamente invulgar. O problema é que, posteriormente, começaram a dizer que eu tinha obtido a frota por ter tido relações sexuais com o rei. Por isso, as pessoas falam de mim não pela minha coragem, ou eficiência, ou mesmo astúcia, mas sim porque, pretensamente, vendi o meu corpo para alcançar os meus fins — disse ele, de olhos ainda fechados.

Aurélia não se desfez em compreensão, não soltou nenhuma exclamação de horror, não pôs uma máscara de indignação. Pelo contrário: não disse nada, até que o filho se sentiu obrigado a abrir os olhos e a fitá-la. Os seus olhares encontraram-se: os olhares de dois iguais, de duas pessoas notáveis que achavam uma na outra mais sofrimento que consolo, mas que, no entanto, estavam preparadas para enfrentar a causa desse sofrimento.

— Um grande problema — disse ela.

— Um estigma imerecido.

— É evidente.

— E eu não posso lutar contra isso, Mater!

— Vais ter de lutar, meu filho.

— Então diz-me como!

— Tu sabes como, César.

— Não sei, mãe, francamente não sei! — retorquiu ele, gravemente, com uma expressão que denunciava claramente a sua incerteza. — Tentei ignorar os boatos, mas isso é muito difícil, pois sei o que toda a gente está a pensar.

— Qual é a fonte desses boatos? — perguntou ela.

— Lúculo.

— Ah, estou a ver... Era de prever que acreditassem nele.

— E acreditaram, de facto.

Durante um longo momento, Aurélia nada disse. Ponderava bem o caso. E César pôde uma vez mais maravilhar-se com a capacidade que a mãe tinha de controlar os seus sentimentos, de se distanciar das questões pessoais. Finalmente, Aurélia começou a falar lenta e cuidadosamente, pesando bem todas as palavras que dizia.

— Tens de ignorar os boatos: esse é o primeiro passo, e o mais importante. Se discutires o caso com alguém, estarás a pôr-te na defensiva. E revelarás a importância que ele tem para ti. Pensa um pouco, César. Tu sabes que essa é uma acusação séria, tendo em conta a tua carreira política futura. Mas tu não podes permitir que os outros percebam que dás importância à gravidade da acusação! Por isso, deves ignorá-la para o resto dos teus dias.

O melhor do caso é que aconteceu agora e não daqui a dez anos. Um homem de trinta anos teria muito mais dificuldade em enfrentar este problema. Deves estar grato por isso. Muita coisa acontecerá nos próximos dez anos. Mas a nódoa não poderá voltar a surgir. O que tens de fazer, meu filho, é lutar duramente para apagar essa nódoa. — Um sorriso iluminou-lhe os olhos. — Até agora, tens tido aventuras unicamente com mulheres do bairro de Subura. Mulheres do povo. Sugiro-te, César, que comeces a pensar em aventuras mais elevadas, do ponto de vista da escala social. Não percebo porquê, mas a verdade é que tu produzes um efeito extraordinário nas mulheres! Por isso, a partir de agora, os teus pares devem ficar a conhecer os teus êxitos. Quero dizer com isto que deves concentrar-te nas mulheres que contam, nas mulheres proeminentes da nossa sociedade. Não as cortesãs como Précia, mas as mulheres nobres. As grandes senhoras.

— O quê? Desflorar uma série de Domícias e Licínias? — perguntou ele, com um sorriso largo.

— Não! — exclamou ela, vivamente. — Raparigas solteiras, nunca! Nem pensar! As tuas aventuras devem ser com as esposas de homens importantes.

— Edepol! — exclamou o filho.

— Combate o fogo com o fogo, César. Não há outra maneira. Se os teus casos amorosos não chegarem ao conhecimento público, toda a gente pensará que tens aventuras com homens. Por isso, as tuas aventuras deverão ser tão escandalosas quanto possível. É preciso que fiques conhecido como o homem de Roma que mais facilmente leva as mulheres a cometer adultério. Mas escolhe as tuas presas com muito cuidado. — Aurélia abanou a cabeça, perplexa com as recordações que lhe surgiam naquele momento. — Em tempos que já lá vão, Sila era conhecido por deixar as mulheres completamente doidas. Pelo menos numa ocasião pagou um duro preço — quando Dalmática ainda estava casada com Escauro. Sila evitou-a escrupulosamente, mas mesmo assim Escauro castigou-o, impedindo-o de ser eleito pretor. Graças a Escauro, Sila teve de esperar seis anos para ser eleito.

— Estás a tentar dizer-me quevou fazer inimigos?

— Estarei? Não, não estou. Porque creio que os problemas de Sila surgiram precisamente pelo facto de ele não ter permitido que Dalmática enganasse o marido. Se Sila tivesse acedido aos apelos de Dalmática, Escauro teria tido muito mais dificuldade em vingar-se. Um homem de quem toda a gente se ri dificilmente suscita admiração. Compaixão, sim. Escauro venceu o confronto porque Sila lhe permitiu manter uma aparência nobre — a aparência do marido clemente, mas que pode continuar a olhar para toda a gente de cabeça levantada. Por isso, quando escolheres uma mulher, deves ter a certeza de que quem ficará a perder será o marido. Não escolhas uma mulher que seja capaz de te recusar — e, sobretudo, nunca escolhas uma mulher capaz de te seduzir e enganar até ao momento em que, publicamente, manifeste a sua rejeição.

César fitava a mãe com um respeito profundo, um respeito absolutamente novo, que a sua expressão traduzia eloqüentemente.

— Mater, tu és a mulher mais extraordinária ao cimo da terra! Onde é que foste buscar tanta sabedoria sobre as coisas do mundo? És tão vertical e virtuosa como Cornélia, a mãe dos Gracos, e, no entanto, acabas de dar ao teu filho o mais terrível dos conselhos!

— A razão é simples: já vivo há muitos anos em Subura — disse ela, satisfeita. — Mas há outra razão, mais importante: tu és meu filho, e foste difamado. Aquilo que faço por ti não o faria por mais ninguém, nem mesmo pelas tuas irmãs. Se fosse preciso, era capaz de matar por tua causa. Mas matar não resolveria o problema que temos entre mãos. Por isso, acho preferível matar algumas reputações. Olho por olho, dente por dente.

César tinha vontade de a abraçar, mas os velhos hábitos de relacionamento entre os dois eram mais fortes: limitou-se a pegar na mão dela e a beijá-la.

— Agradeço-te muito, Mater. Eu também seria capaz de matar por ti, com a mesma facilidade e prazer. — Nesse momento, lembrou-se do conselho da mãe e estremeceu até de contentamento. — Ah, estou desejoso que Lúculo se case! Lúculo e aquele monte de esterco do Bíbulo!

No dia seguinte, César teve de confrontar-se uma vez mais com as mulheres, ainda que num contexto muito diverso dos casos amorosos.

— Júlia mandou-nos chamar — disse-lhe Aurélia, antes que ele pudesse partir para o Fórum Romano.

Lembrando-se de que ainda não tinha achado tempo para se encontrar com a sua querida tia, César não levantou qualquer objecção.

O dia estava agradável e quente, mas, àquela hora matutina, a caminhada desde Subura ao Quirinal era um verdadeiro prazer. César e Aurélia subiram a Vicus ad Malum Punicum, a rua que conduzia ao templo de Quirino, na Alta Semita. Aí, no encantador recinto de Quirino, encontrava-se a macieira púnica, plantada por Cipião Africano depois da sua vitória sobre Cartago. Ao lado dela, havia duas murtas muito antigas, uma para os plebeus, outra para os patrícios. Porém, durante os caóticos eventos que se tinham seguido à Guerra Italiana, a murta patrícia começara a mirrar, encontrando-se agora praticamente morta, ao passo que a murta plebéia estava ainda florescente. Pensava-se que aquele fenômeno significava a morte do Patriciado; daí que, ao ver a murta seca e mirrada, César sentiu-se triste. Porque é que não tinham plantado uma nova murta patrícia?

Os cem talentos com que Júlia ficara, graças a autorização especial de Sila, tinham-lhe permitido arranjar uma residência muito confortável, situada num caminho entre a Alta Semita e as Muralhas Sérvias. Era uma casa bastante grande e tinha a virtude de ter sido construída há pouco tempo; o rendimento de Júlia chegava perfeitamente para as suas necessidades diárias e para pagar aos escravos. Podia mesmo dar-se ao luxo de alojar e sustentar a nora, Múcia Tércia. Mas isso era escasso consolo para César e Aurélia, que lamentavam a mudança de vida a que Júlia fora obrigada.

A tia de César tinha quase 50 anos, mas nada nela parecia ter mudado. Apesar de estar agora mais pobre, isso não a levara a agarrar-se ao seu tear; pelo contrário, continuava a dedicar os seus tempos livres a obras de caridade. Embora o Quirinal não fosse propriamente um bairro pobre, continuava a. encontrar famílias necessitadas de ajuda, por razões que iam desde os hábitos alcoólicos à doença. Uma mulher mais presunçosa e sem tacto teria por certo sido rejeitada, mas não era esse o caso de Júlia: Júlia tinha a habilidade necessária para enfrentar aqueles casos; e todo o Quirinal sabia onde devia dirigir-se quando havia problemas.

Naquele dia, porém, Júlia não estava disponível para as suas obras de caridade. Ela e Múcia Tércia aguardavam com ansiedade a chegada dos familiares.

— Recebi uma carta de Sila — disse Múcia Tércia. — Diz que devo voltar a casar-me.

— Mas isso viola as suas próprias leis sobre as viúvas dos prescritos! — exclamou Aurélia, perplexa.

— Àquele que faz as leis não é nada difícil violá-las — disse César. — Basta um decreto especial e a coisa está feita.

— E quem é o teu marido? — perguntou Aurélia.

— O problema é esse — retorquiu Júlia, a testa franzida. — Sila não lhe disse. Pela leitura da carta, não se percebe sequer se ele tem alguém em mente ou se pretende que Múcia encontre marido.

— Deixem-me ver a carta — disse César. Leu a missiva num instante e devolveu-a. — Ele não se descose! Apenas te ordena que cases.

— Eu não quero casar-me outra vez! — exclamou Múcia Tércia.

Todos ficaram calados por um momento. Finalmente, César teve uma ideia:

— Escreve a Sila e diz-lhe isso mesmo. De uma maneira muito educada, mas, ao mesmo tempo, muito firme. E depois espera pelo que ele fizer.

Múcia tremeu.

— Mas eu não posso fazer isso!

— Podes. Sila adora que as pessoas o contestem.

— Que os homens o contestem, talvez. Mas não a viúva do jovem Mário.

— Que queres que eu faça, tia? — perguntou César a Júlia.

— Não tenho a mínima ideia — admitiu Júlia. — Como tu és o único homem da família, achei que devias ser informado.

— Não queres mesmo voltar a casar? — perguntou ele a Múcia.

— Não, César, não quero.

— Então, na minha qualidade de paterfamilias, irei escrever a Sila.

Nesse preciso instante, o velho chefe dos criados, Estrofantes, irrompeu, ofegante, pela sala.

— Domina, tens uma visita — disse ele a Júlia.

— Ah, que aborrecimento! — exclamou ela. — Diz que não estou, Estrofantes.

— Ele disse que queria ver Múcia Tércia.

— Ele, quem? — perguntou César.

— Cneu Pompeu Magno. César pôs um ar soturno.

— Pelos vistos, é ele o marido!

— Mas eu nunca o vi! — exclamou Múcia Tércia.

— Nem eu — disse César. Júlia virou-se para ele.

— Que havemos de fazer?

— Vamos recebê-lo, tia Júlia. — E César acenou para o velho criado. — Diz-lhe que entre.

O chefe dos criados voltou então ao átrio, onde se encontrava o visitante, transbordando de impaciência e de perfume de rosas.

— Segue-me, Cneu Pompeu — disse Estrofantes, cansado de tanta corrida.

Desde o casamento de Sila que Pompeu aguardava notícias sobre a misteriosa noiva. Esperava que Sila o mandasse chamar mal regressasse a Roma, mas tal não aconteceu. Finalmente, incapaz de esperar mais um segundo que fosse, foi ele próprio ter com Sila, decidido a arrancar-lhe a ansiada notícia.

— Que notícia? — perguntou Sila com um ar inocente.

— Sabes perfeitamente! — rosnou Pompeu. — Tu disseste que ias arranjar-me uma noiva!

— Disse, sim senhor! — retorquiu Sila, rindo-se satisfeito com a situado. — Ah, francamente! A impaciência da juventude!

— E quando é que me dizes quem é a noiva, vicioso torturador?

— Não me chames nomes, Magno! Não chames nomes ao Ditador!

— Quem é ela? Sila rendeu-se.

— A viúva do jovem Mário, Múcia Tércia — disse ele. — Filha de Cévola Pontifex Maximus e de Licínia, a irmã de Crasso Orador. Mas ela tem muito mais sangue dos Múcios Cévolas do que dos Licínios Crassos, porque o avô materno dela era irmão do avô paterno. E, como é evidente, ela é parente chegada das filhas de Cévola, o Augure, que se chamaram Múcia Prima e Múcia Secunda — daí terem-lhe chamado Múcia Tércia, embora haja cinqüenta anos de diferença entre ela e as outras duas. A mãe de Múcia Tércia ainda é viva. Cévola divorciou-se dela por adultério com Metelo Nepos, com quem ela veio a casar-se mais tarde. Portanto, Múcia Tércia tem dois meios-irmãos que são Cecílios Metelos — Nepos Júnior e Célere. Um belo quadro de parentescos, não achas, Magno? com tão boa linhagem, não é justo que fique viúva o resto da vida, pois não? E, para mais, viúva de um proscrito! O meu querido amigo Bacorinho, que é primo dela, tem-me andado a atazanar o juízo por causa disso. — Sila recostou-se na sua cadeira. — Então, Magno, achas que ela serve?

— Se serve? — retorquiu Pompeu, ofegante de excitação. — Não podia ser melhor!

— Óptimo — disse Sila. A montanha de trabalho que tinha sobre a secretária parecia chamá-lo; Sila debruçou-se sobre alguns dos papéis. Ao fim de um momento, ergueu a cabeça e lançou a Pompeu um olhar perplexo. — De que estás à espera, Magno? Eu escrevi a Múcia Tércia, dizendo-lhe que devia casar-se de novo. Por isso não há qualquer impedimento — disse Sila. — Vá, deixa-me só. Ah, e não te esqueças de me convidar para o casamento!

 

 

                                                                               CONTINUA

 

 

Pompeu correu a casa para tomar banho e mudar de roupa; enquanto isso, os seus criados puseram-se em acção para descobrir onde moraria agora Múcia Tércia. Conhecida a morada, Pompeu dirigiu-se imediatamente a casa de Júlia, deslumbrando toda a gente com a brancura da sua toga e espalhando à sua volta um intenso odor a perfume de rosas. A filha de Cévola! A sobrinha de Crasso Orador! Parente dos mais importantes Cecílios Metelos! Isso significava que os filhos que ela lhe havia de dar seriam parentes de algumas das mais importantes famílias de Roma! Ah, que lhe interessava a ele que ela fosse viúva do jovem Mário! Nem que ela fosse tão feia como a Sibila de Cumas, havia de ser sua esposa!

Feia? Mas ela não era nada feia! Era uma mulher muito estranha e muito bela. Cabelo ruivo-escuro, olhos verdes-escuros, uma pele muito branca, impecável. Ah, e aqueles olhos? Não havia outros iguais em todo o mundo! Ah, mas que delícia de mulher! Pompeu apaixonou-se loucamente por ela ao primeiro olhar, ainda antes de terem trocado uma única palavra.

 

 

 

 

Não admira, pois, que quase não tivesse reparado nas outras pessoas que estavam na sala, mesmo depois de as ter cumprimentado. Foi buscar uma cadeira, sentou-se ao lado de Múcia Tércia e, muito nervoso, pegou-lhe na mão.

 

— Sila diz que vais casar comigo — disse Pompeu, sorrindo para ela com os seus dentes brancos e uns olhos azuis muito brilhantes.

— Eu não sabia de nada — disse ela, sentindo, inesperadamente, que a sua antipatia começava a dissipar-se, e isso porque aquele homem exultava de felicidade, além de ser, de facto, muito atraente.

— Pois foi o que Sila decidiu — retorquiu Pompeu, ofegante de excitação. — Mas tens de admitir que ele se preocupa em fazer o melhor para todos nós.

— É natural que penses assim — interveio Júlia, num tom gélido.

— Não creio que tenhas razões de queixa! Afinal, tratou-te melhor do que a todas as outras viúvas de prescritos — replicou, com muito pouco tacto, o apaixonado, de olhos postos na futura esposa.

Júlia quase lhe respondia que Sila fora o responsável pela morte do seu único filho. Mas reflectiu um pouco e calou-se: aquele parvo, pensou, estava demasiado ligado a Sila para poder ver o outro lado da questão.

Quanto a César, sentado a um canto da sala, examinava atentamente Cneu Pompeu Magno, que nunca antes vira. Pelo aspecto, não era um verdadeiro Romano: as marcas gaulesas, comuns aos Picentinos, eram...

 

 

                                                                                                    

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades